Isaac Viot - Monografia Completa

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Filosofia A influência do Iluminismo na Secularização e o papel do Secularismo na Esfera Pública Isaac Viot Serra Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharelne Licenciando em Filosofia pelo Departamento de Filosofia/ IFCH/ UERJ. Orientador: Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araujo

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Obra sobre Charles Taylor

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

Departamento de Filosofia

A influncia do Iluminismo na Secularizao e o papel do Secularismo na Esfera Pblica

Isaac Viot Serra

Monografia apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Bacharelne Licenciando em Filosofia pelo Departamento de Filosofia/ IFCH/ UERJ.Orientador: Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araujo

Rio de Janeiro

Novembro/2012Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

Departamento de FilosofiaA influncia do Iluminismo na Secularizao e o papel do Secularismo na Esfera Pblica

Isaac Viot Serra

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araujo (orientador)

Prof. Dr. Antonio Augusto Passos VideiraProf. Dr. ------------------------------Rio de Janeiro

Novembro/2012AgradecimentosA Deus, que, semelhantemente ao daimon socrtico, creio ter ordenado a mim a viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros e incutiu em todos os homens o anseio pela verdade.A toda minha famlia, principalmente aos meus pais que sempre acreditaram em mim e investiram nos meus estudos.Ao prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Arajo, por sua orientao neste trabalho monogrfico e suas aulas inspiradoras.Ao prof. Dr. Antonio Augusto Passos Videira, cujos cursos ministrados de Filosofia da Natureza e Histria da Filosofia Moderna tiveram grande repercusso sobre este trabalho.

A todos os professores do departamento de filosofia que de alguma forma cooperaram para minha formao, seja por meio de suas excelentes aulas, pelas observaes feitas em provas ou trabalhos ou pela simples disposio de conversar nos corredores. Esta lista de agradecimentos seria pequena caso pretendesse detalhar todas as contribuies.Aos meus colegas de graduao, muitos dos quais se mostraram verdadeiros amigos. Em especial:A Camila de Oliveira e Fabiana Amorim, minhas primeiras amizades no curso de filosofia. Nossos papos, seja na varanda da biblioteca ou na concha acstica, foram grande estmulo para que eu tomasse gosto pela atividade filosfica desde o princpio.A Ana Carolina, Armnio Salatial, Clia Mara, Jocemir Reis, Pedro Ribeiro, Roseli Bonfim, Roselay Barbosa, alm de outros, que nestes ltimos anos tornaram-se motivos a mais para estar na faculdade. Obrigado pelo carinho e companheirismo e tambm por nem sempre concordarem comigo e se disporem ao debate. Vocs me ensinaram que amizade no tem necessariamente haver com cultivar os mesmo gostos e opinies que outra pessoa, mas que tambm envolve a coragem de levantar uma controvrsia e discuti-la abertamente.Aos meus amigos em geral, que mesmo no compartilhando do mesmo interesse pela filosofia, se dispuseram a me ouvir e a refletir juntamente comigo sobre as situaes mais corriqueiras que se colocavam a nossa frente. Obrigado por me aturarem por se permitiram embarcar nesta maravilhosa aventura que a filosofia.Dedico esse trabalho a todos aqueles que se esforam para expandir a filosofia para alm do ambiente acadmico. Vocs so corajosos.RESUMO

O presente trabalho parte das reflexes do filsofo canadense Charles Taylor sobre o advento da secularizao e do surgimento do secularismo no ocidente. Comeando por uma anlise etimolgica do termo secular, apresentamos tambm as concepes mais comuns de secularidade presentes no imaginrio social moderno e introduzimos a concepo tayloriana como ponto de partida para a discusso acerca do papel do secularismo nas sociedades democrticas liberais contemporneas. Em seguida, expomos os aspectos centrais do que Taylor intitulou de mito do esclarecimento e examinamos como este permeou a emancipao das cincias naturais do campo da filosofia e como tambm influenciou o projeto poltico liberal, bem como a formao de estruturas que lhe so intrnsecas, como o Estado laico e a esfera pblica. Por fim, investigamos como estas reflexes podem ser teis para a soluo de algumas controvrsias recorrentes em nossas sociedades atuais, caracterizadas pelo fato do pluralismo religioso e cultural.Palavras-chave: Charles Taylor; Secularizao; Iluminismo; Esfera Pblica; Secularismo.SUMRIO

I. Introduo..............................................................................................................II. O [mito do] Esclarecimento..................................................................................

III. Da filosofia natural ao naturalismo cientfico.....................................................IV. A Esfera Pblica e o Estado Secular...................................................................V. Uma distino entre razo secular e razo pblica...............................................VI. Concluso............................................................................................................Referncias Bibliogrficas........................................................................................7121626354346

I. Introduo

O processo ao qual denominamos de secularizao faz parte da histria do ocidente e ao mesmo tempo um fato da contemporaneidade. A ascenso do estado laico como modelo-padro de governo no ocidente constituiu o marco histrico desse processo, sendo at hoje apresentado como a melhor soluo poltica para os conflitos de ordem cultural cada vez mais comuns em nossas sociedades. Apesar dessa familiaridade com o tema percebe-se que, de um modo geral, no sabemos o que realmente depreende da afirmao de que vivemos numa sociedade secular; naturalmente, nos vem a mente a ideia de uma ciso definitiva entre o poder poltico e as instituies religiosas ou, como gostamos de dizer no caso especfico do ocidente, a separao entre Estado e Igreja. No entanto, o que foi ou o que o processo de secularizao, em todas as suas nuances e particularidades, ainda no se tornou um consenso entre os pensadores de nosso tempo. Dentre estes se destaca o filsofo canadense Charles Taylor, o qual nos ltimos anos se props a delinear um impensado acerca da secularizao e do atual papel da religio em nossas sociedades multiculturais.

Uma questo que se coloca em primeira instncia : porque utilizamos o termo secular para nomearo afastamento da sociedade poltica das concepes religiosas? Ironicamente trata-se de um vocbulo de origem religiosa, mas especificamente como parte de uma dade desenvolvida na cristandade latina. Neste sentido original, o secular seria uma categoria do tempo que s poderia ser pensada em contraposio aquilo que eterno: o tempo secular mensurvel e passageiro, enquanto a eternidade tem por caracterstica central a infinitude. Dentro deste panorama, uma instncia secular referia-se ao que de natureza terrena (o profano), pensado sempre em oposio a uma instncia superior de natureza espiritual (o sagrado). Essa dade englobava todos os segmentos da sociedade, de modo que certos tempos, lugares, pessoas, instituies e aes eram vistos como intimamente relacionados com o tempo sagrado ou superior, e outros como pertencendo apenas ao tempo profano. Isto no significava dizer que havia qualquer espcie de cisma entre esses campos, no sentido de que competissem por espao, antes sofriam uma interpenetrao constante - se por um lado a igreja representava uma instncia superior destinada a cumprir com os propsitos eternos, por outro desenvolvia funes sociais importantes, principalmente nos setores da sade e da educao.

Esta relao estvel entre instncias transcendentes e imanentes, no entanto, foi sendo minada aos poucos e teria atingido seu pice no sculo XVIII. Em seu artigo O que significa secularismo?, Taylor denuncia como a partir da surge uma concepo da vida aonde os aspectos transcendentes so totalmente desconsiderados e a realidade transfigura-se dentro de uma perspectiva puramente imanente. Se inicialmente havia uma dade interna e os mundos de ordem superior e inferior estavam to entrelaados que no se podia falar de um sem fazer referncia ao outro, no desenrolar da modernidade nos deparamos com uma dade externa, no sentido de que a ordem inferior declara sua independncia em relao a seu par, excluindo o mesmo da dimenso do real. A nova compreenso do secular insurge trazendo consigo no apenas a primazia do imanente sobre o transcendente, mas tambm valora um como verdadeiro e outro como falso, um como aquilo que existe e o outro como o meramente inventado.

Como era de se esperar, uma mudana de paradigma to radical no ocorreu de forma contnua e linear - e deve-se ressaltar que principalmente as transformaes no plano poltico e social no se deram de imediato. Num primeiro momento reconhecemos elites intelectuais impulsionando discusses efervescentes a respeito da f e proporcionando assim a circulao de correntes de pensamento favorveis, em maior ou menor grau, a descrena no transcendente. Pode-se dizer que as intenes iniciais no incluam, necessariamente, um combate a crena religiosa, porm medida que concepes de f alternativas ganham espao no debate, naturalmente uma perspectiva relativista vai adquirindo fora, ainda que restrita a um crculo fechado. Como estas que eram alternativas para poucos se popularizaram e vieram a ser alternativas para muitos se torna, portanto, a questo bsica das mais diversas teorias da secularizao.

Uma teoria do processo de secularizao tem por objetivo desvendar como, por que e por quais meios as sociedades ocidentais assumiram um formato secular, tomando como pressuposto que, historicamente, as coisas nem sempre foram assim. Seguindo esta linha de pensamento, logo somos remetidos a uma idade das trevas aonde uma religio opressora possua poderes polticos e ditava preceitos morais que regiam todos os mbitos de uma comunidade e, como esta j no nossa realidade, devemos admitir - ou no mnimo suspeitar - que algo se deu para que tal tenebrosa fase da humanidade fosse finalmente superada. E esse algo deve estar contido no que chamamos de secularizao. Como tambm no seria razovel acreditar que isto se deu instantaneamente, geralmente se entende a secularizao como um processo gradativo que culminou na organizao social vigente apesar de os caminhos percorridos estarem sujeitos a divergncias.

Um exemplo de percurso da secularizao bastante intuitivo aponta para o desenvolvimento de meios de comunicao mais eficazes e a expanso da educao formal padronizada a partir do sculo XVII. Ambos teriam proporcionado uma maior e mais rpida difuso entre as massas de informaes que antes estavam restritas aos crculos intelectuais. O papel crucial destes fatores na secularizao inegvel, porm, segundo Taylor, eles teriam feito suas maiores contribuies num tempo bem mais recente do que presumimos. Se olharmos atentamente para a histria do ocidente veremos que o trajeto da secularizao por demais acidentado, com variaes drsticas dependendo do povo ou nao, de modo que aps investigaes minuciosas tornam-se cada vez mais insustentveis redues a teses simplistas e/ou generalizaes.

A proposta de Charles Taylor no desvelar uma teoria de secularizao fechada que abarque todas as peculiaridades histricas, sociolgicas e filosficas desse complexo processo. Na verdade, para ele, esta tarefa seria praticamente impossvel de ser efetuada. No entanto, para uma melhor compreenso desta era chamada secular, principalmente seus efeitos na prtica poltica e social, se faz necessrio um estudo aprofundado que tanto aponte novas perspectivas quanto desfaa equvocos e preconceitos.

Um dos passos primordiais para execuo desta tarefa identificar as diferentes maneiras de autocompreenso construdas pela sociedade secular ocidental. A questo pode ser formulada nos seguintes termos: como esta era secular percebe sua secularidade? Esta pergunta crucial, pois a partir dela todas as teorias da secularizao sero desenvolvidas. Da mesma forma que no so elaboradas teses cientficas a partir do nada - antes o ponto de partida consiste sempre num dado -, uma teoria filosfica, principalmente no campo da poltica, trar sempre indcios de sua poca: nossa percepo da realidade em alguma instncia influencia at nosso pensamento mais formal.

Haveria assim dois tipos de secularidade j muito bem fundamentados no imaginrio social e um terceiro proposto por Taylor como complementar e esclarecedor de aspectos importantes que por vezes passam despercebidos. A primeira noo de secularidade j fora mencionada rapidamente no incio desta exposio: difundida pelo binmio estado secular (ou laico) caracterizada pela sociedade cujo governo funciona totalmente desvencilhado de instituies religiosas. Trata em ltima ordem da maneira como a religio passa a se portar nos espaos pblicos, principalmente no que concerne a restrio de sua influncia sobre a poltica e sobre os costumes de uma dada comunidade. Uma segunda noo, tambm muito popular, aponta para um significativo abandono das convices e prticas religiosas, caracterizado pela descrena em Deus e pelo esvaziamento das igrejas. Aqui a secularidade diz menos respeito aos aspectos sociais e d maior enfoque ao modo como, atualmente, as pessoas parecem ter menor interesse no transcendente do que nossos antepassados.

Apesar de estes dois primeiros sentidos serem pertinentes e coerentes com o que observamos no processo de secularizao, Taylor prope um terceiro sentido que versa sobre uma mudana radical nas condies de f: a crena em Deus ou em qualquer outra realidade transcendente no mais axiomtica, mas constitui apenas uma opo dentre muitas outras, inclusive a descrena. Assim, numa sociedade secular que lida naturalmente com o fato do pluralismo religioso cada indivduo est privado de possuir uma crena ingnua, ou seja, sua experincia com a f admite desde o incio certa relatividade, uma vez que j no pode ser exclusiva tal como ocorreria em uma sociedade que se autocompreende como crist, judaica, islmica etc. Assim, essa terceira secularidade resguarda um vnculo com a primeira e serve de condio para a segunda, pois a instituio do governo laico seria o primeiro passo para um desprestgio da religio dominante, da mesma forma que a pluralidade de alternativas de f abre caminho para a descrena; uma vez gerada essa atmosfera de incerteza em relao a verdade ltima, a diminuio do ativismo religioso seria apenas uma consequncia.

Essa nova concepo de secularidade o ponto de partida das reflexes de Charles Taylor. A partir dela so elaborados diversos percursos analticos voltados para as transformaes no pensamento ocidental que possibilitaram um modo de pensar, agir e sentir prprios das sociedades liberais contemporneas. Dentre a gama de possibilidades que surgem neste horizonte, este trabalho pretende tratar do secularismo. Como definio provisria, entenderemos o secularismo como uma viso de mundo particular que preza por aquele modo de vida pautado to somente nos aspectos imanentes da existncia. Ocorre ento que apesar de as sociedades seculares aceitarem o pluralismo cultural e defenderem um ambiente pblico livre para a convivncia de uma ampla variedade de vises de mundo sem eleger nenhuma como oficial, parece insurgir um estigma de superioridade sobre uma viso de mundo tipicamente secularista em detrimento de outras, principalmente aquelas de cunho religioso.

Uns poderiam dizer ser razovel e at mesmo inevitvel que o secularismo se sobreponha enquanto doutrina dominante dada a prpria natureza secular das instituies polticas contemporneas. Em contrapartida, corre risco a alegao de que a grande vantagem de um estado laico sua neutralidade no trato com as mais diversas vises particulares de mundo. Afinal, o estado secular ou secularista? Um estado secular deve ser efetivamente neutro? Qual deve ser o objetivo do estado secularizado? A resposta destas e outras questes envolver uma distino entre o secular e o pblico, bem como definir se a religio pode ser expressa na arena pblica de um regime secular e, se pode, dentro de quais parmetros. No entanto, se mostra como mais sensato retornarmos primeiro aos sculos XVII e XVIII, aonde a discusso de certas ideias e a criao de novos paradigmas parece ter sido crucial para todo desenvolvimento ulterior da secularizao e do secularismo no ocidente.

II. O [mito do] Esclarecimento

Em meados do sculo XVII e ao longo do sculo XVIII aflorou na Europa um movimento intelectual que tinha por premissa adotar a razo como critrio basilar para o desenvolvimento de todas as searas do conhecimento. Na lngua alem foi intitulado Aufklrung, na francesa como Lumires e traduzido comumente para o portugus como Iluminismo ou Esclarecimento. Nesta que foi chamada de Era das Luzes desdobraram-se acontecimentos e discusses filosficas que repercutiram em toda produo de conhecimento posterior, seja ela cientfica ou do prprio senso comum, e possuem particular importncia para compreenso de algumas estruturas do pensamento que compuseram a secularizao.

Bem sabemos que as sociedades ocidentais pr-modernas eram religiosas, basicamente crists, e a f era assumida nos espaos pblicos, bem como entremeava todo tipo de conhecimento. No havia, portanto, uma linha dividindo o saber cientfico de outros tipos de saberes a teologia e as cincias naturais, por exemplo, encontravam-se no mesmo patamar. Com a proclamao da independncia do imanente em relao ao transcendente, cada vez mais se buscou fundamentar a veracidade de um conhecimento em bases estritamente racionais, privilegiando sempre argumentos que no se escorassem numa dimenso extramundana.

Em seu artigo O que significa secularismo, Taylor destaca a relevncia das ideias iluministas na difuso de uma nova perspectiva que no apenas privilegia o princpio da imanncia, como tambm busca lanar o estigma da irracionalidade a toda e qualquer referncia ao transcendente. Sua crtica consiste na difundida opinio de que o iluminismo fora um passo absoluto para frente na histria do pensamento - com toda carga positivista que a expresso possa transparecer. Nesta compreenso reside o que ele chama de mito do Esclarecimento:

Assim, h uma verso do que o Esclarecimento representa que o v como nossa sada de um domnio em que a Revelao, ou a religio em geral, contava como uma fonte de insight sobre os assuntos humanos, para um domnio no qual estes so agora entendidos em termos puramente deste mundo ou humanos. Evidentemente, que algumas pessoas tenham feito essa passagem no o que est em disputa. O que questionvel a ideia de que esse movimento envolva o ganho epistmico incontestvel de termos deixado de lado consideraes de verdade e relevncia duvidosas e nos concentrado em questes que podemos resolver e que so obviamente relevantes.

Afirmar que a supresso da f pela razo nos trouxe um ganho epistmico incontestvel parece ser o grande mito da modernidade. Afinal, a grande maioria das pessoas - e isso pode ser independente de serem religiosas ou no religiosas acredita, em linhas gerais, que a humanidade progrediu a partir do momento que se submeteu a uma razo no religiosamente informada. Em outras palavras, samos do jugo de ignorncia anteriormente imposto pela revelao e nos rendemos a justeza e legitimidade de uma razo autnoma e autossuficiente. Assim, o maior legado do iluminismo se configura em termos de uma simples razo, num sentido similar com aquele proposto por kant com sua blosse Vernaunft. A propsito, a definio kantiana de Aufklrung fora outro elemento muito bem absorvido pela posteridade:

Esclarecimento significa a sada do homem de sua minoridade, pela qual ele prprio responsvel. A minoridade a incapacidade de se servir de seu prprio entendimento sem a tutela de um outro. a si prprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela no resulta da falta de entendimento, mas da falta de resoluo e de coragem necessrias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu prprio entendimento, tal , portanto, o lema do Esclarecimento.

O apreo pela autonomia do indivduo e pela autossuficincia do entendimento humano, tal como expressas acima, integram assim o novo paradigma que passa a orientar tanto as relaes sociais quanto a produo de novos conhecimentos. No deve mais ser a religio a ditar os preceitos morais para a vida em comunidade, uma vez que a prpria natureza nos dotou de uma faculdade interna que nos capacita a distinguir certo e errado, independente dos dogmas. O conhecimento cientfico tambm deve caminhar separado daquele de origem religiosa, pois uma a seara do pensamento racional e outra da revelao divina ou para os incrdulos, da especulao e seus objetos de estudo devem ser de uma vez por todas diferenciados. Um exemplo clssico de ciso, proposto por pensadores iluministas e outros anteriores, distingue um campo especfico para a filosofia natural e outro para a teologia: uma responsvel pela investigao dos fenmenos da natureza e a outra pelos assuntos de f, a primeira habilitada para falar das coisas deste mundo enquanto a segunda deve se deter no discurso sobre as coisas do outro mundo. Obviamente com o desenvolvimento dos estudos sobre os fenmenos naturais estes abandonaram o domnio da filosofia e passaram a integrar o que no sculo XIX passou a se entender por cincia. Da mesma forma aqueles que inseriam neste tipo de investigao j no recebiam o ttulo de filsofos da natureza, mas passaram a ser conhecidos como cientistas.

Um ponto importante que a separao acima descrita entre saber cientfico e assuntos de f nunca fora oficialmente estabelecida por nenhum tipo de instituio, seja religiosa ou secular. Por parte da igreja, parece bvio que no era do seu interesse perder sua autoridade sobre quaisquer uns dos domnios do conhecimento, mas por parte dos filsofos naturais, cientistas e instituies fundadas no intuito de promover as pesquisas cientficas havia fatores mais intrigantes que dificultaram uma ciso definitiva. Para alm dos interesses polticos, uma questo estritamente terica se sobreps e no poderia deveras ser ignorada: apesar da necessidade de independncia da religio para obter certa liberdade numa investigao filosfico-cientfica, a crena e a especulao ainda fariam parte deste processo por um longo tempo. Os laos entre fsica e metafsica, por exemplo, ainda permaneceram estreitos em muitas teorias racionais sobre a natureza; por mais que seus idealizadores tentassem se afastar do argumento dogmtico, fundar uma fsica puramente imanente foi um desafio que atravessou geraes. Um conceito em especial, completamente abstrato e de matriz transcendente, que permaneceu como alvo das especulaes da filosofia e de teses cientficas no podendo de modo algum ser simplesmente abandonado ou desconsiderado fora a concepo de Deus.

A ideia de um deus que criador da natureza e fundamento da realidade foi durante muito tempo essencial ao campo da filosofia natural. Como este fora o primeiro ramo da filosofia a se emancipar como uma cincia tal como compreendemos o termo hoje ela fora um grande referencial para os pensadores iluministas de um conhecimento construdo to somente pelas vias racionais. Admitir a presena de um ente metafsico atrapalhou um pouco este projeto de racionalizao do conhecimento, entretanto, por ironia, tambm no seria considerado racional, dada a poca, exclu-lo por completo ou mesmo negar-lhe um papel relevante no estudo das cincias da natureza. Esse ser transcendente, que respaldou durante muito tempo as constataes cientficas, manteve alguns dos elementos essenciais do deus judaico-cristo, porm muitos de seus atributos foram suprimidos ou modificados para se adequar ao contexto das teorias. E elas no tardaram em progressivamente conferir-lhe uma funo cada vez mais marginal e complementar.

Esse movimento de mutao da ideia de Deus, antes circunscrito a uma parcela altamente intelectualizada da sociedade, se expandiu e, conforme as teses cientficas ganhavam popularidade, uma maior quantidade de pessoas via sua f ingnua ser confrontada no apenas por uma religio diferente, mas por um discurso que se autodenominava superior ao da religio. No toa, Charles Taylor define seu conceito de secularidade como a a passagem de uma sociedade em que a f em Deus inquestionvel e, de fato, no problemtica, para uma na qual a f entendida como uma opo entre outras e, em geral, a no mais fcil de ser abraada. Sem dvida alguma, h um amplo espectro de possibilidades de estabelecer uma conexo entre a secularizao e o iluminismo, porm, como impossvel abranger todas elas de uma s vez, no prximo captulo iremos investigar como as metamorfoses do conceito de Deus provocaram um enfraquecimento de sua importncia na busca humana pelo conhecimento, resultando numa perspectiva puramente naturalista no campo das cincias. Para orientar o prximo passo deste estudo, optou-se por seguir o fio condutor legado por Ernst Cassirer em A filosofia do Iluminismo, obra audaciosa em que o autor visa apresentar uma histria das ideias que constituram o cerne das ambies e contradies do projeto iluminista. Com enfoque no desenvolvimento da filosofia natural, buscar-se- encontrar em que pontos a mesma pode ter contribudo para o surgimento das sociedades seculares a partir do enfraquecimento do conceito de Deus.

III. Da filosofia natural ao naturalismo cientficoPara alm da perspectiva de seus porta-vozes e protagonistas, o projeto iluminista no assenta seus propsitos intelectuais mais vigorosos e seu caracterstico dinamismo espiritual na rejeio da f, mas no novo ideal de f que ele promove e na nova forma de religio em que ele encarna. Segundo Cassirer, toda a hostilidade que se evidencia frente s questes teolgico-metafsicas superficial, pois esses mesmos problemas continuam a ser o impulso originrio das investigaes filosficas. A luta que se trava j no gravita somente em torno dos dogmas e de sua interpretao, mas em torno do modo de certeza da religio, no apenas em torno do contedo da f, mas das modalidades e da direo da f como tal. A filosofia sempre careceu de uma certeza absoluta tal como encontrada na f religiosa, pois de alguma maneira estava condicionada a circularidade e aos infindveis devaneios. Esta nova gama de pensadores do sculo XVIII depositavam mais do que nunca suas esperanas no progresso intelectual, de tal maneira que mesmo se opondo ao dogmatismo religioso, um progresso como tal ainda dependeria de um procedimento dogmtico. Apesar de em alguns aspectos assumirem posies completamente opostas, estes filsofos preservavam uma f comum no potencial da razo humana e fazem dela seu alicerce mais valioso na construo do edifcio do saber cientfico.

No que a preocupao com a formulao de uma religio universal no estivesse nos planos de alguns crculos filosficos, mas definitivamente o compromisso com o progresso intelectual se sobrepunha de maneira mais imponente ao esprito iluminista; e a razo era chave para esse progresso. Em meio diversidade e a multiplicidade de saberes, a razo interpretada como uma fora imutvel que possibilita a unificao; todo conhecimento est de alguma forma ligado e condicionado ao poder criador da razo. No se pode desenvolver a cincia tomando por base a boa vontade de uma revelao divina, da mesma maneira que no se pode mais garantir o acesso a verdades eternas, antes h de se depositar toda a f na razo e nos atermos ao que est ao seu alcance.

O descrdito a todo saber que opera no nvel do transcendente no se deu de maneira repentina, mas remonta ao medievalismo, passa pela renascena e desgua no iluminismo - de tal maneira, que este ltimo mais organiza e resignifica o que j havia sido discutido do que propriamente cria algo novo. Muitos dos problemas filosficos do sculo XVIII no foram formulados por ele, mas foram herdados do sculo XVII, que por sua vez permaneciam vinculados ao pensamento teolgico e as questes tipicamente metafsicas, como as causas e os por qus. Apesar de as razes serem inegveis, o centro de gravidade desloca-se gradualmente da figura de Deus e das explicaes suprassensveis para o domnio da razo e das explicaes encontradas no plano emprico. Essa mudana se torna clara no campo das investigaes da natureza. Se no pensamento medieval o mundo encarado na tica de uma ordem visvel, imutvel, um cosmo fechado cujos traos podem ser descritos tal como o de qualquer outra criatura, no pensamento renascentista esse mesmo mundo pouco a pouco ampliado at ultrapassar o status de reles criatura e participar do ser divino originrio. A natureza no apenas a criao, mas contm em si o criador ao ponto de numa investigao de seus elementos individuais nos depararmos com vestgios da divindade. A investigao, no entanto, no depende da assistncia do divino, pois a prpria razo capaz de identificar a lei natural presente em cada objeto, que por sua vez contem em si uma centelha da divindade. Desta forma, o reino da natureza no mais visto como incompleto e carente de uma assistncia sobrenatural para ser desvelado, mas constitui um ser individual e necessrio cujas leis so acessveis a razo e esto dispostas aos espritos atentos.

Como j dito, o esprito iluminista alcanou seu auge no sculo XVIII, mas muitos pensadores anteriores foram determinantes para todo desenvolvimento ulterior. Figurando entre estes homens que estavam a frente de seu tempo, encontra-se o fsico, matemtico, astrnomo e filsofo Galileu Galilei. Pensador de destaque do sculo XVI e devoto fiel do catolicismo, ele buscou a duras penas conciliar suas descobertas no campo da cincia da natureza com sua f, instituindo uma distino entre dois tipos de verdade: as reveladas e as puramente fsicas. A verdade revelada resguardava grande importncia, mas a verdade fsica deveria ser tomada como independente; a primeira encontra-se nas escrituras sagradas, enquanto a segunda disposta no livro da natureza, escrita em caracteres matemticos. Obviamente a Igreja Catlica, que a poca levava a cabo a inquisio, no viu com bons olhos seu empreendimento, o qual, em ltima instncia, representava uma descentralizao da autoridade eclesistica. No muito tempo depois, Descartes tambm fora perseguido por defender uma matematizao da natureza. Sua pretenso de conhecer os mecanismos que regem o curso do universo condiz com o esprito iluminista, sendo uma primeva investida contra o carter misterioso que a dogmtica religiosa impunha aos processos naturais, entretanto, a histria do pensamento terminou por instituir que o passo dado pela fsica cartesiana fora mais significativo no mbito filosfico do que propriamente no cientfico. A estrutura de pensamento sistemtica e a fixao em desvelar as verdades eternas teriam atrapalhado Descartes em seu projeto de edificao do conhecimento da natureza e, apesar de suas teorias terem alcanado certa popularidade nos crculos intelectuais franceses, com Newton que a fsica vive sua verdadeira revoluo na modernidade.

A fsica newtoniana vista como um divisor de guas na histria do pensamento e torna-se o modelo para todo saber cientfico subsequente. Em contraposio ao mtodo cartesiano que partia dos axiomas e princpios para chegar aos fatos e aos fenmenos, o mtodo newtoniano partia dos dados empricos para chegar aos conceitos. Na teoria da gravitao finalmente ocorreu a concretizao dos ideais renascentistas: fora formulada uma lei do cosmo - uma lei que as coisas no recebem do exterior mas que decorre da prpria essncia delas, que est desde a origem implantada nelas. O pensador ingls apresentou a prova final de que os conceitos rigorosos do conhecimento matemtico eram aplicveis ao universo tal como intentara Galileu. Fora um largo passo para o estabelecimento da supremacia da razo no conhecimento da natureza; entretanto, ainda reservado um lugar para os argumentos especulativos da metafsica.

concedida uma funo importante a Deus nos Princpios Matemticos de Filosofia: Ele o Criador e Senhor do universo, o qual determinou de antemo as leis naturais que so observadas pelos homens nos fenmenos. Apesar de tamanha relevncia, tais ideias so somente delineadas no esclio geral ao final do livro, totalmente apartadas das demonstraes matemticas que ocupam a maior parte dessa obra. Num dado momento, Newton deixa claro que sua teoria somente funciona a partir destes pilares metafsicos, mas tal separao tambm denota o fato de que, para compreenso dos fenmenos fsicos, bastam a observao, a experimentao, a medida e o clculo.

Descobrir as leis naturais no requer investigar os atributos de Deus e muito menos encontrar uma prova definitiva de sua existncia. Essa postura tipicamente desta encontrada tambm em Voltaire, considerado maior divulgador do newtonianismo no territrio francs. Segundo ele, a filosofia nos mostra bem que h um Deus. Mas ela impotente para nos ensinar o que ele , o que faz, como e por que faz. Parece que precisaramos ser ele mesmo pra saber isso.O que estava subentendido na fsica de Newton era que o conceito de Deus no era um elemento central, mas apenas um pressuposto essencial. Esta uma caracterstica que passa a ser cada vez mais comum entre postulados filosficos com pretenses cientficas. Recorrer a Deus para provar um princpio, seja terico seja em relao aos fenmenos naturais, tornara-se uma postura altamente impopular entre os intelectuais, pois significava diminuir a capacidade do intelecto humano. As descobertas de Newton ratificam a premissa de desmistificao da natureza, tendo em vista que o conhecimento de seus princpios acessvel ao entendimento, e reforam o sentimento de rejeio a qualquer apelo ao transcendente ou algum tipo de mediao entre natureza e entendimento. Seria enganoso tambm afirmar que a grande revoluo cientfica desencadeada por Newton entroniza de uma vez por todas a razo e o esprito puramente matemtico. Estes tero de necessariamente dividir o seu reinado com a experimentao. Apenas a razo no seria suficiente para decifrar como o universo se comporta: para construir um conhecimento da natureza necessrio o dado emprico. Da mesma maneira que o divino no se encontra antes ou fora da natureza, mas imerso e misturado a ela, a razo no anterior ao fato, como propunha Descartes e os sistemas filosficos racionalistas em geral do sc. XVII. Ela encontra-se na estrutura dos prprios fenmenos, de modo que devemos partir dos dados empricos para chegar aos princpios universais, e no o inverso. O prprio conceito de princpio renuncia assim, bem entendido, ao carter absoluto a que tinha pretenses nos grandes sistemas metafsicos do sculo XVII. Uma vez admitida a necessidade da experincia, novos dados podero ser colhidos, o que poder resultar numa alterao dos princpios outrora estabelecidos, havendo neles, portanto, no mximo uma validade relativa, referente ao estgio da cincia naquele momento e que, com o progresso intelectual, incorrer sempre na possibilidade de uma reformulao.

Os princpios que devemos investigar por toda parte, e sem os quais ser impossvel assegurar um conhecimento em qualquer domnio, no so tais ou tais pontos de partida arbitrariamente escolhidos pelo pensamento e impostos experincia concreta para remodel-la. So condies gerais a que s podemos ser conduzidos por uma anlise completa do dado.

Enquanto Descartes racionalizava princpios e partia destes para compreender os fenmenos, para no correr o risco de cair na iluso advinda das percepes sensoriais, Newton abandona qualquer tipo de saber que anteceda a experincia e defende que desta mesma que devem ser extrados os princpios. O enfoque deve estar no fenmeno, para que por meio deste se chegue ao princpio; simultaneamente desenvolve-se o pressuposto de que h uma reciprocidade entre estes domnios, de modo que os dados podem ser racionalmente ordenados e por fim unificados pela razo, uma vez que esta constitui a prpria estrutura dos processos naturais. Este pressuposto encontra-se, por exemplo, na filosofia de DAlambert, cujo desenvolvimento segue rigorosamente o caminho traado por Newton.Filsofo, matemtico e fsico do perodo iluminista, DAlembert constava na lista de renomados pensadores que no apenas aderiram abertamente mtodo analtico newtoniano, como intentaram aplic-lo a todo campo das cincias ao longo do sculo XVIII, inclusive a metafsica. No que ele propusesse estabelecer uma frmula metafsica do cosmo que desvendasse o em si das coisas: se recusa veementemente a semelhante empreendimento, antes procura evidenciar um sistema constitudo to somente pelos fenmenos. Os sistemas ou, melhor, os sonhos dos filsofos sobre a maioria das questes metafsicas no merecem ocupar nenhum lugar numa obra unicamente destinada a consolidar os conhecimentos reais adquiridos pelo esprito humano, dir DAlembert, para quem a metafsica uma base inicial que aps investigaes naturais e a interpretao dos dados empricos, pode ser alterada e adequada a novas descobertas. Para construo de uma cincia natural se faz presente a necessidade de uma imagem metafsica da mesma, o que significa para DAlembert que a metafsica e a fsica natural devem caminhar lado a lado. Neste momento do iluminismo ainda h espao para uma teologia natural segregada da teologia tradicional ou vulgar: enquanto nesta so tratados problemas relacionados f e aos costumes, naquela so investigados os processos naturais - Deus figura como a causa do mundo, porm aps sua criao no exerceria mais nenhum tipo de interveno nele. Neste sentido, DAlembert se aproxima da metfora dos dois livros apresentada por Galileu, onde o livro da natureza no se confunde com uma verdade revelada que deva ser obedecida, antes foi deixado a cargo dos homens para sua anlise e interpretao.

Uma das premissas de DAlembert, compartilhada entre muitos pensadores do sculo XVIII, a de que a cincia no precisa se deter no estudo das causas, mas analisar rigorosamente os efeitos, pois estes sim so observveis e experienciveis. Na fsica, por exemplo, a anlise do movimento deve ser feita a partir de seus efeitos e no requer uma compreenso apurada de sua origem, pois uma vez que ele iniciado ele se torna independente e autnomo. Neste caso, para racionalizao dos efeitos observados na experincia bastaria o uso de critrios matemticos, os quais so suficientes para interpretar o domnio fenomenal. O problema que para provar que o mundo totalmente acessvel por meio de critrios lgicos e matemticos DAlembert precisa recorrer ao pressuposto de que o sistema universal dos fenmenos contem em si unidade e uniformidade. Mas como fundamentar esse pressuposto sem torn-lo uma crena? O racionalismo clssico, na pessoa de seus pensadores mais eminentes, Descartes, Spinoza e Leibniz, j se deparara com esse problema. Ele acreditava resolv-lo reduzindo a questo da unidade da natureza da unidade de sua origem divina. A concluso Leibziana, por exemplo, de que no h provas conclusivas da harmonia e constncia da natureza, a no ser o recurso da unidade do princpio supremo, que parte do fato de que as leis da realidade no podem contradizer as leis puramente ideais da lgica e da matemtica. Dir Leibniz: Tudo se rege pela razo e, se assim no fosse no existiria cincia nem regra, o que estaria em contradio com a natureza do princpio soberano. Essa soluo, entretanto, envolve uma petio de princpio, pois no apenas a uniformidade e unidade da natureza so justificadas pelos correlatos atributos de Deus, mas construmos o conceito de um deus uno, desvinculado da teologia, a partir da perfeita harmonia entre os elementos que observamos na natureza.

Tal como vimos no captulo anterior, o ideal iluminista de ciso entre a fsica e a teologia minado a medida que os pensadores se do conta da impossibilidade de eliminar os elementos metafsicos na justificao da estrutura da natureza. Visando extirpar a necessidade do transcendente, aos poucos ser descartada a preocupao com desvelar um fundamento racional para natureza, radicalizando a mxima de que basta aos interesses da cincia investigar seus fenmenos. David Hume dir que a uniformidade da natureza uma crena no religiosa, no sentido de que ao invs de propor pressupostos metafsicos ela tem fundamentos psicolgicos.

(...) a teoria humiana do belief, da crena, a continuao e a soluo irnica de todo um processo intelectual tendente a conferir prpria cincia experimental um fundamento religioso. A soluo consiste na inverso dos papis entre a cincia e a religio. No a religio que permite, graas a sua verdade superior, absoluta, dar um slido ponto de apoio cincia; pelo contrrio, a relatividade do conhecimento cientfico que arrasta por sua vez a religio para o seu terreno movedio.

Neste sentido, vemos mais um passo para a secularizao ocidental: como a cincia no pode ser absoluta ela relativiza a religio, e por fim ambas carecem de justificao racional. Para o iluminismo o foco deve permanecer de uma vez por todas no princpio de imanncia. O homem parte da natureza e como tal s lhe permitido chegar ao conhecimento das verdades naturais. Tudo que remeta a uma realidade suprassensvel incognoscvel para ns e, portanto, inimigo do esclarecimento. Devemos nos contentar com os resultados obtidos por meio da racionalizao dos dados sensveis, pois somente assim nos libertaremos da ignorncia e das supersties.

Todos os processos naturais, incluindo aqueles fatos que temos o costume de designar como fatos espirituais, toda ordem fsica em seu conjunto, assim como a ordem moral das coisas em sua totalidade, reduzem-se inteiramente a matria e movimento e confundem-se com eles.

Entretanto, impossibilidade do homem de apreender de uma vez a natureza em toda sua complexidade evidenciava que uma cincia da mesma precisava ser feita por partes. Para que nossa razo finita possa compreender o mundo precisa fazer uma seleo, um recorte, para s ento chegar ao todo. Como no ser arbitrrio? um dilema ainda enfrentado pelas cincias contemporneas. No iluminismo, num dado momento chegou-se a uma espcie de consenso de que o conhecimento da natureza deveria partir do conhecimento de sua parte que nos mais prxima: o prprio homem. Cassirer remonta que tanto a matemtica quanto a fsica perdem sua centralidade e cedem espao a biologia e a fisiologia geral; La Mettrie, Holbach e Diderot so alguns dos partidrios desta nova postura filosfica definida como materialismo dogmtico, caracterizado pelo total desinteresse pela essncia absoluta da matria (Deus ou a alma) e pela exaltao do princpio do movimento. Postulado o princpio mnimo de movimento, os corpos animados tero tudo do que necessitam para mover-se, sentir, pensar, arrepender-se e comportar-se, numa palavra, no fsico e no moral que dele depende, afirma La Mettrie.

Uma vez que os olhos dos filsofos naturais se voltam para o ser humano, questes do campo da tica passam a fazer parte da investigao da natureza e requerer algum tipo de experimentao. Numa perspectiva orgnica do movimento, por exemplo, no faria sentido distinguir fenmenos corporais de fenmenos espirituais, uma vez ser impossvel analisa-los separadamente e no haver qualquer prova emprica da necessidade de semelhante dicotomia. No Systeme de la nature de Holbach observamos dentre as implicaes morais uma espcie de fatalismo: no reino da natureza no h juzos de valores como bem e mal, justo ou injusto, pois tudo est em ordem na natureza, cujas partes jamais podem afastar-se das regras certas e necessrias que decorrem da essncia que receberam. Essa supresso da ideia de liberdade faz parte do projeto de total de Holbach, o qual coloca como condio para o progresso cientfico a aniquilao do espiritualismo teolgico.

necessrio extirpar de uma vez por todas, as ideias de Deus, de liberdade, de imortalidade, a fim de que parem as intervenes incessantes do outro mundo que essas ideias simulam construir neste nosso mundo, cuja ordem racional o espiritualismo ameaa subverter. (...) O mundo jamais ser feliz enquanto no se decidir ser um ateu. Junto com a crena de Deus desaparecero tambm todas as querelas teolgicas e as guerras religiosas.

O radicalismo das premissas e das concluses oferecidas pelo sistema de Holbach no foram bem recebidas pela maioria dos pensadores que lhe eram contemporneos. Voltaire considera contraditrio o determinismo absoluto de Holbach, que tendo erguido como sua bandeira a luta contra o dogmatismo e a intolerncia, no tardou em elevar sua doutrina ao status de dogma e em defend-la com um zelo fantico. Alm da rejeio por parte de comunidades cientficas e religiosas, Holbach tambm tem de enfrentar a revolta dos artistas de sua poca, uma vez que na sua teoria, juntamente com os elementos religiosos, tambm eram eliminados os elementos estticos do reino da natureza.

Como podemos ver at aqui, o materialismo dogmtico convergia com o fenomenismo no que tange a importncia da experimentao, mas divergia com relao a diversos outros aspectos. Com Diderot vir um materialismo mais moderado, o que se deve a supresso do fator dogmtico, para dar lugar a uma compreenso mais dinmica da natureza. Temos de permanecer abertos a toda novidade, no deixar nenhum modelo, nenhuma prescrio, retraia o horizonte da experincia. Sua perspectiva refletia em sua prtica filosfica: mudava de posio sempre que encontrava novos argumentos e, diferente do arqutipo iluminista, no fez o menor esforo para converter seu pensamento em frmulas fixas e definidas. Para ele seria intil o esforo de encerrar a diversidade da natureza nos limites do nosso entendimento. Tudo muda, tudo passa, apenas o todo permanece. O mundo comea e acaba sem cessar; ele est a cada instante em seu comeo e em seu fim.

O rompimento com a viso esttica de mundo pode ser interpretado como outro prenncio da secularizao mediante a relativizao dos conhecimentos, tais como anunciara Hume. De fato, a exigncia da cincia de uma constante reviso requer um modelo malevel, adaptvel, totalmente passvel de modificao. J no se procuram fundamentos que amanh no podero ser revogados, porque a estabilidade no mais vista como uma virtude. O nico dogma aceitvel o progresso. Se aceitarmos como razovel que esta uma premissa que permanece viva no pensamento cientfico atual, tambm no ser difcil admitir que, dentre todos os conceitos metafsico-religiosos que perderam seu prestgio nos campo das cincias, um dos mais prejudicados foi Deus. Sua necessidade de imutabilidade atributo que lhe era to caro e peculiar e outrora ambicionado como fundamento de diversos sistemas naturais vista agora como inimiga do progresso intelectual e cientfico.

No entanto, os cientistas de nosso tempo, diferentemente dos filsofos naturais, no se ocupam mais em combater essa ou aquela ideia de Deus, pois ela parece finalmente estar restrita ao seu devido lugar: a teologia. Esta, por sua vez, fora deixada to somente aos cuidados da religio, que totalmente destituda da funo de despenseira das verdades eternas constitui apenas mais uma das formas de acesso ao conhecimento, estando longe de ser a mais confivel. Alm disso, sob o novo paradigma da dinamicidade cientfica, a teologia passa a configurar gradativamente o tipo de conhecimento considerado retrgrado, uma vez que seu contedo independe de qualquer experimentao e almeja a imutabilidade de uma verdade acabada. Essa exigncia de dinamicidade, no entanto, no quer dizer que no permanea certo dogmatismo no campo das cincias. A cada nova descoberta, a cada nova concluso obtida via provas cientficas, permanece a sensao de que estamos mais prximos de uma verdade absoluta, a qual no provm de nenhuma espcie de epifania, mas natural: encontra-se nas coisas mesmas. O mtodo cientfico seria o nico habilitado a desvelar os mistrios da natureza, inclusive no que diz respeito ao ser humano, e, se por um obstculo epistmico no pode se autodenominar como a verdade, no abandona a convico de ser o mais prximo do que viria a ser um discurso verdadeiro. Essa crena, apesar de no declarada, pode ser considerada implcita ao que Taylor chama de mito do esclarecimento, sendo intrnseca ao dogmatismo cientfico e tendo lugar privilegiado nas sociedades seculares.

IV. A Esfera Pblica e o Estado Secular

Conforme destrinchado nos captulos anteriores, as novas formas de pensamento discutidas nos crculos intelectuais europeus dos sculos XVII e XVIII influenciaram fortemente os rumos tomados pela secularizao ocidental. Um dos resultados polticos desse processo foi o estabelecimento do liberalismo como modelo governamental padro em sociedades democrticas. Semelhantemente ao modo como o campo das cincias se emancipou da ingerncia religiosa, pode se afirmar que, principalmente aps a queda dos regimes monrquicos e da instaurao das primeiras democracias, o Estado foi gradativamente rompendo os laos que mantinha com instituies eclesisticas. A concepo de secularidade que preconiza a separao entre Estado e Igreja vai ganhando forma no imaginrio social moderno e a poltica liberal parece ser a expresso desse anseio por uma sociedade que se autodetermina.

Neste contexto, o conceito de liberdade surge primeiramente em contraposio ao regimento moral eclesistico e, depois, se opondo as mais diversas convenes impostas pela tradio. No entanto, uma sociedade liberal no se contenta meramente com uma concepo de liberdade negativa - que to somente garantiria o direito de fazer o que se quer sem a interferncia de outrem -, antes requisita uma conjuntura onde se faa possvel o desenvolvimento pleno do indivduo enquanto cidado. Charles Taylor enfatiza como a liberdade na tradio liberal ocidental tem-se baseado em parte no desenvolvimento de formas sociais em que a sociedade como um todo pode funcionar fora do mbito do Estado . Essa concepo de liberdade exige uma autonomia dos indivduos e de suas associaes em relao a prpria superintendncia estatal, de modo que uma sociedade liberal tem por componente essencial uma outra sociedade, que distinta dela, mas intrnseca ao seu pleno funcionamento: a sociedade civil.

A noo de sociedade civil compreende a gama de associaes livres que no contam com patrocnio oficial e que muitas vezes se dedica a fins que de modo geral consideramos no polticos. No se pode chamar de livre nenhuma sociedade em que essas associaes voluntrias no possam funcionar, e a pulsao da liberdade ser mais fraca onde estas no so espontaneamente formadas.

Mesmo no ostentando, necessariamente, fins polticos, podemos dizer que tais associaes exercem, em maior ou menor grau, alguma influencia sobre as atividades polticas, uma vez que so inventariados modos de vida e vises de mundo particulares que cedo ou tarde repercutiro nas relaes sociais, podendo vir a gerar conflitos, inclusive, de ordem poltica. Para garantir um ambiente propcio discusso sem a interveno do poder estatal, consolidou-se como uma das principais formas da sociedade civil contempornea a esfera pblica.

Adotemos como definio geral tratar-se de um espao comum em que os cidados discutem sobre questes de interesse comum visando chegar a uma soluo comum. Para tal empreendimento basilar a compreenso de que ela se d num lugar no local, num espao comum metatpico. A esfera pblica considerada metatpica por no possuir um lugar tpico aonde se desenrola, antes abarca um emaranhado de meios, os quais podem ser diretos ou indiretos, locais ou virtuais, impressos ou eletrnicos, todos inter-relacionados numa mesma discusso e confluindo para a formao de uma ideia que venha a ser compartilhada pelo maior nmero possvel de cidados: uma opinio pblica.

Apesar de a esfera pblica desempenhar um papel crucial na autojustificao das sociedades liberais como sendo livres e autogovernadas, por estarmos hoje to familiarizados com ela tendemos a deixar passar despercebidas algumas das peculiaridades que a caracterizam como um arranjo inovador e a demarcam como uma estrutura prpria das civilizaes modernas. Nesse sentido, Taylor salienta como

a prpria ideia da possibilidade de existncia de modalidades de ao extrapoltica ou de manuteno de padres por toda a sociedade estranha a um grande nmero de civilizaes histricas; por exemplo, a sociedade chinesa tradicional ou para tomar um exemplo bastante afastado dela a antiga polis. E se tomarmos outras civilizaes, como a indiana ou a europeia medieval, em que a sociedade tambm tem autoridades extrapolticas, a marcante diferena destas com relao ao Ocidente moderno est no fato de que as formas da sociedade civil so, neste, puramente seculares.

Neste sentido podemos afirmar que dois componentes essenciais da esfera pblica moderna so seu carter extrapoltico e sua secularidade radical. Se por um lado ela precisa estar desvencilhada da esfera poltica, por outro ela tambm precisa ser neutra para garantir uma discusso justa e equilibrada entre as diferentes opinies e crenas que coexistem numa mesma democracia. Examinemos um pouco mais a fundo essas duas caractersticas.

Essa ideia de um lcus extrapoltico que funciona dentro das sociedades polticas e imune ao do Estado, remonta novamente aos crculos intelectuais iluministas formados ao final do sculo de XVII. A expresso Repblica das letras, por exemplo, tornara-se usual entre os membros desta comunidade internacional de sbios e representa bem essa imagem de uma associao que no constituda por uma estrutura poltica, sendo inclusive indiferente aos limites territoriais e polticos.

(...) ao projetar uma esfera pblica, nossos precursores oitocentistas estavam se situando numa associao, esse espao comum de discusso, que nada devia a estruturas polticas, mas era vista como formando uma sociedade fora do Estado. Na verdade, essa sociedade era mais ampla que qualquer Estado; ela se estendia para alguns propsitos a toda a Europa civilizada.

Em seguida, Charles Taylor nos lembra de que ser uma sociedade extrapoltica de cunho internacional no consiste em si numa novidade: a Cosmpolis Estoica e a prpria Igreja Crist so exemplos que precedem em muito a esfera pblica. Por isso, o grande diferencial desta est em sua secularidade radical, pois, diferente dos exemplos supracitados, nela a ao comum no requer nenhum fundamento de ordem metafsica para ser executada. Conforme apresentado na introduo, a noo de secular aqui no se contrape apenas a religio, mas a tudo que opera no mbito do transcendente, de modo que aquilo que torna a esfera pblica radicalmente secular que a ao comum nela se d sem requerer nenhum tipo de arcabouo que precise ser estabelecido em alguma dimenso que transcenda a prpria ao, tal como um fundamento divino ou uma lei herdada de tempos imemoriais e transmitida pela tradio; na esfera pblica o agir comum surge da prpria ao comum e encontra nela mesma seu fundamento.

A distino crucial na base do conceito de secularidade pode assim ser vinculada com a seguinte interrogao: o que constitui a associao? Ou, dito de outra maneira, o que faz desse grupo de pessoas em sua continuidade no tempo um agente comum? Onde se trata de algo que transcende o domnio das aes comuns que esse agir envolve, a associao no-secular. Onde o fator constitutivo no seno a ao comum e se os atos fundadores j ocorreram ou esto ocorrendo agora, no importa , temos secularidade.

Enquanto um espao comum metatpico que promove um agir comum extrapoltico assentado to somente em bases seculares, a Repblica das letras teria sido o primeiro arranjo ocidental a reproduzir uma esfera pblica. Neste sentido, a prpria noo de secularidade que pergunta pelo fundamento da ao comum nasce com a modernidade, pois antes dela era inconcebvel que um agir comum metatpico e duradouro pudesse ser promovido numa perspectiva puramente imanente. De certo, sempre houve nas sociedades humanas algum tipo de mobilizao tpica ou protestos momentneos que no estivessem necessariamente ligados a ideais transcendentes, mas estes eram eventos isolados que ofereciam no mximo um desdobramento especfico e local. Estes tipos de manifestaes eram encarados como perturbaes que deveriam ser rapidamente superados em nome da paz social. Porm,

(...) o advento da esfera pblica envolve uma ruptura no antigo ideal de uma ordem social no dividida pelo conflito e pela diferena. Ele significa, pelo contrrio, que o debate irrompe e continua, envolvendo em princpio a todos, e sendo tomado como perfeitamente legtimo. A velha unidade partiu para sempre. Mas h de se pr em seu lugar uma nova unidade. Porque a controvrsia sempiterna no pretende ser um exerccio de poder, uma quase guerra civil travada por meios dialticos. Suas conseqncias potencialmente divisivas e destrutivas so compensadas pelo fato de ser ela um debate fora do poder, um debate racional que se empenha, sem parti pris, em definir o bem comum.

A constante lide com os desacordos e controvrsias dos cidados no significa que uma sociedade liberal deva abandonar sua busca pelo bem comum. Na verdade, esta se torna uma das principais funes da esfera pblica moderna: diferente do arranjo oitocentista que envolvia apenas um grupo selecionado de pensadores, nela todos se encontram potencialmente engajados numa discusso que visa chegar a uma opinio comum acerca das questes mais relevantes no que se refere ao bem-estar social. Essa opinio comum no pode resultar simplesmente da soma das opinies da populao; devido a seu lcus extrapoltico, tambm se espera que o esprito partidrio seja deixado de lado. O que ento garante a unidade dessa ideia comum? Como vimos no trecho acima citado, requer-se um debate pblico racional de onde resulte numa opinio esclarecida.

essa racionalidade que orienta as discusses na esfera pblica e que a torna consciente de seu papel de sobrevigilncia da esfera poltica. Se do debate pblico de fato origina-se uma viso reflexiva, um governo que se diz democrtico est moralmente obrigado a segui-la, uma vez que sua legitimidade advm do princpio poltico de que o povo soberano. Assim, percebemos com mais clareza que aquele status extrapoltico da esfera pblica no se pauta pela falta de poder, mas por essa ideia de que o poder poltico requer uma superviso externa a ele. E se desde muito antes o Estado j estava submetido a autoridades de cunho metafsico (uma vontade divina ou uma lei natural), agora um Estado secular deve prestar contas, primordialmente, ao prprio povo.

Eis uma das caractersticas mais marcantes do Estado secularizado: seu compromisso primeiro passa a ser para com o seu povo e no para com Deus, uma religio, uma ideologia ou qualquer tipo de viso de mundo particular. A nova tarefa do Estado gerir a diversidade de crenas e opinies e, no caso das sociedades contemporneas, a diversidade de culturas que passam a ocupar um mesmo territrio nacional. Nesta mudana de paradigma dois equvocos so comumente cometidos: (A) entender a secularidade do Estado como avessa ao exerccio religioso e (B) tom-la como uma ideologia prpria de regimes seculares. Naturalmente isto no ocorre sem motivos, mas encontra explicaes na prpria histria do processo de secularizao ocidental.

Por amostragem, tomemos os casos da Frana e dos Estados Unidos. No artigo O que significa secularismo?, Taylor analisa como a histria poltica dessas duas naes apresenta diferentes contextos inaugurais de secularidade, porm, em ambos ela surge com a misso de remodelar a relao do Estado com a religio. Na revoluo francesa, vemos como a luta pela deposio da monarquia e o estabelecimento da repblica teve como fortssimo oponente a Igreja catlica. Seus poderes polticos eram vistos como inimigos da liberdade, o que determinou que a laict apregoada pelos revoltosos carregasse um profundo sentimento antirreligioso e uma prerrogativa de que o Estado controlasse e gerenciasse a religio, tendo em vista impedir uma situao inversa. Em contrapartida, a nao norte-americana nasceu sobre a gide da liberdade religiosa e da separao de instituies polticas daquelas de natureza religiosa. No entanto, a liberdade religiosa aqui abrangia apenas as diversas seitas variantes do protestantismo e a tal separao institucional no foi empecilho para que o cristianismo gozasse de certa primazia at o final do sculo XIX. Somente aps 1870, ganha fora na vida pblica americana a idealizao de um Estado no apenas aberto s demais religiosidades, como tambm para a irreligio, sendo, portanto, secular num sentido de no estar vinculado a nenhuma doutrina religiosa.

Nestes dois pases, no obstante, potncias de grande influncia internacional, vemos que apesar dos diferentes percursos histricos resguardam em comum o fato de seus Estados secularizados terem insurgido do conflito entre poder poltico e crena religiosa, bem como do subsequente afastamento destas duas instncias. Ser ento uma condio para a secularidade de um governo que este corte radicalmente suas relaes com doutrinas religiosas? Se as coisas assim forem, faria sentido classificar tais Estados como secularistas, no sentido de professarem uma ideologia que exclui perspectivas religiosas da esfera poltica? Para Charles Taylor, nem uma coisa nem outra. Antes de fazer tais perguntas importante compreender que para ele parece no haver uma distino entre secularidade e secularismo, mas sim uma interpretao equivocada do que vem a ser uma poltica secularista: ns pensamos que o secularismo (ou lacit) tem a ver com a relao entre o Estado e a religio, quando na realidade tem a ver com a resposta (correta) do Estado democrtico diversidade.No importa se chamamos de secular, secularizado ou secularista: o cerne da questo est na necessidade de que o Estado de uma sociedade democrtica lide de maneira neutra para com as diversas posies bsicas - religiosas e no religiosas - que surgem em seu mago, garantindo que todas tenham a possibilidade de falarem e serem ouvidas na esfera pblica. Esta seria a concepo bsica de um Estado que se entende como secularista. Da mesma forma que ele no pode estar comprometido oficialmente com nenhuma confisso religiosa, deve tambm manter certa distncia de qualquer tipo de ideologia que pregue a no religio, pois, caso contrrio, jamais poderia atuar como mediador entre as distintas posies.

Se por um lado h um consenso de que a secularizao ocidental se intensificou com os conflitos religiosos, por outro parece ser ilgico e injustificvel defender que a poltica secularista atual esteja fundada na separao entre instituies polticas e instituies religiosas ou entre Estado e Igreja. Naturalmente isto pode ocorrer em alguma medida, mas defini-lo como critrio central ignorar a complexidade imposta pelo fato do pluralismo cultural e minimizar a amplitude da neutralidade que se espera de um regime secular. Infelizmente justamente este tipo de atitude que mais comumente vemos acontecer: a cada embate pblico envolvendo assuntos religiosos que surge, ouvimos frmulas imperativas do tipo o Estado laico - no no sentido de que ele est aberto para a discusso de ideias, mas de que a religio algo privado, devendo ser tratada com indiferena pelas autoridades estatais e removidas todas as referencias a ela nos espaos pblicos. Segundo Taylor, tratam-se de mantras empregados como bloqueadores de argumento, uma espcie de resposta final decisiva que anula todas as objees. O resultado uma concepo distorcida do secularismo que nada mais faz seno promover uma fetichizao do fenmeno religioso em detrimento do vasto nmero de vises abrangentes no religiosas que tambm habitam a esfera pblica.

Como j mencionado, a finalidade do Estado democrtico secular deve ser promover o bem comum; uma tarefa relativamente simples numa comunidade homognea, mas que tem se tornado um desafio cada vez mais complexo em nossas sociedades multiculturais. Um caminho para tal empreendimento pode estar no estabelecimento de metas comuns que possam ser assumidas por todos os cidados independente de suas opinies, crenas ou modos de vida particulares, e onde cada um se veja como provedor e beneficirio. Taylor destaca um conjunto de trs metas baseadas no lema da revoluo francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Adaptando para o nosso contexto poderamos entend-las como:

(1) Ningum deve ser forado no domnio da religio, ou da crena bsica. Isto o que usualmente definido como liberdade religiosa, incluindo, naturalmente, a liberdade de no acreditar. (...) (2) Deve haver igualdade entre pessoas de diferentes credos ou crenas bsicas; nenhuma perspectiva religiosa ou Weltanschauung (religiosa ou no religiosa) pode desfrutar de um status privilegiado, muito menos ser adotada como a viso oficial do Estado. Ento, (3) todas as famlias espirituais devem ser ouvidas, includas no processo contnuo de determinao do que a sociedade (sua identidade poltica), e como ela vai concretizar essas metas (o regime exato de direitos e privilgios). Isto (esticando um pouco o ponto) o que corresponde fraternidade.

Estas trs metas so um exemplo de uma prtica poltica secularista desvinculada do fetiche pela religio. Outras metas semelhantes podem ser estipuladas e os meios para cumpri-las iro variar de acordo com o contexto cultural de cada sociedade. No cenrio da filosofia poltica, esta seria a posio caracterstica de uma perspectiva comunitarista em contraste com uma linha de pensamento de cunho universalista.

De uma maneira resumida, explicitemos o cerne de cada uma destas correntes de pensamento: para o comunitarismo a legitimidade do Estado democrtico est no constante esforo de formulao e manuteno de um bem comum, o qual possibilita a construo de uma identidade poltica prpria e garante uma ambincia de solidariedade entre os concidados; em contraposio, o universalismo defende que a legitimidade da ordem social encontra-se na convergncia dos indivduos em torno de normas que, apesar de coercitivas, podem ser reconhecidas racionalmente por todos os cidados como justas - o bem secundrio em relao ao justo e com este e no aquele que o Estado deve estar comprometido, de maneira que os que advogam essa posio geralmente se imiscuem na elaborao de princpios universais de justia que possam ser aderidos por qualquer sociedade democrtica. Se teoricamente comunitarismo e universalismo representam polos diametralmente opostos, na prtica muitos de seus representantes assumem posies moderadas, como o caso de Charles Taylor e John Rawls, respectivamente.

Apesar disso, Taylor se mostra claramente avesso a ideia de realizar aquelas metas por meio princpios de justia completamente imutveis. Ele apresenta pelo menos quatro motivos para sua posio: (a) no existe um conjunto tal de princpios eternos que pode ser determinado pela simples razo pura, pelo menos nos pormenores com que devem s-lo para um determinado sistema poltico; e (b) as situaes diferem muito, e requerem diferentes tipos de realizao concreta dos princpios gerais acordados, de modo que certo grau de elaborao necessrio em cada situao. Segue-se que (c) ditar os princpios a partir de alguma autoridade supostamente superior alm da disputa viola (3) acima. Pois priva certas famlias espirituais de uma voz nessa elaborao. E, portanto, (d) isso nos deixa muitas vezes com conflitos e dilemas difceis entre as nossas metas bsicas.

O motivo apresentado em (a) nos remete novamente a problemtica do mito do esclarecimento e a fora que ele ainda ostenta nas sociedades ocidentais. Conjecturar que os tais princpios tm por matriz apenas uma razo pura pode parecer a soluo neutra que a modernidade tanto almeja, mas em muitos casos pode se apresentar como uma total desconsiderao para com o enraizamento histrico-cultural de uma sociedade. Como alerta (b), muitas vezes podero ser necessrias adaptaes para diferentes contextos sociais; se esta possibilidade no for ao menos considerada teremos nada menos que uma ditadura da razo. A concepo de uma razo autossuficiente totalmente desenraizada culturalmente e desvinculada de uma viso de mundo, apesar de bem difundida e aceita ingenuamente por uma grande maioria, apenas mais um ponto de vista que tanto possui razes culturais como tambm est vinculada a uma viso racionalizada do mundo. Sua prvia assuno pelo Estado, independente do consentimento de seus cidados, parece ser justamente o que (c) expe como inaceitvel: uma autoridade supostamente superior que rege externamente as relaes sociais. Neste sentido, a simples razo sustentada como um princpio normativo a priori do Estado democrtico no apenas descaracteriza este como neutro - ao privilegiar um ponto de vista especfico -, mas tambm como secular - pois a ao comum passa a ser orientada por uma entidade externa a prpria ao comum, o que, como averiguamos no caso da esfera pblica, equivale a uma no secularidade.

Como ento preservar a neutralidade do Estado democrtico se nem mesmo a proposio de uma razo autossuficiente consegue atender ao critrio imposto pela poltica secularista? Certamente trata-se de uma tarefa complexa, cuja resposta necessita ser tanto mltipla quanto o o nmero de caminhos que nossas sociedades multiculturais autogovernadas podem escolher para cumprir as metas bsicas a que se proporem. No entanto, podemos afirmar que a garantia de uma esfera pblica que atue de maneira livre e independente um dos meios mais eficazes para atingir este fim. Pois, se como analisamos anteriormente, a funo da esfera pblica promover um debate onde todos os segmentos da sociedade civil podem participar e ter uma voz e, se desta discusso de fato forma-se uma opinio reflexiva representativa, ento cabe s autoridades e instituies governamentais se empenharem no apenas para que este espao funcione livremente, mas tambm para que esta opinio tenha peso e influncia quando na tomada de decises ou resoluo de conflitos que recorrentemente surgem em nossas sociedades contemporneas, marcadas pela irreversvel condio do convvio entre os diferentes.

V. Uma distino entre razo secular e razo pblicaConstatamos at aqui que a influencia iluminista sobre o ocidente no se limitou ao desenvolvimento de um modo imanente de compreender os fenmenos da natureza (o naturalismo cientfico), mas tambm concebe uma nova modalidade de ao social (o secularismo poltico), a qual, para sua plena realizao, depende de algumas estruturas bsicas, dentre as quais destacamos, no por acaso, a esfera pblica. Isto porque, enquanto espao metatpico de carter extrapoltico e secular, seu pleno funcionamento tornou-se um desafio ainda maior em nossas sociedades marcadas pela diversidade, sendo constantemente palco de questes polmicas e controversas, muitas das quais envolvendo aspectos religiosos da vida dos cidados.

Semelhantemente ao caso da formulao das metas bsicas do Estado secular, h uma ideia bastante difundida no imaginrio social de nossas sociedades secularizadas de que, se os interlocutores da esfera pblica se restringirem ao uso da simples razo, os embates e discordncias sero dissolvidos e certamente haver um consenso. Na prtica, isso requereria uma privatizao dos posicionamentos religiosos em favor de uma linguagem neutra, aonde somente argumentos seculares (imanentes) so vlidos. Nessa soluo universalista, proposta outrora por pensadores como John Rawls e Jrgen Habermas, Taylor aponta haver uma superestimao da razo no religiosamente informada, que envolve (a) pressupor que ela satisfaz legitimamente qualquer pensador honesto e claro e (b) discriminar as concluses religiosamente embasadas como duvidosas, sendo convincentes somente para as pessoas que j tenham aceitado os dogmas em questo. Ora, segundo ele, algo como (a) + (b) apenas mais uma das formas que o mito do esclarecimento assume:

Pode ocorrer, no fim das contas, que a religio seja fundada numa iluso, e, portanto, que aquilo que dela derivado seja menos credvel. Mas at que realmente cheguemos a esse lugar, no h razo a priori para dirigir-lhe maior suspeita. A credibilidade dessa distino depende da viso segundo a qual algum argumento bem deste mundo basta para estabelecer certas concluses poltico-morais.

No preciso dizer que nenhum indivduo precisa admitir este tipo de perspectiva imanente para exercer sua cidadania e, por isso, tampouco o Estado secular pode impor esta condio para os atores da esfera pblica. At porque no lhe cabe conferir maior credibilidade racional a nenhum ponto de vista especfico, antes sua tarefa to somente prover o ambiente ideal para que ocorra o debate livre e que sejam equacionados os melhores argumentos. Entretanto levar a cabo esta tarefa pode ser mais difcil do que parece, principalmente levando em considerao o fato do pluralismo cultural. Afinal, como conciliar culturas amplamente distintas? Cada vez mais vemos insurgir ao nosso redor novos mundos com suas lnguas prprias: como garantir o dilogo em meio a tantas vozes diversas?

Apesar do respeito s diferenas e particularidades, faz-se necessria uma mnima convergncia dos cidados em torno daquelas metas bsicas ou de outras similares, as quais em geral mantm como pontos principais (1) a garantia de direitos e liberdades, (2) a igualdade entre todos os cidados e (3) o princpio da governabilidade pelo consentimento. De maneira geral, pode-se dizer que h de se encontrar - expresso de modos variados - um correspondente para cada um destas metas bsicas na constituio de toda sociedade dita democrtica. Elas exprimem o que Charles Taylor chama de filosofia da civilidade, a qual passa ser a garantia de unidade poltica num Estado que no pode arquear nem a bandeira de uma religio civil e tampouco de uma antirreligio civil. Torna-se assim indispensvel que haja, em cada caso especfico, um consenso sobreposto entre as diferentes vises de mundo que compe uma filosofia da civilidade.

O compartilhamento de um mesmo ideal de Estado, sem sombra de dvida, um grande passo para obteno de bons acordos nas negociaes feitas na esfera pblica, porm, medida que o processo de diversificao das democracias contemporneas progride ininterruptamente, tambm se tornam mais complexos os caminhos para sanar as dificuldades de comunicao. Uma das polmicas mais frequentes vem objetar sobre o uso indiscriminado de argumentos de embasamento religioso, principalmente, no que tange a linguagem com que so expostos e a dificuldade que isto impe na apreciao dos mesmos de maneira estritamente poltica.

Ainda que tais crticas possam ser motivadas por um sentimento antirreligioso, no podemos ignorar de que se trata de um desafio real, o que nos faz questionar seno seria de fato necessrio exigir algum nvel de reciprocidade nos argumentos apresentados publicamente - o que diz respeito no apenas a esfera pblica, mas tambm ao poder poltico. Para esta etapa de nossa investigao, verificamos como necessrio nos aprofundar em alguns elementos da filosofia poltica de John Rawls, os quais podem ser muito esclarecedores para a presente discusso.

Citado anteriormente como terico pertencente a uma linha universalista moderada, Rawls destacado como um dos mais notveis pensadores polticos do sculo XX. Em A ideia de razo pblica revisitada, um de seus ltimos textos a ser publicado, o pensador reavalia o papel da razo pblica enquanto fator essencial para o pleno funcionamento das novas democracias, cuja caracterstica mais marcante a concorrncia entre doutrinas abrangentes, que, mais do que diferentes, so em muitos casos irreconciliveis. justamente nesta conjuntura que surge a querela da adaptao de argumentos de matriz religiosa para uma linguagem pblica.

Segundo seu liberalismo poltico, um pressuposto essencial a uma de sociedade democrtica bem ordenada a ideia de razo pblica. A razo pblica abrange os tipos de razes que podemos razoavelmente oferecer uns aos outros para chegar a um acordo a respeito de questes polticas fundamentais. O contedo dessa razo pblica dado por uma famlia de concepes polticas de justia que satisfazem o critrio de reciprocidade entre os cidados. Assim, nenhuma doutrina abrangente pode compor esta famlia, justamente porque a abrangncia que lhe inerente extrapola o campo dos interesses estritamente polticos numa democracia, violando o critrio de reciprocidade. Portanto, a teoria rawlsziana prescreve que o Estado jamais baseie suas aes em doutrinas abrangentes, antes deve defender concepes polticas de justia, as quais resguardam valores puramente polticos e, por isso, esto aptas a serem compartilhadas pelos cidados, independente de suas vises de mundo particulares.

Esses valores polticos, embora sejam intrinsecamente valores morais, no devem ser confundidos com doutrinas morais especficas, pois estas, por mais acessveis que possam ser a razo ou ao senso comum, ainda esto sujeitas a um desacordo razovel por parte dos cidados. Isso fica claro quando atentamos para o fato de que doutrinas morais podem tanto ser fundadas no transcendente quanto serem exclusivamente imanentes; em outras palavras, a matriz de uma doutrina moral pode ser tanto religiosa quanto secular. Em contraposio, os valores polticos so especificados por concepes polticas de justia, as quais - sustenta Rawls - podem ser formuladas independentes de doutrinas abrangentes, utilizando-se to somente de ideias fundamentais implcitas na cultura poltica pblica. Essas concepes polticas no precisam sequer coadunar com uma simples razo, pois seu objetivo prtico e no metafsico ou epistemolgico e apresenta-se como uma base do acordo poltico bem informado e voluntrio entre cidados considerados como pessoas livres e iguais. Consequentemente, quando o liberalismo poltico diz aceitar apenas concepes polticas de justia no debate pblico, ele no rejeita apenas as razes religiosas, mas tambm as razes ancoradas em uma viso de mundo secular. Portanto, a razo pblica no corresponde, em primeira instancia, a uma razo secular, de modo que esta, juntamente com as razes religiosas, constituem formas de argumentao no pblicas.

Neste sentido, podemos dizer que essa revisitao a ideia de razo pblica proporciona uma maior convergncia entre o liberalismo poltico de John Rawls e a concepo de Estado secular de Charles Taylor, pois em ambos a neutralidade do Estado no fundada na excluso da religio, mas denunciada como nica resposta razovel ao fato do pluralismo de vises de mundo que coexistem nas sociedades democrticas. O prprio Taylor d um bom testemunho a esse respeito:

Isso tambm mostra o valor da formulao tardia de Rawls para um Estado secular. Esta se apega muito fortemente a certos princpios polticos: direitos humanos, igualdade, o Estado de Direito, a democracia. Estes so a prpria base do Estado, que deve apoi-los. Mas essa tica poltica pode ser e compartilhada por pessoas de perspectivas bsicas (o que Rawls chama de vises abrangentes do bem) muito diferentes. Um kantiano justificar os direitos vida e liberdade apontando para a dignidade da agncia racional; um utilitarista falar da necessidade de tratar os seres que podem experimentar prazer e dor de tal forma que maximize o primeiro e minimize a segunda. Um cristo falar dos seres humanos como feitos imagem de Deus. Eles concordam nos princpios, mas diferem nas razes mais profundas para aderir a essa tica. O Estado deve manter a tica, mas abster-se de favorecer qualquer uma das razes mais profundas.

Assim, o carter secular do Estado est em alguma medida comprometido com o ideal de secularidade que distingue a esfera de atuao pblica daquela referente a prtica religiosa, em contrapartida, no consta entre as obrigaes deste mesmo Estado exercer qualquer ativismo antirreligioso, superestimando doutrinas abrangentes seculares em detrimento daquelas de natureza religiosa. inevitvel que as condies de f numa sociedade secular no sejam as mesmas daquelas encontradas em sociedades governadas por um imperativo religioso, entretanto, isso no sustenta que o Estado secular seja partidrio de uma viso de mundo antirreligiosa ou que conceda maior prestgio a razes seculares no mbito da argumentao pblica e na aprovao de decretos ou leis.

Evidentemente, o Estado democrtico terminar aprovando leis que (no melhor dos casos) refletem as convices reais dos seus cidados, as quais sero ou crists ou muulmanas, e assim por diante, atravs de toda a gama de vises sustentadas em uma sociedade moderna. Porm, as decises no podem ser enquadradas de uma forma que d reconhecimento especial a uma dessas vises.

Eis dois grandes desafios para o empreendimento democrtico secular: (1) aceitar que em muitos casos prevalecer a vontade da maioria, ainda que essa contrarie uma pretensa simples razo e, apesar disso, (2) no permitir que seja dado maior reconhecimento a uma doutrina abrangente especfica, prejudicando assim as demais. O primeiro uma decorrncia natural do princpio poltico de que o povo soberano, porm vemos constantemente alguns segmentos sociais se mobilizando contra algumas decises majoritrias no campo da moral, consideradas injustas ou simplesmente retrgradas. Um exemplo disso ocorre atualmente no Brasil com o embate acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Se por um lado as estatsticas apontam para um crescimento progressivo da parcela de cidados que se identificam como homossexuais e que reivindicam o direito a unio civil, por outro parecem ser ainda maioria os partidrios de uma viso mais tradicional em relao ao casamento e a manuteno dos bons costumes. Apesar dos primeiros gozarem do apoio da grande mdia e de personalidades de grande influncia, novas lideranas polticas e no polticas tm insurgido para resistir s tentativas de estender o direito do matrimnio aos homossexuais, contando com grande apoio popular. Ambas as partes demonizam seus adversrios, de modo que a discusso parece polarizada entre os homofbicos e a ditadura gay. Um dos agravantes, no entanto, o uso de verdades de f como justificativas para negar aos homossexuais o acesso a esse direito. No obstante, estes tm caracterizado seus adversrios como fundamentalistas religiosos e exigido que as autoridades governamentais intervenham a seu favor, tendo em vista preservar a gide de secularidade do Estado.

Suponhamos que os argumentos religiosos so de fato a causa do problema acima exposto e que, se todos escutassem a voz da razo, a questo seria facilmente resolvida. O que fazer ento no caso de uma maioria que apresentasse uma razo puramente secular para defender valores tradicionais? Esta mais ou menos a situao da democracia russa no presente momento. Recentemente a cmara de deputados da Rssia aprovou, por unanimidade, uma lei que probe cidados russos, estrangeiros no pas ou empresas de mdia de fazer propaganda de relaes sexuais no tradicionais voltadas para menores de idade. Segundo o Centro de Pesquisa de Opinio Pblica da Rssia, 84% da populao se opem as tais propagandas, o que indica que a deciso poltica nada mais fez do que expressar a vontade popular. Ainda assim, a deciso gerou um grande burburinho na comunidade internacional, que caracteriza a legislao como incompatvel com o regime de direitos e liberdades de um sistema democrtico. Como resposta s crticas, o governo afirma que a lei no voltada contra a comunidade LGBT, mas contra os valores que eles podem difundir entre crianas, transtornando sua psique ainda fraca e no preparada para extravagncias.

Deparamos-nos agora com uma argumentao no religiosa, a qual, muito aqum de se contrapor a unio matrimonial de pessoas do mesmo sexo, reluta antes contra a progressiva normalizao da homossexualidade que, nos ltimos tempos, se tornou um consenso entre naes ocidentais seculares. Um dos meios para isso, inclusive, fora justamente a credibilidade racional adquirida pelo naturalismo cientfico, que, geralmente sendo utilizado em prol de naturalizar a condio de pessoas atradas pelo mesmo sexo, tambm tem sido usado por opositores em estratgias de fundamentao de uma moral tradicionalista. No h dvidas de que dentre os que assumem tal posicionamento esto cidados com fortes crenas religiosas, mas o que est em jogo aqui no so as convices pessoais, mas a maneira como os argumentos so apresentados ao pblico, e, neste sentido, o argumento inegavelmente secular, possuindo inclusive sustentculo cientfico em correntes da psicologia. O cerne do problema passa a ser definir se a lei fere ou no as metas bsicas do secularismo que versam sobre a liberdade e a igualdade entre os cidados, o que inevitavelmente deixa o governo russo num complexo dilema. Pode tambm ocorrer que, no futuro, tal lei perca a fora devido s prprias mudanas internas do pas, o que faz parte da dinmica de constante reformulao a que esto sujeitas as sociedades democrticas.

Parece no haver, portanto, uma justificativa razovel para excluir argumentos religiosos da esfera pblica j que percebemos que, mesmo dispondo to somente de argumentos seculares, as controvrsias iro impreterivelmente surgir. Ora, ainda assim persevera o embarao que envolve a lide com a linguagem religiosa nos espaos pblicos. Concordamos que cada religio possui crenas e terminologias especficas que podem soar vazias e sem sentido, ou mesmo repercutir de maneira ofensiva e indesejada entre no crentes ou pessoas pertencentes a uma religio distinta. Pensando nisso, Rawls defendeu por um tempo que, mesmo em democracias aonde reina o imperativo da diversidade (religiosa, filosfica ou cultural) todos os cidados deveriam deliberar sobre questes polticas por meio de uma linguagem da simples razo, deixando suas vises religiosas no vestbulo da esfera pblica. A despeito da natureza tirnica desta exigncia, muitos acreditam hoje ser esta a melhor opo: padronizar uma linguagem que poderia ser exercida e entendida por todos os envolvidos. No entanto, o prprio Rawls voltou atrs a respeito dessa perspectiva e prope a insero de uma clusula nos critrios que determinam a validade de uma razo pblica.

Apesar de uma argumentao pblica depender inteiramente de uma concepo poltica de justia, isso no impede que sejam introduzidos na discusso poltica argumentos provenientes de uma doutrina abrangente, seja ela religiosa ou no religiosa. Sendo este o caso, estabelecida uma condio, a qual visa o atendimento do critrio de reciprocidade: que, em algum momento, sejam oferecidas razes adequadamente pblicas para apoiar os princpios e as polticas que se acreditam estar implcitos na referida doutrina. Com efeito, o que se pede que, sendo utilizada uma doutrina abrangente no debate poltico, ela em algum momento seja traduzida para uma linguagem pblica, o que garantiria a validade do argumento dentro dos parmetros da razo pblica. Essa condio chamada por Rawls de clusula. No obstante, ela nos parece a soluo terica mais razovel tanto para a problemtica da comunicao entre as diferentes perspectivas na esfera pblica, quanto para a garantia de neutralidade do estado em relao s diversas doutrinas abrangentes defendidas pelos cidados de uma mesma comunidade poltica.

A pergunta que no podemos ignorar, no entanto, : como isto se d na prtica? At que instncias da esfera pblica so vlidos argumentos no pblicos e quando se faz efetivamente necessria a traduo desses argumentos para uma linguagem pblica? Para Rawls a resposta a esta questo no fixa e depender das conjunturas polticas de cada sociedade, o que deixa o assunto sujeito a controvrsias. Habermas, por exemplo, dir que a traduo de argumentos de natureza religiosa deve ser feita a partir do momento que estas adentram no mbito das instituies pblicas, como parlamentos, tribunais e demais setores administrativos. J para Taylor, a traduo dos argumentos no pblicos, tanto os seculares quanto os religiosos, deve ser exigida somente no mbito da linguagem oficial do estado aquela encontrada em leis, decretos e decises judiciais no afetando a deliberao dos cidados nem de seus representantes na esfera pblica formal. Obviamente cada um oferece motivos distintos e especficos para seus posicionamentos, os quais requereriam muito mais espao do que aquele que temos aqui, sendo apenas importante ressaltar que ambos concordam com Rawls quanto a necessidade de que, em algumas zonas de um estado secular, seja utilizada uma linguagem neutra.

VI. Concluso

No incio deste trabalho mencionamos que Charles Taylor tem por pretenso traar um impensado acerca da secularizao e do atual papel da religio nas sociedades democrticas plurais. Para ele, a necessidade de seu empreendimento advm do fato de haver muitas teorias da secularizao concorrentes que, assim como diversos tipos de credo religioso, podem complicar o debate por estarem contaminadas com uma espcie de ideologia que julga falsa a religio e busca promover seu declnio construindo diversos cenrios da morte de Deus. Como o termo ideologia pode ser mal compreendido, Taylor prefere usar o conceito foucaultiano impensado para exprimir como as narrativas da sociologia/histria da secularizao esto sujeitas a interferncias do ponto de vista pessoal de seus autores, isto , no simplesmente como uma expresso polmica da viso de algum, mas no sentido mais sutil de que o prprio quadro de referncia de algum, suas convices e valores, podem constringir a imaginao terica dessa pessoa.

Em outras palavras, encaramos na construo da histria da secularizao o mesmo problema que observamos haver no secularismo poltico: a dificuldade de garantir estruturas que cumpram sua funo com neutralidade. No pretendo aqui advogar a possibilidade de uma narrativa histrica ou sociolgica totalmente neutra apesar de ser natural esperar um mnimo distanciamento de um historiador ou de um cientista social , mas alertar para uma forte tendncia que impera em meio s narrativas da secularizao de difundem uma viso de mundo antirreligiosa. Como afirma Taylor:

(...) E, de fato, h um poderoso impensado (...) em operao: um ponto de vista que sustenta que a religio deve declinar seja (a) porque ela falsa e a cincia mostra que isso assim; seja (b) porque ela crescentemente irrelevante (...); ou (c) porque a religio est baseada na autoridade e as sociedades modernas conferem um lugar de importncia crescente a autonomia individual; ou alguma combinao dessas trs. Isso to forte no tanto por ser sustentado entre a populao em geral quo amplamente parece variar de sociedade para sociedade , mas po