ISSN 2526-818X CRÍTICA DO SENSO COMUM MILI- TANTE … · sociabilidade e política sob uma leitura...

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1 VOLUME 1, N.1 Maio A OUTUBRO2017 www.revistacampoaberto.com.br A VOZ DO CONTEMPORÂNEO sociabilidade e política sob uma leitura benjaminiana das particula- ridades Gilberto Tedeia A CONTINUIDADE DA INVARIÂNCIA: A crítica como persistência da modernidade e a pós-modernidade como ideologia Carine Gomes Cardin Laser SOBRE A BOMBA ATÔMICA Luiz Ben Hassanal Machado da Silva A NOÇÃO DE PARTILHA Rancière e os laços entre politica e estética Michelly Alves Teixeira CRÍTICA DO SENSO COMUM MILI- TANTE Contra o irrefletido identitarismo Thiago Martins A DISCRETA DESILUSÃO DA BURGUESIA Notas sobre o filme Aquarius Alysson Oliveira ISSN 2526-818X

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1 VOLUME 1, N.1Maio A OUTUBRO2017

www.revistacampoaberto.com.br

A VOZ DO CONTEMPORÂNEOsociabilidade e política sob uma leitura benjaminiana das particula-ridadesGilberto Tedeia

A CONTINUIDADE DA INVARIÂNCIA: A crítica como persistência da modernidade e a pós-modernidade como ideologiaCarine Gomes Cardin Laser

SOBRE A BOMBA ATÔMICALuiz Ben Hassanal Machado da Silva

A NOÇÃO DE PARTILHARancière e os laços entre politica e estéticaMichelly Alves Teixeira

CRÍTICA DO SENSO COMUM MILI-TANTEContra o irrefl etido identitarismoThiago Martins

A DISCRETA DESILUSÃO DA BURGUESIANotas sobre o fi lme AquariusAlysson Oliveira

ISSN 2526-818X

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A CONTINUIDADE DA INVARIÂNCIA: A crítica como persistência da modernidade e a pós-modernidade como ideologiaCarine Gomes Cardin Laser

A voz do contemporâneosociabilidade e política sob uma leitura benjaminiana das particularidades p.5-15Gilberto Tedeia

A discreta desilusão da burguesiaNotas sobre o fi lme Aquariusp.26-28Alysson Oliveira

Sobre a bomba atômicap.29-36Luiz Ben Hassanal Machado da Silva

Crítica do senso comum militantecontra o irrefl etido identitarismop.37-40Thiago Martins

SUMÁRIO

A continuidade da invariância A crítica como persistência da modernidade e a pós-modernidade como ideologiap.18-25Carine Gomes Cardin Laser

A noção de partilhaRancière e os laços entre estética e políticap.41-49Michelly Alves Teixeira

N 1

Pós-apocalipse ou para que uma revista? Refl exões acerca do tempo presente p.3-4D. Barros

Mais uma morteQuando a vida vale p.16-17Renato Santiago

Volteios do tempo brasileirop. 52-56Bruno Carvalho

Três poemas de Langston Hughesp.50-51 tradução de Lucas Bertolo

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EDITORES RESPONSÁVEIS: Douglas Rodrigues Barros e Jéssica Quirino

EDITOR VERSÃO IMPRESSA: Douglas Rodrigues Barros

EDITORA VERSÃO DIGITAL: Jéssica Quirino

CONSELHO EDITORIAL:

BRUNO CARVALHO RODRIGUES DE FREITAS

BRUNO HENRIQUE DE SOUZA-SOARES

DOUGLAS RODRIGUES BARROS

GABRIEL RAMPONI

GILBERTO TEDEIA

JULIANA SIQUEIRA CAMPOS

LEANDRO NASCIMENTO PEREIRA

MICHELLY ALVES TEIXEIRA

SILVIO ROSA FILHO

THIAGO CALHEIROS

THIAGO MARTINS

A Revista Campo Aberto é um publicação semestral de estudantes e professores de Filosofi a

A Campo Aberto não se responsabiliza pelas ideias e conceitos expressos nos artigos assinados, estes não representam necessariamente a opinião da revista

REVISTA CAMPO ABERTOe-mail: [email protected]

ISSN: 2526-818X Número: 1

Maio de 2017 VOLUME 1

COLABORADORES REVISTA CAMPO ABERTO NÚ-MERO 1

ALLYSON OLIVEIRAé doutorando em Letras pela Universidade de São

Paulo (USP)

BRUNO CARVALHOé doutorando em fi losofi a pela Universidade de São

Paulo (USP)

CARINE GOMES CARDIN LASERé mestranda da faculdade de educação da Universi-

dade de São Paulo (USP)

DOUGLAS RODRIGUES BARROSé doutorando em fi losofi a pela Universidade Federal

de São Paulo

GILBERTO TEDEIAé professor na Universidade de Brasilia (UnB)

LUCAS BERTOLOé graduado em fi losofi a pela Universidade Federal de

São Paulo e tradutor

LUIZ BEN HASSANAL MACHADO DA SILVA é doutorando em fi losofi a pela Universidade Fe-

deral de São Paulo

MICHELLY ALVES TEIXEIRAé graduanda em fi losofi a pela Universidade de Brasí-

lia (UnB)

RENATO SANTIAGOé bacharel em direito pela Universidade Federal de

Alagoas

THIAGO MARTINSé graduando em fi losofi a pela Universidade Federal

de São Paulo

Ilustração da capa: Cleiton Custódio

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Pós-apocalipse ou para que uma revista?

As revoluções são as locomotivas da história(Marx)

A polícia arrasta uma mulher negra pela via asfaltada; um jovem negro é con-denado a onze anos de prisão pelo crime de portar um Pinho Sol; uma travesti é espan-cada e seus algozes sorridentes filmam sua agonia, garantindo o tenebroso espetáculo; policiais em Pernambuco abrem fogo contra um jovem manifestante e o lançam em cima de um carro após arrastá-lo pelas ruas en-sanguentado. Como se vê, a barbárie é con-dição de existência nos trópicos. Entretanto, enquanto isso ocorre diante de nossa costu-meira insensibilidade, há aqueles para quem tais acontecimentos são só o prenúncio de uma catástrofe ainda por vir. E aqui o poema de Bertolt Brecht ganha sentido “não sou ne-gro, não sou gay, não sou imigrante!”. Acreditar que o pior está por vir é uma forma tranquila de não ver a desgraça imperante. Lutar por um saudoso futuro no-bre tornou-se a forma mais tranquila de se abster da transformação necessária ao pre-

sente. Pensar em um outro mundo possível é o modo mais conformista de não instituir novas formas de vida e sociabilidade. Por tudo, percebemos que o Império ganhou a gramatica de nossa revolta. A denúncia disso é doravante pressuposto de toda a crítica. Sendo assim, não nos cabe disputar espaços de poder senão destituir todo sis-tema de visibilidade imperante e de novo a experimentação, a criação e o poder do ne-gativo guiam nossa práxis teórica. De novo a democracia “realmente existente” é ques-tionada em nome de uma democracia direta, cuja ação direta, o enfrentamento sem me-diações, o escândalo de dizer o óbvio são as iconoclastias necessárias para instituir um novo corpo político. Um novo corpo imagi-nário que vibra no martelo de um menino ao ser lançado contra um caixa eletrônico e nas letras gritadas pelos poetas que se multipli-cam nas periferias da grande babilônia. A “violência é a parteira de toda so-

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EDITORIAL

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ciedade velha que está prenhe de uma so-ciedade nova” já havia nos dito Karl Marx. Mas, nós, os cornudos de esquerda dos tristes trópicos, fomos alheados a partir do sistema de representatividade criado por um Estado policialesco que manteve um regime sanguinário por vinte anos. Alguns intelectuais confirmaram a sentença da farsa e como Dick, o louco personagem de David Copperfield, enviavam sinais através de uma pipa lançada aos céus sem endereço certo. Mas nós ignoramos tais sinais até que tudo se acabou. Tudo ruiu e não há um ho-rizonte crescente possível. O progresso fora substituído pela gestão da crise. E o discur-so da crise tornou-se forma de contenção e manipulação programática. Destituir uma sociabilidade que ade-riu organicamente a causa do Império é uma premissa urgente. Seu ponto de partida é a identificação da alteração operada e a re-estruturação ofensiva do modo de produção capitalista que sobreveio justamente quan-do a modernização fracassava em todos os sentidos. O toyotismo, o just-in-time, a au-tomação, flexibilização, descentralização e precarização são alguns dos aspectos da vi-rada sistemática e da criação de uma psique que viveu entre o triunfalismo com o nada e a melancolia com tudo. A crise e o revo-lucionamento do sistema se tornariam per-manentes e desde os anos 1970 tal forma de vida vive de ecos nostálgicos e destrutivos soluços violentos. Existe, portanto, toda uma mobili-zação da “vigilância”, toda uma busca pelo autocontrole que vende centenas de livro de auto-ajuda numa era de violência impla-cável. Todos querem se curar. E do Oriente ao Ocidente a extrema direita triunfa sob a suspeita milenar e alucinatória frente ao Outro negativo, agora encarnado na figura do forçado exílio imigrante. Enquanto isso, a esquerda é atropelada e recolhe silencio-sa seus cacos conceituais em sua busca do tempo perdido. Nossa revista nasce em meio a este cenário apocalíptico e, como regra geral, a

incandescência histórica nos entrega em mãos o privilégio de aumentar a legibilida-de teórico-crítica de nossa época. São sob as linhas de fogo no Campo Aberto que atu-aremos em três barricadas: 1) um projeto de revista acadêmica que, no silêncio noturno da meditação e paciência do conceito, não tem intuito de sobrepor à elaboração teórica a prática, mas vê na própria teoria sua prá-xis e na forma artística sua realização; 2) A elaboração da Ordem do Dia, espaço criado para artigos de intervenção direta no deba-te público e nos temas candentes de nossa época; 3) projeto audiovisual que se vale das formas do cinema como plano difuso para organizar um imaginário, assim como um corpo político imaginário. Esta tríade de atuação não é vã, mas reflete o praticismo irresponsável e o filis-teísmo agourento que infelizmente grassou em grande parte da esquerda e que consti-tuiu seu dialeto padrão, reforçando a derro-ta. Da putrefação de seu legado nada mais empesteia o ambiente do que a busca pela afirmação de identidades que reforçam os nichos de mercado. Do mesmo modo, toda a profissão de fé e o culto ao trabalho se-guem uma cantinela dissonante em relação ao tempo presente e, assim, o naufrágio no oceano de contradição conceitual fomenta o riso inimigo. Sob a égide do espetáculo, os obre-ristas se acotovelam em cima dos carros de sons tentando canalizar a revolta para falar em seu nome. Da Grécia à Tunisia milhares invadem os parlamentos e descobrem que o poder não está lá. Como o Grande Irmão de George Orwell, a coesão do capital é garan-tida pelo simulacro imagético da propagan-da estampada nos outdoors e repetida in-cansavelmente do nascimento até a morte do consumidor. Agir e agir torna-se aí a for-ma de não fazer nada e, ao mesmo tempo, uma ótima desculpa para ocultar das vistas o apocalipse já vivenciado. Afirmar esse va-zio, essa “ruptura-em-relação-a”, um sujei-to negativo, só podem ser tarefa da crítica e, nesse ponto, a revista ganha sua razão de existência.

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A VOZ DO CONTEMPORÂNEO SOCIABILIDADE E POLÍTICA SOB UMA LEITURA BENJAMI-NIANA DAS PARTICULARIDADES

Como se pode fundar um espaço, prática e pensamento político que não seja prisioneiro da mera descrição de particularidades? A resposta a essa pergunta percorre dois caminhos, o primei-ro, o do pensamento abstrato, no qual o artigo tem como horizonte o texto de Benjamin “Para uma crítica da violência”, a fim de construir uma plataforma que fale da totalidade e se coloque para além de pautas particulares. O segundo caminho toma como matéria, tema, assunto, a sociabilidade que emerge nos reality shows se-gundo recorte trabalhado por Silvia Viana, em Rituais de Sofrimento, a fim de tecer, para além dos limites impostos pela sociabilidade organi-zada pela concorrência, o paradigma do neoli-beralismo hoje, apenas para tecer na conclusão novas formas de se pensar o direito, o poder e a política. Em suma, trata-se de articular sociabi-lidade e violência pura segundo Benjamin com nexos entre o direito e a política na contempo-raneidade.

Palavras-Chave: sociabilidade – violência pura – Benjamin – direito – política

por Gilberto Tedeia

Por isso o processo de desapropriação da vida, como último bem que lhe resta-va, implica também o seu extermínio, uma vez que não é um indivíduo singular e insubstituível que é assassinado, mas apenas um exemplar fungível cuja ne-cessidade de extermínio é nenhuma em si mesmo, mas reside apenas no grupo a que ele pertencia. Bruno Carvalho Rodrigues de Freitas*

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How can be found a space, practical and po-litical thought that is not prisoner of description of particular means? The answer to this question runs through two paths: the abstraction thinking, under benjaminian horizon in “Zur Kritik der Gewalt”, a way to build a point of totality view, beyond particularities in politic. An another way, having as contents the sociability emerging in “re-ality shows” second Silvia Viana, we meet, beyond the limits imposed by organized sociability in competition, new ways to think right, power and politics.

Keywords: sociability - pure violence - Benjamin - right - policy

In: Psicanálise e crítica social em Adorno. Dissertação de Mestrado em Filoso� a, Universidade de São Paulo, 2016, p.209.

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A cena política hoje é atravessada por um desengano não todo intencional e que apa-rece aos diretamente concernidos como para-doxo involuntário: a defesa de identidades em luta pelo reconhecimento jurídico-institucional tem como apogeu a gestão do Estado visando implantar políticas públicas que garantam e consolidem conquistas, e a instauração da polí-tica como mera gestão é tida na conta de grande fruto de lutas antissistêmicas em geral. O que chamaremos aqui de “voz do con-temporâneo” busca expressar a dimensão da instauração desse sujeito. Não são poucos os que dedicam uma militância de vida inteira em luta contra a exploração do homem pelo ho-mem, no campo como na cidade. Não são raros os que, por conta dessa militância, são vítimas de “forças a serviço da manutenção da lei e da ordem” – e quanto mais intensa a militância, maiores são as chances de serem perseguidos. Soma-se, a esses grupos aguerridos unidos por uma pauta universalizante anticapitalista, ou-tros tantos grupos igualmente militantes, e até mais virulentos, em luta pelo reconhecimento de suas particularidades de gênero, sexual, ét-nicas e quantas mais sejam possíveis de serem postas. Esse segundo grupo também é forma-do por sujeitos políticos que, por conta de suas particularidades, são perseguidos, silenciados, criminalizados, presos ou mortos. A “voz do contemporâneo” busca falar desses sujeitos que, por um motivo ou por ou-tro, são silenciados em nome da lei. Aqui e ali o texto recorre a exemplos concretos, pois não se pode ignorar a quadra histórica golpista instau-rada como fundo objetivo em que essa leitura se inscreve. Porém o leitor se defrontará aqui an-tes com um experimento conceitual tendo por meta mostrar o alcance e limites da instauração, enunciação, escuta dessa voz, a fim de destacar um cenário conceitual que supere esses limites. Para tanto, após algumas idas e vindas, a meta é pensar uma dimensão para a política que se coloque para além do direito, da lei e das for-mas de violência usadas para a sua manuten-ção. O fato de isso poder ser pensado, para falar como Benjamin, mostra que ao menos não é impossível de ser posto como horizonte teóri-co e prático a busca de um lugar para as lutas

políticas que se recusem a captura pelo brilho jurídico e administrativo da máquina de gestão dos fundos públicos. Essa captura, caso mereça algo mais do que recriminação e censura, exige tatearmos em busca de alternativas à mesa que está posta. Por ora, o que temos é que sequer o problema está sendo formulado em sua magni-tude.

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Comecemos com o que pode parecer uma questão metodológica: dentre as exigên-cias para o tratamento de um tema, de saída uma bifurcação se coloca: assumimos ser possí-vel tratar do tema “voz do contemporâneo” vi-sando percorrer algo como a totalidade de suas dimensões? Ou, ao invés de uma “totalidade”, teríamos em vez disso de escavar as zonas som-brias, miúdas, aquelas às quais não se dá muita importância, para alcançar algo como um mo-mento de verdade que lance luz sobre a totali-dade do primeiro recorte a fim de fazer falar o objeto, a voz política contemporânea. Mas aqui se levanta uma suspeita. E se a segunda confi-guração do recorte possível, a que se volta para as zonas miúdas, nos enganar e entregar um sa-ber que mascararia ou, pior ainda, um “saber” sobre a voz que nem voz nem saber o seria? Percorrer algo com a amplitude posta pelo títu-lo do artigo, “a voz do contemporâneo”, dada a sua magnitude, beiraria o indeterminado, o que facilitaria abrir, por sua desmedida, o modo de percorrer a questão nas dimensões que propos-tas. Por ora, afirmemos que a via da totali-dade é aberta a abstrações, já a via alternativa, algo empírica aliás, teria de se contentar com a leitura de restos e farelos normalmente aban-donados, esquecidos, com o possível ônus de nos perdermos de vez por essa via.

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* De saída, vamos percorrer o caminho que busca falar do todo por abstrações. Sabemos que as abstrações sempre tornam a tarefa mais fácil, não à toa é um ardiloso caminho com mais de dois milênios e meio de história conceitual. Após a invenção da disjuntiva entre “teoria tradicional e teoria crítica” pensada lá nos anos 30 e sistematizada no ensaio homônimo de Horkheimer(1) , sabemos que o pressuposto que organiza disjuntivas como essa, abstrações ou a empiria em suas particularidades?, é um pressuposto epistemológico que se assenta sobre a sociabilidade posta em movimento pelo capitalismo. Postas as coisas sob esse ângulo, não há como fugir desse re-corte. E ele, o capitalismo, é alçado à condição de questão a ser tratada preliminar e cientificamente sob um recorte que, se valendo da obra de Marx, mostra como a captura do valor produzido pelo trabalho sub-sumido pelo capital é o fundo da grande contradição que organiza o conjunto das formas da vida social: a captura do valor produzido pelo trabalho assalariado dá a conhecer leis e tendências que organizam a reprodução material da sociedade, e, com ela, a política, a justiça, a ci-ência, as artes e tudo o mais que seja resultado da intervenção humana. Porém, apenas citando dois registros distintos, desde Marramao até Laval & Dardot(2) , não faltam alertas sobre limites a tais projetos de interpretação que subsumem uma dada dimensão social à lei geral do valor, alertas que, dito de modo resumido, destacam o desconhecimen-to estrutural do saber que, limitado a esse recorte economicista, ignora a dinâmica política que opera e organiza a “voz do contemporâneo”. Se o tempo é o contemporâneo, então é dele que estamos falando malgra-do ignorarmos tanto o que seja o fluxo contemporâneo da gestão do capital, quanto as dimensões, e não apenas as políticas mas sobretudo essas, que organizam a trama das contradições da vida social em sua concretude. Ou seja, somam-se a falta de dados e a falta de categorias conceituais que saibam lidar com as muitas alterações nos mecanismos de acumulação, reprodução e gestão organizada da riqueza e relações socialmente produzidas. Malgrado esses alertas, é algo presente a todos os que se debru-çam sobre tais limites a necessidade de se buscar um horizonte à teoria e ação políticas que sirva de patamar que conecte as diferentes experi-ências de lutas contemporâneas. Uma das propostas é a que se apoia nas artes como via de acesso a um ponto de encontro das duas dimensões desenhadas como disjuntivas no começo do texto. Temos o exemplo de Rancière, em Partilha do sen-sível (3) . Ou ainda, Badiou a repropor a pauta emancipatória radical que organizou as lutas comunistas de outrora e que hoje parece muda, silenciada, esterilizada. Tal é também a demanda que esse texto assume: mantenhamos a pauta radical como axioma político. E de saída, é necessário assumir que ela existe. É um axioma prático nos recusarmos o abandono desse viés, sob pena de trairmos os tantos combatentes que tombaram no passado.

1 - Cf. HORKHEIMER, Max. “Te-oria Tradicional e Teoria Crítica”. In: ____, Adorno, Benjamin, Ha-bermas. Obras Escolhidas. São Paulo: Abril, 198- [Coleção Os Pensadores].

2 - Cf., mais precisamente, MARRAMAO, G. O político e as transformações. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990; LAVAL, C., DARDOT, P. A nova razão do mundo - ensaio sobre a so-ciedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2006.

3 - Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

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Porém, será que, com isso, não estaría-mos apenas reciclando formas autoritárias pos-tas pelos desvios da ideia comunista quando entraram em cena na história? O que o axioma prático da pauta radical recusa, contudo, é abandonar um saber sobre o todo das formas da vida social, por mais tênue, fragmentado ou tíbio que seja. Isso nos leva ao campo de abstrações que marca a produção discursiva sobre uma configuração da “voz do contemporâneo” na política que vamos tomar como ponto de parti-da: o relativismo do festival das singularidades em rede, horizontais e em festa que se recusam a aceitar que o Outro, a diferença, possa produ-zir um discurso sobre suas singularidades en-quanto parte de algo que as atravesse. Importa destacar nesse discurso crítico crítico (4) a transformação da defesa da dife-rença em tirania da identidade que se recusa a se relacionar com qualquer outra identidade que não seja ela mesma e, nesse compasso, nega o Outro como mera diferença. Esse discurso, ao negar o que lhe é dife-rente, instaura-se como tirania da identidade da diferença satisfeita consigo mesma. Aqui, o mais libertário dos discursos desconstrutivistas encontra o seu oposto, o batido solo fascista da defesa de uma identidade primordial. O que há de comum a ambos? Em ambos, o discurso identitário vira as costas para as tentativas de universalizar lutas antissistêmicas. Se, nos nacionalismos vários, do século XIX ao XXI, o discurso identitário serve para amalgamar lutas fratricidas entre povos e geno-cídios intranacionais, sua contrapartida “liber-tária rizomática policêntrica antilogocêntrica a bater tambor em diálogo com a Lua” serve para esfacelar a unidade política das lutas que se propõem antissistêmicas. Pela via instaurada por essa voz, a escu-ta que ela propõe aparece fincada em embates contra um inimigo comum, o qual nunca se sabe quem seja, a enunciar “pluriformes horizontali-zantes redes de multifacetadas vozes das parti-cularidades em revolta”. Mas é uma via que leva

a um beco sem saída e sucumbe, sem sequer um gemido resignado, às forças e pautas políticas retrógradas e fundamentalistas que o Golpe de Abril impôs goela abaixo (5) . Mas fiquemos nas dimensões em que essa voz positiva algo. Eis que emerge uma “voz do contemporâneo” atravessada, à esquerda (6) , por algo como um fundamentalismo da dife-rença que se funde num curto-circuito: a defesa da enunciação política de uma “reserva de mer-cado” discursivo-teórica ao portador de par-ticularidades, quando vai ao encontro de sua práxis social, mostra-se como tirania de uma identidade. O desafio aqui é distinguir um campo em que a política possível é a experiência po-lítica de um saber e uma luta e um discurso e uma narrativa que opera por justaposições e oposições. O desafio é: como se apropriar poli-ticamente de uma experiência atravessada pela recusa de percorrer, lidar, superar, absorver, partilhar as possibilidades abertas pelo embate político do encontro com o que lhe é diferen-te, na medida em que o que “permanece”, o que se instaura, é o reino das particularidades em negação mútua, todas e cada uma se tendo na conta de prenhes de determinações políticas, consciência, valores e pautas ademais instituí-das em oposição antissistêmica? Para complicar o campo posto por tais negações, chegamos ao patamar em que vozes particularizantes visam à destruição das polí-ticas emancipatórias que se pretendam unidas por um fio comum anticapitalista. A meta das enunciações assim formula-das é a afirmação da particularidade que se ins-taura como voz política, e que apresenta uma condição: ela é apresentada como inalcançável pelo “Outro de suas diferenças”, mediante pro-cedimento análogo à recusa, de extração tan-to romântica quanto heideggeriana, de acesso, porque interditado, a uma verdade que por isso é inefável e não-partilhável. Chegados a esse ponto, poderíamos nos contrapor a esse carnaval das particularidades em fúria remetendo o leitor ao Rancière que, em A Partilha do sensível , propõe a abertura a

5 - Golpe que, sem deixar margens a dúvidas, soma os fundamentalismos de mercado e cristão.

4 - Uma remissão à fórmula empregada por Marx para se referir a certa esquerda pós-hegeliana.

6 -Não custa explicitar: à direita inexiste o “contempo-râneo”, apenas reposições de esquemas de exploração do homem pelo homem em busca da maximização da lucratividade sob o regime do mata-esfola, variando sempre as confi gurações ideológicas que os instaura e legitima, mas é para além deles todos que o texto ace-nará na sua parte fi nal.

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todos do campo de experiências que acabamos de ver sendo fechado ao Outro, tendo por chave que abre a re-lação, que pode sim ser universaliza-da, a relação entre a arte e a produção do saber, mediante a prática emanci-patória na sua relação com o mundo graças ao modo como são produzidos os sentidos, como obra coletiva e não--travada por sujeito que se arrogue o posto de exclusivo produtor das enunciações e significados. Por essa via, o que para a sensi-bilidade política pós-moderna é mera descrição de zonas de sombra à po-lítica, pode agora então se instaurar como compreensão de zonas de polí-tica para além da placidez resignada das sombras que a mera descrição identitária desenha. Enfim, o que propomos aqui, como alternativa ao teatro de som-bras de particularidades em que se perde a “voz do contemporâneo”, é a possibilidade de um saber transfor-mador, conflitual e coletivamente for-mulado poder levar à transformação da noção mesma de política aqui teci-da, uma tarefa levada a cabo de modo interdisciplinar e materialista. De saída, remete-se o leitor à chave proposta por Horkheimer no texto citado: se quisermos ir além de demandas postas por trustes do sis-tema industrial, irmos para além do bloqueio ao saber crítico, temos então de dar novo passo, dessa vez em dire-ção ao sujeito da produção do saber e em direção às tarefas que se abrem ao olhar teórico que varre o mundo ma-terial em busca das engrenagens que o movem, a serem desenhadas segundo o repertório completo de diferentes ciências particulares. Não há narrativas prontas: o saber que é objeto da consciência crí-tica é também a prática crítica que coloca à consciência teórica um novo saber.

* É necessário agora atraves-sarmos o registro das coisas miúdas tingidas de empiria, aquele segundo

caminho apontado no começo dessa exposição, a fim de essas coisas miú-das fazerem falar essa voz do contem-porâneo perdido em fragmentos sem valor, e que esses fragmentos façam falar o todo da vida social. Para tanto, no que se segue a exposição se valerá da pesquisa publi-cada no livro Rituais do Sofrimento, na qual Silvia Viana (7) mira os reali-ties shows para destacar, da sociabi-lidade que os organizam, destacar o andamento do mundo do trabalho nos dias que correm. A leitura de seu texto permite--nos acompanhar a efetivação de um movimento do pensamento pelo qual o fragmento de uma situação particu-lar anódina – qual seja, a exposição de um recorte de vidas vividas sob cer-ta edição de imagens seguindo certo roteiro de atividades – faça falar para nós algo do tempo em que vivemos, mais precisamente, fale algo desse ri-tual tresloucado e insano que é o mun-do do trabalho. Nos realities, como no mundo do trabalho, vidas voluntaria-mente se colocam nos moedores de carne em uma disputa por um lugar na assadeira da empregabilidade pre-cária e esvaziada de sentido. Ou an-tes, tem um sentido: o de participar e permanecer na corrida pelo “posto”, pouco importa seu conteúdo – quem já fez trabalho voluntário em ONG ou “bate metas” em prestação de serviço sabe muito bem o que é esse sem-sen-tido insanamente perseguido de que se trata aqui (8). O que nos interessa nessa lei-tura é destacar que pouco importa o como e o que é o conteúdo de tais práticas da máquina de moer social: o que vemos emergir em Rituais é o edificante lugar discursivo das iden-tidades satisfeitas com suas particu-laridades mostrar-se, esse lugar, no ato mesmo da concorrência feroz que se entregam os participantes dos re-alities, o seu avesso e fundo falso do discurso identitário. Quando? Quan-do a meta dos farelos de vidas moídas é o encontro de uma etiqueta que as preserve da desaparição, do massacre ou, no caso dos realities, os preservem

7 - Cf. VIANA, Silvia. Rituais de Sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2012.

8 - Tortuosos tempos de produtivismos vá-rios, quando currículos latem e não mordem.

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de serem sempre lembrados sob a rubrica de “você se lembra do ex-BBB X?”, quando tenta escapar da negação completa da identidade que se realiza como afirmação da identidade do para-sempre-esquecido. O que temos agora? Por um lado, o paradoxo da busca da “voz do contemporâneo” é não podermos descurar da dimensão positiva de lutas particulares que conferem valor de verdade às defesas radicais da identidade como diferença. Sob esse recorte, (1) a meta é se opor ao projeto político massacrante que esvazia a pretensão do “posto” pelas identidades em luta sob categorias ou recortes universais, totalizantes, e (2) a meta é se opor aos recortes abstratos e vazios destituídos da concretude da experiência, do embate, da vivência geralmente fundada na vida ou memória ou fragmentos do indivíduo em sua via sacra pelo mundo. Ao mesmo tempo, porém, por outro lado, trata-se de dar conta dos pilares que sustentam essa via, a sua condição de possibilidade, as suas condi-ções materiais ou históricas, e é aí que a justa demanda da identidade política interverte-se em seu oposto, e se transforma no inofensivo registro de par-ticularidades em diálogo de surdos, desencontro cujo ápice é se colocarem, como histórias de vida em disputa por um lugar ao sol (9), em concorrência trancadas na casinha, gravadas e mandadas ao ar 24 horas por dia mediante pay per view. Pode-se finalmente formular a pergunta: o que poderia trazer um pa-tamar que fosse, a um só tempo, comum, universal, mas não fosse abstrato, vazio? A resposta a essa pergunta permite trazer à cena uma ideia e hipótese, encontradas como legado entre pilhas de derrotas políticas espalhadas pela história do homem como história da luta de classes, e que abre nova disjunti-va: ou condenamos as vítimas dessa história ao mesmo esquecimento denun-ciado pelos que defendem a primazia do particular de suas identidades, ou nos colocamos como herdeiros dessas vozes silenciadas, que se somarão às nossas vozes, protestos, gestos, ao nosso saber-fazer sem que isso seja apenas um querer-poder (10) . Isso implica mudar o mundo esvaziando os lugares do poder, lugares a serem esvaziados sim, pois, de outro modo, acabaria reposta a dinâmica política contemporânea, a hoje rebaixada ao mau-infinito da mera governa-bilidade. Implica recusar repetir os colapsos das correntes de esquerda grega ou brasileira que chegaram ao poder, reconhecer em ambos os casos não haver a suposta reconciliação possível sem que sucumba em traições ao seu ponto de partida e à própria identidade política que os leva ao “poder”, que de fato jamais tiveram nem terão nesse jogo de cartas marcadas. O que se propõe aqui é o surgimento de um salto emancipatório que reúna as certezas daqueles que se sabem portadores de alguma particularida-de. O que se propõe é um olhar para a verdade que move os portadores de alguma particularidade, mas sem se restringir à repetição tautológica do si-mesmo. Porque o trazido pela memória de lutas políticas é história e diálo-go com o conjunto de saberes e práticas, sobretudo as relegadas ao segundo plano pelo status quo em suas várias dimensões, que vão do acadêmico, do institucional, do jurídico ao moral, ao midiático e ao senso comum, a lista va-riando conforme a plataforma, lugar, dimensão dos embates travados. O silenciamento da memória da história dessas lutas impõe à prosa política, no seu encontro com o real, a pauta desenhada apenas pelo momen-to de verdade em chave realista dos confrontos travados, e a transformação

9 - Mas podia ser também a disputa por um espaço na próxima edição da re-vista A1, ou pelo maior número de orientandos o possível, ou pelo maior caixa 2 de campanha eleitoral.

(10 - Esse dilema é mais premente ainda quando, no rescaldo do Golpe de Abril, uma das alternati-vas, a única no cenário das forças políticas com algo mais na manga que fantasias raciocinantes ensandecidas ou gueti-zadas, seria voltarmos o relógio e reestabele-cermos o andamento da política como gestão que vigorou no período que ora se encerra com o pi-parote desfechado contra o lulismo de resultados pela aliança togada-par-lamentar-policial-midiáti-ca.

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em verdade única do que seja imposto como a dimensão do consentido, permitido, possível pela ordem instituída. Eis o ponto em que a voz do discurso do realismo político pretende fazer valer como o chão da concretude: quando esse realismo ape-nas aceita caminhar por essa via, acaba por im-por como possível apenas o que é posto sob o re-corte da situação mesma, e, assim, acaba-se por se firmar, como voz política, o oposto do reino da liberdade, da democracia, da política (11). Pois bem: “estado de exceção tornado re-gra”, para citar a proposição de Agamben, é um dos nomes desse real consentido, permitido e re-produzido como o único possível. Em nome da governabilidade e do cam-po da correlação de forças, o estado das coisas realmente existente acaba levando as esquerdas, do norte ao sul do planeta, a implementarem medidas que jamais subscreveriam se estives-sem fora dos dispositivos de poder – basta-nos, como exemplo, a aberrante Lei Antiterrorismo aprovada a toque de caixa pela “ex-esquerda” brasileira, lei que foi (12) e será usada para cri-minalizar coletivos ou ações ou mobilizações ou mesmo postagens na rede que se assumam an-tissistêmicas (13) .

* Instaurar a escuta da “voz do contem-porâneo” é ir para além de oposições em pares diversos eu-mundo, trabalho-arte, “certeza sub-jetiva x partido político”, “vida cotidiana x mili-tância política”. Se, nessas dimensões, todas as práticas levam à construção de saberes, e se os saberes consolidam as interações com o mundo, o desa-

fio agora é saber como discernir, superar, tecer e suportar contextos em que a liberdade de ação e a consciência que conhece performaticamen-te instaurariam dinâmicas supraindividuais que afetem tanto a vida na comunidade dos homens como a sua relação com o passado e o futuro (14). Para além do trabalho invisível da toupei-ra da história, passemos à exposição de uma rota alternativa, a desenhada em “Para uma crítica da violência” , de Walter Benjamin (15). Há ali um procedimento que elimina qualquer mediação posta pela ordem instituída mediante um experimento conceitual pelo qual se supera as determinações impostas pelos pro-jetos de direito, lei e poder – voltados seja para a reforma, seja para a mera reprodução da ordem existente – com a violência nomeada divina, a violência do ato fundador de nova des-ordem. Ali, a violência revolucionária é situada como o grau zero da violência ao se instaurar como o li-miar anterior tanto à violência como à não-vio-lência. Retome-se aqui como ambas as noções são atravessadas pelo sentido fundado em um cenário desenhado como cancelado, suprimido, destruído, e, junto com ele, os dualismos da re-lação entre meios e fins, entre o justo e ajustado, entre o instituído e o fora-da-lei. De saída, destaque-se o paradoxo apon-tado pelo autor de um limite à linguagem, quan-do o nomeado é ao mesmo tempo algo, não-vio-lência, e seu contrário, violência, sendo o direito de greve a manifestação histórica, jurídica e em-pírica desse paradoxo. Há algo de irresistibilidade pura que olha por cima do poder soberano do Leviatã, das leis e da soberania que ele funda e das diferentes manifestações de exceção que organiza.

11 - Tal ideia também organiza o Quando as ruas quei-mam: manifesto pela emergência, de Vladimir Safatle, que me chegou às mãos após a conclusão desse texto.12 - Já foi invocada (contra militância de movimentos de ocupação de imóveis que não cumprem a função social da propriedade) após o Golpe de Abril jurídico-midiá-tico encenado pelas forças da direita local derrotadas quatro vezes nas urnas por esse mesmo grupo, acima identifi cado como “lulismo de resultados”, e agora como ex-esquerda, em referência ao neologismo que surge na resposta do Mães de Maio quando recusou convite da editora Boitempo para participar de um evento em 2015 com a participação do então prefeito petista de São Paulo.13 - Lei que já começou a ser usada pelos golpistas que deram o piparote na descartável ex-esquerda no poder, descartável porque tornada irrelevante ao bom anda-mento dos negócios aos mesmos de sempre.

14 - Pelo pouco que se sabe a respeito, contudo, a tarefa parece outra: voltarmos a estudar, porque, por um lado, com o que sabemos, apenas mais do mesmo está ga-rantido, enquanto, por outro lado, no campo das práticas, a única certeza é que no fundo do poço mora uma pá – basta o regozijo no olhar dos Trumps e Serras e inte-lectuais orgânicos a serviço do colapso para lembrarmos que o padecimento de uma história de derrotas impostas por toupeiras nunca garantiu que a pá no fundo do poço estivesse sendo usada pela toupeira da história, e nunca são poucos os insepultos largados na terceira margem do rio. Em suma: nada garante um movimento pendular na história, a regressão não é seguida por reversão em proporções análogas, o que só piora quando as derrotas das forças contra-hegemônicas vão se empilhando.

15 - BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). (trad. Susana Kampff LAGES e Ernani CHAVES). São Paulo: Duas Cidades, 2011.

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Quando nos depararmos com o salto revolucionário na violência pura, apresentada como não-violência, pode-se dizer que o ver-dadeiro estado de exceção estaria então por se realizar, em contraposição à regra que é a da vio-lência instaurada e mantida pela força que assim se funda como direito. Enquanto não se realiza, o que se tem é o teatro de operações de uma trama tecida com o fio do dualismo da oposição “direito natural ver-sus direito positivo”, face a face um ao outro, em que ambos imbricam-se com limites tornados complementares, o jurídico em sua concretude dogmática e o metafísico do direito natural em sua racionalidade abstrata, respectivamente. Nos termos dessa oposição, o que temos é um jogo de fragmentos que se negam mutu-amente, por afirmarem cada um o que o outro ignora. A saída desse impasse é a demarcação de uma segunda ordem de considerações que aban-dona as representações, tanto do direito positi-vo, quanto as das teorias do direito natural, as do legal e as do justo, rumo ao além-fronteiras do direito que se limite à mera reprodução da or-dem instituída. O verdadeiro estado de exceção, sob o mote da greve revolucionária, é o salto à nova or-dem para além das determinações fundadas no dualismo entre o legal e o justo: é o modo de dila-cerar, por dentro, as certezas trazidas por ambas as demarcações, a positiva e a natural, quando entra em cena o cenário de violência nem legal nem ilegal, pois para além da mera ordem cons-tituinte, da mera ordem que apenas reporá o le-gal e o ilegal em nova chave.

* Revisemos nossos passos. Será que a complementariedade dos antagonistas desenha-dos no começo desse nosso texto, em suas ló-gicas de particularidades que se negam mutua-mente em suas particularidades, podem ser lidas sob essa chave benjaminiana? Se sim, qual o salto que se pode dar para além da ordem instituída por tais particularida-des? Como retomar as maneiras opostas que formam, juntas, o todo da relação entre meios e fins em cada uma delas?

Como lidar com o que é a maneira de co-locar a totalidade das relações possíveis, e pen-sar as particularidades da “voz do contemporâ-neo” sob o recorte que superará, em Benjamin, o embate entre as particularidades jurídicas do justo e do legal? O salto posto pela pergunta é: como ar-regimentar apoios à ruptura que não fossem apenas manifestações isoladas de ativismos voluntariosos em arremedo de um espírito re-volucionário que faria vistas grossas à maioria passiva que apanha calada, bem como consiga fazer frente à capacidade de reação de um sis-tema jurídico-administrativo portador de admi-rável capacidade de adquirir mais forças ainda nutrindo-se das pressões que sofre, ante as quais se dobra para retornar com ímpeto redobrado?Reformule-se o salto que estamos a buscar sob a forma de três perguntas formuladas tendo-se por ponto de decolagem o balanço tecido em Ri-tuais do Sofrimento, de Silvia Viana: 1 - Como agir fazendo vistas grossas à história de nossas derrotas, sobretudo quando o que está à mesa é a mera sobrevivência catas-trófica de uma civilização planetária regida por urgências em ritmo de exceções já sob a rota de colapsos vários, do ambiental ao das pautas que mantinham aceso um sentido ao viver sob infor-túnios, graças à luz da promessa, agora apagada de vez, a de que valeria suportar os tormentos, porque transitórios, uma vez que agora que não mais se fala/deseja/acena/propõe qualquer ou-tra ordem como “horizonte de expectativas” (16) que não seja a experiência sem horizontes de um presente catastrófico em regressão ao pior rumo ao infinito? 2 - O que se torna então a voz políti-ca quando a única habilidade exigida a todos é completa adaptação submissa aos diktats do mercado, tanto do ponto de vista social quanto individualmente, tanto pela maioria passiva nua de direitos quanto dos que cobrem com pactos em andrajos os seus esqueletos políticos da go-vernabilidade? 3 - O que é nos dado pensar quando se vive sob nova ordem mundial regida pela propo-sição da única habilidade permitida e exigida a todos, qual seja, a da mera adaptação heterôno-ma à concorrência sem-fim pelo que não se sabe o que seja, já que se trata não de um saber,

16 - A disjuntiva horizonte de experiências e horizonte de expectativas no sentido proposto por Koselleck.

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mas do agir sem pausas e para além de todos os limites? Como avançar para além da ação como mero ritual sem dogmas, pouco importam as qualidades, padrões de medida, quantidades, valores, expectativas em jogo? Como sair desse operar cego que reduz a todos à condição de rati-nho que corre-corre-corre para tentar preservar seu lugar da gaiola? A resposta a essas questões exigiria algu-ma ruptura que, fosse um terremoto, ultrapas-saria o dez na escala Richter. Como não se trata aqui de futurologia então voltemos ao ponto de partida do começo do nosso texto. Do ponto de vista da sociabilidade em geral, o que tivemos?Primeiro, uma série de determinações no plano da abstração que tece nexos entre identidade e diferença, e o fizemos em busca de um saber que fosse, a um só tempo, crítico, mas não dominado por exigências sistêmicas. Em seguida, num segundo momento apontamos outro recorte a fim deixar aberta uma via à sociabilidade em geral que tenha por base certa conexão entre arte e saber. Por esse portal, contudo, vimos passar também, ao lado das propostas emancipatórias, as práxis atoladas em rituais de sofrimentos au-toimpostos e geridos em realities shows. Foi quando se fez presente para nós o modo de funcionamento de subjetividades que é o novo modo de fazer política, qual seja, para além de pautas e como mera entrega plena ao ri-tual da sociabilidade esgarçada pela concorrên-cia em busca de um lugar ao sol. E descobrimos que essa concorrência do cada um por si é o “fa-zer política realmente existente” que atravessa os cotidianos vividos como apenas isso, o que se repete porque é o que realmente existe e por isso deve se repetir em intensidade redobrada senão deixa de existir. Eis aí a “voz do contemporâneo” que de fato se manifesta na corrida maluca imposta aos que dependem do trabalho para viver. Fazer po-lítica é assumir como Navalha de Ockham das ações que o que interessa é a sobrevivência a qualquer custo na viração, no concurso, na car-reira, no ilícito, no ilegal, no precário.Pergunta-se agora: como lidar com camadas de realidade que parecem se completar no que se negam? Foi aí que trouxemos o argumento de

Benjamin. As características que buscamos destacar como via para lidar com esse imbróglio são: 1) em camadas, cada momento particular do direito é captado, como fosse uma abstração, e o que pretendia ser a diferença específica de cada uma dessas formas de se apresentar o di-reito, quando posto como particularidade que caracteriza seja o direito natural, seja o positivo, cada uma a seu modo, o que atravessa a todas é o Gewalt, o poder/violência que abre espaço para um recorte que instaura o dentro e o fora do direito, seja pela via do direito natural, seja do positivo, seja ações sob o direito de greve legal, seja o seu alargamento com a greve política. Estamos no que chamamos de primeiro patamar dessa relação. Nesse patamar, o recorte que se apresenta é o da somatória geral das di-mensões particulares em jogo, um recorte que é o da cacofonia política que temos hoje. Nesse carnaval das particularidades em busca de um lugar ao sol, nos valemos da pes-quisa da Silvia Viana para mostrar que o ápice desse recorte é o “pega para capar” da viração para a sobrevivência (17) .

* Voltemos ao texto benjaminiano, agora para propor uma segunda instância, um outro lugar para a Gewalt. Por essa via, resta por diferenciar as ma-nifestações particulares da noção de direito que o autor apresenta quando, ao aportar o paradoxo da pretensão da linguagem trata esse lugar como se tivesse existência real. Aqui nos defrontamos com objeções que acusam a reflexão que propõe a superação da disjunção entre as violências instauradora e mantenedora do direito de não nos mostrar o caminho que levaria até esse ponto de supe-ração, uma objeção que assume a configuração histórica do presente como padrão de medida, pouco se importando com o fato de ser um pre-sente marcado pelo figurino travado, congelado, degradado, cortado por movimentos de lutas que resultaram em derrotas a fagocitarem nas últimas décadas o pouco que o estado de direito acenou como possível de ser um dia universali-zado.

17 - À qual se acrescenta a outra corrida sob o registro de uma viração, só que de elite, quando a viração na defesa de seus interesses se cristaliza como Golpes de Estado jurídico-parlamentares e revoluções coloridas que os EUA plantam mundo afora desde os anos 90, um desses golpes bastante íntimo nosso e ao qual o texto já fez diversas referências antes, sempre visando destacar a excepcionalidade de um jogo de cartas marcadas que só pode ter um ganhador, o mercado.

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Ao leitor entorpecido com tanta camba-lhota, informamos que o tema e tese tratados aqui são, com essa segunda instância do poder, difícil até de nomear, são (atenção para sujeito/verbo/predicado): a busca da apresentação de um modo de falar da síntese de particularidades pelo pensamento visando a superação do direito é um experimento conceitual voltado também às particularidades do cenário da luta política. Ou seja: a meta é pensar o direito e a política re-almente existentes como um modo particular perfilado dentre muitas outras manifestações possíveis, portanto, passíveis de serem supera-dos. Temos um modo de lidar com a política, que é fundado pela lei e o direito, posto agora ao lado de modos outros repertoriados que buscam ser a superação que totaliza e efetiva o que é ig-norado por cada um dos modos “realmente exis-tentes” de direito, lei, poder e política. É quando então se pode afirmar: sim, es-tamos falando de direito e poder e política em sua totalidade. No caso do direito em Benjamin, trata-se de ir para além das cisões meio/fim, justo/legal, a fim de superar cada uma delas como manifes-tações apresentadas como partes que, somados os limites que todas ignoram, comporiam a no-ção de violência pura nesse novo patamar do di-reito. É intencional em Benjamin esse afastar--se das relações jurídicas concretas. O autor se limita a acenar a campos, mais precisamente, ao da greve geral revolucionária, mas não a casos singulares, a fim de fazer desdo-brar as contradições do direito em busca dos li-mites dos casos particulares nas bifurcações que desenhou. Destaque-se que o desenho do confronto com as particularidades do direito proposto por ele não é mera abstração. Assim como não é abs-tração quando, por exemplo, falamos em uma sociedade do trabalho assalariado a subsumi-lo, o trabalho, ao capital. Ou quando comparamos a massa dos direitos garantidos ou presumidos nessa sociedade com o conjunto dos direitos e deveres de uma dada sociedade tribal isolada. Não é abstração porque estamos a considerar o direito em patamar para além de suas particula-ridades, assim como quando se tecem conside-

rações sobre a música em oposição à pintura. Encontramos em ato o que significa o sentido mesmo de caminhar do abstrato ao con-creto. Parte-se da diferença específica para len-tamente introduzir as determinações particula-res da concretude em um recorte social global. Seguindo as indicações de Benjamin, a impor-tância desse constructo é discernível quando (1) nos voltamos às formas como o parlamento de fato lida com a violência que lhe deu origem, pelo esquecimento, (2) quando o autor desdobra uma leitura da série de interditos que trancafia a dimensão constituinte do sujeito político no mesmo espaço reservado às condutas ilegais, ilí-citas ou ilegítimas, a diferença sendo o fato de es-sas últimas serem ações que não se instauraram, pela força, como direito, (3) quando mostra como o Estado, de fato, lida com a greve: concedendo ao mundo do trabalho, no máximo, que possa apresentar reivindicações que em nada alterem o estatuto da relação entre capital e trabalho, (4) quando mostra como a polícia, de fato, lida com a lei quando se arvora ações pela manutenção da lei em situações onde paire o indecisão ou vazio jurídicos ou mesmo a quebra da lei pela própria polícia sob pretexto de manter a lei (18). Chegados ao ponto de tantas demarca-ções apresentadas, o direito aparece em sua rea-lidade autônoma, que chamaremos aqui de “di-reito em situação”, desenhadas ali no texto como pluralidade de ações em que o direito está posto e em cujo nome ações são tecidas. Eis que se abre outro terreno de “particu-laridades que se querem autônomas”, só que esse terreno é o único que se impõe: o direito como um todo, e seu repertório de dimensões que co-existem, e, ao mesmo tempo, essas diferentes dimensões do direito distribuem-se em diversos momentos da vida dos diferentes indivíduos, embora contraditórias entre si, mas em confor-midade à situação enfrentada. E mais uma vez encontramos a abertura da linguagem, median-te a exposição do diacrônico e do sincrônico, ao paradoxo de algo ser afirmado bem como o seu contrário. Estranha a companhia que agora se colo-ca lado a lado das particularidades esquerdistas em festa satisfeitas consigo mesmas: o direito, também satisfeito e em festa com o princípio que o organiza, a força, faz coincidir como dados

18 - Por exemplo, quando a polícia mata alguém em uma intervenção policial para evitar esse alguém de se suicidar porque é crime suicidar, ou interditou a avenida Paulista para evitar que manifestantes interditassem a avenida Pau-lista.

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o justo e o legal, respectivamente como meio e como fim, uma festa na qual se pode afirmar o direito e seu contrario como direito também. Porém, as presentificações dos limites de um e do outro, do direito natural e positivo, e no ter-mo desse percurso, a experiência de submeter a justiça ao conhecimento de suas determinações pela polícia, pela lei, ou pelo Estado, são dimen-sões que nos mostram um direito que oscila afir-mando-se a si e à sua negação. Podemos enfim propor a reunião dessas várias dimensões como percurso refletido, em busca de sua superação: todas as dimensões da lei serão superadas pelo autor mediante o can-celamento mesmo da noção de violência com a noção de violência pura trazida pelo verdadeiro estado de exceção, nomeada no texto como vio-lência divina e que aparece em diversas partes do texto como a violência da greve geral revolu-cionária, portanto, da revolução. A violência da revolução será não-violên-cia, na medida em que se confronta com aquela que é o máximo de violência, a violência da regra instituída como ordem que se mantém pela vio-lência mantenedora, o que inclui, frise-se, supe-rar inclusive a violência que institui a renovação da lei, superar portanto a dimensão constituinte de um novo sistema de leis, porque, ao fim e ao cabo, todo sistema legal é reduzido à dimensão da violência meramente mantenedora do insti-tuído.

* Nesse percurso algo especulativo que percorremos aqui, a ordem das particularidades políticas em festa satisfeitas com sua identidade apareceu no mesmo patamar do parlamento e das polícias. Qual? O do encontro de todas as parti-cularidades postas como descrição de si mes-mas na dimensão da ordem instituída, felizes em suas particularidades, ou, caso não tenham entrado para o âmbito da lei, como território ju-rídico em disputa mediante a possibilidade da sua dimensão constituinte como lei, instituinte do reconhecimento de sua identidade. E por se tratar de um conflito, estão todos interessados na manutenção das particularidades descritas e em oposições mútuas.

Quais alternativas se abrem ante o pata-mar das identidades políticas ou legais já consti-tuídas? Ou nos diluímos no esquecimento da violência que lhes deu origem, como é hoje, se-gundo Benjamin, o caso do Parlamento, ou assu-mimos uma teoria crítica que se recusa a perma-necer de costas para a contradição fundamental que organiza a sociedade. E qual seria o modo de fazer falar essas contradições? Mediante a partilha do sensível, pela qual os sem-voz conquistam voz política? Pela ideia, que pode e deve ser retomada, pela ideia da hipótese comunista e seu legado de tan-tas lutas cujos massacrados exigem de nós que sigamos em frente? Pelo regime da exceção fun-dado pela greve geral revolucionária? Sabemos só que é uma resposta ainda por ser escrita. Temos sim uma pauta para pensarmos qual o saber exigido para a luta política que dê voz aos que tecem as bases materiais produtivas da sociedade, uma voz que controle o jogo de interesses que forma a política. A instauração e escuta dessa voz esvazia o espaço das fantasias e ilusões que a mera reforma do que podemos chamar de “estado de direito realmente existen-te” impõe como dogma. A instauração dessa voz é a resposta ao comando local que diz: “não cor-reu, permanece vivo” (19) . Talvez agora seja mais fácil saber o que se pode escutar como resposta à antiga pergunta formulada pela voz que não cala: o que fazer?

19 - Frase proferida por um quase eterno governador paulista após massacre de “suspeitos” em emboscada policial na rodovia que leva o nome de um genocida caçador de índios tido como herói local.

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MAIS UMA MORTE

Sucumbi mais uma vez. Meu corpo já não aguenta, minha mente sofre com tudo aquilo que não me ensinaram. Uma dor que estremece cada nervo de um corpo mais velho que minha própria idade. Morri mais uma vez aquele dia. Sugaram minha última gota, o resti-nho de vida que não me pertence, talvez nunca tivesse me pertencido. Espere. Sou meu. Nasci meu, nasci livre, nasci cru, nasci sem pressa e sem essência, essas merdas não existem. Fui criado aqui, ou poderia ser em qualquer outro lugar, minha história é nordestina e brasileira, minhas mãos levantaram esse país dependen-te, sou caboclo, candango, negro e índio, tenho mais calos e histórias do que uma vida poderia medir. Fui sim açoitado, ferido, e explorado, assim como todos aqueles que produzem tan-to e nada tem. Não gostaria de precisar morrer mais vez para chegar à essa conclusão, rouba-ram minha vida pouco a pouco, fingiram me dar segurança e conforto, ‘‘sou um sujeito hoje, esse contrato me faz ser uma parte igual’’. Só se for ser igual aos bilhões, porque jamais se-rei igual às dezenas, e nem o quero. Eita! morte que me incomoda, achava que teria algum des-canso, mas pelo visto nem na minha própria morte, só faço pensar nos meus. Não vou cho-rar dessa vez, essa morte é diferente da ultima. Na minha primeira morte não senti dor, senti apenas uma agonia intensa que me fazia cho-rar que nem criança, só me lembrava daquela história do pai que matou os filhos para que eles não passassem mais fome. O engraçado é

que o que eu planto e corto deve dá pra pelo me-nos 40 pessoas, imagina se juntar tudo isso aqui, deve dar comida pra pelo menos uma vida inteira. O patrão deve ficar bem feliz. Acordei da minha primeira morte sem sentir dor, só uma exaustam do tamanho de um mundo, nem o café com ma-caxeira me animou. Falaram que eu tinha traba-lhado demais, só fiz gargalhar, pagam quase nada pra que a gente trabalhe até não aguentar mais, e vêm dizer que eu trabalho demais, trabalho o que posso e o que os meus precisam. Ouvi na cama do posto de saúde a história de um cara que gastava quase o salário todo com cachaça e os dele passa-vam fome. Nunca gostei de culpar ninguém, cada um tem mais azar do que culpa na vida, queria ver se tivesse família ou uma doutora pra conver-sar com ele, provavelmente é mais um dos meus, daqueles que a terra criou e que o álcool só deixa tonto porque precisa. Cada um que trace seus ca-minhos e que pague suas contas com seu Deus. O meu na certa me ajudou quando eu morri pela primeira vez, achei até que ele tinha falado comi-go, na verdade era só o rádio tocando. Esse meu trabalho nunca me deu dignidade, isso só se fala por falar, pra que a gente ache que tá cumprin-do nosso papel no mundo. Eu sempre soube que a miséria era necessária pras essas dezenas, mas não tinha pensado que ela era tão lucrativa. Tal-vez tenha sido até bom morrer essa segunda vez, meus olhos pretos se abriram mais dessa vez, só que doeu demais. Qual o nome dessa doença? É o mesmo daquele que pula feito uma rã. Cangu-

s

por Renato Santiago

nos 40 pessoas, imagina se juntar tudo isso aqui, nos 40 pessoas, imagina se juntar tudo isso aqui, deve dar comida pra pelo menos uma vida inteira. deve dar comida pra pelo menos uma vida inteira. O patrão deve ficar bem feliz. Acordei da minha O patrão deve ficar bem feliz. Acordei da minha primeira morte sem sentir dor, só uma exaustam primeira morte sem sentir dor, só uma exaustam do tamanho de um mundo, nem o café com ma-do tamanho de um mundo, nem o café com ma-caxeira me animou. Falaram que eu tinha traba-caxeira me animou. Falaram que eu tinha traba-

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ru! Pronto, foi essa minha segunda morte, mas se as minhas próximas forem iguais a essa eu não quero mais morrer desse jeito, é melhor ficar aqui no chão de uma vez pra ver se essa morte me leva de verdade dessa vez. Dor. Uma dor que sobe pelas canelas e vai te esmagando até não con-seguir mais respirar, senti até meu cabelo doer. Acho engraçado que dizem que temos escolhas, que trabalhamos nesse lugar miserável porque queremos, só fala isso quem nunca se esforçou em nada na vida, a dor sentida na pele é diferente da sentida no outro, é dor de verdade, que rasga cada pedaço de homem e de ternura, nenhum homem quer essa dor, nenhum homem quer essa desgraça. Talvez até queiram, mas não pra eles mesmos. De vez em quando acontece o “canguru” por aqui, cai um no chão se debatendo, fica um alvoroço danado, acho que isso pode até matar, não igual a minha morte, uma morte de verdade mesmo. Tem uns que até voltam pro trabalho no mesmo dia depois disso. Eu não consegui, voltei pra casa, tenho os meus pra cuidar. O meu mais novo já se foi, falava que queria ser doutor de bicho, tinha um negócio de sopro no coração. Sopro. Engraçado esse nome, queria assoprar mais uma vez seu olho que nem fazia toda noite antes de ir dormir. Quem sabe na minha próxima morte�

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A CONTINUIDADE DA INVARIÂNCIA:

A crítica como persistência da modernidade e a pós-mo-dernidade como ideologia

por Carine Gomes Cardin Laser

O presente artigo aborda a reflexão so-bre a relação moderno/pós-moderno que pre-domina na ensaística de Jameson, sem perder de vista a tradição, para tentar compreender de forma apropriada seu pensamento sobre o pós-moderno e colocá-lo em questionamento. Procuramos apoio na referência à teoria crítica para realizar uma reflexão sobre a possibilidade de um envolvimento com o moderno que não seja nem de exclusão total de seus pressupostos nem de sua retomada irrefletida. A partir disso recorremos principalmente à Teoria Estética de Adorno como base para se pensar a ideia de modernismo não simplesmente como um espí-rito do tempo, mas como algo que se mantém enquanto resistência contra o aparato social repressor de cada época. Se, portanto, a arte moderna não se encaixa nos padrões sociais, e, em sua autonomia, se expressa como crítica da realidade, a ideia de pós-modernidade, em oposição, não representa uma transformação de fato no plano artístico, mas um instrumento de legitimação da aparência social. Palavras-chave: Adorno; Modernismo; Pós-modernismo; Estética.

This paper approaches the reflection about the modern/postmodern relationship that is prominent in Jameson’s essayistic, wi-thout losing sight of tradition, trying to com-prehend properly his thoughts and questioning it. We search support on the reference of criti-cal theory to reflect about the possibility of an involvement with the “modern” concept that is neither a total exclusion of its purposes nor its unreflected retake. Based on that, we appe-al primarily to Adorno’s Aesthetic Theory as foundation to think the idea of modernism, not simply as a spirit of the time, but as something that keeps itself as resistance against the social repressive display of each time. If, therefore, modern art does not fit in social standards, and, in its autonomy, expresses itself as critic of rea-lity, the idea of postmodern, in opposition, does not represent an actual transformation of the artistic field, but an instrument of legitimiza-tion of the social appearance.

Keywords: Adorno; Modernism; Postmoder-nism; Aesthetic.

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MODERNIDADE E HISTÓRIA

Na Teoria Estética, obra póstuma de 1970, Adorno elabora a sua teoria da arte e caracteriza sua concepção de moderno, o que não deve ser tomado como uma defi-nição estática do moderno. Pois, quando se pensa no mo-derno como algo fechado acaba-se incorrendo na impos-sibilidade de se lidar de fato com a questão, expressando algo que Adorno mostra de forma clara dentro de sua própria metodologia: “as definições são tabus” (ADOR-NO, 2008, p. 26). Nesse sentido, fica claro que o objetivo de Adorno na Teoria Estética não é impor ideias pron-tas acerca da arte, mas antes realizar uma análise mer-gulhando na própria historicidade dela. Considerando, antes de qualquer coisa, a arte introduzida em um movi-mento constante, conclui que ela mesma não se sujeita à definição: “A arte tem o seu conceito na constelação de momentos que se transformam historicamente; fecha-se assim à definição” (ADORNO, 2008, p. 13). Esta afirma-ção leva a um modelo de pensar a arte que não a imobili-ze na invariância. Portanto, a definição de arte é aberta, “é sempre dada previamente pelo que foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se” (ADORNO, 2008, p. 14). É nessa configuração da arte que Adorno percebe a sua crítica à sociedade. Em seu de-vir, ela relaciona-se com a teoria do conhecimento; a re-lação de diferença entre arte e a empiria pode iluminar o que na relação de identidade entre sujeito e objeto impõe o sufocamento do não-idêntico na sociedade. Não é à toa que Adorno usa a mesma citação de Nietzsche para rom-per com a teoria do conhecimento do idealismo e para explicitar a verdade da arte: “a verdade só existe como o que esteve em devir” (2008, p. 14); pois o contrário disso é o que a tradição impõe ao processo do conhecimento pela razão transcendental, que expressava a própria rea-lidade da sociedade: “não se pode desconhecer a função ideológica dessa tese”(ADORNO, 1995, p.185). No devir, a relação da arte com a empiria deve romper com a ideia de identidade que determina a im-posição da ideologia do sistema econômico sobre o in-divíduo vivente: “na doutrina do sujeito transcendental, expressa-se fielmente a primazia das relações abstrata-mente racionais, desligada dos seus indivíduos particula-res e seus laços concretos, relações que tem o seu modelo

na troca” (ADORNO, 1995, p.186). A iden-tidade entre sujeito e objeto, eliminando a possibilidade de conhecer o objeto em si, possível apenas pela experiência, elimina o vínculo do sujeito com a sociedade. A identidade na arte é, pelo contrário, a ex-pressão do não-idêntico, pois forma-se a partir da relação de diferenciação com o mundo empírico:Enquanto a linha de demarcação entre a arte e a empiria não deve ser ofusca-da de nenhum modo, nem sequer pela heroicização do artista, as obras de arte possuem no entanto uma vida sui ge-neris,que não se reduz simplesmente ao seu destino exterior. As obras importan-tes fazem surgir constantemente novos estratos, envelhecem, resfriam, morrem. Afi rmar que enquanto artefatos, pro-dutos humanos, elas não vivem direta-mente como homens, é uma tautologia.(ADORNO, 2008, p. 16)

A arte respeita o objeto através do distanciamento em relação a ele, permite que exista a cisão entre a obra de arte e seu elemento da realidade empírica para conservar-se enquanto identidade em si; assim, ela precisa da autonomia com re-lação à sociedade para ser um elemento vivo, social. Assim, essa cisão não significa que a arte é totalmente autônoma em re-lação à sociedade. “Os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma.” (ADORNO, 2008, p. 18). A arte tem nos desafios de sua forma a própria realidade social que lhe é necessária, e é

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justamente nesse sentido que se reafirma a impossibili-dade de sua definição. De facto, nenhuma categoria privilegiada particular, nem sequer a categoria estética central da lei formal, defi ne a essência da arte e é sufi ciente para o juízo acerca dos seus produtos. A arte possui determinações essenciais que contradizem o carácter defi nitivo do seu conceito estabelecido pela fi losofi a da arte (ADORNO, 2008, p. 20).

Em sua constante transformação histórica, que já é uma resistência à integração totalizante na socieda-de que insiste na conservação do status quo, a arte está sempre sujeita a rupturas. Essa questão torna o “novo” central para seu desenvolvimento. Por isso, há a relação entre o novo e o moderno, enquanto o que se contrapõe ao antigo em um determinado período histórico.Para Habermas, é apenas com os ideais de perfeição do Iluminismo fran-cês, apenas com a idéia, inspirada pela ciência moder-na, de um progresso infi nito do conhecimento e de um avanço rumo ao aprimoramento social e moral é que, aos poucos, vai-se quebrando o fascínio exercido pe-las obras clássicas do mundo antigo sobre o espírito de cada modernidade. (HABERMAS, 1992, 101)

Com essa afirmação, Habermas ressalta a ideia de transformação e novidade que surge com o iluminismo e mostra que a modernidade passa a pensar o novo como algo que impele ao progresso. Mas, baseando a sua teoria em um retorno ao pensamento iluminista, rompe com a teoria da arte elaborada por Adorno. Ele tenta identifi-car o Iluminismo como um momento imóvel na história, um passado morto para o presente, como se não tives-se tomado proporções de “arena comandada pela classe dominante” (BENJAMIN, 1985, p.230). O moderno não pode ser definido simplesmente pelo pensamento histó-rico do iluminismo, sem que esse pensamento passe pela crítica que o identificou ao mito: pela dialética do escla-recimento. O Esclarecimento se tornou a ideologia vigente, e

o moderno, para Adorno, não se encai-xa nessa definição, pelo contrário, uma vez que é antítese dessa realidade. Antes, o moderno é o “salto sob o livre céu da história” (Idem), livre da racio-nalidade hipostasiada que objetifica--se em mito. Se Habermas se prende à definição de moderno como a noção progressista de história, acaba tentan-do imprimir na tradição filosófica um conceito predicativo de modernidade e não recuperando o movimento da arte, em sua relação com as tensões so-ciais. A sua proposta entra em contra-dição com a ideia anti-predicativa de pensar os conceitos, e a concepção de história, diferente daquela tradicional progressista, que Adorno tem como base de seu pensamento sobre a arte e o moderno. Segundo Adorno, Os sinais da desorganização são o selo de autenticidade do modernis-mo; aquilo pelo qual ele nega de-sesperadamente o encerramento da invariância. A explosão é um de seus invariantes. Nesta medida o Moderno é um mito voltado contra si mesmo; a sua intemporalidade torna-se catás-trofe do instante que rompe a con-tinuidade temporal. O conceito de Benjamin de ‘imagem dialética’ en-cerra este momento (ADORNO, 2008, p. 44).

Mesmo Habermas faz refe-rência a esta citação e à concepção de história de Benjamin que ela suscita. O conceito de história em Benjamin apoia-se na crítica da história pro-gressista: “a ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crí-tica da idéia de progresso tem como pressuposto a crítica dessa marcha” (BENJAMIN, 1985, p. 229). Assim, sua concepção de história se baseia na ideia de que o “tempo passado é vivi-do na rememoração: nem como vazio,

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nem como homogêneo” (Idem, p. 232), concepção que transborda da obra de Proust. O modernismo quebra o continuum da história como invariância, co-loca-se contra o terrível anjo do progresso que destrói tudo por onde pas-sa. Mas em sua explosão estão os estilhaços do passado que torna-se mais intenso e vivo. O moderno não é apenas a ruptura de um tempo específi-co com relação a outro no linear da história, é o grito da própria história se despendendo dos grilhões de sua dominação. Em um presente que é o agora impregnado de passado e da perspectiva que este passado dá do futuro, o moderno não pode se apresentar como “expressão objetiva a uma atualidade do espírito do tempo que espontaneamente se renova” (HABERMAS, 1992 , p.101). O moderno não pode ser enclausurado no espírito do tempo, pois é intemporal, a sua “negação do encerramento da invariância” dá prova disso. Por isso, somente como invariância, como permanência do que não se curva ao espírito do tempo, é que a modernidade encontra-se em devir.

O FIM DA MODERNIDADE Apesar da leitura de Habermas não condizer com o sentido de mo-derno dado por Adorno, é de se concordar com ele que este mesmo moderno parece mais distante se tomado do interior da máquina ideológica do capita-lismo pós-industrial. O impacto dos anos 60, a expectativa não correspondi-da do Maio de 68, as discussões sobre o ‘fim da arte’ de Hegel, preenchem o ar com o “narcisismo da esquerda pela Causa perdida” (�ZIZEK, 2003, p. 70): aquela tendência da esquerda a se conformar com o fato de sua empreitada ser sempre a que se sairá perdedora. Com os manifestos de 68, movimento que tomou maior proporção crítica na França, com o movimento estudantil e trabalhista, foi derramada mais uma gota do suor revolucionário da história. Seus manifestos possuíam reivindicações que quase despontaram em uma real crítica da sociedade capitalista, porém eles foram integrados ao que cri-ticavam pela superficialidade de seu conteúdo, e, por conseguinte, o motivo de sua derrocada:O que pela última vez esteve em cartaz no Maio parisiense foi o eterno fi l-me dos movimentos revolucionários “socialistas” e “proletários” do Ocidente: um breve avanço rumo a um horizonte desconhecido, para então ser com-pelido pela massa inerte da consciência monetária a regressar à forma de circulação burguesa, cuja incessante reforma resta como o único e exclusi-vo objetivo lastimavelmente imanente (KURZ, 1996, p. 41).

Kurz defende que a “derrota” do movimento de 68 foi devida à ve-leidade dos argumentos de seus líderes, e de maneira geral, do movimento em si. O principal problema identificado por Kurz é a falta da crítica da for-ma-mercadoria, o que teria levado os manifestantes a buscarem alternativas dentro do sistema capitalista, e não a ele.

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Que o “burguês” se esconde como tal na for-ma-mercadoria totalizada pelo capitalismo é algo de que os combatentes das barricadas de 68 não quiseram tomar conhecimento. Isso não era apenas ignorância ou desco-nhecimento, mas uma recusa consciente da possibilidade de fazer declarações concretas sobre a superação das relações fundadas na mercadoria e propor os meios práticos e pal-páveis para alcançá-la (KURZ, 1996, 44).

Essa ideia de Kurz pode ser observada em The dreamers (Os sonhadores), filme de 2003 de Bernardo Bertolucci. Nele, Matthew, um estudante americano encontra-se em Pa-ris em plena ebulição dos protestos de 68, e conhece dois irmãos, Isabelle e Theo. O filme navega entre as referências cinematográficas do trio, cenas de sexo e discussões políticas, tanto entre gerações (Theo e o pai – um inte-lectual conformado), tanto no choque entre a resistência pacifista de Matthew e a explosão revolucionária dos irmãos. Entretanto, o filme diz pouco do pensamento político por trás das manifestações. Se há uma cena que represen-ta a frustração com que se olha para a posição dos jovens com relação à reflexão acerca da so-ciedade é a em que Matthew e Isabelle têm sua primeira relação sexual: Matthew assustado com a volúpia da jovem parisiense (e provavel-mente tomado pelo puritanismo americano) evita ao máximo a relação, mesmo sendo algo que desejava; quando finalmente cede, Theo revela-lhe o fato de que sua irmã era virgem. Sabendo disso, Matthew fica mais envolvido com Isabelle e tenta fazer com que ela se adap-te a um relacionamento tradicional. A geração que cresceu em frente à tela do cinema lidaria muito bem com o choque, a ruptura, preten-deria dominar seu destino, mas seu invólucro revolucionário teria se revelado vazio como a sua pretensa liberdade sexual. Além da decepção que gerou o Maio de 68, a ideia do fim da arte plantada pela estética hegeliana entra em questão. Teria a arte che-gado à sua superação necessária como havia

previsto Hegel? Segundo Adorno, essa ideia de superação da arte em Hegel é a identificação de seu movimento: a arte necessariamente morre de um período para outro, ganha novos signi-ficados em cada período histórico. Através da leitura de Adorno, Jameson percebe que o fim anunciado por Hegel não é necessariamente a supressão de algo, e que pode ser o final como transformação. Ainda, Adorno faz um alerta acerca da postura da estética sobre esse tema: “a estética (...) não tem em geral que constatar o fim, reconfortar-se com o passado e, indepen-dentemente de seja a que título for, transitar para a barbárie, que não é melhor que a cultura, a qual mereceu a barbárie como represália pelos seus excessos bárbaros.” (ADORNO, 2008, p. 15). Então podemos perceber que para Adorno o problema do fim da arte tem duas perspectivas: a necessidade de transformação histórica, que pressupõe o nascimento de algo novo perante a morte de um momento histórico; e a disposição da estética a lidar com o material histórico do presente, opondo-se a uma concepção nostálgi-ca e derrotista da história da arte. Porém, essa posição não se refere à eter-nidade da arte, ela perece pois na necessidade de autonomia já está pressuposto o peso do que se opõe a ela: a sociedade. A necessidade da au-tonomia da obra de arte para Adorno não deixa de expor as marcas da divisão essencial da so-ciedade capitalista, se a arte precisa se manter autônoma para a sua sobrevivência, também contém em si as garras da dominação social. Eis a necessidade da arte autônoma de perecer, de ser inconstante pela permanência de sua auto-nomia:Mas a arte e as obras de arte estão voltadas ao seu declínio, porque são não só heteronoma-mente dependentes, mas porque na própria constituição de sua autonomia, que ratifi ca a posição social do espírito cindido segundo as regras da divisão do trabalho, não são apenas arte; surgem como algo que se lhe é estranho e se lhe opõe. Ao seu próprio conceito está mesclado ao fermento que a suprime (ADOR-NO, 2008, p. 16).

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Assim, é possível dizer que a identificação do pós--moderno poderia ser uma tentativa de chacoalhar os es-combros e encontrar a vida na arte. Se sua transformação é necessária, é preciso identificar sua nova face, algo que tenha permanecido de sua possível superação. Porém, essa tentativa tenta decretar o fim da arte moderna, afir-mando uma diferença marcante com relação ao moder-nismo. Jameson caracteriza o pós-moderno dentro dessa linha, numa totalização das obras de arte, girando em tor-no de características que se opõem ao modernismo. Em seu ensaio de 1981, Pós-modernidade e sociedade de con-sumo, identifica uma verdadeira decadência das obras modernistas e mostra como o pós-moderno se apoia na renúncia da característica crítica da arte morta:Estes estilos, que no passado foram agressivos e sub-versivos, (...) são agora, para a geração que entrou em cena nos anos 60, precisamente o sistema e o inimigo: mortos, constrangedores, consagrados, são monumen-tos reifi cados que precisam ser destruídos para que algo novo possa surgir (JAMESON, 1985, p. 17).

Apesar do movimento observado por Jameson parecer coerente dentro da realidade que se configura com a integração de Maio de 68, que decepcionou quem acreditava na possibilidade de transformação social, ele entra em contradição com o moderno em seu sentido mais abrangente. Para Adorno, a característica crítica da modernidade não é parte do espírito do tempo vigente, como parece fazer referência Jameson. O elemento críti-co do moderno não pode ser superado, pois é justamente a posição necessária da arte frente às transformações que predominam em cada período histórico, enquanto ainda prevalece a dominação. Sem dúvida, a noção de Moderno remonta cronologi-camente muito atrás do Moderno enquanto categoria fi losófi co-histórica: mas esta não é cronológica. É antes o postulado rimbaudiano da consciência mais pro-gres-sista, na qual os procedimentos técnicos mais avançados e mais diferenciados se interpenetram com as experi-ências mais avançadas e mais diferenciadas. Mas estas, enquanto sociais, são críticas (ADORNO, 2008, p.59).

O moderno não pode ser simplesmente o que se distancia do antigo, mas busca em seu próprio tempo forma e conteúdo avançados, dentro de sua necessidade de se diferenciar do que já foi feito. É a própria arte, que tentando se diferenciar do outro que lhe domina, tende necessariamente ao choque contra este. Na sociedade

capitalista, o que tenta se diferenciar de fato está tentando se desvencilhar de suas garras, e é necessariamente compelido à crítica do que lhe de-termina. Mas essa característica não está presa à sociedade capitalista monopolista em que Adorno a des-creve, ao contrário, enquanto hou-ver a necessidade desse confronto, o moderno permanece vivo: Que uma tal arte moderna seja mais do que um vago ‘espírito do tempo’ ou um versado up-to-date deve-se ao desencadeamento das forças produtivas. (...) A modernida-de opor-se-á antes a todo o espíri-to do tempo que domina em cada época e hoje mesmo o deve fazer. (ADORNO, 2008, p. 60).

Lembremos que Adorno es-creve estas palavras pouco antes de sua morte, no final da década de 1960. Se assim é, como é possível a superação da arte moderna com o simples descarte cronológico de obras que faziam referência ao perí-odo histórico em que estavam inseri-das, e obviamente, perdem muito do sentido no contexto pós-industrial? Não é à toa que Jameson percebe que a arte à qual faz referência está in-trinsecamente ligada ao sistema eco-nômico do período e nos dá, através da sua interpretação, uma boa leitu-ra da cultura do momento histórico: revela a determinação exponencial a que as obras de arte estão sujeitas dentro do sistema econômico. Atra-vés do conceito de pastiche mostra que, em consequência da sociedade capitalista consumista, não se pode

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mais “focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de alcançar represen-tações estéticas de nossa própria experiência atual” (JAMESON, 2001, p. 29). Esta ideia remete à dificul-dade da experiência que se eleva com a globalização, em um capitalismo agressivo e totalizador. Assim, a arte a que Jameson faz referência é aquela integrada ao sistema econômico, que tem como objetivo justa-mente manter o status quo. Não há como não per-ceber aqui a relação de Jameson com o conceito de indústria cultural de Adorno. Para Adorno, a cultura deixa-se englobar pelo sistema capitalista e se assume como indústria, tendo como objetivo mascarar a realidade social e manter os indivíduos determinados pela totalização do inte-resse pelo lucro. As obras de arte passam a ser pro-duzidas a partir de necessidades comerciais e quem se beneficia são os produtores culturais, que ditam a regra do jogo. É no ensaio Indústria cultural: o es-clarecimento como mistificação das massas, lançado em 1944 na Dialética do esclarecimento, que Adorno e Horkheimer dão contorno ao conceito e realizam a crítica dessa realidade. Porém, na Teoria Estética, Adorno percebe já uma transformação dessa ques-tão. Segundo ele, com relação às obras de arte, e mais “focar o nosso próQuanto mais livres se tornam dos fi ns exteriores, tanto mais perfeitamente se defi niram enquanto organizadas, por sua vez na dominação. Mas por-que as obras de arte voltam sempre um dos seus lados para a sociedade, a dominação interiorizada irradiava igualmente para o exterior. É impossível, com a consciência desse contexto, exercer a crítica da indústria cultural, que emudeceu perante a arte (ADORNO, 2008, p. 36).

As obras de arte que Jameson critica são ao mesmo tempo o motivo da crítica, elas revelam algo da sociedade em sua exaustiva tentativa de velar. Por isso a crítica da indústria cultural parece desfalecer--se na própria ineficiência desta. Adorno também identifica a decadência da indústria cultural através de sua necessidade. Para o filósofo, a arte é necessária em um mundo sem imagens, é “o reflexo do encanta-mento como consolação do desencanto” (ADORNO, 2008, p.36). Como um véu sobre a realidade, a arte é modificada pela sociedade para cumprir um papel

social, porém, essa necessidade já é falsa, pois corresponde ao que se reproduz na própria sociedade falsa. “Sem dúvida, tal como foi prognosticado, as necessidades encontram ainda a sua satisfação, mas esta é falsa e ilude os homens acerca de seu direito de homens” (ADORNO, 2008, p. 37). Essa transformação da indústria cultural pode ser mais ainda realçada no capitalismo pós-industrial, a percepção da falsidade das necessidades que a cultu-ra demanda pode ser percebida em obras que se conjecturam dentro delas mesmas. Assim, a reflexão acerca das obras da in-dústria cultural pode arrebentar o seu próprio intento, ao invés de velar, mos-trar a realidade da sociedade: “a reflexão pode começar pelo facto de que, na rea-lidade, algo aspira objetivamente à arte, para além do véu que tece a interacção das instituições e da falsa necessidade; a uma arte que dá testemunho do que o véu oculta” (ADORNO, 2008, p. 37). Há uma promessa de transformação nas obras da indústria cultural, pois elas se deixam cri-ticar enquanto peças de xadrez da mani-pulação social. A crítica da cultura trans-forma seus elementos em manifestações de seu oposto, denunciam o seu próprio caráter ideológico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A arte que revela o que está por baixo do véu, que é o que a sociedade está disposta a manter oculto, não correspon-de exatamente à ideia de arte moderna, necessariamente crítica, que, ao encon-trar-se como o que há de mais apurado enquanto forma e conteúdo contradiz a sociedade e se coloca contra o espírito do tempo? Nesse sentido, o pós-moderno so-mente pode existir enquanto tudo o que colabora para a manutenção da sociedade

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capitalista e se opõe ao que é moderno. Há, portanto, moderno no cinema contemporâneo, como em Mulholland Dr. (Cidade dos Sonhos), de David Lynch, de 2001. Nesse filme, o diretor usa elementos da montagem cinematográfica para colocar em questão o que é real e o que não é, tirando o espectador de sua zona de conforto, suspendendo peremptoriamente as certezas da narrativa. Lynch usa as técnicas cinematográficas para questionar a indústria do cinema a partir da autonomia do filme – isto é, sem fazer referên-cias diretas à crítica social ou colocar a sua produção sob a demanda da indústria. Assim, confron-ta a ilusão do drama com a alinearidade e ruptura, demonstrando a artificialidade do universo idealizado das celebridades e expondo as entranhas da indústria do entretenimento.Também podemos encontrar traços críticos No Der Stand der Dinge (O Estado das coisas), filme de Win Wenders, lançado em 1982. O filme trata da realização de um filme, da necessidade do cineasta em relação ao produtor do filme, que desaparece e deixa toda a equipe sem condição de trabalhar. A partir do ponto particular, o drama do cineasta sem dinheiro para terminar seu pro-jeto, o filme lança um olhar fulminante à determinação econômica da arte. Ele coloca em questão a necessidade da autonomia artística e a sua inevitável dependência das condições econômicas da sociedade, que não deixam de influenciar a criação artística. Essa tensão que se desenrola tende a mostrar a falsidade da aparência de isolamento do cinema, revelando o fetichismo dos produtos da indústria cinematográfica, que aparecem como entidades isoladas e não dependentes do públi-co que vai ao cinema e consequentemente dos produtores dos filmes. Essa ideia pode ser verificada também na conclusão de O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética, livro de 1990, em que Jameson se dedica à análise da filosofia adorniana. Nessa conclusão, o autor faz uma importante exposição sobre a relevância da teoria de Adorno na atualidade, contrapondo-a a concepção de pós-modernidade e tentando justificar esta terminolo-gia, que parece um tanto inconsistente: o que Adorno chamava positivismo é precisamente o que hoje chamamos pós-modernismo, apenas num estágio mais primitivo. A mudança terminológica é, com certeza, importante: uma tacanha fi losofi a da ciência pequeno-burguesa, republicana, do século XIX, surgindo do casulo de sua cápsula de tempo com o esplendor iridescente da vida consumista cotidiana no verani-co do super-Estado e do capitalismo multinacional (JAMESON, 1997, p. 319). Como positivismo, o pós-modernismo, em seu momento artístico, não resiste ao pensa-mento estético. Ele se dissolve na dialética da negação que é necessariamente realizada pela re-flexão frente a todo pensamento positivo. Assim, o moderno é mais do que uma referência, num passado sepultado pelas asas do tempo contínuo. A negação do que é dado é a marca imóvel da história em pleno devir. “Se hoje mais do que nunca a ideologia incita o pensamento à positivida-de, ela registra astutamente o fato de que justamente essa positividade é contrária ao pensamento e de que se carece da autoridade social para habituá-lo a positividade” (ADORNO, 2009, p.25).

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A DISCRETA DESILUSÃO DA BURGUESIA

Harmony and understandingSympathy and trust aboundingNo more falsehoods or derisionsGolden living dreams of visionsMystic crystal revalationAnd the mind’s true liberationAquarius!Aquarius! Do musical “Hair”

The future is the imaginary space that utopia tries to colonize.(Franco “Bifo” Berardi)

Ao longo das mais de 2 horas de Aqua-rius, não toca, em nenhum momento, a famosa canção homônima do musical Hair, mas não é preciso. O filme todo é permeado, de uma for-ma ou de outra, pelos ideais perdidos daquela geração dos anos de 1960. Pode ser uma feliz coincidência, ou algo de caso pensado, mas o diretor e roteirista do longa brasileiro, Kléber Mendonça Filho, convidou Sonia Braga para viver a personagem principal, Clara. Ela, por sua vez, participou da montagem brasileira do musical em 1969. A década mal é mencionada no filme – se o é, é de forma discreta –, por isso, entram praticamente nas entrelinhas. Mas Aquarius é um filme sobre essa década e sobre como suas utopias se transformaram em desilusões e lu-tas virtualmente pessoais. Clara, intelectual na faixa dos 60 anos, vive num prédio pequeno e antigo, que leve o nome do filme, de frente para o mar, em Recife. Uma construtora com-prou todos os apartamentos, mas ela resiste,

bravamente, infantilmente, egoisticamente, dependo do angulo pelo qual se olha. Clara é o que Fredric Jameson chama de veterana da década de 60 que “viu tantas coisas mudarem dramaticamente de um ano para outro e pensa mais historicamente do que seus antecessores” . A trama situada no século XXI, a suposta Era de Aquarius, aliás, dá à pro-tagonista uma vantagem histórica - expressão meio trapaceira essa, se é que se tem alguma vantagem em olhar para traz e ver que as coi-sas mudaram para continuar as mesmas.

1 - JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s”. In.______. The Ideologies of Theory – Essays 1971-1986 - Volume 2: The Syntax of History. Minnea-polis: University of Minnesota Press, 1988, p. 178.

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por Alysson Oliveira

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Clara é a típica liberal à brasileira, confortável em seu apartamento herdado, junto com ou-tros cinco que lhe garante o sustento, fazendo de suas paredes e estantes uma galeria de bom gosto, alta cultura (e também cultura de massas bem aceita pela elite), e bom gosto. Sua relação com sua empregada (Zoraide Coleto) de algu-mas décadas é bastante boa e próxima – chega a ir ao aniversário da mulher na parte pobre da cidade, como ela mesma explica à namorada carioca do sobrinho. O que nos fascina em Clara é sua clareza (com o perdão do trocadilho) para ter, ao mes-mo tempo, empenho social, bom gosto e bom senso. Não é difícil imaginar a personagem numa passeata gritando Fora Temer, nem que ela tenha feito um voto útil no PT nas últimas eleições presidências. O que talvez nos fascine e seduza é que, no fundo, todos queremos ser Clara. Morar bem, ser culto e lutar por causas sociais – desde que essa não interrompa nos-sa alegria. Uma ilustração precisa disso se dá num momento em que toda a família da pro-tagonista está vendo antigos álbuns de fotogra-fia. A boa nostalgia corre solta, até que essa é interrompida pela emprega/amiga que mostra a foto de seu filho, morto há pouco tempo num acidente de moto causado por um sujeito rico e bêbado. É um corte abrupto e seco na felici-dade memorialística da burguesia esclarecida. Clara já foi relacionada ao tripé Tradi-ção, Família e Propriedade, por Marcelo Coe-lho, em sua coluna na Folha de S. Paulo. E o escritor que explica porque, na visão dele, a personagem resiste “em nome de suas memó-rias familiares, e porque, viúva, tendo sofrido uma cirurgia de extração da mama, e sentin-do-se distanciada dos filhos, não se conforma com mais nenhuma perda em sua vida.” É claro que o autor não relaciona a protagonista àquela organização fundada nos anos de 1960. Mas, vê nela algo de conservador. E isso traz bastante complexidade à figura.

O que permite à Clara ter a posição de resistência é sua vantagem de classe. Ela é

uma mulher da elite, é rica, esclarecida, tem até empenho social – sua luta apresenta de forma simbólica num plano micro o movimento que acontece em Recife desde 2014 em defesa do Cais José Estelita, contra um empreendimen-to imobiliário que iria ocupar o lugar. Morasse Clara numa favela na periferia de São Paulo, já teria sido arrancada a força de sua casa. Mas será que o filme tem consciência dessa posi-ção? Flávio Moura coloca isso muito bem em seu texto sobre o filme quando diz que:

Há nobreza na resistência de Clara, mas há também arrogância. E essa é uma arrogância intelectual, de quem preza finos LPs, romances literários e filmes de Kubrick, mas também – e sobretudo – uma arrogância de classe.

Não se trata, pois, de um confronto de uma intelectual bem intencionada e uma elite financeira inescrupulosa, mas de um embate entre duas modalidades da elite pernambuca-na que encarnam as contradições da classe alta brasileira. Em Clara coexistiriam, então, o arcaico e o moderno – combinação ilustrada por sua vasta coleção de vinis, mas ela também ouve mp3, deixa claro numa entrevista – o que é um fato geral no mundo capitalista. Mas como

2 - COELHO, Marcelo. “‘Aquarius’ oferece versão de es-querda para ‘Tradição, Família e Propriedade”. Folha de S. Paulo, 14 de setembro de 2016. Acessado em 15/09/2016.Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2016/09/1813017-aquarius-oferece--versao-de-esquerda-para-tradicao-familia-e-proprie-dade.shtml. Acessado em 15/09/2016.

3 - MOURA, Flavio. “Cavalcantis e Cavalgados”. Nexo Jornal, 10 de setembro de 2016. Disponível em ht-tps://www.nexojornal.com.br/ensaio/2016/09/10/Ca-valcantis-e-cavalgados#.V9aU5rU_XI0. Acessado em 15/09/206.

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uma questão política:

“A relação entre Utopia e o político assim como as questões sobre o valor prático-polí-tico do pensamento Utópico e a identificação entre Socialismo e Utopia, continuam como tópicos não-resolvidos hoje quando a Utopia parece ter recoberto sua vitalidade como um slogan político e uma perspectiva politicamen-te estimulante” . O autor sempre viu Utopia como si-nônimo de socialismo. Mas qual é a utopia de Clara? Manter seu apartamento a todo custo, pois ali está a sua história. Alguns viram em sua resistência um paralelo com a ex-presidenta Dilma Roussef durante o processo de impea-chment. O filme estreou em 1o de setembro, exatamente um dia após ser cassada. Relatos, especialmente na internet, deram conta de que várias sessões do longa de Kléber Mendonça Filho contaram com manifestações da plateia, particularmente com gritos de “Fora Temer”. Catártico? Pode até ser, mas o que vem mesmo à mente é o comentário de Roberto Schwarz, em “Cultura e Política, 1964-1967” sobre o comportamento efusivo da esquerda em espe-táculos do Opinião e de Boal : “a esquerda der-rotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito” . Aquarius não é bem um filme nostálgi-co, as personagens não sentem saudade sobre um tempo que passou e não volta mais, mas também não parecem olhar para um futu-ro. Teriam elas – tantos as personagens ricas quanto as pobres – uma opção de um outro futuro que não um prolongamento sem fim desse presente? Se uma das funções da utopia é impulsionar o futuro, onde ela foi parar nes-se presente monocórdico no qual não há uma brisa de mudança (nem opções) no horizonte?

aponta Roberto Schwarz, nos países que foram colonizados, essa simultaneidade “é central e tem força de emblema. Isto porque estes países foram incorporados ao mercado mundial – ao mundo moderno – na qualidade de econômica e socialmente atrasados, de for-necedores de matéria-prima e trabalho barato. A sua ligação ao novo se faz através, estrutu-ralmente através de seu atraso social que se re-produz em lugar de se extinguir”. A disputa de narrativa entre o arcaico e o moderno, sem que haja qualquer juízo de valor nos dois (que possuem pontos positivis-mo e negativos), é o que impulsiona a narrativa de Aquarius. O prédio a ser erguido se cha-mará “Novo Aquarius”, diz o engenheiro, neto do dono da empreiteira, para confortar Clara, num de seus embates. Ao contrário dos revolucionários anos de 1960 quando, em boa parte do mundo, ha-via uma chama da mudança sendo alimentada, e possibilidades de outras narrativas até mes-mo utópicas, o presente agoniza numa dispu-ta em que nenhuma das opções parecem ser muito boas. Jameson caracteriza aquela década como um “período importante transformacio-nal quando a reestruturação sistêmica aconte-ce numa escala global” . Enquanto os anos de 1980 “serão caracterizados por um esforço, na escala global, de proletarizar todas as forças sociais libertas que deram força aos anos de 1960 sua energia” . O longa começa exatamente em 1980, quando Clara, ainda jovem acaba de sobrevi-ver a um câncer para o qual perdeu um seio, e comemora o aniversário de uma tia (Thaia Pe-rez). Enquanto os filhos da protagonista decla-mam uma homenagem à aniversariante, a mu-lher relembra sua juventude libertária quando o sexo era até mais livre do que no presente. Jameson afirma que Utopia sempre foi

4 - SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1967”. In.______. O Pai de Família e Outros Estudos. São Paulo: Cia das Letras, 2008 [1978], p. 91.

5 - Jameson, “Periodizing the 60s”, p. 207.

6 - JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future. London & New York: Verso, xi-xii.

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SOBRE A BOMBA ATÔMICA

“Os cientistas conheceram o pecado”(Robert Oppenheimer, Físico)

Carecemos, é fato, de análises mais profundas do ataque nuclear que os Estados Unidos lançaram sobre o Japão. A parca lite-ratura, à parte de brilhantes obras jornalísti-cas como a de Harvey, é pouco conhecida e estudada. O evento que marcou a vitória dos aliados, no entanto, pode ser considerado como a consolidação, senão de uma nova or-dem política, de uma nova organização dessa ordem. Pensemos, aqui, quais foram as conse-quências dessa tragédia? O que ela nos revela sobre nós mesmos e sobre nossa racionali-dade? São essas questões que, tememos, têm pouco espaço nas prateleiras de bibliotecas e livrarias. Ao lado da tão justamente profícua li-teratura sobre o Holocausto judeu, há um es-paço vazio, a literatura sobre a bomba. Gran-des nomes se silenciaram, felizmente outros poucos se manifestaram a respeito. É o caso do filósofo argelino Albert Camus, que em um curto editorial em seu Le Combat, L’Enfer et la Raison (O Inferno e a Razão, em uma tradu-ção livre), inaugurou as manifestações críticas ao entusiasmo que tomou conta dos jornais e

dos editoriais que sucederam a tragédia.Comentar sobre a bomba deve ser investigar a relação entre Ciência, Política e Ética e encon-trar nessa relação os resquícios da barbárie sempre presente nas potencialidades do po-der e da organização social.

O Combate

Albert Camus é bem enfático em seu L’Enfer et la Raison, publicado dia 8 de agosto de 1945, dois dias após o ataque à Hiroshima e um dia antes ao de Nagasaki. Nesse curto editorial, o filósofo condena os jornais que noticiaram o ataque com entusiasmo, saldan-do a nova arma em “dissertações elegantes” a respeito do futuro, do passado, da vocação pacífica e do “caráter independente da bom-ba” (CAMUS, 1945). A bomba fora vista como um avanço científico de “valor incalculável” (Le Croix – 8/9/1945), no L’Aurore (7/9/1945), como uma “Revolução Científica”. No Brasil, o jornal Folha da Manhã (Revelada nos EUA e Inglaterra a invenção da arma de maior poder destruidor de toda a guerra, 1945), edição de 7

por Luiz Ben Hassanal Machado da Silva

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de agosto de 1945, transcreveu o pronunciamento do então presidente dos Estados Unidos, Truman, no qual aparece a tal “vocação pacífica” ironizada por Camus em seu editorial. Certamente, estávamos diante de um fato inédito. Segundo o discurso de Truman, foram gas-tos dois bilhões de dólares “na maior campanha científica da História”. O presidente ainda afirma que eles ganharam a “batalha dos laboratórios”. Essa passagem explica a maneira como os jorna-listas entusiastas viram o empreendimento e como essa empresa se distanciou do desinteresse caracte-rístico da ciência. Vista como a busca desinteressa-da pela Verdade ou por algo do gênero – associado ao desenvolvimento civilizacional do homem – a ci-ência se desenvolveu, nessa campanha, não guiada pela liberdade de troca de informações e envolvi-mento internacional, mas pela busca dos meios de derrotar o inimigo nessa área. Na ocasião, a pró-pria ciência foi subjugada pelo interesse político de ganhar no campo científico, fazendo prevalecer o poder que dessa tecnologia se poderia adquirir. Mencionando o redator diplomático da agência Reuteurs, que anunciou que “essa invenção tornou caducos os tratados ou sem valor as próprias deci-sões de Potsdam” (CAMUS, 1945), Camus afirma que é inevitável supor nesse belo acordo “intenções muito alheias ao desinteresse científico” (CAMUS, 1945). O fato assustador é que, sob o pretexto da “maior campanha científica da História”, , estão ca-dáveres de ao menos 140 mil pessoas, mortas em decorrência do ataque à Hiroshima somente até o final de 1945. A partir do dia 6 de agosto de 1945, surgiu a sensação de que “não importa qual cida-de mediana, pode ser totalmente arrasada por uma bomba do tamanho de uma bola de futebol”, em nome de algo que realmente se trata, ou se trans-veste, de progresso científico. Viu-se que mesmo um empreendimento científico - desenvolvido por cientistas como Oppenheimer, Van Neumann,

Feynmann e apoiado por Enrico Fermi e Albert Einstein – detém a justificação da barbárie. Mostrou-se que a ciência não é isenta de participação em geno-cídios. Mas, a Ciência é isenta da am-bição política, e mesmo da mais atroz característica desta?

O Manifesto

Há uma questão derivada e, mesmo aqueles que se encorajaram a respondê-la negativamente, se alinha-ram ao pensamento tradicional que impuseram ao cientista quase o título de rei-filósofo. A questão derivada é: Se as Ciências não são isentas de am-bição política, seriam isentas da atroz política do genocídio? A resposta, dada pelo manifesto A Concepção Semânti-ca da Verdade, de 1929, é sim. Já no início do manifesto, os au-tores cravam posição na história da Fi-losofia, opondo-se ao pensamento me-tafísico. Resistem, dizem, a esse atraso que “volta a crescer”, fortificando-se sob a tradição iluminista e “de pesqui-sa antimetafísica dos fatos”. Afirmam ainda que a linha cientificista de pen-samento também estava se desenvol-vendo e encontrando espaço em todo

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posição filosófica por elas guiada, mora o esforço que leva a um mundo melhor, sobretudo, do ponto de vista político e social. A ligação entre a Concepção Científica de Mundo e tais esforços iluminados é estabelecida no fato de que todos aqueles que partilham da “atitude fundamental” da concepção científica de mundo buscam “um sistema de fórmulas neutro, um simbolismo liberto das impurezas das linguagens históricas”; sobretudo, constata-se que, se-gundo essa concepção, “não há ‘profundezas’, a superfície está em toda parte”. É tentador relacionar, segundo esse ponto de vista, as justificações do genocídio de Hiroshima à profundeza metafísica que se impõe às atitudes dos ho-mens. Nesse caso, foi o próprio progresso inequívoco da ciência – nas palavras de Truman, “o domínio sobre a mais fundamental força da natureza” – que se fez profundeza. A própria Ciência, aparentemente refratária às profundezas obscuras, não teria, ela mesma, se transformado em pro-fundeza? Não seria, então, possível que o progresso cientí-fico justificasse a morte? Não, a morte não, pois a ciência não poderia se prestar a isto! Diriam os autores do manifesto positivista. Afinal, afirmam que a concepção científica admite, como os sofistas, que “tudo é acessível aos homens e o homem é a medida de todas as coisas”. Mas, esse homem fim, sobre o qual tudo converge e a quem tudo serve, certamente não eram os habitantes de Hiroshima. Esses foram, inequivo-camente, meio. Não ao “nobre” fim utilitarista de salvarem a vida de 500 mil soldados norteamericanos através de seu sacrifício imposto, mas meio para um fim cujas con-sequências são mais duradouras, e menos éticas, de evi-tar a entrada da União Soviética na guerra contra o Japão (GOLDSCHMIDT, 1980, p. 32). Nesse sentido, Magalhães (MAGALHÃES, 2005), historiadora brasileira residente em Hiroshima, sugere que a decisão dos Estados Unidos de lançarem o ataque nuclear se deu em decorrência às discussões da conferência de Yalta, na qual Stalin decidiu que no dia 8 de agosto de 1945 a União Soviética declararia guerra contra o Japão, o que custaria, nos cálculos estra-tégicos norteamericanos, a influência dos Estados Unidos na península da Coreia. Mesmo o Conselheiro de Segu-rança Nacional norteamericano, McGeorge Bundy, disse

o mundo ocidental, da “nova Rus-sia” aos Estados Unidos, passan-do pela Alemanha e, obviamente, por Viena. O que, na visão desses pensadores, une os progressistas de todos esses lugares é a aversão à especulação pura, à metafísica e, como Ernst Mach, a busca pela explicação mais empirista possí-vel. Citam do marxismo à escola econômica da utilidade marginal como forças iluministas contra a obscuridade do pensamento me-tafísico. A posição defendida por eles se faz mais clara quando de-claram que, a despeito de toda di-ferença que poderia ser encontra-da entre esses pensadores, o que os unem é a Concepção Científica de Mundo e, como consequência, “os esforços pela reorganização das relações econômicas e sociais, pela unificação da humanidade, pela renovação da escola e da edu-cação”. É claro que o manifesto apresenta uma ligação inequívo-ca entre a concepção científica de mundo e a direção progressista da humanidade. Que no empirismo e na metodologia própria e exclusi-va das ciências, imbuídas de uma

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em 1990 que a destruição de Hiroshima foi “totalmente desnecessária” do ponto de vista militar (p. 13). Ao apresentarem os desenvolvimentos positivos nas ciências so-ciais, os autores do manifesto afirmaram que essa área sempre gozou de mais autonomia com respeito à metafísica, talvez, por que termos como “guerra e paz, importação e exportação, estejam mais próximos à experi-ência imediata do que conceitos como átomo e éter”. Condenam, no entan-to, o termo “espírito do povo” como metafísico e que, consequentemente, deve ser eliminado das análises políticas e sociais. Ora, seria tão diferen-te o termo “espírito do povo”, daquele usado pelo jornal Le Croix, “avan-ço científico de valor inestimável” (CAMUS, 1945)? Não seriam, como já salientamos, a justificação do uso da bomba o aprofundamento indevido de uma superfície incômoda e claramente atroz? Mas, de novo, não foram exatamente aqueles cujos esforços deveriam levar necessariamente a “uma reorganização da ordem econômica e social e a unificação da humanidade” que possibilitaram, desenvolveram e executaram um dos maiores ataques à vida e a dignidade humana, na enorme maioria civil, já realizados?

O Físico

Werner Heisenberg, físico alemão preso no dia 4 de maio de 1945, fora levado a uma prisão nos arredores de Cambridge, juntamente com ou-tros dez físicos. Heisenberg era um dos principais nomes da nova física, a física quântica. Ele desenvolveu a mecânica matricial e o princípio de in-certeza e, juntamente com Niels Bohr, ajudou a construir a Interpretação de Copenhague, visão que se tornou hegemônica a partir da década de trinta e teve vida longeva. Heisenberg, muito por influência de Bohr, interessara-se pela Filosofia e a ontologia por detrás da física e partilhava, até então, da tal concepção científica de mundo, desenhada no manifesto de 1929. Heisenberg foi um dos físicos que permaneceram na Alemanha na-zista. O motivo para tal é ambíguo, pois, de um lado, a sua visão conserva-dora e nacionalista era inegável, o que não o opunha ao regime, mas por outro, o antissemitismo o incomodara a ponto de ser visto com suspeitas pelos oficiais nazistas, sobretudo com respeito à sua amizade com Bohr (di-namarquês de origem judaica) e sua admiração por Einstein. Sua perma-nência na Alemanha lhe rendeu o posto de chefe do esforço de pesquisa alemã para a energia atômica e uma passagem para uma prisão rural na Inglaterra após a queda do terceiro reich.

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correto, de que tinha consequências proveito-sas e, acima de tudo, era o sinal de um novo passo rumo ao progresso inequívoco trazido pela ciência. Também era evidente que o ataque so-mente foi possível através das pesquisas das décadas que antecederam o genocídio. O co-nhecimento, movido pela curiosidade ineren-te ao homem, estabeleceu as bases da bomba. Mas, certamente não foi uma relação direta de causa e efeito, afinal, a pesquisa que envolveu um desenvolvimento caro e secreto nada seria se aqueles homens houvessem dito “Não!”. É à essa pergunta que Heisenberg deseja respon-der, por que eles, pois claro que ele também estava incluído, não disseram: “não”? Se havia necessariamente tão forte sentimento huma-nitário nos homens de ciência, o que poderia ter se sobressaído à essa força? Lembrando a máxima tão conhecida “saber é poder”, Friedrich afirmou que en-quanto não houvesse um governo mundial, ou algo similar, o desenvolvimento científico permaneceria atrelado à “luta pelo poder na terra” (HEISENBERG, 1996, p. 228) e o desen-volvimento de conhecimento potencialmente úteis para fins bélicos continuaria de maneira frenética. Ressaltando a relação entre o desen-volvimento científico e as possibilidades bé-licas de seu uso, Friedrich manteve-se firme, afirmando que “nossa tarefa é guiar esse de-senvolvimento para fins corretos, não impe-dir o desenvolvimento em si” (HEISENBERG, 1996, p. 228). Friedrich aponta a questão in-dividual, se questionando: “o que pode fazer cada cientista para ajudar nessa tarefa e quais são as responsabilidades do pesquisador?” O indivíduo e seu papel na história, essa é a questão crucial, advertiu Heisenberg. Para o físico, o papel individual é menor, visto que “todo indivíduo é substituível”. Se o papel lhe é atribuído pelos eventos históricos, ao se negar, outro estaria em condições de realizá--los com mais, ou menos, tempo. A responsa-

No cativeiro, descobriu por meio de Wirtz, físico alemão, colega de cárcere, que havia ocorrido o ataque nuclear à Hiroshima. Otto Hahn –físico que, juntamente com Lise Meithner, desenvolveu a fissão do urânio em laboratório – ficou em estado de choque, segun-do testemunho de Heisenberg. Friedrich e Hei-senberg, com receio de que Hahn se suicidasse, ficaram à porta do quarto do colega e na ma-nhã seguinte, discutiram durante um passeio pela prisão rural a respeito da responsabilidade que eles, e principalmente Hahn, poderia ter no genocídio. Heisenberg duvidava até então que houvesse possibilidade de manipular a fissão a ponto de conseguir uma bomba e, principal-mente, que os cientistas se prestassem à essa empreitada (HEISENBERG, 1996, p. 226). Para ele, uma empreitada tão tenebrosa e tão clara-mente dedicada ao extermínio seria exatamen-te o oposto da ciência. Sua surpresa tocava aos físicos envolvidos, não à sanha de conquista militar e política que motivou o ataque. Heisenberg reconhece, agora sem som-bra de dúvidas, que ser um cientista não bas-ta para trazer a razão e direcionar os esforços para a unificação da humanidade e a busca de um mundo melhor. Aceitando que o cientista precisa se posicionar, que sua atividade não implica, como pensavam os positivistas, uma posição política pacífica, qual foi a responsabi-lidade dos cientistas envolvidos? Uma respon-sabilidade salta aos olhos, a justificação segun-do os textos jornalísticos dos periódicos pelo mundo. A morte foi encoberta pela magnífica luz de 12 megatons do controle da natureza e suas possibilidades. Houve o anúncio injusti-ficável de uma relação de implicação entre os eventos trágicos de 6 e 9 de agosto e as mara-vilhosas possibilidades daquele domínio. Os cientistas emprestaram o seu nome e prestígio à essa justificação. A autoridade sobre o conhe-cimento de que gozavam Oppenheimer, Fermi, van Neumann, Einstein e Feynman ofereceu a segurança para os incautos de que aquilo estava

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bilidade é restrita às declarações e campanhas contra o que acha errado nos diversos usos de sua descoberta. De outro lado, o inventor é o responsável direto pelo artefato e seu uso nem sempre lhe foge à previsão. Tal cisão é aparen-tada, pensamos, com a cisão entre ciência e tec-nologia. A aplicação prática de uma teoria para o desenvolvimento de um artefato é, muitas ve-zes, alheia ao interesse do inventor, que inventa sob ordens de um grupo (HEISENBERG, 1996, p. 229-30). Contudo, mesmo dependendo de interesses alheios para desenvolver seu projeto, há a possibilidade de enquadrá-lo em um con-texto mais amplo, propriamente progressista, e comprometer-se com princípios mais nobres ou humanitários. Friedrich insistiu na responsabilização dos pesquisadores envolvidos por não terem se comprometido com uma atuação política mais progressista. Agora, diversamente do pensa-mento do manifesto positivista, a pesquisa científica somente converge com uma política progressista se houver um comprometimento do pesquisador. O cientista não é um político, comprometido com a “unificação da humani-dade”, se não se posicionar e por isso lutar. Hei-senberg menciona que, talvez, ele e Friedrich houvessem tido mais sorte do que aqueles que estavam do outro lado do Atlântico. Essa afir-mação é importante, seriam aqueles que par-ticiparam, de certa forma reféns? Estariam em condições de imporem sua visão? É possível que a ordem de construírem uma bomba não estava suficientemente clara a respeito dos fins dessa campanha? Na visão dos físicos, seriam esses even-tos, sobretudo o genocídio de Hiroshima, ine-vitáveis. A força continuaria sendo a primeira opção para alcançar um fim. Respondem, mes-mo sem contato com o argumento de Truman, à manca versão oficial de que ao apressarem o fim da guerra, as bombas salvaram vidas. Ora,

os desdobramentos de tal invenção eram im-previsíveis, mesmo se esse tivesse sido este o motivo, o que claramente não foi. A invenção e a disposição mostrada pelos Estados Unidos de usá-la causou, profetizaram, um desequilíbrio irremediável entre os países. As catastróficas possibilidades já eram, para esses físicos, mo-tivos suficientes para dissuadir os Estados Uni-dos do uso da bomba atômica. Sobretudo, com a guerra já ganha. Não por coincidência, os cinco países que conseguiram obter a bomba atômica, cujo poder “ameaça todas as conquistas da civili-zação” (GOLDSCHMIDT, 1980, pp. i-ii) são exatamente aqueles que formam o conselho de segurança da ONU, que têm a responsabilida-de de manter a paz e aos quais são atribuídos o poder de veto. Após Estados Unidos e Reino Unido, a União Soviética, em 1952, a França, em 1960 e a China, em 1964 passaram a compor o conselho de segurança da ONU ao passo que conseguiam desenvolver a Bomba Atômica (p. 13-4). Este poder decide as linhas gerais das decisões mundiais, eliminando as questões - a esses - indesejáveis. São os países que exercem sua influência em todo o globo e decidem o que é pela paz e o que é contra ela. Os verdadei-ros Leviatãs que decidem o certo e o errado na maior e mais importante organização política internacional já criada. Friedrich estava certo, saber é poder. Nesse caso, ter em mãos o maior poder de destruição já imaginado.

O Iluminista

Já no período iluminista, havia uma voz destoante do entusiasmo a respeito de suas possibilidades, de seu uso e, mesmo, de suas motivações, Rousseau. O filósofo advertiu, em 1750, à Academia de Ciências que nem tudo são luzes na razão e, mais do que isso, que a escu-ridão lhe é inerente e irremediável. A razão se-riam

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as “guirlandas de flores” (ROUSSEAU, 1999, p. 190) sobre as correntes que nos aprisionam. A submissão inescapável ao poder da bomba atômica, aos vetos dos pioneiros nas importantes discussões da ONU e ao poder constituído nos países que podem des-truir cidades em poucos minutos é adornada, como Camus deixou claro, pelas possibilidades do contro-le das forças nucleares, do conhecimento constante e ininterrupto, custe as vidas que custar. Mas, claro que isso são somente guirlandas, o essencial conti-nua sendo o jogo de interesses e de poder. A influên-cia no leste da Ásia, a exibição de seu poderio e o po-der que veio de todo esse esforço são o que há, aquilo que aprisiona o acorrentado. As guirlandas enfeitam, mas também foram elas que possibilitaram essa pri-são. O iluminista apresenta uma visão crítica aos desenvolvimentos científicos, evocando o saber dos antigos, cita os mitos gregos e egípcios para alertar que “não se encontrará no conhecimento humano uma origem que satisfaça a ideia que se gosta de for-mar” (p. 230). As ciências são desenvolvidas no seio da sociedade e, com essa, partilha os anseios e, so-bretudo, as ambições. Desde suas origens históricas, a Ciência é marcada pelos direcionamentos polí-ticos que a permite e motiva. O projeto Manhattan somente ocorreu pela sanha de dominação daque-les que o patrocinaram e, a serviço destes, a Ciência compartilha das responsabilidades das consequên-cias. O poder é o que antecede a ciência, sua origem primordial. Isso não a despe de desinteresse, mas esse terá lugar somente quando esse espaço não for essencial para os rumos políticos do poder dominan-te. Isso significa que a Ciência nunca pode ser neutra politicamente. Em sua atividade o cientista não é mais, nem menos, político do que qualquer outro em sua pró-pria atividade. No isolamento de Los Álamos, os físi-cos se debruçaram sobre problemas de alta comple-xidade para a viabilização do projeto. Vários testes foram realizados para decidirem sobre qual o isóto-po de Urânio deveria ser utilizado, qual o processo ideal para enriquecê-lo, qual formato da bomba ide-al para atingir a massa crítica no momento correto

e garantir o maior poder de destruição possível. Essas questões científicas fo-ram tratadas da forma racional, de ma-neira que é impossível negar o caráter de Ciência à pesquisa como um todo, nem o caráter político à atividade desenvolvida, definido desde suas motivações. A inser-ção social à qual toda atividade humana se desenvolve marca a direção ética e po-lítica que tal atividade irá seguir. Dado o objetivo a mãos competentes daqueles cientistas, seu fim estava traçado e, dada a importância política desse fim, que de-terminou os rumos da política mundial ulterior, suas consequências estavam de-terminadas. Todo aquele esforço racio-nal de destruição ganhou vida própria, a bomba passou a ser um fim em si mes-mo, ou quase. A especificidade do projeto da bomba se dá pelo caráter de arma der-radeira. Se Rousseau viu nos desenvolvi-mentos civilizacionais o enfraquecimen-to do caráter do homem grego, outrora duas vezes vencedores contra a Ásia (p. 193), a ponto de leva-los à derrota contra os macedônios, tal raciocínio já não se aplica aos desenvolvimentos científicos atuais. A mudança se deu por duas ra-zões: a força inigualável de destruição e a desumanização do ataque, do agressor e da vítima. A partir daquele momento, di-ferentemente do discurso oficial de Tru-man, não foi o homem que subjugou a natureza, mas a guerra que se tornou de-finitivamente autônoma do homem. Os interesses que movimentavam os bata-lhões e tinha suas limitações e possíveis fracassos delineados pelas característi-

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cas humanas, agora se delineia pela força destruidora das conquistas tecnológicas e limita-se somente pela posse do meio de desenvolvê--lasO cientista se vê em uma disputa de interesses econômicos que, ao mesmo tempo que subjuga a atividade científica, possibilita material-mente a pesquisa, mesmo a mais remota e abstrata pesquisa teórica. Para fazer valer os princípios progressistas supostamente intrínsecos à atividade científica e, como fantasiou Heisenberg, dizer “não!”, o cientista deve negar a si próprio enquanto cientista. Entrevê-se nesse episódio que o cientista é uma entidade social que ultrapassa as deli-berações e anseios da razão e da moral humana e, por isso, a Ciência nunca estivera, de fato, sob o domínio dos homens. No entanto, os caminhos da Ciência – que nunca foram apartados do poder político e dos vícios das sociedades – desde de o teste em Trinity Site no dia seis de julho de 1945, passaram a possibilitar aos detentores da bom-ba o poder absoluto.

Bibliografi a

CAMUS. (8 de agosto de 1945). L’Enfer et la Raison. L’Combat, 1.GOLDSCHMIDT, B. (1980). Le Complexe Atomique. Paris: Libraire Àrtheme Fayard.HEISENBERG, W. (1996). A Parte e o Todo. Rio de Janeiro: Contraponto.MAGALHÃES, F. T. (2005) – 6 de Agosto de 1945; Rio de Janeiro: ContrapontoROUSSEAU, J. (1999). “Discurso sobre as Ciências e as Artes”. Em ROUSSEAU, Rousseau 2 (pp. 181-215). São Paulo: Abril Cultural.

Fonte:Revelada nos EUA e Inglaterra a invenção da arma de maior poder destruidor de toda a guerra. (7 de agosto de 1945). Folha da Manhã, 1-2.

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CRÍTICADO SENSO COMUM MILITANTEVai-se desde uma teoria do reconhecimento até um Heidegger fi ltra-do por autores franceses do fi m do século passado… Essa não organi-cidade é um dos aspectos crucias do senso comum militante

por Thiago Martins

Não é de hoje que a importação de ideias é tema no Brasil. Há toda uma tradição crítica que podemos remontar a Antonio Candido, Rober-to Schwarz, Paulo Arantes e outros que fizeram desse problema tema de suas reflexões. Entre-tanto, parece ainda fazer sentido desvelar a gene-alogia das ideias que aportam aqui no Brasil, no qual, exceto em alguns pensamentos já bastante desprovincianizados, insiste-se na submissão tradicional do que se pensa no país ao que está na moda no centro do mundo. O centro do mundo, porém, está sempre mudando. Ontem foram as culturas da Europa rica: França, Inglaterra, as vezes até Alemanha� hoje, o império dos Estados Unidos. Naqueles ou nestes o processo é muito similar: a voga das te-orias do momento abafam e mesmo obstruem o desenvolvimento de tradições que a muito custo se esforçam por desenvolver aqui. Mas, como é que se dá essa importação? Porque afinal de con-tas, se possuímos essa tal tradição crítica brasi-

leira, continua-se a seguir a moda intelectual internacional, por vezes tão banal e pouco in-ventiva? Essas duas questões são muito impor-tantes e o desejo de respondê-las muito salu-tar. No entanto, faremos o caminho contrário: mostrar que função desempenham aqui estas ideias. Dizendo de outro modo, qual o arranjo que tomam aqui estas ideias e a que interesses servem. No mar de opções que ilustrariam esse fenômeno, escolheremos somente alguns que se apresentam hoje como a moda mais visível: a política de identidades.

I. Privilégios e opressõesTodos aqueles que participam de alguma dis-cussão a respeito das questões identitárias ouve por todo lugar o mesmo vocabulário: visi-bilidade, legitimidade, lugar de fala, privilégio, sofrimento etc. Se não fosse a ocorrência cons-tante, esse rol de palavras seria simplesmente

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o resultado comum de um debate, noções que se mostraram as mais capazes de expressar as con-clusões teóricas a que esses grupos chegaram, ou a síntese de pensamento de um movimento. Não cremos que seja assim. Certa vez, ao participar de uma roda de conversa sobre sexualidade, ouvi de uma parti-cipante: “Os gays, por serem cis, detêm privilé-gio em relação aos bissexuais, estes não-binários. Uma família aceita melhor um parente gay por que ele é só isso, gay, algo facilmente identifica-do, já os bissexuais aparecem para a sociedade como pervertidos, por oscilar entre homens e mulheres. Os gays oprimem os bissexuais.” Obviamente me espantei com a declara-ção. Não somente era uma novidade que os gays fossem melhor “aceitos” socialmente por serem “simples”, mas também que eles fossem opresso-res e como tais seria preciso “desconstruir” seus “privilégios” tomando-lhes a fala. Porém, se ob-servada a lei de visibilidade do sofrimento bisse-xual, isto é, a adesão silenciosa ao discurso teste-munhal, os gays seriam admitidos como aliados. Saí logo depois. Com a exceção de uma fala, de um gay, todos as outras faziam coro a essa profissão de princípios: “desconstrua seus privilégios ou senão fora!”. Como ainda era um mistério para mim o sentido de “desconstruir privilégios”, peguei minhas coisas e fui embora com uma questão: como fomos parar aqui? Esse pequeno relato serve de amostra do que impera nas discussões desse gênero. Partici-pei de várias outras, em algumas delas com pes-soas bastante estudiosas e militantes, e sempre me deparava com aquelas mesmas palavras e lema: desconstrói-te ou fora. Até que decidi afi-nal, agora me haviam revelado que nós gays opri-míamos e invisibilizávamos, o que é inadmissível para aqueles dentre nós que lutam pela emanci-pação social e política, decidi estudar como esta-va a situação desse vocabulário, seus usos e suas consequências.

II. Ele está no meio de nós

O que primeiro descobri é que se trata de um senso comum. Há vários pensadores que sistematizaram e pensaram isso que se fala a torto e a direito, mas não somente são raramente citados, o que por si só não é um problema, afinal movimentos sociais não são grupos de estudo; mas também trata-se sem-pre das mesmas palavras, ditas do mesmo modo, com o mesmo sentido e não é possí-vel que uma corrente de pensamento tenha tamanha coesão, ou limitação, que obrigue a repetição ipis literis de um vocabulário. Já pela leitura dos termos, podemos observar a salada conceitual que está diante de nós: vai-se desde uma teoria do reconheci-mento até um Heidegger filtrado por autores franceses do fim do século passado� Essa não organicidade é um dos aspectos crucias do que estou chamando aqui de senso comum militante. Como acontece às várias espécies de senso comum, o todo é mais importante que a articulação entre as partes: é preciso torná-lo um credo em que as passagens e mediações são frágeis, inclusive para a sua adaptação e pequenas alterações que não afetem o todo. Que os pobres não gostem de trabalhar e por isso são pobres o senso comum preconceitu-oso sabe, mas se perguntarmos a ele os moti-vos históricos, sócias e políticos desse “fato” não haverá resposta que não seja um círculo vicioso e reposição da mesma tese. No senso comum que apontamos aqui há um complica-dor, entre muitos: a ação política. Fim último de tais formulações, a todo tempo a ação polí-tica flagra a inadequação dos usos e prejuízos dos resultados. Mas o círculo não se quebra e a tese ressurge intacta reiniciando o percurso argumentativo. Vejamos um exemplo, do que chamo

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não haverá resposta que não seja um círculo não haverá resposta que não seja um círculo vicioso e reposição da mesma tese. No senso vicioso e reposição da mesma tese. No senso comum que apontamos aqui há um complica-comum que apontamos aqui há um complica-

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coeficiente de sofrimento, operação pela qual se estabelecem os valores e contra-valores das falas políticas e de seus locutores. Se houver um debate em que estão pre-sentes mulheres e homens, as mulheres detêm o “lugar de fala” principal. Havendo mulheres ne-gras, este lugar passa para elas. Se houver ainda mulheres negras habitantes da periferia, o bastão está nas mãos delas, até que se chegue até a fala detentora do maior coeficiente de sofrimentos e a infinita modulação de sua identidade. Ora, ninguém negará que a opressão so-cial nestas mulheres apresenta a sua face mais cruel, violenta e inumana; que as mulheres de classe média e da elite estão submetidas a opres-sões de tipo aparentemente mais brando e que estas últimas pertencem, em geral no Brasil, as mulheres brancas. Até aqui, nada que não seja admitido por qualquer um com sensibilidade e posição política progressista. Os objetivos porém não são aqueles fami-liares a esquerda. Primeiramente, trata-se, antes de tudo, de uma questão de autoestima. As pesso-as com o maior coeficiente de sofrimento sofrem com a sua imagem discriminada pela sociedade, discriminação que chega aos níveis mais íntimos como o da beleza e dos relacionamentos amoro-sos. Depois, espera-se que estas pessoas deem testemunho de sua vida, seguido de um empieda-mento mudo. De outro modo, será invisibilização de sofrimento. Não estamos longe do sublime da imitação de Cristo prescrita por certas vertentes cristãs: quem carrega consigo todos os sofrimen-tos do mundo?

III. O privado, o íntimo e o público O outro aspecto que me chamou a aten-ção quando investigava esse admirável mundo novo contemporâneo foi como são tratadas as relações eróticas por esse senso comum. O lado mais francamente fascista dessa política. Digo fascista apesar do desgaste que esta palavra vem sofrendo, o nosso tempo é um tempo sombrio! Mas que ainda tem o que dizer. Utilizo-a signifi-cando uma socialização completa dos indivíduos

em que o existente é o necessário. Ocorreu-me outra história. Um co-nhecido me contava a sua mais recente aflição. A relação que mantinha com sua companheira estava muito mal e ele busca-va uma solução. Pelo seu relato ela recusava manter uma conversa decisiva sobre isso lhe causando bastante confusão. Depois de me pedir um conselho, eu lhe sugeri que dissesse a ela seus sentimentos, expectati-vas e frustrações. Ao que ele me respondeu: Mas isso seria machista! Ouve uma palavra de ordem usada por feministas no século passado que dizia “tudo é político”. Com isso se quis dizer que as questões privadas, como a violência do-méstica, são politizáveis. O ganho foi enor-me, já que com isso o que antes era con-siderado privado, assunto a ser resolvido unicamente pelos envolvidos era agora as-sunto público e legal. Tudo o que é privado é politizável. Mas a modernidade inaugurou também um outro espaço: o da intimidade. Esta herança rousseauista se tornou para muitos um dos poucos lugares que resta-vam da privatização da vida operada pela sociedade burguesa. Se as feministas hoje separam dois

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tipos de feminismo, aquele primeiro moralista e essencialista e o contem-porâneo revisionado, a atuação militante tem se mostrado bem aquém das mudanças teóricas. Os aspectos mais profundos das relações estão sob o policiamento paranoico de uma moral puritana na qual as relações livres são aquelas do contrato. Toda a sutileza do erótico deve sumir e assumir uma roupagem limpa, translúcida. Somente consciências sabedoras de seus interesses e dispostas a aceitar os termos do contrato são admitidas como capazes de relações amorosas. Vemos esse policiamento, não exclusivo a algumas feministas é cla-ro, expresso em lugares insólitos: desde a disposição mais “democrática” das cadeiras em uma sala, até a horizontalidade comunitária de todos fa-larem sentados. Há um rito para tudo aquilo que se considera importante: em mundo habitado por fantasmas é preciso mesmo munir-se de ritos de conciliação com o outro lado. A paranoia se trasveste em fé e o político esvanece�

Desconstrução ou morte! Como o lugar de fala do escritor deslegitima o seu texto e ele não tratou de se desconstruir, foi-lhe tirada a expressão. O autor então decidiu enviar como resposta algo satírica este pequeno trecho de uma comédia de ideias chamada “Desconstrução ou morte!”. Segue abaixo o texto assim como nos foi enviado. Os editores

— Este texto claramente foi escrito por um homem cis. A ironia com que trata assuntos de delicadeza indizível é o sinal derradeiro de sua insensibi-lidade e expressão acabada de seus privilégios ainda não desconstruídos.— Mas o texto, na verdade, busca questionar o caráter autoritário de fixar um vocabulário com expressão suficiente da verdade. Porque visibilidade seria o melhor conceito?— Visibilidade só parece inadequado aqueles que de tanto invisibilizar so-frimentos já não percebe a violência disso�— Mas por que esta palavra?— Você não pode entender por que é homem cis.— Sim, mas não sou capaz de pensamento?— O pensamento racional falocêntrico eurocêntrico branco não nos ex-prime!— Pois então, recuso esta seita exotérica de fascismo light que insiste um separar porque não entende a união. Que divide aquilo mesmo que a re-produção das opressões exige que permaneçam divididos: os oprimidos! A esse autoritarismo dizemos não! Não é a emancipação que buscam mas poder, poder das paixões tristes que imperam nesta terra arrasada despro-vida de crítica e radicalidade autêntica.

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A NOÇÃO DE PARTILHARANCIÈRE E OS LAÇOS ENTRE ESTÉTICA E POLÍTICA

por Michelly Alves Teixeira

A partir da obra A partilha do sensí-vel, demarcamos com Jacques Rancière um fio condutor que leva do filosófico ao polí-tico, e mostramos as passagens propostas pelo autor que levam da arte à política. Para isso, o artigo começa retomando suas teses na obra O desentendimento, para mostrar a existência de um “comum” fundamenta-do em uma partilha dos espaços, tempos e tipos de atividade que determina a maneira como um “comum” se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa par-tilha. Após repor a questão tal como exposta nessas obras, o artigo volta-se a sua obra O ódio à democracia, e seu conceito de comu-nidade política como um grupo de indiví-duos governados por um poder e apresenta algumas implicações, limites e superações possíveis postas pelo autor à democracia re-presentativa no âmbito social contemporâ-neo.Palavras-chave: Política – Democracia – Representação – Comunidade – Partilha – Sensível – Comum

From Jacques Rancière’s work The distribution of sensible, we try to clarify the thread that leads the philosophical to the political, and show the passages pro-posed by the author to take art to politics. The paper begins summarizing the theses in the work Disagreement: Politics and Philosophy, to show the existence of a “community” based on a sharing of spaces, times and types of activity that determines how this “community” lends itself to po-litical participation. At last, we search the same kind of questions in the book Ha-tred of Democracy , trying to understand his concept of political community as a group of individuals governed by a power and their implications, possible limits and overruns put by the author to representa-tive democracy in the contemporary social context.

Key-Words: Politics – Democracy – Re-presentation – Community – Distribution - Sensible

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INTRODUÇÃO A pesquisa tem como objeto alguns textos de Jacques Rancière, e esse texto é o Relatório Final da pesquisa proposta para o Pibic-2015/2016 . Tem por objeti-vo mostrar como o autor problematiza a democracia desenhando certo bloqueio à política, tendo-se por base bibliográfica o seu Ódio à democracia. Em seguida, o texto retoma suas teses em A partilha do Sensível, para mostrar a existência de um “comum” fundamentado em uma partilha dos espaços, tempos e tipos de atividade. Nos termos de sua leitura, trata-se de uma partilha que determina a maneira como um “comum” se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. Desse modo, mediante a partilha que constitui o comum, demarcamos um fio condutor que leva do filosófico ao po-lítico, e mostramos as passagens propos-tas pelo autor que levam da arte à política. A formação da comunidade no período antigo, segundo a leitura do autor em O desentendimento, nos mostra como em seu percurso o povo [demos] recupera o reconhecimento de seu papel dentro da comunidade. Ao recuperarmos o papel da democracia e o conceito de comunidade política como um grupo de indivíduos go-vernados por um poder, uma minoria de oligarcas e algumas implicações da de-mocracia representativa no âmbito social contemporâneo, e valendo-nos do tex-to O ódio à democracia, acompanhamos como a comunidade política passa por oscilações, tendo-se a passagem para a democracia como representação por nos-so fio condutor. Como proposta de uma conclusão criticacrítica, traçaremos um esboço da passagem da política à estética posta pelo autor em A Partilha do Sensí-vel, a fim de descortinarmos visibilidades que estruturem nexos entre o papel da arte nesse cenário político que apontam horizontes para futuros desdobramentos de nossa pesquisa.Do autor tomamos sua tese de que, na po-

sição de espectador, agimos sobretudo como es-pectadores do mundo e é por essa linha de pensa-mento que retomamos sua crítica à democracia e nexos desenhados por ele entre política e estética. A proposta do artigo é mostrar como a partilha do sensível delineia a estrutura da comunidade políti-ca com base no encontro discordante das percep-ções individuais, tendo-se por ponto de chegada que é mediante o encontro da estética com a polí-tica que organizamos o sensível, é nesse encontro que nos damos a entender, vemos e construímos visibilidade e inteligibilidade dos acontecimentos políticos. O regime estético da política revela-se comprometido com o regime da política, regime de indeterminação das identidades, deslegitima-ção das posições, desregulação das partilhas do es-paço e do tempo que é a própria democracia. Por fim, mostraremos como seu debate atravessa o campo da estética, da história da filosofia e da po-lítica, mesmo quando o assunto principal pareça ser arte, imagem ou comunicação.

1. AS RAÍZES DO CONFLITO POLÍTICO: DOMI-NAÇÃO DESIGUALDADE E DANO

Com Jacques Rancière, podemos observar desde os tempos mais remotos da pólis grega aos nossos dias, o quanto a política é a parte constitutiva da formação do povo. Com os objetivos que a faz ser o que é atualmente, a política mantém o seu prin-cípio de igualdade e já foi fonte de confiança para o povo enquanto é possível acreditar que se reali-ze em âmbito social, mediante manifestações em multiplicidade de modos, buscando lugares ade-quados para a deliberação e para a decisão sobre o bem comum, da rua à fábrica. Conforme a chegada da modernidade, contudo, perdemos o caráter

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principal da política e hoje aceitamos com desdém a opinião que se propaga de uma política incapaz de deliberar com o apoio da população, adaptada antes às exigências do mercado mundial e preocupada com a distribuição de lucros e custos a serem pa-gos para se manter essas exigências. Aristóteles enumera os títulos de comuni-dade (axiai) na Grécia Antiga: a oligarquia dos ricos, a aristocracia das pessoas de bem e a democracia do povo, e apresenta um desequilíbrio político que perturba a ordem hierárquica dessas partes da comu-nidade e que se encontra nos degraus no qual a política constrói os seus princípios: na igualdade e na liberdade. Ao nos deter-mos no povo ateniense fadado a ser escra-vizado pelo endividamento ou a qualquer um desses corpos falantes que trabalham incessantemente, fadados ao anonimato do trabalho e da reprodução, comprovamos o papel dessa liberdade, reconhecida a todos e construída a fim de se impedir que a ri-queza seja idêntica à dominação: ela per-mite ao povo (demos) identificar-se com o todo da comunidade – assim, o nome da massa indistinta dos homens sem quali-dade vê na liberdade a qualidade que lhes falta, como virtude comum. A liberdade vista pelo povo como uma qualidade não “pertence” a eles. Sob a li-berdade ilusória encontra-se o litígio que é

a causa fundamental do dano que não cessam de lhes causar. É em nome desse dano, que lhe é causado pelas outras partes, que o povo – os pobres da antiguidade ou o proletariado moderno – torna-se a classe que causa dano à comunidade. Nos termos de nossa leitura, propomos a seguir definir os três campos que, segundo o autor, configuram as raízes de um conflito no discurso político, da pólis Grega à contemporaneidade, e apresentam os riscos à política e a representatividade no contexto democrático: a dominação, a desi-gualdade e o dano.

1.1 Desde o período grego, Aristóteles nos apresenta o caráter político do animal huma-no que é parte fundamental na pólis. O ho-mem é o único entre todos os animais que possui a palavra e que possui o sentimento do bem e do mal, do justo e injusto, de modo a fazer desses sentimentos a constituição da comunidade. O que a palavra ou a capacidade de falar (logos) torna evidente para uma co-munidade é a sua capacidade de deliberação. A justiça, enquanto princípio de comunidade, cuida das repartições e da maneira como são dadas as formas de exercício de um poder co-mum presente nos cidadãos, essa justiça, en-quanto virtude, não é o equilíbrio de interes-ses ou reparação de danos , é a distribuição igualitária de parcelas buscando a ordem que determina essa divisão no comum. Seguindo a leitura de Racière da obra Políti-ca de Aristóteles, o autor enumera os títulos de comunidade (axiai) como a riqueza dos poucos (os oligoi), a virtude (areté) que dá seu nome aos melhores (aos aristoi) e a liberda-de (a eleutéria) que pertence ao povo (demos) . As axiai fornecem regimes particulares que proporcionam a ordem e o bem comum den-tro da comunidade: a oligarquia, a aristocra-cia e a democracia. A questão proposta por Rancière nos ajuda-nos a identificar o que é

1 - “Dano. No original, tort. Indica o dano causado a alguém, como sentido não apenas físico, mas, sobretudo, jurídico” (n. do revisor técnico, in RANCIÈRE, J. O desentendimen-to: Política e fi losofi a. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 20).

2 - “Parcela. No original, part (o termo fran-cês partie foi traduzido como parte). Designa a parte que cabe a alguém numa divisão ou distribuição, o quinhão que é dado a uma pessoa ou que legitimamente deveria ser seu”. (idem, p.11).

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a liberdade trazida pelas pessoas do povo à comunidade: existe um desequilíbrio que perturba a estrutura da ordem enumerada por Aristóteles, porque, na capacidade polí-tica detida apenas pelos homens de mérito, a distribuição igualitária das parcelas falha e a liberdade da maioria dos homens comuns é revelada como um erro na divisão. O problema na distribuição dessa parcela igualitária promovida pela justiça é que ne-nhuma ordem política encontra-se definida. Para o autor, a política só começa quando não se mantém equilíbrios de lucros e perdas e onde as parcelas do comum estão igua-litariamente repartidas, Para que a pólis seja ordenada conforme o bem, é preciso que as parcelas da comuni-dade estejam em estrita proporção com a axia de cada parte da comunidade: ao valor que ela traz para a comunidade e ao direito que esse valor lhe dá de deter uma parte do poder comum. Existe um erro na contagem das partes. Hoje, a justiça existe com o intuito de im-pedir que os indivíduos causem danos recíprocos e em garantir lucros e perdas no interior de comunidades que mantêm relações entre os indivíduos e os bens, e sacrifica o princípio real da justiça, que é propor uma comunidade igualitária. Quando a escravidão por dívidas foi abo-lida, o povo considerava-se livre, mesmo diante de inúmeros danos que o faz ser parte dessa comunidade. Ao portar a pa-lavra (logos), essa gente, fadada ao ano-nimato, identifica-se como parte e como força deliberativa do todo da comuni-dade, buscando nessa liberdade ilusória promovida pela divisão igualitária da po-lítica, a liberdade como virtude. Para Rancière, o nosso encontro com a política se deve graças a esse partido dos pobres, essa parcela de pessoas destitu-ídas de igualdade. A política interrompe esse efeito de dominação dos ricos e faz com que os pobres existam enquanto entidade, provocando o desdobramento de um dano ou do litígio no interior da comunidade. Para o autor, o dano não é somente a dissenção a ser corrigida através da luta de classes. Mesmo que a solução seja dar a cada um a parcela de terra igual, a constituição do dano tem raízes mais profundas, encontradas ainda no período antigo, quando deixam de ser apenas pobres e passam a ser “o reino da ausência de qualida-de, a efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de liberdade, a propriedade imprópria, o título do litígio” .

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A guerra dos pobres e dos ricos no inte-rior da comunidade se deve à negação da política, pois, ao afirmar que não há parcela dos sem parcela, ou seja, que não há pobres no interior da comunidade, também se coloca em risco a existência da própria política, na medida em que “o litígio em torno da contagem dos pobres como povo, e do povo como comunidade, é o litígio em torno da existência da polí-tica, devido ao qual há política” . Ao observar os danos que essa classe de pessoas de mérito ocasiona ao povo atra-vés da dominação, conclui o autor que são inúmeros os exemplos que compro-vam que, seja o proletariado moderno ou os povos da Antiguidade, vive-se me-diante a ilusão de liberdade, que seria an-tes a qualidade dos que não tem nenhu-ma outra (nem mérito e nem riqueza). É com essa liberdade que o amontoado de “pessoas de nada”, na fórmula de Ran-cière, torna-se o povo, a comunidade que decide e que é maioria no lugar da assem-bleia. Uma vez posta a minoria de mérito e a maioria sem qualidade que delibera, mantém-se uma sociedade composta por duas partes: ricos e pobres. Para o autor,

“a torção pela qual existe política é também a que institui as classes como diferentes de si mesmas”, com isso, a formação da política é a mesma da luta de classes, afinal o proletariado não é uma classe, mas a dissolução de todas elas, e nisso é dada a sua universalidade, lembra o autor se reportando a Marx . 2. CONFLITO E REPRESENTATIVIDADE Vivemos em Estados oligárquicos modera-dos fundados entre o poder das “elites” e o poder de todos. Torna-se uma ameaça a ligação cada vez mais forte entre o poder econômico e o poder es-tatal, consequência do confisco da democracia por oligarquias. Com isso, hoje assistimos ao fortaleci-mento e à formação de um pântano fascista, capaz de impulsionar um ódio à democracia.Para Rancière, a democracia não é uma questão de instituições, mas de atividade. É o que aconte-ce nas ruas, nas fábricas ou nas universidades, é o que acontece hoje na internet, nas ocupações, na sua transformação em espaço político e a tarefa do povo é enxergar que a democracia confere auto-nomia à forma de pensar e agir. Para isso, é exigido que o povo destituído de liberdade note a impor-tância de defendê-la como organização social ca-paz de promover direitos a todos os que nasceram sem títulos para exercer o poder.Relevante ao momento político atual e por meio da crítica à democracia no período antigo, Rancière tece sua crítica à democracia representativa em contraponto à democracia direta: a representação não é resultado do crescimento populacional, mas uma estratégia de manutenção do poder na mão de poucos. Na obra O ódio à democracia, aprofun-dando crítica posta em O desentendimento, o au-tor problematiza a democracia desenhando certo

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bloqueio à política, e nossa tarefa agora é acompanharmos como a comunidade política passa por oscilações, tendo-se a passagem para a democracia como representação por fio condutor.

2.1 O cenário explicitado por Rancière com o princípio da voz e representatividade popular nos remete a novo percurso, à ideia de representatividade parlamentar e ao problema da ade-quação do exercício político, das forças presentes nesse âmbito e ao paradoxo em torno de instituições representativas. O paradoxo em torno da democracia e seu inicioinício se dá na época em que a representatividade parlamentar torna-se alvo de protestos e objeto de vigilância militante. Se, por um lado, acompanhamos no decorrer da história gerações de militantes socialistas e comunistas lutarem por uma Constituição, direitos e funcionamentos institucionais, por outro lado, hoje a situação encontra-se invertida, e os tempos presentes nos dão respostas quanto a esse paradoxo: democracia aparece como a adequação das formas de exercício do político dentro da sociedade às forças que a movem e os interesses que a tecem, e não é mais de garantia do poder do povo por meio de instituições representativas que se trata. Como saída desse impasse, o autor propõe que o sucesso da democracia consistiria em encontrar nas sociedades uma coin-cidência entre sua forma e seu ser sensível e em identificar a manifestação sob forma de representação desse ser-sensível. O problema é que essa ausência está sempre preenchida e o para-doxo corresponde, nas nossas sociedades, à volta do povo, que sempre aparece onde é declarado extinto.Para uma analiseanálise aprofundada, o filósofo nos remete às primeiras questões da ideia de democracia no âmbito da filosofia política. A democracia provocou a filosofia política porque ela não é um conjunto de instituições ou um tipo de regime, e sim uma maneira de ser do político. Ela não é um regime parlamen-tar ou o Estado de direito, ela deixou de ser um estado do social, reino do individualismo ou das massas. A democracia torna-se o modo de subjetivação da política – entende-se por política coisa diferente da organização dos corpos em comunidade e da gestão dos lugares, poderes e funções. Um dispositivo resumido em três aspectos, primeiro, a democracia é o tipo de comunidade defini-do pela existência de uma esfera de aparência especifica do povo , aparência aqui como a introdução no campo da experiência de um visível que modifica o regime do visível. Segundo, os ocupantes dessa esfera de aparência possuem um particular, um povo que não consiste em nenhum grupo social,

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mas sobre-impõe à dedução das parcelas da sociedade a efetividade de uma parcela dos sem-parcela. Em que o povo tem um duplo corpo e essa dualidade é a do corpo social e de um corpo que vem remover toda identificação social . Terceiro aspecto da democracia, esse lugar de aparência predomi-nante no povo é o lugar de condução do conflito/litigio. O litígio polí-tico diferencia-se de conflitos de interesses entre partes constituídas da população, já que é um conflito sobre a contagem das partes.

2.2 A democracia nasce em Atenas. Lá, a participação dos cida-dãos na política, mediante distribuição de cargos por meio do sorteio aleatório, é um governo de qualquer um. A vinculação do demos – o poder ou o governo do demos – desenvolve um sintoma negativo em torno da pólis. O resultado desse desagrado gira em torno de uma minoria oligárquica e o essencial é fundamentar essa separação en-tre democracia direta e representativa e a sua implicância no social. Temos uma primeira manifestação de ódio ao conceito de democra-cia lá na Antiguidade, graças aos que viam a ruína de toda ordem legítima no inominável governo da multidão. Continuou sendo razão de ódio aos que acreditam que o poder pertencia somente aos que já eram beneficiados por ele desde o nascimento ou eleito por compe-tências. Ainda hoje é odiada para aqueles que fazem da lei divina a única forma de poder e legitimidade fundante de comunidades. Sendo assim, afirma Rancière, a palavra democracia não designa for-mas de sociedade de governo. A “sociedade democrática” é apenas uma fantasia com a função de sustentar um principioprincípio do bom governo . Não existe governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria para a maioria e aqui o “poder do povo” é necessariamente o que separa o exercício do go-verno da representação da sociedade.Assim a representação aparece assim, de pleno direito, como forma oligárquica, por ser representação das minorias com título para se ocupar dos negócios comuns. É a partir desse percurso do governo da maioria ao da minoria que se exige uma separação importante entre questões postas sob democracia direta e sob democracia repre-sentativa, a última sendo a marca registrada na sociedade moderna.A evidência que assimila a democracia à forma do governo repre-sentativo resultante de eleição é recente na história, mas esse modo representativo é o exato oposto da democracia lá entre os gregos. O autor declara que, mesmo onde é reconhecida a igualdade dos “ho-mens” e dos “cidadãos”, tal igualdade é reconhecida na relação destes com a esfera jurídico-política constituída e mesmo onde a soberania é popular só o é na ação de seus governantes e representantes. Tal igualdade faz distinção entre o público, que pertence a todos, e o pri-vado, em que reina a liberdade de cada um, o que levaria à domina-ção dos que detêm de poderes na sociedade.Nesse compasso, a democracia caminha para além do âmbito dos

3 - Rancière, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitem-po, 2014, p. 68.

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indivíduos empenhados em sua felici-dade privada, ela é o processo de luta contra a privatização e o processo de ampliação dessa esfera. Ampliar a es-fera pública não significa exigir a inter-venção do Estado na sociedade e sim lutar contra a divisão entre o público e o privado.O processo democrático, portanto, aponta o autor, implica: a ação de sujei-tos que reconfiguram as distribuições do privado e do público, do universal e do particular. Esse processo deve trazer de volta o significado da palavra de-mocracia, a rejeição da pretensão dos governos de tornar/encarnar um prin-cípio uno da vida pública, circunscre-vendo a compreensão e extensão dessa vida pública. Se existe uma limitação para a democracia, ela reside no movi-mento que desloca os limites do públi-co e do privado, do político e do social.

3. A ESTÉTICA COMO PARTILHA DOS HOMENS FADADOS AO ANONIMATO Para responder questões sobre atos estéticos que configuram na expe-riência novos modos de sentir e induzir formas de subjetividade política, Ran-cière traz, na obra O desentendimento, análises dedicadas à “partilha do sensí-vel”, enquanto cerne da política . Nessa terceira parte de nosso relatório final , fecharemos nossa pesquisa com as ar-ticulações do regime estético das artes e seus modos de transformação. Para isso, vejamos como o autor pensa o re-gime de identificação e pensamento das artes em seus modos de articulação e de visibilidade, a fim de propor por essa via a ideia da efetividade do pensamen-to. Para Rancière, a partilha do sensível é um sistema que revela a existência de um comum e recortes que partilham partes e definem lugares. Essa repar-

tição de partes e lugares tem por fundamento uma partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que delineiam a participação desse comum e dessa partilha . Desse modo, mediante a partilha que cons-titui o comum, demarcamos a seguir um fio condu-tor que leva do filosófico ao político, e mostramos as passagens propostas pelo autor que levam da arte à política. O fio condutor é mostrar como a partilha do sen-sível delineia a estrutura da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais, tendo-se por ponto de chegada como, mediante o encontro da estética com a política, or-ganizamos o sensível, nesse encontro nos damos a entender, vemos e construímos visibilidade e inteli-gibilidade dos acontecimentos políticos.

3.1 Para Rancièrea o autor, a política tem sempre uma dimensão estética, na medida em que ambass, estética e política, organizam o sensível. Afinal, toda atividade comporta uma visão de espectador do mundo e toda posição de espectador já nos deixa a possibilidade de interpretar com um olhar que des-via o sentido do espetáculo. Em A partilha do Sen-sível são delimitados os campos em que, na política, com existência de um comum, e, na estética, dando forma à comunidade, em ambas temos a repartição, das partes e dos lugares, que se fundamenta em uma partilha dos espaços, tempos e tipos de atividades que determinam a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. Nesse cenário macroestrutral, Rancière nos apre-senta a partilha democrática do sensível, napela qual se tira o homem, o trabalhador de seu espaço doméstico do trabalho e lhe oferece o “tempo” pre-ciso para fazer parte das discussões públicas e man-ter a identidade de cidadão deliberante.A partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas. Antes de ser o sistema de formas constitucionais ou de relações de poder, a ordem política é certa divi-são das ocupações, a qual se inscreve, por sua vez, em dada configuração do sensível, qual seja, na rela-ção entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer, que efetiva a distribuição dos corpos políticos 4 - Rancière. A partilha do sensível. São Paulo:

EXO experimental org. Editora 34, 2009, p. 11.

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de acordo com as atribuições e finalidades e a circulação do sentido. Para o autor, as ocupações definem compe-tências, visibilidade e voz para participação no comum. Existe, portanto na política, uma “estética” que se define por exercer aquilo que é visto, o que é dito, competências para ver e qualidades para dizer. É a partir dessa visibi-lidade que a questão das “práticas estéticas” e de seu papel no comum firma-se e é com Platão, por exemplo, que o autor destaca duas formas de efetividade do sensível: o teatro e a escrita. O regime estético da política revela--se comprometido com o regime da política, regime de indeterminação das identidades e a deslegitimação das posições. Essa desregu-lação das partilhas do espaço e do tempo é a própria democracia.

Considerações fi nais Em companhia das críticas de Jacques Rancière, podemos concluir que a palavra de-mocracia não é capaz de designar nem uma forma de sociedade e nem uma forma de go-verno. A sociedade democrática que conhece-mos é a fantasia que sustenta tal princípio do bom governo que, ao dispor de títulos, exerce a autoridade. E, tanto no presente quanto no passado, mediante essa mesma autoridade, ainda somos sociedades organizadas por oli-garquias. Para definir a democracia no seu sentindo lite-ral, no seu sentido direto, a forma de vida dos indivíduos passa longe da felicidade privada apresentada como necessária para o convívio social. Ela tem a obrigação de ser parte de um processo de luta que caminha contra esse am-biente privado para assim garantir também que a dominação da oligarquia não predomi-ne na esfera pública. Quando há o reconhecimento da ampliação

na esfera pública com base em lutas histó-ricas de inclusão entre eleitores e elegíveis, temos reconhecida a qualidade de iguais e de sujeitos políticos que conquistam o es-paço público e deixam de ser parte excluída da sociedade dedicada à prática doméstica e reprodutora. Para isso, o autor nos deixa como proposta a partilha democrática do sensível, que tira o trabalhador de seu espaço doméstico do trabalho e lhe oferece oportunidades para fazer parte das discussões públicas, manter a identidade de cidadão deliberante e es-quecer completamente que um dia esteve fadado ao anonimato do trabalho, a fim de definir competências, visibilidade e voz para participação no comum. Existe, portanto na política, uma “estética” que se define por exercer aquilo que é visto, o que é dito, com-petências para ver e qualidades para dizer.Com isso, fechamos nosso artigo acrescen-tando que os desdobramentos no teatro e na escrita são formas de partilha do sensível que estruturariam as maneiras pelas quais as artes podem ser pensadas e percebidas; o problema agora é saber como se dariam sua inserção na comunidade, como se poderia definir que obras ou performances “fazem política” e como essas formas artísticas re-fletiriam movimentos sociais, aportariam a igualdade em todos os temas e destruiriam hierarquias, questões que abrem novos ho-rizontes e que, embora extrapolem nosso recorte proposto, precisam ser apontados como indicação de avanços e desdobramen-tos de nosso artigo proposto aqui.

Referências Bibliográfi casRANCIÈRE, J. O desentendimento: Política e fi losofi a. São Paulo: Editora 34, 1996. __________. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. __________. A partilha do sensível, 2ª ed. São Paulo: EXO experimental org;. Editora 34, 2009.

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TRÊS POEMAS DE LANGSTON HUGHES

Traduzido por Lucas Bertolo

O NEGRO FALA SOBRE OS RIOS

Conheci rios:Conheci rios antigos como o mundo, mais velhos queo correr do sangue nas veias dos homens. Minha alma cresceu profunda como os rios. Banhei-me no Eufrates quando a aurora era jovem.Construí minha cabana no Congo, e ali o sono me alentou.Olhei para o Nilo, e levantei as pirâmides ao seu redor.Ouvi o cantar do Mississippi quando Abe Lincoln desceu para Nova Orleans; e vi a sua taciturna alma dourar-se ao pôr-do-sol. Conheci rios:Rios antigos, escuros. Minha alma cresceu profunda como os rios.

THE NEGRO SPEAK OF RIVERS I’ve known rivers:I’ve known rivers ancient as the world and older thanthe flow of human blood in human veins. My soul has grown deep like the rivers. I bathed in the Euphrates when dawns were young.I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.I looked upon the Nile and raised the pyra-mids above it.I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln went down to New Orleans, and I’ve seen its muddy bosom turn all golden in the sunset. I’ve known rivers:Ancient, dusky rivers. My soul has grown deep like the rivers..

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FANTASIA EM PÚRPURA

Bata os tambores da tragédia para mim.Bata os tambores da tragédia e da morte.E deixe o coro cantar uma canção tempestu-osaPara afogar os ruídos do meu último suspiro. Bata os tambores da tragédia para mim,E deixe os violinos brancos chiarem, finos e lentos,Mas sopre no trompete uma estridente nota de solPara ir comigo à escuridão aonde eu vou.

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FANTASY IN PURPLE

Beat the drums of tragedy for me.Beat the drums of tragedy and death.And let the choir sing a stormy songTo drown the rattle of my dying breath. Beat the drums of tragedy for me,And let the white violins whir thin and slow,But blow one blaring trumpet note of sunTo go with me to the darkness where I go.

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EU, TAMBÉM

Eu, também, canto América. Eu sou o mais negro irmão.Eles me mandam comer na cozinhaQuando vem a visita,Mas eu rio,E como bem,E cresço forte. Amanhã,Estarei à mesaQuando a visita vier,Ninguém ousaráDizer a mim,“Coma na cozinha”,Então. Além disso,Eles verão quão belo eu souE terão vergonha — Eu, também, sou América.

I, TOO

I, too, sing America. I am the darker brother. They send me to eat in the kitchenWhen company comes,But I laugh,And eat well,And grow strong. Tomorrow,I’ll be at the tableWhen company comes.Nobody’ll dareSay to me,“Eat in the kitchen,”Then. Besides,They’ll see how beautiful I amAnd be ashamed — I, too, am America.

BibliografiaIn: Hughes, Langston. The Collected Poems of Langston Hughes. New York: Vintage Books, 1995

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Volteios do tempo brasileiro1

por Bruno Carvalho

Na sessão da Câmara dos deputados de meados de abril de 2016, em que se deu o espe-táculo midiático-político do impedimento de Dilma Rousseff, foi proferida uma declaração de voto a favor de cujo autor não me lembro, mas à qual penso ser fundamental dar desta-que, pois talvez fale muito mais do que aquilo que foi dito e acaba sendo uma espécie de sín-tese. Às vezes, basta uma frase para explicar as razões latentes de certa ações.Pelo conjunto da obra. Deslocada do seu contexto de premia-ções e comendas, essa frase expressa o quanto tudo que se pôde elencar de justificativa para o impeachment não passa de uma prestidigita-ção. Não foram pelos crimes de responsabili-dade que podem constitucionalmente afastar um presidente, não foram pelas alegações for-mais alegadas, nem foi pela crise econômica (que para alguns, em um reducionismo econo-micista, foi o elemento detonador da instabili-dade política), mas sim por tudo que o governo de Dilma tinha significado. Essa ideia expressa sobretudo uma rejeição em abstrato e de forma totalizante àquilo que os governos petistas rea-lizaram, isto é, certa ojeriza à “obra” petista, in-

dependente de como esta seja qualificada. Fato é que também à esquerda essa ideia faz pensar, a “obra” petista há muito distanciou-se das ex-pectativas de setores significativos da esquerda. É igualmente pelo não-cumprimento (para di-zer o mínimo) de expectativas depositadas nos governos do PT em sua totalidade que muitos deixaram de apoiá-lo. Parece ser já um truísmo, mas insisto, não temos no jogo institucional, isto é, no pro-cesso eleitoral, quase nenhuma expectativa. E isso em ambos os polos do espectro políti-co: a descrença na política (2) nas instituições como maneira de construir uma nação (como se isso ainda fosse possível num mundo como o nosso, que outros já chamaram de “mundo em rede”) está presente tanto nas falas daquilo que se chamou de nova direita (veja-se o MBL, por ex. é uma expressão clara disso ou ainda um de seus Messias – o Jair –, que não titubeou em afirmar que “através do voto você não vai mudar nada nesse país, só quando partirmos para uma guerra civil”(3)) quanto na certeza de parcelas significativas de atores políticos à esquerda de que não se pode esperar nada (de bom) das instituições (a tática das ocupações de

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terras, prédios, reitorias e escolas, bem como os black--blocs talvez possam ser compreendidas nessa chave.) Essa ausência de alternativa que represente os in-teresses dos brasileiros não se dá porque “o país está divi-dido”, como tanto se alardeava logo após as eleições. Uma descoberta deveras inusitada, antes de tudo pela obvie-dade ancestral quando temos em mente a desigualdade social, mas também porque abriria espaço para a ques-tão: o que propiciou a percepção social da divisão apenas depois da vitória apertada da Dilma? A quem interessava apenas depois do resultado das eleições de 2016 colocar na mesa qualquer sentido de divisão nacional? É bem verdade que o sentido primeiro aqui concerne ao âmbito político, trata-se de reclamar uma suposta ilegitimidade para o governo, uma vez que até as urnas registraram que a falta de unanimidade. Mas isso poderia levar a crer que a caracterização do Brasil como dividido seria apenas de interesse daqueles que perderam as eleições, como quem ameaça: nós perdemos, mas precisarão governar para nós também, não fomos derrotados. Por outro lado, é inegável que o resultado das eleições expressou uma ci-são real, tanto assim que as tensões políticas conduziram até o impeachment. Nesse sentido, não haveria também o período do dito lulismo contribuído para a construção da ilusão de que um consenso de classe fosse possível no país? Ao que parece, parcela significativa da população brasileira (num cálculo aproximado, não se exageraria ao afirmar que mais de uma geração já não tem memória de vida do que seja esse país antes do governo petista) não consegue dimensionar realmente o que seja uma socie-dade cindida; podem até viver na pele experiências de humilhação, saber muito bem o que seja desigualdade, mas viveram num contexto cultural e econômico no qual se disseminava a compreensão de que o Brasil entrava finalmente entrando nos trilhos, que sairia da condição de subdesenvolvido e ingressaria como um país amadu-recido no cenário internacional. Em poucas palavras, a desigualdade social aparecia escamoteada sob discursos de conciliação, e agora a cisão política do país expõe, de maneira mais direta, essa cisão social primordial. Não é preciso, todavia, muito esforço para lem-brarmos que o Brasil é, na verdade, fruto de uma cisão; e isso em inúmeros sentidos. Pensemos, antes de qualquer outro, no sentido territorial, naquela partilha da América feita pelos colonizadores (traçado de Tordesilhas) e dos inúmeros matizes de divisões sociais que o constituíram: aqui era propriedade formalmente dos portugueses e território dos nativos. Com a enorme extensão de terras que os portugueses abocanharam se impôs o problema,

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1 - O texto a seguir é de uma nota men-tal, algo entre uma crônica política e um mero registro histórico. Foi escrito no dia 12 de maio de 2016, quase um mês depois dos dias da votação, 15 a 17 de abril e agora revisado a ampliado para a publicação na Revista Campo Aberto.

2 - Segundo pesquisa realizada pelo Ibope em 2015, há um Índice de Confi ança Social que registra o des-crédito generalizado em relação às instituições políticas ( https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia--estado/2015/07/31/confi anca-na-poli-tica-desaba-em-2015.htm ), mas, con-venhamos, não é raro ouvir nos mais diferentes espaços a ideia de que “todo político é corrupto”, o que expressa uma sensação generalizada de que, por mais políticas sociais que houvessem, “cada um se vira como pode”.

3 - Essa afi rmação é literal, consta em uma entrevista televisiva concedida ao programa da entrevista à TV Câmara do Rio de Janeiro, que creio não ser de difícil acesso pela internet. Para uma análise minuciosa de trechos dessa entrevista, conferir o texto de Priscila Figueiredo: Ouvir Bolsonaro? Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/ouvir--bolsonaro/

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que aliás permaneceu durante toda a história do país, de como expandir a colonização para além das zonas litorâ-neas, interiorizando então a posse real das terras. E esperneiem o quanto quiserem, mas só o lulis-mo deu alguns passos em direção a outra realidade de superação real da miséria e passos para atenuar as de-sigualdades e todos sabem que vem muito disso a pro-jeção internacional que o país teve com a figura do Lula. É certo, porém, que se que o lulismo não foi o primeiro projeto desenvolvimentista de país (se o mais relevante pela dimensão nacionalista e pela amplitude do projeto foi o governo Vargas, o governo JK talvez seja o momento com marcas as mais simbólicas, como a construção de uma nova capital), talvez não se exagere em apresentá-lo como último herdeiro de uma ambição desse jaez. Mas um governo que colocasse como prioridade a erradica-ção da miséria e conseguisse de fato algum arranjo com as forças sociais que permitisse a execução das políticas sociais, isso me parece algo novo, sobretudo, realizado com processos políticos muito mais participativos em comparação com qualquer outro na história do país. Sem deixar de dar seguimento a vários elementos de políti-cas neoliberais, as políticas sociais do lulismo se torna-ram paradigma internacional de gestão da pobreza, bem como das ditas vulnerabilidades sociais e das bancárias. A descrença e o enorme distanciamento da po-pulação em relação à política também não são novidade se lembrarmos que um traço constante dessa tradição desenvolvimentista é o autoritarismo. Eis aqui um cur-to-circuito assustador que precisa ser sublinhado, pois a história do PT não deveria se acomodar muito bem a essa herança – mas ao que parece, o leito de Procus-to foi construído e a democracia participativa desposa elementos autoritários de outras linhagens da formação nacional. De sorte que a mencionada cisão social no Bra-sil não se funda também na suposta crise econômica da crise política: se há uma crise, ela é mundial. Como de-monstra inequivocamente as primaveras de 2013, e mais recentemente o “Nuit-Debout (4)” parisiense. O que me parece se explicitar-se – ressalvas feitas ao fato de que o afastamento da presidentA (5) (pra quem não aprendeu nos seis anos de governo dela, há, sim, essa flexão de gênero que os jornais fazem questão de não adotar para lhe mostrar resistência; se alguma crítica é possível, é a de pedantismo, pois se trata de um arcaísmo) não deixa de ter certa carga simbólica de rompimento com tudo que o PT representou de bom (ou não) –, é a falência da expectativa de que o fosso inevitável entre as instituições e os indivíduos possa ser realmente gover-

nado neste país. Não há mais uma cren-ça profunda nas possibilidades de repre-sentação política e isso no mundo inteiro, seus limites foram gritados pelas ruas nas diversas manifestações da mais recente primavera política. Mas, num país como o nosso, essa crise não é vivida como tal, isto é, com todas as contradições e dile-mas políticos que comportaria no cená-rio político, com discussões para a deci-são democrática das formas de lidar com a crise; na verdade, as consequências da crise, o óbvio arrocho, são impostas pela violência. Isso retoma um projeto de socie-dade bem tupiniquim, no qual, em última instância, “tudo bem morrer alguns ino-centes”, como declarou em 2009 o depu-tado Messias, que recentemente declarou voto pelo afastamento da presidenta de-dicando-o àquele que a fez sofrer sob tor-tura. É devido a essa imagem de país que não faz questão nenhuma de integrar sua sociedade que a mídia internacional (6) vem insistindo em retomar termos como “república das bananas” para descrever o Brasil. Portanto, é em nome desse “con-junto da obra” que muitos votos pelo im-pedimento foram proferidos.

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4 - https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/05/03/O-que-%-C3%A9-o-Nuit-Debout-movimento--de-rua-que-pretende-revolucionar-a-pol%-C3%ADtica-na-Fran%C3%A7a

5 - https://dicionarioegramatica.com.br/2016/05/02/presidenta--e-mais-antigo-e-tradicional-em--portugues-do-que-a-presidente/

6 - http://www.dw.com/pt-br/imprensa--alem%C3%A3-v%C3%AA-derrota-e-de-clara%C3%A7%C3%A3o-de-fal%C3%A-Ancia-de-um-pa%C3%ADs/a-19251950

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É por todo esse passado que insiste em se fa-zer presente que pretendi registrar sobretu-do o oximoro de experiência de tempo que este país há tempos oferece. A sensação de volta ao passado, de repetição ou, pelo me-nos, certo déjà vu, é generalizada. Chamou--me a atenção, em primeiro lugar, o resgate, nas redes sociais, nas semanas seguintes à decisão na Câmara a obra de Wesley Duke Lee (7), artista brasileiro cuja obra produzida durante a ditadura não deixa de registrar os volteios temporais em tela aqui neste texto. Na época do lema “Brasil – Ame-o ou deixe--o”, o artista se vale do design da propaganda oficial para sobrepor os dizeres “Brasil: hoje é sempre ontem” e, com isso, registrar, inclu-sive formalmente, as sinuosidades e máculas da história brasileira.

Destaco, em seguida, charge atribuída a Millôr, mais uma figuração dessas inversões temporais. Um homem de meia-idade, com um relógio que se destaca no pulso, brinca com a areia que lhe escorre das mãos, remetendo a uma ampulheta. Abaixo os dizeres: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Uma missão? Um obstáculo a ser supe-rado? Certamente não uma reiteração da ideia de que o Brasil se realiza no futuro.

A propósito desses rodopios temporais, não custa lembrar que se trata do país sobre o qual tanto pesa o fardo de ser aquele que, desde seu “descobrimento”, se imagi-nava ser um paraíso na Terra, conforme já explicita o título do interessantíssimo livro do pai do Chico Visão do Paraíso. Expectativa que é reformulada infinitamente... desde o lema imemorial “Brasil, país do futuro”(8) (que chegou a figurar como título de livro de um austríaco que morou no Rio na década de 30, Stefan Zweig), até os slogans de JK, que não conseguem realizar o ufanismo progressista pretendido na compressão tempo-ral “Cinquenta anos em cinco”. (Não posso, porém, deixar de registrar que a experiência de tempo que o “novo tempo do mundo” propicia – conforme análise de Paulo Arantes propõe em âmbito mundial –, isto é, a de uma perenidade indefinida do presente, tem alguma proximidade com o que o Brasil oferece... Estamos na vãguarda?)

7 - A imagem foi reti-rada desse blog: http://artesemlei.blogspot.com.br/2010/10/hoje-e-sem-pre-ontem-wesley-duke--lee.html

8 -Para algumas infor-mações, conferir: http://www.dw.com/pt-br/revi-vendo-o-pa%C3%ADs-do--futuro-de-stefan-zwei-g/a-4210755

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Àqueles que acreditaram na possibilidade de que a geração de jovens, sobretudo negros (para os quais o sonho de ascensão social se limitava ao futebol e à carreira daquilo que nas TV’s se chama de “artistas”) que ingressaram na universidade, pública e particular, por meio das políticas sociais do lulismo, pudesse, com um olhar retrospectivo, rever a história do país, o fim violento do governo lulista pode soar como um golpe no sonho utópico sempre adiado de um país integrado socialmente. Aos que até gostariam de acreditar na possibilidade de que esses jovens vies-sem a resistir e a demandar a consolidação do pouco a que tiveram acesso, mas também não conseguiam fechar os olhos para os desastres sociais das políticas que reabilitaram (ao menos o imaginário) desenvolvi-mentista e, como tal o individualismo empreendedor, nem se furtaram a denunciar as contradições que marcaram inclusive as políticas sociais mais elogiadas do lulismo, para esses, o Brasil do PT talvez não traga saudades, mas certamente vão, junto com os primei-ros, sofrer nas costas as bordoadas das políticas do ministro da Justiça (com ascensão meteórica para o STF), já apelidado muito adequadamente de pit--bull(9), bem como padecer da temerária verve refor-mista agora inevitável. Por aí se pode compreender que o slogan de governo pensado durante o período de conspiração, “ponte para o futuro”, se conduz para algum lugar é para o passado. Tanto assim é que, com alguma coerência sugerida pelo marqueteiro(10) , foi mudado para “Ordem e Progresso”, lema positivista de nossa bandeira que retoma a frase de Comte: “O amor por princípio, a ordem por base, e o progresso por fim” e, como alguns(11) já bem notaram e outros quiseram quixotescamente(12) recuperar: o amor ficou p’ra trás. Com isso tudo, em mais um sentido se configura um aborto – do que exatamente também não sabere-mos.

9- Ver a matéria do Valor Econômi-co: http://www.valor.com.br/politi-ca/4558727/alexandre-de-moraes-o--pit-bull-de-temer

10 - http://m.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2016/05/1770509-slogan-do-governo-temer--sera-ordem-e-progresso.shtml

11 - Aqui aludo a um funcionário do senado que desenha com o aspi-rador de pó a bandeira nacional e, como que numa revolta, resolve não mais decalcar o lema nacional. Ver a notícia: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-esta-do/2015/12/21/no-senado-a-bandei-ra-sem-ordem-e-progresso.htm

12 - Aqui a referência é a nosso eter-no Quixote, o senador Suplicy que já propôs incorporar o “amor” no lema de nossa bandeira.