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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada Ismael Nery: a narrativa do essencial Trabalho de Literatura Comparada II Profa. Sandra Nitrini Júlio César Alves (5676125) 2º Semestre - Noturno Dezembro – 2008

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDepartamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Ismael Nery: a narrativa do essencialTrabalho de Literatura Comparada IIProfa. Sandra Nitrini

Júlio César Alves (5676125)2º Semestre - Noturno

Dezembro – 2008

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Reconheça o que está diante de teus olhos,e o que está oculto a ti será desvelado.

Jesus Cristo(Evangelho de Tomé. Versículo 5)

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................Ismael Nery no cenário artístico do início do século XX..........................................

Quadro nacional antes de 22..............................................................................São Paulo modernista.........................................................................................A renovação das artes (1917-1921)...................................................................

Percurso filosófico, poético e plástico de Ismael Nery..............................................Bibliografia...................................................................................................................Cronologia......................................................................................................................

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Em 1928, Mário de Andrade publica no Diário

Nacional, em São Paulo, um texto que segundo ele é uma espécie de “apresento fulano de

tal”1. De fato, até aquele momento, não havia ainda Ismael Nery exposto nada que

despertasse a atenção da crítica e dos artistas contemporâneos. Surgida a oportunidade de

duas apresentações importantes do artista paraense – uma em São Paulo e outra no Rio –

parecia que o Pintor Maldito sairia da “toca solitária em que vivia”, nos dizeres de Mário,

para descortinar-se finalmente ao grande público.

Em 1929, premido pelos amigos e pela família, realiza Ismael Nery sua primeira

exposição no Palace Hotel do Rio. Houve um movimento de interesse da parte dos

intelectuais. Graça Aranha, segundo nos conta Murilo Mendes em suas Recordações,

entusiasmou-se com o jovem artista que, no dia do encerramento, ofereceu-lhe um quadro e

outro a Álvaro Moreira.

1BENTO, Antonio (1973), p, 45.

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Logo após a morte de Ismael Nery, em 1934, Murilo Mendes fez uma exposição de

seus quadros e depois os guardou em sua residência por mais de 30 anos, os quais

reapareceram somente em uma exposição na Petite Galerie, do Rio de Janeiro, ocasião em

que todas as obras expostas foram rapidamente vendidas aos mais diversos colecionadores,

como Chaim José Hamer, Giuseppe Baccaro, Franco Terranova e casal Nemirovsky. É

bastante intrigante o que aconteceu com a obra de Ismael Nery entre o ano de sua morte e

esta exposição de 1966, em que seus trabalhos subitamente ressuscitaram. A que se deve

este interesse tardio?

Para Antonio Bento, seu amigo e biógrafo, Ismael Nery “foi o primeiro pintor

surrealista brasileiro”. Segundo ele, “do ponto de vista formal, Ismael se havia tornado um

pintor muito avançado em relação à sua época, do que resultou a hostilidade e a

incompreensão do público a respeito de suas atividades artísticas”2.

A respeito deste silêncio da crítica em relação à obra de Nery, assim se expressa

Aníbal Machado no seu artigo “A morte de Ismael Nery”3:

Com o mesmo frenesi com que nas suas realizações plásticas fazia utilização das coisas sensíveis, mostra o seu desdém pelo que ele considerava aparência enganadora e desprezível de uma essência imortal, resultando daí o seu desinteresse em guardar as próprias produções, que estariam perdidas se o poeta Murilo Mendes, o mais próximo de seus companheiros, não as arrecadasse na certeza que estava colhendo dados para a canonização do amigo. O caso de Ismael Nery terá de ser estudado e compreendido à luz de outros elementos que não os mais correntes na interpretação dos homens, infernado por uma vida interior tempestuosa, agarrado aos fantasmas de sua psicose, falando aos demais espíritos de preferência, mas não unicamente na linguagem sibilina de seus desenhos, esse artista passará incompreendido, se julgado pela escala dos valores humanos.

Esta incompreensão deveu-se, portanto, segundo relato dos que com ele conviveram

e sempre admiraram, à incapacidade de discernimento crítico de uma geração indisposta a

acolher um artista tão avançado e universal, e ao fato de ele mesmo, Ismael Nery, preferir o

anonimato à uma carreira, digamos, profissional, por ele sempre ter se considerado um

diletante em tudo o que fazia. Neste sentido, é revelador o último pedido que Ismael faz a

2 BENTO, Antonio. (1974). pp 79-80.3 Op. Cit.

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seu amigo Murilo na véspera de sua morte: “me pediu que destruísse todos os seus

trabalhos e que estudasse os evangelhos, mormente o de São João. Atendi apenas ao

segundo, obviamente”4.

Depoimentos acerca de Ismael Nery revelam um homem de extrema sensibilidade

para o contato humano, para o diálogo, para a palavra. “O meu maior instinto é o da

paternidade que aplico a tudo e a todos. A minha maior vontade era ser a sombra de tudo e

de todos, a fim de nascer e morrer com tudo e com todos e todos os tempos”. E mais: “não

me conformo nem com o espaço nem com o tempo/Nem com o limite de coisa

alguma./Tenho fome e sede de tudo”5.

Esta ânsia de abrangência sem limite, que não reconhece barreiras de qualquer

ordem, revela indubitavelmente o espírito cristão que vivia no artista, que procurava retratar

em sua obra excepcional um tipo humano ideal, deslocado de todo contexto para se

reconciliar com sua própria essência, naturalmente infensa a qualquer restrição de tempo e

espaço (esta noção, aliás, presidiria sua doutrina filosófica não escrita, chamada por Murilo

Mendes de essencialismo). Neste viés, expressa-se Aníbal Machado sobre a figura de

Ismael Nery:

Ismael esquecia e evitava as aparências objetivas que acaso o prendessem à realidade exterior e à vida quotidiana, contra a qual se insubordinava, revelando assim o seu subjetivismo de inadaptação ao real. Não só inadaptação, como horror ao real agravado por uma compreensão pânica do mundo (...). Do mundo sensível o artista apenas se utiliza como indicação e ponto de referência para as suas abstrações plástico-poéticas6.

Como se vê, Ismael era um homem totalizante, que, no dizer de Murilo, desejava

estar em todos os lugares ao mesmo tempo, presidir a todos os atos e manifestações da vida,

nascendo com os que nascem, crescendo os que crescem, sofrendo com os que sofrem,

gozando com os que gozam, morrendo com os que morrem, ressuscitando com os que

ressuscitam. Isto inevitavelmente teria suscitado no artista a necessidade pungente de

desdobra-se em inúmeros “eu”. Segundo ele mesmo relata em uma de suas notas autógrafas

4 MATTAR, Denise (2000), p. 32.5 Op. Cit., p. 09.6 Op. Cit., p. 80

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citadas por Murilo: “As leis humanas só nos permitem a realização de uma única vida, o

que é para um homem do meu temperamento sinônimo de asfixia moral”. Não havia dois

homens em Ismael Nery: havia muitos homens que disputavam o primeiro lugar no drama

que ele representava. Em outra nota, diz ele:

Senti sempre uma imperiosa necessidade de representar simultaneamente os papéis mais diversos, e, quanto maior em número fossem eles, mais eu me sentia estável na minha vida pessoal, e incorporado à vida universal.

Antonio Bento chega mesmo a comparar Ismael Nery a Miguel Ângelo, no sentido

de que os dois artistas teriam trazido o Homem para o primeiro plano e feito-o objeto de

reflexão. A diferença, no entanto, é que para Ismael Nery, o corpo humano era o motivo

único de sua arte; para Miguel Ângelo, o tema exclusivo.

Muito embora a figura humana tenha sido o motivo único da expressão artística de

Ismael Nery, é possível crer que sua busca pelo tipo ideal, se não servia de meio necessário

para sua própria descoberta, era invariavelmente uma forma de apreender da existência

universal a experiência de um único homem: a dele mesmo. Podemos citar como indício

desta percepção o Poema Post-essencialista (1931), em que escreve:

(...) Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através das grades, aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo na minha mãe, mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada. Voltarei ainda uma vez para ser o meu próprio juiz. Nada existe além de mim mesmo, senão para mim. Silêncio.

Ismael Nery nasceu em Belém do Pará a 9 de outubro de 1900. Foram seus pais o

médico dr. Ismael Nery e a sra. Marieta Macieira Nery. Nas suas veias corria sangue

português, holandês e índio. A família mudou-se para o Rio tendo Ismael dois anos de

idade. Nesta cidade, estudou no colégio Santo Antônio Maria Zacaria e Santo Inácio. Desde

cedo manifestou vocação para o desenho e para a pintura. Não se dedicou muito aos

estudos de humanidade. Preferiu sempre a observação direta da vida.

Entrou para a Escola de Belas Artes em 1915 ou 1916, mas dentro em breve os

professores diziam à família que nada mais podiam ensinar-lhe, restando ao jovem apenas

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aperfeiçoar-se na Europa. Na escola, foi um aluno rebelde e indisciplinado, gostando de

estudar livremente: nas galerias transpunha à sua maneira as estátuas gregas.

Em 1920-1921 fez sua primeira viagem à Europa, demorando-se na França e na

Itália, onde – segundo seu próprio depoimento – estudou de preferência os mestres antigos

de pintura. Em fins de 1921 foi nomeado desenhista-arquiteto da antiga Diretoria do

Patrimônio Nacional – Ministério da Fazenda. Foi quando ocorreu seu encontro com o

poeta Murilo Mendes, que relata assim este fato em suas Recordações:

Foi em fins de 1921 que conheci Ismael Nery. Eu trabalhava na Diretoria do Patrimônio Nacional, no Ministério da Fazenda. Ismael Nery foi nomeado desenhista da seção de arquitetura e topografia. Vi, um belo dia, entrar na sala um moço elegante e bem vestido. Ajeitou a prancheta, sentou-se e começou a desenhar. Meia hora depois saiu para o café. Aproveitei sua ausência e resolvi espiar o que ele fazia: rabiscava bonecos em torno de um projeto para o edifício de uma alfândega. Ao regressar puxei conversa com ele: saímos juntos da repartição. Assim começou uma amizade que se prolongou ininterruptamente até o dia de sua morte.

Em 1922 casou-se com aquela que mais tarde viria a ser a poetisa Adalgisa Nery.

Dessa união nasceram dois filhos, Ivan e Emanuel. Em 1909 perdera Ismael o pai, falecido

como ele mesmo aos 33 anos de idade. Em 1918 perdia Ismael seu único irmão, João,

vitimado pela gripe espanhola.

Ismael tinha apenas 25 ou 26 anos de idade, e já os seus próximos sabiam que havia

construído um sistema filosófico muito original, apesar de o não escrever. Era o

essencialismo, como o denominara Murilo Mendes. Baseado na abstração do tempo e do

espaço, na seleção e cultivo das coisas essenciais à existência, na redução do tempo à

unidade, na evolução sobre si mesmo para descoberta do próprio essencial. Suas raízes

vinham de longe: embora muito pouco dado a leituras, conforme nos relata Murilo Mendes,

era Ismael extremamente curioso de todas as experiências humanas, passando sempre em

revista as teorias mais diversas. Este sistema, segundo relato dos que com ele conviveram,

servia de introdução ao catolicismo. Assim que o indivíduo tivesse se convertido à religião

católica, de nada lhe serviria mais este sistema.

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Em 1927 vai Ismael Nery pela segunda vez à Europa. Estava então o surrealismo no

seu apogeu. Ismael, muito sensível a todas as tendências modernas, interessou-se vivamente

pela doutrina e pelo grupo, tendo procurado em Paris, além de outros, André Breton e

Marcel Noll. Recebeu então vários convites para expor. Murilo nos conta que neste mesmo

ano Ismael fez conhecimento pessoal com Marc Chagall, a quem muito apreciava; e, ao que

tudo indica, o russo retribuiu-lhe na mesma moeda, pois lhe dedicou várias gravuras e

fotografias.

Nos fins de 1930 declarou-se em Ismael Nery a tuberculose pulmonar. Em 1931

internou-se no Sanatório de Correias, perto de Petrópolis, onde permaneceu mais ou menos

dois anos. Em julho de 1933 tinha Ismael Nery chegado a atingir o que os tisiologistas

chamavam uma cura radiológica aparente. Deixou então o sanatório, indo passar alguns

meses em Teresópolis. Mas não acreditou totalmente pois, segundo Antonio Bento, instalou

no Hotel Avenida, pois não queria contaminar os filhos pequenos. Em dezembro daquele

ano manifestou-se uma úlcera tuberculosa na glote, estendendo-se a mesma para a laringe.

Aí então Ismael, pedindo para afastar as crianças, resolveu voltar à sua casa, onde queria

morrer. Depois de terríveis sofrimentos aceitos com serenidade, faleceu em 6 de abril de

1934, à Rua Carlos Peixoto, 60, casa 3, no Leme, assistido pela Igreja, por sua mulher, sua

mãe, seus amigos e parentes mais próximos. Está sepultado no Cemitério de S. João

Batista, quadra 6, n. 999 E.

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Ismael Nery no cenário artístico do início do século XX

Quadro nacional antes de 22

Surge em São Paulo, no início do século passado, um grupo de intelectuais e artistas

que organizariam um movimento em prol da atualização da expressão artística nacional, em

relação ao cenário que já se configurava na Europa desde o final do século XIX. Liderados

por Oswald de Andrade e Mário de Andrade, este grupo tencionava revolucionar o quadro

das artes no Brasil, libertando-o do academicismo engessado e anacrônico dominante nas

manifestações artísticas até então.

No âmbito das letras, predominava a tendência parnasiana, com alguns poucos

adiantados entre os simbolistas. No Rio de Janeiro, reuniam-se nas academias de belas artes

pintores e escultores formandos segundo preceitos estéticos rígidos, importados de Paris,

mas não da Paris dos impressionistas e expressionistas, fauves, ou cubistas. Eram modelos

importados de uma escola estrangeira cuja excelência não estimulava a criatividade, mas

antes a imitação servil de moldes ditos universais.

Ademais, pesava sobre nós o nosso próprio autodesconhecimento, herança ainda

dos tempos coloniais. De fato, a Coroa desde o início da colonização favoreceu o

separatismo; as várias capitanias e centros estabelecidos não se comunicavam, não se

conheciam, mal sabiam da existência dos outros.

Este era o quadro nacional do início do século XX: um país desconhecido para a

imensa maioria dos brasileiros, dentre os quais alguns artistas que buscavam alinhar-se a

modelos estrangeiros, estranhos ao espírito e à singularidade de um país recém-

independente e republicano, ainda em formação de uma autonomia.

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São Paulo modernista

Pouco a pouco São Paulo vinha-se tornando em um centro industrializado, que se

tornaria em modelo perfeito dos tempos modernos, da mudança de posicionamento, de

mentalidade, com o advento do capitalismo e do forte afluxo de mão-de-obra estrangeira.

Recaía-se ainda sobre a antiga Vila de São Paulo a imagem desbravadora dos bandeirantes,

vila que desde a sua fundação recebe a marca de cidade sem fronteira, que recebe

forasteiros do país e do mundo, que dali saem para conquistar novos territórios.

A cultura cafeeira – e sobretudo os capitais que ela gerou – transformou totalmente

a cidade, que rapidamente acumula capitais e atrai intenso fluxo imigratório europeu. Na

virada do século, a cidade contava com 250 mil habitantes, dentre os quais 150 mil eram

estrangeiros7.

É neste cenário moderno, de forte desenvolvimento capitalista e industrial, que

aquele grupo de intelectuais e artistas se organizaria para, no ano do centenário da

independência (entendida esta também como independência de espírito), em fevereiro de

1922, dar início à Revolução Modernista.

A renovação das artes (1917-1921)

Costuma-se considerar Anita Malfatti como precursora da modernização das artes

brasileiras, cujo início teria-se dado a partir de sua exposição em 1917, a qual recebeu

violentas críticas de Monteiro Lobato, que logo depois da exposição escreve um artigo

intitulado“Paranóia ou mistificação”, em que condena a artista e sua obra. Isto agitou o

meio artístico, mobilizando Oswald de Andrade e Mário de Andrade, jovens escritores, e

em seguida Brecheret e Di Cavalcanti, a unirem-se em defesa da pintora.

7 Rolnik, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha, 2003.

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Esta mobilização dos artistas em defesa de uma nova linguagem foi o primeiro ato

claro de existência de um espírito comum, ansioso por colocar o Brasil em harmonia com

as manifestações artísticas do estrangeiro.

Cabe lembrar, no entanto, que esta exposição não foi a primeira manifestação de

arte moderna no Brasil. Lasar Segall, quatro anos antes, já havia exposto suas obras em São

Paulo, as quais revelavam forte ligação do artista lituano com as tendências expressionistas

da Alemanha. Esta exposição, entretanto, passara desapercebida. A respeito disto, Mário de

Andrade relata que “a presença do moço modernista era por demais prematura para que a

arte brasileira, então em plena unanimidade acadêmica, se fecundasse com ela”8. De fato,

não houve à época qualquer manifesto de repúdio ou apoio a Segall, o que revela a ausência

de mobilização a favor de uma nova expressão artística. Este simples fato – anseio de

modificação – é o que dá singularidade à exposição de 1917 de Anita Malfatti. É esta

exposição a fagulha que dá início a um movimento revolucionário, que culminaria na

Semana de Arte Moderna, fevereiro de 1922, Teatro Municipal de São Paulo.

O objetivo deste movimento era claro: derrubada de todos os cânones que até então

legitimavam em nós a criação artística. Esse objetivo destrutivo, claramente enunciado,

traria, como mais tarde Mario de Andrade diria, o direito permanente à pesquisa estética, a

atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora

nacional. Esta consciência consistiria em voltar-se para si mesmo e perceber a expressão do

povo e da terra sobre a qual o país se estabeleceu.

Pode-se dizer que internacionalismo e nacionalismo foram as características básicas

do movimento modernista ocorrido nas letras e nas artes de meados da segunda década do

século passado. Nossos artistas viajaram à Europa, lá se formaram e logo regressaram à

terra natal. Esta vivência no Velho Mundo certamente mudou a forma como aqueles artistas

passaram a enxergar a cultura brasileira, dando-se conta da inadequação da produção

artística à realidade nacional.

8 AMARAL, A. (2001), p. 94.

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Outro aspecto importante é o surgimento de uma mentalidade crítica, auto-reflexiva,

dos brasileiros sobre seu próprio país, mentalidade esta que começou a ser esboçada quando

da independência, mesmo nos movimentos literários, como o Romantismo. Porém, é a

partir da Proclamação da República (1889) que uma ânsia de afirmação toma uma forma

mais clara, dando à geração dos artistas modernos revolucionários o desejo de rompimento

com a intelectualidade formada no século XIX e com o academismo na arte. Segundo estes

artistas, a realidade física, cultural e folclórica de nosso país havia sido propositalmente

olvidada pelas elites dominantes, que buscavam identificar-se com a Europa. Era preciso,

pois, reconciliar o artista com sua terra; procurar formas de expressão de seu tempo, e

adaptá-las a temáticas nacionais.

Atualizar as idéias estéticas a partir de modelos europeus recentes, sobretudo nas

artes plásticas, surgiu como possibilidade de renovação para a arte brasileira: cubismo,

expressionismo, idéias futuristas, dadaísmo, construtivismo, surrealismo. Por outro lado, o

aguçamento da percepção sensível em relação à nossa realidade local, como dito acima,

deve-se principalmente à ampliação dos horizontes culturais proporcionados pela vivência

na Europa. O caminho tomado pelos modernistas era justamente este: romper com o

passadismo em dois aspectos: superar a tradição acadêmica das artes plásticas buscando nos

modelos europeus contemporâneos uma expressão artística que plasmasse melhor o espírito

revolucionário; e utilizar-se desta expressão para reconciliar o artista com sua verdadeira

origem, o povo brasileiro.

Longe de toda esta movimentação, passaram a reunir-se ao lado de Ismael Nery, no

Rio de Janeiro, um grupo de intelectuais que não tomaram parte do front revolucionário.

Dentre eles podemos citar, Murilo Mendes, Aníbal Machado, Dante Milano, Jorge

Burlamaqui, entre outros.

Àquela época, a cidade do Rio de Janeiro não vivenciava o furor desenvolvimentista

da capital paulista. Murilo Mendes chega mesmo a descrevê-la assim, em suas

Recordações:

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O Rio de Janeiro entre 1920 a 1930 era uma cidade deliciosa, pacata, de um ritmo de vida manso, quase provinciano. Começavam a surgir ainda tímidas as primeiras casas e apartamentos. Viajava-se comodamente de Ipanema à Praça Mauá em ônibus às vezes metade vazios. Copacabana não era o grotesco empório de exibicionismo de hoje, cumpria dignamente sua missão de pórtico do mar9.

A vida de Ismael Nery, embora intensa e agitada, desenrolara-se, todavia, numa

linha de certa discrição, sendo mesmo, aparentemente, quase apagada. De modo que,

absorvido por uma multiplicidade de problemas, pôde passar quase desapercebido no Brasil

dos 1920 a 1930. E isto é perfeitamente compreensível: primeiro porque, como vimos,

encontrava-se Ismael Nery distante do centro irradiador da revolução modernista. Vivia

num Rio de Janeiro provinciano, pacato, longe da incipiente luta de classes e do

desenvolvimento capitalista de São Paulo, cidade eleita como símbolo e palco da renovação

e do progresso. Em segundo lugar, as motivações estéticas de Ismael Nery voltavam-se ao

universal, à pessoa humana e seus conflitos existenciais, e não a uma temática nacionalista,

conforme defendiam o grupo de 22. Por último, Ismael Nery nunca coadunaria com o

pensamento cético e, por vezes, cegamente contestador daqueles intelectuais de São Paulo,

mormente no que se refere a Oswald de Andrade, que era ateu e mais tarde tornar-se-ia

membro do Partido Comunista. Oswald chega a afirmar que, mesmo não conhecendo

Ismael Nery, não gostava dele (“não vi e não gostei”)10. Talvez porque Nery fosse um

indivíduo profundamente cristão, reservado e marcado pelo relacionamento familiar, apesar

de ser um artista extremamente moderno.

Estes fatores, portanto, explicam em parte o silêncio da crítica e dos

contemporâneos acerca da obra o pintor paraense, que era conservador e ao mesmo tempo

homem moderníssimo, alinhado às últimas tendências da arte européia.

9 MENDES, Murilo. (2008), p. 69.10 Op. Cit. p. 80.

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Percurso filosófico, poético e plástico de Ismael Nery

A abordagem crítica de uma obra de arte com o intuito de compreendê-la pode

efetuar-se a partir de várias perspectivas, seja com base em sua temática predominante, nas

técnicas e estruturas expressivas que a compõem, ou em seu posicionamento histórico e

cultural no contexto em que se insere. Porém, quando no percurso analítico percebemos o

intercurso de elementos pessoais, ideológicos e expressivos, não nos podemos furtar à

análise de tais elementos no quadro geral da obra artística. É justamente o que ocorre com

Ismael Nery.

Tendo Nery constituído um modelo filosófico assentado em suas convicções

religiosas, modelo que, segundo ele, teria por objetivo reconduzir o indivíduo à sua

essência – daí sua denominação Essencialismo -, perceberemos que este sistema de idéias

na verdade permeou toda sua produção estética, seja na poesia, seja na pintura. O elo

unificador de sua obra poética e plástica é, portanto, um sistema de idéias que norteou sua

intervenção no mundo enquanto artista. Era um modelo de vida que foi sistematizado e

aplicado a cada manifestação de seu espírito. Acreditando profundamente nisto, não podia

Ismael Nery deixar de refletir em sua obra justamente o que ele era, defendia e procurava

passar a seus próximos.

O essencialismo é uma teoria filosófica e artística criada por Ismael Nery sobre as

bases católicas, estando baseada na abstração do tempo e do espaço. Segundo o próprio

Ismael, o sistema essencialista era em última análise uma preparação ao catolicismo. No dia

em que o iniciado se tornar católico – dizia -, o sistema lhe servirá para mais nada, pois terá

adquirido um grau superior e definitivo.

Segundo o Essencialista, tudo o que existiu foi absolutamente útil; verdadeiramente

o homem nada fez que não tivesse pelo menos o grande valor de uma experiência. A

construção integral de um indivíduo passa, portanto, pela soma de todos os momentos

pretéritos decisivos para a sua constituição atual. Tentar interpretá-lo fora desta óptica é ter

uma visão fragmentada de seu todo. O homem deve representar sempre em seu presente

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uma soma total de seus momentos passados. A localização de um homem em um momento

específico de sua vida contraria a dinâmica da existência, que está baseada no movimento.

O Essencialismo dá uma grande importância à abstração do tempo, que não é outra coisa

senão a redução dos momentos necessária à classificação dos valores para uma

compensação absoluta. Deve um essencialista procurar manter-se na vida sempre como se

fosse o centro dela, para que possa ter a perfeita relação das idéias e dos fatos.

Ora, basta observar o quadro “auto-retrato” (óleo sobre tela de 1927) para perceber

a força desta filosofia. Na composição, ao centro da figura aparece o artista sentado numa

cadeira dividindo o quadro em dois espaços, à direita uma paisagem parisiense com a Torre

Eiffel sugerida e, à esquerda uma paisagem carioca com a representação do Pão-de-Açúcar.

Em cada uma das paisagens, sobrepostas à Torre Eiffel e ao Pão-de-Açúcar, temos os perfis

de Ismael Nery refletidos no mesmo nível de seu rosto. No mesmo ano que Ismael pintou

este quadro, havia estado em Paris durante alguns meses, e ilustra a concomitância de dois

momentos de sua presença nas duas cidades. Esta concomitância temporal de situações

vividas por Ismael era deliberadamente proposital, para expressar que o conhecimento de

um homem é resultante da soma de situações vividas. Em texto cuja redação foi

acompanhada por Ismael Nery e por ele aprovada, Jorge Burlamaqui nos diz, a propósito do

sistema filosófico que estamos a analisar:

A abstração do tempo é necessária pelo fato de a vida ser dinâmica, isto é, existir o movimento e a evolução. Um homem que se estudar em um momento, não se conhecerá. O presente de um homem é porém um resultado do seu próprio passado e do de seus antepassados . Um homem com a abstração do tempo consegue antes de qualquer ato moral avaliar todos os seus efeitos e sua repercussão11.

11 MATTAR, Denise. p. 84.

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Auto-retrato (1927)Óleo sobre tela

Coleção particular

O tempo é, pois, para o artista um conceito que limita a possibilidade do

conhecimento mais abrangente, assim também como o é o conceito do espaço. A abstração

destes dois conceitos é portanto determinante na constituição integral de um homem, e

Ismael procurou retratar isso inclusive em relação a si mesmo. Veja-se o poema

“Confissão” (1933), que transcrevemos abaixo:

Não quero ser Deus por orgulho.Eu tenho esta grande diferença de Satã,Quero ser Deus por necessidade, por vocação.Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,Nem com o limite de coisa alguma.Tenho fome e sede de tudo,Implacável.Crescente.Talvez seja esta a minha diferença de DeusQue tem fome e sede de mim,Implacável,Crescente,Eterna- De mim que me desprezo e me acredito um nada.

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O conceito de tempo pode expandir-se de maneira ainda mais radical, quando

instintos e sentidos são colocados em questão. Ao analisar este fato segundo a filosofia

essencialista, Burlamaqui diz que:

um homem, diante de uma mulher que o atraia, quer sempre a eliminação do espaço, no máximo possível. A distância dos físicos não é suportada pelo par sexual. A diminuição da distância aumenta ainda mais a atração sentimental. O amor integral é um desejo de absorção mútua dos espaços morais.

É justamente a partir desta perspectiva filosófica que parece Ismael Nery considerar

a relação abstrata de espaço entre o homem e a mulher, entre os seres humanos como um

todo. Sua obra mostra a tentativa inveterada de acabar com todos os espaços possíveis que

separam a humanidade, em prol de um centro único – o essencial – que acabe com as

diferenças de qualquer sorte entre as pessoas humanas. Vejam-se, por exemplo, os quadros

“Nós”, “O encontro” e “Figura decomposta”.

Em “Nós”, vemos duas figuras que se sobrepõem, se confundem, e parecem

convergir para o mesmo ponto, para uma mesma origem. A metade de cada parte se

dissocia de si para encontrar a parte cindida do outro, causando a impressão de haver três

figuras na representação, quando na verdade são apenas duas. É o movimento de cada uma

das metades para encontrar a outra que gera a impressão (verdadeira) de haver três ou mais

rostos no quadro. Se atentarmos bem, veremos que há três bocas, mas apenas quatro olhos e

dois narizes. Talvez esta terceira figura seja a interseção das duas outras, concorrendo para

a eliminação das distâncias.

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Nós (1928)Óleo sobre tela.

Coleção particular

“O encontro” sem dúvida é o quadro que melhor representa a busca da essência pela

abstração do espaço. Seu nome sugestivo dá título a uma obra que exibe, em primeiro

plano, um casal cujas formas da face se confundem e se fundem num único rosto. No plano

de fundo, um outro casal, em que não se percebe bem onde começa e onde termina os

corpos de cada um dos amantes, parecem querer tanto subtrair a distância física que os

separa, que seus corpos são apenas sugeridos de forma incompleta. A busca pelo essencial

neste quadro vai além: Ismael imprime no canto inferior direito da obra os seguintes

dizeres: “Meu caro Ismael / não sei porque qualquer / homem que vejo se parece com

você”. O indivíduo busca a identidade para perdê-la no outro, e assim aspira à divindade, a

ser Deus. A composição “Fragmentos do meu poema” (1933) é representativa neste

sentido:

Sei que és minha tanto quanto a minha mãoQue separada do meu corpo morreria,Sei que é minha toda a tua vontadeDesde o dia em que sentiste que a tinhas.Confundimos nossos corpos,Misturamos nossas almasE eu ainda não estou saciado de ti!

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Não basta que eu seja o dono da tua vidaOu que pudesse ser o autor da tua morte,Eu precisaria ter sido o teu inventorPara estar agora satisfeito

- Mesmo que pertencesses a outro.

O encontroÓleo sobre Tela

MAM

“Figura Decomposta” pode ser considerada como a síntese dessa busca de

interpretação do essencial. Há a interseção de dois corpos, mas a distinção entre eles é bem

nítida, embora suas faces estejam destituídas de identidade. Poderíamos até interpretar que

a “decomposição” da unidade corrobora para perda dos elementos essenciais que permitem

distinguir cada pessoa. Parece mesmo que os perfis sobrepostos a cada face vazia sejam a

essência de cada corpo.

Figura decomposta

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Óleo sobre telaColeção particular, SP

Como vimos, a figura humana é sempre o componente principal dos trabalhos de

Ismael Nery. Diríamos que o ser humano é sempre o ator ou agente que figura no

acontecimento representado.

A personificação do próprio artista assumindo os diferentes papéis, representado em

seus quadros, é notória. O poema “Oração” (1933) reforça essa referência aos nossos olhos

para a decodificação e identificação de seus persona/imagens:

Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo?Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio,Neste corpo que gasta todas as minhas forçasPara tentar viver sem ridículo tudo que sou.- já estou cansado de tantas transformações inúteis,Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação,- Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezesirreconhecívelA minha própria mulher e a meus filhosA meus raros amigos e a mim mesmo?- Ô Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo!Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almasOu levai-me deste mundo, que já estou exausto.

Ismael Nery pintou um sem-número de auto-retratos, confirmando sua disposição

filosófica de permanecer no centro de sua vida, para que daí pudesse abranger

holisticamente sua existência. Sua ânsia de encontrar no outro sua identidade o fez escrever

poemas como “Oração”, nos quais ele não se contenta com fato de seus estados de alma

sempre dinâmicos encontrarem-se encarcerados em um corpo incapaz de transmitir o

motivo profundo de sua existência: o encontro com o outro. É quando daí surge o conflito

com a própria imagem. No poema “Manhã”, chega mesmo a escrever:

Olhei-me no espelho e achei excessiva a anatomia de meu corpo, sobretudo da minha cara. Para que olhos, para que boca, para que nariz? O homem deveria ser uma bola com pensamento. Que creio de mim? Creio que eu seja uma coisa qualquer sem classificação, apenas com uma aparência humana.

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A declaração de ele, Ismael, considerar-se um ator sem vocação da própria vida

deixa bem claro que o individual, o fragmentário, é totalmente incapaz de oferecer o

reencontro com o essencial; daí não significar nada a aparência humana, que ofusca a

tendência que os homens tem para a unidade. Nada mais ilustrativo que o quadro “Nu no

cabide”, no qual o exterior, a aparência, o superficial, encontra-se dependurado e, portanto,

dissociado da existência interior:

Nu no cabideÓleo sobre tela

Palácio dos Bandeirantes

Para sintetizar a filosofia que Ismael defendeu ao longo de sua curta vida, filosofia

que, como vimos, fez-se presente em todas as suas manifestações artísticas, sempre

defendendo um posicionamento mais racional e humano das pessoas e a total abstração do

tempo e do espaço para que cada indivíduo se desse conta da totalidade, podemos

transcrever um dos poemas mais representativos da fase surrealista de Nery, chamado

“Poema post-essencialista”:

O silêncio provocou-me uma necessidade irreprimível de correr. Abalei como uma flecha através dos mares e montanhas com incrível facilidade e sem cansaço. Eis-me agora sentado, diante de uma paisagem em formação, ainda não

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colorida. O meu pensamento agora é que percorre o que acabei de percorrer, e admiro-me, então, de nada ter encontrado, senão ao chegar o rastro fosforescente que deixei ao partir. Os mares são agora ridículos lençóis d’água, de uns três ou quatro palmos de profundidade.

As montanhas são nuvens estáticas, que o eterno medo dos homens transformará em granito. Tudo é pavorosamente desabitado. Não há leões nem elefantes nos desertos da África. Não existem as pirâmides nem a Torre Eiffel. Existe apenas eu mesmo, que me percebo inversamente por uma idéia que chamo mulher e que paira rarefeita sobre a superfície do globo – idéia incompreensível porque nada existe na terra além de mim mesmo. Volto a percorrer novamente o espaço, porém, desta vez, com a lentidão do crescimento das plantas, multiplicando-me progressivamente na minha idéia para mostrar-me a mim mesmo. Os mares, agora, são profundos e as montanhas se solidificaram. Aparecem leões e elefantes nos desertos da África. Construíram as pirâmides do Egito e levantaram a Torre Eiffel, em Paris, no ano em que um outro eu nascia em Belém do Pará. Tudo se povoou transbordantemente. Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através das grades, aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo, na minha mãe, mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada. Voltarei, ainda uma vez, para ser o meu próprio Juiz, nada existe, além de mim mesmo, senão para mim.

Silêncio.

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BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Aracy A. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Editora 34, 2001.BENTO, Antonio. Ismael Nery. São Paulo: Brunner, 1973.MATTAR, Denise. Ismael Ney: 100 anos, a poética de um mito. Rio de Janeiro: FAAP, 2000.MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996.NADEAU, Maurice. História do Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.ROLNIK, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha, 2003S/A. Ismael Nery: 50 anos depois. São Paulo: MAC/USP, 1973.SYPHER, Wylie. Do Rococó ao cubismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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CRONOLOGIA

1900 – Nasce em Belém do Pará, a 9 de outubro.

1917/1920 - Rio de Janeiro RJ - Estuda na Enba.

1920/1921 - Paris (França) - Estuda na Académie Julien.

1921 - Rio de Janeiro RJ - Trabalha como desenhista da Seção de Arquitetura e Topografia da antiga Diretoria do Patrimônio Nacional do Ministério da Fazenda, onde conhece o poeta Murilo Mendes.

1929 - Individual, no Palace Theatre, Belém (PA).

- Individual, na Galeria do Palace Hotel, Rio de Janeiro.

1930 - Individual, no Studio Nicolas, Rio de Janeiro.

- Nova York (Estados Unidos) - The First Representative Collection of Paintings by Brazil-ian Artists, no International Art Center of Roerich Museum.

1931 - Salão Revolucionário, na Enba, no Rio de Janeiro.

1933 - 2ª Exposição de Arte Moderna da SPAM, São Paulo.

- 3ª Salão da Pró-Arte, Rio de Janeiro.

1934 – Morre no Rio de Janeiro, a 6 de abril.

1935 - Exposição de Arte Social, no Clube de Cultura Moderna, Rio de Janeiro.

- Retrospectiva, na Pró-Arte, Edifício da Associação dos Empregados do Comércio, organizada por Murilo Mendes, Rio de Janeiro.

1948 - Murilo Mendes publica uma série de artigos intitulados Recordação de Ismael Nery, no jornal O Estado de S. Paulo.

1965 - 8ª Bienal Internacional de São Paulo.

1966 - Retrospectiva, na Petite Galerie, Rio de Janeiro.

- Retrospectiva, no MAM/RJ, Rio de Janeiro.

1967 - 5º Resumo de Arte JB, no MAM/RJ.

- Pioneiros da Arte Moderna do Brasil, no Diretório Acadêmico da Enba, Rio de Janeiro.

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1969 - 10ª Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo.

- Vídeo Sérgio Santeiro: O Guesa, Ismael Nery, Viagem pelo Interior Paulista, de Paulo Mendes de Almeida - Funarte

1970 - São Paulo SP - Ismael Nery: 40 anos depois, no MAB/Faap

1971 - São Paulo SP - Ismael Nery, no A Hebraica.

- Ismael Nery, na Galeria Barcinsky, Rio de Janeiro.

1972 - São Paulo SP - A Semana de 22: antecedentes e conseqüências, no MASP.

1973 - É publicado o livro Ismael Nery, de Antônio Bento, com introdução de Murilo Mendes.

1974 - Ismael Nery: 1900-1934, no MASP, São Paulo.

- Retrospectiva, no MAB/Faap, São Paulo.

1975 - SPAM e CAM, no Museu Lasar Segall, São Paulo.

1980 - Homenagem a Mário Pedrosa, na Galeria Jean Boghici, Rio de Janeiro.

1981 - Artistas Brasileiros da Primeira Metade do Século XX, no Instituto Histórico e Geográfico, Maceió, Alagoas.

1982 - 80 Anos de Arte Brasileira, no MAB/Faap, São Paulo.

- Do Modernismo à Bienal, no MAM/SP

- Universo do Futebol, no MAM/RJ

1984 - Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira, no MAM/SP.

- Ismael Nery: 50 anos depois, no MAC/USP, São Paulo.

- 7º Salão Nacional de Artes Plásticas - Salão de 31, Rio de Janeiro.

- Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileiras, na Fundação Bienal, São Paulo.

- A crítica Aracy Amaral lança um livro sobre a obra do pintor.

1985 - 18ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal, São Paulo.

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- Exposição circulante por Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre - Rio: vertente surrealista.

1987 - 19ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal, São Paulo.

- Ao Colecionador: homenagem a Gilberto Chateaubriand, no MAM/RJ.

- Modernidade: arte brasileira do século XX, no Musée dArt Moderne de la Ville de Paris, França.

- O Ofício da Arte: pintura, no Sesc, São Paulo.

1988 - Modernidade: arte brasileira do século XX, no MAM/SP.

- Vídeo Pés Descalços, Mulatas, Anjos e Serras, de Zita Bressane - TV Cultura/Fundação Padre Anchieta.

1989 - Arte Brasileira dos Séculos XIX e XX nas Coleções Cearenses: pinturas e desenhos, no Espaço Cultural da Unifor, Fortaleza.

- Seis Décadas de Arte Brasileira: Coleção Roberto Marinho, no Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal.

1992 - Arte Moderna Brasileira: acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, na Casa da Cultura de Poços de Caldas, Minas Gerais.

1993 - 100 Obras-Primas da Coleção Mário de Andrade: pintura e escultura, no IEB/USP, São Paulo.

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