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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Comunicação Irmandade da Boa Morte A Comunicação do Mistério Autora Jucinete Maria Machado Orientadora Rosângela Vieira Rocha Salvador, janeiro de 1997

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Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Comunicação

Irmandade da Boa Mor te

A Comunicação do Mistério

Autora

Jucinete Maria Machado

Orientadora

Rosângela Vieira Rocha

Salvador, janeiro de 1997

2

Irmandade da Boa Mor te

A Comunicação do Mistério

Projeto Experimental para obtenção do

título de Bacharel em Comunicação Social,

com habilitação em Jornalismo, na

Faculdade de Comunicação da Universidade

Federal da Bahia, no segundo semestre de 1996.

Autora

Jucinete Maria Machado

Orientadora

Rosângela Vieira Rocha

Salvador, janeiro de 1997

3

“... quem diz homem, diz livre,

porque quando ele o não é,

não se assume em plenitude.

E a liberdade passa, necessariamente,

pelo direito à diferença,

pela capacidade de intervir,

momento a momento no destino coletivo”. Eugênio dos Santos, 1995

4

A minha mãe

por ter sempre

acreditado em mim.

5

Agradecimentos

À professora Rosângela Vieira Rocha

pela competência e amizade demonstradas

durante a or ientação deste tr abalho e

na convivência acadêmica.

Às filhas da Irmandade da Boa Mor te

de Cachoeira, pelo acolhimento car inhoso.

À professora­mestra, Cremilda Medina,

pelo olhar car inhoso que se dispôs a

lançar sobre o projeto.

Aos professores e funcionár ios

da FACOM/UFBA, em especial

Vera Lúcia de Jesus, pelas contr ibuições

durante o curso e r ealização deste tr abalho.

6

A Josemir Montenegro Conceição e

Valter Alves da Cruz Júnior , amigos incansáveis

e decisivos na concretização deste projeto.

7

Sumário

I Par te

Apresentação................................................................................... 10

A Irmandade da Boa Morte como objeto.................................... 12

• Capítulo I

Introdução.................................................................................. 19

• Capítulo II

Ojetividade e subjetividade.......................................................... 22

• Capítulo III

A media, o público...................................................................... 26

• Capítulo IV

Das crônicas aos leads................................................................. 30

• Capítulo V

A hora da ruptura........................................................................ 34

8

• II Par te

A Comunicação do Mistério........................................................ 38

­ A Caminho do Mistério................................................... 39

­ Olhar Curioso.................................................................. 47

­ Predestinação................................................................... 51

­ Tempo de Bonança.......................................................... 65

­ Brilho de Juíza................................................................. 69

­ Alfazema que Purifica...................................................... 72

­ Força de Monja................................................................ 75

­ O Grande Rio e a Juíza.................................................... 77

­ História Viva................................................................... 80

­ Coisa de Nego................................................................. 83

­ O Despertar do Desejo.................................................... 85

­ Resistência...................................................................... 92

­ O Prato de Cada Dia....................................................... 95

­ A Roupa de Cada Dia..................................................... 99

­ Estrela Estelita............................................................... 106

­ Os Afilhados.................................................................. 110

­ A Proteção dos Orixás................................................... 118

­ Compromisso com os irmãos........................................ 122

­ Aiyè Orum.................................................................... 124

9

Considerações Finais................................................................. 126

Bibliografia............................................................................... 129

Anexos...................................................................................... 132

­ Entrevista de Cremilda Medina...................................... 133

­ Fotografias da Irmandade e de Cachoeira....................... 158

10

Apresentação

“A dor da gente não sai no jornal”,

canta Chico Buarque em uma de suas músicas.

De fato, boa parte da imprensa tem se orientado

por uma linguagem burocrática e fria, distante de

seus protagonistas.

(Tânia Sandroni, jornalista, ex­bolsista do Projeto São Paulo de Perfil)

11

“Irmandade da Boa Morte. A Comunicação do Mistério” é um trabalho

que se traduz em um achado. Um encontro com a linguagem dialógica

interacionista. E que inicia com esse Projeto Experimental de conclusão do

curso de Jornalismo da FACOM/UFBA, um relacionamento entre uma

profissional e um modo de fazer jornalismo humanizado. A perspectiva é o

reconhecimento do homem como protagonista (ser atuante), no produto

jornalístico. O leitor participante e não mais um mero expectador de histórias

fragmentadas do quotidiano.

A percepção da possibilidade de realização de uma reportagem com a

Irmandade da Boa Morte da cidade de Cachoeira, Bahia, como Projeto

Experimental, veio sob a inspiração do “São Paulo de Perfil”. Projeto

acadêmico, do curso de graduação em jornalismo, criado e coordenado por

Cremilda Medina, professora da Escola de Comunicação e Artes da

Universidade de São Paulo. Vinculado a duas disciplinas (Teoria e Prática da

Grande Reportagem I e II), do terceiro semestre, o projeto consiste na edição

semestral de um livro­reportagem, que reúne uma coletânea de textos

produzidos por alunos e escorados nos parâmetros da prática do diálogo social.

O “São Paulo de Perfil” tem objetivos assentados no tripé ensino ­ formação de

novos jornalistas, pesquisa ­ pesquisar a linguagem dialógica, e extensão ­

receber o retorno de uma recepção ativa fora da Universidade.

Para melhor compreender a dimensão transformadora do “São Paulo de

Perfil” vejamos o depoimento de uma ex­aluna do projeto: “Hoje eu não sou

12

mais uma estudante. Faço parte do mercado de trabalho cada vez mais

estreito, à procura de gente criativa, com novas idéias, com vontade de fazer

jornalismo. E é exatamente aí que o Projeto São Paulo de Perfil age. Ele abre

uma janela que vai além dos limites estabelecidos. Incentiva a criatividade do

futuro jornalista e desperta o interesse pelo leitor. Qual o jornalista que

consegue ver a cara de seu leitor, ouvir sua voz, críticas e elogios? Se eles

existem, com certeza são raríssimos. O projeto possibilita o diálogo entre

escritor e leitor. Um diálogo enriquecedor para ambas as partes.” 1

A Irmandade da Boa como objeto

“A cultura é algo que nos marca desde o nascimento, que nos condiciona

e que não vale a pena esconder.” Eugênio dos Santos in II Encontro Luso­Afro­ Brasileiro de Jornalismo e Literatura

Narrar a história da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, ser fiel à

idiossincrasias, detalhes, perfis de pessoas e de ambientes, é uma atividade que

requer sensibilidade e técnica. Não aquela técnica esquematizada para

aprisionar o sentido a partir e tão somente da visão do redator. Antes sim, essa

grande reportagem carece da utilização de uma técnica que permita a

humanização do diálogo, onde o entrevistado seja de fato o protagonista da

história e o texto, o espelho do seu falar, agir, pensar. Afirma Medina: “Em se

tratando de ser humano, há que se considerar os contornos fluidos do

____________________ 1 Extraído de MEDINA, Cremilda ­ Sob o Signo do Diálogo (Relato de Experiência: Projeto São

Paulo de Perfil)”, 1994. A declaração é de Patrícia Teixeira, ex­aluna do projeto.

13

consciente e do inconsciente. Esses que se deixam impregnar das camadas

profundas da intuição e da emoção, esses que se chamam de artistas, sábios

ou místicos, nada têm de idiotice” . 2

Escrever sobre a religiosidade de um povo é tocar em terreno delicado à

semelhança de temas como sexo e política. Em nosso caso particular, a

abordagem da vida comunitária e em sociedade privada da “Irmandade da Boa

Morte”, quando entendemos os dogmas, preceitos e crenças religiosas como

elos de sustentação e fator de sobrevivência da entidade, torna­se mais

dificultada, ainda que baseada em depoimentos de membros da confraria.

A nossa tentativa, ao abordar a Irmandade da Boa Morte em uma grande

reportagem, é a retratação humanizada e desprendida de preconceitos

tecnicistas, de um importante fenômeno da cultura baiana. Para tanto,

pretendemos amparar a nossa proposta (a que não se pode atribuir caráter

pioneiro, mas, ainda, polemizador), em gênero definido como híbrido, assim

entendido por situar­se em uma zona fronteiriça entre o Jornalismo e a

Literatura.

Percebemos também a possibilidade de reconhecimento de facetas da

crônica na reportagem. Isso se entendermos esse gênero dentro dos parâmetros

considerados por Martin Vivaldi ao referir­se à crônica jornalítica. Explica:

“a determinação se torna necessária para diferenciá­la de “outras crônicas” ,

anteriores e posteriores ao surgimento do jornalismo como atividade de

comunicação social. O característico da verdadeira crônica é a valoração do

fato ao tempo em que se vai narrando. O cronista, ao relatar algo nos dá sua

versão do acontecimento, põe em sua narração um toque pessoal. Não é a

câmara fotográfica que reproduz uma paisagem; é o pincel do pintor que

____________________

14

2 MEDINA, Cremilda. Guia das Almas­ série São Paulo de Perfil. CJE/ECA/USP, São Paulo, 1993

interpreta a natureza, imprimindo­lhe um evidente matiz subjetivo” . 3

Reconhecemos neste trabalho mais uma característica da crônica, quando

se evidencia a presença do narrador no texto, permeando a narração de uma

subjetividade que consideramos construída por um “ triálogo possível” 4 , em

que se busca a interrelação entre os sujeitos constituintes do processo

comunicacional. José Marques de Melo aponta a identificação dessa

característica da crônica por pesquisadores de fala espanhola, dizendo: “é um

gênero informativo, com a função precípua de oferecer descrições (matizadas

pela observação de cada cronista), ao público leitor dos jornais e revistas” . 5

Outras conceituações de crônica, todas considerando o gênero como um

relato interpretado de acontecimentos, transcritas ainda do texto de José

Marques colaboram com a tentativa de reconhecimento de recursos desse

gênero na reportagem. Vejamos:

Mar tin Vivaldi ­ “A crônica jornalística é, em essência, uma

informação interpretativa e valorativa de fatos noticiosos, atuais ou

atualizados, onde se narra algo ao mesmo tempo que se julga o narrado” .

Mar tinez Alber tos ­ “Narração direta e imediata de uma notícia com

certos elementos valorativos, que devem ser secundários a respeito da

narração do fato em si” .

___________________ 3 Citado por MELO, José Marques de ­ in “A crônica”. Jornalismo e Literatura ­ Actas do II Encontro

Afro­Luso­Brasileiro de Jornalismo e Literatura. Praga, Portugal, 1993 4 Conceito trabalhado por Cremilda Medina

15

5 Essas características da crônica foram ressalvadas por pesquisadores de fala espanhola, segundo

José Marques de Melo in “A crônica”. Jornalismo e Literatura ­ Actas do II Encontro Afro­Luso­Brasileiro.

Praga, Portugal, 1993

Juan Gargurevich ­ “Relato sobre pessoas, fatos ou coisas reais, com

fins informativos, redigidos preferentemente de modo cronológico e que,

diferente da nota informativa, não exige atualidade imediata, mas sim

vigência jornalística” .

Gil Tovar ­ “Relato vinculado à cronologia e rico em observações” .

Ao produto final do texto, a reportagem (que corresponde à segunda parte

do trabalho, distinta desta que se prende à justificação teórica), pretende­se a

caracterização do formato de um livro­reportagem, que apesar de baseado em

informações de fatos reais coletadas através da técnica de observação

participativa e a partir de relatos de membros da“Irmandade da Boa Morte”,

permite­se a utilização de certos recursos da linguagem literária e o

desprendimento do rigor técnico do texto jornalístico.

A estruturação do texto, por isso mesmo, aproxima o trabalho de um estilo

que mescla ficção e realidade com a preocupação explícita de divulgação pela

preservação, de um fenômeno social e cultural de primordial importância à

cultura afro­baiana, caracterizando sua influência sobre as relações e valores da

sociedade baiana e brasileira, principalmente cachoeirana. Um relato histórico

que forneça elementos etnográficos concorrentes para a compreensão da

“contribuição do negro à cultura nacional e ao conhecimento mais profundo do

substrato sócio­cultural que elabora e define sua identidade cultural, no

contexto da sociedade brasileira”. 6

16

O trabalho está vinculado ao “fazer” jornalístico considerando­se que o

método utilizado na sua execução orienta­se pelas normas que

____________________ 6 BRAGA, Júlio ­ Ancestralidade afro­brasileira ­ o culto de babá egum. Salvador. CEAO/Ianamá,

1992

fundamentam essa atividade: entrevista, trabalho de campo (reportagem),

pesquisa, observação, difusão, edição (compreendida a seleção e organização

de pautas das pesquisas e entrevistas).

A Contextualidade do fenômeno “Irmandade da Boa Morte”, se, a

princípio, parece prejudicar o atendimento à lei jornalística da universalidade,

por outro, atenta para uma realidade factual e emergente: a curiosidade que a

organização desperta em brasileiros e estrangeiros que, diariamente, visitam a

Irmandade. Anualmente, centenas de pessoas originárias de diferentes Estados

do Brasil e de outros países, principalmente dos Estados Unidos, assinam o

livro de freqüência da entidade.

Com o aproveitamento integral do discurso das fontes de informações, o

que se pretende é a compreensão em lugar da explicação do fato; o

estabelecimento de um elo de ligação entre os interlocutores (fonte de

informação­repórter­receptor). Afirma Medina: “A experiência de vida, o

conceito, a dúvida ou o juízo de valor do entrevistado transformam­se numa

pequena ou grande história que decola do indivíduo que a narra para

consubstanciar em muitas interpretações. A audiência recebe os impulsos do

entrevistado, que passam pela motivação desencadeada pelo entrevistador e

vai se humanizar, generalizar no grande rio da comunicação anônima. Isto,

se a entrevista se aproximou do diálogo interativo.” 7

Decidimos pela realização de entrevistas (técnica legitimadora e

apropriada pelo “fazer” jornalístico), até mesmo por compreendermos a

17

inevitabilidade de aceitação da idéia de que “todos os profissionais que tratam

de problemas humanos ­ e, por isso, devem ter contato direto com os

____________________ 7 MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível, São Paulo, Ática, 1986

indivíduos ­ lidam fatalmente com a entrevista”. 8 O texto, por isso mesmo, foi

construído a partir de depoimentos e entrevistas de oito das vinte e seis irmãs

que hoje compõem a organização. Desta forma, tentamos aproximar o discurso

do perfil dialógico interativo, intencionando possibilitar a interrelação entre os

sujeitos constituintes e constitutivos da reportagem, consideradas as

participações ativas dos entrevistados (fontes de informações), do entrevistador

(mediador do discurso da atualidade) 9 , e do receptor (enquanto sujeito da

interpretação).

Compreendemos a probabilidade, nesse trabalho, de efetivação de uma

dita inclinação para a utilização do texto literário por jornalistas que, apesar de

cerceados no quotidiano profissional por determinações estruturais das

empresas de comunicação, aproveitam janelas que se lhes abrem e realizam

reportagens que aprofundam temas, em geral, humanísticos ou existencialistas.

Jornalistas que diante de pautas de reportagens abrangentes, enxergam a

possibilidade de ruptura com o rigor racionalista de teorias ortodoxas que

ostentam as “pirâmides invertidas”, os “narizes de cera”, os “leads” e “sub­

leads”. Permitem­se o desprendimento do pragmatismo/formalismo técnico e a

aproximação da linguagem literária, subjetivada. Descompromissado das

amarras que conformam o texto jornalístico nessas fórmulas, o redator se

autoriza a concepção de expressões de sentimentos, emoções, comportamentos,

conceitos, valores, histórico de vida do entrevistado, bem como a

18

caracterização do ambiente para complementação do universo receptivo da

mensagem, subjetivada ou submetida ao olhar do entrevistador, à emissão de

mensagem, subjetivada ou submetida ao olhar do entrevistador, à

___________________ 8 NAHOUM, Charles in MEDINA, Cremilda. Entrevista ­ o diálogo possível 9 Conceito de Cremilda Medina

emissão de significados pelo entrevistado e à capacidade interpretativa do

receptor.

19

Capítulo I

Introdução

20

Objetividade e imparcialidade, características cristalizadas do “fazer”

jornalístico contemporâneo, são conceitos contestados na atualidade, por

estudantes, professores de jornalismo, ou mesmo por profissionais da área. Em

contrapartida, começam a despertar interesse nesses meios as discussões sobre

os parâmetros que imbricam o jornalismo com a literatura e apontam as

possibilidades de uma releitura da atividade jornalística.

Previsões otimistas antevêem certa flexibilização na assimilação dos

conceitos de objetividade e imparcialidade inerentes ao discurso jornalístico,

que açambarcou os valores do avanço tecnológico comunicacional definido

para a sociedade pós­moderna, reestruturada em conceitos e valores inerentes e

externos aos processos comunicacionais e determinante de novas regras de

comportamento social. Novos sistemas enunciam novas formas de

comunicação, que nem sempre privilegiam a linguagem oral, ou a ela atribui a

valorização que a séculos lhe é restrita. Acentua­se a utilização da virtualidade.

O tema, emergente e determinante de diferentes relações na sociedade

contemporânea é abrangente e, portanto, pertinente e polêmico. Muitas

considerações podem ser tecidas a partir dessas enunciações, o que seria

gratificante e produtivo, não fosse o nosso propósito diverso dessa difícil

tarefa, uma vez que demandaria tratar de tema em curso. As exigências

acadêmicas, entretanto, solicitam a justificação do caráter e objetivos do

21

presente trabalho, motivo pelo qual levantamos algumas discussões acerca da

interrelação jornalismo/literatura, para embasar o formato que pretendemos

para o produto final deste Projeto Experimental. Desejamos, para dar corpo a

um trabalho de finalização do curso de jornalismo da Faculdade de

Comunicação da Universidade Federal da Bahia, a partir da utilização dessa

conjugação possível ao texto jornalístico, realizar uma reportagem com a

Irmandade da Boa Morte, da cidade de Cachoeira, Bahia. As considerações

teóricas se justificam porque o formato proposto, tradicionalmente, não tem

sido a estrutura observada nesse tipo de atividade.

Nosso primeiro objetivo, portanto, não implica em tecer reflexões

aprofundadas sobre as imbricações do jornalismo com a literatura; ou em fazer

uma análise sobre parâmetros distintivos dessa interrelação. Torna­se

necessário esclarecer ainda, que não pretendemos nos alastrar em discussões

teóricas de qualquer outra ordem. As reflexões aqui levantadas terão o

propósito único de dar sustentação ao gênero escolhido para formatar o

trabalho: uma reportagem, que beirando uma zona limítrofe entre o jornalismo e

a literatura e utilizando recursos da crônica, divulgue e relate a história de um

fenômeno da cultura afro­baiana de reconhecimento internacional ­ a

Irmandade da Boa Morte de Cachoeira.

22

Capítulo II

Objetividade x subjetividade

23

São múltiplos os ângulos de análise da problemática jornalismo objetivo

versus jornalismo subjetivo. Entendemos, porém, ser indispensável a

abordagem, de duas variantes que, atualmente, se impõem à concretização de

uma proposta de quebra de relações com o método baseado na verdade do

valor prático, determinante no texto jornalístico contemporâneo. Relembre­se a

tempo, que não é nossa intenção aprofundar discussões teóricas, já que o

propósito primeiro desse Projeto Experimental é a realização de uma

reportagem nos moldes que compreendemos como um equilíbrio entre as duas

possibilidades de texto jornalístico aqui tratados, que se poderia considerar

traduzíveis em: “diálogo objetivado” e “diálogo possível”.

Para elucidação das idéias, entretanto, há que se considerar a revolução

por que passa o processo tecnológico comunicacional e as implicações

advindas dessas transformações. Essa revolução, prescindida dos conceitos de

velocidade e “competência”, privilegia a quantidade em detrimento da

qualidade; superestima os projetos técnico­formais e sublima os projetos

sociais. Diria Medina: Perdem­se ou se atrofiam os projetos sociais e sobem

ao estrelato projetos técnico­formais, como, por exemplo, os recursos de

computação gráfica, a fórmula da notícia curta, descarnada, os gráficos de

24

superfície sobre os comportamentos humanos. 10

A segunda variante recai sobre o jornalista, a quem cabe, a nosso ver, a

incumbência de se fazer vigilante a fim de não perder de vista a sua condição

de “mediador social dos discursos da atualidade”. 11 O mesmo jornalista a

quem se atribui o papel de formação e interpretação da opinião pública, ansioso

por atender a exigências da nova ordem comunicacional e cerceado por normas

internas e externas aos meios de comunicação para o qual trabalha, pode ver­se

compelido a produzir histórias estanques dos contextos e realidades sociais.

Histórias estas, compostas por personagens que não encontram pares na

sociedade. Conseqüentemente, o leitor não se identifica com esse texto,

primorosamente estruturado sob rigores técnicos, sem, entretanto, associação

factual com a realidade. Contraditoriamente, o mesmo texto jornalístico que,

por seu caráter ontológico, deveria manifestar­se como o espelhamento do

grupo social para o qual e sobre o qual escreve.

Tais reflexões, que entendemos legitimadas até mesmo pela necessidade

de se encontrar respostas para as novas solicitações da evolução tecnológica

das comunicações, caracterizam a propositalidade atual da rediscussão do

papel do jornalista, do seu comportamento ético e moral, já que esse

profissional, a cada dia, exerce influência mais significativa na construção do

consciente e do inconsciente coletivo. Essa rediscussão, fatal e logicamente,

recai sobre o produto do trabalho do jornalista ­ a notícia, que se revestiria dos

elementos necessários ao enfrentamento das questões aqui levantadas.

Encontramos sustentação para essas idéias em outra afirmação de Medina

quando trata das insuficiências da herança e da modernização técnica e

____________________ 10 MEDINA, Cremilda. “Sob o Signo do Diálogo. Ob. Cit. P 12

25

11 Conceito defendido por Cremilda Medina

tecnológica: “Esta gramática jornalística não dá conta das demandas

coletivas de acordo com parâmetros éticos universais. Mostra­se também

frágil, uma ética rigorosamente regida por preceitos, códigos, normas de

conduta. A busca racional de tais princípios marca a trajetória do

pensamento ocidental dos gregos a Jürgen Habermas, para citar apenas um

contemporâneo de peso. O problema que se propõe: a moralidade, no seu

caráter universal, e as atitudes éticas de cada cultura não passam

exclusivamente pela racionalidade lógica­analítica. Passam, sobretudo, pelo

desejo que se expressa através de profundas intuições. O gesto moral explode

dos afetos, da sintonia solidária com o inconsciente coletivo” . 12

Compreendemos, isto posto, a necessidade de repensar o discurso

jornalístico, antevendo uma probabilidade de humanização desse discurso no

processo de adaptação às novas regras da evolução técnica e tecnológica

comunicacional. A prática do diálogo social se sobrepondo à “racionalidade

esquemático­burocrática”. 13 A interacionalidade regendo um processo de

virtualidade de criatividade e criadora de novas relações sociais.

____________________ 12 MEDINA, Cremilda. Ob. Cit. P. 12

26

13 Conceito de Cremilda Medina

Capítulo III

A media, o público

27

Para esse momento, faz­se imprescindível analisar outra variante que,

dessa vez, diz respeito à credibilidade de que goza a media brasileira junto ao

público receptor. Cabe questionar o nível de veracidade e de fidedignidade do

texto jornalístico (enclausurado, hoje, no esquema da objetividade e

imparcialidade), produzido por essa media, à complexidade das situações

sociais e de seus protagonistas. Não sendo redundante lembrar também, que o

jornal diário hoje, é o do jornalismo tecnocrático, em que as palavras são

substituídas pelos números das pesquisas de opinião pública. Afirma Igor Fuser

na apresentação do seu livro “A Arte da Reportagem”: “Em nome de um

jornalismo ‘moderno’ e ‘objetivo’, desprezou­se a reportagem ­ em especial,

a reportagem em profundidade ­ para dar lugar a um enfoque que privilegia

as estatísticas como a medida suprema da verdade. Pesquisas de opinião

substituem a realidade viva, perturbadora, contraditória. Infográficos ocupam

o lugar dos textos” . 14

Além do valor que se atribui às consagradas técnicas da media impressa,

televisada e até radiofonizada, há que se prestar atenção nas relações

comunicacionais que envolvem o processo de elaboração e decodificação de

notícias nesses meios.

Para tanto, faz­se necessário lançar um olhar, ainda que de soslaio, sobre

aspectos que envolvem o jornalista e os entrelaçamentos que definem a sua

formação profissional.

____________________

28

14 FUSER, Igor (organizador). A arte da reportagem, tradução: Edith Zonenschain e Maria Celeste

Marcondes. São Paulo. Scritta Editorial (Coleção Clássica). 1996

Estabelecendo relações justamente com o processo de formação do

jornalista, Cremilda Medina reflete: “A formação técnica do jornalista se

sintoniza com a escolarização de uma maneira geral que, por sua vez, se

sintoniza com as ênfases da cultura da modernidade: a racionalidade

esquemático­burocrática se sobrepõe às virtualidades criativas e às

estratégias transformadoras” . 15

Esse aspecto diz respeito à integridade profissional dos que elaboram a

notícia ­ os jornalistas, e ao produto do seu trabalho ­ a notícia. A sensação de

incompletude que, se deduz, os invade ao se depararem com a versão final dos

seus textos, que, após apreciações e intervenções diversas, sabidamente, se

traduz em uma reestruturação de um recorte da história, é passível de análise.

Desprezando detalhes e fatores emocionais do quotidiano de pessoas que

frequentam a media meramente como elementos de diagnósticos, prognósticos,

estatísticas, esses textos acabam por abordar o ser humano como personagens

ocultas de histórias destacadas da realidade social. Lembra Fuser: “A vida nas

páginas dos jornais, é previsível e insossa como um sanduíche de fast­food. O

ser humano se tornou, quando muito, um detalhe ­ que, na maioria das vezes,

só serve para atrapalhar, como na manchete de primeira página que dizia:

‘Passeata dos sem­terra tumultua o trânsito’” . 16

A título de ilustração, retratemos o exemplo factual de um respeitado

jornalista norte americano. Às vésperas de se aposentar e após 30 anos de

exercício da profissão encarnando o papel de “jornalista mais imparcial dos

Estados Unidos”, fora traído pela sofisticação do meio eletrônico televisivo.

Pensando­se em “out”, desfraldou para os colegas, sua verdadeira impressão

___________________

29

15 MEDINA, Cremilda. Ob. Cit. p. 12 16 FUSER, Igor. A Arte da Reportagem. Ob. Cit. p. 27

sobre o presidente daquele país, Bill Clinton ­ que acabara de ser reeleito nas

eleições de 1996. O repórter teria dito, além de outras tantas afirmações

negativas sobre o democrata, que Clinton “em nenhuma parte do seu corpo

traduzia criatividade”.

A repercussão nacional e internacional do desabafo foi um estardalhaço

muito mais pelo contraditório comportamento do jornalista, do que por suas

palavras.

Com esse exemplo pretendemos caracterizar o enquadramento do

profissional do jornalismo a normas sociais e do veículo, demonstrando o

distanciamento entre a personalidade do jornalista, o profissional e o fato, além

de explicitar a insatisfação desse profissional com a personagem que encarna

para exercer tal papel, às vezes, durante toda a vida.

30

Capítulo IV

Das crônicas aos leads

31

“A crônica e folhetim, e mais tarde a grande reportagem, aparecem­nos,

assim, como espécies discursivas mistas pertencendo, a um tempo, ao

jornalismo, pela sua quotidianidade, e à literatura, pelo imaginário que as

acompanha” . 17

Uma rápida e sintética alusão à evolução histórica do texto jornalístico

brasileiro (no que se refere ao que se caracteriza como gênero), nos remete até

o final do século XIX e início do século XX, aos folhetins, crônicas e narrações

“literalizadas” ­ carregadas de adjetivações e substanciadas por leituras sócio­

políticas do quotidiano. Praticamente, todos os nossos grandes escritores

oitocentistas estiveram ligados ao jornalismo. Destaque­se nesse contexto, por

exemplo, as contribuições de Machado de Assis e José de Alencar. Mais

recentemente, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de

Andrade e, mais expressivamente traduzindo o gênero da crônica, Rubem

Braga. Em comum, estes escritores possuem, entre outras peculiaridades, o fato

de terem escolhido o jornal como principal meio para veiculação de suas obras.

De meados do século XX, até nossos dias, sob a imposição da censura

dos governos ditatoriais, que cercearam atos e idéias, e sob a influência da

escola norte­americana, a informação jornalística no Brasil é produzida

____________________ 17 TRIGO, Salvato. Jornalismo e Literatura ­ Actas do II Encontro Afro­Luso­Brasileiro. Porto,

Portugal Colecção: Trimédia, 1994

32

observando a fórmula da notícia curta, seca ­ o esqueleto fragmentado da

estrutura complexa e abrangente do comportamento humano. Essa fórmula que

conjuga, a um só tempo, rapidez, objetividade e imparcialidade, conferiu à

notícia o seu empobrecimento, bem como o desaparecimento do espaço

reservado à grande reportagem, aquela que vai além da aparência do fato e

retrata o protagonista e sua vivência.

Igor Fuser, em palestra na Faculdade de Comunicação da Bahia, em

novembro de 1996, acusou: “O jornalismo quotidiano brasileiro, na busca da

objetividade e da imparcialidade, privilegia o marketing em detrimento da

qualidade jornalística” . 18 Fuser classificou o jornalismo brasileiro de

“esquizofrênico”, em que é possível aparecerem, na mesma edição,

informações diametralmente opostas. Disse ainda que 80% a 90% dos jornais

brasileiros traduzem os ‘factóides’ ­ as pseudo­notícias ­ produzidas por

assessorias de pessoas e/ou empresas e reproduzidas pelos jornais. Todos esses

fatores, imprimindo à notícia uma subjetividade latente, confirmam uma

afirmação de domínio público sobre esse jogo de impressão: por trás da

objetividade aparente existe uma subjetividade. Não a subjetividade do repórter

que teve contato com o fato, mas a subjetividade do dono do jornal. Há que se

considerar, entretanto, a correlação de forças antagônicas, de caráter ideológico

e mercadológico, que se cruzam na rotina produtiva da indústria jornalística,

determinando o comportamento de jornalistas, editores, fotógrafos,

diagramadores etc. Tema que, por demandar discussão mais abrangente, nos

limitaremos à citação.

________________________________________

33

18 Igor Fuser é editor da revista Veja. Fez palestra na Facom / UFBA, em novembro de 1996, quando

lançou o livro “A arte da reportagem” ­ Coletânea de reportagens de diferentes autores e países.

Capítulo V

A hora da ruptura

34

Não que desejemos nos colocar em posição de pretenciosos contestadores

infundados quando nos opomos a esse formato de notícia, aparentemente,

deselegante, de linguagem predominantemente substantiva, que visa garantir o

máximo de distanciamento entre quem escreve, quem informa, e o que escreve,

o que informa. Em meio a insatisfações e protestos manifestos e latentes,

entretanto, ouvem­se brados de ruptura e inovação. Já disse Medina no Projeto

São Paulo de Perfil: “...vive­se a emergência da comunicação e emergente se

faz a construção do signo da interação social transformadora” . 18

A insatisfação predominante nos meios acadêmicos em relação ao

equacionamento da notícia através de leads e métodos semelhantes, que

conformam respostas intocáveis às estáticas perguntas: quem, o quê, quando,

onde, como e por quê, é generalizada.

Afirma Cremilda Medina, com a autoridade de professora da Escola de

Comunicação e Artes da USP, há mais de 20 anos, que “os estudantes de

jornalismo da ECA, ao se confrontarem com um plano de curso muito

desafiador se iniciam, antes mesmo de chegar ao terceiro ano, em conflito

interno que vai da rejeição à adesão apaixonada” . 19

____________________ 18 MEDINA, Cremillda. Ob. Cit. p. 12 19 MEDINA, Cremillda. Ob. Cit. p. 12

35

Guardadas as ressalvas à dimensão do que Medina classifica como “plano

de curso muito desafiador” e situando a discussão ao universo mais restrito da

Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, pode­se

encontrar paralelos com sua afirmação no que se refere à frustração dos

estudantes. Nossa experiência na FACOM, por exemplo, não é muito diferente

nem nos coloca diante de alunos menos angustiados e mais conformados com o

que concluem se resumir a atividade profissional do jornalista.

Sugerimos uma análise mais conseqüente dessa problemática, já que

enxergamos o papel social do jornalista e entendemos o quanto esse

profissional pode ser útil à formação e transformação dos valores da sociedade.

Percebemos que essa possibilidade pode partir da assunção de um jornalismo

crítico, audacioso, independente e comprometido com a realidade coletiva.

A partir desse panorama e sob a inspiração do “Projeto São Paulo de Perfil”,

nos pusemos a pensar se não seria exatamente esse o momento, de tanta

inquietação, apropriado para efetivação de uma ruptura (que se indica oportuna

e imprescindível), com o pragmatismo técnico­estatizante do “fazer”

jornalístico. Uma vez complexa e lenta a dinâmica que deverá orientar esse

rompimento, por compreender mudança de comportamento coletivo,

visualizamos a possibilidade de concretização pessoal do projeto em momento

que, igualmente, consideramos oportuno ­ o da realização do Projeto

Experimental para conclusão do curso de jornalismo na FACOM/UFBA.

Esperamos com isso, contribuir, ainda que modestamente, com as

reflexões acerca da possibilidade de aproveitamento dessas janelas que se nos

abrem (aos estudantes de Jornalismo), para que, em atendimento às exigências

acadêmicas para conclusão do curso, possam ser realizados Projetos

Experimentais que atendam a outros ramos de atuação do profissional dessa

36

área. Desta forma, pretendemos, ainda, concorrer com a solidificação de um

discurso jornalístico que se coadune com a interatividade inerente ao

relacionamento humano, característica, a nosso ver, emergente e inevitável à

nova ordem comunicacional.

37

II PARTE

A Comunicação do Mistério

“... Porque gente é outra alegria, diferente das estrelas”

Caetano Veloso

38

A caminho do mistér io

Seguíamos para Cachoeira. Um companheiro de infância, com quem

conservara consistente amizade, acompanhava­me. Recursos para executar

projeto de tal envergadura, não os tinha. Dispunha, isso sim, de um incontido

desejo de desvendar os mistérios da " Irmandade da Boa Morte".

Incentivos, poucos. Contava com o entusiasmo e a curiosidade da professora­

orientadora, Rosângela Rocha, que penso ter contagiado, tamanha a

empolgação com que falava do projeto. Mesmo assim, o seu olhar, ante a

proposta de inserção investigativa na vida comunitária da misteriosa Irmandade

da Boa Morte, da cidade de Cachoeira ­ Bahia, era justificadamente enviesado.

Sabíamos das características endógenas da entidade: "uma organização

privativa de mulheres, com vínculos étnicos, religiosos e sociais, também

unidas por parentesco consangüíneo ou de fé” . 20

Temíamos uma reação “protecionista”, pela preservação da Irmandade, que

____________________

20 NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do Nascimento e Isidoro, Cr istiana ­ A irmandade da Boa Mor te

de Cachoeira. Editora CEPASC, Cachoeira, 1988

39

pensávamos, provavelmente, levaria as irmãs a omitir informações. Sobre o

que, afirmara Dadi, uma delas:

“Mas tem muita coisa também que se a gente não pode falá, não é? ... Não

pode... Mas, o que pode falá a gente fala. Se num pudesse falá, num tinha

livro, livros... Os jornais falam.” Dadi

Ou ainda, a bem humorada dona Ernestina:

“Não. Toda seita tem seu “quequelequê” guardado, né. Rá, rá, rá... Tem suas

agonia... Ói... Não, purque tem de tê seus, qualqué coisa que a gente não

pode convessá, tira. Tem, um poquinho, nosso dia ixato...” Dona Ernestina

Os temores, felizmente, se resumiram a meras especulações academicistas.

Entretanto, um determinado limite nas investigações e na edição teria que ser

respeitado a fim de manter a integridade do grupo.

A receptividade por parte de todas as irmãs, entrevistadas ou não, foi

extraordinária. Apaixonei­me pela Irmandade a partir de um olhar, de um

contato imediato: paixão à primeira vista. A recíproca parece ter sido

verdadeira.

Seguíamos para Cachoeira.

A partir de Santo Amaro da Purificação ­ primeira cidade do interior depois da

BR 324 e acesso para Cachoeira, que fica a 109 quilômetros de Salvador ­ a

40

paisagem é, ainda, a do Recôncavo açucareiro do século XIX. Extensas

plantações de cana­de­açúcar desenvolvem­se, persistentemente, em solos há

anos desgastados pela cultura agrícola predatória, de queimadas e

monoculturas. Paisagem contínua e monótona, que delata a falta de

investimento governamental em políticas agrícolas, em uma região que se pode

dizer vocacionada para a produção rural. Já nos limites territoriais de

Cachoeira, começa­se a perceber alguns vales, a altitude por lá é bem baixa. A

cidade está situada abaixo do nível do mar. Há quem sinta o ouvido "estourar"

quando aumenta a pressão atmosférica na descida abrupta da entrada do distrito

de Belém até se avistar as primeiras casas de Cachoeira. O meu amigo é uma

dessas pessoas.

Às vezes, penso em uma possível associação entre a situação geográfica da

cidade e a religiosidade exacerbada do seu povo. Dizem que Cachoeira, situada

no declive de um vale, é a capital da magia baiana.

Capital da magia ou não, fato é que Cachoeira abriga em suas entranhas uma

das mais importantes e consistentes organizações religiosas e culturais do

Estado: a secular Irmandade da Boa Morte. A entidade tem que ser considerada

hoje, o mais significativo cartão postal de Cachoeira.

“ ... A Irmandade é uma Irmandade que já tá no mundo. Ela já tá no mundo

intêro, mesmo. Num tem mais lugá que num saiba que tem. Purque vem gente

de, de, de lá dos Estados Unido, vem gente de, vem gente, japoneses vem

visitá a gente. Que ali naquele livro da gente tem muita gente. De toda parage

do mundo. Intão nós, nós, culemos bem amigos, lá (nos Estados Unidos, onde

41

dona Ernestina foi em 1990, com Anália, a convite de Bárbara Lutter King).

Ela (Bárbara), saiu com a gente, nós fomos nas... a casa dela é fora da cidade.

Aí ela levô a gente, levô na igreja... A igreja também é fora da cidade. Ela

construiu só. Purque, a igreja dela chama: “Sonho de uma mulhé” . A igreja

chama: “Sonho de uma mulhé” . Vixi... Mas como ela é gozada, ave Maria...

Como é uma pessoa boa, uma pessoa gozada da gente ficá com ela, assim de

junto, convessano, alegre, né? Ela é... Nós levamo 15 dias lá. Foi em noventa

e, acho que foi noventa e três. Dona Ernestina

De toda parte do mundo, durante todo o ano, pessoas desembarcam na rua

Lauro de Freitas, com destino certo rumo à estreita e histórica rua 13 de Maio,

para visitar a Irmandade.

“Aí, quando sabe: ‘É Irmandade da Boa Morte, eu vô lá..’ Essa semana

mermo teve um grupo aqui, de Recife, de estudante da faculdade, lá na

Irmandade. Aí já vinhero conhecê a Irmandade. O pessoal da Irmandade,

conhecê a sede, que viro na televisão, no dia que inauguraro, né... há mais de

um ano. Aí ficaro doido, diz que: ‘ Vai tê que ir na Bahia prá conhecê a

Irmandade da Boa Morte de Cachoeira.’’’ Dadi

Chegando em Cachoeira, se o desembarque for na sexta­feira ou no sábado, o

primeiro contato do visitante é com uma autêntica e variada feira do interior.

Ali se acha de tudo. Desde o caranguejo enlameado, até o "prato feito" do meio

dia, ou mesmo as mercadorias importadas do Paraguai. Nesse mesmo largo

onde acontece a feira fica o Mercado Municipal, com arquitetura que se

confunde entre o moderno e o antigo, retratado no que restou da estrutura

42

original após a reforma. Ali se realizam variados eventos nos finais de semana,

situando o Mercado como um dos "points" culturais da cidade. Serestas e

pagodes reúnem pessoas de diferentes idades para dançar, beber e comer da

típica culinária local (jibóia, maniçoba) e pratos hoje servidos em todo lugar

(carne do sol, churrasco e outros).

Seguindo o mesmo caminho da feira, chega­se à rua que dá acesso a uma das

mais antigas construções da cidade, a igreja de Nossa Senhora D'ajuda, que

tem ao lado, um vãozinho pequeno, a antiga sede da Boa Morte, onde se vê a

fotografia de dona Santinha, uma das pioneiras da Irmandade de Cachoeira.

“Mas depois da sede, não. A sede piquinininha, não. Que ali, é... A D’ajuda,

quem adoô ali, foi o padre Fernando ­ nosso padre. Que morreu, que fez

aquela casa. Deu em dinhêro no Rio de Janeiro. E aí que dexaro prá

Irmandade. Aí ele foi, tirô e construiu a sede. Num deu, ele vendeu o anel

dele. Foi... Quando vendeu, disse: ‘Oh, minha cumadre, eu vô vendê’ (ele é

meu cumpadre, era meu cumpadre, né...) aí disse: ‘oh, minha cumadre, eu vô

vendê meu anel’, eu disse: ‘não meu cumpadre, não venda, não’... Aí, ele

vendeu o anel e cabô de fazê a casinha da gente. Pronto. Aí a gente quetô. A

gente prá cuzinhá, a gente fazia um barraco assim, fora, prá gente cuzinhá,

cuberto cum lona, a prefeitura dava as lona e tudo, a gente cubria, e a festa

era legal, dentro de casa, na sede. Dona Ernestina

No pé da íngreme ladeira, também calçada com "cabeça de nego" (várias ruas

de Cachoeira são revestidas por essas pedras que também calçam o Pelourinho

e outros pontos históricos da Bahia), e em cujo topo se vê a igreja D'ajuda,

43

encontra­se o novo prédio da Boa Morte. A construção está pintada de rosa

clarinho. Em azul escuro, janelões e portões caracterizam o clássico barroco.

Aliás, quase toda a cidade ostenta esse estilo arquitetônico. Daí ter sido

tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

O prédio da Boa Morte abriga, em seu interior, relíquias e os presentes doados

por artistas como Carlos Bastos, Caribé e até gente muito famosa, a exemplo

de Olívia Lutter King, viúva do mártir negro norte­americano, Martin Lutter

King.

“ ... Também, tem mais gente. Purque antigamente, quase a Irmandade era da

Irmandade, não é? E agora, não. Agora, a Irmandade é, nossa e do povo.

Nossa e do povo. Purque o povo nos qué, o povo nos adôa... O povo nos dão

banco, nos dão cadêra, nos dá qualqué coisa, nos dão bujão, fugão ‘mundial’,

aqueles bujão todos grandãos assim, nós temos cinco bujão daqueles, adoado.

Nós tamo pricisano de cadêra, que tem prá igreja, mas num tem cá prá

cima... Já doaro duas mesa grande, que a nossa tava já, já podre, podre já.

Num tá mais assim. Duas grandes. Esse ano um rapaz já vai me dá mais duas

mesa e dois banco, mas nós tamos pricisano de cadêra pr’o salão, nobre.

Aquele salão nobre não tem nada... Não tem uma cadêra prá sentá. O salão

nobre é no meio. É assim, no meio. Purque tem o primero andá, o do chão,

vem, chega no meio e dali sobe e vem prá o ôtro. Ali, nós tamo precisano.

Purque ali, se a gente quisé, a... com’é, alugá prá um casamento, a um quinze

ano, é uma festa de casamento, a gente já tem ali, um lugá soficiente, mas

num tem um... E a gente tem de tê o que ambientá, que num tem, é. Nós num

44

tá teno ainda. Tá muito vazio a casa, a casa tá muito vazia. É, é. Agora

mermo, nós tamo quereno, tamos quereno dá aí uma escolinha, né, prá

criança... Tamos quereno, fazê assim, feito um, uma, uma crechezinha. Tem

obrigação... e de dá. E de dá. A gente pede e dá. É, é. Aí tem prazê de pidi prá

dá.” Dona Ernestina.

Nas instalações da Boa Morte as irmãs se hospedam durante os dias das

celebrações em agosto (com muita satisfação, como afirma uma delas,

Lindaura: “naqueles dias eu me sinto no céu”).

Uma sala de estar doada por Lídice da Mata, equipamentos de cozinha

presenteados por outro político, artista ou um admirador, aos poucos a casa vai

se arrumando.

“Jorge Amado nos ajudô a fazê agora... Se num é ele que toma o cargo prá

fazê cum guvernadô, a gente num taria... Purque, como era que a gente ia

fazê uma sede daquela? Cê chegô vê o bagaço? Um bagaço. Inda tinha ali,

um telhêro. Num tinha não... É... Nós ganhô duas. Depois, Celina disse que

adoô, num é. Sei que ela comprô prá gente. Ela comprô em nome, que ia

ofertá prá Nossa Sinhora, prá pudê fazê uma casa só. E aí comprô e o

governo fez as três casa, sendo que é da Boa Morte, né? É, da Boa Morte. Só

tinha ali, a da, de cá de cima, só tinha, só o, uns negoço assim. Num tinha

telhado, num tinha mais nada” . Dona Ernestina

O prédio, do qual as irmãs se orgulham tanto, resultou de três casas também

doadas e de uma campanha liderada pelo “irmão Jorge”. É assim que as irmãs

45

se referem ao escritor baiano, Jorge Amado, que comprou a briga para instalar

a Irmandade em sede própria. Intento que, apesar da importância da Boa

Morte, só foi alcançado em 1995, em função dos esforços das irmãs (que até

dos Estados Unidos trouxeram recursos para comprar o imóvel) e por

insistência de Jorge Amado, que também contou com a colaboração de alguns

artistas para pressionar uma intervenção do governo do Estado.

Há que pedir licença para adentrar o templo, situado no andar térreo do prédio,

ao lado de um salão de exposição. Há que prestar reverência ao ambiente. Os

mais descrentes talvez nem se sintam obrigados a tamanha demonstração de

respeito e despojamento. A complacência e desprendimento dos que se deixam

invadir pelo clima do lugar, entretanto, é perceptível a olhos incrédulos. Nota­

se a sensação de êxtase de que se revestem os visitantes, transfigurados em

uma indescritível expressão de mistério e curiosidade.

46

Olhar cur ioso

Curiosidades, em Cachoeira ou em seus distritos, não são poucas e nem se

limitam a fatos históricos e culturais. Mas é preciso ter olhos para enxergar o

que, muitas vezes, está incrustado na alma do cachoeirano. Outras vezes é

questão de leitura apenas. No povoado de Belém encontram­se as ruínas do

Seminário de Belém da Cachoeira. Comentários populares afirmam a existência

de um túnel no prédio (inaugurado em 1707), por onde religiosos internos

passavam para encontros secretos com as irmãs do Convento do Carmo, na

sede. O convento é também o segundo mais antigo internato do país.

Um visitante atento pode se deparar com fatos inusitados como, por exemplo,

com uma bem humorada estratégia de um microempresário interiorano,

tentando burlar a crise econômica do país. Um boteco, em Belém, estampa em

sua fachada uma placa em papelão de caixa rasgada, com grafia de caneta

esferográfica, onde se lê: "o copo do guaraná é 0,20. Experimente o novo

Bhrama". Naquele estabelecimento, guaraná é vendido a copo.

"Ela carregou pedra prá construção da ponte". Essa expressão é utilizada com

muita freqüência pelos moradores de Cachoeira para caracterizar a idade

47

avançada das pessoas. Apesar disso, acredita­se não haver mais um ser vivo

que tenha participado da construção da pesada e belíssima D. Pedro II, um dos

principais pontos turísticos da cidade. Atualmente, a ponte, que, segundo o

etnólogo Luiz Cláudio Dias do Nascimento, fora construída para ser assentada

em algum ponto do rio Nilo, no Egito, carece de reparos. Uma comissão de

moradores foi criada para viabilizar a reforma. De estrutura de ferro e

“dormentes” (barras que formam o piso) de madeira, a ponte resiste ao tempo e

ao descaso dos governantes, fazendo a ligação entre as cidades de Cachoeira e

a pequena São Félix desde 1870, quando foi inaugurada. Por ela transitam

pedestres, carros, animais e até trens de carga. Estes últimos, impedindo

qualquer outro tipo de transporte de utilizar a ponte por trinta minutos e até

uma hora, quando vão passar. O trânsito fica interditado até o final da

operação.

Sobre a concepção e construção da ponte, relata Luiz Cláudio do Nascimento:

“por volta de 1850, o vereador José Ruy Dias d’Affonsecca ­ coronel Ruy

apresentou à Câmara de Vereadores de Cachoeira, o projeto de criação de

uma ferrovia que ligasse Cachoeira a Feira de Santana. Este projeto

representava o que de mais novo existia em termos de desenvolvimento

econômico. Em 1860, uma empresa inglesa de propriedade do empresário

Hugh Wilson iniciou a construção da Tram Road of Paraguaçu. A linha

férrea foi construída entre as ruas Lauro de Freitas e Irineu Sacramento,

onde foi construída a estação ferroviária. A linha férrea seguia em direção à

rua da Feira (ou rua que segue para Feira de Santana). Nesse mesmo período

é construída a linha de veículos econômicos, ligando a estação ferroviária ao

cais de desemboque, na rua das Ganhadeiras (atualmente rua 7 de Setembro).

48

Com a extensão da Tram Road of Paraguaçu, ligando a partir de São

Félix, Cachoeira e Montes Claros ­ Minas Gerais, fez­se necessária a

construção de uma ponte que ligasse essas duas cidades.

A idéia de uma ponte ligando Cachoeira e São Félix era antiga. Em

1826, construiu­se uma de madeira, mas pela fragilidade da construção, logo

tornou­se inoperante. Com o projeto da Tram Road of Paraguaçu era

necessário uma ponte de grandes dimensões. O presidente da Província,

através da Secretaria de Viação e Obras Públicas se inibiu ao projeto, que

gerou problemas sérios com os comerciantes cachoeiranos, que pretendiam

que a ponte fosse construída junto ao cais de desemboque. Mas, por

problemas técnicos, o local definitivo ficou sendo onde está hoje assentada a

ponte. Coube a um engenheiro civil por nome Griffin executar o trabalho de

aterramento da praça que hoje tem o nome de Manoel Vitorino.

...Num espaço de cinco anos ela foi instalada e inaugurada em 1870,

com o nome de ponte D. Pedro II, um dos monumentos mais nobres de

Cachoeira, um documento que comprova o que significou Cachoeira para a

economia baiana no século XIX.” 21

_________________ 21 Texto de Luiz Cláudio Dias do Nascimento, divulgado em panfleto do Forum da Cidadania da

Cachoeira, 1996

49

50

Predestinação

“Eu tive um sonho que me dizia qu’ eu tinha que participá de um grupo. Um

grupo religioso, mas só não sabia como. Não sabia quando. Um dia, eu

cheguei no meio da rua, me dissero: como é, você vai sê minha irmã, ou num

vai? Aí, juntou uma coisa cum a ôtra...” Dona Estelita.

A premiação da menina­moça que sonhara um dia participar de uma sociedade,

de um grupo religioso, tornou­se realidade até a última conseqüência. Há 45

anos incorporada à Irmandade da Boa Morte, dona Estelita Santana é hoje a

grande mãe do grupo, a mentora, a mestra, a Juíza Perpétua. Cargo vitalício e

intransferível, somente discutido e ocupado após a morte da última titular do

posto. A escolha se dá através de eleição, na qual apenas as irmãs constituídas

51

têm direito a voto. Dona Estelita é aquela irmã a que todos devem respeito e

satisfação. Em função do cargo que ostenta e das obrigações que assume,

pode­se dizer que ela está para a Irmandade, assim como o papa está para a

igreja Católica.

“Dona Estelita. É, ela é a cabeça. Qualqué coisa que tivé de resolvê tem que

consultá ela, ou tem que comunicá a ela... Ah, é sim. E respeito também. Ah!...

Sê juíza, todo mundo sonha. Se não morrê chega lá. Purquê eu... vai passano

o tempo, passano o tempo, de cargo prá cargo, cargo, até chegá. Se não

morrê e num saí da Irmandade, chega lá. Hum, hum, hum... (sorriu) Vai

aprendendo prá passá prás ôtras...” Dadi

Aquele mesmo dia da entrevista de dona Estelita, era o de viajar para entregar a

Santa a Mariá, na cidade vizinha de Cruz das Almas. Mariá mora em Cruz das

Almas e foi eleita provedora de 1997. Algumas irmãs moram em Cachoeira.

Outras, nos distritos. E outras, em cidades próximas.

_ “Você não pode ir, vá dá satisfação a dona Estelita” . Walmir

Ponderou Walmir Santos, responsável pelo prédio/sede e uma espécie de

afilhado da Boa Morte, ao ouvir a justificativa de Lindaura Nascimento, 66

anos, há 22 na Irmandade. Esse aconselhamento ela recebera por não ter ido

para Cruz das Almas entregar a Santa a Mariá. Era dia de chuva. O caminho da

casa de Lindaura, no distrito de Belém, até à pista, fica escorregadio com

qualquer molhação. Ela caiu, enlameou a roupa branca todinha do barro

52

acinzentado do massapê. Não dava para seguir viagem. Lindaura voltara para

casa, triste e contraída.

Descemos juntas.

Encontramos Walmir num dia de feira forte, sábado, em que pegamos a mesma

kombi que faz linha de Cachoeira para o distrito de Belém, onde ela mora e

onde eu me hospedava enquanto coletava as informações para elaboração deste

trabalho. O destino de Lindaura era a feira. Queria “comprá umas coisa que

faltava”, disse. Antes das compras, Lindaura, que sabe mais do que ninguém

das suas obrigações com a Irmandade, passou na sede para explicar que no dia

da entrega, havia chovido, ela caíra na lama, sujando toda a indumentária. Foi

aí que Walmir lhe advertiu sobre a necessidade de conversar com dona Estelita.

As obrigações da Irmandade têm que ser cumpridas com disciplina e

assiduidade. Uma queda, coisa imprevisível, se explica, se compreende. Mas é

preciso dar satisfação a dona Estelita. Entregar a Santa é coisa de obrigação,

garante a sobrevivência da Irmandade.

“Quais são os devê de uma irmã?... Os deveres de uma irmã é ela senti o que

tem dentro da entidade... o que ela deve fazê, o que não deve. Purque não é

toda irmã que tem lá essas confiança de cuidá das coisa mais responsável,

mas tem irmã que tem esse jeitinho. As coisa mais responsáveis são as coisas

que tem dentro da Irmandade mesmo: vela, santa...” Anália

Lá vai a santa para a casa de Mariá. Ela é a nova provedora e vai receber a

santa naquele dia.

53

“É, é. A juíza é Mariá. A procuradora geral é Glória. É, ela é a procuradora

geral, sim... Que ela ainda num tinha sido. Ela só foi uma vez juíza. Ela tem

25 ano (na Irmandade). Purque às vez, quando vai prá caí prá ela, num, num

tá soficiente fazê, aí... Se eu já passei... Eu já fui procuradora geral três vezes.

Já fui juíza três vezes. Agora, tisorêra, eu repeti o ano. Purque, num tinha

pessoas prá pegá o cargo, eu peguei di novo, tornei repeti. E o ano trasado,

eu fiz cum Anália, procuradora geral. Anália foi juíza, foi. É, só é as duas de

mais força, são as duas (provedora e procuradora geral ­ juíza), purque se a

tisorêra num, num fizé a festa com soficiente, a gente tem de fazê. Se a, eu

tenho que fazê sendo procuradora, se a tisorêra num fizé, também, a mesma

coisa, Anália tem de fazê como juíza. Mais força purque, a gente é que tem o

cargo todo da festa, durante a festa toda, a gente é quem toma conta da festa.

É quem resolve. É, sim, é. A obrigação a levantá dinhêro, levantá, fazê,

comprá as coisa, boi, tudo é a gente que compra. Boi, a gente compra boi,

cria porco, a gente cria porco, galinha, prá fazê essa festa, a gente cria tudo,

também.” Dona Ernestina

A cada ano, elege­se, dentro da Irmandade, uma nova comissão para organizar

a festa seguinte. Essa equipe é constituída, por ordem de importância, por uma

procuradora geral, uma provedora, uma tesoureira e uma escrivã. Mas nem

mesmo nessa hora a Santa é excluída. Sua representação carnal é feita por dona

Estelita que, impreterivelmente, de sete em sete anos, é provedora da festa.

“De sete em sete anos, a santa é provedora da festa. E quem representa a

santa é a juíza perpétua” . Dona Glória

54

À proporção que se assumem os cargos e se vestem as roupas correspondentes,

que vão da primeira à quarta saia (escrivã ­ 1 a saia, tesoureira ­ 2 a saia,

provedora ­ 3 a saia e procuradora geral ­ 4 a saia), cresce­se na escala

hierárquica da Irmandade. Apenas as irmãs que “constam em ata” (é como elas

costumam se referir àquelas que já superaram o período de iniciação e já estão

definitivamente incorporadas ao grupo), têm direito a voto.

“A gente entra como a Irmã de Bolsa. A gente entra como Irmã de Bolsa, e de

Irmã de Bolsa, a gente aí vai seguino, né... com três anos depois, a gente é

tisorêra. Depois de iscrivã... Depois de iscrivã, tisorêra, depois de tisorêra, é

juíza (provedora), depois de juíza, procuradora geral” . Dona Ernestina

Antes de ser integrada definitivamente, a “Irmã de Bolsa” passa por um estágio

de iniciação durante três anos. Nesse período, ela recebe informações sobre as

regras e segredos da Irmandade, ao tempo em que vai sendo observada até ser

decidido o registro do seu nome em ata.

“A irmã de bolsa... ela num vai tê nada, nada. Ela vai acompanhá uma irmã

mais velha. Aquela irmã mais velha dá algumas instruções se ela quisé, mas

se a irmã mais velha vê que ela qué sê muito... avançá naquilo antes da hora,

a irmã mais velha fica... não dá instrução, não. Deixa ela lá, prá vê em quê é

que ela vai fazê. Purque às vezes, quando a pessoa entra, qué se avançá, mas

aí a gente se incurta, né. Dêxa ela lá e fica atenta. Não digo nada. É como se

inicia no candomblé, na igreja também. Purque quando você chega no

catolicismo, na igreja, que você vai sê um padre, você tem que tê educação,

você tem que tê suas maneiras, você tem que tê o respeito, você tem que tê

55

muita coisa prá você chegá a ordenança. Se ela for uma pessoa desobidiente,

ela demora de chegá naquela educação, naquela tradição que a freira tem.

Demora...” Anália

Lá vai a Santa para a casa de Mariá.

No intervalo entre uma e outra festa, a imagem de Nossa Senhora da Boa

Morte fica guardada na casa da provedora do ano seguinte. A Santa é levada

pelas irmãs, em traje característico.

“É. Glória fica em pé, meia noite. De sexta prá sábado. De sábado prá

dumingo. Ah... guarda. A gente guarda em suas... Cada uma que tem parte

com ela fica cum ela. Ficava na casa de Celina. Mas, hoje, a gente fica cum

ela. Não, é... Purque ela tá morta, né. A assunção dela é de sábado prá

dumingo. Intão, o resto do, do tempo, nós estamos esperando a volta dela,

depois, no outro agosto. Hum, hum... Dona Ernestina

De setembro de 1996 até agosto de 1997, a imagem menor, fica na casa de

Mariá, em cômodo específico, onde apenas ela pode entrar e dormir, se quiser.

Mais ninguém, além dela.

“Mas também num posso pegá, e nem também abri o isquife dela prá mostrá,

nada disso. Agora, a piquinininha, aquela piquinininha, assim, é que fica.

Um ano. É, ela só vem em agosto. Antes de agosto ela vem. Antes de, da festa,

ela vem. A gente leva rezano e volta rezano. Quando a gente vem trazê ela

prá casa, vem rezano. E quando a gente vai, vai rezano. Não, quando a gente

chega lá, a gente faz, na chegada dela, a gente faz um sambinha, todo mundo

56

alegre, todo mundo come o bolo, todo mundo bebe o refrigerante, todo mundo

ali, alegre purque intregô à ôtra irmã, né. É, é... Dá o bolo, dá o mungunzá,

dá o arroz doce. A gente faz prás irmãs” . Dona Ernestina

O esquife (espécie de caixão onde fica a Santa) ninguém, além de Mariá, pode

tocar. As imagens hoje cultuadas, são as mesmas que vieram de Salvador,

quando negras africanas criaram a Irmandade na Igreja da Barroquinha, em

1823.

“Desde 1811, humildes crioulas requereram ao desembargador provedor dos

resíduos e capelas, a administração do santuário de Nossa Senhora da

Barroquinha, em Salvador, na qual foi criada a Irmandade de Nossa Senhora

da Boa Morte. Posteriormente, a mesma ordem foi instituída nesta matriz de

Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira” . 22

“Intão, a Irmandade veio prá Cachoeira, purque acabô a de Salvador, na

Barroquinha. E a última pessoa foi a finada Santinha, que veio prá cá e

trouxe, intende?... prá “Casa Istrela” , na rua da matriz, tem uma istrela no

passeio, tem... é número 41, é, é. Uma casa assim desta cor mais ou menos,

ou cinza, assim (apontava um objeto de cor cinza), lado direito, depois da

padaria, lado direito. Veio se iscondê no Recôncavo. Mas nessa, essa altura,

a Irmandade já tinha acabado, já tinha acabado. Mas ficô, que aqui fundaro.

É... Intão a dona, a finada Santinha, ela chegô aqui, que foi a primera (tem

um retrato dela na Irmandade. Acho que cê viu na sede antiga). Intão, daí foi

que foi renascendo aqui em Cachoeira. E está até hoje. Que já esteve em São

57

Gonçalo, mas acabô; em Muritiba, acabô. Outras pessoas lá, que, que

tentaro, né, fazê, num consiguiu. Dadi

“Criada por negras alforriadas, ‘negras do partido alto’ as quais, no

contexto da época, atendendo aos ideais de libertação social e preservação

de suas crenças religiosas, se estruturaram numa organização de cunho

____________________ 22 A irmandade da boa morte de Cachoeira. Ob. Cit. p. 38

católico, o rigor dos valores da fé e dedicação diária no cumprimento das

obrigações do culto para o esplendor da virgem”. 23

O esplendor da virgem cultuada aqui e ali. Na igreja Católica, para satisfação

do “sinhôzinho” e no Candomblé, para manter viva a rica cultura do povo

africano, arrancado de sua terra natal e trazido para o Brasil na condição de

escravo. Um povo que fora expropriado de suas crenças, mas que soube

preservar suas raízes através do culto religioso. A imunidade não foi completa.

Muita influência da cultura branca se acha no culto religioso do negro

brasileiro, mas a resistência garantiu a autenticidade que acabou por converter

o conversor. O sinhôzinho virou escravo da senzala. Hoje já não é possível

definir a raça pela crença. Negros cultuam santos católicos e brancos rendem

homenagens aos orixás.

O sincretismo do candomblé com a igreja católica surgiu como uma estratégia

dos negros africanos para preservarem a sua cultura religiosa. Daí atribuirem

nomes de santos católicos aos orixás, simulando para o “sinhozinho”, a

58

adoração ao santo cristão: Iansã é Santa Bárbara, São Jorge é Oxalá, Omolu é

São Lázaro e por aí vai... Essa dicotomia, entretanto, até hoje confunde

crenças e definições religiosas e históricas. Assim, para umas irmãs, a Santa é o

espírito da filha de uma escrava com um senhor de engenho. Para outras, ela é

filha de portuguêses, para quem se deve continuar trabalhando.

“É, não... Mas era... Ela num era purquê era, ela era branca sim... Que a

____________________ 23 NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do ­ A irmandade da boa morte de Cachoeira. Ob. Cit. p. 38

princesa Isabé nos deu em sabor da iscravidão... É, ela era branca. Agora, a

gente era que era negra, é que trabalhava prá ela. É... hum, hum, hum... Não,

ela não. Ela é pura e limpa. Ela é Maria... Não, ela num era assim. Ela num

foi morta, prá ressucitá como veio uma carne humana, não. Ela é um ispírito

puro e limpo. Agora, ela (princesa Isabel) nos deu prá gente conservá. Nós

temo ela por conservação... Oh!” Cantou: “Vamo trabalhá, vamos trabalhá

pá Iaiá, vamos trabalhá pá Iaiá, pá Iaiá nos ajudá” ... Hum, hum, hum”

(sorriu). “Nós não é a negra dela? ... Intão, pronto. Nós é a negra dela” .

Dona Ernestina

Apesar de serem obrigados a cultuar os santos do catolicismo, aos domingos,

os negros ecoavam os tambores nas senzalas, com o consentimento dos

senhores de engenho. Eles acreditavam que aquilo amenizaria o número de

mortes de escravos acometidos pelo banzo (nostalgia mortal dos negros da

África). Essas relações do sincretismo paracem permacer até hoje, presentes

nas concepções religiosas dos afro­brasileiros. Reza­se nas igrejas e prepara­se

59

oferendas nos terreiros. Observe­se que a imagem da Irmandade que representa

Nossa Senhora da Glória é branca e a de Nossa Senhora da Boa Morte é negra.

“Não, sinhora... Ela é mistiça. Só por causa dos portugueses que ela tem

aquela cor. Na realidade, o espírito num tem cor. Todo mundo sabe. Mas a

imagem de Nossa Sinhora, pode dizê de Nossa Sinhora da Boa Morte, era

imagem de cor negra. Mas por causa dos portugueses. Que os portugueses

não gostava de negros. Os portugueses num castigava os iscravos e tudo?

Eles intão, prá inganá os portugueses, adoravam a imagem e por debaixo

fazia o candomblé, né?...” Dadi

A Santa desceu para Cachoeira.

Diz­se que negras Gegês deslocaram­se do litoral para o interior, fugindo das

pressões e perseguições dos brancos, fundando, em Cachoeira, a Irmandade de

Nossa Senhora da Boa Morte, instalada, a princípio, na casa Estrela, situada na

rua da matriz.

Uma publicação oficial do período escravagista, intitulada “Batuques de

Negros”, selecionada e editada por Luiz dos Santos Vilhena em 1969, retrata

com muita clareza, a resistência branca à praticada das religiões africanas na

Bahia, por negros escravizados. O artigo, de caráter extremamente

preconceituoso, demonstra desconhecimento e desrespeito ao culto religioso

africano, fazendo exprobrações infundadas e repressivas. O autor classifica o

candomblé como bárbaro, desonesto, gentílico, horrendo etc. Leia­se:

60

“ Por outro lado não parece ser muito acerto em política, o tolerar que pelas

ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e de outro sexo,

os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques,

dançando desonestamente, e cantando canções gentílicas, falando línguas

diversas, e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e

estranheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de conseqüências que dali

podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Bahia,

corporação temível, e digna de bastante atenção, a não intervir a rivalidade

que há entre crioulos, e os que o não são; assim como entre as diversas

nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África...” 24

____________________ 24 VILHENA, Luiz dos Santos ­ A Bahia no século XVIII, volume 1, Editora Itapuã, coleção Baiana,

Salvador, 1969

Outro artigo publicado no jornal “A Tarde”, já neste século, intitulado

“Varejada a igreja negra e presos os bárbaros sacerdotes”, com o subtítulo

“Amoreiras, em Itaparica, era um reduto do fetichismo”, dá conta de uma ação

mais efetiva da perseguição ao culto religioso africano na Bahia. Eis a

reportagem na íntegra, publicada em “A Tarde”, Salvador, 21 de junho de 1940

e aproveitada por Júlio Braga ao tratar do assunto em seu livro “Ancestralidade

brasileira ­ o culto de babá egum”.

“A polícia baiana, em feliz diligência, apreendeu anteontem, à noite, na

ilha de Itaparica, em Amoreiras, um casal de pais­de­santo e copioso material

da liturgia fetichista.

Há dias, queixaram­se ao Dr. Altino Teixeira, delegado auxiliar, os

moradores de Amoreiras, contra aquele “ terreiro” , que os punha em

61

constante desassossego. Os “babalaôs” eram Antonio Daniel de Paula e um

indivíduo conhecido como “Paizinho”.

O Dr. Altino Teixeira entendeu­se com o Sr. Secretário de Segurança e

foi enviada para o local uma caravana de investigadores. Às 19 horas de

anteontem, a caravana cercou a casa, e em seguida, varejou­a.

Eduardo Daniel de Paula, pai de Antonio, o chefe­mor mais conhecido

como “Alibá” e sua esposa Margarida Conceição, que estavam no interior

da casa, foram detidos imediatamente. Continuando as buscas, os policiais

encontraram grande quantidade de material próprio do culto fetichista:

cadeira de resplendor e acolchoados, caveiras e ossos, crânios de animais,

um cetro de aço enfeitado de fitas de várias cores, tendo na ponta superior

uma pomba de metal e na inferior um espeto (catapó), uma imagem esculpida

na pedra representando um deus barrigudo, muito semelhate a Buda (Deus

Nanã), várias máscaras de madeira habilmente esculpidas, um quadro da

“Mãe d’Água” ,, vários batuques, cabaças etc.

Todo esse material foi transportado para esta capital, juntamente com os

dois detidos, aqui chegando ontem à tarde.

Os pais­de­santo principais, Antonio Daniel de Paula e “paizinho”

Arsênio Ferreira dos Santos, que conseguiram escapar, estão sofrendo severa

perseguição por parte de investigadores, que se acham no seu encalço.

Eduardo (alibá) o pai de santo que se acha preso, explicou ao repórter,

detalhadamente, afunção de cada um daqueles objetos, segundo ele, com

exceção das cadeiras, datam de muito antes da libertação dos escravos, tendo

vindo talvez da África.” 25

62

As filhas da Boa Morte começaram a devoção à Santa na Barroquinha, em

Salvador, mas também foram perseguidas e acabaram descendo para o

Recôncavo até se instalarem definitivamente em Cachoeira.

“Como é que cumeçô a Irmandade? Será que as ôtra num disse?...

Hum!... É, eu, mas, purque não sei não. Ela foi nascida na Barroquinha, a

Irmandade, né. Da Barroquinha, veio umas três ou quatro africana ficá aqui.

Dessa mermo, dessas mesmo que a princesa Isabé forrô (alforriou), veio ficá

aqui com nós, aqui na Cachoeira. E aqui ficô aí na “Casa Istrela” . Casa

Istrela é ali, tem uma istrela no chão. Nasceu, a Irmandade ali... Ah, dali era

que saía as irmãs. Vendia doce, vendia tudo, prá fazere, cada uma que tinha

seu cargo vendia doce, pegava tabulêro, vendia o ano intêro, criava porco

pelas casa de uma ou ôtra que tinha lugá, criava galinha e, cada uma levava,

____________________ 25 Extraído de BRAGA, Júlio ­ Ancestralidade afro brasileira ­ o culto de babá egum. Ob. Cit. p 15

um prato de confeito, né. No dia da festa, cada uma levava um prato. Uma

bandeja, qualqué coisa, levava” . Dona Ernestina

Depois de passar por várias casas alugadas, a Irmandade foi instalada na sede

pequena (onde está montado uma espécie de museu), até estabelecer­se,

definitivamente, no prédio em que hoje se encontra. A sede antiga fica ao lado

da igreja D’ajuda.

“ ...Mas pricisa muita corage prá sigurá, viu. Muita corage. Muita corage,

mesmo. Uma que tinha dificuldade até de sede. Que as image viviam na casa

63

das irmãs. Era... Passava um tempo na casa de uma, aí ficava. Quando

aquela ôtra falecia, já ia prá casa de ôtra... era assim que vivia Nossa

Sinhora. As duas, né. Não, não, bem guardada. Pur cá da sigurança e tudo,

né... Agora, só aquela piquena que fica lá imbaxo (na sede).” Dadi

64

Tempo de Bonança

Houve época de ter samba na entrega da Santa, comemoração igualzinha a da

assunção ­ o domingo de agosto. Hoje, o ato é mais sóbrio, quase solene.

Algumas atribuem as mudanças à dificuldades financeiras. Outras falam em

falta de estímulo. Não se sabe.

Quando tinha a comemoração de novo, da nova equipe, a que ia organizá a

festa do outro ano, isso sempre acontecia no dia 8 de setembro. Aí passa o

ramo, o cargo. A provedora passa o ramo e o cajado. A procuradora geral

passa o ramo e a Santa... Antigamente, a entrega da Santa era mais três dia

de festa. Era samba de roda, comida prá todo mundo de novo. Hoje, a

situação tá difice” . Dona Glória

Lamentou dona Maria da Glória dos Santos, 72 anos, há 22 na Irmandade.

Sustentou a argumentação, lembrando as décadas de 30 e 40, quando

Cachoeira viveu um período de grande efervescência econômica e cultural.

Diz­se que, naquele período, cerca de 120 jornais eram produzidos em

Cachoeira. A cidade era o ponto de convergência da região, além de fazer

65

ligação do litoral com a zona do minério, Minas Gerais, desde o século

passado.

“Se plantava fumo de folha. No rio passava navios, saveiro. Arthur Pires

tinha 12 saveiro prá transportá fumo prá Salvador. A Leste Brasileira tinha

trem de carga e de passagero. Tinha oficina de trem de ferro. Em 1940,

Cachoeira caiu. Tinha o armazém de fumo de Luiz Barreto. Eu trabalhei no

armazém de 1940 até 1957. Quando a gente saiu eles dissero que tinha falido

e não pagaro os tempo. Tinha também a fábrica de Tororó. Era de saco de

calamaço prá guardá fumo.” Dona Glória

Devido às condições favoráveis da economia cachoeirana, a Irmandade não

tinha muita dificuldade para angariar os recursos da festa. Todo o provimento

resultava das esmolas que hoje estão enfraquecidas, mas ainda se mantêm.

Pedir esmolas, para as irmãs, é garantir a manutenção da tradição implantada

pelas escravas e a participação popular na promoção da festa; sobretudo, é

reforçar o espírito de humildade da comunidade. No sábado que antecede as

celebrações de agosto, trajadas de baianas, as irmãs saem às ruas para a

“Esmola Geral”, que constitui a maior simbolização dessa estratégia.

“Cada irmã sai prá pidi donativo. O povo num qué mais ajudá...” Dona

Estelita

Hoje, dona Glória atribui ao declínio econômico da cidade, a resistência das

pessoas em contribuir com esmolas. Mas não desanima. Encontra caminhos

para relevar os descontentamentos. Com o jeitinho sorrateiro que a caracteriza,

66

envolve as pessoas desapercebidamente, em seu discurso carregado de

brincadeirinhas sutis.

Dona Glória vive momentos de passagem, em que mistura claramente,

realidade com ficção. Chega, às vezes, ao ponto de abstrair­se do contexto real,

buscando subterfúgios nos enredos de novelas para se referir a determinados

fatos. A desenvoltura que marca o seu comportamento, nem de longe faz

lembrar uma pessoa que só freqüentou o primeiro ano primário. Fala de

casamento, dos embaraços da vida, de como foram difíceis os anos que passou

no Rio de Janeiro, trabalhando como doméstica, até completar a idade de voltar

para Cachoeira a fim de entrar na Irmandade. Divaga:

“Veja se não é mais bunito do que a vida. A gente fica olhano a novela, todo

mundo bunito, aquele romance, a menina muito bunita, que incontra o moço

muito bunito. Hummm!... (suspirou)” Glória

Uma das puxadoras do ofício (todas as quartas­feiras as irmãs se reúnem na

sede para rezar o ofício; qualquer pessoa pode entrar e participar), dona Glória

foi quem me recebeu no primeiro dia em que, cheia de receios, temendo não ser

atendida pelas irmãs, cheguei em Cachoeira para começar o trabalho de campo.

Ela é muito autêntica. Não fez segredo do ciúme que sentiu no dia em que

entrei na sede com dona Estelita, que, abraçando­me, disse às outras:

“Eu hoje vim acompanhada de uma istudante. E num é qualqué istudante,

não. É istudante de universidade. Tá pensano que é brincadêra”?... Dona

Estelita

67

Gabou para as irmãs que a aguardavam. Uma delas, dona Glória, não hesitou

em lançar­me um olhar de surpresa e reprovação. Senti­me entre envergonhada

e lisonjeada pela homenagem dupla que me renderam aquelas “Deusas do

Ébano”, assim intituladas por admiradores da Irmandade.

68

Br ilho de juíza

Voltemos à casa de dona Estelita.

O meu amigo ficara de retornar a uma hora para me apanhar na casa da juíza.

Acreditávamos que após aquele intervalo de tempo, a entrevista estaria

concluída. Pensei em levá­la, de carro (do que muito me orgulharia), até a sede

da Irmandade, de onde sairia o transporte para Cruz das Almas. Enquanto

esperava, ela se vestia e continuava falando:

“Todas que estão aí, participano do grupo (o grupo que intrô cumigo), não

tem ninguém... Eu sô a mais velha. A minha avó participava, mas eu num

tinha interesse” . Dona Estelita

“Ali, dona Istelita?... Eu considero ela minha mãe. Inclusive ela foi muito

amiga da minha mãe, em vida. Vendero doce juntas aqui, de tabulêro na

cabeça, pelas ruas aí, acarajé, também. Intão dona Istelita é assim. Eu mermo

chamo ela de mãe. Considero ela minha mãe. E ela também: ‘minha filha’. É,

69

é... É um amô... É, ela é assim. É, ela é muito amorosa cum todo mundo.”

Dadi

Vestia­se.

No seu ritmo paciente e cuidadoso colocara uma bata branca, toda bordada, por

sobre uma outra também branca a que costumam chamar de “camisa”.

Colocara uma saia, outra e mais outras. Um colar de contas, colorido, outro e

mais outros. A sandália era rasteira, de couro, igual ao calçado das escravas,

suas ancestrais. Nesse dia, da entrega da Santa, as irmãs vestem roupa branca,

de baiana, bordada e engomada para um ato ao mesmo tempo solene e festivo.

O clima em que se dá a passagem dos cargos é ritualístico e por isso obedece a

uma seqüência regular e restrita aos membros da Irmandade.

Continuamos conversando.

Pacientemente, atendia minha incontida curiosidade, muitas vezes

descompassada e tola, a emendar perguntas, numa tentativa inconsciente e

quase ingênua, comprovadamente imatura, de querer assimilar em uma ou duas

horas, o que levara séculos para se estruturar. Não havia pauta pré­

estabelecida. E, se houvesse, teria se perdido ante o estado de contemplação

em que me coloquei ou fui colocada.

_ “Dona Estelita, a senhora bota os búzios prá mim?”

“Boto sim. Só num pode sê na segunda, que é dia de Omolu ­ meu orixá ­,

nem sexta­feira, que é dia de Oxalá ­ ninguém bota” . Dona Estelita

70

Alfazema que pur ifica

Dona Estelita tem postura de mestra. Silenciosa em concentração quase

permanente, cândida como uma criança pura e inocente.

Respondia, enquanto caminhava para um quartinho à esquerda, que (reparara

de longe), ficava abaixo do nível da casa, com acesso por uma escada de dois

ou três lances. Descera os degraus sem muita dificuldade ­ o seu vigor, aliás, é

surpreendente ­ para, de volta daquele cômodo, que depois constatei ser o seu

santuário, banhar­me com a alfazema mais cheirosa, doce e leve que senti um

dia tocar minha pele. Perdi o contato com o chão. Fiquei anestesiada,

contagiada por uma emoção ao mesmo tempo vibrante e paralisante. Senti­me

envolvida por uma sensação que não sei descrever direito, mas que certamente,

fora inédita. Eu era só pedido, solicitação. Ela era toda ternura, doação.

Desceríamos a pé.

71

A inesperada demora do meu amigo colocou­nos em situação inusitada, porém

de grande proveito. Descemos, eu e a juíza, a pé, conversando relaxadamente,

com direito a interrogatório das pessoas sobre o grau de parentesco que nos

unia e tudo. Imagina!... Ser tomada por neta de uma mestra tão respeitada.

Mais que isso, ouvir o seu generoso consentimento. Adotou­me como a uma

filha. Dir­se­ia que nos conhecíamos há tempos. Outros elos seriam

responsáveis por aquela identificação, sobre a qual escapa a nossa

intelectualidade, o entendimento. Pusera­me a confabular sobre conceitos

espiritualistas de reencarnação, transferência espiritual de cargas emotivas,

sensitivas e tudo o mais que justificasse aquela magia de ter sido assim

cativada e concebida por aquela autoridade.

A sensação de perplexidade, ainda que serena, dominava o meu espírito e o

clima do bate papo. Num andar compassado, cheio de intercalações, demos

continuidade à entrevista que até hoje tenho a impressão de ato inacabado,

tamanha a grandeza e a contrastante simplicidade da mestra. Contrastante se

não compreendemos a elegância e a completude do que é simples. E simples é

a assimilação da vida em vida e da vida após a morte pelas devotas de Nossa

Senhora da Boa Morte.

“Ressurreição? Temos, hum, hum, hum.Temos. É a grande crença, mermo,

é... E quem vive, olha, quem tem fé em Nossa Sinhora, você não passa fome,

não anda discalça. Nossa Sinhora ajuda, a gente trabalha. Tá agora sem

dinhero, de repente aparece qualqué coisa prá vendê, alguém vem, incomenda

de qualqué coisa, aí faz, vende, já chega o dinhero. Intão a gente nunca passa

assim aquela dificuldade, num passa. Agora, se você tivé assim um dinhero,

72

que ganhô em nome de Nossa Sinhora, você compre uma vela prá ela,

intendeu?... Divida. Não coma só. Purque se você comê só, aí que é o pirigo” .

Dadi

73

Força de monja

Continuamos descendo a ladeira.

Os 90 anos, completados 14 dias após a entrevista, em nada atrapalham a

característica atividade de dona Estelita. Para descer a ladeira, em cujo topo

fica a casa onde mora com uma neta, dei­lhe o braço, como apoio, numa atitude

de respeito e solidariedade. Não é que quem, de fato, sentia medo do

escorregão nas “cabeças de nego” ­ pedras que há séculos calçam a antiga

ladeira da cadeia ­, era eu? Meus trôpegos passos, de evolução paulatina,

intimidados pela excessiva inclinação da ladeira, contrariavam, sobremaneira,

os anos de vida e experiência que nos separam.

Dona Estelita tem “status” de mãe e de monja, guru ou sacerdotisa. À frente da

Irmandade, observando a conduta e orientando as demais irmãs, nossa

personagem, que parece ser uma daquelas criaturas nutridas de potencialidades

supra humanas, dominava o caminhar como em planície contínua. Em sua

resistência, indicava ser detentora de uma força supostamente extra

gravitacional que, surpreendentemente, sustentava o seu corpo. Verdade é que

as condições oferecidas pelas circunstâncias, em nada nos reportariam a uma

74

senhora de quase cem anos de idade a descer uma ladeira que pode ter cerca de

60 graus de inclinação.

“Não tenha medo não, minha filha! Eu vou lhe mostrá daqui, o prédio até

onde a inchente de 14, subiu” . Dona Estelita

Dizia, na tentativa de tranquilizar­me, demonstrando intimidade com a rua e

sua estrutura adversa, enquanto revelava ter sido testemunha dos mais

diferentes fatos que compõem a história da cidade. Dona Estelita faz parte da

Benjamin Constant (antiga Ladeira da cadeia), tal qual os prédios seculares que

insistem em marcar na rua, uma fase áurea da economia local. Naquele tempo,

donos de fábricas de charutos construíam habitações para os funcionários

morarem com suas famílias ou coletivamente. Ainda que grande parcela dessas

casas se encontre hoje em ruínas (apesar de ocupadas), é evidente a distinção

da estrutura arquitetônica. Belíssimo, o prédio que fica ao pé dessa ladeira,

onde hoje está instalada a Câmara de Vereadores. Foi justamente ali que

funcionou a cadeia.

75

O grande r io e a juíza

Caminhávamos.

Dona Estelita apontava lá do alto, de onde se tem uma vista panorâmica do

lado leste da cidade: vê­se o Paraguaçu, a pequena São Félix, com destaque

para a Santa Cruz (uma construção de concreto branca, que define um cruzeiro

no alto da cidade), além dos antigos prédios de Cachoeira, sempre clássicos e

suntuosos. Queria que destacasse do cenário uma igrejinha (a de Nossa

Senhora do Carmo), ao lado de um casarão de muitas janelas, característica de

construções coloniais. Aquele era o ponto que indicara como nível atingido

pelas águas da enchente de 1914, que dizia ser um dos mais fortes gritos do

grande rio, que hoje se conforma em represar­se entre paredões da adutora de

Pedra do Cavalo, a que abastece o Recôncavo baiano e até Salvador. Apesar da

conformação atual, ainda se pesca no Paraguaçu. Ali também as pessoas se

banham e as suas margens constituem cenários de festas e eventos populares

como a Feira do Porto, onde se compra artesanato de barro durante os festejos

juninos. O Paraguaçu também se impõe ainda como atrativo para as duas

cidades há séculos unidas: Cachoeira e São Félix iluminam o rio, que espelha

em seu leito, à noite, tudo que o cerca.

76

De aparência mansa, mas imponente, o rio Paraguaçu continua interferindo nos

rumos da cidade à qual tanto já se doou, emprestando o seu leito, para a

navegação de gente e de cargas. O Paraguaçu nasce na Chapada Diamantina,

nos brejos da “Farinha Molhada”, nas cercanias do Morro do Ouro, na serra do

Cocal, a uma altitude beirando mil metros acima do nível do mar, distante 24

quilômetros do arraial de Sincurá, nas proximidades de Barra da Estiva. Tem

um curso de 520 quilômetros e só é navegável por embarcações de pequeno e

médio portes nos seus alto e médio cursos, sendo que na sua parte baixa (num

percurso aproximado de 60 quilômetros), é navegável a partir das cidades de

Cachoeira e São Félix até a sua foz, por barcos e navios.

As águas do Paraguaçu inundam o subsolo de Cachoeira. Até muitos metros da

margem, dizem encontrar água sem muito cavar. O interior das casas tem

umidade de terreno irrigado. Isso, sem considerar as vezes em que o Paraguaçu

reivindica do homem o espaço que lhe fora roubado com a estruturação do sítio

urbano. As enchentes (as mais rigorosas em número de quatro), invadem as

casas, inutilizam móveis, modificam a vida do lugar. Uma delas, a de 1914,

teria atingido a torre da igreja de Nossa Senhora do Carmo e era o motivo da

nossa parada próxima à uma escada tosca (parece ter sido construída pela

insistência das pisadas), que atalha caminho para a parte baixa de Cachoeira.

Por fim, consegui avistar a torre da igreja e foi o bastante para que dona

Estelita, totalmente segura no trocar de passos ladeira abaixo, quase a me

sustentar em sua tranquilidade e confiança, se deleitasse a lembrar, sem

hesitação, dos tempos de enchente e da falta d’agua encanada.

“Vô li mostrá o chafariz. Fica lá na praça, perto do correio” . Dona Estelita

77

Histór ia viva

Continuamos caminhando.

Caminhávamos lentamente, rumo à sede da Irmandade. O chafariz ficava no

trajeto. A viagem estava marcada para a uma hora, mas ninguém saía sem dona

Estelita. Olhara o relógio que já marcava 1:05, quando chegamos em frente

àquela construção de 1827, com oito cabeças de um animal parecido com

macaco (com feições carregadas de traços humanos) e de cujas bocas,

provavelmente, saíram as águas que, durante longos anos, abasteceram a

cidade de Cachoeira e adjacências, até a implantação do sistema de

abastecimento de água no meado desse século.

“Era daí, minha filha, que moço, menino, mulhé, todo mundo carregava a

água prá tudo. Uns tinha burro, ôtros carregava na cabeça mermo”. Dona

Estelita

Naquele momento, viajei no tempo para imaginar uma era díspare de minha

existência. Visualizei o aparente caos que, se presume, constituíra tantas horas

78

de vida dos moradores de Cachoeira, prostrados ante animais babando água

para saciar a sede, o calor e necessidades higiênicas. O quadro, que se

estruturara tão instantaneamente quanto se desfigurou, levou­me a refletir sobre

a submissão popular a decisões de administradores da coisa pública. Pensei na

dependência que tem o povo de ações governamentais para existir. O seu

acúmulo de conhecimentos, experiências, recursos, fica à mercê de outras

pessoas. Comparei o cenário com situações atuais, da realidade brasileira. De

como as pessoas ainda se submetem ao jugo de poderosos, nem sempre tão

poderosos, mas detentores do poder que dizem emanar do povo, para quem o

poder não retorna. Esse mesmo povo que relega os seus conhecimentos aos

projetos mirabolantes de “marketing” político, deixando­se invadir pelas

estratégias que viabilizam reeleições e destroem o saber popular. Essa reflexão

serviu para reforçar a importância de se preservar as tradições da Boa Morte.

De se respeitar a sua existência e compreender a necessidade de perpetuação

da cultura que emana realmente do povo, de sua vivência, dos seus hábitos e

costumes e que garantem a formação e preservação de identidades culturais,

físicas e intelectuais.

“Ouvia comentário da Irmandade. É que, como eu estou dizendo a você, só

pela fé a Nossa Sinhora e respeito, e prá mantê aquela tradição, intendeu? E

sempre procurá levá os nomes dos nossos antepassados. É justamente prá

num ficá no isquecimento, num caí no isquecimento. Purque os iscravo

quando viero prá cá, troxero muita coisa boa de lá, que você mermo sabe.

Istudante, todo mundo conhece a história toda, comé que chegaro aqui,

tudo.” Dadi

79

Coisa de Nego

“ ... foi uma promessa que fizeram prá... Maria quando fazer a festa de Maria,

até terminar... a promessa, até que vai passano de geração em geração

porque não pode acabar com essa tradição... Então, nós tamos aqui lutano

porque não tamos comemorando a escravidão. Nós tamos comemorano a

graça, a glória de Maria tê dado aforria prás escrava...” Dona Estelita

É dessa maneira que dona Estelita explica o começo de tudo. A devoção à

santa que concedeu a liberdade às escravas devotas. Desde então, descendentes

cachoeiranas daquelas mulheres que sofreram a barbárie do regime escravagista

garantem a continuidade dos rituais e das tradições da Irmandade, com a

convicção e o carinho de quem não quer se descuidar de suas raízes espirituais

e culturais. O inconsciente coletivo cultuado na consciência da vida e da morte

sob a inspiração e proteção de um ser superior, Nossa Senhora, que é da

Glória, que é da Morte.

“É. A morte para a gente, a gente tem um respeito como tem a Nossa Sinhora.

Merma coisa” . Dona Ernestina

80

Vida e morte, relação que em muitos momentos se confunde nos fundamentos

da Imandade e que explica o começo da devoção das escravas. Vista por

Dagma Barbosa, 56 anos, há seis na Boa Morte, dessa forma:

“Conta a história, desde o tempo de hum, hum, hum!... de duzentos anos

atrás, mais duzentos, duzentos e vinte e num sei quanto, que as escravas

sofrero, sofrero muito. Prá comprá a carta de alforria e tudo mais... e foram

muito castigado, tanto as escravas como os escravos, né... Em geral, todos

eles. Intão elas faziam a promessa prá tê uma boa morte. Como, por ixemplo,

minha vó, a mãe de minha mãe, era devota de Nossa Sinhora da Conceição,

aquela de todo dia 8. Intão, a minha vó era devota de Nossa Sinhora da

Conceição da Igreja do Monte, né. E ela sabia o sonho, sabia até o dia de

morrê e tudo, que ela se arrumô. Intão, ela tinha muita fé em Nossa Sinhora...

Tinha, ela sabia, Nossa Senhora avisô. Tanto que ela se arrumô toda. Se

preparô toda, esperando a morte. Intão, em Nossa Sinhora da Boa Morte é

mais ou menos assim: a gente tem fé, ela dá muita vida e saúde. Intão tem

uma morte tranqüila. Mas, tranqüila mesmo... como que tivesse durmindo.

Num tem aquele sofrimento... Ah!... graças a Deus... Num tem aquele

sofrimento de ficá assim em cima da cama penando e num sei o quê... nham,

nham, nham, não.... Dadi

81

O desper tar do desejo

O desejo de entrar na Irmandade é hereditário, desperta na infância ou já está

prédestinado. Há a vizinha, a comadre que conversa com a menina, que passa a

aspirar o ingresso na Irmandade. Existe a mãe que seduz a filha, que fala com

ela e até promete em seu nome. E, às vezes, é a própria filha que ouve

comentários, ensinamentos e vai alimentando um desejo que a acompanha

durante toda a vida até o dia em que “cria juízo”.

Há 22 anos, dona Glória, 72, participa da Irmandade. Seu ingresso, igual ao de

várias outras, deve­se à promessa da mãe que também foi da organização.

“Promessa da minha mãe de quando eu fizesse 50 anos e tivesse juízo...”

Dona Glória

Quando “tiver juízo”. Expressão usada por algumas irmãs para caracterizar a

idade em que a candidata é considerada suficientemente amadurecida para

integrar o grupo. “Com juízo”, a irmã suporta os sacrifícios da Irmandade. Faz

82

abstinência pela purificação do espírito, preparando­se para os rituais de

agosto. Acompanha os ensinamentos com obediência. Sabe ser paciente.

“Nós temos nosso mês todo de agosto, que a gente não tem marido, num fica,

que a gente num qué mistura com eles. Mas, tá... Querem nada, minina. Ah!...

E hoje em dia, a mudernage vai a isso (aos 45 anos), minina. A mudernage

hoje num vai a isso não. Quando chega 30, 40 ano, já morreu. Só tá mais prá

ficá como a gente que veja quando eu peguei. Ah! Tá botano umas

mulherizinha, aí. Filha da gente num qué. Eles num qué obedecê, ali o que a

gente faz, não. Mas num qué. Os minino num querem não. Mas e se a gente

num botá. Sei não. Duzentos e vinte e tantos ano. É... duzentos e vinte e dois” .

Dona Ernestina

Há uma certa flexibilidade em relação à idade determinada para entrar na

Irmandade. Outros conceitos morais são mais considerados, porém, geralmente

o ingresso se dá entre 45 e 50 anos. Coincidentemente, fase em que, muitos

acreditam, a mulher já não se interessa tanto por prazeres sexuais e materiais e

que, por isso, estaria mais disponível para as obrigações da Irmandade.

“Minha mãe sempre convessava que era uma Irmandade de que, de respeito,

só entrava essa Irmandade quem realmente tivesse é... tempo disponível prá

se dedicá às orações, a trabalhá pela Irmandade durante o ano, às vez,

angariando fundos prá fazê a festa no mês de agosto e me insinô a respeitá,

certo?... E a minha prima também dizia a mesma coisa, purque ela também,

criança, tinha o mesmo pensamento. Purque sempre via a vó, a mãe, a tia,

todo mundo, e sempre: ah! quando eu ficá, chegá na idade certa e que num

83

tivé mais aqueles desejos, assim, de homem e tal, num é?... É que no mês de

agosto, hem?... Isso influencia, purque no mês de agosto, pur ixemplo, a gente

num pode se misturá. Purque tem, todo mundo tem marido, tem, tem filhos e

tudo, mas o mês de agosto a gente tem que respeitá aquele mês todo. É como

ficá tudo encrausurado, certo. Como se fosse uma noviça. Fica todo mundo

lá, se dedicando somente aquilo. Sem aqueles pensamentos negativos, sem

nada. Somente dedicado a Nossa Sinhora. E, por isso que eu fico lá.” Dadi

O depoimento de Dagma Barbosa ­ Dadi (é assim que ela gosta de ser

chamada) retrata bem a preocupação que têm as mães da Irmandade de garantir

a perpetuação do grupo, a partir de suas próprias filhas.

“ ...Entrei porque desde criança que minha mãe, que também pertencesse a

Irmandade, uma prima carnal minha e cumadre duas veze também, e sempre

admirei, né. E dizia: ‘quando crescer, que tivé a idade e que me apusentá e

que ficá livre de compromissos, prá ficá me dedicando a minha parte de

disocupada, né, prá Irmandade, eu vou intrá nessa Irmandade’. Purque eu

respeito, acho bunito, certo... É a coisa de nossos antepassados; prá preservá

uma coisa que vem de mãe prá filha, né, é heranças... Intão, por isso que eu

entrei. E gosto de Nossa Sinhora, adoro, venero, respeito e tenho muita fé” .

Dadi

Dona Ernestina, por outro lado, demonstra certa preocupação com o futuro da

Irmandade. Ela teme o enfraquecimento do grupo que já foi constituído por

mais de 200 integrantes e que agora conta, apenas, com 26, sendo 6 “Irmãs de

Bolsa” (iniciantes).

84

É, tem 26, já teve duzentas. Já teve duzentas e cinco mulhé. Neta num qué

intrá, não. Mas eu, eu concordo com as minina que num entrá. As minina não

reage como a gente reage. Num dá. As minina num vai fazê o que a gente faz

ali dentro. O ultimamente tem disciplina, a gente não, elas não vão obedecê.

Nós entra ali, leva três anos, cum, só cum saia, de saia. Elas não vão querere

isso. É, é, tem os dia ixato prá gente ficá só cum aquela rôpa, intão elas num

vão querere isso. Nós num entra lá de vistido, não. Nós só entra de saia.”

Dona Ernestina

Já dona Estelita concorda com a opinião da companheira, mas apresenta uma

ponta de esperança, lembrando que filhas e netas de outras irmãs estão

dispostas a integrar a Irmandade, um dia...

“Minha vó foi irmã naquele tempo passado... Tinha que passá de geração im

geração. Minha filha, minhas neta não se interessa... a minha não vai, a de

ôtra vai... Não tem idade completa, não pode intrá...” Dona Estelita

A situação não é tão desanimadora. Como afirmara dona Estelita, opinião

reiterada por Dadi e Anália. Se a filha ou a neta de uma não se sente atraída

pela Irmandade, as de outras já têm vocação e dão continuidade. O que não

pode é acabar com as tradições.

“Num acaba. Não acaba porque, por ixemplo, tem minha filha, tem a filha de

ôtras, de ôtras e ôtras que gostam e querem continuá. E por isso que eu istou.

Porque eu já sô filha de ôtra, subrinha de ôtra, prima de ôtra e istô aqui.

85

Assim também como ôtras lá... E, o pessoal, não agravando a todos, de

Cachoeira, tem a idéa de dizê que: ‘Ah, vô intrá naquela Irmandade, não, que

ali dá muito fuxico’. Num é fuxico... ‘ Eu, misturá cum aquelas mulheres,

nham, nham, nham’... Mas num é assim. Tem... Tem essa que entrô aqui

grávida, ela sente vontade. E acha bunito também ... É, é, só quando criá

juízo. Rá, rá, rá... (sorriu). É deixá de fazê muita farra, muita coisa e... gostá

de passá a noite na rua, dançando, tomano cerveja, num sei que mais. Que

faça. Que faça. Mais quando chegá naquela época, para. Tem gente que faz,

mas quando chega na época não se contém. É, aí não pode. Tem que tê um

certo, como dizem, resguardo, disciplina. Dadi

“ ... Tem Alessandra, minha filha. Ela vai fazer 30 anos. Ela tá indo prá

Irmandade, mas tem muita... agora ela tá se formano. Agora ela tá fazeno um

cursinho aí, prá melhorá a situação que você sabe como é a vida de hoje, né.

Muito difícil. Então ela estuda... tá se formano em Mangabeira.” Anália

Anália da Paz Santos Leite, 59 anos. Muito ativa, guerreira. Até nos Estados

Unidos, Anália já foi pela Irmandade.

“Eu trabalhei 30 anos. 23 anos vendeno acarajé, toda noite. 23 anos, dia e

noite. Hoje, é minha menina. Tá lá vendeno, dijunto do correio. Aquela ôtra

dijunto de Valmi, tá principiano agora na Irmandade. Ainda não é irmã. O

livro ainda não consta. Ela não sabe nada da Irmandade ainda” . Anália

86

Para os Estados Unidos Anália foi com dona Ernestina, a convite de Bárbara

Lutter King. Passearam, conheceram lugares e pessoas. Falaram sobre a

Irmandade e conseguiram uma doação, em dinheiro, para comprar os imóveis

onde foi construída a sede.

“Foi... E o americano que nos adoô... aquela casa, foi... Ele comprô... De

Barbra King, foi... É... foi, foi... Foi nós duas, eu e Anália. Eu era

procuradora e ela juíza, era. Barbra que teve aqui, em passeio, foi na Boa

Morte, foi na sede piquena, é, é, na’juda, aquela sedezinha piquena, é... E ali,

dali, aquela sedizinha nos protegeu. Ô, minha fia, vá vê um copo de água pá

sua nega, ali, vá... Eu quero do filtro (interrompeu, falando com a vizinha que

torcia a sua roupa enquanto conversávamos). Retomou: Aí nós fomo lá. Não foi

Bárbra, não. Um americano. Foi ele lá mermo da, de lá da igreja de Barbra,

nos adoô. Tem, ela tem. Ela tem uma igreja que cabe duas mil pessoas. A

igreja dela num é de santo... Não, ela é, ela é protestante. Lá tem muita gente.

Ah... a ida foi boa. Nós passeamo muito. Num tinha horário prá, num tinha

horário prá casa, só durmida. Nós só tinha horário prá saí. Nós almoçava

fora, jantava fora. Aí nós, nós lá fomo bem ricibida. Nós fomos bem ricibida

mesmo.” Dona Ernestina

87

Resistência

No dia 15, é o “Dia da Glória” , com missa festiva 10 horas da manhã. O dia

da festa antes era feriado” . Dona Glória

“ ... Agora é um pouco diferente porque as irmã mais velha... porque o

tempo... Não se modificava nada do passado... E agora, já não é mais aquela

tradição rica (ou rígida), como antigamente...Naquele tempo, caísse a festa

dia 15, tinha que fazê. Fosse segunda, quarta, o dia que fosse, a festa era dia

15” . Dona Estelita

Entre ressentida e conformada, Dona Estelita lamenta as alterações que

sofreram as festas da Irmandade, em função da repercussão nacional e

internacional. Houve época em que apenas a comunidade e pessoas de cidades

e povoados vizinhos participavam das festas. Hoje, a Irmandade é registrada

como entidade cultural e, como tal, integra o calendário anual da Bahiatursa. A

88

data da celebração, que antes, impreterivelmente, era 15 de agosto, agora

corresponde à segunda quinzena de agosto, sempre em final de semana,

provavelmente para favorecer a participação dos turistas, que chegam aos

montes na sexta­feira, só retornando no domingo. Este ano, o grupo ecológico

Germen, de Salvador, lotou uma escuna.

“Cada ano a gente informa o dia da festa do outro ano prá Bahiatursa. É prá

vim os turista. Os hotél fica tudo lotado, tudo lotado. Num fica um sem tê

turista. Em casa de família também fica turista” . Dona Estelita

Outra que lamenta as alterações é dona Ernestina. Ela sente saudades dos

tempos em que a festa dependia exclusivamente dos esforços delas, as irmãs,

para acontecer.

“Era, a gente vivia para a festa, como vive, ainda. É purque nós cria... É,

quem tem o cargo, faz tudo prá ter o ano bunito. É, é, a gente gosta muito de

vê a igreja bunita, cheia, cum muita coisa. Aliás, depois da viage da gente

pr’os Estados Unido mudô muita, tem muita gente. Tá vino muita gente.

Agora, eu quiria como era. Da tradição, é. A tradição como era. Não, como

era, era mais elegante. A gente, cada quatro mulé, tudo fazia um balaio

grande, tudo arrumava... A gente arrumava aquela balaio, inté sabão a gente

botava. Sabão, corante e café, açuca, biscoito, tudo a gente comprava e

botava ali naquele, era um balaião grande, comprava farinha, cada um

comprava cinco litro de farinha, quando num era a quilo, era litro, nera?

Comprava cinco litro. Cada uma dava cinco litro das quatro. Fazia uma

quarta de farinha, era uma quarta de fejão, antigamente, era uma quarta.

89

Hoje em dia nós temos saco, que tem quem adoe sacos. Graças a Deus...

Dona Ernestina

O prato de cada dia

“Antes da ceia de sexta­feira, tem a missa das irmãs falecida. Sexta­feira tem

a ceia branca porque é o dia das irmãs falecida ­ todo mundo de branco.

Sábado não tem comida. Segunda e terça­feira a gente se veste de baiana e

serve cuzido. Na terça­feira, tem caruru, mugunzá.” Dona Glória

Se, por um lado, a Irmandade precisou adaptar as datas de suas festas para

continuar existindo, por outro, os rituais continuam intocados. Quem não quer

comer da ceia branca da sexta­feira, da feijoada de domingo (comida preferida

de Ogun, orixá guerreiro), do cozido de segunda e do caruru de terça­feira?

Ainda tem o mugunzá do último dia.

“A ceia branca de sexta­fêra? É isso que eu tô dizeno. Como tem sexta­fêra

santa, num é pêxe? É, é. Que nem num come carne. É só pêxe, vinho, pão,

intendeu?... Sexta­feira, isso... e rôpa branca. É, é. É todo mundo de branco.

90

O pêxe você num pode botá azête... É tudo branco. O insopado vai botá o

ixtrato de tumate. Azête, não. É bacalhau, o pão e o vinho.” Dadi

Feitas com desvelo e capricho, cada iguaria tem uma irmã (é insubstituível),

responsável pelo preparo. Outras pessoas podem até controlar o cozimento.

Mas as mãos que manejam os alimentos, irradiando a energia do espírito,

lançando de si para cada grão, para cada tempero, para cada condimento, a

energia que emana de toda essência espiritual, vem das mãos das irmãs.

“A tesoureira é prá tomá conta, digamos, prá fazê compras, num é... do

cuzido, do num sei quê, é da fejoada, tudo mais, prá ajudá, um caruru... E a

escrivã também, junto cum a tesoureira, é que fazem o mungunzá do último

dia. É, é, é... Se quiser, as outra pode ajudá, mas as duas que ficam à frente

do mungunzá... prá comprá os ingridiente e prepará. A fejoada, é com a

provedora, e... procuradora geral, certo?...” Dadi

_ Desde angariar o dinheiro, comprar os ingredientes, até preparar a comida, a

obrigação é definida por cargo?

”Sim, sim, sim. Tanto que este ano botaram outras pessoas prá fazer a

comida, mas o principal quem faz são as irmãs. É, é, é.... mas o principal elas

foi que teve que fazê, entendeu? Por causa daquele ritual que já vem desde do

tempo das escravas, a gente num pode mudá ” Dadi

Este ano, algumas cozinheiras foram contratadas para acompanhar o cozimento

das comidas. Dona Estelita explica as razões das contratações e lamenta o

91

falecimento de irmãs que, para ela, em número, não estão sendo substituídas a

contento.

“Não, mas a gente contrata, purque a maioria das mulé... num intrô mais

mulé quase. Intrô cinco mulé, morrero nove, intrô... nove não, morrero dez.

Num tinha mais mulé, as mulé tudo acabada. Ah... uns quatro ano prá cá

morrero essas dez mulé, e num tava intrano mulé.” Dona Ernestina

_ Insisti com Dadi sobre o ritual de preparo da comida. Tem que benzer, Dadi?

“Ah! Claro. Tem de sabê botá no fogo, tudo mais... quem tá de fora não

percebe. Num é coisa assim de... Não. Tem coisa que a gente num pode passá

cá prá fora.” Interrompeu, com a chegada do afilhado: “Aqui, oh! Esse mesmo

é filho da Perina, que é a minha prima, que esse é meu afilhado, é primo

carnal. Não. Já é falecida, tem 8 anos que ela faleceu. Faleceu em julho. Ela

também foi da Irmandade” . Dadi

Falei com o menino assim, meio apressada. Queria saber os segredos que

envolvem o preparo das comidas servidas durante os dias de festa. Retomei o

assunto no instante em que o afilhado de Dadi saiu da sala. Quais são os

segredos do preparo da comida, Dadi?

“Porque o preparo é comum. Agora, você, por ixemplo, os estranho pode e

tomá conta da panela, mas depois que as irmãs botarem, prepará, temperá e

botá no fogo” . Dadi

92

Então o segredo está entre o tempero e a maneira de colocar no fogo?

“É... e as mão das irmãs prá botarem lá, entendeu?... Quer dizer, o estranho

depois pode é, é... vê, o fogo, se num tá quemado, se não está... botá uma

água, sei lá, prová o sal, mas as irmãs é que tem que ficá à frente de tudo.

Principalmente... tem gente, muita gente não se quexa, né... portanto, tem

gente que todo ano vem pagá a promessa. Todo ano vem”. Didá

O salão fica completamente lotado de gente de todas as crenças, todas as raças,

todas as classes. Em fila, as pessoas aguardam o prato farto do esforço das

irmãs, que fazem de tudo para a festa sair sempre melhor que a do ano anterior.

Depois do almoço, é cair no samba de roda. Sem perder o compasso do

pandeiro, do triângulo e do clima de respeito que as irmãs exigem que seja

mantido no salão. Há quem afirme que a pessoa que come na Irmandade fica

abençoada durante todo o ano. Compreensível. Preparada assim, com o carinho

que descreve Dadi...

93

A roupa de cada dia

“Você tem a saia branca qu’é o dia de sexta­feira. Você tem a saia istampada,

qu’é o dia da Ismola Geral. Você tem a rôpa preta, qu’é o vistido da

Irmandade” . Anália

“A rôpa preta, a gente só veste sábado de noite, é, é. Sexta­fêra, a gente veste

branco. Agora, dumingo, a gente veste a farda. Sábado, de noite, a gente

veste a farda e dumingo a gente veste a farda. Sábado, cum aquele biôco

(espécie de véu), é, é, cum aquele biôco. Dumingo é assunção. Aí já é a festa.

É a farda, é, é. E a gente tira. Assim que celebrou a missa, a gente tira aquela

e coloca a outra. Coloca a de baiana, a de baiana, é. Cada uma qué tá cum

sua saia boazinha, né... Cada uma qué tá cum sua saia melhó. Não, não. O

dinhêro que a gente arrecada prá festa, intrega na mesa. A gente faz cum a

gente, cum nosso dinhêro. Não tem nada ali comprado cum dinhêro dali,

94

catado, não. Tudo é prá festa, é... A ismola geral é prá festa, é prá cumida,

prá tudo. Dona Ernestina

Assim como a comida tem o dia certo para ser servida (e isso devido à

correspondência entre o alimento e o evento espiritual que caracteriza o dia), as

irmãs também se vestem de acordo com essas relações.

“Sábado num tem cumida. De noite ­ dia de Nossa Sinhora da Boa Morte, é a

sentinela, sem jóia e com biôco (véu). De farda, sem o vermelho. Tem

cirimônia à porta fechada, prá troca das santa. Segunda e terça­feira a gente

se veste de baiana ­ serve cozido e mungunzá” . Dona Glória

Já domingo é dia da assunção, dia de Nossa Senhora da Glória. A santa desfila

em pé, altiva, ressuscitada. Nesse dia, depois da procissão, tem valsa e samba

de roda.

“ ...Purque a procissão de dumingo já é cum Nossa Sinhora da Glória em pé,

é. Sexta e sábado é deitada, é, é. Isso... Na sexta, tem a ceia branca, como

tem a de sexta­feira santa” . É purque Nossa Sinhora da Boa Morte, é como

você, sexta­feira santa tem a morte, é dor e paxão de Nosso Senhô Jesus

Cristo. Quando é aleluia, tem o quê? Assunção. A mesma coisa Nossa

Sinhora, é a morte e depois vem a glória de Nossa Sinhora, que é a

ressurreição de Nossa Sinhora. Que é a mesma coisa” . Dadi

“Nossa Senhora da Boa Morte não morreu. Adormeceu e os anjos levaro ela

pr'o céu, a assunção. Elevada ao céu, coroada no céu.” Dona Glória

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No sábado, dia de sentimento pela morte da santa, a beca é usada com o biôco

e com o pano da costa preto.

“É, ela não morreu, ela ressuscitou. Nós num acha mais... Aquela hora que

bota ela ali, deitada, nós tamos isperando a volta, é... Vela (o corpo da santa,

de sábado para domingo). Não, não vela a noite toda, não. Nós vela inté onze

hora, onze e meia... Depois, aguarda, todo mundo vai, sobe, lá prá cima, prá

o... o quarto da gente. Cada uma vai pr’o seu quarto deitá... O quarto da

gente é tudo arrumadinho lá em cima. A gente fica ali, dá onze e meia, meia

noite, depois a gente sai... É, rezando. Todo mundo rezando cum seu terço.

Depois, a gente vai durmi, vai durmi prá de manhã, a gente ir prá rua, né.

Comprá. Aí, a gente vamos comprá a coisa que pricisa, verdura, folha, essas

coisa, tudo que pricisa.” Dona Ernestina

Domingo é dia de ressurreição, dia de Nossa Senhora da Glória. Glória que

significa esplendor, brilho, alegria. Glória, que é mais um dos títulos atribuídos

à Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo, mãe de todas as filhas da Boa Morte,

outro título da virgem. Domingo é dia de assunção, dia de júbilo, dia de festa.

“Nossa Sinhora da Conceição é... como é... é, Nossa Sinhora é uma só, não

é? Intão só muda mesmo, é, como diz, o nome da família, o sobrenome, o

título, mas é uma só. Intão Nossa Sinhora da Boa Morte, apesar de dizê,

Nossa Sinhora da Boa Morte, mas ela num dá a morte, ela dá a vida.

Inclusive dá a vida, que tem a ressurreição. Nossa Sinhora, num é isso? Que

aí já é Nossa Sinhora da Glória, de dumingo.” Dadi

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Nesse dia, da Glória, irmãos de outras confrarias visitam a Irmandade e

participam com o povo, promovendo também a festa. Este ano, o afoxé “Filhos

de Gandhi” apareceu por lá e fez todo mundo dançar, ao som dos seus

atabaques e agogôs. Sob um céu intensamente azul, numa manhã de sol quente,

na rua da Irmandade, aglomerou­se uma multidão, misturando a comunidade e

os turistas, numa profusão de muito calor humano. Após acompanhar a

procissão de Nossa Senhora da Glória, as pessoas comem, cantam e dançam.

Primeiro, do lado de fora da sede. Depois, vem a valsa das irmãs que, levadas

pelos acordes da filarmônica, trocam os pares entre si. E, finalmente, um dos

momentos mais esperados: o autêntico samba de roda do Recôncavo, batido

por tocadores da cidade e coordenado pelas irmãs, que não admitem falta de

respeito no salão. Quem perde a compostura é tirado sutilmente da roda pelas

irmãs, que não abandonam o ritmo no arrastar dos incansáveis pés de rainhas

negras, também rainhas do samba, da alegria e da confraternização.

Dia da assunção. Dia de usar a beca, com todos os seus detalhes, inclusive o

pano da costa vermelho, jóias (pulseiras, colares, brincos), de ouro, bem

vistosas.

“Dumingo, fêjoada. Tem a missa festiva, aí é a farda (saia plinçada, preta,

com a beca vermelha) e jóias. Tem a procissão de Nossa Senhora da Glória, a

valsa das irmãs, toca os orixás. As jóias, talvez algumas que tão no museu...

aquele, acho que... o de “ Arte da Bahia” , possa sê que seja das mucama que

começaram a Irmandade. Domingo, a gente também veste a roupa de

baiana.” Dona Glória

97

_ No domingo, vocês vestem a farda. A farda é a roupa de gala?

“Ah! A beca, é, hum... É sábado e dumingo. Purque ali é rôpa de gala, é tipo

uma rôpa de gala. A num sê também quando tem um funeral de uma irmã, a

gente usa aquela... com o biôco (espécie de véu). É com aquela rôpa que as

irmãs são interradas.” Dadi

_ Na morte das irmãs é assim também que vocês agem? Tem algum ritual?

“É, é, é. Morte, a morte, por ixemplo, quando falece uma irmã, a gente veste

aquela rôpa,, que é a rôpa que a gente bota no sábado. É, é... Cum biôco. Vai,

funeral e tudo mais. Mas ali, a gente... morreu, a gente num vai fazê festa,

nem saí dano risada, nem nada. Mas se conforma, se conforma, com

tranqüilidade. É, é, é... Com certeza, todo mundo. Não, não, isso aí agora é lá

na casa de cada uma que freqüenta o candomblé. Lá, é, é. Mas cá é somente

reza, orações, vela. A gente reza muito, reza muito. É como eu já fiz a

comparação, com, como eu contei a história da minha vó, que, acreditando

que Nossa Sinhora daria uma boa morte, sem sofrimento, purque as escrava

foram, sofrero muito, muito maltratada, né. Intão elas começaro a... como é...

a venerá, num é, Nossa Sinhora da Boa Morte. Qué dizê que muitos morreram

no tronco, apanhando, elas aí fizero aquela promessa da Boa Morte. Daí que

vem, fundaro essa Irmandade da Boa Morte que está aí até hoje. Num é isso...

Intão elas morriam ali, mas morriam tranquilo, apanhava, danado, ninguém

gritava, ninguém se lastimava e os portuguese, aqueles dono de ingenho num

intindia nada... e, começava a chingá eles, pensano que eles não chorava e

nem dava um gemido, ficavam calado, mas quê cum a fé que tinham na santa,

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morriam tranquilo, ali. E os portuguese aqui, se lascavam, se, se danavam,

inraivado... Que diacho que esses negro apanham e não dão um pio? Isso... A

fé que tinham, né. E daí que a Irmandade tá aí até hoje” . Dadi

A glória, a ressurreição, a esperança da vida depois da morte. A fé na mãe

bondosa que vai, mas volta para garantir a vida e a boa morte de suas devotas.

Quem tem fé em Nossa Senhora, quem acredita e pede com firmeza, não passa

fome, não sofre privações, progride. Quem tem fé em Nossa Senhora, pede

com humildade, a Santa atende com carinho. Quem tem fé em Nossa Senhora,

tem boa vida, tem boa morte.

“Não, mas é mesmo. A gente, a morte para a gente, ali, com Nossa Sinhora, é

uma, é o sentido que a gente tem é assim. Purque, nós fomos, a princesa Isabé

é que nos deu essa image, né. Foi ela que nos deu essa image. Intão essa

image, nós conserva ela como uma mãe, que a gente tem, que foi, mas a

gente temo, a nossa mãe num volta, mas ela nós acha que volta, na

ressurreição, né?... Que tem a ressurreição dela. Não... Ave Maria. Nossa

Senhora quando chegô em meu canto, eu, eu tinha dois vão. Era esse vão

daqui, esse vãozinho dali. Tá inté dismanchando agora. Esse vão daí, tá o

home dismanchando. Já tinha esses dois vão. Eu disse: ‘Oh, mãe, a Sinhora

hoje entra em minha casa, só tenho dois vão, cum meus nove filho. E eu quero

que a Sinhora inda me dê um canto prá quando a Sinhora chegá eu lhe

agasalhá melhó’. Oxêm, quando ela voltô na minha casa, eu já tinha sete.

Ham, ham... Já tinha sete, sete vão. Aliás, eu não tenho sete, tenho quinze

vão, se eu quisesse botá aqui. Graças a ela. Purque, num tem uma filha dela

disamparada. Uma somente, irmã, que num tem agasalho. Todas tem um

agasalho. Ninguém mora em alugué. Ninhuma. A volta dela na nossa casa, é

99

em nossa casa. Ninguém diz assim: ‘ Num pode ficá o ano não, purque vocês,

purque, num pode, não que eu quero minha casa’ Nem se deu ainda isso com

nós. Todas tem seu canto. Todo mundo tem seu canto. Toda, todas nós tem um

canto isperando ela.” Dona Ernestina

100

Estrela Estelita

“Uma promessa... Foi cultuano. Coisa de nego” . Anália

Respondia Anália, ao ser questionada sobre a origem das tradições da

Irmandade, quando, de súbito, interrompeu sua fala em uma atitude

policialesca. Perguntava:

“Você convessou com dona Estelita. Ela não lhe repassou nada, não? Ela

deve ter lhe repassado a verdade. Porque dona Estelita é uma pessoa muito

responsável, ela é a juíza perpétua da Irmandade e ela fala as coisa que a

gente não deve lhe passá por cima dela. É uma pessoa que a gente tem que

obedecê. Se ela não convessasse, aí eu convessava. Mas se ela convessou, eu

tenho que manerá meu papo por aqui. Respeito pela erarquia. Por que você

sabe que a erarquia na Irmandade é pudê. E ela é uma pessoa da erarquia do

pudê.” Anália

Hierarquia e poder estão concentrados na pessoa de dona Estelita. Longe de ser

esse poder comum, o político, que envaidece o homem e o cega, revestindo­o

da máscara da hipocrisia, o poder de dona Estelita é outro, é sagrado e

101

consagra a irmã de bolsa ­ aquela que carece de orientação para ser irmã de

verdade. O poder da juíza perpétua é revestido de carinho e encantamento,

sabedoria e experiência. Não é punitivo, nem imperativo. É democrático,

orientador, instrutivo e está para todas, mas classifica. Só aprende quem

merece.

A irmã de bolsa ­ iniciante, deve satisfações à Irmandade e a dona Estelita.

Mas, não só a irmã de bolsa. Disciplina e obediência talvez sejam os conceitos

fundamentais para a ascensão hierárquica na Irmandade. Toda irmã precisa ser

disciplinada e obediente para crescer no conceito das outras e do grupo.

“Tem a juíza perpétua, daí a comissão de frente lá, que todo ano são quatro.

Muito respeitado. Tanto você ir na procissão, num sei se você já notô, quatro,

vem o cordão, num é?... Aí vem quatro na frente, a, a, atrás, vem mais quatro.

A da frente, por ixemplo, o dumingo, na procissão de dumingo, as quatro que

sai na frente, no meio, já é da comissão de paro ano, as que vem atrás, as que

passaro o cargo prá aquelas que tão na frente, a arrumação é assim. Aí, eu,

por ixemplo, eu sô escrivã, sô escrivã, não posso passá na frente da

tesoureira, nem da procuradora geral, nem, nem da provedora,

principalmente. E muito menos, da dona Estelita. Ela vem sempre no meio, na

frente de Nossa Senhora, intendeu?... Eu não posso nunca passá na frente

delas, entendeu?... Eu assim, paro ano eu sô a tisorera. Qué dizê, a escrivã

não pode nunca passá na minha frente, entendeu?... Se passá... Ah, é... Dona

Estelita, pô ixemplo: ‘psiu, oh, seu lugá é ali, oh. Ô fulana, psiu, psiu, aí não,

oh...’ Tem que arrumá, com carinho, é... Purquê isso aí tem arrumação, é...

até na intrada e na saída da igreja, ou se a gente vai visitá uma autoridade,

102

eu não posso passá na frente de dona Estelita e outras, não... primero dona

Estelita. Até prá falá, prá dá uma saudação, primero dona Estelita,

entendeu... E tem que sê respeitada. Senão perde a coisa, as coisa e o respeito

também, né. Agora, na hora, na hora de trabalhá prá Nossa Sinhora é todo

mundo igual, todo mundo junto” Dadi

_ E aquelas meninas novinhas, que eu vi acompanhando as procissões, vestidas

de branco?

“Como eu falei no princípio da intrevista, tem muita gente que veio pagá

promessa. E muita gente se veste de branco e sai na frente. Purque... é como

a avagem do Bonfim, intendeu? Assim... Intão, vem muita gente, se veste de

branco purque, o cordão de branco (o grupo das iniciantes), que sempre puxa

lá na frente, é, é. Aí todas pessoas que estiverem de rôpa branca ou de saias

branca, aí ficam na frente. Aí quem tá de fora num fica sabendo, né? Se faz

parte ou não” . Dadi

Uma vez na ata, a irmã está vinculada à Irmandade para sempre. Mas, tanto ela

pode ser um dia uma figura de grande representatividade, como pode passar

toda a vida como um membro de pouca expressão. O amadurecimento para as

coisas da confraria não depende exatamente da idade, mas da dedicação, do

comportamento, do compromisso com os fundamentos e tradições.

_ Anália, eu soube que só se pode entrar na Irmandade a partir dos 45 anos.

Como é que você vestiu a farda com 38?

103

“Ah!... minha filha!... Vá lá, que você vê no quadro onde eu estou. Depende,

depende. Se a pessoa se dedicar a uma coisa... Porque às vezes, se você se

dedica a uma coisa muito nova, como você teja assim na igreja, como você sê

do candomblé, como você sê de qualquer entidade, qualquer irmandade...

Depende de sua inteligência, do seu comportamento, do seu carinho, do seu

amor, da sua dedicação. Isso aí é que você vai vê quem é você e aí quem é

você lá dentro. Entrei na Irmandade com 28 anos. Com 28 anos comecei a

acompanhar a Irmandade. Com 30 anos eu já era irmã (iniciante). Daí, aos

38 anos vesti logo a beca, porque eu sempre fui uma irmã muito responsável,

respeitadora, cumpri sempre com os meus deveres, e eu, graças a Deus,

contribui com a minha parte. Minha filha, eu já fui provedora duas vezes,

procuradora três. Hoje, eu repassei a Filhinha, Filhinha repassou a Mariá” .

Anália

104

Os afilhados

Para ser da Irmandade é preciso ser negra. É preciso ser descendente das

negras escravas africanas. É preciso trazer na cor da pele, a marca do saber do

povo africano; dos conhecimentos trazidos da mãe África, que herdou do Egito

(com a invasão dos gregos e romanos), os segredos de uma cultura milenar.

Para ser da Irmandade é preciso respeito, fé, disciplina, benevolência. É preciso

humildade. Sem vaidades. O corpo é morada do espírito. A filha de Nossa

Senhora da Boa Morte é despojada do desejo imoderado de atrair a admiração.

Seu desejo é atrair o carinho da Santa, a força e o axé para suportar a vida e a

morte.

Não, agora mesmo não qué clara, não. Qué sê cor iscura. Qué daqui prá

baxo. De mim, prá baxo. Prá cima, mais clara... É... branca, não. Veio uma

branquela, mas a gente tirô, não deu, não. Não, ela intrô dizendo que, que ela

já era de lá (de uma entidade semelhante à Irmandade) e não sei quê... Mas

depois ela pegô intrá, ir cum suas unhas bem pintada, seus beiço bem

pintado, chegava aí: ‘panha aquilo ali, prá mim’. Oh, oh...panha o quê?... Ela

nunca levô um tustão prá gente, prá dizê: ‘toma aqui, prá ajudá a festa’. Ela

mora em Salvadô. Ela chama Idete. Ela chama Idete. Que mora cum Misael.

105

Ela era, era, é... Mas num tem. Acabô, acabô. Só ficô essa no mundo. Só ficô

essa no mundo, Boa Morte. Todo mundo num quis, assujeitá o que a gente

sujeitô. Todo mundo num qué visti aquela saia. Ninguém qué visti aquela saia.

Ninguém qué tê a sujeição que nós tem. A fé. É preciso a fé. Você tem a fé, diz

assim: Oh, Nossa Sinhora, você me, me ajude, nisso, prá eu ajudá tuas irmãs,

que eu quero, um dia, sê sua irmã, também. Nem que cê seja uma irmã de

ajuda. Você sê uma irmã da fé. Assim... Aquela fé que você tem de ajudá

Nossa Sinhora, a gente, prá dá prá... Tipo Celina...” Dona Ernestina

A Irmandade tem também os seus afilhados. Não são pessoas incorporadas por

direito, mas por opção e uma espécie de devoção. Celina é uma delas.

“Nós trabalha, ajudano o irmão. Se uma pessoa pricisa de um remédio, a

gente não tá cum o dinhêro na mão, a dotôra Celina é uma pessoa muito boa.

Você vê, é uma pessoa muito responsável. Ela parece... Eu fico olhano

assim... olhano certas hora, porque...dia de sexta­fêra, você pricisa vê... Ela

luta dimais pela Irmandade!... Ói! Ela além de lutá, ela briga, viu (rá, rá, rá,

rá, rá...). Ah!... Ela não dêxa que nada de ruim aconteça. Purque, se você vem

com maneiras boa, ela também não te imparta. Ela dêxa você fazê. Purque

Regina Casé teve aí, a Globo, fez um trabalho muito grande com a Irmandade

e ninguém ficô em cima, evitô. Eles prometero, não sei se já mandaro. Todas

televisões que vem, vem aí, ó... faz seu trabalho. Ninguém fica em cima

exigindo nada não. Eles quis dá... Purque você sabe que a gente sai pidino. A

gente praticamente não vive com a mão parada. E você sabe disso... Ela (a

Irmandade) não tem fundos. Intão ela tem essa luta que ela faz, intendeu?...

Tudo isso. Intão ela (Celina), é uma pessoa que ajuda muito. Celina é uma

106

pessoa assim: se uma irmã pricisa de uma coisa, bate na casa dela. Se uma

irmã pricisa de um remédio, ela vai e compra...” Anália

Celina é uma dessas pessoas que se incorporaram à Irmandade por afeição e

acabaram por se apaixonar. Ajuda na organização das festas, protege as irmãs

do assédio de turistas, tem tudo para ser uma delas. Quem sabe nos próximos

anos...

“É... Mas Celina tem, ói... Celina é advogada nossa. É, mas ela é advogada

nossa. Agora, ela ajuda. Ela ajuda, ajuda... Ela ajuda muito. E agora, nessas

casa, ela ajudô muito. Ela trabalhô de chegá ficá assim: aquele garranchinho

(magrinha). Irmã ela já é... É, já... Ela já tem idade. Ali já tem 40. É... já. Ela

tá vistino saia junto cum a gente. Não, nas hora ixata ela veste. Ela né dôdia,

não. Rá, rá, rá... Na hora ixata, veste, sim. Hum... É. Dali (tonalidade de cor

da pele de Celina), prá baxo. Não, tem, é... Cê num é branca... Cê é negra,

negra. Mas daí a pior. Daí, a mais fechada. Daí, a mais fechada. A cor.”

Dona Ernestina

Advogada, os únicos processos que Celina defende dizem respeito à

Irmandade. Atualmente está com uma ação contra um funcionário da

Bahiatursa, acusado de desviar uma verba que deveria patrocinar a festa da

Irmandade, mas acabou nas mãos de outras pessoas que organizam atividades

culturais paralelas, aproveitando o grande fluxo de turistas atraídos pela

Irmandade.

107

“E agora vem a pessoa por trás, recebe seis mil e quinhentos reais e não

repassa prá Irmandade... Tem irmã que sai dali e que não tem 1 real prá

pegar o ônibus” . Foi Augusto Régis. Ele recebeu. Agora, saiu no jornal. Diz

que veio prá festividade da Irmandade da Boa Morte. Se veio prás festividade

da Irmandade da Boa Morte, a Irmandade não recebeu... Eu mermo, assino o

papel e não fui comunicada prá ir assiná nada. E agora, que eles estão... O

que foi que ele fez com o dinheiro, eu não sei. Trabalha na Bahiatursa, na

Fundação, de Paulo Gaudenzzi, da Fundação. A gente num tem nada a ver

com a festa paralela, porque aquela festa lá, de rua, não é da Irmandade” .

Não, esse dinhêro que ele trouxe dizeno que ia investi lá, intão ele não

investiu na Irmandade. Porque se ele trouxe prá investi na Irmandade, ele

entregaria as irmãs, porque as irmãs sabiam o que fazer. Tem igreja prá

pagar, tem filarmônica prá pagar, tem almoço prá dá, tem tudo que você

sabe. Tem altá prá ormentá, tem flores prá comprá, foguete prá comprá. Intão

a gente... Como tem samba de roda prá pagar (trezentos reais cada noite que

toca). Tudo é através de dinheiro. Se a Irmandade não lutá, não correr atrás,

não faz a festa” . Anália

Os custos da festa não são poucos. Há dias em que são servidos cerca de dois

mil pratos de comida para pessoas da comunidade e turistas, que se confundem

no amontoado das filas e dos sambas de roda. Domingo é o dia em que essa

aglomeração mais se evidencia.

“Toda vida se pagou. Toda vida se pagou igreja, toda vida se pagou prá

ormentá, toda vida se pagou samba de roda, toda vida se pagou quem viesse

arrumá. Tudo é pago, minha filha!... Até o tapete do chão que botava na

108

igreja, é pago. É por isso que tem a ismola e se faz tudo durante o ano. Chega

uma pessoa aqui, a gente pede uma doação, compra um cartaz. E vai

levano...” Anália

A Irmandade já utiliza outras estratégias, além da esmola, para subsidiar a

festa. O fotógrafo profissional, Adenor Gondim, outro afilhado que a

Irmandade adotou há pouco mais de seis anos, sabe disso. Durante a festa em

agosto, às voltas com máquinas fotográficas, filmes, camisas, cartazes, quem

não o conhece logo percebe que alguma ligação ele tem com a Irmandade,

tamanha a paixão com que busca os melhores ângulos para registrar cada

detalhe. Tamanho o envolvimento na organização dos acontecimentos, no

atendimento às irmãs. Adenor é uma espécie de relações públicas. Em

Salvador, intercede junto a pessoas e organizações, viabilizando benefícios

para a Irmandade, agendando compromissos, estabelecendo contatos.

“Quando tem assim uma coisa prá Irmandade, a gente se preocupa muito...

Como eu tava te falano: a gente lutou muito, a gente andou muito, e Agenor,

que ajudou a arrumá aquele show lá por Salvador, e a gente lutano muito prá

fazê a festa, porque a gente não tem dinheiro. A gente consiguiu aquele show

lá no teatro Castro Alves, foi de baixo de chuva, de baixo de muita luta e as

irmã também trabalha; as irmã luta prá ter uma roupa, prá ter um sapato. A

gente luta, minha filha! E a gente não tem emprego, a gente não tem da onde

tirá. É cem reais que recebe e divide prá isso tudo. Da aposentadoria, a outra

é incostada...” Anália

A festa do Teatro Castro Alves a que se refere Anália foi um show musical que

aconteceu na Concha Acústica, em julho de 1996, com a participação de

109

artistas, a exemplo de Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Luiz Melodia e

outros, com a renda totalmente revertida para a Irmandade da Boa Morte de

Cachoeira. Essa é uma das estratégias que caracterizam a reação da entidade às

regras impostas pelo novo contexto econômico, social e político.

“Porque não tive ajuda esse ano. E a gente aqui não conhece muito Salvador.

Prá lutá dentro de Salvador, tem que tê uma pessoa do lado, e, graças a Deus

que apareceu Adenor Gondim. E ele ajuda, né” . Anália

110

Ecos da senzala

Aportam, aos chamados da casa grande, os navios negreiros.

Os escravos tinham em comum, apenas um continente e a cor da

pele. A África abriga centenas de nações, com línguas,

costumes, culturas diferentes entre si: Nagô, Angola, Congo, Ijexá...

Além de um continente e a cor da pele em comum, os negros também

compartilhavam o sofrimento. Em busca da solução de suas dores terrenas,

eles se unem em torno dos orixás.E assim o Cancomblé se desenvolve no

Brasil da antropofagia de Oswald de Andrade.

O Candomblé, como seus primeiros fiéis da senzala,

é dividido em diferentes nações, que cultuam cada uma

a seu modo seus deuses, os orixás. Mas tudo é o mesmo axé, a mesma força.

Os orixás moram no Orun, o além. Mas às vezes visitam os

filhos aqui no Ayê. Não existe oposição entre Céu e Terra, Bem

e Mal. Tanto é que os orixás têm seus defeitos, tal como os homens:

cada orixá com características próprias. Todos são filhos de Olorun,

o maior dos orixás .

Exu, das cores vermelho e preto, é o mensageiro dos orixás, o mais

próximo dos homens. Também comparado com o demônio, no

caso da Umbanda. Ogun, das cores vermelho e branco, é o

orixá guerreiro, senhor do ferro e do martelo.

Iansã, do azul e branco, senhora dos ventos, com resto

111

de indomável beleza. Omolu é o orixá da doença;

Iemanjá, a rainha do mar...

A Umbanda ­ diferente do Candomblé, que hoje busca

retomar suas origens na África ­ foi resultado da

absorção de elementos do Espiritismo e Catolicismo. A

Umbanda é o culto dos antepassados da nação afro:

o caboclo, considerado ancestral da terra (de sangur índio); o

preto velho; o exu (da tradição afro).

Talvez para fugir das perseguições da religião católica oficial, ainda

em tempos de Império, os orixás foram comparados aos

santos católlicos: Ogun a São Jorge, Iemanjá a Nossa

Senhora da Conceição...

É assim que, nas cidades praianas o 8 de dezembro ­

dia de Nossa Senhora da Conceição ­ é dia de procissões, missa,

roda na beira do mar e oferendas a Iemanjá.

Com os santos e os orixás, Europa e África se fundem.

A busca desesperada da ancestralidade e o desejo de

um melhor futuro se abraçam na América.

112

A proteção dos or ixás

“Na escrivão, todas aquelas escravas era do candomblé” . Dona Estelita

_ Todas vocês têm ligação com o candomblé?

“Todas. Quando não tem cum o candomblé, tem u’a lá mermo que tem

sessão, sessão ispírita, é, é, é. Mesa branca, né, que chama. Mas sempre tem

ligação. Hum, hum, hum... Todo mundo, é a maioria é, né?... Todo mundo

pertence a um terrêro de candomblé E todas elas...” Dadi

_ Dizem que essa ligação com o candomblé ajuda a lidar com a morte?

“ Ajuda também, né. Ajuda. É. Mas lá é lá. E cada qual tem seu terrêro, faz

suas festas lá em suas casas, nas épocas certa, mas quando fala em Nossa

Sinhora, só é lá... E lá num tem nada de candomblé. Hum, hum, hum!...” Dadi

_ Vocês se preparam no candomblé para as festas da Boa Morte?

“Com certeza. Ah!... É claro que se prepara, né? Que ninguém é besta. Cada

um toma seus banho, se preparo, bate a cabeça no chão, acende as vela pr’o

orixá... pede força e tudo, prá ajudá, também... Aí sai de casa, aí também,

saiu aqui, minha irmã... isquece o lado de cá. Purque lá é completamente

113

diferente. Apesar daquele jeito de visti, aquela saia de roda e tal, purque elas

também se vistiam assim... é conta, colá e tudo mais, mas lá, é completamente

diferente. Hum, hum, hum....” Dadi

_ Você tem santo Dadi?

“Tenho. Eu não tenho, eu sô ekéde (sacerdotisas que não “rodam”, não

recebem orixá). Ekéde é a que ajuda a mãe de santo no terrêro, que toma, a

segunda pessoa, que toma conta de tudo. A rôpa do orixá quem, quem toma

conta. Não, a essa altura, eu já sô dagã, da casa da minha mãe que já é

falecida, quem toma conta é meu irmão, intão, eu já num sô mais ekéde, já sô

dagã, intendeu? É, é. Aí vai, aí vai subindo, subindo, até... Não, não, lá (na

Irmandade), é completamente diferente, num tem nada a vê. É completamente

ôtro assunto.” Dadi

É preciso uma força maior, um axé, para lidar com o fio delgado que limita a

existência humana entre a vida e a morte. O fio que garante a presença da

morte onde há vida. Vida é Orixá. Orixá é vida. Morte é Egum. Egum é morte.

“Egum quer dizer morto, passado. Um retorno à natureza, enquanto orixá é a

própria natureza, é a vida. Geralmente o Candomblé cultua a vida, o

presente. Os mortos devem ir para o orun e não se deve chamá­los porque

impede­se que cumpram seu caminho”. 26

____________________

26 Extraído de BANCHER, Flávia ­ “Eu trago um balaio de axé” ­ in Guia das Almas, p.76 / coordenado e

organizado por Cremilda Medina; bolsista do CNPq associado ao projeto Patrícia Patrício. São Paulo:

CJE/ECA/USP, 1993.

114

E quem não tem a força dos Orixás, não agüenta lidar com Egum...

“Eu sô, sim... Eu sô filha de Oxalá. Todo mundo tem seu orixá. Todo mundo

ali tem orixá, todo mundo. Ali, num tem uma que num tem. A que num tivé,

num fica. Todo mundo ali, tem. Eu sô de oxalá cum Ôba; Glória é de Iansã;

Mariá é de Iemanjá cum Ogum; dona Ita é de Obaluaê cum Nanã; como é?...

essa, essa, Inha é de Ogum cum Oxum Maré; essa... Lindaura é de Oxum

Maré; essa... como é? A ôtra... Não, num é purque a gente entra ali e faz,

não. Todo mundo quando vai lá, já tem, já... E ali pede isso... Os dias ixato,

tem de sê isso. O ritual tem que sê isso. Senão num temo força prá guentá um

ano cum tudo que vem ali, né. A gente tem de tê... Todo mundo tem de ter seu

orixá. Eu sô de Ôba cum Oxalá. Não, não... é, não... nada ali dentro. Ali

dentro, nós só trabalha cum morto, o orixá, não. É claro. Orixá é vivo, sim.

Agora, o que não é, o egum que já é o morto, né. Quase todas ali é de

candomblé. Ah!... Todo mundo tem de lidá com eles, mas todo mundo ali tem

sua força, também, né. Ali, todo mundo tem... Essa... Todo mundo. É, de

Obaluaê, é de Ogun, é de Nanã.... Prá trabalhá prá Iaiá... Dona Ernestina

115

Compromisso com os irmãos

As irmãs tem obrigação de ajudá. Como é que você vai vivê só prá você? Não

pode!... A gente tem também que ajudá, ajudá as pessoas que precisa. É dano

que se recebe, não é meu amor? É dano que se recebe. Isso aqui é o papel que

a juíza me deu ó (mostrou a procuração oficial), prá fazê o ixame de Geralda.

Como é que você vai vivê no mundo sem servi? Não é isso o catolicismo... O

catolicismo é você dano que você recebe. Eu tinha uma minina que eu também

sou irmã. Não tenho riqueza, não tenho grandeza, mas ajudo aquela pessoa

que eu vejo que merece. Tem uma sinhora aqui que é maluca, mas pariu, eu

tomei a filha, eu crio. É Simone. Pur sinal a mãe dela tá até com um ixame

prá fazer e a juíza me deu... ‘panha ali a carta de sua mãe prá ela vê’

(solicitou a Simone), prá fazê porque ela tem problema de cabeça” . Anália

Nada imposto, nada pré­determinado, mas para receber as graças de Nossa

Senhora, é preciso ser solidário, é preciso colaborar com os irmãos. Está

implícito nos credos da Irmandade o sentimento de colaboração. Seja espiritual,

seja material, o importante é não desfrutar sozinha das bênçãos de Nossa

Senhora. Bênçãos que, por fé e por direito, já chegam diariamente para as

irmãs. O que não pode é ser egoísta. Como afirma Dona Ernestina: “A gente

116

tem prazer de pidi prá dá” . Ou ainda, como conclui Dadi: “Não pode é comé

sozinha. Se comê sozinha, aí é que tá o pirigo” .

“A gente da Irmandade aprende muita coisa. Tudo ligado ao ispírito. A gente

cuida do ispírito da gente e do sôtro também. Não, pur ixemplo, eu, você

sente, digamos, qualqué problema assim, diz assim: ô Dadi, eu tô aqui, cum

dô, sentino uma dô de cabeça, tô aqui mal, ficano tonta... Eu, se num pudé lhe

dá, dizê: ó, tome um banho, num sei quê... Vô, eu vô. Purque num toma tal

remédio, fica aqui, toma um num sei quê, discansa um pouquinho, tome um

banho, relaxe e tal... Aí convessa... lhe bota você à vontade, uma convessa

sadia... aí você vai relaxá, se você, às vez, até dorme, quando acorda, já tá

boa. E isso vai passando, é pur isso que quando chega assim uma pessoa

afllita, assim, cheia de problemas, aí, ah!... senta aqui, vamo convessá... aí

convessa e vai, e convessa aqui, convessa ali e calma, e tá cum fome, a gente

dá cumida; tá discalça, dá sapato ou num sei quê lá... já sai ali, chega

chorando e sai dando risada. Cansa de acontecê, cansa de acontecê” . Dadi

117

Aiyè Orum

Aiyè ­ vida e morte. Orum ­ céu e terra..

Para uns, o sentido da vida está nos prazeres materiais. Para outros, a vida

consiste no acúmulo de conhecimentos e descobertas científicas. Para outras, as

filhas da Boa Morte, viver é ter fé. A fé que dá vida, saúde e morte. A fé que

interliga céu e terra e sintetiza tudo numa única existência.

“Porque Nossa Sinhora, apesar de sê Nossa Sinhora Boa Morte, mas ela é

viva, né... É um ispírito... E quanto mais a gente tem fé em Nossa Sinhora da

Boa Morte, mais vida a gente tem. Mais vida nos dá e saúde. Amó mesmo,

morreu com 104, 106 anos. Uma da Irmandade. Outras e outras vivem muito.

Que diz que é a fé que cura.” Dadi

“A fé. Nós, nós faz tudo pela Irmandade purque é a fé. A Irmandade da gente

é... uma Irmandade que num tem uma sociedade assim de, de riqueza, de

nada, não. É de pobreza, mas, porém, nós tem a fé na Santa da gente. É... Nós

nos dá, nós briga, nós luta...” Dona Ernestina

118

Considerações Finais

119

Terça­feira, 16 de dezembro de 1996. Chego ao hotel Vila Vilha, no

Corredor da Vitória, em Salvador, Bahia, às 9:50 horas. Objetivo, entrevistar a

professora Cremilda Medina, criadora e coordenadora do “São Paulo de

Perfil”, projeto que inspirou a realização da reportagem com a Irmandade da

Boa Morte. Esperava­me, uma acadêmica. Uma das mais respeitadas

pesquisadoras brasileiras em comunicação e teoria da linguagem, da

contemporaneidade. Combativa, determinada, extremamente convincente em

suas afirmações, mas antes de tudo, humana. Uma jornalista e mais tarde, uma

professora (apaixonada), de jornalismo, que consegue enxergar a dimensão

transformadora do sujeito narrador da história da contemporaneidade. Do

sujeito que se põe diante de outros sujeitos para mediar o discurso da

atualidade a partir de uma linguagem dialógica interativa.

Começamos a entrevista nos moldes regulares. Em uma mão o gravador,

na outra a pauta, que, perceptivelmente, a incomodava. Fiz a primeira pergunta,

fechada no que delimitava a pauta preparada com todo carinho para ter certeza

de que colheria os melhores resultados. Fiz a segunda, a terceira e a quarta

perguntas. As respostas de Medina (sempre muito completas e abrangentes),

encantavam­me.

A pauta foi sendo deixada de lado. Ela até chegou a distanciar o papel de

mim, como que tentando libertar­me daquele padrão e obrigar o

estabelecimento de um “diálogo possível”. Sentia que além dos sentidos dos

120

signos lingüísticos, o conteúdo daquele discurso confirmava a descoberta do

começo do processo. Do meu processo pessoal de encontro com a linguagem

dialógica interativa. É possível fazer jornalismo sem descaracterizar o seu

objeto, o seu objetivo: o ser humano. É possível trazer para o texto, o indivíduo

que constrói a história. É possível ser jornalista e estar imbuído de emoção e

paixão, sem prejuízo do relato dos fatos.

A entrevista de Medina veio como confirmação. Àquela altura, já havia

concluído o trabalho de campo com a Irmandade da Boa Morte, lugar por

excelência para a revelação da necessidade de humanização do discurso

jornalístico. Não é preciso explicar a Boa Morte. A Irmandade é para ser

compreendida. A serenidade, as certezas e crenças de suas componentes já são,

por si só, a representação de todos os sentidos. O seu modo de falar, agir,

pensar, expressam a profundidade dos seus conhecimentos, a riqueza dos seus

valores. Não existem signos que revelem com maior clareza a identidade da

Boa Morte do que o seu próprio discurso. A completude da Irmandade não

poderia ser maculada pela adequação ao “culto”, ao “legítimo”, ao “óbvio”

enquadramento a uma lógica que não atende às esferas da crença, da fé

religiosa e de toda a subjetividade humana. Essas esferas que vão além da

intelectualidade para atender a desejos íntimos do homem inconformado com o

seu destino mortal.

121

Bibliografia

122

MEDINA, Cremilda de Araújo ­ coordenadora e organizadora. Guia das

almas ­ São Paulo de Perfil. São Paulo, CJE/ECA/USP, 1993

BARROS, Aidil de Jesus Paes de e LEHFELD, Neide Aparecida de Souza.

Projeto de pesquisa: propostas metodológicas. Petrópolis, Rio de

Janeiro, Vozes Ltda, 1990

NOGUEIRA, Adriano Salmar e Daveira. A fala do povo ­ a reprodução do

conhecimento no saber popular. Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes Ltda,

1985

BORELLI, Sílvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção ­ literatura e

cultura de massa no Brasil, São Paulo­SP, EDUC: Estação

Liberdade, 1996

MEDINA, Cremilda. Entrevista, o diálogo possível, São Paulo, Ática,

1986

MEDINA, Cremilda. “Sob o signo do diálogo (relato de experiência: São

Paulo de Perfil), São Paulo ­ SP

FUSER, Igor (organizador). A arte da reportagem. Tradução: Zonenschain,

Edith e Marcondes, Maria Celeste. São Paulo­SP. Scritta, (Coleção

Clássica), 1996.

123

Jornalismo e Literatura ­ Actas do II Encontro Afro­Luso­Brasileiro. Autores

vários. Lisboa. Coleção TrimédiaVega e Escola Superior de Jornalismo.

Edição especial da revista “Panorama da Bahia”, comemorativa dos 150

anos de Cachoeira, Salvador, Bahia Artes Gráficas, 1987

BRAGA, Júlio. Ancestralidade afro­brasileira; o culto de babá egum.

Salvador, CEAO/Ianamá, 1992.

NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do Nascimento e Isidoro, Cristiana. A

irmandade da boa morte de Cachoeira. Cachoeira­Bahia, Editora

CEPASC, 1988

124

Anexos

125

Entrevista de Cremilda Medina

JM ­ Qual o objetivo do “São Paulo de Perfil”?

CM ­ A gente poderia falar de mais de um objetivo. Então eu vou tentar

ver nele, os principais. O primeiro deles é, tentar compreender a realidade

contemporânea de São Paulo, através de um inventário, de uma pesquisa (se

você quiser chamar assim), que flagre e que tente entender as tendências

contemporâneas de São Paulo em dois grandes flancos, em dois grandes eixos.

Por um lado, a construção do personagem do paulista, do protagonista

contemporâneo, pela sua herança mestiça de muitas culturas de migrantes que

vieram para São Paulo. Então, quem é esse personagem que vive em São

Paulo? Que é, acima de tudo, o mestiço. Um grande caldeirão de contribuições

migratórias, que forma então uma pessoa, um habitante, que não se pode dizer

assim: é baiano, é gaúcho... O ser que vive em São Paulo é, acima de tudo, o

mestiço. Então, isso é um grande desafio, da gente tentar compreender essas

origens todas que fazem o perfil mestiço de São Paulo.

E o outro eixo é o dos grandes desafios contemporâneos, dos grandes

problemas, grandes impasses de quem vive essa cidade, que é uma cidade, um

126

Estado. São um Estado e uma cidade de conjugação de todo o Brasil,

justamente, por essas migrações internas, e de conjugação do Brasil no mundo,

por causa do cosmopolitismo de São Paulo.

Então, a série “São Paulo de Perfil” persegue uma tentativa de

comprender as contribuições migratórias, os componentes culturais que formam

o perfil de São Paulo e por outro lado, os grandes desafios de quem vive essa

cidade tão complicada, uma cidade de dez, doze milhões de habitantes, que é o

tamanho de muitos países. Acho que esses dois objetivos são importantes.

Agora, há objetivos que estão, vamos dizer assim, relelacionados com a

situação do “São Paulo de Perfil” na Universidade, porque era um projeto que

eu pretendia fazer sozinha (como eu falo naquele texto), e depois, quando eu

voltei para a Universidade em 86, exatamente há dez anos, eu resolvi acoplar

esse projeto, essa idéia de realização, ao ensino, à pesquisa e à extensão. Nesse

sentido, ele tem um objetivo pedagógico, que é o de formar jornalistas ou

comunicadores com uma outra mentalidade que não a mentalidade tradicional,

da técnica tradicional; ele tem como objetivo, também, se realizar como uma

extensão. Os livros do “São Paulo de Perfil” têm um público externo à

Universidade, que nós definimos como prioritário, o público de um grupo de

escolas de segundo grau, portanto, de estudantes de 16, 17 anos da escola

pública, e, nesse sentido, estudante que está iniciando a cidadania, porque já é

votante. Então, nós achamos que seria o público ideal para nós termos o

retorno à esfera de pesquisa.

O que o projeto também tem como objetivo é exercitar a outra linguagem

que se vem construindo no meu projeto de pesquisa, de “dialogia”, de “diálogo

possível”, de uma “linguagem dialógica” e não uma “linguagem técnico­

monológica” ou autoritária, que é a herança do jornalismo. Então a pesquisa, a

127

extensão e o ensino são objetivos que estão no alicerce do projeto, uma vez que

ele está situado na Universidade. Claro que se eu estivesse fazendo sozinha

esse projeto, como eu pensava quando saí do jornal, do Estado de São Paulo,

em 85, eu aí estaria voltada exclusivamente para essa pesquisa do inventário,

do “gosto” de São Paulo. Mas como eu faço isso com os alunos e os alunos é

que produzem, não sou eu quem produz, mas são eles que produzem uma série

que teve uma periodicidade rigorosa (em dez anos foram dois livros por ano,

um por semestre e amanhã, eu estou tratando do fechamento do vigésimo), em

dez anos. São vinte livros em dez anos.

JM ­ O projeto tem alguma vinculação com a grade curricular, com

alguma disciplina?

CM ­ Com a minha disciplina. Eu implantei esse projeto como projeto de

duas disciplinas, que são uma pré­requisito da outra. São “Teoria e Prática da

Grande Reportagem I e II”. Embora no curriculo tenha um outro nome (tenha

tido um acidente de percurso com um outro nome), formalmente, mas, na

realidade, o conteúdo é esse. É uma disciplina que trabalha teoria e prática da

grande reportagem. Então, é uma disciplina que se comporta, do ponto de vista

do ensino, com uma ortodoxia de disciplina, porque as aulas não são usadas

para fazer o “São Paulo de Perfil”. As aulas, que são quatro aulas por semana

(uma manhã e uma à noite, com o grupo diurno e o grupo noturno, durante um

ano), são ocupadas com o meu projeto pedagógico, que instrui essa construção

de uma nova linguagem. E o “São Paulo de Perfil” corre, paralelamente, como

atividade que é primeiro, uma construção de pauta. Depois, exercícios de

128

campo. Até chegar ao texto final que é o ato culminante no final do semestre e

a edição do livro que ocorre nas férias.

Há sempre bolsistas no projeto de iniciação científica. Hoje, eu tenho

uma, já tive dois, mas em geral é um bolsista. Mas os alunos que fazem são,

incrivelmente, responsáveis pelo projeto. Nas férias, por exemplo, agora, em

fevereiro, nós vamos editar esse livro que eatá sendo acabado neste semestre.

Então, o semestre termina com entrega de textos para questão de nota, de

avaliação, mas a edição, propriamente dita, é sempre nas férias. Em julho, o

livro do primeiro semestre, em fevereiro, o livro do segundo semestre.

JM ­ Você coloca que no exercício do jornalismo você emprestou as

técnicas de comunicação à voz coletiva e que isso teria influenciado na sua

escolha por essa vertente de um jornalismo mais criativo, de um discurso

jornalístico humanizado. E sua f ormação acadêmica, até que ponto teria

influenciado nessa escolha?

CM ­ A minha formação acadêmica teve um peso muito forte nas

humanidades, nas disciplinas de humanas, porque, naturalmente, minha

graduação e mesmo a minha escola secundária, se dão num período em que a

escola pública (de segundo grau e a Universidade), está muito mobilizada pelo

projeto humano, pelo projeto de mudança social. Eu fiz o segundo grau em

escola pública, na década de cinqüenta, e no início dos sessenta (de sesssenta a

sessenta e quatro), entro na Universidade, onde toda a nossa mobilização era

em torno de um projeto de transformação social. Então, nós tínhamos essa

cultura, a cultura da transformação social, que não é específica do Brasil. Eu

acho que hoje eu já tenho condições de, tocando experiências com outras

129

pessoas da minha geração, de outras latitudes, inclusive de Moçambique, numa

conversa que eu tive lá, com um escritor e um intelectual de Moçambique, e

que é, exatamente, da minha idade. Então você veja. Lá, no Índico, do outro

lado do mundo, na África, eu estava em Porto Alegre, nessa época, nós tivemos

uma experiência conjunta, que é muito semelhante. Então, parece que o mundo

no pós guerra, da segunda guerra mundial, ele está numa euforia de

reconstrução e há uma série de estimulações para as gerações jovens, nessa

época, para que a gente assumisse a história para transformá­la. Então, essa foi

uma formação muito forte, a parte, vamos dizer assim, humanística e esse

enfoque de sociedade, que, realmente, é a minha linha de pesquisa, é

informação e sociedade.

Agora, por outro lado, não posso deixar de referir que até hoje, até no meu

projeto pedagógico, a arte é fundamental. Eu acho que a arte, os artistas, isso

até já é um lugar comum, são os mais “antenados” no desejo coletivo, no

desejo dos povos. E eu sempre fui muito apaixonada pela arte. Eu sempre

estudei, vamos dizer assim, pelo lado racionalista, estudei as disciplinas da

academia e todo o meu percurso acadêmico, até chegar ao final, agora na USP.

Mas, paralelamente, na minha vida cotidiana, a arte ocupa um espaço

latifundiário. E com a arte eu acho que eu sempre me sensibilizei. A arte

sempre me sacudiu para eu perceber as questões humanas e para trazê­las para

o meu cotidiano, inclusive profissional. Então eu devo à arte e aos artistas uma

“sensibilidade à flor da pele”.

JM ­ Você estava dizendo que leva essa proposta artística para a sala de

aula?

130

CM ­ Então, eu estava dizendo que levo isso para o projeto pedagógico.

Os meus alunos sabem que o eixo fundamental do meu curso é o eixo de leitura

cultural através da arte. Então, eu preparo para essa outra linguagem de

jornalista ou de comunicação, além de jornalismo, de comunicação, o que eu

chamo hoje de “narrativa do presente”. Essa nova narrativa do presente, com

uma impregnação de artistas. Por exemplo, este semestre, nós fizemos, como

eixo fundamental da reportagem de história de vida de migrantes (que vai ser a

cultura caipira, a cultura do interior de São Paulo), uma leitura cultural através

de romances da viagem humana. O mito da viagem, da necessidade de procurar

novos horizontes, de estar sempre em movimento, como, realmente, um desejo

coletivo, mítico. E isso espelhado por três romances: um da África, um de

Portugal e um do Brasil. Então, os alunos prepararam a sua ginástica mental

para fazer as reportagens, através da leitura de peças de literatura, mas também

filmes. Eu uso muito o cinema, música, artes plásticas...

JM ­ Quais foram os romances?

CM ­ O “Terrra Sonâmbula”, de Mia Couto. Foi publicado no Brasil e

espelha, a partir de Moçambique, uma realidade contundente da África

contemporânea: o que é a viagem contemporânea da África. Foi publicado no

Brasil, pela Nova Fronteira, no Rio de Janeiro. Então, o livro está ao acesso.

De Portugal, é “Jangada de Pedra”, de José Saramago e do Brasil, o “Memorial

de Santa Cruz”, do Sinval Medina.

131

JM ­ Você diz que o “diálogo possível” é uma busca profundamente

enraizada no que você preservou de humano na caminhada do exercício

profissional. O jornalismo cotidiano brasileiro é desumano, por quê?

CM ­ A gente não pode fazer uma generalização, porque, felizmente,

ainda há poetas no jornalismo contemporâneo e brasileiro. Mas, há assim, uma

tendência muito perversa de desumanização da informação jornalística. Eu vejo

isso pela distorção que se faz de deslocar o centro da pauta, homem, para

números. Então, toda vez que se faz uma pauta, se constrói uma pauta, se

desenvolve uma cobertura de uma tendência contemporânea (seja de saúde,

seja de habitação, seja de qualquer tema, emprego, seja o que for), o papel de

destaque é o gráfico numérico, é a estatística e não a história de vida, o humano

e a história de vida. Então, eu acho que esse é um sintoma alarmante, porque,

quando se deixa de fazer histórias de vida, de garimpar, na realidade

contemporânea, esse sujeito anônimo que está aí, sofrendo e fazendo a história,

em função dos números ou dele ser representado por números; ou em função

das personagens oficiais, que são aquelas que são realmente as vedetes da

cobertura, nós estamos sendo pouco dignos com os nossos companheiros de

viagem. Ou, no mínimo, pouco solidários com os nossos parceiros de história.

Eu acho que a contemporaneidade é narrada, é narrativa viva, na medida em

que ela recupera as histórias humanas que estão aí no cotidiano e na miudagem

e não no atacado, exclusivamente, das figuras do poder.

Mesmo se você vai pegar um movimento sindical, ou uma cobertura que

vai trabalhar com uma questão sindical, o mundo do operariado e tal, em geral,

essa cobertura foca, exclusivamente, os líderes. Ora, os líderes são também as

figuras de poder. Normalmente, você não vê a história de toda essa base, que é

132

realmente, a que sustenta o movimento. A mesma coisa os “sem terra”, por

exemplo, as coberturas dos “sem terra” pegam sempre as figuras carimbadas,

as figuras de poder. Entretanto, os “sem terra”, que estão lá na base,

trabalhando... Agora mesmo nós estamos trazendo para o próximo “São Paulo

de Perfil”, uma reportagem, uma história de “sem terrinha”, de crianças. Aí, em

crianças é difícil você encontrar ainda, o líder já cristalizado, uma figura de

poder. Uma maravilha trabalhar com crianças, porque as crianças ainda não

têm uma estrutura de poder cristalizada. Então, se você for fazer uma

reportagem com os “sem terrinha” que é uma beleza... Nós tivemos lá na ECA,

um grupo, foram “ciscar” num acentamento. Depois, dois repórteres foram para

lá, conviver para levantar essa história. Você tem histórias de personagens que

não são de poder e que, geralmente, não são escolhidos. Se os “sem terrinhas”

vêm à Brasília, construir casa, esse ano, então, se faz aquela cobertura oficial,

onde o foco é o presidente, é o sujeito que veio trazer os “sem terrinhas”, o

adulto e tal, você não viu as crianças serem personagem da reportagem. Então

esse é um pouco o exemplo de como nós podemos reverter essa

desumanização, essa perversidade de tirar o lugar do homem, ou do ser

humano, da cobertura jornalística.

JM ­ Após a publicação de 19 livros do “São Paulo de Perfil”, você

considera que o rosto do monstro (o rosto multifacetado de Brasil de que você

fala no texto), está sendo reconstituído?

CM ­ É muito difícil eu lhe responder com qualquer precisão... É um rosto

tão complexo, tão surpreendente, tão renovador, com tantas imprevisibilidades

que nunca a gente consegue agarrar o monstro. A gente está sempre

133

perseguindo e com uma sensação de insegurança, de que não está chegando

lá...

JM ­ Então a gente só tem sempre uma amostra desse monstro?

CM ­ É, eu acho que é um estímulo para todos aqueles que saíram dessa

experiência e outros como você que está atenta a ela. Quem sabe se vocês

ajudam a formar a grande cadeia. Eu fico imaginando aqueles abraços de

ambientalistas à volta de um parque, rá, rá, rá (sorriu largamente), que vão se

dando as mãos, todos, para preservar aquele parque, aquela mancha que

querem destruir para fazer uma obra urbana, a “la Maluf”... Então, eu acho que

a gente tem que, realmente, dar­se os braços para tentar abraçar,

carinhosamente, o monstro, porque só com um olhar carinhoso. Olhar

rancoroso e de rejeição, não entende nada, não compreende nada. É uma

mudança de atitude que (uma coisa que eu trabalho muito com meu grupo lá, de

alunos, e que custa se entender). É mudança de atitudes, assim, do tipo, você

deixar a pretensão de querer explicar o que acontece, para passar a tentar

compreender o que está acontecendo.

JM ­ Junto com o leitor? A inclusão do leitor no processo é necessária?

CM ­ Exatamente, certamente. Porque este repórter que vai à rua, ele tem

a oportunidade de ter uma experiência de coletivo, se ele for sensível a isso.

Não é pois aquele repórter que vai já com a pauta na cabeça, com a matéria já

pronta... Se ele for um repórter realmente curioso, sensível, feito uma criança,

ele vai participar já, adiantadamente, do que o leitor constrói. Porque o leitor e

a fonte de informação são um só. Se o repórter se desloca das figuras de poder

134

para o coletivo, esse leitor abstrato das pesquisas, ou até, das expectativas de

comunicação social, ele é muito concreto, ele está lá, no coletivo. Então, se

confunde. Você estar dialogando com os “sem terrinha” e com os pais dos

“sem terrinha” e com as pessoas que compreendem a comunidade, aqueles que

estão do outro lado, contrários, e donos da terra etc... Eles estão convivendo.

Quer dizer, isso é leitor. Então, você fazer do leitor um objeto de pesquisa, eu

acho que ainda é (apesar de todas as boas intenções da recepção ativa, quer

dizer, a pesquisa de recepção), ainda é uma fragmentação. Porque não se pode

separar emissor, de meio e produtor, nem de receptor. Eu acho que a figura do

repórter enquanto mediador, enquanto articulador desses significados do

presente, é um lugar de privilégio para você ir pesquisando o leitor.

Apesar de que, nós temos um grupo de leitores que nos dão um retorno

muito concreto, mas que têm vindo reforçar aquilo que o “feeling” de um

repórter já pode ir induzindo, inferindo, intuitivamente, no seu trabalho.

Porque, por exemplo, os dois grandes resultados de retorno dos nossos leitores

formais, vamos dizer assim, os leitores caracterizados no projeto de recepção,

são os seguintes: primeiro, eles gostam da leitura do livro­reportagem porque

ela é viva, animada. Ela tem movimento, é aventurosa. Enquanto que o livro

didático é chato. Então, o hábito de leitura é favorecido, segundo os

professores e os próprios alunos que fazem a leitura do “São Paulo de Perfil”

com uma reportagem de aventura.

Ora, isso para nós, para a pesquisa de linguagem, é uma sinalização muito

importante. A nossa linguagem quer dar uma ênfase muito grande à história ou

à aventura humana, porque a aventura humana, seja ela trágica ou satírica, ou

romântica, seja qual for a aventura, os movimentos, a ação dramática é o ponto

de identificação do leitor com o outro que está ali. A história do outro. Então,

135

você tem que trabalhar com a história humana, um sentido quase teatral ou

cinematográfico. Tentar recuperar a cena. Não aquele narrador, absolutamente,

chato do jornalismo, que descreve os dados para querer nos divertir. Mas as

histórias humanas como a literatura faz, como o cinema, como o teatro faz,

como as artes plásticas, a música.

JM ­ Essa postura que você propõe para o jornalista se justifica pela

busca da identificação com o leitor?

CM ­ Exatamente. Isso, os nossos leitores dizem. E aí nós temos outras

coisas, porque aí seria um papo muito longo. Mas isso é uma sinalização

fundamental.

Um outro resultado, que não é menos importante do que esse, é a

importância política da reportagem, na medida em que oferece ao leitor, cenas

do cotidiano, do anonimato e não cenas da corte. Cenas do coletivo. Você trás

subsídios para a iniciação à cidadania, ou seja, para a decisão política desses

meninos que já votam aos dezesseis anos. Então, a iniciação à cidadania, que é

uma questão política, realmente é favorecida por uma reportagem que tenha

essa carne humana, que é carne e osso. Não a reportagem que é esquemática,

ou a reportagem estatística, ou a reportagem conceitual. Eles não gostam de

conceitos. Você começar a fazer conceitos, conceitos, a fazer... de opinião...

Eles gostam é de uma aventura concreta, humana, que não é ficcional, que é

real (porque são as histórias que você levanta) e, a partir daí, cada um faz o seu

próprio conceito, ou a sua própria avaliação, ou a sua própria decisão. Então,

também, limpar a narrativa do presente deste juízo de valor que nós estamos

sempre enfiando, é uma medida de “saneamento básico”. Porque o nosso leitor

136

gosta de um texto sem essa coisa de “fazer a cabeça” do outro, de “fazer

pregação”, ou aquela matéria que conclui assim: “Não, a coisa tem que ser

assim, assado...”, isso também é complicado.

JM ­ Pode­se dizer que o “São Paulo de Perfil”, realmente, tem a

capacidade de lançar no mercado, jornalistas, repórteres mediadores sociais do

discurso da atualidade, conscientes da necessidade da prática do diálogo

social?

CM ­ É pouco imponderável. É imponderável isso aí. Apesar de a gente

tentar perseguir até por pesquisas, por aferições mais sistemáticas. Há até um

trabalho de conclusão de curso (que vocês aqui chamam de projeto

experimental), que fez isso. E há uma dissertação de um mestre que se formou

comigo, que também tentou levantar esses dados.

JM ­ A partir de alunos que passaram pelo “São Paulo de Perfil” ?

CM ­ Isso. A partir de bolsistas e alunos que passaram pelo projeto.

Não há uma pesquisa com garantia de afirmação. Eu tenho muitas

dúvidas. Agora, eu me valho muito de retornos espontâneos de ex­alunos. E o

que eu percebo é o seguinte: que nos últimos cinco anos, dos dez do projeto,

tem ficado mais regular a atitude de um ex­aluno se tornar independente em

relação ao mercado, porque é quase uma fatalidade. Na ECA, os que se

formam terminam indo para a indústria cultural, porque lá há um campo:

Editora Abril, Folha, Estado, Jornal da Tarde, televisões...

137

JM ­ Você se retrata aí aos grandes meios de comunicação, sem

considerar sindicatos, associações etc?

CM ­ Falando do mercado central eletrônico e impresso. Está lá o eixo

industrial, sem falar na malha que está circundando esse eixo central, que é

enorme. As alternativas dessa malha são também imponderáveis. A tendência é

que eles (ex­alunos da ECA) sejam incorporados, assimilados pelo mercado

central. Mas, já há uma tendência de ex­alunos que vão para essa redação

central (Folha, Estado, uma revista da Abril, televisão, Globo), tomando assim,

Globo, Veja, Folha e Estado como os polos mais fortes e, depois de dois anos,

ou até um ano de experiência nesses focos, eles rejeitam, saem para fazer

alguma coisa que lhe dê mais prazer. Isso é uma tendência que venho

verificando nos últimos cinco anos. De o cara esnobar o emprego para criar

uma iniciativa autônoma ou cooperativada, ou microempresariada, para ele

passar a produzir para o mercado, aquilo que realmente ele quer. Não se

submeter à carreira. Enquanto que nos cinco primeiros anos eu vi uma

acomodação à carreira (hoje, os alunos que eu tive no “São Paulo de Perfil” 1 e

2 estão no topo da carreira, em grandes jornais, em grandes revistas). E aí eu

vejo uma coisa muito trágica. Esses que se acomodaram à carreira estão muito

infelizes, porque a carreira é uma coisa assim, perversa, selvagem e capaz de

podar qualquer projeto criativo. Alguns até resistem e vão fazendo algumas

coisas nas brechas. Mas a grande parte fica muito infeliz. O que acontece

agora, então, com as últimas gerações é que está se criando uma mentalidade

de olhar a indústria cultural no seu devido lugar: “Tá certo, se eu conseguir um

emprego... Eu preciso de um emprego, mas não vou me submeter, não vou

fazer, não vou dar o meu sangue para o emprego, para uma empresa”. E essa

138

atitude eu acho altamente saudável. Aí, como é que vem isso para mim? Vem

assim, de forma, por exemplo, semana passada, eu tinha um bilhetinho na

minha mesa, de uma pessoa que está na Abril, que tinha vindo (ela é do

Recife, tinha sido bolsista do “São Paulo de Perfil”, uma das pessoas mais

convictas, ela está muito presente no “Guia das Almas”, porque foi a bolsista

nessa época). E o bilhetinho, o conteúdo do bilhetinho era o seguinte: “Eu

estou muito angustiada na revista Abril, porque, estou bem, pessoalmente,

porque estou contratada, está tudo ótimo, já tenho dois anos de

profissionalização na revista e tal, mas só muito raramente, eu consigo fazer

alguma coisa que preste...” Então, agora, eu fui à Recife, ela disse: “Eu tive a

oportunidade de fazer uma matéria em Olinda, para a revista, aí foi uma matéria

enorme e tal... me lembrei muito de você, do “São Paulo de Perfil” e não sei

quê... Eu preciso respirar...”

Então, é a maneira que as pessoas estão encontrando de respirar. É

mudando de emprego, ou indo para um setor desses de frente de trabalho, que

não tem garantia de emprego, mas que é autônomo. Ou é também voltar à

Universidade, para a pós­graduação, buscar na pós­graduação subsídio para a

resistência, para continuar a resistência no mercado profissional.

E há, ainda, aqueles que ficam assim, babando, e levo lá, para o meu

projeto também, pedagógico. São os que conseguem produzir trabalhos

diferenciados na indústria cultural, ou em medias mais... Por exemplo, um

aluno que saiu de lá e foi trabalhar na Veja e, depois, andou por aí e tal... e

terminou fazendo para a Ícaro (revista), da Varig, reportagens. Ele vende

reportagens. Hoje, ele está na Itália, fazendo um estágio, está na pós­graduação

lá. Então, quando eu pego um texto da Ícaro, desse aluno, e eu ponho esse

texto do lado do que ele fez no “Casa

139

Imaginária” (que é um livro sobre habitação), e comparamos: “Olha, aqui,

fulano era aluno. Aqui, ele é profissional e vendeu essa matéria para a revista

Ícaro. Vejam se o fulano daqui e o fulano daqui, que tem uma distância de

cinco anos, se há algum tipo de coerência da proposta. E aí eu fico babando

quando eu vejo que esse cara foi coerente. Podem até não reconhecer, eu não

me importo. Mas reconhecem...

JM ­ Então, quer dizer que mesmo dentro desse eixo central da media,

ainda existem brechas para o repórter criativo?

CM ­ Existem... Olha, eu acho que o mais difícil mesmo é a “Folha”

(Folha de São Paulo) . A Folha é muito, muito, realmente cristalizada. Não

aqueles que são bons na Folha, porque esses têm liberdade. Mas, o pessoal das

bases e o pessoal que chega a editor, embora tendo sido aluno lá, e que cumpre

ou faz cumprir ordens de manual... É o pior lugar de trabalho.

Mas a visão crítica da Folha já é moeda corrente. Felizmente, que não só

na ECA ou até dentro da Folha, mas até nacionalmente. Porque houve tempo

que se fazia um marketing nas escolas de comunicação, em torno do projeto

Folha e aquilo foi um desastre, porque o projeto Folha, se levado às últimas

conseqüências, dá uma atrofia profissional e provoca grande grau de

infelicidade. A qualidade de vida é 0 lá dentro. Agora, eles têm uma

consciência crítica, até a partir do próprio Frias, o jornal...

Agora, nos outros veículos, por mais que seja de estrutura amarrada (a

Veja também é muito difícil, a Veja também é uma tortura), mas os outros, eu

acho que sempre há possibilidade de um tipo de inserção criativa. Tipo um

exemplo agora, recente, de uma também, excelente aluna que levou algum

140

tempo até se acomodar, hoje está no “Jornal da Tarde” e (ela tem condições de

fazer reportagens), foi lá na ECA, este ano, porque eu trago muitos ex­alunos

para ajudar na diretriz do projeto pedagógico e de pesquisa e essa jornalista

que foi uma excelente aluna, foi lá e mostrou certas matérias que ela pode fazer

reportagens que ela mesma disse que foi inteiramente livre para criar e que

gostaram muito. Porque tem isso, se você experimentar uma criatividade

dessas, consistente, uma parte de informação sólida, mas com uma narrativa

criativa, o editor (se não for aquele que está muito obcecado por fórmulas, do

tipo “Folha de São Paulo”), não sabe porque que aquilo ali está bom, mas ele

acha bom. Ele é um leitor. O leitor também está dentro da redação. Ele é um

leitor. Ele lê o seu trabalho e não sabe dizer o porque, mas acha bom. Tem jogo

de cintura...

JM ­ Então o jornalista tem sempre que ousar e fazer a pauta

independente da edição?

CM ­ Ah, sim!... Isso é uma coisa histórica muito interessante. Eu

reproduzi o meu segundo texto, que virou livro, que é o “Notícia: um produto à

venda”, no início dos 70. E nesse período, tudo era culpa do sistema. Nós

estávamos numa ditadura, claro, então aquilo pesava muito sobre nós... Então,

tudo era culpa do governo. Hoje, não está muito diferente. Então, qualquer

coisa era o sistema, era a indústria cultural, era o capitalismo. Era o discurso da

época. Então, no “Notícia: um produto à venda”, se você for lá interno, não

ficar pelo título (muitas pessoas ficam pelo título) e aí eu brinquei com a

história do “produto à venda”, no sentido irônico, e as pessoas levam ao pé da

letra. Então, dizem que eu também acuso o sistema e tal... Mas na realidade, lá

141

dentro, eu trabalho com as contradições que eu elaborei ali, naquele trabalho.

Elas têm três grandes campos em tensão, em conflito. Por um lado, você tem as

forças do sistema, as pressões econômicas e políticas (que são visíveis e

evidentes), mas até aí “morreu Neves”, é o óbvio ululante, diria Nelson

Rodrigues. O problema é você ir a uma complexidade maior, que não é só

isso. Então, a outra força que, em geral, não era considerada, é a força, essa do

coletivo, que está nas ruas. Um exemplo clássico disso foi nas “Diretas já”,

quando o povo apedrejou a Globo, porque a Globo não estava dando a

cobertura digna às “Diretas já”. Então, o povo na rua, fez com que Roberto

Marinho recolhesse o time e passasse a cobrir os comícios. Então, essa força

chegou às vias de fato, até com pedras na pobre da equipe (que não tinha culpa

nenhuma). Esse é um caso extremo, mas que é bem interessante. As pedras

vieram às ruas. Mas, em geral, essa força, ela não é visível, não tem pedras na

mão. Ela é meio do inconsciente coletivo. Daí que ter que compreender,

perceber e não explicar. E, finalmente, o terceiro campo de força nessa tensão

era o próprio produtor, individualizado, que ninguém aceitava.

Achava que era, sei lá, o neo­liberalismo não se falava nessa época, mas

que era anti­marxismo ou coisa parecida, amparava o individualismo. Então,

mas aí, o problema era assim: o sistema era concepção de esquerda, marxista e

tal. E falar no indivíduo era idealismo, era do lado do capitalismo. Só que eu

estive na União Soviética, em 83, ainda não tinha havido a abertura nem nada,

e a figura do indivíduo era um problema seríssimo para o sistema. Porque o

indivíduo não estava contemplado, não pesava e o indivíduo fez a abertura,

porque o indivíduo não aguenta, mas isso aí já é um problema alheio. Então eu

sempre coloquei no produtor, uma dose de responsabilidade, portanto, de

ousadia, de não conformismo, desde sempre. E eu nunca tirei o bumbum da

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seringa. Tanto que eu tenho quatorze demissões na minha carteira (pedidos de

demissão na minha carteira profissional, no meu histórico profissional). Quer

dizer, quando eu cheguei em qualquer limite de princípios da minha... vou

embora. Não abdico da minha responsabilidade. Escrevi depois um livro sobre

a responsabilidade do jornalista. Esse foi um livro pedido pelo Equador, por

uma “Estante” da América Latina. Saiu primeiro em espanhol e depois saiu em

português. Foi o “Função jornalista: responsabilidade social”. Então eu nunca

abdiquei da minha dose de responsabilidade sem desconhecer as forças do

sistema, tentando perceber as forças da demanda social, do mercado (se quiser,

o capitalista). Você tem um patrão, você pode simplesmente, defender as forças

do mercado, sem as demandas sociais. Eu discuti com o Júlio Mesquita na

época, que já morreu, o diretor do “Estadão” (jornal o Estado de São Paulo),

discuti várias vezes, nesses termos: “Mas dr. Júlio, o jornal ‘O Estado de São

Paulo’ não pode desconhecer (apesar dessa sua decisão de não cobrir tais

coisas, ou tais pessoas, não pode desconhecer que tem um compromisso com o

mercado e que o mercado é competitivo e tal...”

JM ­ Qual era a sua função no “Estadão”, jornalista ou editora?

CM ­ Editora. Mas havia a discussão. Hoje eu não vejo os editores

discutirem com os patrões. Então, eu acho que você tem toda razão. O

profissional (ainda mais o profissional que sai da universidade com uma

consciência social), ele tem que ser um guerrilheiro. Diria Pedro Nava (eu

sempre me refiro a ele, que disse isso a respeito da experiência como médico,

no interior de São Paulo, na década de 30), um “guerrilheiro homeopático”.

Você tem que estar sempre em estado de conflito. Você não pode abdicar,

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primeiro, da tua voz interior (que é a principal no sentido ético). Não existem

códigos, nem nada. Existe uma voz interior que lhe diz o que é humano e o que

é desumano. Ninguém lhe tira isso. Você, fazendo uma escuta profunda, você

ouve falar dentro, assim, o que é humano e o que é desumano. Ninguém lhe tira

isso. Você, fazendo uma escuta profunda, você ouve falar dentro, o que é

humano e o que é desumano. E a história se resume a esse problema.

JM ­ E a escuta nem sempre precisa ser tão profunda, correto?

CM ­ É, mas, pelo menos um silenciozinho faz bem nessa poluição sonora

que nós vivemos. Parar: “Ôpa!... Isso aí... tá certo assim? Não. Acho que

assim, vai ferir o sujeito que está lá na frente, ou a situação, ou seja o que

for...”

Então, eu acho que a resistência, a ousadia e a criatividade, elas estão

casadas eternamente, porque nunca nós vamos ter uma situação favorável para

essa presença de produtor de significados. Se você produz significados, você

tem uma responsabilidade e para você produzir significados, eu acho que essa

responsabilidade é conflitiva.

JM ­ Dentro desse jogo de conflitos, o jornalista não seria compelido a

produzir significados convergentes com as forças dominantes?

CM ­ Eu não concordo com o que o Nilson Lage disse ontem (na abertura

do I Seminário de Pesquisa da FACOM), de que você vai interpretar sempre de

acordo com o setor dominante. Não, eu acho que o setor dominante é o setor

dominante. Agora, eu me recuso a ser um cordeiro, um técnico para só ter uma

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linha de interpretação. Ao contrário, eu, a minha vida toda eu trabalhei (hoje

isso está muito claro na pós­graduação e também na graduação), eu trabalho na

epistemologia da complexidade. Ora, se eu trabalho na epistemologia da

complexidade, eu trabalho com as contradições. Se eu trabalho com as

contradições, eu trabalho com as tensões, os conflitos. O lugar de um produtor

de significados no conflito é o lugar de conflito, não é o lugar de facilidades.

JM ­ Mas quem defende o jornalismo pautado na objetividade, afirma que

somente a partir dessa técnica o jornalista (produtor de significados), consegue

ser fiel aos fatos.

CM ­ Mas essa é uma forma de interpretar, ou de ler objetividade, muito

simplista, simplória. Porque aí, o “Projeto Plural”, que tem trabalhado com a

interdisciplinaridade e com o diálogo muito rico com outras áreas de

conhecimento... Podemos, por exemplo, trazer da física e dos físicos, uma

leitura muito mais complexa, muito mais sofisticada, menos simplista ou

simplória, ou ingênua, e da questão do sujeito, da questão do objeto. Quer

dizer, a partir da microfísica (nos anos 20, em que se consagra uma mudança

de cultura na microfísica, física quântica, na física atômica e sub­atômica), a

relação sujeito­objeto muda para a relação sujeito­sujeito. Quer dizer, aquela

crença (porque é uma crença meio ideológica), de que você é o sujeito e que

você pode examinar o que está fora de você, como objeto, caiu por terra no

laboratório da física. Primeiro, porque aquilo que era considerado objeto está

em tal movimento que é impossível você controlar e delimitar como objeto (os

átomos, dentro dos átomos e tal). E segundo, que o observador (cientista, no

caso, físico), interfere na observação.

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JM ­ O observador não pode se distanciar do “objeto” de estudo?

CM ­ Não, ele faz parte desse universo de pesquisa, ou de observação. E

há aquela movimentação mais a movimentação do processo (a noção de

processo é fundamental). O processo que envolve os elementos observados e o

observador é um processo conjunto. Então, a partir daí, a gente aplicando,

fazendo uma transposição para a nossa realidade social, o cidadão, que é a

pauta sua, não é um objeto. É um sujeito, para começo de conversa. Você que

vai fazer a reportagem, não é também um objeto do patrão. É um sujeito. É um

sujeito que tem que administrar todas essas coisas, mas é um sujeito. Então,

você vai encontrar outro sujeito. A relação que vai se estabelecer é uma relação

entre sujeitos, não é uma relação objetivante, em que você controla as respostas

do seu sujeito, do seu objeto de pauta; que você controla as informações do

ambiente onde ele está, da situação em que ele está envolvido. Isso é uma

pretensão em “água benta”, que é puramente ideológica. Você não controla

coisa nenhuma. Você vai lá e vai, no processo, construir uma informação.

Então, é uma leitura que eu faço de sujeito­sujeito, de intersubjetividade, que

não tem nada a ver com a pesquisa do sujeito romântico e tal...

É realmente alarmante hoje, porque nós estamos no final do século XX, as

áreas de conhecimento, todas, já estão cientes dessa outra mentalidade, dessa

outra concepção de mundo, e os jornais (enquanto empresas) e a categoria dos

jornalistas vendem esse engodo para a comunidade consumidora que se pratica

a busca da verdade e da objetividade, de “rabo preso” com essa objetividade.

Isso aí é, antes de mais nada, ignorância.

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JM ­ Que conselhos você daria para o jornalista iniciante que está se

deparando agora, com essa estrutura mascarada pela objetividade?

CM ­ Se a imprensa pode enfrentar essa hegemonia ideológica, esse tijolo

que tem aí (é um verdadeiro tijolaço), só se pode através de uma prática social

sujeito­sujeito; interativa, dialógica e nem falar na questão teórica. Porque ou

eles estão completamente fechados num teto ideológico, que para abrir a

cabeça, abrir a mentalidade para essa concepção de subjetividade ou de sujeito,

é perder a lábia, é jogar conversa fora. Então, você pratica. Deixa eles falarem

ainda da tal de objetividade e até professores.

JM ­ Já que você lembrou os professores que defendem a objetividade,

qual a tendência da academia brasileira hoje, nos cursos de comunicação em

relação às técnicas jornalísticas?

CM ­ Veja, eu acho que ainda estamos com o pé preso na técnica, na

tecnologia. Então, acho que a re­humanização dos cursos só vai se dá se houver

interdisciplinaridade. Eu acho que a interdisciplinaridade é uma injeção

fundamental para re­humanizar a proposta técnica e tecnológica. E a pesquisa

de linguagem tem que decolar dos suportes tecnológicos que não é o suporte

tecnológico que condiciona a sub­linguagem. A sub­linguagem, ela é

inteligência natural. E o suporte pode ou não ser inteligência artificial. E se

você não cuida da inteligência natural e as escolas não estão cuidando...

JM ­ Por quais motivos você afirma que a escola não está cuidando da

inteligência natural?

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CM ­ Não estão cuidando por vários processos. Primeiro, porque há uma

sedução pelos laboratórios e pelas tecnologias. Porque me parece que o

discurso continua sendo na órbita das tecnologias. O discursos não, a prática

pedagógica, que não é prática pedagógica, assim, é uma prática técnica. Fazer

com o equipamento de última geração (se possível), ou com o melhor

equipamento possível. E fazer. Fazer, por fazer. Isso não é, realmente, cuidar

da inteligência natural. Em segundo lugar, não há metodologia de ensino. Falta

pedagogia. O professor não é um educador. Só no momento em que o professor

é um educador é que ele passa a cuidar da inteligência natural e não administrar

os equipamentos ou os suportes técnicos.

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