Isaac Asimov - Poeira de Estrelas

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POEIRA DE ESTRELASISAAC ASIMOV3a EDIO EDITORA EXPRESSO E CULTURA TITULO ORIGINAL: THE STARS LIKE DUST COPYRIGHT: LANCER BOOOK. - 1968 RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE PUBLICAO EM LNGUA PORTUGUESA, NOS TERMOS DA LEGISLAO EM VIGOR PRIMEIRA EDIO EM LNGUA PORTUGUESA: SETEMBRO DE 1970 SEGUNDA EDIO: FEVEREIRO DE 1971 TERCEIRA EDIO: FEVEREIRO DE 1972 TRADUO DE STELLA ALVES DE SOUZA CAPA DE ERICO DIAGRAMAO E PAGINAO DE ORESTES DE OLIVEIRA FILHO COMPOSIO EM TIMES ROMAN CORPO 10/12 COM A DIVISO SILBICA DAS PALAVRAS E JUSTIFICAO EFETUADAS POR COMPUTADOR, NAS OFICINAS DE AGGS INDSTRIAS GRFICAS S. A.

Biron, sem querer, recordou um poema que escrevera por ocasio da sua primeira viagem espacial: "As estrelas, qual poeira, envolvem-me Em vivida nvoa de luz E parece-me que avisto todo o espao Num s amplo golpe de vista." De sbito os acontecimentos daquela noite, todos eles, pareceram encaixar-se perfeitamente. E naquele momento ele sentiu que no havia sada possvel e que a nave o estava conduzindo, de forma suave porm firme, com destino morte. 1 - O dormitrio sussurrava. O DORMITRIO SUSSURRAVA suavemente. Aquele som, apesar de quase inaudvel, reduzido e irregular, era, no entanto, inconfundvel e letal. No foi isso, porm, que fez Biron Farrill despertar, arrancando-o de um sono pesado porm pouco repousante. Agitou a cabea de um lado para outro, como que lutando contra o insistente rudo proveniente da mesa de cabeceira. Esticou o brao e, mesmo sem abrir os olhos, desligou o contato com a mo desajeitada. - Al? - balbuciou por fim. Imediatamente, o som fluiu atravs do receptor. Era spero e alto, mas Biron no sentiu disposio para diminuir o volume. - Posso falar com Biron Farrill? - indagou a voz. - ele mesmo quem est falando. O que deseja? - Posso falar com Biron Farril? - insistiu a voz, parecia haver aflio em seu tom. Os olhos de Biron abriram-se em meio escurido espessa. Percebeu uma desagradvel sensao de lngua seca, alm de um leve odor que pairava no ambiente. - ele mesmo. Quem fala? A voz continuava, insistindo, aparentemente indiferente s suas palavras e evidenciando uma tenso crescente. O som elevava-se no meio da noite. Ao despertar, Biron viu-se envolvido por uma escurido completa. - H algum a? Eu queria falar com Biron Farrill. Biron ergueu o corpo apoiando-o sobre um dos cotovelos e olhou para o lugar onde se encontrava o visiofone. Procurou o boto do controle visual e logo a pequena tela iluminou-se. - Aqui estou - disse Biron, reconhecendo imediatamente os traos suaves e ligeiramente assimtricos da fisionomia de Sander Jonti. - Me chame de manh, Jonti. J estava prestes a desligar novamente o aparelho quando ouviu a voz de Jonti que continuava a insistir. - Al, al! H algum a? do quarto 526 do alojamento da universidade? Al?! Subitamente, Biron reparou que a pequena luz piloto, indicativa da emisso de um circuito ao vivo, no estava acesa. Praguejou baixinho e apertou o boto. A luz, entretanto, permaneceu apagada. Foi ento que Jonti pareceu desistir e a sua imagem desapareceu da tela, a qual se reduziu a um pequeno quadrado de luz. Biron desligou o aparelho, deu de ombros e resolveu tentar acomodar-se novamente no travesseiro. Estava aborrecido. Em primeiro lugar, ningum tinha o direito de gritar com ele assim no meio da noite. Olhou ligeiramente para os nmeros

suavemente iluminados localizados acima da cabeceira. Trs e quinze. As luzes do estabelecimento s seriam acesas decorridas as prximas quatro horas. Alm disso, ele no gostava de ter que acordar na escurido completa do seu quarto. Mesmo decorridos quatro anos, no conseguira adaptar-se ao hbito terrqueo das construes em concreto reforado, com paredes grossas, atarracadas e desprovidas de janelas. Aquilo constitua uma tradio milenar, datando dos dias em que a bomba nuclear primitiva no havia sido ainda neutralizada pelos sistemas defensivos da Terra. Isso, porm, j fazia agora parte do passado. A guerra atmica fora extremamente danosa para a Terra. A maior parte de sua rea tornara-se irremediavelmente radioativa e intil. Agora, que no havia mais nada a perder, a arquitetura continuava a respeitar os antigos temores. Voltou a apoiar-se sobre o cotovelo. Algo lhe parecia estranho. Esperou um pouco. No era o sussurro fatal que comeava a perceber. Era algo talvez ainda mais imperceptvel e certamente bem menos mortfero. Biron se dava conta da falta do suave movimento do ar, coisa automtica dentro do processo de constante renovao. Tentou engolir com naturalidade, no conseguindo. A atmosfera e a situao pareceram-lhe igualmente opressivas. O sistema de ventilao deixara de funcionar, e agora ele estava realmente diante de um problema. E nem sequer poderia utilizar o visiofone para informar sobre a situao. Experimentou novamente para ter certeza. O quadrado de luz leitosa voltou a aparecer, com o seu brilho suave e perolado. Recebia, mas no transmitia. Bem, no importava. De qualquer forma nada poderia ser feito at o amanhecer. Bocejou e procurou os chinelos, esfregando os olhos com as palmas das mos. Com que ento estava sem ventilao. Isso explicaria o estranho odor que sentira. Franziu o sobrolho e inspirou fundo duas ou trs vezes. Nada feito. O cheiro lhe era familiar, contudo ele no se sentia capaz de identific-lo. Dirigiu-se ao banheiro, procurando automaticamente o boto da luz, se bem que no precisasse dela para pegar um copo de gua. Nada. Tentou repetidas vezes, com teimosia. Nada estaria funcionando? Desistiu e bebeu no escuro, sentindo-se logo melhor. Bocejou novamente, voltando ao quarto onde experimentou o boto geral. Nenhuma das luzes estava funcionando. Biron sentou-se na cama, com as suas mos grandes apoiadas nas coxas musculosas, e ps-se a pensar. Habitualmente, um caso como esse provocaria uma terrvel discusso com o pessoal encarregado da manuteno. claro que ningum esperava ter o servio de um hotel num alojamento universitrio, mas pelo menos se poderia exigir certos padres mnimos de eficincia. Nesse momento, porm, isso no tinha importncia vital. A formatura se aproximava. Mais trs dias e ele se despediria daquele quarto, da universidade da Terra e, na realidade, tambm da prpria Terra. Ainda assim poderia reclamar o incidente, sem qualquer comentrio adicional. Poderia sair do quarto e utilizar o telefone do corredor. Dessa forma haveriam de fornecer-lhe iluminao de gerador, ou at mesmo de providenciar um ventilador para que ele pudesse dormir sem sensaes psicossomticas de sufocao. Caso contrrio, que se danasse! S faltavam duas noites. Com a iluminao proveniente do visiofone intil, ele conseguiu encontrar um short e por cima dele vestiu um macaco, achando que aquela indumentria seria o suficiente para a ocasio. Continuou de chinelos. No haveria perigo de acordar algum, mesmo que andasse com sapatos ferrados. As divises espessas eram praticamente a prova de som. Mesmo assim no achou necessrio calar os sapatos. Dirigiu-se para a porta e puxou a alavanca. Essa desceu suavemente, acompanhada do ligeiro dique indicativo do mecanismo da tranca posto em ao.

Entretanto nada aconteceu. E, apesar dos esforos do seu bceps, Biron no conseguiu abrir a porta. Afastou-se um pouco. Aquilo era simplesmente ridculo. Teria havido um colapso total no sistema de fora? No, isso no seria possvel, uma vez que o relgio funcionava e o visiofone continuava a receber imagem. Um momento! Poderiam ter sido os rapazes, aqueles malandros. s vezes faziam dessas brincadeiras. Evidentemente tratava-se de procedimento infantil, mas na verdade ele mesmo j havia participado de pilhrias tolas como aquela. No teria sido difcil, por exemplo, um de seus camaradas esgueirar-se furtivamente para dentro do seu quarto durante o dia, fazendo todos os arranjos. Mas no, a ventilao e as luzes estavam funcionando quando ele se recolhera. Muito bem, ento teria sido durante a noite. O alojamento era uma construo velha e obsoleta. No seria preciso um gnio de engenharia para conseguir engendrar um truque que interrompesse os circuitos de iluminao e ventilao. Ou ainda para enguiar o mecanismo da porta. E a ficariam aguardando o amanhecer, para ver o que o bom e velho Biron faria quando descobrisse que no podia sair. Provavelmente o liberariam por volta do meio-dia, em meio a boas risadas. - assim, no - resmungou Biron baixinho. Muito bem, mas isso no ficaria assim. Ele teria de protestar de alguma forma. Virou-se e o dedo do seu p chutou algo que deslizou metalicamente pelo cho. Ele apenas percebeu a sua silhueta deslocando-se suave luz proveniente do visiofone. Procurou por baixo da cama, apalpando o cho num raio amplo. Por fim pegou a coisa e foi coloc-la perto da luz para examin-la. (Afinal os sujeitos no tinham sido to espertos assim. Deveriam ter enguiado completamente o visiofone em vez de apenas impedir os seus circuitos emissores.) Percebeu, ento, que empunhava um pequeno cilindro, com um orifcio reduzido na extremidade. Colocou-o junto ao nariz e cheirou-o. Logo percebeu a origem do odor reinante no quarto. Era hipnita. Claro. Os rapazes a teriam utilizado para evitar que Biron acordasse enquanto eles se ocupavam dos preparativos. Biron agora tinha a impresso de ser capaz de reconstituir as etapas, passo a passo. A porta fora aberta. Coisa simples, porm a nica etapa realmente perigosa, uma vez que ele poderia ter acordado. Inclusive, a teriam preparado durante o dia, fazendo com que parecesse fechada sem realmente estar. Ele no a examinara. De qualquer forma, uma vez a porta aberta, teriam introduzido a hipnita no aposento, voltando a fech-la. O anestsico ento se espalharia, lentamente, at a concentrao de um para mil necessria para p-lo fora de combate. Ento eles poderiam entrar - usando mscaras, evidentemente. Bastaria um leno molhado para proteger-se da hipnita por uns quinze minutos, o que seria o tempo suficiente. Aquilo explicava a situao do sistema de ventilao. Esse teria sido desligado para evitar que a hipnita se dispersasse demasiado rpido. Teria sido o primeiro passo. O enguio do visiofone impediria que arranjasse ajuda, a porta enguiada no permitiria que sasse e por fim a falta de luz provocaria pnico. Bons meninos! Biron resfolegou. Socialmente no era possvel indignar-se com isso. Uma pilhria era uma pilhria. Naquele momento, porm, gostaria de arrombar a porta e acabar com a histria. Os seus msculos bem treinados retesaram-se a esse pensamento, mas ele logo percebeu que seria intil. A porta fora construda prevendo exploses atmicas. Malditas tradies! Entretanto teria que haver alguma sada. Ele no poderia permitir que levassem a coisa at o fim. Em primeiro lugar precisaria de uma luz. Uma luz de verdade, e no

aquele brilho imvel e insatisfatrio proveniente do visiofone. Isso seria fcil: ele tinha uma lanterna dentro do armrio. Por um instante, ao manejar os controles da porta do armrio, imaginou, que talvez tambm esses estivessem enguiados. A porta, contudo, abriu-se normalmente e deslizou suavemente para o interior da parede. Biron fez um gesto de desnimo para si mesmo. Aquilo no tinha sentido. No havia nenhuma razo especial para que enguiassem o armrio, e mesmo no teriam tido muito tempo para faz-lo. E foi nesse instante, empunhando j a lanterna, virando-se e prestes a afastar-se, que Biron viu toda a sua teoria desmoronar-se e cair por terra num s e horrvel instante. Enrijeceu-se, prendeu a respirao e ps-se a escutar. Pela primeira vez, desde que acordara, percebeu o sussurro provindo do quarto. Escutou a conversa baixa e irregular que se travava e imediatamente identificou a origem do som. No era possvel deixar de reconhec-lo. Aquele som era o "chocalhar da morte na Terra". Um som que fora inventado mil anos antes. Mais exatamente, tratava-se do rudo de um contador de radiao, registrando as partculas carregadas e as ondas gama que se interpusessem em seu campo de ao, com as oscilaes dos suaves estalidos eletrnicos constituindo um murmrio baixo. Aquilo era, ento, o som proveniente de um contador registrando a nica coisa que sabia fazer: a morte! Biron afastou-se suavemente, na ponta dos ps. Distante uns dois metros iluminou com o facho branco da lanterna o interior do armrio. L estava o contador, bem no canto, mas o fato de v-lo no lhe dizia nada. O aparelho estivera naquele lugar desde os seus dias de calouro. A maioria dos calouros provenientes dos mundos exteriores costumava adquirir um computador logo em sua primeira semana na Terra. Possuam uma vivida conscincia da radioatividade terrestre e compreendiam a necessidade de proteo. Esses contadores geralmente acabavam sendo revendidos no ano seguinte. Biron, porm, nunca se desfizera do seu. Agora sentia-se grato por essa sua deciso. Virou-se em direo escrivaninha onde costumava deixar o seu relgio de pulso enquanto dormia. O relgio l estava. Sua mo tremeu ligeiramente enquanto o levava luz da lanterna. A pulseira era de um plstico flexvel tranado, de uma brancura suave. A pulseira estava branca. Afastou um pouco e voltou a examin-la dos mais diferentes ngulos. Estava decididamente branca. Aquela pulseira fora outra compra de seus tempos de calouro. O material de que era feita tomava colorao azul em presena da radioatividade, e na Terra o azul era a cor da morte. Seria fcil penetrar descuidadamente numa regio de radioatividade durante o dia e ento se perder. O governo tomava precaues, cercando, dentro do possvel, essas regies e evidentemente ningum se aproximava das gigantescas reas de morte que se estendiam a quilmetros de distncia da cidade. A pulseira, entretanto, constitua proteo adicional. Se em alguma ocasio tomasse a colorao azul-plido, o seu portador deveria apresentar-se imediatamente a um hospital para tratamento. Quanto a isso no havia discusso possvel. O composto de que era feita apresentava exatamente a mesma sensibilidade quanto prpria pessoa e ento se poderia utilizar instrumentos fotoeltricos especiais capazes de medir a intensidade do azul de modo a determinar a gravidade do caso rapidamente e permitir o seu tratamento. Um azul real vivo era o fim. A cor nunca clarearia e o individuo no teria chance de recuperao. Nesse estgio no havia possibilidade ou esperana de cura. Restava apenas aguardar por um tempo que poderia variar de um dia a uma semana, sendo o

hospital absolutamente incapaz de qualquer iniciativa alm dos preparativos finais para a cremao. Pelo menos a sua pulseira continuava branca, e com isso Biron viu ceder ligeiramente o terror que invadira seus pensamentos. A cor da pulseira indicava que no havia muita radioatividade. Seria possvel que tudo no passasse de mais um ngulo da pilhria? Biron pensou um pouco e concluiu pela inviabilidade dessa hiptese. Ningum faria uma coisa dessas com o prximo. Pelo menos na Terra, onde a manipulao de material radioativo constitua crime grave. Essa questo de radioatividade era levada muito a srio na Terra e era preciso que assim fosse. Portanto ningum faria uma coisa dessas sem ter um motivo muito forte. Biron exps esse pensamento a si mesmo, com todo o cuidado e clareza, examinando friamente todos os ngulos. A razo forte, por exemplo, seria o desejo de matar. Mas, por qu? No via possibilidade de um motivo. Em seus vinte e trs anos de vida jamais fizera um inimigo srio. Pelo menos bastante srio a ponto de engendrar um assassinato. Passou a mo pelos seus cabelos curtos. Era uma linha de pensamento ridculo aquela, entretanto no havia como fugir. Voltou cautelosamente ao armrio. Teria que haver alguma coisa que estivesse emitindo radiao, algo que no se encontrasse ali quatro horas antes. E ele o avistou imediatamente. Era uma pequena caixa, que no teria mais de quinze centmetros em qualquer das dimenses. Biron reconheceu-a e seu lbio inferior tremeu ligeiramente. At ento no havia visto uma delas, tendo, porm, ouvido falar muito a respeito. Apanhou o contador e levou-o para o dormitrio. O murmrio diminuiu de intensidade, quase desaparecendo. Recomeou novamente quando a fina diviso de por onde penetrava a radiao, foi voltada em direo a caixa. No restava qualquer dvida: tratava-se de uma bomba radioativa. Naquele estgio as radiaes no eram por si s mortferas; constituam, to somente, um detonador. Em algum ponto do interior da caixa encontrava-se uma diminuta pilha atmica. Istopos artificiais aqueciam-na lentamente, fornecendo-lhe as partculas necessrias. Uma vez atingido o nvel desejado, a pilha entrava em reao. Geralmente no ocorria exploso, se bem que o calor da reao fosse o suficiente para transformar a caixa num monte de metal retorcido. O que acontecia era uma tremenda emisso de radiao letal, que exterminaria qualquer ser vivo num raio variando de dois metros a dez quilmetros, dependendo do tamanho da bomba. No havia como determinar o momento em que esse nvel seria atingido. Talvez levasse horas, ou talvez sucedesse imediatamente. Biron permaneceu ali em p, impotente, com a lanterna pendendo de suas mos midas. Meia hora antes, quando o visiofone o despertara, ele se encontrava em paz. Agora, porm, sabia que iria morrer. Biron no desejava morrer, entretanto estava desesperadamente encurralado, sem que houvesse lugar onde pudesse esconder-se. Conhecia perfeitamente a topografia do quarto. Esse estava localizado na extremidade do corredor, havendo assim apenas um cmodo vizinho de um dos lados e, evidentemente, acima e abaixo dele. Nada poderia fazer quanto ao quarto de cima. O do mesmo andar ficava separado do seu pelos respectivos banheiros adjacentes. Dificilmente se faria ouvir por ali. Assim, restava apenas o quarto abaixo do seu. No aposento havia algumas cadeiras dobrveis que serviam para acomodar possveis visitas. Apanhou uma delas. Essa fez um barulho forte e ntido ao atingir o cho. Biron virou-a de quina, e assim o som tornou-se mais forte ainda. Aguardava entre os golpes. Esperava acordar quem estivesse ali embaixo, e incomod-lo a ponto de lev-lo a reclamar a perturbao.

Subitamente percebeu um rudo abafado e deteve-se com a cadeira erguida acima da cabea, prestes a golpear o cho. O rudo, parecendo um grito abafado, repetiu-se. Provinha da direo da porta. Largou a cadeira e gritou em resposta. Comprimiu a orelha de encontro fresta entre a parede e a porta, mas o encaixe ali era bem feito e o som abafado. Ainda assim pde perceber que gritavam o seu nome. - Farrill! Farrill! - repetiu a voz diversas vezes. Dizia tambm algo mais. Talvez "Voc est a dentro? Ou ento "Voc est bem?" - Abram a porta! - urrou Biron em resposta. Repetiu essa exclamao umas trs ou quatro vezes. Sentia inund-lo um suor febril de impacincia. Naquele mesmo instante a bomba poderia estar chegando ao ponto de ecloso. Imaginou que o tivessem ouvido. Pelo menos o grito abafado que chegou aos seus ouvidos pareceu-lhe - "Cuidado, afaste-se". E depois uma frase que terminava com a palavra "explosivo". Biron compreendeu o que queriam dizer, e assim afastou-se rapidamente da porta. Seguiram-se uns rudos e estalidos e ele quase podia perceber as vibraes que percorriam o ar do quarto. E logo, com um rudo de dilaceramento, a porta foi lanada para o interior do quarto. A luz proveniente do corredor penetrou no aposento. Biron apressou-se em sair, com os braos abertos. - No entrem - gritou ele. - Pelo amor que tm a Terra, no entrem. A dentro h uma bomba de radiao. Encontrava-se diante de dois homens. Um deles era Jonti. O outro, o superintendente, Esbak esse estava apenas parcialmente vestido. - Uma bomba de radiao? - balbuciou Esbak. Jonti, porm, estava interessado em detalhes. - De que tamanho a bomba? O detonador continuava em sua mo, sendo esse o nico detalhe destoante de sua elegncia, at mesmo quela hora da noite. Biron s conseguia responder por meio de gestos. - Muito bem - disse Jonti. Em seguida, parecendo muito calmo diante da situao, voltou-se para o superintendente. - melhor que providencie a evacuao dos quartos desta rea e, caso tenha placas de chumbo aqui na universidade, faa com que sejam trazidas para c a fim de isolar o corredor. Eu no permitiria que ningum entrasse l at o amanhecer. Em seguida, voltou-se para Biron. - Provavelmente ser uma bomba com raio de trs e meio a cinco metros. Como ter ido parar a? - No sei - retrucou Biron, passando as costas da mo na testa. - Se no se incomodar, eu gostaria de me sentar em qualquer lugar. - Dizendo isso olhou para o pulso e s ento se deu conta de que o seu relgio ficara no quarto. Invadiu-o um impulso selvagem de voltar para apanh-lo. Agora havia movimento. Os estudantes eram retirados apressadamente de seus aposentos. - Venha comigo - disse Jonti. - Tambm acho que melhor voc se sentar. - O que foi que o trouxe ao meu quarto? - indagou Biron. - Claro que no quero parecer ingrato. - Eu procurei me comunicar com voc. Chamei-o e no tive resposta. Precisava v-lo. - Me ver? Para qu? - Biron falava cuidadosamente, num esforo para controlar sua respirao ofegante. - Para avis-lo de que a sua vida estava correndo perigo.

Biron riu ironicamente. - Isso coisa que j descobri. - Esta foi apenas a primeira tentativa. Eles voltaro carga. - E quem so eles? - No aqui, Farrill - retorquiu Jonti. - Para isso precisamos de um lugar discreto. Voc um homem marcado e agora eu tambm posso estar correndo perigo.

2 - A rede atravs do espao.

A SALA DE ESTAR dos estudantes estava mais vazia e escura. Alis, s quatro e meia da madrugada dificilmente seu aspecto poderia ser outro. Ainda assim Jonti hesitou um pouco e conservou a porta entreaberta para espreitar a possvel existncia de algum nas redondezas. - No - protestou suavemente. - Vamos deixar as luzes apagadas. No precisamos delas para conversar. - Para uma noite eu j tive a dose suficiente de escurido - resmungou Biron. - Vamos deixar a porta entreaberta. Biron no estava disposto a discutir. Deixou-se cair na cadeira mais prxima e ficou olhando para o retngulo de luz que, com o lento fechamento da porta, reduzia-se at acabar numa linha fina. Agora que o pior passara, Biron sentia calafrios. Jonti deteve a porta e colocou a sua pequena bengala sobre a rstia de luz no cho. - Fique olhando. Isto nos avisar se algum passar ou se a porta se mover. - Por favor - protestou Biron. - No estou no estado de esprito propcio conspirao. Caso no se importe, gostaria que me dissesse logo o que tem a me dizer. Sei que salvou a minha vida e provavelmente amanh j serei capaz de demonstrar a devida gratido. Agora, porm, s o que desejo uma bebida e um bom descanso. - Posso imaginar como se sente. Mas acontece que o descanso definitivo lhe foi poupado apenas provisoriamente. E eu gostaria que essa situao fosse mais slida. Sabe que conheo seu pai? A pergunta foi um tanto abrupta e Biron ergueu as sobrancelhas, trejeito esse que passou despercebido naquela escurido. - Ele nunca me disse que o conhecia - afirmou Biron. - E eu ficaria surpreso se o tivesse feito. Realmente ele me conhece pelo nome que uso aqui. A propsito, tem tido notcias recentes de seu pai? - Por que pergunta? - Porque ele est correndo grave perigo. - O qu?! - gritou Biron. A mo de Jonti procurou o ombro do outro homem e o pressionou firmemente. - Por favor. No eleve o tom de sua voz. S ento Biron percebeu que estavam sussurrando. Jonti voltou ao assunto. - Vou ser mais explicito. Seu pai foi preso. Voc percebe o significado disso? - No, evidentemente no percebo nada. Quem foi que o prendeu e quais as suas intenes em me contar tudo isso? - Biron sentia as suas tmporas latejarem. A hipnita e a proximidade da morte tornaram impossvel esquivar-se daquele almofadinha frio, sentado to prximo que seus sussurros se tornavam ntidos como gritos.

- Voc por acaso tem alguma idia das atividades de seu pai? Imagino que tenha. - Jonti continuava a sussurrar. - Se conhece o meu pai conforme diz, ento deve saber que ele o rancheiro de Widemos. Essa a sua atividade. - Acontece que eu j sei tudo o que voc poderia me dizer. Sei, por exemplo, que o seu pai tem conspirado contra os tiranianos. - Quanto a isso eu protesto - retorquiu Biron, com voz tensa. - O favor que me prestou esta noite no lhe d o direito de fazer esse tipo de afirmao quanto ao meu pai. - Escute, rapaz, voc tolamente evasivo e est me fazendo perder tempo. Ser que no percebe que a situao real sobrepe-se argumentao verbal? Vou ser claro: seu pai est em poder dos tiranianos. possvel, inclusive, que j esteja morto. - Eu no acredito em voc - protestou Biron, erguendo-se. - Bem, realmente no h outro motivo para voc confiar em mim alm do fato de eu estar arriscando a minha vida por voc. - Eu no estou em condies de saber a verdade. - Vamos acabar com isso, Jonti. No estou disposto a ouvir mistrios e no me agrada essa sua tentativa de... - Bem, tentativa de qu? - indagou Jonti, mudando ligeiramente de tom. - O que que eu tenho a ganhar dizendo-lhe estas coisas? Ser que posso lhe recordar o fato de que foi esse meu conhecimento das coisas, que voc teima em no aceitar, que me fez ver que estava em marcha uma tentativa para elimin-lo? Pense nos fatos, Farrill. - Comece tudo novamente e seja claro. Eu ouvirei. - Muito bem. Acredito que voc me reconhea como sendo um compatriota dos reinos nebulares, apesar de me fazer passar por um vegano. - Imaginei essa possibilidade por causa do seu sotaque. Isso, porm, no me parecia ter importncia. - Mas acontece que importante, amigo. Eu vim para c, pois, tal como seu pai, no gostava dos tiranianos. Eles vm oprimindo o nosso povo h cinqenta anos. E isso muito tempo. - Eu no sou poltico. A voz de Jonti reassumiu um tom spero. - Escute, eu no sou um dos agentes dos tiranianos tentando encrenc-lo. Estou lhe dizendo a verdade. H um ano eles me pegaram, assim como o fizeram com o seu pai agora. Acontece que eu consegui escapar e vim para a Terra, onde imaginei poder permanecer em segurana at que estivesse em condies de voltar. Isto tudo o que preciso lhe contar a meu respeito. - mais do que lhe pedi. Biron no conseguia alterar o tom pouco amigvel de sua voz. Jonti o influenciava desfavoravelmente em virtude do seu maneirismo e preciosidade. - Sei disso. Mas achei necessrio contar-lhe pelo menos isso, pois foi assim que conheci seu pai. Ele trabalhava comigo, ou melhor, eu trabalhava com ele. Ele me conhecia, mas no oficialmente. E isso dada a sua posio do mais alto cavalheiro da nobreza do planeta Nefelos. Est compreendendo? Biron sacudiu a cabea, gesto intil na escurido, e acrescentou: - Sim. - No necessrio nos aprofundarmos nisso. Minhas fontes de informao continuaram a manter-me a par dos acontecimentos, mesmo aqui, e assim eu soube que ele foi encarcerado. E isto fato concreto. E mesmo que fosse apenas suspeita, o atentado contra a sua vida seria prova suficiente. - Como assim? - Se os tiranianos tm o pai em seu poder, acha que deixariam o filho solta?

- Com que ento est tentando me dizer que foram os tiranianos que colocaram, a bomba de radiao no meu quarto? Isso impossvel. - Por que impossvel? Ser que no compreende a posio deles? Os tiranianos controlam cinqenta mundos. Sua situao de minoria na proporo de um para cem. Assim sendo, no basta apelar para a fora. Suas especialidades so os mtodos dbios, a intriga, os assassinatos. A rede que tecem atravs do espao muito extensa e sua trama muito fechada. Eu bem posso crer que se estenda pelos 5OO anos-luz que os separam da Terra. Biron ainda no se desvencilhara do seu pesadelo. De longe vinham os sons abafados das placas de chumbo sendo colocadas em seus lugares. No interior do seu quarto o contador ainda estaria murmurando. - Isso no faz sentido - disse ele por fim. - Eu volto para Nefelos esta semana. Eles saberiam disso. Por que iriam me matar aqui? Bastava que esperassem um pouco e me teriam em seu poder. - Biron sentia-se satisfeito em ter encontrado esse raciocnio e ansioso por acreditar em sua prpria lgica. Jonti aproximou-se mais ainda, e seu hlito forte arrepiou os cabelos nas tmporas de Biron. - Seu pai goza de popularidade. A sua morte, possibilidade que voc tem que encarar dado o seu aprisionamento pelos tiranianos, ser lamentada at mesmo pela raa escrava e amedrontada que eles tentam criar. Voc poderia incitar esse ressentimento na qualidade de novo rancheiro de Widemos. E execut-lo tambm redobraria o perigo para eles. No est em seus planos fabricarem mrtires. Entretanto, se voc morresse num acidente, num mundo longnquo, isso seria muito conveniente. - Eu no acredito em voc - insistiu Biron. Aquela se tornara a sua nica defesa. Jonti levantou-se, ajustando suas luvas finas. - Voc est indo longe demais, FarrilI. Desempenharia seu papel de forma mais convincente se no procurasse fingir essa total ignorncia. Sei que seu pai o tem protegido da realidade para o seu prprio bem. No entanto, eu duvido que voc pudesse manter-se assim completamente alheio influncia de suas idias. O seu dio pelos tiranianos no pode deixar de ser um reflexo das idias de seu pai. E voc no poder deixar de se preparar para enfrent-los. Biron deu de ombros. - Ele poder at mesmo aproveitar esse seu novo amadurecimento para coloc-lo em ao. Sua permanncia na Terra conveniente e no improvvel que esteja combinando a educao com alguma tarefa especfica. E para que falhasse tal tarefa os tiranianos poderiam estar dispostos at mesmo a extermin-lo. - Isso tudo me parece tolo melodrama. - mesmo? Est muito bem. Se a verdade no capaz de convenc-lo agora, o desenrolar dos acontecimentos se encarregar disso depois. Haver outros atentados contra a sua vida, e um deles ser coroado de xito. Deste momento em diante, Farrill, voc um homem morto. Biron ergueu os olhos. - Espere! Qual o seu interesse particular no caso? - Eu sou um patriota. Gostaria que a liberdade voltasse aos reinos e que esses tivessem governos de sua prpria escolha. - No disso que estou falando. Refiro-me ao seu interesse pessoal. No posso aceitar apenas o idealismo, pois no o creio capaz disso. Sinto muito ofend-lo. - As palavras de Biron martelavam obstinadamente. Jonti voltou a sentar-se. - Minhas terras foram confiscadas. Antes de meu exlio no era nada agradvel receber ordens daqueles anes. E, desde ento, tornou-se cada vez mais imperativo que

eu seja o homem que foi o meu av antes da chegada dos tiranianos. Isso lhe parecer razo prtica suficiente para desejar uma revoluo? Seu pai teria sido um lder dessa revoluo. Em sua falta, voc! - Eu? Eu tenho vinte e trs anos e sou ignorante em todo esse assunto. Voc poderia encontrar elementos melhores. - Sem dvida. Entretanto nenhum deles seria o filho do seu pai. Se o seu pai for morto, voc ser o rancheiro de Widemos. Nesse caso voc teria um valor inestimvel para mim, mesmo que s tivesse doze anos e fosse um idiota. Eu preciso de voc pelas mesmas razes por que os tiranianos desejam se ver livres de voc. E se a minha razo no for bastante convincente para voc, ento a deles muito menos. Havia uma bomba em seu quarto. Ela s poderia pretender dar cabo de voc. E quem mais poderia querer mat-lo? Jonti aguardou pacientemente at ouvir a resposta sussurrada do outro homem. - Mais ningum - disse por fim Biron. - No sei de ningum que pudesse querer matar-me. Ento o que disse a respeito de meu pai verdade! - verdade, sim. Enfrente a coisa como sendo um acidente de guerra. - E voc acha que isso poderia melhorar as coisas? Talvez algum dia ergam um monumento em sua memria. Um monumento com inscrio radiante que possa ser vista a quinze mil quilmetros de distncia no espao? - Sua voz tornava-se spera. - Acha que isso deveria deixar-me feliz? Jonti continuou esperando, mas Biron no disse mais nada. - Que pretende fazer? - indagou Jonti. - Vou voltar para casa. - Isso significa que voc continua sem compreender a sua situao. - J disse que vou voltar para casa. Que mais quer que eu faa? Se ele estiver vivo, vou tir-lo de l. E se estiver morto, bem, eu... eu... - Silncio! - A voz do homem mais velho soou fria e aborrecida. - Voc fica divagando feito criana. No pode ir para Nefelos. Ser que no v que no pode? Estarei me dirigindo a um beb ou a um jovem sensato? - Qual a sua sugesto? - resmungou Biron. - Voc conhece o superintendente de Rdia? - O amigo dos tiranianos? Conheo o homem. Sei quem . Qualquer pessoa nos reinos sabe quem ele . Hinrik V, superintendente de Rdia. - Voc j o conheceu pessoalmente? - No. - A que eu queria chegar. Se voc no o conhece pessoalmente, ento no sabe de quem se trata. um imbecil, Farrill. Literalmente um imbecil. Mas quando o rancho de Widemos for confiscado pelos tiranianos - e isso fatalmente suceder, tal como aconteceu com as minhas terras - ele ser entregue a Hinrik. l que os tiranianos se sentiro em segurana e para l que voc dever ir. - Porqu? - Porque Hinrik, ao menos, tem influncia junto aos tiranianos. Pelo menos tanta influncia quanto possvel a um fantoche. Ele poderia arranjar a sua reintegrao na posse. - No sei por que faria isso. Mais provavelmente ele me entregaria. - Est certo, mas ao menos voc estar preparado e talvez consiga evit-lo. Lembre-se de que o seu ttulo valioso e importante, sem ser contudo o suficiente. Nesse negcio de conspirao a pessoa deve ter, antes de tudo, senso prtico. Os homens se agregaro a voc por motivos sentimentais e em respeito ao seu nome. Entretanto para conserv-los voc necessitar de dinheiro. Biron pensou por um instante.

- Preciso de tempo para tomar uma deciso. - Voc no tem tempo. O seu tempo acabou no instante em que a bomba foi colocada em seu quarto. necessrio entrar em ao. Eu posso lhe dar uma carta de apresentao para Hinrik de Rdia. - Quer dizer que o conhece to bem assim? - Nunca deixa arrefecerem suas suspeitas, no ? Pois bem, certa vez eu chefiei uma misso junto corte de Hinrik na qualidade de representante do autarca de Lingane. Aquela mente dbil na certa no se lembrar de mim, mas ele no ousar demonstrar esse esquecimento. Isso lhe servir como apresentao, e da por diante voc poder improvisar. Pela manh estarei com a carta pronta sua disposio. H uma nave que parte para Rdia ao meio-dia. Tenho passagens para voc. Eu tambm vou partir, porm, por outra rota. No existe mais motivo para ficar. J concluiu tudo por aqui, no mesmo? - H ainda a distribuio dos diplomas. - Nada mais que um pedao de pergaminho. Isso tem muita importncia para voc? - Agora no mais. - Tem dinheiro? - O suficiente. - Isso bom. Dinheiro em demasia despertaria suspeitas. - A voz era spera Farrill! Biron procurou afastar o estupor que o envolvia. - O que ? - Volte agora para a companhia dos outros. No diga a ningum que vai partir. Deixe que os seus atos falem por si. Biron sacudiu a cabea em silncio. Bem fundo, nos recessos da sua mente, havia algo que lhe dizia que a sua misso no fora cumprida em sua totalidade e que dessa forma ele no correspondera s aspiraes de seu pai, agora moribundo. Sentiu uma amargura intil invadi-lo. Poderiam ter-lhe dado maiores esclarecimentos. Deveria ter compartilhado dos perigos. No deveriam ter permitido que agisse em completa ignorncia. E agora que estava a par da verdade, ou pelo menos sabia um pouco mais quanto extenso do papel de seu pai na conspirao, aquele documento que deveria ter obtido nos arquivos da Terra assumia importncia ainda maior. Entretanto no havia mais tempo. No havia tempo para conseguir o documento. No havia tempo sequer para pensar no assunto. No havia tempo para salvar seu pai. Talvez no houvesse tempo nem para viver. - Farei o que disse, Jonti - falou Biron. Sander Jonti percorreu com um olhar rpido o campus da universidade ao deter-se nos degraus do alojamento. Sem sombra de dvida no havia apreenso em seus olhos. Enquanto percorria o caminho pavimentado de tijolos, por entre a atmosfera pseudo-rstica caracterstica de todos os campus urbanos desde a antiguidade, avistou as luzes da nica rua importante da cidade brilhando bem adiante. Mais adiante, imperceptvel durante o dia, mas perfeitamente visvel quela hora, estendia-se o horizonte azul eternamente radioativo, testemunha muda das guerras pr-histricas. Jonti contemplou o cu por um momento. Haviam decorrido mais de cinqenta anos desde a chegada dos tiranianos, pondo um fim sbito s existncias independentes de duas dzias de unidades polticas espalhadas nas profundezas alm da nebulosa. E ento, sbita e prematuramente, foram envolvidas pela paz do estrangulamento em que agora se encontravam.

A tempestade que as varrera fora algo de que ainda no estavam recuperados. Restara to-somente uma espcie de estremecimento que futilmente agitava, de quando em quando, um mundo aqui, outro acol. Para organizar tais estremecimentos, para reuni-los num s levantamento bem cronometrado, seria tarefa longa e difcil. Pois bem, ele j ficara o tempo suficiente veraneando ali na Terra. Era chegada a hora de voltar. Os outros, em seu mundo, estariam provavelmente quela hora tentando entrar em contato com ele em seu quarto. Jonti acelerou o passo. Captou a onda assim que entrou no quarto. Tratava-se de uma onda particular, cuja invulnerabilidade ainda no despertava quaisquer temores. No era preciso recorrer a nenhum receptor convencional, dispositivo metlico ou fios que captassem os fracos impulsos dos eltrons que navegavam atravs do superespao, provenientes de um mundo localizado distncia de 1.000 anos-luz. O prprio espao era polarizado naquele aposento, pronto para a recepo. Sua consistncia enquadrava-se ao caso. A nica maneira de detectar tal polarizao era recebendo-a. E naquele determinado volume de espao apenas a sua prpria mente poderia agir como receptor, uma vez que somente as caractersticas eltricas do seu sistema de clulas nervosas seriam capazes de reagir s vibraes da onda transportadora daquelas mensagens. Portanto a mensagem era to particular quanto as caractersticas nicas de suas prprias ondas cerebrais. Em todo o universo, com os seus quatrilhes de seres humanos, a probabilidade de uma coincidncia que fizesse outro indivduo receber a mensagem seria de um para um nmero de vinte algarismos. O crebro de Jonti reagia ao chamado que se aproximava como que num gemido atravs da interminvel incompreensibilidade vazia do superespao. - Chamando... chamando... A tarefa de emisso no era to simples quanto a de recepo. Havia necessidade de um dispositivo mecnico para estabelecer a onda altamente especifica destinada a estabelecer o contato com o receptor situado alm da nebulosa. Esse dispositivo ficava contido num boto ornamental em seu ombro direito. Tornava-se automaticamente ativado assim que ele penetrava em seu volume de polarizao espacial, e, da em diante, bastava que pensasse de forma intencional e concentrada. - Aqui estou eu! - No havia necessidade de uma identificao mais especifica. A repetio montona do sinal de chamada cessou, transformando-se agora em palavras que se formavam em sua mente. - Saudamo-lo, senhor. Widemos foi executado. A notcia, evidentemente, ainda no do conhecimento pblico. - Isso no me surpreende. Algum mais foi envolvido? - No, senhor. O rancheiro no fez quaisquer declaraes em tempo algum. Um homem leal e corajoso. - Sim, mas evidente que preciso mais que bravura e lealdade. Ou do contrrio ele no teria sido pego. Um pouco de covardia poderia lhe ter sido til. No importa. Falei com o seu filho, o novo rancheiro, que j teve um primeiro contato com a morte. Ele ser posto em ao. - Poderia indagar de que maneira, senhor? - prefervel deixar que os prprios acontecimentos respondam sua pergunta. Evidentemente no posso prever as conseqncias neste estgio to prematuro. Amanh ele partir ao encontro de Hinrik de Rdia. - Hinrik! Mas o jovem estar correndo terrvel risco. Ele est a par que. . - Eu disse a ele tanto quanto me era possvel - interrompeu Jonti. - No podemos confiar nele demasiadamente, pelo menos at que seja posto prova. Nas circunstncias atuais s podemos consider-lo como sendo um homem a ser arriscado como se fosse

qualquer outro. Ele sacrificvel, perfeitamente sacrificvel. No me chame mais aqui, pois eu vou deixar a Terra. E ento, fazendo um gesto decidido, Jonti cortou mentalmente a ligao. Com calma e ponderao reviu os acontecimentos do dia e da noite, meditando sobre cada um deles cuidadosamente. Depois sorriu suavemente. Tudo se arranjara perfeitamente e da por diante a comdia se desenrolaria a contento. Nada fora deixado ao acaso. ***** 3 - O acaso e o relgio de pulso. A PRIMEIRA HORA decorrida desde o momento em que uma nave espacial liberta-se do cativeiro planetrio extremamente prosaica. Inicia-se com a confuso da partida, a qual, em essncia, dever assemelhar-se grandemente quela que ter acompanhado o lanamento do primeiro tronco oco num rio primitivo. Cada qual procura suas acomodaes. Os encarregados ocupam-se da bagagem. H um primeiro momento de ntida estranheza e sentimo-nos envolvidos por uma atividade sem nexo. Ouvem-se as saudaes de ltima hora em voz alta, seguidas pelo rudo surdo das fechaduras a vcuo e o zunir do ar quando essas so embutidas automaticamente, qual brocas gigantescas, procedendo-se ao fechamento estanque da nave. Segue-se um silncio esmagador e as luzes vermelhas comeam a piscar em cada um dos aposentos: - Ajustar trajes de acelerao... Ajustar trajes de acelerao... Ajustar trajes de acelerao... Os comissrios percorrem os corredores, batendo rapidamente em cada uma das portas e abrindo-as em seguida. - Queiram desculpar. Todos os trajes vestidos. As pessoas lutam com aqueles trajes frios, justos, desconfortveis, os quais, no entanto, devido ao seu sistema hidrulico, possibilitam a absoro das incmodas presses por ocasio da partida. Ao longe se percebe o estrondo abafado dos motores atmicos utilizando agora a baixa potncia para manobras atmosfricas. Segue-se um retroceder de encontro ao leo de baixa resistncia do traje. A pessoa sente-se recuar quase que indefinidamente para trs e ento muito lentamente para frente com o decrscimo da acelerao. Conseguindo resistir nessa fase nusea, provavelmente estar a salvo do mal do espao em carter definitivo. Durante as trs primeiras horas de vo no era permitido o acesso dos passageiros sala panormica. Agora, com a atmosfera deixada para trs, havia uma longa fila aguardando a abertura das portas duplas, o que seria feito a qualquer instante. Encontravam-se ali no s os indefectveis egressos dos planetrios (em outras palavras, aqueles que nunca antes tinham estado no espao), como tambm uma boa proporo de viajantes mais experimentados. Afinal de contas, o panorama da Terra vista do espao era uma atrao turstica que no se podia desprezar. A sala panormica constitua uma espcie de bolha na "epiderme" da nave. Uma bolha de plstico transparente, duro como ao, com cerca de 60 cm de espessura na sua superfcie curva. A plpebra retrtil de ao indico, que a protegia das intempries e das

partculas de poeira da atmosfera, fora recolhida. Os rostos, acima da balaustrada, eram iluminados pelo brilho da Terra. E isso porque a Terra l estava suspensa, qual balo gigantesco e brilhante, manchado de laranja, branco e azul. O hemisfrio visvel estava quase totalmente iluminado pelo Sol; os continentes por entre as nuvens de um laranja desrtico, com linhas verdes finas e dispersas. Os mares, azuis, destacavam-se nitidamente do negro do espao no ponto em que tocavam o horizonte. E ao redor, num cu negro sem poeira, encontravam-se as estrelas. Os que contemplavam a cena aguardavam pacientemente. O que lhes interessava no era o hemisfrio iluminado. Surgia agora no campo visual a calota polar, de um branco ofuscante, enquanto a nave mantinha uma ligeira acelerao lateral, quase imperceptvel, que a elevava para fora da eclptica. Lentamente a sombra da noite invadiu o globo, e o gigantesco conjunto Eursia-frica surgiu majestosamente, com a sua poro norte voltada para "baixo". Seu solo morto e insalubre ocultava todo o seu horror sob um cintilar de jias. A radioatividade daquele solo era um vasto oceano de azul iridiscente, constituindo brilhantes e estranhas guirlandas, as quais, de certa forma, permitiam perceber a disposio da queda das bombas nucleares. Tudo aquilo acontecera toda uma gerao antes que o sistema defensivo terrestre contra exploses nucleares fosse desenvolvido com a finalidade de evitar que algum outro mundo viesse a suicidar-se pelos mesmos meios. Os olhos permaneceram atentos at que, com o passar das horas, a Terra se transformasse em apenas pequena metade de uma moeda, mergulhada num negror infinito. Entre os espectadores encontrava-se Biron Farrill. Sentava-se sozinho, na fila da frente, os braos pousados sobre a balaustrada e os olhos perdidos e pensativos. No fora essa a maneira por ele idealizada para deixar a Terra. Procedia de maneira errada, estava na nave errada, tomando destino errado. Seu antebrao bronzeado roou o queixo spero e ele sentiu uma certa culpa por no ter se barbeado naquela manh. Dentro de pouco, porm, voltaria ao seu aposento e ento corrigiria essa falha. Por enquanto, hesitava em deixar o lugar. Ali havia gente, enquanto em seu quarto estaria sozinho. Ou talvez fosse essa justamente uma boa razo para ir embora? No lhe agradava nada aquele novo sentimento de estar sendo caado, de no ter amigos com quem contar. Toda a amizade o abandonara. Desaparecera no exato instante em que fora acordado pelo chamado telefnico menos de vinte e quatro horas antes. At mesmo no alojamento se tornara um estorvo. O velho Esbak o abordara quando de volta da conversa mantida com Jonti na sala de estar dos estudantes. Esbak parecia confuso e sua voz soava estridente. - Sr. Farrill, eu o estive procurando. Foi um acidente extremamente desagradvel. No posso compreender como aconteceu. O senhor tem alguma explicao? - No - respondera Farrill quase num grito. - No tenho. Quando que posso voltar ao meu quarto e retirar as minhas coisas? - Creio que certamente pela manh. Acabamos de transferir o equipamento para a sala de teste. No h mais qualquer vestgio de radioatividade acima do nvel normal. O senhor teve sorte em escapar. Foi por pouco. - Sim, sim...! Agora se no se importa eu gostaria de ir descansar. - Claro. Queira usar o meu quarto at de manh, quando ento providenciarei para que lhe sejam fornecidas novas acomodaes para os poucos dias que ainda lhe restam entre ns. A propsito, Sr. Farrill, se no se importa, h mais uma coisa.

O sujeito estava sendo excessivamente delicado. Biron quase podia ouvir as cascas de ovos cedendo sob os seus ps. - Que outra coisa? - indagou Biron, fatigado. - Sabe se h algum que pudesse ter interesse em... digamos, em lhe fazer mal? - A este ponto? Claro que no! - Ento quais so os seus planos? claro que as autoridades escolares ficariam muito aborrecidas caso houvesse publicidade em torno do assunto em conseqncia do incidente. Como aquele sujeito insistia em chamar aquilo de "incidente"! - Estou compreendendo - falou Biron secamente. - no precisa se preocupar. No estou interessado em fazer investigaes ou chamar a policia. Logo vou deixar a Terra e assim no quero ver meus planos perturbados. No vou apresentar nenhuma queixa. Afinal de contas, ainda estou vivo. O alivio de Esbak era quase chocante. Aquilo era tudo o que desejavam dele. Nada de episdios desagradveis. Tudo no passara de um incidente que deveria ser esquecido. s sete da manh voltou mais uma vez ao seu velho quarto. Esse estava quieto e no havia qualquer murmrio no armrio. A bomba no mais se encontrava por ali e o contador tambm desaparecera. Provavelmente os dois teriam sido atirados ao lago por Esbak. Isso seria destruio de prova, sendo problema da escola e no seu. Atirou seus pertences em malas e telefonou pedindo que lhe arranjassem outro quarto. As luzes haviam voltado a funcionar normalmente, o mesmo acontecendo com o visiofone. O nico sinal remanescente do acidente noturno era a porta retorcida com a fechadura destruda. Deram-lhe outro quarto. Com isso Biron tornara patente a sua inteno de permanecer, para o caso de algum estar escuta. Em seguida, utilizando o telefone do corredor, chamou um txi areo. Acreditava que no fora visto por ningum. A escola que ficasse quebrando a cabea o quanto quisesse em relao ao seu desaparecimento. Por um instante avistou Jonti no espaoporto. O encontro dos dois homens limitouse a um rpido olhar. Jonti no disse nada e nem sequer deu a perceber que o reconhecera. Entretanto, depois de passar por ele, Biron notou que tinha em sua mo um pequeno globo negro e liso, o qual era uma cpsula pessoal, alm de uma passagem para Rdia. Dedicou um momento cpsula pessoal. No estava selada. Mais tarde leu a mensagem em seu quarto. Tratava-se de uma apresentao simples, com um mnimo de fraseado. Os pensamentos de Biron detiveram-se momentaneamente na figura de Sander Jonti enquanto a imagem da Terra reduzia com o passar do tempo. Seu conhecimento com aquele homem fora muito superficial at o momento em que esse surgira to devastadoramente em sua vida, primeiramente para salv-lo e em seguida para coloc-lo numa rota nova e desconhecida. Biron o conhecia de nome, cumprimentavam-se e, por vezes, trocavam gentilezas formais. Isso, porm, era tudo. Aquele homem no lhe agradava. No gostava de sua frieza, do seu exagerado esmero no vestir, de sua personalidade maneirosa. Tudo isso, porm, no tinha nada a ver com o presente caso. Biron suspirou, passando uma mo inquieta pelos cabelos cortados escovinha. Percebeu, de sbito, que na realidade ansiava pela presena de Jonti. Pelo menos o homem estava a par dos acontecimentos. Soubera o que fazer no momento adequado, sabendo igualmente o que Biron deveria fazer e levando-o a faz-lo. Agora, porm, Biron estava s e sentia-se muito jovem, muito desamparado, sem amigos e quase assustado. Durante todo esse tempo ele evitara, propositadamente, pensar em seu pai. Fazlo no lhe ajudaria em nada. - Sr. Malaine?

O nome foi repetido duas ou trs vezes at que Biron reagisse ao toque respeitoso em seu ombro e olhasse para cima,. - Sr. Malaine - repetiu mais uma vez o mensageiro rob enquanto Biron olhava-o inexpressivamente. Escoaram-se uns cinco segundos at que se lembrasse de que aquele era o seu nome provisrio. Esse tinha sido escrito levemente a lpis no bilhete que Jonti lhe passara. Uma cabina fora reservada sob esse nome. - Sim, o que ? Sou Malaine. A voz do mensageiro era acompanhada de um leve assobio enquanto transmitia a mensagem. - Solicitaram-me que lhe informasse que sua cabina foi mudada e que a sua bagagem j foi transferida. Se procurar o comissrio de bordo, esse lhe entregar sua nova chave. Esperamos que a mudana no lhe traga qualquer inconveniente. - De que se trata?! - exclamou Biron, girando em seu assento, enquanto diversos passageiros do grupo que comeava a escassear olharam-no com a ateno despertada pelo tom explosivo. - Que idia essa? Evidentemente no adiantava argumentar com uma mquina que to-somente desempenhara a sua funo. O mensageiro inclinou respeitosamente sua cabea metlica, acompanhando o gesto de uma gentil imitao de um sorriso, humano, e partiu. Biron deixou a sala panormica, indo falar com o oficial de bordo postado porta com mais energia do que planejara. - Escute aqui, eu desejo ver o comandante. O oficial no pareceu surpreso. - muito importante, senhor? - Claro que . Acabei de ter mudada a minha cabina sem a minha permisso e gostaria de saber o significado disso tudo. At mesmo nesse momento Biron sentia que a sua ira era desproporcional com a causa, mas na verdade aquilo resultava de um acmulo de ressentimentos. Quase fora morto, foraram-no a deixar a Terra como se fosse um criminoso covarde, estava sendo levado para local ignorado onde no sabia o que fazer; e ainda por cima agora o estavam empurrando de um lado para outro pela nave afora. Aquilo era o fim. E, no entanto, durante todo o tempo, tinha a desagradvel sensao de que, se estivesse em seu lugar, Jonti procederia de forma diversa, talvez mais sabiamente. Bem, afinal ele no era Jonti. - Vou chamar o comissrio - disse o oficial. - Eu quero ver o comandante - insistiu Biron. - Est bem, se isso o que deseja. - Depois de um breve dilogo atravs do dispositivo de comunicao que se encontrava em sua lapela, ele informou polidamente. O senhor ser chamado. Queira aguardar. O Comandante Hirm Gordeil era um homem um tanto baixo e atarracado. A chegada de Biron, levantou-se com delicadeza, debruando-se sobre a escrivaninha para apertar sua mo. - Sinto muito termos sido obrigados a perturb-lo, Sr. Malaine. Seu rosto era retangular, com cabelos cinza-ao, um bigode curto e bem tratado de um tom ligeiramente mais escuro, e um sorriso espontneo. - isso mesmo. Eu tinha reserva da cabina e acho que nem mesmo o senhor tinha o direito de fazer a alterao sem a minha permisso. - Tem razo, Sr. Malaine. Entretanto queira compreender que se tratava de uma emergncia. Uma personalidade importante, chegada na ltima hora, insistiu para que fosse colocada em cabina mais prxima ao centro de gravidade da nave. Trata-se de pessoa que j teve problemas cardacos e assim era muito importante para ele que a gravidade da nave fosse a mais baixa possvel. Como v no tnhamos alternativa.

- Est certo. Mas por que escolher logo a mim para essa troca? - Tinha que ser algum. O senhor est viajando s. Alm disso jovem e conclumos que no teria problemas com a gravidade um pouco mais alta.- Seus olhos percorriam automaticamente toda a extenso da musculatura rija do corpo de Biron. Alm disso, ver que a sua nova cabina at mais confortvel que a anterior. Acredite que o senhor no perdeu nada com a troca. Nada mesmo. O comandante levantou-se atrs de sua mesa. - Permita que eu mesmo lhe mostre as suas novas acomodaes. Biron teve dificuldade em insistir em seu ressentimento. Tudo aquilo que lhe parecera razovel, de repente voltava a no ter sentido. - Posso contar com a sua companhia minha mesa no jantar de amanh noite? O nosso primeiro salto est marcado para essa hora - disse o comandante ao deixar o aposento. - Obrigado. Me sentirei honrado. Entretanto aquele convite pareceu-lhe estranho. Evidentemente o comandante estava tentando apazigu-lo, mas mesmo assim o mtodo era mais forte do que seria necessrio. A mesa do comandante era comprida, tomando toda uma parede do salo. Biron viu-se colocado prximo ao centro, numa precedncia fora de propsito sobre os demais. No entanto no havia dvida: l estava o carto com o seu nome. O comissrio fora firme, no havia engano. Biron no era especialmente modesto. Na qualidade de filho do rancheiro de Widemos essa particularidade era perfeitamente desnecessria. Porm, na qualidade de Biron Malaine, um cidado comum, via-se tratado de forma inusitada para cidados comuns. Uma coisa era a pura verdade: o comandante tivera absoluta razo quanto cabina. Essa era realmente mais luxuosa. A anterior correspondia exatamente ao que se lia no bilhete: uma cabina simples, de segunda classe, enquanto que a nova era constituda de um aposento duplo, de primeira classe. Havia um banheiro anexo, particular, com boxe e secagem a ar. Situava-se prxima aos alojamentos dos oficiais, e a presena de uniformes era quase excessiva. O almoo lhe fora trazido em baixela de prata. Pouco antes do jantar, aparecera inesperadamente um barbeiro. Talvez tudo isso fosse natural ao se viajar numa nave espacial de luxo, em primeira classe, sendo porm excessivo para Biron Malaine. Era bom demais, pois na hora em que o barbeiro chegara Biron tinha acabado de voltar de um passeio vespertino que o levara atravs dos corredores por um caminho propositalmente tortuoso. Por todo canto havia tripulantes - delicados e solcitos. Acabara conseguindo livrar-se deles, indo alcanar o 14OD, seu primeiro quarto, aquele em que nunca chegara a dormir. Parou para acender um cigarro, e nesse espao de tempo o nico passageiro visvel desapareceu num dos corredores. Biron tocou rapidamente o sinal luminoso, sem que houvesse qualquer resposta. Bem, a velha chave ainda continuava em seu poder. Certamente fora uma distrao no a terem pedido de volta. Inseriu o longo metal em seu orifcio e o padro de opacidade plmbea dentro da bainha de alumnio ativou o diminuto fototubo. A porta abriu-se e ele deu um passo para o interior do aposento. Aquilo era o que lhe bastava. Saiu novamente e a porta fechou-se automaticamente s suas costas. Instantaneamente ele ficara sabendo de uma coisa. Seu antigo aposento no estava ocupado, nem por um cidado importante, dono de um corao fraco, nem por mais ningum. A cama e os demais mveis estavam muito bem

arrumados, no havia malas, ou artigos de toillete vista. Faltava at mesmo o simples ar de ocupao. Portanto, todo o luxo com que o estavam cercando servira to-somente para evitar que insistisse no sentido de voltar antiga cabina. Subornavam-no para que ficasse quieto e longe dela. Por qu? Estariam interessados no aposento ou nele prprio? E agora l estava ele sentado mesa do comandante, com aquelas perguntas sem respostas. Levantou-se cortesmente, com os demais, chegada do comandante, que subiu os degraus do estrado, onde se encontrava a longa mesa, e ocupou o lugar que lhe era destinado. Por que teriam feito a mudana? Havia msica a bordo, e as paredes que separavam o salo da sala panormica haviam sido recolhidas. As luzes estavam baixas e mescladas de um vermelhoalaranjado. A fase pior do mal do espao, que poderia ocorrer aps a acelerao original, ou em conseqncia da primeira exposio s pequenas variaes de gravidade entre as diversas partes da nave, j ficara para trs. O salo estava cheio. O comandante inclinou-se ligeiramente para diante e dirigiu-se a Biron: - Boa noite, Sr. Malaine. Que tal a sua nova cabina? - Eu diria que quase excessivamente boa, senhor. Um tanto luxuosa demais para o meu habitual modo de vida. - Biron pronunciou essas palavras num tom montono e pareceu-lhe vislumbrar um ligeiro mal-estar percorrendo as feies do comandante. Na hora da sobremesa a pelcula de revestimento da bolha de vidro da sala panormica deslizou suavemente para o seu lugar e as luzes baixaram, quase desaparecendo. No se via o Sol, a Terra ou qualquer outro planeta naquela tela grande e escura. Estavam contemplando a Via-lctea, a viso longitudinal das lentes galcticas, e essa descrevia uma trilha diagonal e luminosa por entre as estrelas ntidas e brilhantes. Automaticamente o ritmo da conversa diminuiu. As cadeiras foram mudadas de posio e todos encararam as estrelas. Os convivas do jantar transformaram-se em platia, e a msica em apenas um fraco murmrio. A voz soou ntida e bem equilibrada atravs do alto-falante, quebrando o silncio recm-obtido. - Senhoras e senhores! Estamos prontos para o nosso primeiro salto. Imagino que a maioria dos senhores deve saber, pelo menos teoricamente, o que significa um salto. Entretanto muitos entre os senhores, mais da metade, jamais participaram de tal experincia. a esses ltimos, principalmente, que gostaria de me dirigir. O salto exatamente aquilo que o seu nome indica. No sistema espao-tempo propriamente dito torna-se impossvel viajar mais rpido do que a velocidade da luz. Trata-se de lei natural, descoberta pela primeira vez por um dos antigos, talvez o tradicional Einstein, se bem que tantas coisas sejam a ele atribudas. E at mesmo utilizando a velocidade da luz levaramos tempo, em termos de tempo estvel, para alcanarmos as estrelas. Fez uma pausa e prosseguiu: - Assim sendo, fazemos com que o sistema espao-tempo penetre nos domnios pouco conhecidos do biperespao, onde tempo e distncia no tm qualquer significado. como viajar atravs de um istmo estreito para passar de um oceano a outro em vez de permanecer no mar e contornar um continente a fim de percorrer a mesma distncia. Evidentemente tornam-se necessrias enormes quantidades de energia para que possamos penetrar no "espao dentro do espao" como alguns costumam cham-lo. Igualmente so necessrias grandes quantidades de clculo engenhoso e exato para que seja assegurada a reentrada no espao e tempo convencional no ponto certo. O resultado do desgaste dessa energia e inteligncia faz com que imensas distncias possam ser percorridas em tempo zero. Somente com o salto torna-se possvel a viagem interestelar. Correu os olhos pelos presentes e concluiu:

- O salto que estamos prestes a executar ocorrer aproximadamente dentro de dez minutos. Os senhores sero prevenidos. Nada acontece a no ser uma sensao de desconforto insignificante e momentnea. Espero, portanto, que todos se conservem calmos. Obrigado. As luzes da nave extinguiram-se completamente, permanecendo apenas visveis as estrelas. Pareceu escoar-se um tempo muito longo at que um aviso lacnico fosse ouvido. - O salto ocorrer exatamente dentro de um minuto. - Em seguida a mesma voz procedeu contagem regressiva dos segundos - Cinqenta... quarenta... trinta... vinte... dez... cinco... ... dois... um... Foi como se ocorresse uma descontinuidade momentnea na existncia, um impacto que atingisse to-somente as profundezas dos ossos humanos. Naquela incomensurvel frao de segundo haviam-se escoado cem anos-luz e a nave, que antes se encontrava nos limites do sistema solar, mergulhava agora nas profundezas do espao interestelar. Junto a Biron algum exclamou com voz trmula: - Olhem s as estrelas! Num instante o murmrio invadiu toda a grande sala, passando de mesa em mesa. - As estrelas! Vejam s! Naquela mesma incomensurvel frao de segundo o aspecto das estrelas modificara-se radicalmente. O centro da Grande Galxia, que se estendia por trinta mil anos-luz de ponta a ponta, estava agora mais prximo e as estrelas haviam aumentado em nmero, tornando-se mais tensas. Tomavam conta daquele vcuo de veludo negro sob a forma de poeira fina, ofuscando o brilho ocasional de estrelas prximas. Biron, sem querer, recordou o inicio de um poema que ele mesmo escrevera certa vez, na poca sentimental dos seus 19 anos, por ocasio do seu primeiro vo espacial: aquele que o levara pela primeira vez a Terra, que ele agora deixava para trs. Seus lbios moveram-se silenciosamente: "As estrelas, qual poeira, envolvem-me Em vivida nvoa de luz E parece-me que avisto todo o espao Num s amplo golpe de vista." Foi nesse momento que as luzes voltaram a acender-se e os pensamentos de Biron deixaram o espao to subitamente quanto o haviam penetrado. Encontrava-se novamente no salo de uma grande nave espacial, participando de um jantar que lentamente chegava ao fim, enquanto as conversas voltavam a atingir um nvel prosaico. Olhou para o relgio de pulso, desviando em seguida o olhar, e ento, lentamente, focalizou o relgio mais uma vez. Ficou contemplando-o por um longo minuto. Era o relgio que ele deixara em seu dormitrio naquela noite. Suportara a radiao mortal da bomba e ele o recolhera com o resto dos seus pertences na manh seguinte. Quantas vezes o olhara desde ento? Quantas vezes teria anotado mentalmente as horas sem notar qualquer das outras informaes que ele lhe fornecia gritantemente? Pois a pulseira plstica estava branca e no azul. Estava branca! Lentamente todos os acontecimentos daquela noite comearam a encaixar-se. extraordinrio como um simples fato capaz de desfazer a confuso de todos os demais. Biron levantou-se abruptamente, pedindo licena num murmrio. Tratava-se certamente de uma quebra da etiqueta o fato de deixar a mesa antes do comandante. Entretanto, naquele momento isso pouco lhe importava.

Dirigiu-se apressadamente ao seu camarote, subindo em passo rpido as rampas, sem esperar pelos elevadores antigravitacionais. Ao entrar trancou a porta atrs de si e examinou rapidamente o banheiro e os armrios embutidos. No que imaginasse encontrar algum. O que pretendiam fazer com ele certamente j o teriam feito horas antes. Examinou meticulosamente sua bagagem. O servio fora feito com capricho. No deixaram, quase, vestgios nem da entrada nem da sada. Haviam levado seus documentos de identidade, um pacote de cartas do seu pai, e at mesmo a sua apresentao capsular para Hinrik de Rdia. Era essa, portanto, a razo de sua transferncia para outro camarote. No lhes interessava nem o novo aposento, nem o anterior. Simplesmente interessava-lhes a mudana em si. Por quase uma hora teriam em seu poder, e legalmente - imaginem s -, a sua bagagem, podendo servir-se dela para os seus propsitos. Biron deixou-se cair na cama de casal e comeou a pensar furiosamente, sem que isso parecesse surtir qualquer resultado. A armadilha funcionara com perfeio. Tudo fora previsto. No fosse o acaso imprevisvel de ter ele esquecido o seu relgio de pulso no dormitrio naquela noite, e jamais perceberia a rede de trama fina que os tiranianos haviam estendido atravs do espao. O sinal da porta soou suavemente. - Entre - disse Biron. Era o comissrio, indagando solcito: - O comandante deseja saber se poder lhe ser til em alguma coisa. O senhor parecia no estar se sentindo bem ao deixar a mesa. - Estou bem - retrucou Biron. Como o vigiavam! E naquele momento compreendeu que no havia sada possvel e que a nave o estava conduzindo, de maneira suave porm firme, para a morte. ***** 4 - Livre? SANDER JONTI fixou friamente os olhos do outro. - Voc diz que desapareceu? Rizzett passou a mo pelo rosto corado. - Algo desapareceu. No sei bem o que . Poderia ter sido o documento que estamos procurando. A seu respeito s sabemos que datado de poca situada entre os sculos XV e XXI do calendrio terrestre primitivo. E tambm que perigoso. - H alguma razo concreta para concluir que o documento desaparecido seja exatamente aquele que procuramos? - Apenas raciocnio circunstancial. O documento era cuidadosamente guardado pelo governo da Terra. - Isso no quer dizer nada. Um terrqueo sempre cuidar de qualquer documento que se relacione com o passado pr-galctico. Isso se deve sua ridcula adorao pelas tradies. - Mas esse foi roubado, e no entanto eles nunca divulgaram o fato. Para que guardariam uma caixa vazia? - Imagino que antes fariam isso do que admitir que uma relquia sagrada foi roubada. E no entanto no posso crer que o jovem Farrill o tenha conseguido. Pensei que voc o estivesse mantendo sob observao. O outro sorriu.

- Ele no conseguiu o documento. - Como que voc sabe? O agente de Jonti explodiu ento, calmamente, a sua mina terrestre. - Simplesmente porque o documento j est desaparecido h vinte anos. - O qu?! - No foi mais visto nesses ltimos vinte anos. - Ento no pode ser o mesmo. H menos de seis meses que o rancheiro soube de sua existncia. - Ento algum passou a sua frente, antecipando-se dezenove anos e meio. Jonti ficou pensativo. - No importa - disse por fim. - No pode ter importncia. - Como assim? - Acontece que eu j estou aqui na Terra h meses. Antes que eu viesse era possvel crer que houvesse informaes valiosas no planeta. Mas veja as coisas agora. Quando a Terra era o nico planeta habitado da Galxia, tratava-se de um lugar primitivo sob o ponto de vista militar. A nica arma, digna de nota que inventaram era uma bomba de reao nuclear, grosseira e ineficiente. - Dizendo isso Jonti fez um gesto indicando com o brao o horizonte azul que brilhava em sua radioatividade doentia alm do concreto espesso do aposento. - Tudo isso - continuou ele - assume um aspecto ntido para mim na qualidade de residente temporrio. ridculo admitir que seja possvel aprender alguma coisa junto a uma sociedade em tal nvel de tecnologia militar. muito bom supor que haja artes e cincias perdidas, e h sempre aqueles que cultuam o primitivismo, fazendo toda sorte de suposies e afirmaes ridculas quanto s civilizaes pr-histricas da Terra. - E no entanto o rancheiro era um homem sbio - atalhou Rizzett. - Ele nos disse, especificamente, que se tratava do documento mais perigoso de que tinha conhecimento. Lembra-se do que ele disse? Eu sou capaz de at mesmo repetir as suas palavras: "O seu contedo significa a morte para os tiranianos e tambm a morte para ns. Entretanto significaria, em ltima anlise, a vida para a Galxia." - O rancheiro, como qualquer ser humano, poderia estar enganado. - Mas, senhor, pense que ns no temos a mnima idia quanto natureza de tal documento. Ele poderia, por exemplo, conter as notas de laboratrio que jamais tivessem sido divulgadas. Poderia conter algo relacionado com uma arma que os terrqueos jamais tivessem reconhecido como sendo arma, algo que aparentemente no fosse uma arma... - Bobagem. Voc um sujeito de formao militar e assim deveria ser mais esperto. Se h uma cincia que o homem tem pesquisado continuamente e com sucesso essa a tecnologia militar. No haveria possibilidade de uma arma potencial permanecer no realizada por dez mil anos. Creio, Rizzett, que ns vamos voltar para Lingane. Rizzett deu de ombros. No parecia convencido. Jonti, tampouco, estava convencido. O documento fora roubado e isso era altamente significativo. Valera a pena roub-lo. Qualquer pessoa dentro da Galxia poderia t-lo agora em seu poder. A contragosto imaginou que os tiranianos poderiam t-lo em seu poder. O rancheiro fora muito vago quanto ao assunto. At mesmo o prprio Jonti no ouvira confidncias a esse respeito. O rancheiro dissera que continha a morte, no poderia ser usado sem cort-la em ambos os sentidos. Jonti apertou os lbios. Aquele imbecil e as suas sugestes idiotas! E agora os tiranianos o tinham em seu poder. Que aconteceria se um individuo como Aratap estivesse agora de posse de um segredo como aquele? Aratap! O nico homem, agora que o rancheiro partira, que permanecia imprevisvel. O mais perigoso de todos os tiranianos.

Simok Aratap era um homem baixo, um sujeitinho de pernas tortas e olhos apertados. Tinha aquele aspecto atarracado, de membros grossos, caracterstico dos tirazilanos. No entanto, diante de um espcime excepcionalmente grande e musculoso, natural dos mundos subjugados, ele permanecia perfeitamente controlado. Era o herdeiro confiante (da segunda gerao) dos que tinham deixado seus mundos estreis e varridos pelos ventos, lanando-se atravs do espao com a finalidade de capturar e agrilhoar os planetas ricos e populosos das regies nebulares. Seu pai chefiara uma esquadrilha de pequenas naves velozes que atacavam e desapareciam, voltando em seguida a atacar, reduzindo a frangalhos as pesadas e titnicas naves que as enfrentavam. Os mundos da nebulosa haviam lutado de maneira antiquada, enquanto os tiranianos tinham aprendido uma nova forma. Quando as enormes e reluzentes naves das foras inimigas empreendiam um nico combate, golpeando no vazio e perdendo estoques de energia, os tiranianos, deixando em segundo plano a fora, davam maior importncia velocidade e ao de conjunto. E assim os reinos oponentes foram caindo, um aps o outro, cada qual aguardando a vez (um tanto alegremente diante da desgraa de seus vizinhos), sentindo-se enganosamente seguros por trs de suas plataformas de ao. Irremediavelmente, porm, a sua vez acabava por chegar. Tais guerras, porm, haviam se desenrolado cinqenta anos antes. Agora as regies nebulares eram satrpias, necessitando to somente das funes de ocupao e taxao. Antigamente havia mundos a conquistar, pensou Aratap fatigado, agora, porm, pouco havia a fazer alm de competies individuais. Olhou para o jovem que tinha diante de si. Era realmente muito jovem. Um rapaz alto, com ombros fortes, seu rosto parecia tenso e concentrado, e seus cabelos eram cortados ridiculamente curtos, o que certamente seria uma moda, colegial. No oficialmente, Aratap sentia pena do rapaz. Esse estava evidentemente assustado. Biron no reconheceu o sentimento que o invadia como sendo "medo". Se lhe pedissem para dar um nome quele sentimento, ele o denominaria "tenso". Por toda a vida ele reconhecera os tiranianos como sendo chefes supremos. Seu pai, apesar de forte e cheio de vida, apesar de absoluto em seus domnios e respeitado pelos demais, mantinha-se quieto e quase humilde em presena dos tiranianos. Esses vinham ocasionalmente a Widemos, em visitas de cortesia, quando ento faziam indagaes sobre a tributao anual que chamavam de taxao. O rancheiro de Widemos era responsvel, pelo recolhimento e entrega de tais fundos em nome do planeta Nefelos, e os tiranianos examinavam seus livros negligentemente. Nessas ocasies o prprio rancheiro ia receb-los em suas pequenas naves. Eles ocupavam a cabeceira da mesa na hora das refeies, sendo servidos em primeiro lugar. Quando falavam, toda a conversa cessava instantaneamente. Quando criana Biron ficava imaginando qual a razo para que esses homens to pequenos e feios fossem tratados com tanta deferncia. Ao crescer, porm, compreendera que eles representavam para o seu pai o mesmo que esse representava para um peo. Aprendera, inclusive, a falar-lhes com suavidade e usar o tratamento "Excelncia" quando lhes dirigia a palavra. Aprendera tudo isso to bem que agora, estando diante de um dos chefes supremos, um dos tiranianos, sentia-se tremer de tenso. A nave que ele considerara como sendo sua priso, assumira oficialmente esse aspecto no dia da aterrissagem em Rdia. Haviam batido em sua porta e dois robustos tripulantes entraram, postando-se um de cada lado. O comandante, que os seguira, falou ento em voz montona:

- Biron Farrill, eu o detenho em nome do poder com que sou investido na qualidade de comandante desta nave e o conservo preso para que seja interrogado pelo comissrio do grande rei. O comissrio era esse pequenino tiraniano que se sentava agora diante dele, parecendo distrado e desinteressado. O "grande rei" era o cl de Tirnia, o qual continuava a viver em seu lendrio palcio de pedra, no planeta originrio dos tiranianos. Biron olhou furtivamente ao seu redor. No estava fisicamente imobilizado, mas havia quatro guardas, dois de cada lado, trajando a caracterstica farda azul-acinzentada da polcia externa tiraniana. Estavam armados. Um quinto policial, com insgnias de major, sentava-se ao lado da mesa do comissrio. O comissrio dirigiu-lhe ento a palavra pela primeira vez: - Como talvez saiba, - sua voz era fina e estridente - o velho rancheiro de Widemos, seu pai, foi executado por traio. Seus olhos desbotados estavam fixos nos de Biron. Parecia no haver neles nada alm de brandura. Biron conservou-se impassvel. Incomodava-o sua impotncia. Teria sido muito mais satisfatrio se pudesse gritar com eles, atirando-se sobre eles furiosamente. Entretanto nada disso seria capaz de fazer seu pai reviver. Imaginou saber a razo para essa declarao inicial. Aquilo tinha por fim alquebr-lo, fazendo com que entregasse os pontos. Estava disposto a no lhes dar essa satisfao. - Eu sou Biron Malaine, da Terra - disse ele calmamente. Se estiverem por acaso duvidando de minha identidade, eu gostaria de entrar em contato com o cnsul terrestre. - Sim, claro. Agora, porm, nos encontramos num estgio puramente informal. Voc declara que Biron Malaine, da Terra. No entanto - dizendo isso Aratap apontou para os papis que tinha diante de si - temos aqui cartas que foram escritas por Widemos ao seu filho. H um recibo de matrcula na universidade e entradas para a cerimnia de formatura em nome de um Biron Farrill. E isso tudo foi encontrado em sua bagagem. Biron sentia-se desesperado, mas no queria demonstrar. - A minha bagagem foi revistada ilegalmente, de modo que eu nego que isso possa ser usado como prova. - No estamos num tribunal de justia, Sr. Farrill ou Malaine. Diga como que explica isso? - Se essas coisas foram encontradas em minha bagagem, porque l foram colocadas por outra pessoa. O comissrio no retrucou e Biron ficou surpreso. Suas afirmaes pareciam to inconsistentes, to patentemente tolas... E, no entanto, o comissrio no fez qualquer comentrio a respeito, batendo apenas com o indicador sobre a cpsula negra. - E essa apresentao ao superintendente de Rdia? Tambm no sua? - Essa minha, sim. - Biron planejara essa resposta. A apresentao no declinava seu nome. - H um compl para assassinar o superintendente disse ele. Deteve-se, apavorado. A sua fala, cuidadosamente preparada, soava completamente inconvincente. Estaria enganado ou teria visto o comissrio sorrir cinicamente? Aratap, entretanto, no sorria. Suspirou ligeiramente e em seguida, com um gesto rpido e experiente, retirou dos olhos as lentes de contato, colocando-as num vidro com soluo salina que se encontrava diante dele sobre a mesa. Seus globos oculares, sem as lentes, pareciam aguados. - E como que voc sabe disso, l na Terra, distante quinhentos anos-luz, se a nossa prpria policia, aqui em Rdia, no ouviu falar nada a respeito? - Acontece que a policia est aqui, e o compl est sendo organizado l na Terra.

- Compreendo. E voc o agente deles? Ou ser que veio prevenir Hinrik contra eles? - Vim preveni-lo, claro. - Mesmo? E por que que pretende avis-lo? - Por causa da recompensa substancial que pretendo receber por isso. Aratap sorriu. - Isso, ao menos, soa verdadeiro e d um certo sentido s suas declaraes anteriores. E quais so os detalhes desse compl de que est falando? - Isso s posso dizer ao prprio superintendente. Seguiu-se uma hesitao momentnea e por fim Aratap deu de ombros. - Muito bem. Os tiranianos no esto interessados e no se envolvem nos problemas polticos locais. Providenciaremos para que voc possa entrevistar-se com o superintendente, sendo essa ento a nossa contribuio para a sua segurana. Meus homens iro guard-lo at que a sua bagagem possa ser apanhada quando ento voc estar livre para partir. Agora levem-no. Essa ltima ordem dirigia-se aos homens armados que saram acompanhando Biron. Aratap recolocou suas lentes de contato, ato esse que afastava instantaneamente aquele aspecto de uma vaga incompetncia que tinha quando sem as lentes. - Acho que vamos ficar de olho nesse jovem Farrill - disse Aratap ao major que permanecera em sua companhia. O oficial anuiu brevemente. - timo. Por um instante receei que tivesse sido embrulhado. Para mim toda essa histria do rapaz pareceu perfeitamente incoerente. - E era mesmo. E justamente isso que o faz facilmente manobrvel por algum tempo. Todos esses jovens tolos, que aprendem noes de intriga interestelar atravs dos filmes de espionagem passados no vdeo, so facilmente manobrveis. Trata-se, evidentemente, do filho do ex-rancheiro. O major hesitou. - Tem certeza? A acusao que temos contra ele bastante vaga e insatisfatria. - Est querendo dizer que a prova poderia ter sido realmente forjada? Mas com que finalidade? - Esse rapaz poderia ser um engodo, servindo para desviar a nossa ateno de um verdadeiro Biron Farrill que se encontraria alhures. - No. Isso terico e improvvel. Alm do mais temos um fototubo. - No diga. Do rapaz? - Do filho do rancheiro. Gostaria de v-lo? - Mas claro que sim. Aratap pegou o peso de papel que estava sobre a mesa. Tratava-se de um simples cubo de vidro, com aproximadamente sete e meio centmetros de lado, preto e opaco. - Eu pretendia confront-lo com isso, caso fosse necessrio - disse Aratap. - Sabe, major, isto aqui um processo excelente. No sei se est a par do seu funcionamento. Foi aperfeioado recentemente nos mundos interiores. Exteriormente tem o aspecto de um fotocubo convencional. Entretanto, uma vez colocado com a base para cima, ocorre um rearranjo molecular automtico que o torna totalmente opaco. Trata-se de uma idia genial. Aratap revirou o cubo. Sua opacidade tremeluziu por um instante e em seguida comeou a desfazer-se lentamente, qual neblina negra arrastada pelo vento. Aratap contemplava, calmamente, com as mos cruzadas sobre o peito. E ento, uma vez obtida uma clareza cristalina, viu-se um rosto jovem que lhes sorria, ntido e vivo, e no entanto solidificado ali para sempre.

- Trata-se de um dos pertences do ex-rancheiro - disse Aratap. - Que tal lhe parece? - o rapaz. No h dvida. - Sim. - O oficial tiraniano examinou pensativo o fotocubo. - Sabe, - disse Aratap - no sei por que no utilizar este mesmo processo para a obteno de seis fotos num s cubo. Com suas seis faces poderamos obter em cada uma delas uma nova srie de arranjos moleculares. Seriam seis fotos conjugadas, cada qual formando-se em conseqncia de uma disposio diferente das faces. Um fenmeno esttico transformado em dinmico, atingindo novas dimenses da viso. Sabe, major, isso poderia ser at uma nova forma de arte. O major, entretanto, permanecia em silncio, um tanto desdenhoso, e Aratap abandonou suas reflexes artsticas, dizendo abruptamente: - Ento voc vigiar Farrill? - Certamente. - E Hinrik tambm? - Hinrik? - Claro. para isso que vamos deixar o rapaz em Rdia. Em liberdade. Eu quero respostas para algumas perguntas. Por que Rdia? Por que que Farrill vai encontrar Hinrik? Que ligao existe entre os dois? O rancheiro morto no pregava prego sem estopa. Por trs dele deve ter havido uma conspirao bem organizada. E ns ainda no estamos a par das atividades dessa conspirao. Mas Hinrik? Certamente no poderia estar envolvido. Falta-lhe a inteligncia, mesmo que tivesse coragem para tal. - Tem razo, mas justamente por ser meio idiota que ele pode lhes servir de instrumento. E se essa hiptese estiver certa, isso quer dizer que ele representa um ponto fraco em nosso esquema. Evidentemente no nos podemos dar ao luxo de negligenciar tal possibilidade. Aratap fez um gesto distrado, ao qual o major respondeu com uma saudao, virando-se sobre os calcanhares e saindo. Aratap suspirou, virou cuidadosamente o fotocubo em suas mos, e ficou contemplando o negrume que voltava a invadi-lo, como se fosse uma mar da tinta. Nos tempos de seu pai a vida fora mais simples. Havia uma certa grandeza cruel no esmagamento de um planeta, enquanto que manobrar cuidadosamente um jovem ignorante no passava de simples crueldade. E, no entanto, era uma crueldade necessria ***** 5 - Inquieta a cabea. NA QUALIDADE DE HABITAT do homo sapiens, o diretorado de Rdia no antigo se comparado com a Terra. Tambm no antigo se comparado com os mundos centaurianos ou siianos. Os planetas de Arcturus, por exemplo, datavam de duzentos anos antes, quando as primeiras espaonaves haviam circundado a nebulosa da Cabea de Cavalo, encontrando por trs dela verdadeiros ninhos contendo centenas de planetas que possuam oxignio e gua. Existem na Galxia aproximadamente cem a duzentos bilhes de estrelas irradiantes. Entre essas h aproximadamente quinhentos bilhes de planetas. Dentre eles h alguns com gravidades superiores a 12O por cento da Terra, ou menores que 6O por cento dela, sendo, dessa forma, insuportveis a longo prazo. Alguns deles so demasiado quentes enquanto que outros muito frios. Alguns ainda possuem atmosferas venenosas.

Foram registradas atmosferas planetrias consistindo em grande parte ou at mesmo inteiramente de nenio, metano, amnia, cloro, e at mesmo silicone tetrafinordrico. H planetas que no possuem gua, tendo sido encontrado e descrito um deles como contendo oceanos de dixido de enxofre quase puro. Outros ainda no dispem de carbono. Qualquer uma dessas falhas o suficiente, de modo que a percentagem de mundos habitveis no chega nem mesmo a um por cem mil. Contudo isso ainda permite uma estimativa de quatro milhes de mundos habitveis. H polmica quanto ao nmero daqueles que so realmente ocupados. De acordo com o "Almanaque Galctico", que admite basear-se em dados imperfeitos, Rdia teria sido o 1.O989 mundo estabelecido pelo homem. Ironicamente, Tirnia, mais tarde conquistador de Rdia, foi o 1.O999. O desenrolar da histria da regio transnebular foi assustadoramente similar aos demais nos perodos de desenvolvimento e expanso. Foram estabelecidas repblicas planetrias em rpida sucesso, ficando cada governo confiado ao seu prprio mundo. Com a expanso da economia, os planetas vizinhos foram sendo colonizados e incorporados. Pequenos "imprios" foram criados, entrando inevitavelmente em conflito. A hegemonia sobre regies de tamanho considervel foi sendo estabelecida primeiro por um, depois por outro desses governos, tudo dependendo dos acasos da guerra e da liderana. Somente Rdia conseguira manter uma estabilidade duradoura, sob a dinastia dos competentes Hinriads. Estaria talvez no bom caminho para o estabelecimento final de um imprio transnebular dentro de um ou dois sculos, ocasio em que os tiranianos surgiram realizando o servio no espao de dez anos. irnico o fato de terem sido justamente os homens de Tirnia. At ento, durante os setecentos anos de sua existncia, Tirnia fizera pouco alm de manter uma autonomia precria, graas principalmente s condies indesejveis de sua natureza estril, a qual, devido escassez de gua planetria, era em grande parte desrtica. Mesmo depois da chegada dos tiranianos, o diretorado de Rdia continuou a existir, chegando at mesmo a crescer. Os Hinriads gozavam de prestgio junto ao povo e assim a sua permanncia era til manuteno de controle fcil. Os tiranianos no se importavam com quem iria receber as homenagens, contanto que fossem eles a receber os impostos. Para o bem da verdade, os Hinriads h tempos no eram mais os verdadeiros superintendentes. O diretorado sempre fora eletivo dentro da famlia, para que assim os mais capazes fossem escolhidos. Haviam sido inclusive encorajadas as adoes no seio da famlia com essa mesma finalidade. Agora, porm, os tiranianos influenciavam as eleies, sendo, contudo, diversos os seus propsitos. Vinte anos antes, por exemplo, Hinrik (o quinto portador dsse nome) fora escolhido superintendente. Aos olhos dos tiranianos aquela fora uma escolha til. Quando da sua eleio Hinrik era um homem alinhado e ainda agora conservava uma aparncia imponente ao dirigir a palavra ao Conselho de Rdia. Seus cabelos estavam ficando suavemente grisalhos enquanto que o seu espesso bigode mantinha-se, espantosamente, to negro quanto os olhos de sua filha. Naquele momento encontrava-se diante de sua filha e ela estava furiosa. Era apenas uns cinco centmetros mais baixa que ele e o superintendente tinha quase um metro e oitenta. Tratava-se de uma jovem ardente, de olhos e cabelos escuros, e, na ocasio, de tez escura. - Eu no posso fazer isso! Eu no vou faz-lo! - repetia a jovem. - Arta, Arta - insistiu Hinrik. - Voc no est sendo razovel. O que que eu devo fazer? O que posso fazer? Que outra escolha tenho?

- Se minha me fosse viva ela certamente encontraria uma soluo. - Dizendo isso, a jovem bateu com o p. O seu nome completo era Artemsia, uma denominao real que fora ostentada por pelo menos uma representante do sexo feminino em cada gerao dos Hinriads. - Claro, claro. No h dvida. Deus sabe que sim! Sua me encontrava jeitos incrveis! H ocasies em que voc idntica a ela e parece no ter nada de mim. Mas a verdade, Arta, que voc no deu a ele a menor chance. Ser que voc ao menos se deu ao trabalho de examinar, como direi... os seus aspectos positivos? - E quais so eles? - Aqueles que... bem. - Fez um gesto vago, pensou um pouco e ento desistiu. Aproximou-se dela com a inteno de pousar sobre o seu ombro uma mo consoladora, a jovem esquivou-se, com o seu vestido vermelho e brilhante agitando-se no ar. - Passei uma noitada com ele, e tentou me beijar. Foi nojento! - Mas querida, todos se beijam. As coisas no so mais como nos tempos de sua av, de respeitada memria. Beijos no so nada demais. Sangue jovem, Arta, sangue jovem! - Sangue jovem, uma conversa! A nica vez em que esse horrvel homenzinho teve sangue jovem em seu corpo nesses ltimos quinze anos foi quando fez uma transfuso. E ele dez centmetros mais baixo do que eu, papai. Como que posso ser vista em pblico com um pigmeu? - Mas ele um homem importante, muito importante! - Essa importncia no acrescenta um centmetro sequer em sua altura. E alm disso ele tem pernas tortas, como todos eles, e ainda tem mau hlito. - Mau hlito? Artemsia franziu o nariz. - Isso mesmo. O seu hlito tem um cheiro esquisito, desagradvel. Eu no gostei e disse isso a ele. Hinrik abriu a boca sem conseguir emitir um som. Em seguida sussurrou em voz rouca: - Voc disse isso a ele? Voc deu a entender que um alto oficial da real corte de Tirnia possui uma caracterstica pessoal desagradvel? - Isso mesmo! Voc sabe muito bem como o meu olfato bom. De modo que quando ele se aproximou demais eu o afastei. Que figura! Quando eu o empurrei ele caiu de costas com as pernas para o ar. - Dizendo isso Artemisia fazia gestos ilustrando a cena. Hinrik, porm, perdeu essa descrio, pois encolheu os ombros e, com um gemido, cobriu o rosto com as mos. Por fim olhou-a desconsolado, por entre os dedos. - O que que vai acontecer agora? Como que voc pde agir dessa maneira? - Pois saiba que isso no me adiantou de nada. Sabe o que foi que ele disse? Imagina o que foi que ele disse? Isso foi realmente a gota d'gua! Foi demais! E foi a que decidi que no seria capaz de suportar aquele homem mesmo que ele tivesse trs metros de altura. - Mas... mas... o que foi que ele disse? - Ele disse, pai, sem mais aquela: "Ah! Essa muito boa! Mocinha espirituosa! Assim me agrada mais ainda!" E ento os dois criados ajudaram-no a pr-se de p. Entretanto ele no tentou mais respirar em meu rosto. Hinrik dirigiu-se na direo de uma cadeira, inclinou-se para diante e ficou examinando Artemsia atentamente. - Voc poderia suportar os preparativos de seu casamento com ele, no ? No precisa ser sincera. Basta faz-lo simplesmente por motivos polticos.

- O que que voc chama de sinceridade, pai? Ser que deverei cruzar os dedos da minha mo esquerda enquanto estiver assinando o contrato com a direita? Hinrik parecia confuso... - No, claro que no. De que adiantaria? Como que o cruzar dos dedos poderia alterar a validade do contrato? Realmente, confesso que estou surpreso com a sua infantilidade, Arta. Artemsia suspirou. - Ento o que quer dizer? - Dizer o qu? J est tudo confuso. No consigo me concentrar nas coisas quando voc discute comigo. Que estava eu dizendo? - Que eu deveria fingir que estava me casando, ou algo do gnero. Lembra-se? - Ah, sim, claro. O que eu quis dizer que voc no precisaria levar as coisas muito a srio. Compreende? - Suponho que est querendo dizer que eu poderia ter amantes. Hinrik enrijeceu-se e franziu o sobrolho. - Arta! Eu a eduquei para que se tornasse uma jovem recatada e possuidora de auto-respeito. O mesmo fez a sua me. Como que pode agora dizer essas coisas? Isso vergonhoso! - Mas ento no era isso que queria dizer? - Eu posso dizer essas coisas. Sou um homem, um homem maduro. Uma jovem como voc no deve re