Isaac Asimov - A Terra Tem Espaco

349

Transcript of Isaac Asimov - A Terra Tem Espaco

dedicado

ISAAC ASIMOV

A TERRA TEM

ESPAO

Traduo de:

Affonso Blacheye

dedicado

queles cavalheiros admirveis e afveis

que originaram a primeira publicao

deste livro:

ANTHONY BOUCHER

HOWARD BROWNE

JOHN CAMPBELL

HORACE GOLD

ROBERT LOWNDES

LEO MARGULIES

RAY PALMER

JAMES QUINN

LARRY SHAWRUSS WINTERBOTHAM

O PASSADO MORTO

Arnold Potterley era professor de Histria Antiga o que, por si s, no constitua perigo algum. O que modificou o mundo alm de todos os sonhos foi o fato de que ele se parecia a um professor de Histria Antiga.

Thaddeus Araman, chefe de Departamento da Diviso de Cronoscopia, poderia ter adotado as medidas adequadas se o professor Potterley tivesse um queixo avantajado e quadrado, olhos reluzentes, nariz aquilino e fosse bastante espadado.

Assim no sendo, Taddeus Araman via-se em seu gabinete diante de uma criatura bem-educada, cujos olhos azuis desbotados o fita varri com ateno e cuja figura de pequena estatura e elegantemente trajada parecia algo diluda, desde os cabelos castanhos e ralos at os sapatos muito bem engraxados, completando um terno de talhe conservador e de classe mdia. Araman perguntou, afvel:

Em que posso ajud-lo, professor Potterley?

O professor Potterley respondeu em voz baixa que parecia combinar muito bem com tudo o mais nele:

Senhor Araman, vim procur-lo porque o senhor quem decide as coisas na cronoscopia.

Araman sorriu e retrucou:

No bem assim. Acima de mim encontra-se o Comissrio Mundial de Pesquisas e acima dele encontra-se o Secretrio Geral das Naes Unidas. E acima de ambos, claro, esto os povos soberanos da Terra.

O professor Potterley sacudiu a cabea, rejeitando aquelas palavras.

Eles no estio interessados na cronoscopia. Vim procur-lo, senhor, porque h dois anos que tento obter permisso para fazer alguma visita no tempo... cronoscopia, do que estou falando... relacionada s minhas pesquisas sobre a antiga Cartago. E no obtenho essa permisso. Meus fundos para pesquisa so todos eles muito certos, no existe qualquer irregularidade nas minhas pesquisas intelectuais, mas ainda assim...

Tenho certeza de que no se trata de irregularidade alguma contraps Araman, visando acalmar o visitante. Vasculhou ento as folhas finas de reproduo, na pasta qual o nome de Potterley havia sido afixado. Tinham sido produzidas pelo Multivac, cuja vasta memria amplamente analgica cuidava de todos os registros do departamento. Terminado isso as folhas podiam ser destrudas e depois reproduzidas, a pedido, em questo de minutos.

E enquanto Araman examinava aquelas pginas, a voz do professor Potterley prosseguiu, em tom montono. Dizia ele:

Preciso explicar que meu problema muitssimo importante. Cartago foi o comercialismo antigo levado ao znite. Cartago pr- romana foi o anlogo antigo mais prximo Amrica pr-atmica, pelo menos na medida de seu relacionamento ao comrcio, ao mundo dos negcios em geral. Tambm foram os marujos e exploradores mais audaciosos antes dos vikings, e se saram melhor nisso do que os gregos, a quem tanta gente louva em demasia.

Ele fez uma pausa, prosseguiu:

Conhecer Cartago seria muito valioso e profcuo, mas ainda assim o conhecimento nico que temos a seu respeito vem das obras escritas por inimigos ferozes que os cartagineses tiveram, os gregos e os romanos. A prpria Cartago nunca escreveu coisa alguma em sua defesa e, se o fez, tais livros no sobreviveram. Como resultado disso os cartagineses tm estado entre os viles preferidos da histria e talvez isso no seja justo. A visita no tempo pode endireitar os fatos.

O professor Potterley disse muitas outras coisas e Araman observou, ainda revirando as folhas de reproduo que tinha diante de si:

O senhor deve compreender, professor Potterley, que a cronoscopia ou visita no tempo, se assim preferir cham-la, processo dos mais difceis.

O professor Potterley fechou a cara, por ter sido interrompido, e contraps:

Estou pedindo apenas algumas visitas escolhidas, a lugares e pocas que indicaria.

Araman suspirou.

At algumas visitas, mesmo uma s Trata-se de arte inacreditavelmente delicada. Existe a questo da focalizao, obter a cena correta e mant-la. Existe a sincronizao do som, que pede circuitos inteiramente separados. Mas meu problema tem importncia bastante para justificar um esforo mais considervel.

Sim, senhor. No resta dvida. Araman apressou-se em dizer. Diminuir a importncia do problema de pesquisas de algum seria medida imperdoavelmente grosseira. Mas o senhor deve compreender como a visita mais simples ainda assim se mostra complexa. E existe uma longa fila para uso do cronoscpio, uma fila ainda maior para o uso do Multivac, que nos orienta no uso dos controles.

Potterley remexeu-se, insatisfeito.

Mas no h alguma coisa que se possa fazer? Por dois anos...

uma questo de prioridade, senhor. Sinto muito Quer um cigarro?

O historiador recuou diante da oferta, seus olhos repentina- mente se esbugalharam enquanto ele fitava o mao de cigarros que fora estendido em sua direo. Araman pareceu surpreso, retirou o mao e fez um movimento como se fosse levar um cigarro boca, mas mudou de idia.

Potterley soltou um suspiro de alvio bem indisfarado ao desaparecer de sua vista o mao de cigarros. Disse, ento:

Existe algum modo de examinar a questo, levando-me to frente quanto for possvel? No sei como explicar...

Araman sorriu, pois sob circunstncias semelhantes alguns haviam oferecido dinheiro, expediente que naturalmente de nada lhes servira. Explicou, ento:

As decises sobre a prioridade so passadas pelo computador. Eu no poderia de modo algum modificar arbitrariamente essas decises.

Potterley se ps rigidamente em p. No teria mais de um metro e sessenta de estatura.

Nesse caso, senhor, bom-dia.

Bom-dia, professor Potterley. E acredite que fico penalizado.

Estendeu a mo em cumprimento, Potterley tocou-a de leve. O historiador se retirou e um toque da cigana trouxe ao gabinete a secretria de Araman. Ele lhe entregou a pasta.

Isto ordenou pode ser jogado fora.

Novamente a ss ele sorriu com amargura. Mais um episdio do servio que por um quarto de sculo prestava raa humana. O servio pela negao.

Pelo menos aquele camarada tinha sido fcil de mandar embora. s vezes a presso de natureza acadmica tinha de ser utilizada, at mesmo a retirada dos fundos para pesquisas.

Cinco minutos depois esquecera o professor Potterley. Tampouco, como pensaria mais tarde, poderia lembrar-se de ter sido as- saltado por qualquer pressgio de perigo.

Nos primeiros anos de sua frustrao, Arnold Potterley no sentira outra coisa seno isso frustrao. No decurso do segundo ano, todavia, essa frustrao dera origem a uma idia que de comeo o assustara e depois passara a fascin-lo. Duas coisas tinham-no impedido de tentar traduzir a idia em atos e nenhuma das barreiras era o fato indubitvel de que se tratava de idia das menos ticas.

A primeira resumia-se somente na esperana continuada de que o governo finalmente concedesse permisso e lhe tomasse desnecessrio fazer qualquer coisa a mais. Essa esperana finalmente derrura no encontro que acabara de ter com Araman.

A segunda barreira no fora uma esperana, em absoluto, porm a compreenso melanclica de sua prpria incapacidade. No era um fsico e no conhecia fsicos que pudessem ajud-lo. O Departamento de Fsica da universidade era composto de homens muito bem supridos em dotaes e totalmente imersos em especialidades. Na melhor das hipteses no lhe dariam ouvidos e, na pior, dariam parte dele por anarquia intelectual, e at sua dotao bsica cartaginesa poderia ser facilmente retirada.

No pedia arriscar-se a tanto. Mas ainda assim a cronoscopia era o meio de prosseguir com o trabalho. Sem ela seria o mesmo que lhe tirarem a dotao.

O primeiro vislumbre de que a segunda barreira poderia ser ultrapassada ocorrera-lhe uma semana antes do encontro com Aramam e passara desapercebido na ocasio. Ocorrera em um dos chs dados pela faculdade. Potterley aparecia a essas reunies invariavelmente, j que entendia o comparecimento s mesmas como um dever de sua parte e era homem que levava seus deveres a srio. Uma vez l, contudo, no acreditava ser responsabilidade sua manter conversao leve ou formar novas amizades. Bebericava de modo abstmio, to mando um copo ou dois, trocava palavras educadas com o decano ou com o chefe de departamento que estivessem presentes, outorgava um sorriso muito ralo para os demais e finalmente se retirava.

Em geral no teria dado ateno, naquele ltimo ch, a um rapaz que se mantinha em p e calado, at um tanto acanhado, a um canto. Jamais teria pensado em lhe falar. Mesmo assim uma pontada de acaso o persuadira daquela vez a se comportar de modo contrrio sua natureza.

Nessa manh, ao desjejum, a Sra. Potterley anunciara sombria- mente que mais uma vez sonhara com Laurel, mas dessa feita uma Laurel crescida, embora mantendo o rostinho de trs anos de idade que a assinalava como filha deles. Potterley deixara a esposa falar. Houvera poca na qual combatera a preocupao demasiadamente freqente da mulher com as coisas passadas e com a morte. Laurel no voltaria a eles, quer por meio de sonhos ou por meio de conversa, mas se isso acalmava Caroline Potterley, que sonhasse e falasse.

Mas quando Potterley foi para a faculdade aquela manh descobriu que, pelo menos dessa vez, ficara afetado pelas insanidades de Caroline. Laurel crescida! Ela morrera cerca de vinte anos atrs;fora a nica filha deles, em todos os tempos. E por todo esse tempo, quando pensava nela, pensava em uma menina de trs anos de idade.

Agora, entretanto, imaginava: mas se nossa filha estivesse viva no estaria com trs anos de idade, teria cerca de vinte e trs.

Foi impossvel deixar de pensar em Laurel como criana que ia se tomando cada vez mais velha e, afinal, chegando a vinte e trs anos de idade. No obteve xito na empreitada, todavia.

Ainda assim tentou. Laurel usando maquilagem. Laurel saindo com rapazes. Laurel casando-se!

Assim que, ao ver o rapaz pairando nas adjacncias do grupo de fria circulao e formado pelos professores, ocorreu-lhe o pensamento quixotesco de que, a bem do fato, um rapaz como aquele poderia ter se casado com Laurel. Talvez aquele prprio rapaz, quem podia dizer?

Laurel poderia t-lo conhecido ali, na universidade, ou em alguma noite na qual ele houvesse sido convidado para jantar na casa dos Potterley. Talvez um se interessasse pelo outro e Laurel com certeza teria sido bonita, aquele rapaz tinha bom aspecto. Era de cor morena, o rosto magro e atento, o porte desenvolto.

Esse sonho se desfez, mas ainda assim Potterley verificou que olhava tolamente para o rapaz, no a fit-lo como um rosto estranho, mas como um possvel genro no terreno da fantasia. E verificou que abria caminho na direo do homem. Era como se fosse uma forma de auto-hipnotismo.

Estendeu a mo, ento.

Eu sou Arnold Potterley, do Departamento de Histria. Voc novo aqui, estou certo?

O rapaz pareceu levemente espantado e se atrapalhou com o copo de bebida, passando-o mo esquerda para aceitar a mo que lhe era estendida.

Eu me chamo Jonas Foster, senhor. Sou o novo instrutor de fsica. Comecei neste semestre.

Potterley assentiu.

Espero que sua estada seja feliz e que tenha grande xito. Foi s. Potterley voltara a seus sentidos com alguma dificuldade, descobria-se embaraado e se afastou. Olhou pelo ombro uma vez, mas a iluso do parentesco desaparecera. A realidade voltara. Ele se aborrecia por ter sido presa da conversa tola da esposa no tocante a Laurel.

Uma semana depois, entretanto, mesmo enquanto Araman lhe falava, a lembrana do rapaz lhe voltara. Instrutor de fsica. Instrutor novo. Ter-lhe-ia acometido um acesso de surdez na ocasio? Teria ocorrido um curto-circuito entre o ouvido e o crebro? Ou seria aquilo o resultado de uma auto-censura automtica, devido ao prximo encontro que ia ter com o chefe da Cronoscopia?

O encontro fracassara, no entanto, e foi a lembrana do rapaz com quem ele trocara duas frases o que impediu Potterley de preparar seu apelo para que o pedido fosse reexaminado. Estava quase aflito por afastar-se dali. E no expresso-autogiro de volta universidade quase sentia desejo de ser supersticioso. Poderia, nesse caso, consolar-se com o pensamento de que o encontro casual e sem sentido fora na verdade dirigido por um Destino providencial.

Jonas Foster no era elemento novo na vida universitria. A luta prolongada e difcil para obter o seu doutorado teria feito de qualquer homem um veterano. E o trabalho posterior, assistente de ensino ps-doutorado, servira como reforo.

Agora, entretanto, ele era o Instrutor Jonas Foster. A dignidade professoral achava-se sua frente e ele se encontrava em uma espcie nova de relao com os demais professores.

Entre outras coisas esses professores estariam na votao que decidiria as promoes futuras. E outra, ele prprio no se encontrava em condies para dizer naquele momento qual o membro do corpo docente que teria ou no acesso especial ao decano ou mesmo ao presidente da universidade. No se considerava um poltico de universidade e tinha certeza de que no serviria para tanto, mas de nada adiantava dar pontaps no prprio traseiro s para provar isso a si mesmo.

Assim que Foster dera ouvidos quele historiador educado que, de modo vago, ainda assim parecia irradiar tenso e no o fez calar-se, pondo-o para fora abruptamente. Tal foi o seu primeiro impulso, porm.

Lembrava-se bastante bem de Potterley. Este viera falar-lhe naquele ch (que fora uma coisa deplorvel). O camarada lhe dissera frases, hirto, o olhar um tanto vidrado, depois voltara a si com um sobressalto visvel e se retirara afobadamente.

Na ocasio Foster se divertira com o incidente, mas agora...

Potterley podia estar deliberadamente tentando travar conhecimento com ele ou ento tentando impressionar Foster, levando-o a pensar que fosse um camaradinha gozado, excntrico e inofensivo.

Podia estar agora sondando as opinies de Foster, procurando opinies prejudiciais. Com certeza eles j deveriam ter feito investigaes antes de lhe conceder sua nomeao, mas, quem sabe...

Potterley podia estar falando srio, podia no compreender sinceramente o que fazia. Ou talvez compreendesse muito bem o que estava fazendo, talvez nada mais fosse do que um patife perigoso.

Foster resmungou:

Bem, vamos ver... e para ganhar tempo, estendeu um mao de cigarros, pretendendo oferecer um deles a Potterley e acender outro para si, bem devagar.

Mas Potterley atalhou no mesmo instante:

Por favor, professor Foster. Nada de cigarros.

Foster pareceu sobressaltado.

Sinto muito, senhor.

No. Quem sente sou eu. No agento o cheiro. uma idiossincrasia minha. Sinto muito.

Empalidecera por completo e Foster guardou o mao de cigarros.

Logo em seguida, sentindo a ausncia do cigano, adotou a sada fcil. Sinto-me lisonjeado por ter vindo pedir minha orientao e tudo o mais, professor Potterley, mas eu no sou especialista em neutrnica. Nada sei fazer que seja profissional, nesse sentido. At mesmo dar uma opinio seria tolice e, francamente, prefiro que o senhor no entre em qualquer detalhe.

No rosto do historiador os traos se tornaram mais duros.

O que quer dizer, que no conhece a neutrnica? O senhor ainda no nada. No recebeu qualquer dotao, verdade?

Este o meu primeiro semestre.

Sei disso. Suponho que ainda no tenha pedido uma dotao.

Foster sorriu ralo. Em trs meses na universidade ele no conseguira colocar seus pedidos iniciais de dotao para pesquisa em redao suficientemente boa para entregar a um redator cientfico profissional, muito menos Comisso de Pesquisa.

(Seu Chefe de Departamento, por sorte, aceitara aquilo muito bem. Leve o tempo que quiser, Foste?, dissera, e organize bem os pensamentos. Tenha a certeza de que enxerga bem o caminho e para onde o mesmo vai, porque depois de receber uma dotao a sua especializao ser oficialmente conhecida e, certa ou errada, ser sua por todo o resto da vida, Tal conselho fora bastante trivial, mas a trivialidade muitas vezes tem o mrito da verdade e Foster o reconhecera.)

Foster disse:

Por educao e inclinao, professor Potterley, sou homem da hiperptica, com estudo em gravtica. Foi assim que me descrevi ao preencher o formulrio para este cargo. Pode no ser ainda minha especializao oficial, mas ser. Outra coisa se mostraria impossvel. Quanto neutrnica, nem mesmo estudei a matria.

E por que no? interpelou Potterley, no mesmo instante. Foster se ps a fit-lo. Aquele era o tipo de curiosidade grosseira, quanto posio profissional alheia, o que sempre se mostrava bastante irritante. Disse, j no to educadamente:

O curso em neutrnica no era dado em minha universidade.

Santo Deus, qual delas freqentou?

A M.I.T. disse Foster, ainda calmo.

E eles no ensinam neutrnica?

No, no ensinam respondeu Foster, e descobriu que enrubescia, era colocado em situao defensiva. Trata-se de matria muitssimo especializada e sem grande valor. Talvez a cronoscopia tenha algum valor, mas a nica aplicao prtica e no passa de um beco sem sada.

O historiador o fitava cheio de aflio.

Diga-me uma coisa. Sabe onde posso encontrar um conhecedor de neutrnica?

No, no sei retorquiu Foster, sem mais rodeios.

Muito bem, nesse caso conhece alguma faculdade que ensine neutrnica?

No, no conheo.

Potterley sorriu de leve, os lbios apertados e sem qualquer bom-humor.

A Foster esse sorriso ofendeu, julgou perceber alguma ofensa no sorriso e irritou-se o bastante para dizer:

Gostaria de fazer-lhe ver, senhor, que est saindo da linha.

O qu?

Estou dizendo que como historiador o seu interesse em qualquer espcie de fsica, e seu interesse profissional, ... fez uma pausa, incapaz de dizer a palavra.

Sem tica?

Isso mesmo, professor Potterley.

s minhas pesquisas me levaram a tanto retorquiu Potterley, em murmrio cheio de fervor.

A Comisso de Pesquisas o lugar a consultar. Se eles permitirem

Eu fui l e no recebi qualquer satisfao.

Nesse caso o senhor deve abandonar isso, evidente e Foster sabia que estava dizendo palavras sufocantemente virtuosas, mas no ia deixar que aquele homem o atrasse a uma expresso de anarquia intelectual. Era cedo demais em sua carreira para arriscar-se de modo estpido.

Ao que pareceu, no entanto, tal observao causou efeito em Potterley. Sem qualquer advertncia o homem explodiu em uma tempestade verbal de irresponsabilidade.

Os estudiosos, no que disse, s poderiam ser livres se pudessem seguir com liberdade sua curiosidade de oscilao igualmente livre. As pesquisas, ao que afirmou, foradas a unia configurao pr-desenhada pelas foras que retinham os cordes das bolsas tornavam-se escravizadas e tinham de estagnar. Ningum, afirmou ento, tinha o direito de ditar os interesses intelectuais dos outros.

Foster ouviu tudo aquilo cheio de descrena. Nada lhe parecia conhecido no que o homem dizia. Ele ouvira os estudantes de faculdade falarem assim, visando chocarem os mestres, e uma ou duas vezes tambm se divertira desse modo. Qualquer pessoa que houvesse estudado histria da cincia sabia que muitos homens haviam, em tempos idos, pensado dessa maneira.Ainda assim parecia-lhe estranho, quase contra a natureza, que um homem moderno de cincia pudesse acreditar em tanta bobagem. Ningum podia supor que uma fbrica fosse dirigida permitindo-se a cada operrio fazer o que bem lhe agradasse no momento, ou em comandar um navio de acordo com as idias casuais e contraditrias de cada tripulante por si. Devia-se aceitar naturalmente em que alguma espcie de rgo supervisor centralizado existisse em todos os casos. Por que a direo e a ordem haveriam de beneficiar uma fbrica e um navio, mas no a pesquisa cientfica?

Algumas pessoas talvez afirmassem que a mente humana era de algum modo qualitativamente diferente de um navio ou fbrica, mas a histria dos esforos intelectuais vinha provar o contrrio.

Quando a cincia era jovem e as complexidades de tudo ou da maior parte do que se sabia encontrava-se dentro do alcance de ua mente individual talvez no houvesse necessidade de direo. A marcha cega sobre as trilhas desconhecidas da ignorncia podia levar a descobertas maravilhosas, por mero acidente.

Mas medida que o conhecimento crescera, uma soma cada vez maior de dados tivera de ser absorvida antes que jornadas valiosas no terreno da ignorncia pudessem ser organizadas. Os homens tinham que se especializar. O pesquisador necessitava dos recursos de uma biblioteca que ele prprio no poderia possuir e, depois, de instrumentos que ele prprio no poderia comprar. Cada vez mais o pesquisador individual dera lugar equipe de pesquisa e instituio de pesquisa.

As dotaes necessrias para pesquisa tornavam-se maiores medida que os instrumentos se tornavam mais numerosos. Que faculdade era to pequena, hoje, que no precisasse de, pelo menos, um micro-reator nuclear e de, pelo menos, um computador de trs etapas?

Sculos antes os indivduos, por si s, j no tinham podido financiar as pesquisas. altura de 1940, apenas o governo, as grandes indstrias e as grandes universidades ou instituies de pesquisas podiam financiar adequadamente as pesquisas bsicas.

altura de 1960 at mesmo as universidades maiores dependiam por completo de dotaes governamentais, enquanto as instituies de pesquisa no podiam existir sem concesses fiscais e subscries pblicas. No ano de 2000 os conjuntos industriais haviam-se tomado um ramo do governo mundial e, dali em diante, o financiamento das pesquisas e, portanto, a direo das mesmas, havia sido naturalmente centralizada sob um departamento do governo.

Tudo viera a se formar de modo natural. Cada ramo da cincia se ajustava claramente s necessidades do pblico e os diversos ramos da cincia eram decentemente coordenados, O progresso material do ltimo meio-sculo vinha apresentar argumentao suficiente para o fato de que a cincia no marchava para a estagnao.

Foster tentou dizer um pouco de tudo isso e no conseguiu, devido aos gestos impacientes de Potterley, que atalhava:

O senhor est papagueando a propaganda oficial. Est sentado no meio de um exemplo inteiramente contrrio ao ponto de vista oficial. E consegue acreditar nisso?

Francamente, no.

Muito bem, por que diz que a viagem no tempo um beco sem sada? Por que a neutrnica no tem importncia? O senhor diz que sim, e diz de modo taxativo, mas nunca a estudou. Afirma ignorar completamente a matria. Ela nem sequer lecionada em sua faculdade...

O simples fato de no ser lecionada no constitui prova bastante? Ah, entendo. No lecionada porque no tem importncia. E no tem importncia porque no lecionada. Este raciocnio o satisfaz?

Foster sentiu-se tomado por confuso crescente.

Est nos livros.

S isso, no? Os livros dizem que a neutrnica no tem importncia. Os seus professores dizem isso, tambm, porque foi o que leram nos livros. Os livros dizem isso porque foram escritos pelos professores. E quem diz, com base em experincia e conhecimento pessoais? Quem faz pesquisas no terreno? Conhece algum? Foster observou:

Acho que no estamos chegando a qualquer concluso, professor Potterley. Preciso trabalhar...

Um momento. Quero que pense numa coisa. Veja como lhe parece. Eu digo que o governo est suprimindo as pesquisas bsicas na neutrnica e na cronoscopia. Eles esto suprimindo a aplicao da cronoscopia.

Ora, essa no!

E por que no? Est ao alcance deles. Veja s essa pesquisa dirigida por um centro. Se eles recusam dotaes para as pesquisas em qualquer setor da cincia, esse setor acaba. Eles acabaram com a neutrnica. Podem acabar com qualquer setor, e foi o que fizeram.

Mas por que motivo?

No sei. Quero que o senhor descubra. Eu mesmo o faria, se soubesse o bastante. Vim procur-lo porque o senhor um jovem, acabou de receber educao nova. As suas artrias intelectuais j se endureceram? No existe curiosidade no senhor? No quer saber? No quer ter as respostas?

O historiador fitava com ateno o semblante de Foster. Seus narizes no tinham mais que um palmo de distncia entre si e Foster estava to imerso em pensamentos que no se lembrou de recuar.

Devia, por todos os ttulos, ter ordenado a Potterley que se retirasse. Se fosse preciso, devia t-lo expulso dali.

No foi o respeito pela idade ou pela posio que o deteve. No se tratava, em absoluto, de que o arrazoado de Potterley o houvera convencido. Na verdade tratava-se de uma pequena questo de orgulho estudantil.

Por que o M.I.T. no dava um curso em neutrnica? A bem do fato, pensando bem no assunto, duvidava que houvesse um s livro sobre neutrnica na biblioteca universitria. No conseguia lembrar- se de ter visto um s.

Parou ento, para pensar sobre isso.

E foi o desastre.Caroline Potterley j fora uma bela mulher. Havia ocasies, tais como jantares ou reunies na universidade, nas quais graas a esforo considervel, restos dessa atrao podiam ser reapresentados.

Nas ocasies comuns ela decaa. Era a palavra que aplicava a si mesma, nos momentos em que se detestava. Engordara ao correr dos anos mas a flacidez em seu corpo no era inteiramente gordura. Era como se seus msculos houvessem desistido e amolecido, de modo que arrastava os ps ao caminhar, enquanto os olhos se tornavam empapuados e as faces rotundas. At os cabelos grisalhos pareciam cansados, em vez de lisos. Seu caimento parecia ser o resultado de uma entrega total gravidade e nada mais.

Caroline Potterley fitava-se no espelho e reconhecia estar em um de seus dias ruins. E sabia tambm qual o motivo.

Fora o sonho com Laurel. Aquele sonho estranho, com Laurel crescida. Desde ento ela estivera pessimamente.

Ainda assim lamentava ter mencionado o sonho a Arnold. Ele no dissera uma s palavra, no falava mais sobre o assunto, mas tal lhe causara mau resultado. Mostrava-se especialmente reservado por dias seguidos. Talvez estivesse a preparar-se para aquele encontro importante com o grande funcionrio do governo (ele lhe dizia sempre que no contava com qualquer xito), mas podia ser igualmente o resultado do sonho que lhe contara.

Tudo fora melhor tempos atrs, quando ele se voltava para ela, gritando com aspereza: Deixe o passado ir embora, Caroline! A conversa no a trar de volta, os sonhos tambm no.

Aquilo fora ruim para ambos. Horrvel. Ela estivera fora de casa e vivera cheia de culpa desde ento. Se houvesse ficado em casa, se no houvesse sado para fazer compras desnecessrias, nesse caso os dois estariam presentes. Um deles teria conseguido salvar Laurel.

O pobre Arnold no conseguira. Deus sabia que ele tentara. Quase morrera ele mesmo, e sara da casa incendiada, cambaleante de sofrimento, queimado, sufocado, quase cego, tendo nos braos a filha morta.

O pesadelo continuava existindo, nunca terminava por completo.

Arnold criara lentamente uma carapaa em torno de si mesmo. Cultivava uma suavidade em voz baixa, suavidade essa que nada rompia, nem mesmo um relmpago. Tornara-se puritano e chegara a abandonar os vcios pequenos, a inclinao para algumas palavras menos educadas, conforme a ocasio. Obtivera a dotao para a pre arao de uma histria de Cartago e subordinara tudo o mais a essa meta.

Caroline tentara ajud-lo. Procurava as referncias, datilografava suas anotaes e as microfilmava. E depois aquilo terminara de repente.

Ela sara correndo da escrivaninha, certa noite, chegara ao banheiro a tempo e vomitara de modo abominvel. O marido viera atrs, cheio de confuso e preocupao.

Caroline, o que se passa?

Foi necessrio um copo de bebida para acalm-la, e ela perguntara ento:

verdade? O que eles faziam?

Quem fazia o qu?

Os cartagineses.

Ele a fitara e ela se explicara por meio indireto, no conseguira dizer claramente de que se tratava.

Os cartagineses, ao que parecia, adoravam Moloch, na forma de um dolo oco e de bronze, tendo no ventre uma fornalha. Nos momentos de crise nacional os sacerdotes e o povo se reuniam e criancinhas, aps as cerimnias de invocaes adequadas, eram atiradas vivas naquelas chamas.

Recebiam alimentos especiais pouco antes do momento crucial, para que a eficcia do sacrifcio no fosse arruinada por desagradveis gritos de pnico. Os tambores rufavam logo aps aquele momento, a fim de abafarem os poucos segundos de gritos infantis. Os pais se achavam presentes, presumivelmente satisfeitos porque o sacrifcio agradava aos deuses.

Arnold Potterley fizera carranca. Eram mentiras perversas, ao que ele afirmou, mentiras inventadas pelos inimigos de Cartago. Devia t-la prevenido. Afinal de contas tais mentiras propagandsticas no eram incomuns. De acordo com os gregos, os antigos hebreus adoravam uma cabea de asno em seu Santo dos Santos. De acordo com os romanos, os primeiros cristos eram homens que odiavam a todos e sacrificavam crianas pags nas catacumbas.

Eles no faziam isso, ento? perguntara Caroline.

Tenho certeza que no. Os fencios primitivos podem ter feito. O sacrifcio humano comum nas culturas primitivas. Mas Cartago, nos seus grandes dias, no foi uma cultura primitiva. O sacrifcio humano muitas vezes abre caminho a atos simblicos, como a circunciso. Os gregos e romanos podem ter-se enganado e tomado o simbolismo cartagins como rito verdadeiro, por ignorncia ou por maldade.

Voc tem certeza?

No posso ter certeza ainda, Caroline, mas quando contar com provas suficientes vou pedir licena para usar a cronoscopia, e isso resolver o assunto de uma vez por todas.

A cronoscopia?

voltar ao passado, vendo o que ocorreu no passado. Pode mos focalizar a Cartago Antiga em algum momento de crise, o desembarque de Cipio Africano em 202 A.C., por exemplo, e ver com nossos prprios olhos o que aconteceu de verdade. E voc vai ver, vai ver que tenho razo.

Bateu-lhe no ombro para reconfort-la e dedicou-lhe um sorriso de encorajamento, mas a esposa sonhou com laurel todas as noites por duas semanas seguidas e nunca mais voltou a ajud-lo em seu trabalho sobre Cartago. Tampouco o marido lhe pediu que voltasse a faz-lo.

Ela, agora, preparava-se para a chegada do marido. Ele a chamara depois de chegar cidade, dizendo-lhe que tinha estado com o homem do governo e que a coisa andara como esperava. Isso significava fracasso, mas ainda assim o pequenino sinal de abatimento estivera ausente na voz dele, seus traos fisionmicos tinham parecido bastante calmos no televisor. Ele tinha outra coisa a fazer, avisara, antes de ir para casa.

Isso significava que o marido chegaria tarde, porm tal no importava. Nenhum dos dois se preocupava quanto ao horrio das refeies, nem quando os mantimentos eram tirados do congelador, ou mesmo quais eram os mantimentos, ou at quando o mecanismo auto-aquecedor entrava em ao.

Quando ele chegou, surpreendeu-a. Nada havia de aborrecido em Potterley, pelo menos que se pudesse notar. Beijou-a como de costume e sorriu, tirou o chapu e perguntou se as coisas haviam andado bem durante a sua ausncia. Estivera quase tudo inteiramente normal. Quase.

No entanto, ela aprendera a perceber coisas pequenas. E o modo do marido andar, durante tudo aquilo, mostrava-se um pouco apressado. Bastava mostrar-lhe que ele se achava sob tenso.

Perguntou, ento:

Aconteceu alguma coisa?

Ele disse:

Vamos ter um convidado para o jantar daqui a duas noites, Caroline. Voc se importa?

No, no me importo. algum que eu conheo?

No. Um jovem instrutor. Um recm-chegado. Conversei com ele. Subitamente, o marido voltou-se para ela, tomou-lhe os braos pelos cotovelos, segurou-os por um momento e logo os soltou, cheio de confuso, como se estivesse desconcertado por ter demonstrado alguma emoo.

Potterley disse, ento:

Quase no o fiz entender. Imagine s. terrvel, terrvel, o modo como todos ns nos submetemos canga, a afeio que sentimos pelos arreios a que estamos presos.

A Sra. Potterley no tinha certeza de haver entendido, mas durante um ano estivera a observar o marido, percebendo que ele se tornava sossegadamente mais rebelde; pouco a pouco mais audacioso em suas crticas ao governo. Perguntou-lhe:

Voc no disse alguma tolice a ele, disse?

O que quer dizer com tolice? Ele vai trabalhar para mim em neutrnica.

Neutrnica era tolice polissilbica para a Sra. Potterley, mas esta sabia que nada tinha a ver com o estudo da histria, e contraps, sem vigor:

Arnold, no gosto que voc faa isso. Vai perder sua posio. ...

anarquia intelectual, minha cara concordou ele. essa a expresso que voc procura. Muito bem, sou um anarquista. Se o governo no me permite prosseguir com as minhas pesquisas eu prosseguirei por conta prpria. E quando mostrar o caminho, os outros acompanharo... E se no acompanharem, no faz diferena alguma. Cartago que conta e tambm o conhecimento humano, e no voc e eu.

Mas voc conhece esse moo. E se for um agente do Comissrio de Pesquisa?

Improvvel e eu vou me arriscar retrucou o marido, cerrando o punho direito e esfregando-o com suavidade na palma da mo esquerda. Ele agora est a meu lado, tenho certeza. No pode ser de outro jeito. Eu reconheo a curiosidade intelectual quando a percebo nos olhos, no rosto e na atitude de um homem, uma doena fatal para o cientista amestrado. Mesmo hoje preciso de tempo para consegui-la em um homem e os jovens so vulnerveis... Oh, por que parar, afinal? Por que no construir nosso prprio cronoscpio e dizer ao governo para ir...

Parou abruptamente, sacudiu a cabea e voltou-se para outro lado.

Espero que tudo d certo disse a Sra. Potterley, na certeza indefesa de que nada daria certo e assustada antecipadamente pela posio professoral do marido e a segurana da velhice de ambos.

Apenas ela, entre todos, tinha o pressentimento violento de encrencas. E encrencas do tipo errado, est claro.

Jonas Foster chegou com cerca de meia hora de atraso casa dos Potterley, que no ficava no conjunto universitrio. At aquela noite no resolvera por completo se iria ou no. E no ltimo instante verificou que no conseguiria cometer um crime social de desmarcar um jantar uma hora antes do momento aprazado. Isso e mais o impulso da curiosidade.

O jantar, em si mesmo, pareceu interminvel. Foster comeu sem qualquer apetite, a Sra. Potterley permanecia sentada, distrada e distante, saindo dessa apatia apenas uma vez para perguntar se ele era casado e para emitir um som de depreciao ao saber que no. O prprio professor Potterley fez perguntas inteiramente tolas sobre sua histria profissional, assentindo cerimoniosamente s respostas.

Fora tudo to sossegado, indigesto na verdade, cacete quanto possvel.

Foster pensava: ele parece to inofensivo.

Foster passara os dois ltimos dias lendo sobre o professor Potterley. De modo muito casual, e, est claro, muito furtivamente. No morria de desejos de que o vissem na Biblioteca de Cincias Sociais. A histria era certamente uma dessas atividades fronteirias e as obras histricas serviam freqentemente de leitura para divertimento ou edificao do pblico em geral.

Mesmo assim um fsico no era considerado um pblico emgeral. Se Foster comeasse a ler histrias seria considerado esquisito, criatura to firme quanto a relatividade, e aps algum tempo o Chefe de Departamento estaria dando tratos bola, pensando se o novo instrutor que recebera era de fato o homem para o lugar.

Por esses motivos precisava ter cautela. Sentou-se nos lugares mais isolados e procurou entrar e sair em horas de pouco movimento, sempre de cabea baixa.

O professor Potterley, ao que verificou, escreveu trs livros e perto de uma dzia de artigos sobre os antigos mundos mediterrneos e os artigos mais recentes (todos eles em Revistas Histricas) haviam lidado com a Cartago pr-romana, demonstrando ponto de vista solidrio.

Isso, pelo menos, conferia com o relato feito por Potterley e servira para abrandar um pouco as desconfianas de Foster... e este achava que teria sido mais aconselhvel e mais seguro descartar-se do assunto logo de incio,

Um cientista no devia ser demasiadamente curioso, estava agora pensando em completa insatisfao consigo mesmo. Isso um trao perigoso.

Aps o jantar foi levado ao estdio de Potterley e estacou de sbito no umbral. s paredes estavam simplesmente cobertas de livros.

Havia alguns filmes, est claro, mas estes se viam muitssimo superados, em nmero, pelos livros impressos em papel. Ele no teria julgado possvel que tantos livros existissem ainda em bom estado.A observao causou incmodo a Foster. Por que haveria algum de querer ter tantos livros em casa? Por certo todos aqueles volumes estavam disposio na biblioteca da universidade ou, na pior das hipteses, na Biblioteca do Congresso, caso algum quisesse se dar ao trabalho de conferir um microfilme.

A existncia de uma biblioteca em casa implicava em um elemento de sigilo, transpirava a anarquia intelectual. Esse ltimo pensamento, por singular que fosse, veio acalmar Foster. Ele preferia que Potterley fosse um anarquista autntico do que um agent provocateur trabalhando para algum.

E agora as horas comeavam a passar com rapidez e espanto. A questo disse Potterley, voz clara e sem pressa era descobrir, se fosse possvel, algum que j houvesse usado a cronoscopia no trabalho. Est claro que eu no podia fazer perguntas abertas, pois tal constituiria pesquisa desautorizada.

Sim concordou Foster com muita sequido, um pouco surpreso que tal pensamento pudesse parar aquele homem.

Usei mtodos indiretos.

E usara realmente. Foster pasmou-se diante do volume de correspondncia lidando com pequenas questes debatidas sobre a cultura mediterrnea que, de algum modo, haviam conseguido produzir a observao casual repetidas vezes: Est claro que, sem ter feito uso da cronoscopia... ou: Esperando a aprovao de meu pedido de dados cronoscpicos, que parece improvvel no momento...

Pois bem, no se trata de perguntas cegas afianou Potterley. H um livreto mensal publicado pelo Instituto de Cronoscopia, no qual as questes referentes ao passado, esclarecidas pelas viagens no tempo, se acham impressas. Apenas uma ou duas questes.

Fez uma pausa, prosseguiu:

O que me impressionou de incio foi a trivialidade da maioria dessas questes, sua insipidez. Por que haveriam tais pesquisas de obter prioridade sobre o meu trabalho? Por isso escrevi s pessoas que deveriam estar fazendo pesquisas nas direes descritas pelo folheto. E de maneira uniforme, como acabei de lhe mostrar, elas no faziam uso do cronoscpio. Agora vamos examinar a questo tintim por tintim.

Finalmente Foster, com a cabea girando diante dos detalhes meticulosamente reunidos por Potterley, perguntou:

Mas, por qu?

No sei o motivo respondeu Potterley mas tenho uma teoria. A inveno inicial do cronoscpio foi de Sterbinski... como v, sei at isso... ele recebeu grande divulgao. Mas depois o governo apoderou-se do instrumento e resolveu suprimir quaisquer outras pesquisas no assunto ou qualquer uso da mquina. Mas a essa altura as pessoas podiam querer saber por qual motivo a mquina no estava sendo utilizada. A curiosidade um vcio tremendo, professor Foster.

Sim, o fsico concordou intimamente.

Imagine portanto a eficcia prosseguiu Potterley de fingir que o cronoscpio estava sendo empregado. Nesse caso no seria um mistrio, mas um lugar-comum. No constituiria motivo adequado para a curiosidade ilcita.

O senhor teve curiosidade Foster fez ver.

Potterley pareceu um pouco inquieto.

Em meu caso era diferente respondeu, com amargura. Tenho algo que precisa ser feito e no me submeteria ao modo ridculo pelo qual continuavam a me tratar.

Um pouquinho paranico, alm do mais, pensava Foster, cheio de desalento.

Mesmo assim obtivera algo, paranico ou no. Foster no podia negar que algo estranho se passava no setor de neutrnica.

Mas o qu procurava Potterley? Isso continuava amolando Foster. Se Potterley no estava a lhe contar tudo aquilo a fim de pr prova a sua tica, o qu queria, ento?

Foster procurava encarar a coisa com lgica. Se um anarquista intelectual com certa dose de parania queria usar o cronoscpio e se achava convencido de que foras ocultas estavam deliberadamente tentando impedi-lo, o que podia fazer?

E se eu estivesse nessa situao? Perguntava a si prprio. O que faria?

Respondeu ento, falando devagar:

Talvez o cronoscpio no exista, afinal, ser assim?

Potterley sobressaltou-se visivelmente. Sua calma geral quase foi por gua abaixo. Por momentos Foster se viu diante de um homem que no era calmo, em absoluto.

O historiador, contudo, manteve o equilbrio e contraps:

Oh, no, tem de haver um cronoscpio.

Por qu? O senhor j o viu? Eu j vi? Talvez seja essa a explicao para tudo. Talvez eles no estejam deliberadamente escondendo o cronoscpio que tm. Talvez eles no o tenham, logo para comear.

Mas Sterbinski viveu, montou um cronoscpio. Isso fato consumado.

Assim diz o livro observou Foster friamente.

Escute aqui e Potterley chegou a estender o brao para agarrar a manga do palet de Foster. Eu preciso do cronoscpio. Preciso dele. No me diga que no existe. O que vamos fazer descobrir neutrnica suficiente para podermos...

Potterley atalhou o que dizia, Foster retirou a manga presa pela mo do outro. No precisava que o outro completasse a frase iniciada. Ele prprio a completou, dizendo:

Construir um para ns?

Potterley pareceu aborrecido, como se desejasse que tal no fosse dito to queima-roupa. Mesmo assim perguntou:

E por que no?

Porque est fora de cogitaes explicou Foster. Se o que li for certo, ento Sterbinski precisou de vinte anos para construir a mquina e de diversos milhes em dotaes gerais. O senhor acha que podemos, os dois, fazer o mesmo que ele fez, e ilegalmente? Suponhamos que tivssemos o tempo, coisa que no temos, e suponhamos que eu pudesse aprender o bastante nos livros, o que duvido, onde iramos obter o dinheiro e o equipamento? O cronoscpio, pelo que sei, deve preencher alguma coisa como um edifcio de cinco andares, pelo amor de Deus!

Nesse caso o senhor no vai me ajudar?

Bem, vou-lhe dizer o que farei. Existe um jeito pelo qual eu posso descobrir algo...

E qual ? perguntou Potterley imediatamente.

No importa, no vem ao caso. Mas eu talvez possa descobrir o bastante para lhe dizer se o governo est deliberadamente suprimindo as pesquisas pelo cronoscpio. Posso confirmar as indicaes que o senhor j tem, ou posso ser capaz de provar que as suas indicaes no esto corretas. No sei de que isso poder servir-lhe em qualquer dos casos, mas o que posso fazer, o meu limite.

Potterley ficou a olhar enquanto o rapaz finalmente se retirava. Sentia raiva de si prprio. Por que motivo se tornara to descuidado a ponto de permitir que aquele camarada adivinhasse que ele pensava em construir um cronoscpio prprio? Era algo muito prematuro.

Nesse caso, entretanto, por que aquele jovem imbecil teria de supor que um cronoscpio no existisse, em absoluto?

Tinha de existir. Tinha. De que adiantava dizer que no existia?

E por que no podia ser construdo um outro? A cincia havia avanado muito nos cinqenta anos decorridos aps Sterbinski e tudo que se precisava era de conhecimento.

Que o jovem juntasse o conhecimento. Que pensasse em resolver a questo com um pouco de coleta de conhecimento. Tendo tomado a trilha para a anarquia, no havia limites. Se o rapaz no fosse levado frente por algo em si mesmo, os primeiros passos constituiriam erro suficiente para forar tudo o mais. Potterley tinha toda a certeza de que ele no hesitaria em usar a chantagem.

Dedicou-lhe um ltimo aceno de despedida e olhou para cima. Comeava a chover.

Com certeza! Chantagem, se fosse preciso, mas ele no pararia mais.

Foster dirigiu o carro para fora das cercanias desoladas da cidade e quase no se apercebia da chuva.

Era mesmo um imbecil, repetia para si prprio, mas no podia deixar as coisas no p em que se encontravam. Tinha de saber. Amaldioava esse trao de curiosidade indisciplinada, mas tinha de saber.

No iria alm do tio Ralph, porm. Jurara a si prprio, com toda a firmeza, que se deteria ali. Desse modo no haveria qualquer indicao contra ele, nenhuma indicao real. O tio Ralph seria discreto.

De certo modo, ele se envergonhava secretamente do tio Ralph. No falara do tio a Potterley, em parte devido cautela e em parte porque no queria ver o outro erguer a sobrancelha e exibir o inevitvel sorriso de mofa. Os redatores cientficos profissionais, por mais teis que fossem, achavam-se um pouco fora das cogitaes srias e mereciam apenas um desprezo cheio de superioridade, O fato de que, como classe, ganharem mais dinheiro do que os cientistas dedicados pesquisa, s fazia piorar a situao, naturalmente,

Ainda assim, havia momentos nos quais um redator cientfico que fosse da famlia podia mostrar-se conveniente. No tendo recebido educao real, no precisava especializar-se, Por decorrncia, um bom redator cientfico sabia praticamente tudo... E o tio Ralph era um dos melhores,

Ralph Nimmo no tinha diploma universitrio e se orgulhava bastante do fato. O diploma comentara certa feita para Jonas Foster, quando ambos eram muito mais jovens o primeiro passo na direo de uma estrada desastrosa, Voc no quer desperdi-lo, de modo que passa a trabalho de graduao e pesquisas doutorais. Termina como uni ignorante total sobre tudo no mundo, a no ser por uma fatia subdividida de nada,

Por outro lado, se voc cultivar com cuidado a sua mente e mant-la limpa de qualquer entulho de informaes at alcanar a maturidade, preenchendo.a apenas com inteligncia e adestrando-a apenas em pensamento claro, ento, ter um instrumento poderoso e poder tomar-se um redator cientfico,

Nimmo recebera sua primeira designao para trabalho quando tinha vinte e cinco anos de idade, aps haver completado seu aprendizado e ter estado no trabalho de campo por menos de trs meses. Esse trabalho viera na forma de um original coagulado, cujas palavras no transmitiriam o menor vislumbre de compreenso a qualquer leitor, por mais capacitado que fosse, sem estudo cuidadoso e algum trabalho inspirado de adivinhao. Nimmo o despedaara e voltara a emendar (aps cinco encontros prolongados e exasperantes com os autores, que eram biofsicos), tornando a linguagem significativa e clara, usando estilo que conferira obra um brilho agradvel.

E por que no? indagaria cheio de tolerncia ao sobrinho que rebatia suas restries aos diplomas, incriminando-o por sua presteza a permanecer na orla da cincia. A orla importante. Os seus cientistas no conseguem escrever. E por que haveriam de saber? No se espera deles que sejam grandes mestres no xadrez ou virtuosos no violino, e assim sendo por que contar que seriam capazes de usar as palavras? Por que no deixar tambm isso aos especialistas?

Santo Deus, Jonas, leia a sua literatura de cem anos atrs. Faa o devido desconto para o fato de que a cincia est desatualizada e que algumas das expresses esto desatualizadas. Procure ler e entender o sentido. tudo difcil, coisa de amador. Pginas e mais pginas so publicadas sem necessidade, artigos inteiros incompreensveis ou inteis.

Mas o senhor no recebe qualquer reconhecimento, tio Ralph protestava o jovem Foster, preparando-se para iniciar sua carreira universitria, qual encarava com olhar vidrado. O senhor poderia ser um pesquisador e tanto.

Recebo conhecimento disse Nimmo. No pense por um s instante que no o recebo. Est claro que um bioqumIco ou um estrato-meteorologista no me vm com aclamaes, mas pagam-me bastante. Procure descobrir o que acontece quando algum qumico de primeira categoria descobre que a Comisso cortou sua dotao anual para a redao cientfica. Ele lutar mais para obter fundos com os quais possa me pagar, ou a algum como eu, do que para obter um iongrafo gravador.

Sorrira amplamente e Foster retribura com outro sorriso. Na verdade, sentia-se orgulhoso de seu tio barrigudo, rosto redondo e dedos manchados de nicotina, cuja vaidade o levava a escovar a pfia madeixa de cabelos inutilmente sobre o deserto da calva e o levava a vestir-se como uma pilha de feno feita s pressas, pois a negligncia constitua sua marca registrada. Envergonhava-se mas orgulhava-se tambm.

E Foster, agora, entrava no apartamento atravancado do tio sem o menor motivo para sorrir. Ambos estavam, agora, nove anos mais velhos. Por nove anos a mais, as monografias de todos os setores da cincia tinham-lhe chegado s mos para redao e um pouco de cada uma viera ocupar um canto de sua mente espaosa.

Nimmo comia passas sem sementes, jogando-as boca uma por vez. Atirou um pacote a Foster e esse s o conseguiu pegar por milagre, depois abaixou-se para recolher aquelas passas que haviam escapado e cado ao cho.

Deixe a, no se incomode disse Nimmo, descuidado. Algum aparece aqui para fazer a limpeza, uma vez por semana. O que se passa? Alguma dificuldade na redao de seu requerimento de dotao?

Ainda no cheguei a esse ponto.

No chegou? Cuide do caso, rapaz. Voc est esperando que eu me oferea para fazer a redao final?

No posso pagar o que o senhor cobra, Titio.

Ora, deixe disso. Fica tudo em casa. s me dar todos os direitos de publicao popular e no precisa pensar em dinheiro.

Foster assentiu. Se fala srio est fechado o negcio.

Fechado, ento,

Era um jogo, naturalmente, mas Foster conhecia bastante a capacidade de redao do tio para saber que talvez desse resultado. Alguma descoberta dramtica de interesse pblico sobre o homem primitivo, ou sobre uma nova tcnica cirrgica, ou qualquer setor da espaonutica poderia representar artigo muito bem pago em qualquer dos meios de comunicao de massa.

Fora Nimmo, por exemplo, quem redigira para consumo cientfico a srie de monografias de Bryce e co-autores elucidando a estrutura fina de dois vrus de cncer, trabalho pelo qual pedira o pagamento ridculo de mil e quinhentos dlares, desde que os direitos de publicao popular fossem includos. Depois escrevera com exclusividade o mesmo trabalho em forma semidramtica para uso no video tridimensional, em troca de um adiantamento de vinte mil dlares e mais direitos de arrendamento que ainda lhe chegavam s mos aps cinco anos.

Foster foi diretamente ao assunto:

O que sabe de Neutrnica, titio?

Neutrnica? e os olhos pequeninos de Nimmo traduziam surpresa. Est trabalhando nisso? Pensei que fosse a ptica pseudogravtica a sua ocupao.

Pois , mesmo. Acontece que estou perguntando a respeito da neutrnica.

uma trapalhada dos infernos, voc meter-se nisso. Est saindo do srio. Sabe que est, no ?

No creio que o senhor v chamar a Comisso s porque estou um pouco curioso sobre algumas coisas.

Talvez eu devesse fazer isso, antes que voc se meta em encrencas. A curiosidade uni perigo profissional, no caso dos cientistas. J vi isso acontecer. Um deles segue trabalhando sossegadamente em um problema e depois a curiosidade o leva a algum lugar esquisito. Depois vemos que eles trabalharam to pouco em seu problema que no podem justificar uma renovao de dotao. J vi mais...

Tudo que quero saber explicou Foster, cheio de pacincia o que tem passado ultimamente por suas mos, lidando com neutrnica.

Nimmo encostou-se na cadeira, pensativo, mastigando uma passa.

Nada. Nada, nunca. No me lembro de ter recebido um s trabalho sobre neutrnica.

O qu! Foster se espantava totalmente. Quem recebe esse trabalho, ento?

J que voc pergunta, no sei. No me lembro de pessoa alguma falando a esse respeito nas convenes anuais. Acho que no se est trabalhando muito nesse setor.

E por que no?

Ei, no precisa gritar. No estou fazendo nada. Acho que...

Foster se exasperou.

O senhor no sabe?

Espere a. Vou lhe dizer o que sei sobre a neutrnica. Ela diz respeito s aplicaes dos movimentos de neutrinos e as foras envolvidas...

Claro. Claro. Assim como a eletrnica lida com as aplicaes dos movimentos dos eltrons e as foras envolvidas a pseudogravtica lida com as aplicaes dos campos gravitacionais artificiais. No vim perguntar isso. s o que sabe?

disse Nimmo, cheio de calma a neutrnica a base da viagem visual no tempo. Isso tudo que sei.

Foster encostou-se na cadeira e massageou o rosto magro, cheio de fora. Sentia-se raivosamente insatisfeito. Sem que o formulasse de modo explcito em seu prprio esprito, tivera a certeza de que Nimmo apareceria com alguns relatrios recentes, revelaria facetas interessantes da neutrnica moderna e poderia assim mand-lo de volta a Potterley, capacitado a dizer que o velho historiador estava equivocado, que seus dados eram enganadores e as dedues erradas.

Poderia, ento, voltar a seu trabalho.

Agora, porm...

Dizia raivosamente a si mesmo: Eles, ento, no esto fazendo grande coisa nesse setor. E isso d lugar a pensar que seja uma supresso deliberada? E se a neutrnica for uma disciplina estril? Talvez seja, no sei. Potterley no sabe. Por que desperdiar os recursos intelectuais da humanidade em algo que no compensa? Ou ento o trabalho pode ser secreto, por algum motivo legtimo. Pode ser...

O problema era que ele tinha de saber. No podia mais deixar as coisas no p em que se encontravam, no podia!

Disse, ento:

Existe um compndio de neutrnica, tio Ralph? Refiro-me a uma obra simples, clara, elementar.

Nimmo pensou, as faces gorduchas movimentaram-se em uma srie de suspiros.

Voc faz as perguntas mais desgraadas. O nico de que j ouvi falar foi o de Sterbinski e um outro camarada. Nunca o vi, mas lembro-me de algo a respeito... Sterbinski e LaMarr, isso mesmo.

esse o Sterbinski que inventou o cronoscpio?

Acho que sim. Prova que o livro deve ser bom.

Existe uma edio recente? Sterbinski morreu h trinta anos.

Nimmo deu de ombros e nada disse.

Voc pode descobrir?

Permaneceram sentados e silenciosos por alguns momentos, enquanto Nimmo remexia o corpanzil aos estalidos da cadeira em que se sentava. Depois o redator cientfico perguntou:

Voc vai me dizer do que se trata?

No posso. Voc pode me ajudar, ainda assim, tio Ralph? Pode me arranjar um exemplar do compndio?

Bem, voc me ensinou tudo que sei sobre pseudogravtica. Eu devia ser reconhecido por esse fato. Vou-lhe dizer uma coisa... ajudo, sim, com uma condio.

E qual ?

De repente o velho tomou-se muito srio.

De que voc tenha cuidado, Jonas. Torna-se claro que voc est fora de seu setor e fora da linha, seja l o que estiver fazendo. No destrua sua carreira s porque est curioso sobre algo que no lhe designaram e que no de sua conta. Compreendeu?

Foster assentiu, mas quase no ouvira as palavras, imerso que se achava em pensamentos furiosos.

Uma semana depois, Ralph Nimmo surgiu com seu corpo rotundo no pequeno apartamento de Jonas Foster, na universidade e disse, em murmrio roufenho:

Trouxe unia coisa.

O qu? e Foster se pusera imediatamente curioso.

Um exemplar de Sterbinski e LaMarr.

Ato continuo ps vista o livro referido, ou melhor, um canto do mesmo, sob seu sobretudo bem amplo.

Foster quase automaticamente olhou para a porta e janelas a fim de ter certeza de que estavam fechadas e de cortinas baixadas, depois estendeu a mo.

A caixa de filmes tomara-se escamosa aps tanto tempo decorrido e quando ele a abriu, o filme estava desbotado, tornara-se quebradio. Perguntou, com aspereza:

Est aqui?

Gratido, rapaz, gratido! exclamou Nimmo, sentando-se com um grunhido e enfiando a mo no bolso, do qual tirou ua ma.

Ora, estou grato, mas tudo to velho!

Muita sorte eu tive em conseguir. Tentei arranjar um filme na Biblioteca do Congresso. No adiantou. O livro era proibido.

E como obteve isso, ento?

Roubei explicou o tio, mordendo ruidosamente a ma. Na Biblioteca Pblica de Nova Iorque.

O qu?

Muito simples. Eu tenho entrada s estantes, naturalmente. Assim sendo ultrapassei a mureta quando ningum estava por perto, apanhei isto e sa. Eles confiam muito nas pessoas, naquele lugar. Alm do mais, no vo sentir falta, por muitos anos... s que melhor voc no deixar que algum veja isto, sobrinho.

Foster fitava o filme como se o mesmo fosse uma coleo de brasas quentes.

Nimmo livrou-se do miolo da ma e enfiou a mo no bolso, retirando a segunda.

Uma coisa engraada. No existe nada mais recente em todo o terreno da neutrnica. Nem uma s monografia, nenhum trabalho, nenhuma anotao. Nada, desde o aparecimento do cronoscpio.

Pois disse Foster, distrado.

Foster trabalhou por noites inteiras na casa dos Potterley. No podia confiar em seus prprios aposentos no centro universitrio para fazer o que queria. O trabalho noturno tomou-se mais real para ele do que as suas prprias solicitaes de dotao. s vezes ele se preocupava a respeito delas. Mas isso tambm acabou. Seu trabalho consistia, de incio, em ver e rever o texto do filme. Depois consistia em pensar (s vezes, enquanto uma parte do livro se adiantava no projetor de bolso, sem merecer sua ateno).

Havia ocasies nas quais Potterley vinha assistir, sentava-se com expresso empertigada e olhar atento, como a esperar que os processos mentais se solidificassem e se tomassem visveis em todas as suas convolues. S interferia de dois modos: no permitia que Foster fumasse e s vezes falava.

No era conversa, jamais. Tratava-se mais de um monlogo em voz baixa com o qual, ao que parecia, quase no contava receber a menor ateno. Era muito mais como se estivesse aliviando uma tenso interna.

Cartago! Sempre Cartago!

Cartago, a Nova Iorque do Mediterrneo antigo. Cartago, imprio comercial e rainha dos mares. Cartago, tudo que Siracusa e Alexandria fingiam ser. Cartago, infamada pelos inimigos e incapaz de defender-se verbalmente.

Fora derrotada uma vez por Roma e expulsa da Siclia e Sardenha, mas voltara para recuperar as perdas graas a novos domnios na Espanha, apresentara Anbal para aterrorizar os romanos por dezesseis anos a fio.

Ao final voltara a perder pela segunda vez, reconciliara-se com o destino e reconstrura com instrumentos partidos uma vida aleijada em territrio afundado, obtendo tamanhos xitos que Roma, invejosa, forou deliberadamente a terceira guerra.

E ento Cartago, tendo apenas as mos nuas e sua tenacidade, construra armas e obrigara Roma a sustentar uma guerra de dois anos que apenas terminara com a destruio completa da cidade, seus moradores lanando-se nas casas incendiadas em vez de se renderem.

Como podiam as pessoas lutar de tal maneira por uma cidade e um modo de vida como os escritores antigos descreviam? Anbal era general melhor do que qualquer romano e seus soldados dedicavam-lhe fidelidade total. Seus prprios inimigos, os mais acendrados, o louvaram. Esse foi um cartagins. Est na moda dizer que ele era um cartagins no-tpico, melhor do que os demais, um diamante no meio do lixo. Mas se assim , por que foi to fiel a Cartago, mesmo em sua morte aps anos de exlio? Eles falam de Moloch...

Nem sempre Foster ouvia, mas s vezes no podia deixar de faz-lo; nessas ocasies estremecia e enjoava diante do relato sangrento de sacrifcio de crianas.

Potterley, no entanto, prosseguia com af:

Ainda assim no verdade. Isso uma mentira de dois mil e quinhentos anos, iniciada pelos gregos e romanos. Eles tinham seus escravos, crucificao e tortura, seus torneios de gladiadores. A histria de Moloch o que as idades posteriores teriam chamado de propaganda de guerra, a grande mentira. Posso provar que foi mentira. Posso provar e, por Deus, provarei... provarei...Murmurava essa promessa repetidas vezes, em sua aflio.

A Sra. Potterley tambm o visitava mas o fazia com menos freqncia, geralmente s teras e quintas-feiras, quando o prprio professor Potterley tinha de dar aulas noturnas e no se achava presente.Ela vinha sentar-se em silncio, quase sem falar, o rosto sem expresso e sem energia, o olhar parado, toda a sua atitude era distante e fechada.

Na primeira vez em que o fez, Foster procurou, pouco vontade, sugerir que ela se retirasse.

Ela respondeu, a voz sem qualquer graa

Eu atrapalho?

No, claro que no mentiu Foster, inquieto. s que... que... e no conseguiu terminar a frase.

Ela assentiu como se aceitasse um convite para ficar. Depois abriu a bolsa de pano que trouxera e dali tirou um caderno sem costura, de folhas de vitron, que passou a tecer com movimentos rpidos e delicados de dois despolarizadores finos e tetrafacetados, cujos fios alimentados pilha conferiam-lhe o aspecto de algum que segurava uma aranha enorme.

Certa noite ela disse baixinho.

Minha filha, Laurel, tem a sua idade.

Foster sobressaltou-se tanto diante do som inesperado de sua fala quanto das palavras, e comentou:

Eu no sabia que a senhora tinha uma filha.

Ela morreu. H anos.

O vitron crescia sob seus movimentos hbeis, tornando-se algo parecido a uma pea de, roupa que Foster ainda no podia identificar. Nada lhe restava seno murmurar inutilmente:

Sinto muito.

A Sra. Potterley suspirou.

Sonho muito com ela e ergueu os olhos azuis e distantes direo dele.

Foster encolheu-se e desviou o olhar.

Em outra noite, puxando uma das folhas do vitron para solt-lo do vestido, ela perguntou.

O que a viso no tempo, afinal?

Esta observao acarretava uma seqncia complexa de pensamentos e Foster respondeu, prontamente:

O Sr. Potterley pode explicar-lhe.

Ele j tentou. Oh, tentou. Mas acho que ele um pouco impaciente comigo. Ele o chama de cronoscopia, na maior parte do tempo. A gente realmente v as coisas no passado, como nos tridimensionais? Ou uma viso que faz as formas de pontinhos, como no computador que o senhor usa?

Foster olhou com desagrado para o computador manual. Funcionava bem, mas todas as operaes tinham de ser controladas manualmente e as respostas eram obtidas em cdigo. Se pudesse usar o computador da faculdade... Bem, para que sonhar, j se sentia bastante conspcuo como estava, levando um computador manual sob o brao todas as noites, ao sair do gabinete.

Disse, ento:

Eu mesmo nunca vi o cronoscpio, mas tenho a impresso de que possvel ver figuras e ouvir o som.

D para ouvir as pessoas falando, tambm?

Creio que sim j um tanto desesperado escute Sra. Potterley, isso deve ser muitssimo chato para a senhora. Sei que a senhora no gosta de deixar um hspede sozinho, mas francamente, Sra. Potterley, no deve sentir-se obrigada a...

Eu no me sinto obrigada disse ela. Estou sentada aqui e esperando.

Esperando? Esperando o qu?

Ela disse, com muita compostura:

Eu ouvi vocs naquela noite. Naquela noite em que o senhor falou com Arnold pela primeira vez. Ouvi atrs da porta.

Foster contraps:

A senhora fez isso?

Sei que no devia ter feito, mas estava muitssimo preocupada com Arnold. Achava que ele ia fazer alguma coisa que no devia, e queria saber o que era. E depois, quando ouvi... ela fez unia pau sa, inclinando-se sobre o vitron e olhando para aquele material.

Ouviu o qu, Sra. Potterley?

Que o senhor no construiria um cronoscpio.

Claro que no.

Achei que talvez o senhor pudesse mudar de idia.

Foster lanou-lhe um olhar furioso.

Quer dizer que a senhora tem vindo aqui esperando que eu construa o cronoscpio, querendo que eu construa esse aparelho?

Espero que o faa, professor Foster. Oh, espero que o faa.

Era como se, de repente, um vu houvesse cado de seu rosto, deixando-lhe todos os traos fisionmicos bem claros e ntidos, levando-lhe cor s faces, vida ao olhar, vibraes de algo que se aproximava animao em sua voz.

No seria maravilhoso prosseguiu ela ter um aparelho assim? As pessoas do passado poderiam voltar a viver. Os faras e os reis e... as pessoas comuns. Espero que o senhor construa o aparelho, professor Foster. Espero mesmo.

Engasgou, ao que parecia, com o fervor de suas prprias pala- nas e as folhas do vitron caram de seu regao. Ela se levantou e subiu correndo as escadas do poro enquanto o olhar de Foster seguia os movimentos de seu corpo desajeitado e em fuga, cheio de espanto e perturbao.

Aquilo se adentrara pelas noites de Foster e o deixava insone, cansado e cheio de pensamentos. Parecia-se muito a uma indigesto mental.

Suas solicitaes de dotao estavam finalmente chegando a Ralph Nimmo. No depositava qualquer esperana nelas e pensava, entorpecido: no vo ser aprovadas.

Se no forem est claro que criaria um escndalo no departamento e provavelmente sua designao na universidade no seria renovada, chegado o final do ano letivo.

Quase no se preocupava. Era o neutrino, o neutrino, apenas o neutrino. Sua trilha curvava-se e desviava-se acentuadamente, deixava-o quase sem flego por caminhos desconhecidos, que o prprio Sterbinski e LaMarr no tinham acompanhado.

Chamou Nimmo.

Tio Ralph, preciso de algumas coisas. Estou chamando de fora da universidade.

O rosto de Nimmo, na teia de vdeo, parecia jovial, a voz era spera. Ele disse:

Voc est precisando de um curso de comunicaes. Estou tendo uma trabalheira infernal para pr a sua solicitao em termos inteligveis. Se por isso que est chamando...

Foster sacudiu a cabea, cheio de impacincia.

No por isso que estou chamando. Preciso disto aqui e garatujou com rapidez em uma folha de papel, erguendo-a diante do receptor.

Nimmo chiou.

Ei, voc acha que sou capaz de fazer tanta coisa assim?

Arranje isto para mim, titio. O senhor sabe que pode.

Nimmo voltou a ler com ateno a relao de artigos, com movimentos silenciosos dos lbios gordos, pareceu muito srio.

O que acontece quando voc junta essas coisas? perguntou.

Foster sacudiu a cabea, em negativa.

Voc vai ter os direitos exclusivos de publicao popular, qualquer que seja o resultado, como sempre foi. Mas no me faa perguntas agora.

No posso fazer milagres, voc sabe.

Faa este. preciso. preciso. O senhor um redator cientfico e no um homem de pesquisas. No precisa explicar tudo. Tem amigos e boas relaes. Eles podem fazer vista grossa, no mesmo, para ganharem alguma coisa de voc na publicao seguinte?

Sobrinho, sua f comovente. Vou tentar.

Nimmo conseguiu. Material e equipamentos foram trazidos em hora avanada de certa noite, em carro particular. Nimmo e Foster levaram o material para dentro, com os resmungos de homens desabituados ao trabalho braal.

Potterley surgiu entrada do poro aps Nimmo ter se retirado. Perguntou baixinho:

Para que isso?

Foster arredou da testa os cabelos que ali haviam cado e fez massagem suave no pulso torcido. Explicou, ento:

Quero fazer algumas experincias simples.

mesmo? e os olhos do historiador reluziam de animao.

Foster sentiu-se explorado. Sentia-se como se estivesse sendo levado por urna estrada perigosa, e levado por dedos que lhe beliscavam o nariz, como se pudesse antever o desastre que o esperava mais adiante, mas ainda assim a andar com deciso e pressa. O pior de tudo que sentia ser de si mesmo o impulso que o levava pelo nariz.

Fora Potterley quem o iniciara, Potterley quem agora se apresentava ali, satisfeito, mas a compulso era dele mesmo.

Foster respondeu, azedo:

Vou querer estar a ss agora, Potterley. No d para voc e sua esposa virem aqui e me interromperem.

Estava pensando: se o ofender, que me expulse da casa. Que ponha fim a tudo.

No ntimo, todavia, no achava que ser expulso faria com que parasse aquilo.

A coisa no se saiu assim. Potterley no dava qualquer demonstrao de achar-se ofendido e seu olhar suave no se modificava. Ele respondeu:

Est claro, professor Foster, est claro. Fique sozinho, no o perturbaremos.

Retirava-se sob o olhar de Foster, mas este no o observou por toda a retirada, sentindo-se perversamente satisfeito e odiando-se por estar assim.

Passou a dormir em um catre no poro dos Potterley e passar ali todos os fins de semana.

Durante esse perodo recebeu o aviso preliminar de que suas dotaes (redigidas por Nimmo) tinham sido aprovadas. O chefe de Departamento foi quem trouxe a notcia, dando-lhe parabns.

Foster fitava distncia e murmurou comentrios com to pouca convico que o chefe do Departamento fechou a cara e lhe voltou as costas, sem dizer mais uma s palavra.

Foster no pensou mais no assunto. Era questo de menor importncia, no valia qualquer ateno. Pensava em algo que tinha importncia real, uma prova crucial que efetuaria aquela noite.

Uma noite, a segunda e a terceira e depois, macilento e quase transbordante de agitao, chamou Potterley.

Este desceu as escadas e olhou em volta para toda aquela instalao. Perguntou ento, em voz baixa:

A conta de luz tem estado bem alta. No me importa a despesa, mas a Cidade pode comear a fazer indagaes. H algum jeito de remediar isso?

Estavam em noite quente mas Potterley usava colarinho apertado e colete. Foster, em camiseta, ergueu o olhar cansado e disse, trmulo:

No ser por muito mais tempo, professor Potterley. Eu o chamei para contar-lhe uma coisa. Podemos construir um cronoscpio. Pequeno, est claro, mas pode ser feito.

Potterley agarrou-se ao corrimo, o corpo derreou. Conseguiu murmurar:

Pode ser feito aqui?

Aqui no poro disse Foster, cansado.

Santo Deus, O senhor disse...

Eu sei o que disse retrucou Foster, cheio de impacincia. Eu disse que no dava para fazer. Nessa ocasio eu no sabia nada. O prprio Sterbinski no sabia nada.Potterley sacudiu a cabea.

O senhor tem certeza? No est equivocado, professor Foster? Eu no agentaria se...

Foster interveio:

No estou equivocado. Com os diabos, senhor, se apenas a teoria fosse o bastante podamos ter um visor de tempo h mais de cem anos, quando o neutrino foi postulado pela primeira vez. O problema estava em que os primeiros pesquisadores o consideraram apenas uma partcula misteriosa, sem massa ou carga, que no podia ser detectada. No passava de algo para fechar o balano e salvar a lei de conservao da energia de massa.

No tinha certeza de que Potterley entendia o que estava falando. Nem se importava. Precisava de um descanso. Precisava desabafar um pouco, no meio de todos aqueles pensamentos coagula dos. E precisava de explicaes para o que teria de dizer em seguida a Potterley.

Prosseguiu, ento:

Foi Sterbinski quem descobriu pela primeira vez que o neutrino rompia a barreira cruzada do espao-tempo, que viajava tanto pelo tempo como pelo espao. Foi tambm Sterbinski quem aperfeioou um mtodo para detectar os neutrinos. Inventou um gravador de neutrinos e aprendeu a interpretar a configurao da torrente de neutrinos. Est claro que a torrente tinha sido afetada e desviada por toda a matria pela qual passava em seu percurso pelo tempo e os desvios podiam ser analisados e convertidos em imagens da matria que causara o desvio. A viso do tempo passado era possvel. At as vibraes do ar podiam ser percebidas, e assim, convertidas em som.

Potterley no ouvia, isso estava fora de dvida. Limitou-se a dizer:

Sim. Sim. Mas quando o senhor pode construir um cronoscpio?

Cheio de urgncia, Foster explicou:

Deixe-me terminar. Tudo depende do mtodo usado para desviar e analisar a torrente de neutrinos. O mtodo de Sterbinski era difcil e indireto. Precisava de montanhas de energia, mas eu estudei a pseudogravidade, professor Potterley, a cincia dos campos gravitacionais artificiais. Especializei-me no comportamento da luz em tais campos. uma cincia nova. Sterbinski nada sabia sobre isso. Se soubesse teria visto... qualquer pessoa teria visto... um meio muito melhor e mais eficiente de detectar os neutrinos, usando um campo pseudogravtico. Se eu conhecesse melhor a neutrnica, logo de inicio, teria visto de imediato.

Potterley parecia animar-se um pouco.

Eu sabia comentou, Mesmo porque as pesquisas na neutrnica se estacionaram e o governo no sabe como ter certeza de que as descobertas em outros ramos da cincia no refletiro conheci mentos na neutrnica. Est vendo qual o valor da direo centralizada da cincia? Faz muito tempo que pensei nisso, professor Foster, muito antes que o senhor viesse trabalhar aqui.

Dou-lhe parabns pela descoberta disse Foster mas h unia coisa...

Oh, no se importe com isso. Responda-me, por favor. Quando pode construir uni cronoscpio?

Estou tentando dizer-lhe algo, professor Potterley. Um cronoscpio da nada servir ao senhor aqui que a coisa desanda, pensava ele.

Potterley desceu vagarosamente a escada, ps-se diante de Foster. O que quer dizer? Por que no vai me ajudar?

O senhor no ver Cartago. o que preciso dizer-lhe. o que justifica a minha explicao. O senhor nunca poder ver Cartago.

Potterley sacudiu a cabea, contestou:

Ora, no, o senhor est errado. Se tem o cronoscpio basta focalizar corretamente...

No, professor Potterley. No se trata de focos. Existem fatores aleatrios que afetam a torrente de neutrinos, assim como afetam todas as partculas subatmicas. o que chamamos de princpio da incerteza. Quando a torrente registrada e interpretada, o fator aleatrio se apresenta como esmaecimento ou rudo, como costumam dizer os moos que lidam com comunicaes. Quanto mais penetramos no tempo, tanto mais pronunciado o embaciamento, maior o rudo. Depois de algum tempo o rudo afoga a imagem. O senhor entendeu?

Mais fora disse Potterley, em voz inteiramente sem vida. De nada adianta. Quando o rudo apaga o detalhe, a ampliao do detalhe amplia o rudo tambm. O senhor nada pode ver em um filme queimado pelo sol se o ampliar, no mesmo? Entenda bem uma coisa. A natureza fsica do universo estabelece limites quanto debilidade de um som que pode ser percebido por qualquer instrumento, O comprimento de uma onda luminosa ou de uma onda de eltrons estabelece limites s dimenses dos objetos que podem ser vistos por qualquer instrumento. Isso tambm funciona na cronoscopia. S se pode ver no tempo at certa distncia.

Que distncia? Que distncia?

Foster respirou fundo.

Um sculo e um quarto. o mximo.

Mas o boletim mensal que a Comisso publica lida com a histria antiga quase inteira. O historiador riu, e riu gostosamente. O senhor deve estar equivocado. O governo tem dados que remontam at a 3000 A.C.

E quando que o senhor passou a acreditar neles? inter pelou Foster, cheio de desdm. Foi o senhor quem comeou isto, provando que estavam mentindo, que nenhum historiador havia feito uso do cronoscpio. No est vendo agora qual o motivo? Nenhum historiador, a no ser aquele que se interesse pela histria contempornea, poderia faz-lo. Nenhum cronoscpio consegue ver no tempo passado alm de 1920, em qualquer condio.

O senhor est errado. No sabe tudo redargiu Potterley.

A verdade no vai dobrar-se sua convenincia. Enfrente os fatos. O que o governo tem feito perpetuar uma mistificao.

Por qu?

No sei qual o motivo.

O nariz de Potterley retorcia-se, os olhos se esbugalhavam. Ele suplicou:

apenas teoria, professor Foster. Construa o cronoscpio. Construa e experimente.

Foster segurou Potterley pelos ombros, com fora e, de repente, gritou: E acha que no o fiz? Acha que eu diria isto antes de ter verificado por todos os modos? Eu constru um. Est aqui mesmo em volta. Olhe s!

Correu para as chaves de fora e as ligou, uma aps outra. Ajustou uma resistncia, outros botes, apagou as luzes do poro.

Espere s. Deixe esquentar.

Surgiu um brilho pequeno no centro da parede. Potterley balbuciava incoerncias, mas Foster limitou-se a ordenar de novo:

Olhe s!

A luz se tomou mais forte e mais clara, irrompeu em figuras claras e escuras, Homens e mulheres! Embaciados. Traos fisionmicos embaciados. Braos e pernas no passavam de manchas. Um antigo automvel, veculo que andava pelo cho, nada claro mas reconhecvel como um modelo que j usara motores a combusto interna, acionado a gasolina, passou com rapidez na imagem.

Foster comentou:

Meados do sculo vinte, em algum lugar. No posso ainda ligar o udio, de modos que no temos o som. Com tempo podemos t-lo. De qualquer modo o meado do sculo XX mais ou menos a distncia mxima a que podemos ir. Acredite em mim, o melhor foco que conseguiremos.

Potterley voltou carga:

Construa ua mquina maior, mais forte. Melhore os seus circuitos.

No pode derrotar o Princpio da Incerteza, homem, assim como no pode viver na superfcie do sol. Existem limites fsicos ao que podemos fazer.

Est mentindo, No acredito no senhor. Eu...

Uma outra voz se fez ouvir, num tom estridente para se impor ao dilogo deles.

Arnold! Professor Foster!

O jovem fsico voltou-se no mesmo instante. O professor Potterley permaneceu parado por momentos prolongados e depois disse, sem se voltar:

O que Caroline? Deixe-nos em paz.

No! e a Sra. Potterley descia a escada. Ouvi o que diziam. No pude deixar de ouvir. O senhor tem um visor do tempo aqui, professor Foster? Aqui no poro?

Sim, tenho, Sra. Potterley. Uma espcie de visor de tempo. No muito bom. Ainda no consigo o som e a imagem est muito embaciada, mas funciona.

A Sra. Potterley entrelaou os dedos e os manteve bem apertados ao peito.

Que maravilhoso. Que maravilhoso.

No maravilhoso de modo algum contraps Potterley. Este jovem imbecil no consegue ir alm de...

Escute aqui... comeou Foster, exasperado.

Por favor! gritou a Sra. Foster. Escutem o que vou dizer. Arnold, voc no percebe que se podemos usar isso para ver vinte anos atrs, ser possvel voltarmos a ver Laurel? Que nos importa Cartago, que nos importam os tempos antigos? Laurel que podemos ver. Ela voltar a estar viva para ns. Deixe a mquina aqui, professor Foster. Mostre-nos como oper-la.

Foster fitou-a, depois ao marido. O rosto de Potterley se tornara lvido. Embora a voz continuasse baixa e calma, essa calma recebera forte abalo. Ele disse:

Voc uma idiota!

Arnold! foi a exclamao dbil da esposa.

Voc uma idiota, entendeu? O que vai ver? O passado. O passado est morto. A Laurel far alguma coisa que no fez? Voc vai ver alguma coisa que no viu? Voc vai viver trs anos outra vez, e mais outra, observando uma criana que nunca crescer, por mais que esteja olhando?

A voz dele estava prxima a se embargar, mas ainda assim se manteve. Ele se aproximou dela, segurou-a pelo ombro e a sacudiu com brusquido.

Voc sabe o que vai acontecer se fizer isto? Eles viro para lev-la daqui, porque voc enlouquecer. Sim, enlouquecer. Quer receber tratamento mental? Quer ser trancafiada, passar pela sonda psquica?

A Sra. Potterley afastou-se com um repelo. No havia qualquer suavidade ou vagueza em sua atitude. Transformara-se numa megera.

Quero ver minha filha, Arnold. Ela est nesta mquina e eu a quero.

Ela no est na mquina. O que temos ali uma imagem. Voc no entende? Uma imagem. Uma coisa que no verdadeira!

Quero minha filha, est ouvindo? E acossou-o, gritando, esmurrando-o com os punhos cerrados. Quero minha filha.O historiador recuou diante do ataque, gritando. Foster adiantou-se, interps-se aos dois e a Sra. Potterley caiu ao cho, soluando tresloucadamente.

Potterley se voltou, os olhos com expresso desesperada. Com movimento repentino agarrou uma barra de ferro, girando e afastando-se de Foster, estonteado por tudo que ocorria e incapaz de det-lo.

Para trs! arquejou Potterley. Ou eu o mato. Juro que mato.

Desferiu um golpe violento e Foster pulou para trs.

Potterley voltou-se com fria para todas as peas daquela montagem no poro e Foster, aps o primeiro estilhaar de vidros, se ps a observar, aturdido.

Potterley dissipou sua raiva e logo em seguida estava em p, sossegado, em meio a fragmentos e estilhaos, porm ainda tinha mo a barra de ferro. Disse a Foster, em um murmrio:

Agora saia daqui! No volte mais! Se alguma coisa do que aqui est lhe custou algo, mande-me a conta e eu pagarei. Pagarei dobrado.

Foster deu de ombros, apanhou a camisa e seguiu em direo escada do poro. Ouvia os soluos altos da Sra. Potterley e, ao voltar-se no patamar para olhar pela ltima vez, viu o professor Potterley inclinado sobre ela, o rosto transtornado de pesar.

Dois dias depois, tendo encerrado o dia letivo e Foster procurando para ver se encontrava algum dado sobre seus projetos recm- aprovados, que desejava levar para casa, o professor Potterley apareceu mais uma vez. Estava em p diante da porta aberta no gabinete de Foster.

O historiador se apresentava to bem vestido como antes. Ergueu a mo num gesto vago demais para ser cumprimento, insuficiente como apelo. Foster limitou-se a fit-lo fixamente.

Potterley disse:

Eu esperei at s cinco horas, at que o senhor estivesse... Posso entrar?

Foster assentiu.

Potterley disse:

Vim para pedir desculpas pelo que fiz. Fiquei pavorosamente decepcionado, estava fora de mim. Mesmo assim, foi imperdovel.

Aceito suas desculpas disse Foster. tudo?

Acredito que minha esposa o chamou.

Chamou, sim.

Ela tem estado histrica. Contou-me que chamou o senhor, mas eu no podia ter certeza...

Chamou, sim.

O senhor pode me dizer... pode ter a bondade de me contar o que ela queria?

Ela queria um cronoscpio. Disse que tinha dinheiro prprio e que estava pronta a pagar.

O senhor... se comprometeu?

Eu disse que no me dedico fabricao.

timo arquejou Potterley, o peito arfando com o alvio. Por favor, no receba mais chamadas dela. Ela no est... bem...

Escute, professor Potterley disse Foster. No vou entrar em qualquer briga de famlia mas melhor o senhor se preparar para uma coisa. Os cronoscpios podem ser construdos por qualquer pessoa. Algumas peas simples podem ser compradas em algum centro de vendas eltricas e ele pode ser construdo em casa. Pelo menos a parte de vdeo.

Mas ningum mais vai pensar no assunto, s o senhor, no mesmo? Ningum pensou.

Eu no pretendo manter segredo.

Mas no pode publicar. pesquisa ilegal.

Isso no importa mais, professor Potterley. Se eu perder minhas dotaes, estaro perdidas. Se a universidade no gostar, pedirei demisso. No me importa mais.

O senhor no pode fazer isso!

At agora disse Foster o senhor no se importava se eu ia ou no perder as dotaes e o cargo. Por que se mostra to preocupado agora? Vou explicar-lhe uma coisa. Quando me procurou pela primeira vez eu acreditava em pesquisas organizadas e dirigidas, a situao como existia, em outras palavras. Considerava-o um anarquista intelectual, professor Potterley, e perigoso tambm. Mas por este ou aquele motivo eu mesmo fui um anarquista por meses seguidos, e alcancei grandes coisas.

Fez uma pausa, prosseguiu:

Essas coisas foram conseguidas no porque eu seja um cientista brilhante. De modo nenhum. Foi apenas que a pesquisa cientfica tinha sido dirigida de cima e havia buracos que podiam ser preenchidos por qualquer pessoa olhando na direo certa. E qualquer pessoa teria olhado na direo certa se o governo no se preocupasse em tentar impedi-Ia.

Nova pausa, ele encerrava a explicao:

Agora faa o favor de me compreender. Ainda acredito que a pesquisa dirigida possa ser til. No sou a favor de uma passagem anarquia total, mas deve haver um campo mdio. A pesquisa dirigida pode manter flexibilidade, O cientista deve ter o direito de seguir sua curiosidade, pelo menos em seu prprio tempo de folga.

Potterley sentou-se e disse, procurando agradar:

Vamos discutir o assunto, Foster. Admiro o seu idealismo. Voc jovem, quer a lua. Mas no pode destruir-se com idias fantasiosas sobre o que a pesquisa pode ser. Eu o meti nisto, sou responsvel e me incrimino amargamente. Eu agia por impulso emocional. O meu interesse por Cartago cegou-me, fui um idiota total.

Foster interveio:

Quer dizer que o senhor mudou inteiramente em dois dias? Cartago no nada? A supresso das pesquisas pelo governo no nada?

Mesmo um imbecil total como eu consegue aprender, Foster. Minha esposa me ensinou algo. Agora compreendo o motivo para o governo suprimir a neutrnica. Dois dias atrs, no entendia. E quando compreendi, aprovei. Voc viu como minha mulher se portou diante da notcia de um cronoscpio no poro. Eu imaginara um cronoscpio utilizado para fins de pesquisa. Tudo que ela conseguia enxergar era o prazer pessoal de voltar neuroticamente a um passado pessoal, um passado morto, O pesquisador puro, Foster, constitui a minoria. Pessoas como minha mulher poderiam superar-nos pelo nmero.

Ele prosseguia:

Se o governo viesse a incentivar a cronoscopia, isso quereria dizer que o passado de todos se tomaria visvel. Os funcionrios do governo estariam sujeitos chantagem e presso indevida, pois aqui na Terra quem tem um passado inteiramente limpo? O governo organizado talvez se tomasse impossvel.

Foster molhou os lbios.

Talvez, Talvez o governo tenha alguma justificativa a seus prprios olhos. Mesmo assim existe um princpio importante em jogo. Quem sabe quantos outros progressos cientficos esto sendo abafados porque os cientistas so levados a uma trilha estreita? Se o cronoscpio se torna motivo de pavor para alguns polticos, tal o preo que precisa ser pago. O pblico deve entender que a cincia precisa ser livre e no existe modo mais claro de mostr-lo do que publicar minha descoberta, de um modo ou de outro, legal ou ilegalmente.

A fronte de Potterley estava cheia de suor, porm sua voz continuou calma.

Oh, no so apenas alguns polticos, professor Foster. No pense nisso. Seria tambm o terror. Minha mulher passaria o tempo vivendo com sua filha morta. Ela se retiraria ainda mais da realidade. Enlouqueceria revivendo as mesmas cenas repetidas vezes. E no seria apenas o meu terror. Haveria outros como ela. Filhos que procurariam os pais mortos ou sua prpria juventude. Teramos todo um mundo vivendo no passado, Loucura de vero.

Foster observou:

Os juzos morais no podem impedir. No surgiu qualquer progresso, em qualquer poca da histria, que a humanidade no tenha tido o engenho de perverter. A humanidade precisa ter tambm o engenho de impedir. Quanto ao cronoscpio, as incurses pelo passado morto logo se tomaro cansativas. Eles vero seus pais adorados em algumas das coisas que seus pais adorados faziam e perdero o entusiasmo por eles. Mas tudo isso no tem importncia. Comigo se trata de uma questo de princpio importante.

Potterley voltou carga:

Que se dane o seu princpio. No consegue compreender os homens e mulheres, ideais como princpio? No entende que minha mulher viver pelo incndio que matou nossa filha? No poder impedi-la, eu a conheo. Ela acompanhar cada passo, tentando evit-lo. Voltar a viver aquilo repetidas vezes, contando a cada feita que aquilo no acontea. Quantas vezes voc quer matar Laurel? e a voz se punha roufenha.

A Foster ocorreu um pensamento.

O que receia que ela possa descobrir, professor Potterley? O que aconteceu na noite do incndio?

O historiador cobriu imediatamente o rosto com as mos, seu corpo passou a estremecer com soluos. Foster desviou o olhar, passou a fitar a janela, embaraadssimo.

Aps algum tempo, Potterley explicou:

Faz muito tempo que no penso no assunto. Caroline tinha sado. Eu fazia companhia menina. Entrei no dormitrio dela no meio da noite, para ver se estava coberta. Levava comigo o cigarro... naqueles dias eu fumava. Devo t-lo amassado antes de coloc-lo no cinzeiro sobre a cmoda. Sempre tive muito cuidado. A menina estava bem. Voltei para a sala de estar e dormi diante do vdeo. Acordei sufocado, cercado pelo fogo. No sei como comeou.

Mas acha que pode ter sido o cigarro, no isso? perguntou Foster. Um cigarro que o senhor deixou de apagar?

No sei. Tentei salv-la, mas estava morta em meus braos quando sa daquela casa.

Acredito que nunca tenha contado sua mulher sobre o ci garro.

Potterley sacudiu a cabea, em negativa.

Mas tive que viver com essa lembrana.

S agora, com o cronoscpio, ela poder descobrir. Talvez no tenha sido o cigarro. Talvez o senhor o tenha realmente apagado, no acha possvel?

As lgrimas haviam secado no rosto de Potterley. A vermelhido desaparecera. Ele disse:

No posso me arriscar... Mas no se trata apenas de mim mesmo, Foster. O passado tem terrores reservados para a maioria das pessoas. No liberte estes terrores sobre a raa humana.

Foster caminhava pelo aposento. De algum modo aquilo explicava o m