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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
(IN)VISIBILIDADE DOS CABELOS CRESPOS: CONSTRUÇÃO DAS
IDENTIDADES DE MENINAS NEGRAS NA CRECHE
Rosa Silvia Chaves1
Resumo: Este trabalho busca evidenciar, a partir de uma pesquisa sobre o olhar de meninas
negras e brancas de 2 a 4 anos, sobre a questão do cabelo crespo, em uma creche na cidade
de São Paulo. Busca também problematizar como a docência na primeira infância lida com
o corpo negro, tendo em vista a construção de uma pedagogia descolonizadora, refletindo
sobre a identidade docente e o educar e cuidar de corpos que expressam relações conflitivas
e de poder. Com a descrição e análise das vivências no cotidiano da creche, das brincadeiras
e falas das crianças discute os estereótipos de beleza, o preconceito capilar e a
ressignificação cultural na infância. O toque, as formas de cuidar, pentear, enfeitar o cabelo
retratam fortes mensagens para as meninas negras que buscam nessas relações com as
adultas e com outras crianças a construção positiva de suas identidades. Embasado na
Sociologia da Infância que busca nas vozes e nos pontos de vista das crianças, a
compreensão de suas condições de vida, atividades, relações, conhecimento e experiências;
compreendendo-as como atores sociais portadoras de história e de cultura. Os resultados
revelam a necessidade de ampliação do entendimento sobre diversos aspectos das
complexas e intrincadas relações entre gênero, raça e infâncias.
Palavras-chave: Creche, Raça, Relações de Gênero, Cabelo Crespo.
O corpo negado - o corpo negro e a construção de identidade de meninos e meninas
pequenos(as)
Como osmeninos e em especial as meninas negras percebem e constroem a imagem de
seus corpos e formas de pertencimento étnico-racial no interior das instituições educativas?
Como o cabelo crespo é visto e percebido por crianças pequenas de 2 a 4 anos de idade,
brancas e negras nas interações com seus pares e com as(os) professoras(es) e demais
educadores(as) de uma creche? Estas questões inquietaram e impulsionaram esta investigação
que apresento neste Simpósio Temático do Seminário Internacional Fazendo Gênero.
1 Mestre em Educação pela PUC-SP, participante do Grupo de Pesquisa Sociologia da imagem, artes e infâncias
da FEUSP. Coordenadora Pedagógica aposentada da Prefeitura Municipal de São Paulo – Brasil.
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Para isso também apresento meu lugar como pesquisadora, mulher e educadora/
professora negra.Estas questões sempre fizeram presente no meu cotidiano, nas instituições de
educação infantil que atuei por tantos anos, mesmo quando não tinha claro as implicações no
processo de construção/desconstrução daautoestima, na ocupação de diversos espaços sociais
e culturais com um corpo e uma estética por vezes negada, estranhada, ou afirmada. Lembro-
me de momentos de interação com meus pares nos quais pequenos pedaços de papéis foram
jogados nos meus cabelos crespos, que estavam constantemente presos e trançados, causando-
me grande desconforto.
Referências depreciativas aos cabelos crespos nomeados como: ruins, duros, rebeldes,
bombril, palha de aço, o que nenhum pente poderia pentear, me impulsionava desde muito
nova a brincar com tolhas nos cabelos movimentando-as de forma a imaginar o movimento
dos cabelos lisos, que eram apresentados no imaginário como normais e bonitos.
Relembrando meu processo de socialização na família, desde pequena minha família
prendia o meu cabelo em rabos de cavalo ou tranças, comecei alisa-lo aos 8anos, diziam que
para facilitar o penteado. Fui aos poucos percebendo o meu corpo como aquele que causava
estranheza, com uma estética não reconhecida. Sonhava com um cabelo que me aproximasse
dopadrão de belezaimposto pela mídia e pela sociedade, que eu considerava como mais fácil
para pentear, pois não embaraçava. Lembro-me da minha mãe, que era negra e também tinha
cabelo crespo, brincando comigo enquanto penteava o meu cabelo crespo, falava cantarolando
que ele era como um ninho de mafagafa cheio de mafagafinhas, referindo-se aos nós que se
formavam ao pentear. Outra frase que falava constantemente era que a beleza da mulher
estava no cabelo. Esta afirmação anos depois foi se delineando nas minhas formas de olhar
para mim e para estética do meu corpo e as formas como meu corpo era percebido pelo outro
quer fosse negro ou branco.
Gomes (2012) expressa esta tensão e conflito na constituição de identidade, que
apresenta como um processo histórico para além do fenótipo, mas tendo como referências o
corponegro, em especial o cabelo crespo em oposição ao ideário de beleza pautado no cabelo
liso e a questão do alisamento do cabelo crespo.
O cabelo do negro na sociedade brasileira expressa o conflito racial vivido por
negros e brancos em nosso país. É um conflito coletivo do qual todos participamos.
Considerando a construção histórica do racismo brasileiro, no caso dos negros o que
difere é que a esse segmento étnico/racial foi relegado estar no pólo daquele que
sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao branco estar no
pólo dominante. Essa separação rígida não é aceita passivamente pelos negros. Por
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isso, práticas políticas são construídas, práticas culturais são reinventadas. O cabelo
do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que
recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como
“bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do
negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar
um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o
cabelo.
Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela que emerge um padrão de beleza
corporal real e um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o real é negro e
mestiço.
O tratamento dado ao cabelo pode ser considerado uma das maneiras de expressar
essa tensão. A consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do
corpo negro, marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a
intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão de vaidade ou de
tratamento estético. É identitária. (GOMES, 2012, p.3).
Neste jogo de tensões fui construindo minha autoimagem eidentidade como mulher e
negra, por vezes negando meu pertencimento étnico-racial, vivendo a diferença como uma
dor, por vezes encontrado espaços de afirmação,fui ao longo de muitos anos problematizando,
desnaturalizando, estudando e descobrindo um corpo negado, reconhecendo-o e me
apropriando dele como espaço de potência, saber e poder.
Neste processo de desconstrução do padrão e entendimento da construção da
diferença, numa relação de oposição e poder, pude vislumbrar e apreciar os meus cabelos
crespos, que passaram a ficar constantemente soltos, dialogando e ocupando espaços,
afirmando uma estética, exercitando e reconfigurando o meu corpo que foi se construindo em
negação e oposição aos padrões.
Ediante do meu cargo de Coordenadora Pedagógica em uma creche direta (Centro de
Educação Infantil) da rede de SãoPaulo, ao vivenciar e observar cenas da constituição da
identidade de meninas pequeninhas negras, algumas inquietações foram se delineando. Em
especial ao pensar no processo de construção das identidades das crianças pequenas, a partir
de seus cabelos crespos: como constituem suas identidades étnico-raciais e suas formas de
constituírem nas relações sociais como meninos e meninas? Como percebiam seus cabelos
neste processo de construção? A investigação implicou numa escuta sensível de palavras e de
corpos, num olhar de alteridade para dialogar com as crianças de forma a romper com o
adultocentrismo e encontrar metodologias que possibilitassem investigação com os olhos das
crianças, em busca de indícios nas suas diferentes formas de interação entre elas e com os
adultos.
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Ao me deparar com a docência e gestão de uma instituição de educação da primeira
infância na coordenação pedagógica, busquei pautar meus olhares e investigação nestes
processos de construção social: as crianças vão desde bem pequenas constituindo suas
identidades na creche, principalmente a partir da relação com seus cabelos? Quais mensagens
meninas e meninos negros estão recebendo? Quais os espaços de afirmação, transgressão e
resistência, ressignificação nas suas relações com seus pares e com os adultos? O que as
crianças nos revelam?
Para responder estas questões e estar com a escuta e o olhar refinado para as crianças
foram fundamentais os suportes teóricos da Sociologia da Infância (Sarmento,
Corsaro,Jenks,Faria e Finco, dentre outros/as) e também das questões étnico raciais e de
gênero.
Os referenciais teóricos
A infância como “categoria social, com características próprias” (Sarmento, 2004, p.
19) com uma “gramática das culturas da infância” (p.22) que se expressa em variadas
dimensões: semântica, sintaxe e morfologia, garantindo a existência de múltiplas infâncias
que se reinventam, com diferentes sujeitos sociais que constroem e reconstroem culturas na
interação com seus parese com os adultos, suas interpretações e constituições de significados
sobre si e o mundo.
Reconhecer as culturas infantis significa considerar que as culturas produzidas pelas
crianças caracterizam-se por uma dimensão primeira que é o reconhecimento de que a criança
constrói significados autônomos, expressos a partir de suas próprias referências. A segunda
dimensão se refere aos elementos de representação não subordinados aos princípios da lógica
formal, adulta, mas compreensíveis para as crianças e, por fim, aquela que permite
compreender que os elementos constitutivos das culturas infantis têm especificidades, tais
como os jogos, os brinquedos, as brincadeiras, os gestos, os desenhos (Sarmento, 2004), que
permitem reconhecê-los como artefatos culturais infantis.
As crianças produzem uma série de culturas locais que se integram e contribuem
para culturas mais amplas de outras crianças e adultos a cujo contexto estão
integradas. Esses processos variam ao longo do tempo e entre culturas, e a
documentação e a compreensão dessas variantes devem ser um tema central na nova
sociologia da infância (Corsaro, 2011, p.127).
Faria e Finco (2011) tendo como referência as contribuições da Sociologia da Infância,
defendem estudos, a partir de uma perspectiva pós-colonialista, ao darem visibilidade a uma
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criança concreta, não homogeneizada, revelam “quem são as crianças brasileiras, o que elas
têm em comum e o que as distingue uma das outras” (p.4). Neste sentido pensar nas
criançasdesde bebês comoatores sociais, participantes ativos, que manifestam e expressam de
forma muito peculiar aspectos significativos da sua culturapor meio das suas brincadeiras e do
seu corpo percepções sobre o que é ser menina e meninonegros(as) e brancos(as) que se
constituem em relação com os seus pares e com os adultos e que também transgridem os
papeis socialmente impostos, com suas formas de agir e construir as culturas infantis, por
vezes borrando fronteiras de gênero (Finco 2010 e 2013).
Cabe também esclarecer que gênero é “elemento constitutivo das relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos”, é uma “forma primária de dar significados
às relações de poder” (Scott, 1995, p.88) enquanto construção histórica e social. O controle e
acesso diferenciados aos recursos materiais e simbólicos, à questão de produção e reprodução
do trabalho são indicadores da forma como se estabelece a distribuição de poder. Neste
sentido as relações de gênero são plurais, possui variáveis geracionais, culturais, geográficas,
permitem compreender que as práticas diferenciadas entre homens e mulheres, baseada em
uma diferenciação biológica, são construções sociais, que estabelece uma relação de poder e,
portanto, assimétrica e hierárquica.
Enquanto construção social, ela naturaliza papéis e estereótipos sociais do masculino e
feminino, que passa também a ser reproduzido nas atividades diárias, nos corpos em suas
gestualidades:“o modo como estão sendo educados pode contribuir para tornarem-se mais
completos ou, por outro lado, para limitar suas iniciativas e suas aspirações” (Finco,2013,
p.174)
As preferências e os comportamentos de meninas e meninos não são
merascaracterísticas oriundas do corpo biológico, são construções sociais e
históricas.Ao buscar suas causas, encontraremos suas origens em reações
automáticas, em pequenos gestos cotidianos — cujos motivos e objetivos nos
escapam — que repetimos sem ter consciência de seu significado, porque os
interiorizamos no processo educacional. São preconceitos que não resistem à razão
nem aos novos tempos e que continuamos a considerar verdades intocáveis, nos
costumes e nas regras inflexíveis.“E todo preconceito impede a autonomia do ser
humano, ou seja, diminuisua liberdade relativa diante do ato da escolha, ao deformar
e, consequentemente,estreitar a margem real do indivíduo.” (Heller, 1992, p.59).
Diante das opressões que as crianças sofrem, meninos e meninas podem deixar de
exercitar habilidades mais amplas, deixar de experimentar, de inventar e de criar
(FINCO,2013, p.174).
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Contrapor-se a esta lógica significa pensarem diferentes contextos e nas relações
sociais estabelecidas, sobretudo, na forma como as crianças vivem as suas infâncias nas
instituições de educação infantil, dentre elas a creche, que se configura como um dos espaços
de produção e circulação de culturas infantis e por meio das brincadeiras, das interações e nos
seus traçados e formas de expressão, as crianças atribuem sentido e ressignificam aspectos do
cotidiano.
Tendo como premissa que as crianças são atores sociais, que atuam ativamente sobre o
mundo e a sua possibilidade de expressão por meio de diferentes linguagens, instiga
pensarcomo elas se reconhecem na creche e as relações socais de gênero e étnico raciais no
cotidiano desta instituição educativa. Buscar os indícios que permitissem identificar a forma
como elas percebem a si próprias e aos seus corpos neste espaço de produção de culturas e de
possibilidade de ruptura com estereótipos sociais de homens e mulheres, meninos e meninas
brancos(as) e negros(as).
Parte da premissa da criança como sujeito, competente, capaz de realizar processos de
significações que, estruturados e consolidados em sistemas simbólicos, se constituem em
cultura, tal como propõe Sarmento (2012). Ao fazê-lo, indicam formas possíveis de
enfrentamento às desigualdades, de gênero e raça, que nas relações cotidianas, resquícios de
relações sociais desiguais presentes no contexto mais amplo da sociedade e ao mesmo tempo
interferem, trazem irrupções e mudanças neste contexto nos quais estão inseridas trazendo
com suas lógicas, diferentes do adulto, que são formas de transgredir e inaugurar outras
formas de ser e estar no mundo.
Dessa maneira, a pesquisa procura abordar as questões de gênero e raça a partir dos
indícios fornecidos pelas falas, corporeidades e brincadeiras, buscando compreender de que
modo essas relações são reproduzidas ou alteradas. Instiga pensar nos corpos históricos e
sociais que se constituem numa relação de tensão e de poder.
Gomes (2012) em seu artigo, fruto da pesquisa etnográfica realizada no doutorado no
campo da antropologia social, investigando salões denominados étnicos em Belo Horizonte,
aponta o corpo negro e o cabelo crespo como símbolos da identidade negra que são “aspectos
tomados pela cultura na construção da representação social e da beleza do negro(a ) na
sociedade brasileira” (p.2)
(...) cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Ele é maleável, visível,
possível de alterações e foi transformado, pela cultura, em uma marca de
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pertencimento étnico/racial. No caso dos negros, o cabelo crespo é visto como um
sinal diacrítico que imprime a marca da negritude nos corpos. Ele é mais um
elemento que compõe o complexo processo identitário. Dessa forma, podemos
afirmar que a identidade negra, enquanto uma construção social, é materializada,
corporificada. Nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos
oferece, o trato do cabelo é aquela que se apresenta como a síntese do complexo e
fragmentado processo de construção da identidade negra (GOMES, 2012, p.7).
Configura-se como desafio investigar o complexo e intrincado processo dos corpos
negros na constituição de identidades na creche: como as meninas negras percebem o cabelo
crespo e a pele negra numa sociedade etnocêntrica, na qual os seus corpos e estéticas são
invisibilizados.
Metodologia
No desafio de elucidar o caminho metodológico e as reflexões sobre a relação
infância, gênero e raça, a pesquisa de inspiração etnográficacontextualiza a creche e explicita
as concepções de infância e de criança, apoiadas na Sociologia da Infância. Adotocomo
procedimento metodológico a observação das brincadeiras, desenhos e demais interações das
crianças com seus pares e com as(as) diversas(os) educadoras(es) na busca de possíveis pistas
sobre estas relações nas sutilezas das suas composições, cenários, papéis assumidos no faz de
conta que fornecessem indícios sobre as suas percepções em relação ao corpo negro e ao
cabelo crespo. Implicou considerar a forma como as crianças percebem, interpretam e
ressignificam aspectos da sua cultura, as suas contradições e idiossincrasias, fornecendo
indícios que permitem inferir e refletir sobre a forma como as relações sociais de gênero e
étnico raciais se configuram naquele contexto.
O desafio de romper com a visão adultocêntrica se apresentou tanto na coleta como na
análise dos dados, para pesquisar com as crianças a partir dos seus modos de ver, em seu
contexto específico, com o intento de compreender, a partir da perspectiva de gênero, raçae
geracional,a complexidade das relações vivenciadas pelas criançase seus/suas professores(as)
e educadores(as).
Os dados foram coletados de março a dezembro de 2016 numa creche da rede
municipal de São Paulo, com objetivo de compreender os modos de ver de meninos e
meninas, tendo em vista a diversidade nos modos de ser criança e viver a(s) infância(s), que
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trazem implícitas as questões de gênero e raça que foram foco da investigação. Nesta
perspectiva, para entender como as crianças, desde muito pequenas, realizam processos de
(re)significação e estabelecem ações específicas e genuínas foi necessário buscar aportes
teóricos e metodológicos que dessem conta dessas especificidades.
Jenks (2005) sugere o desenvolvimento de ferramentas metodológicas que permitam
às crianças falarem de forma diferente dos adultos em relação à questão do tempo, passo
importante para articular um sentido sobre a sua ação. Ressalta que reconhecer as qualidades
diferentes das crianças em relação aos adultos não exige tomar a idade como referência, e
afirma que os conceitos de tais qualidades não devem influenciar na forma com que o
pesquisador se aproxima das crianças na investigação da ciência social.
Ao realizar pesquisas com crianças pequenas, na perspectiva de seu pertencimento e
de sua inserção, a alteridade e a dimensão ética devem nortear as relações entre adultos e
crianças, tendo em vista reconhecer as culturas infantis como modo específico,
geracionalmente construído, de interpretação e de representação do mundo, que se
manifestam na exploração autônoma das crianças, nas escolhas dos temas e dos
procedimentos metodológicos (Soares, 2006)
Implica em educar os olhos para o constante estranhamento e possibilitar escutas que
dialoguem com a polifonia das culturas infantis no cotidiano das instituições. Neste sentido se
desvela outro importante desafio na pesquisa: como abarcar uma escuta para além das
palavras, evocando também as gestualidades, dando visibilidade às diferentes marcas sociais e
corporeidades das crianças no cotidiano?
O ponto de partida é a observação das crianças: o que buscam saber sobre o mundo à
sua volta, quais suas preocupações e que perguntas estão fazendo num dado
momento? Afinal: para onde esta direcionada a curiosidade das crianças? É
necessário, pois, olhar a criança, as diferentes crianças, os movimentos do grupo. É
urgente ouvir suas perguntas: no choro, no balbucio, no gesto, na palavra, na ação. A
escuta é disponibilidade ao outro e a tudo que ele tem a dizer. E mais: a escuta torna-
se, hoje, o verbo mais importante... (Ostetto, 2000, p. 194)
O acesso à creche diariamente e as possibilidades de realização desta pesquisa em
andamento ocorreram pela inserção da pesquisadora no espaço e com o grupo de crianças,
professoras e demais educadores(as) ao longo de 2016 em diversas formas de observação,
registrando falas e ações das crianças de 2 a 4 anos e suas poéticas no cotidiano. A presença
diária favoreceu a observação e coleta de dados e, desde o início deste ano,o processo de
construção da análise dos mesmos, a partir de algumas cenas observadas.Selecionei para
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apresentação neste seminário uma das cenas analisadas a qualdenomino: os cabelos bonitos
de Aline. Os nomes utilizados são fictícios.
Cena analisada: "Os cabelos bonitos de Aline"
Após o horário do sono, na sala do Mini Grupo I com sua professora e outra
educadora com o grupo, Aline 3 anos acorda na mão com um elástico que prendia o seu
cabelo crespo que era dividido em 3 rabos pequenos e, sem falar nada sai da sala atravessa o
refeitório e vaiao meu encontro nasala da coordenação. Parece que o cabelo soltou enquanto
dormia. Escuto a professora chamar por ela e perguntar onde ela iria, sem obter resposta e
observei que ela foi direto na minha direção.
Chegou se aconchegando no meu colo, sem falar nada e chorando pôs o elástico em
minhas mãos. Eu logo perguntei o que tinha acontecido. Ela se aconchegou mais no meu colo
olhou para mim e disse: “o Jeferson falou que meu cabelo é feio, é ruim” e começou a chorar
mais intensamente. Eu a abracei e comecei a conversar com ela: Aline seu cabelo é bonito,
você é bonita! Seu cabelo é diferente do dele e é igual ao meu. Ela olhava atentamente para
mim e mexia no meu cabelo crespo enquanto conversava com ela. Eu falei que iria usar um
creme que eu deixava no meu armário da creche, que passava este creme no meu cabelo e
prendi uma parte do cabelo da Aline, deixando a maior parte dele solto, mudando o penteado
com que vinha diariamente. Peguei um espelho e fui mostrando o penteado que eu iria fazer
para ela poder apreciar os cabelos dela. Os olhos dela foram ficando brilhantes quando
mostrava os cremes que eu usava e perguntava se podia passar no cabelo dela. Ela ficou atenta
e sorridente mexia no meu cabelo, sentia a textura dele enquanto olhava o penteado que
estava fazendo no cabelo dela, estava aconchegada.
Eu perguntava se ela queria que eu fizesse um penteado diferente no cabelo dela sem
prender a parte de trás, ela balançava a cabeça dizendo que sim. Ficou sorridente quando eu
mostrava, utilizando dois espelhos, a parte de trás do seu cabelo, que ficava constantemente
presa, ficar solta. Pude observar que o penteado que ela sempre vinha acabava por quebrar o
seu cabelo, falei com ela para deixar mais solto que iria conversar com a sua família.
O efeito de se olhar no espelho, notar o próprio cabelo solto, em um formato diferente
e o fato de ter uma figura de referência, uma mulher negra com cabelos crespos não alisados,
que era uma figura com a qual parecia se identificar, fizeram toda diferença. Quando
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terminamos fomos até a sala de mãos dadas. Ela voltou alegre ao grupo. Quando ela entrou a
professora elogiou o cabelo dela que estava muito bonito, ela contou o que o Jeferson havia
dito. A professora falou para ele pedir desculpa. Contrariado, ele pediu rapidamente desculpas
a Aline e voltou a brincar com a massinha de modelar juntamente com o amigo Marcos. Aline
foi em direção ao Jeferson e falou enfaticamente que o cabelo dela era bonito. Depois se
virou, sentou perto de outra criança e também começou a brincar com massa de modelar que a
professora tinha distribuído.
Santiago (2014) na sua investigação sobre o cabelo crespo em uma creche pública em
Campinas deparou-se com uma situação similar a que encontrei na minha investigação. Uma
das crianças negras acordava chorando depois de ouvir uma história sobre bruxas e com muito
medo associava o seu cabelo ao da bruxa, um cabelo cacheado e crespo, de uma estética
negada, que segundo a criança ele era armado como o da bruxa, logo não correspondia ao
padrão estético pautado no cabelo liso.O crespo aparece subalternizado em oposição
aoconsiderado normal que seria ter cabelo liso, adjetivado e percebido socialmente como
bonito.
A institucionalização estética colonial do cabelo liso como belo e prático ressoa
sobre todos os sujeitos presentes na sociedade, marcando não somente as
subjetividades dos sujeitos negros, mas também dos brancos com cabelos crespos ou
enrolados. Contudo, é importante salientar que os cabelos crespos somados à pele
negra na sociedade brasileira funcionam como signos linguísticos de comunicação
das relações raciais que vivenciamos cotidianamente, expressando as rupturas
históricas realizadas frente ao pacto colonial. (SANTIAGO, 2014, p.65)
Ressalta que os corpos infantis experimentam de forma variada o mundo que interagem
e constroem culturas com seus pares e com os adultos construindo suas subjetividades imersas
nos diversos “signos sociais” hierarquizados que “adornam” estes corpos negros e brancos.
As expressões produzidas pelas crianças revelam, além de sistemas de aquisição de
elementos culturais, a produção de uma cultura construída dentro do grupo com
outras crianças e nas relações com os adultos. Esse movimento conduz-nos a
pensarmos que as crianças tambémsão sujeitos que fazem história e que constroem
cultura em condições dada pela sociedade que pertencem (Fernandes, 2004). As crianças pequenininhas, através dos seus corpos, se comunicam com o mundo
descobrindo novas oportunidades, e desfrutam de sensações que influenciam a
construção de suas subjetividades. Os corpos infantis tomam feições singulares e
concretas através dos distintos signos sociais que os adornam e, por meio deste
processo, deixam de ser invólucro de órgão e passam a representar o meio, o contexto
e a ideologia. Contudo, esse processo não é natural, nem indolor; muitas vidas são
renegadas ao esquecimento para que a norma substantiva dos signos, impregnada
sobre os corpos, seja legitimada. Contrapondo a este processo, existem inúmeras
formas de resistências que procuram recriar o padrão do que seria um corpo
socialmente aceito pelo sistema simbólico presente na sociedade. (SANTIAGO, 2014,
p.14)
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Falas estigmatizando os cabelos crespos como ruins e feios refletem as construções
das desigualdades sociais numa sociedade com os ranços da colonização e da escravidão
negra e que o cabelo crespo e a pele se configuram fenótipos que balizam as relações sociais
num pais pluriétnico, mas que constrói o seu imaginário destacando apenas na matriz
europeia, desconsiderando a africana e a indígena. Nesse sentido, descolonizar estes corpos e
estas estéticas marcadas pela ideologia do branqueamento e do mito da democracia racialque
permeou e permeia as relações sociais no nosso país é o grande desafio a ser abraçado nas
ações cotidianas de cuidado e educação na(s) creche(s).
O choro de Aline com as adjetivações recebidas pelo seu cabelo dão pistas sobre este
tenso processo de constituir-se como menina e negra (re)conhecimento o seu corpo a partir da
relação com os educadores(as) e demais crianças.Relações estas atravessadas por
ambiguidades e contradições sociais, numa sociedade organizada numa lógica binária.
(...) um processo que não se dá apenas a começar do olhar de dentro, do próprio
negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com o olhar do outro, do
que está fora. É essa relação tensa, conflituosa e complexa...vendo-a a partir da
mediação realizada pelo corpo e pela expressão da estética negra. Nessa mediação,
um ícone identitário se sobressai: o cabelo crespo. O cabelo e o corpo são pensados
pela cultura. Nesse sentido, o cabelo crespo e o corpo negro podem ser considerados
expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil. Juntos, eles
possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão
criada no seio da comunidade negra: a beleza negra. Por isso não podem ser
considerados simplesmente como dados biológicos (GOMES, 2012, p.2).
É importante considerar que se estas relações não forem problematizadas nos espaços
educativos, as crianças vão construindo suas identidades achando natural pensar os diferentes
fenótipos a partir de uma hierarquização na qual o pertencimento étnico racial branco se dá na
subalternização das demais identidades, hierarquizando espaços e identidades sociais. Aline
ao poder dirigir-se enfaticamente a outra criança ocupa outro espaçocomo menina negra, na
qual sua estética e seu corpo compõem sem se subalternizar diante de outras estéticas. Um
olhar e um corpo que se expande e não se retrai no espaço educando crianças e adultos.
Considerações finais- Por uma pedagogia e um olhar descolonizadores
Quais espaços de resistência nesta zona de tensão e poder nas quais as identidades são
constituídas pelas meninas negras, no qual o cabelo crespo e a pele negra são referencias que
se constituem em oposição ao eurocentrismo e etnocentrismo?Como contribuir para ampliar
as formas de pertencimento e orgulho do pertencimento negro, nestes corpos negados, mas
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que compõe boa parte da nossa sociedade? Como ampliar o diálogo com diferentes estéticas
no cotidiano das creches? Como dialogar com nossas ancestralidades numa sociedade que se
reconheça efetivamente como pluriétnica?
Como aprender com as crianças a transgredir e inaugurar outras lógicas, olhando o
mundo pela primeira vez, com o estranhamento necessário e ao mesmo tempo abraçar o
compromisso ético estético e político como adultos brincantes a construir juntos(as) com as
crianças uma sociedade mais justas entre meninos e meninas, homens e mulheres, brancos(as)
e negros(as)?
O diálogo inicial com os dados da pesquisa no processo de construção instiga a muitos
questionamentos. O convite de inverter lógicas:empoderamentode uma menina negra
descontruindo estereótipos e combatendo silenciamentos que propagam o sexismo, o racismo
e outras desigualdades socialmente construídas.Neste sentido se dá o convite a desconstruir
lógicas de dominação, reconhecer potências e inaugurar espaços de transgressão. Como diz
Adiche (2015) sejamos todos feministas!
Referências
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(In)visibility of curly hair: construction of the identities of black girl in day care center
Abstract: This work derives from an ongoing research on a group of children between 2 and
4 years old which attends a day care center in the city of São Paulo. The research aims to
evidence the issue of curly hair under the viewpoint of white and black girls. Thus it makes
possible to think how the teachery of first childhood deals with the black body, keeping in
mind a decolonizing pedagogy. Think about to educate and to take care of bodies that express
relations of conflict and of power. The paper reveals the necessity of the enlargement of the
knowledge on several aspects of the complex and intricate relationship between gender,
ethnicity and childhoods. With the analytical description of everyday experiences in a day
care center, including children’s plays and dialogues, it discuss beauty stereotypes, the
capillary prejudice and the cultural resignification during childhood. The ways of touching,
take care, styling the hair depict strong messages to black girls who search in those
relationships with adults and children alike the positive construction of their own identities.
This work has a reference from Sociology of Childhood and search, from the voices and
viewpoints of children, of the understanding of their life conditions, activities, relationships,
knowledge and experiences; understanding them as social actors bearing history and culture.
Keywords: Race, Curly Hair, Gender Relations