IusWiki, A Caminho Do Direito Colaborativo.

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  I Universidade de Brasília  André Luís Eloy Soares Iuswiki, A caminho do direito colaborativo. Brasília, Distrito Federal FEVEREIRO/2011

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O presente trabalho de conclusão de cursoestudou o direito sob a luz do espaço público (espaço, como veremos, privilegiado da ação e do discurso dos cidadãos) para argumentar que a força do direito só pode ser compreendida pelo reconhecimento da participação de cada cidadão na tessitura de uma história comum. Embasado pela teoria Política desenvolvida por Hannah Arendt, o primeiro capítulo concentrou-se em adotar como modelo de estudo o sistema de organização política da polis grega, de onde as nossas democracias ocidentais contemporâneas encontraram inspiração. Dando continuidade, o segundo capítulo fará, a partir das teorias do Discurso e da Ação Comunicativa Habermasiana, o resgate deste modelo às especificidades sistêmicas das nossas complexas sociedades contemporâneas. Em linha complementar, o terceiro capítulo discorreu, a partir da história da internet e dos seus pais fundadores, a vocação da Rede, enquanto uma tecnologia cívica, para o agir comunicativo. O quarto capítulo expõe essa vocação a partir da análise de caso sobre “O Bloqueio Paquistanês ao Youtube”. Assim, esperou-se delinear uma possível resposta, embasada em nossas concepções de direito, aos seguintes questionamentos: : 1) quais os pressupostos normativos que são capazes de justificar uma obrigação, ao mesmo tempo moral e prática, de fidelidade geral ao Direito e que quando desrespeitados instauraram um estado de desobediência civil generalizada? 2) na medida em que o espaço público, de onde emana a legitimidade de nossos regimes jurídicos, é mediado pelos meios de comunicação que a sociedade dispõe, qual a influência da internet em nosso agir político e constituir jurídico?

Transcript of IusWiki, A Caminho Do Direito Colaborativo.

  • I Universidade de Braslia

    Andr Lus Eloy Soares

    Iuswiki,

    A caminho do direito colaborativo.

    Braslia, Distrito Federal

    FEVEREIRO/2011

  • I

  • I

    ANDR LUS ELOY SOARES

    IUSWIKI, A CAMINHO DO DIREITO COLABORATIVO

    Trabalho de concluso de curso

    submetido comisso examinadora

    da Faculdade de Direito FD da

    Universidade de Braslia UnB,

    como requisito parcial obteno do

    grau de em Direito.

    Orientador: Prof. Adj. Juliano Zaiden Benvindo

    Braslia

    2011.

  • II

    ANDR LUS ELOY SOARES

    IUS-WIKI, A CAMINHO DO DIREITO COLABORATIVO

    Trabalho de concluso de curso

    submetido comisso examinadora

    da Faculdade de Direito FD da

    Universidade de Braslia UnB,

    como requisito parcial obteno

    do grau de bacharelado em Direito.

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Juliano Zaiden Benvindo (Orientador)

    Universidade de Braslia Faculdade de Educao

    _____________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Henrique Blair de Oliveira (Examinador)

    Universidade de Braslia Faculdade de Direito

    __________________________________________________________

    Prof. Me. Paulo Rena da Silva Santarm (Examinador)

    Universidade de Braslia Faculdade de Direito

    Braslia, 08 de Fevereiro de 2011

  • III AGRADECIMENTO

    Antes de tudo agradeo minha famlia sem a qual eu nem existiria e a

    quem eu devo o apoio necessrio dimenso humana da minha formao. Ao

    meu pai Walter cujo carter, dedicao e disciplina me serviram de modelo de

    vida a ser seguido. minha me Tnia que atravs do amor me deu segurana

    para dar os primeiros passos e permaneceu ao meu lado para me amparar em

    todos os momentos. minha tia Elizabeth que desde a minha adolescncia

    dedicou-se a mim como se fruto do seu prprio ventre eu fosse. minha irm

    Lvia que desceu terra com a misso de desafiar minhas certezas e me fazer

    enxergar alm. minha namorada Gabriela pela presena inspiradora,

    pacincia, companheirismo e compreenso que foram cruciais nos momentos

    crticos do desenvolvimento desta monografia.

    Agradeo imensamente aos meus mestres pelos conhecimentos

    transmitidos e acima de tudo pela sabedoria instigante que contribuiu para

    ampliar as minhas perspectivas para muito alm da grade curricular. Ao

    Professor Paulo Blair que, desde o incio do curso, me incentivou pesquisa

    atravs de discusses desafiadoras. Ao Professor Juliano Zaiden, alm de um

    orientador foi um verdadeiro amigo que me auxiliou na estruturao desta

    monografia bem como s bases de uma futura carreira acadmica.

    Por fim todos os meus queridos amigos: Renan Carvalho, Gabriel

    Dalla Costa, Erika Portela, Igor Vianna, Bruno Tresinari, Rafael Dutra, Rafael

    Quintino, Jordana Bittar, Luiz Carlos, Tlio, Eduardo, Gustavo Vidigal, Isadora

    Morais, Sheyla Deusdar, Marcos Orrico, Lins Henrique, Mateus Moitinho,

    Luiza Castello, Laiza Spagna, Renan Macedo, Adriano Juras, Saulo Vinhal,

    Caroline Chucre, Estella Gontijo, Leonardo Bittar e tantas outras pessoas que

    direta ou indiretamente me acompanharam at este momento to importante

    na minha vida; meu eterno agradecimento.

  • IV RESUMO

    No dia 25 de Janeiro de 2011, a populao egpcia usa a rede mundial

    de computadores para se organizar no intuito de desobedecer a um regime

    totalitrio, em defesa por um Estado de Direito mais democrtico e zeloso dos

    Direitos Fundamentais dos seus representados. Emergncias como a

    deflagrada no Egito fazem emergir dois importantes questionamentos s

    nossas concepes de direito: 1) quais os pressupostos normativos que so

    capazes de justificar uma obrigao, ao mesmo tempo moral e prtica, de

    fidelidade geral ao Direito e que quando desrespeitados instauraram um estado

    de desobedincia civil generalizada? 2) na medida em que o espao pblico,

    de onde emana a legitimidade de nossos regimes jurdicos, mediado pelos

    meios de comunicao que a sociedade dispe, qual a influncia da internet

    em nosso agir poltico e constituir jurdico?

    O presente trabalho de concluso de curso ir estudar o direito sob a

    luz do espao pblico (espao, como veremos, privilegiado da ao e do

    discurso dos cidados) para argumentar que a fora do direito s pode ser

    compreendida pelo reconhecimento da participao de cada cidado na

    tessitura de uma histria comum. Embasado pela teoria Poltica desenvolvida

    por Hannah Arendt, o primeiro captulo concentra-se em adotar como modelo

    de estudo o sistema de organizao poltica da polis grega, de onde as nossas

    democracias ocidentais contemporneas encontraram inspirao. Dando

    continuidade, o segundo captulo far, a partir das teorias do Discurso e da

    Ao Comunicativa Habermasiana, o resgate deste modelo s especificidades

    sistmicas das nossas complexas sociedades contemporneas. Em linha

    complementar, o terceiro captulo ir discorrer, a partir da histria da internet e

    dos seus pais fundadores, a vocao da Rede, enquanto uma tecnologia

    cvica, para o agir comunicativo. O quarto captulo ir expor essa vocao a em

    analisando O Caso do Bloqueio Paquistans ao Youtube. Assim, esperamos,

    delinear uma possvel recepo dos questionamentos propostos em nossas

    concepes de Direito.

  • V INTRODUO 6 1. O MODELO GREGO 15 2. O ESPAO PBLICO CONTEMPORNEO. 26 3. A VOCAO COMUNICATIVA DA INTERNET. 38 4. O BLOQUEIO PAQUISTANS AO YOUTUBE. 43 5. CONCLUSO 49 REFERNCIAS 52

  • 6 INTRODUO

    25 de janeiro de 2011, um dia que vai entrar para a histria do Egito.

    Milhares de cidados egpcios aproveitam o feriado do Dia Nacional da

    Policia12 e saem s ruas e protestar contra o ditador Hosni Mubarak, no

    poder desde 06 de outubro de 1981. Inspirados pela Revoluo de Jasmin

    que no dia 14 do mesmo ms derrubou o presidente da Tunsia, Zine El

    Abidine, dezenas de milhares de cidados egpcios marcharam por liberdade,

    democracia e uma sociedade mais humana e menos miservel. No total

    cerca de 15.000 pessoas ocuparam a praa de Tahrir no Cairo; 20.000

    protestantes se espalharam em vrios locais de Alexandria; 200

    manifestantes na cidade de Aswan; 2000 na cidade oriental de Ismailia; e por

    volta de 3.000 na cidade de El-Mahalla El-Kubra3.

    Convocados pela internet, sob a hashtag4 #jan255, rapidamente o

    movimento ganhou fora e deu inicio a maior onda de protestos que o Egito

    testemunhou desde os Motins pelo Po6 em 1977. Se comparado com os

    motins de 1977 os protestos de 2011 gozaram de uma maior

    representatividade; ao passo que os primeiros envolveram apenas a parcela 1 O feriado uma lembrana aos 50 policiais mortos ao recusarem o pedido do exercito britnico de entregar a estao de policia de Ismailia, em 25 de Janeiro de 1952.Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/National_Police_Day_(Egypt) > ltimo acesso em 02 de Fevereiro de 2011. 2 O uso de verbetes da Wikipedia, a enciclopdia livre citados nesta monografia justificou-se pela consistncia do texto e tambm pela diversidade e qualidade de suas referncias. 3 Estes dados foram coletados no artigo da Wikipdia de lngua inglesa sobre os protestos do povo egpcio em 2011. Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/2011_Egyptian_protests#cite_note-AFP-egyptbraces-10 >; ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011. 4 Hashtags so palavras chaves, identificadas por serem precedidas do smbolo #, servem para agrupar e referenciar as informaes veiculadas no servio de microblog twitter. Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/Hashtags > ltimo acesso em 02 de Fevereiro de 2011. 5 Este dado foi coletados no artigo da Wikipdia de lngua inglesa sobre os protestos do povo egpcio em 2011. Fonte: ; ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011. 6 Revolta espontnea que, entre os dias 18 e 19 de janeiro de 1977, abalou a maioria das grandes cidades egpcias onde centenas de milhares de pessoas, sendo a maioria composta por excludos economicamente, protestaram contra a resciso, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monterrio Internacional, de contratos de subsdio estatal em alimentos bsicos a populao miservel. Fonte: Wikipdia de lngua inglesa, , ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011.

  • 7 excluda economicamente da populao, estes ltimos contaram com a

    participao de pessoas das mais variadas origens, credos e perfis scio-

    econmicos7.

    Os protestos continuaram e os manifestantes fizeram circular cartilhas

    onde expressaram suas principais reclamaes8. Dentre as queixas

    destacam-se questes de natureza poltica, jurdica e econmica: i) falta de

    liberdade de expresso e eleies livres; ii) Estado de leis de emergncia; ii)

    corrupo; iv) elevadas taxas de desemprego e pobreza da populao; v)

    crescente taxa de inflao dos preos dos alimentos; e vi) o parco salrio

    mnimo. Por todas estas razes os cidados egpcios manifestaram pelo fim

    da ditadura de Hussein Mubarak e pelo incio de um governo mais

    representativo dos interesses do povo em respeito aos direitos de liberdade,

    justia e equidade social.

    A populao desgostosa com o governo e empoderada9 pela adeso

    em massa aos protestos utilizou-se das ferramentas de comunicao em

    rede para organizar e mobilizar uma manifestao pr-democracia ainda

    maior para o dia 28 de Janeiro (sexta-feira) sob a denominao de Sexta-

    feira da Fria e da Liberdade10. Na tentativa de cercear mais esta

    manifestao, o governo de Mubarak ordenou s companhias telefnicas que

    suspendessem os servios de internet e telefonia mvel. A Vodafone, uma

    empresa portuguesa que presta servios de telefonia no pas justificou o 7 Estes dados foram coletados no artigo da Wikipdia de lngua inglesa sobre os protestos do povo egpcio em 2011. Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/2011_Egyptian_revolution >; ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011. 8 Os protestantes circularam uma espcie de cartilha intitulada: Como protestar inteligentemente. para prepar-los para protestarem no dia 28 de Janeiro, um dia que ficou conhecido como Sexta-feira da Raiva Fonte: the Atlantic.com, < http://www.theatlantic.com/international/archive/2011/01/egyptian-activists-action-plan-translated/70388/ >, ltimo acesso em: 04 de fevereiro de 2011. 9 A conjugao verbal empoderada, utilizado na presente lavra monogrfica faz referncia ao termo empoderamento (derivado do ingls Empowerment) que, nos ensinamentos do socilogo e professor da Universidade Federal do Piau, Ferdinand Cava;cante Pereira, significa, em sua acepo geral, a ao coletiva desenvolvida pelos indivduos quando participam de espaos privilegiados de decises, de conscincia social dos direitos sociais. 10 Informao disponvel no artigo da Wikipdia de lngua inglesa sobre os protestos do povo egpcio em 2011. Fonte: ; ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011.

  • 8 atendimento s ordens presidenciais nos seguintes termos: Segundo a

    legislao egpcia, as autoridades tm o direito de solicitar a suspenso dos

    servios, e somos obrigados a cumpri-la11.

    Contudo, a Internet, apesar de vulnervel, uma rede extremamente

    resiliente por no depender de um nico centro controlador. Assim, quando o

    governo mandou desligar os provedores que do acesso rede mundial de

    computadores parte da populao egpcia permaneceu conectada via

    telefone, satlite ou mesmo sinais de rdio amador; acessando a internet

    partir de provedores internacionais. Rapidamente provedores da Frana,

    Sucia, Espanha e Estados Unidos disponibilizaram grandes centrais

    telefnicas para receber chamadas internacionais vindas do Egito e manter

    os computadores do pas na rede12. Em algumas empresas este tipo de

    servio foi provido de graa. Assim, o governo local no prosperou em

    sufocar as manifestaes atravs do cerceamento do acesso aos seus

    principais veculos de comunicao, a internet e o celular.

    O Dia da fria e da liberdade contou com o engajamento de centenas

    de milhares de cidados que logo aps terem cumprido suas oraes de

    sexta-feira, marcharam em protesto sobre as ruas do Cairo. O reformista e

    Nobel da Paz Mohamed El Baradei viajou cidade de Giza, maior cidade do

    Egito, para participar das manifestaes, sendo preso logo e submetido

    priso domiciliar.

    No dia primeiro de fevereiro, os ativistas anti-Mubarak apelaram uma

    marcha de um milho pela democracia e liberdade no Egito. O movimento

    intitulado Marcha dos Milhes partiu da praa Tahrir, no centro do Cairo, e

    rumou Praa do Palcio Presidencial em Helipolis, no subrbio da capital.

    Segundo a imprensa estatal egpcia o contingente de manifestantes manteve-

    se restrito casa dos milhares; entretanto, a companhia de televiso Al

    Jazeera afirmou que o nmero de participantes chegou a um milho no

    perodo da tarde, crescendo, a medida em que os revoltosos caminhavam 11 BBC, < http://www.bbc.co.uk/news/technology-12306041 >, ltimo acesso em 04 de Fevereiro de 2011. 12 Bom dia Brasil, < http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/02/internet-vira-forte-aliada-de-jovens-em-busca-de-revolucao-no-mundo-arabe.html >, ltimo acesso em, 04 de Fevereiro de 2011.

  • 9 para o seu destino final, totalizando, ao crepsculo, cerca de dois milhes de

    revoltosos13. Protestos semelhantes repercutiram em todo o pas marcando a

    maior mobilizao dentre s registradas desde o dia 25 de Janeiro.

    No final do dia primeiro de fevereiro, mais precisamente s 0h15, hora

    local ( 20h15 GMT de Braslia), Mubarak foi televiso e se pronunciou pela

    primeira vez sobre a sucesso de protestos contra o seu governo. Em seu

    discurso Mubarak afirmou que no iria concorrer s eleies, que iria

    antecipar o pleito presidencial, mas permaneceria no poder at que um novo

    representante fosse eleito pelo voto popular; por fim afirmou que ordenou a

    renncia dos seus ministros em nome da composio de um governo de

    transio.

    Apesar das reclamaes pela sua renncia o governante egpcio no

    expressou nenhuma inteno neste sentido. Diversamente e esforando-se

    por ignorar a prtica autocrtica patente em trinta anos de um governo

    ditatorial, respondeu aos seu povo da seguinte maneira: "Estou consciente

    das aspiraes em favor de mais democracia, do combate ao desemprego,

    da luta contra a pobreza e do combate corrupo () Mas os objetivos

    buscados no podem ser conseguidos pela violncia, mas pelo dilogo

    nacional e esforos que unam as partes"14.

    Enquanto Mubarak no renuncia seus antagonistas persistem com a

    onda de protestos e manifestaes. Mensagens conclamando a populao

    aderirem Marcha de Milhes tm circulado no facebook e alcanam

    grande numero de respostas15. De acordo com o Chefe de Direitos Humanos

    da Organizao das Naes Unidas, baseado em relatrios ainda no

    confirmados, o nmero de feridos j ultrapassou a casa dos 300. A nao

    egpcia segue beira de um colapso total: os bancos fecharam as portas, de

    maneira que a populao tm enfrentado graves dificuldades na obteno de

    recursos financeiros para a satisfao das necessidades mais elementares 13 Ynetnews, < http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-4022504,00.html >, ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011. 14 Folha de So Paulo: < http://www1.folha.uol.com.br/mundo/869195-mubarak-propoe-antecipar-eleicoes-no-egito-e-diz-que-nao-vai-concorrer.shtml >, ltimo acesso em 4 de fevereiro de 2011. 15 Tha Hindu: < http://www.hindu.com/2011/02/02/stories/2011020263100100.htm >, ltimo acesso em 04 de fevereiro de 2011.

  • 10 como alimentao; e, como se no bastasse, o preo dos alimentos disparou

    pois o pas depende em grande medida da importao de gneros

    alimentcios; a policia que deveria proteger os cidados serve como

    instrumento de defesa do governo contra aqueles que ele deveria

    representar. Estes sentem-se ameaados em seus direitos mais

    fundamentais como sade, alimentao e liberdade. Em conseqncia, a

    crise de legitimidade do governo Mubarak coloca em risco a j controversa,

    ordem jurdica do pas.

    Na ceara dos aspectos da controversa ordem jurdica egpcia, vale

    frisar que uma das principais e antigas reclamaes do povo egpcio de

    natureza jurdica: o fim Lei N 162 de 195816, mais conhecida como Lei de

    Emergncia.

    Questionvel sob a gide da Declarao Universal dos Direitos

    Humanos assim como dos Tratados Internacionais que versam sobre o tema,

    o supracitado dispositivo normativo prev que, sempre que sentir perigo

    facultado ao presidente declarar Estado de Emergncia em todo o Egito ou

    apenas sobre uma regio, em defesa da segurana ou da ordem pblica.

    Uma vez declarado o Estado de Emergncia, o presidente est autorizado a

    estender os poderes da polcia, alm de suspender direitos constitucionais

    como o devido processo legal, a liberdade de reunio e expresso pela

    legalizao da censura.

    Apesar dos argumentos movidos por grupos pr-democracia e contra

    a Lei de Emergncia, o referido dispositivo legal tem sido mantido em vigor

    desde 1967, com a exceo de 18 meses em 1980 e 1981.

    Revoltas como as deflagradas pelo povo do Egito contra o governo

    ditatorial de Mubarat trazem tona uma srie de questes que deveriam ser

    respondidas pelas nossas concepes de direito.

    No paradigma do Estado Democrtico de Direito o fenmeno jurdico

    fundamenta e confere o parmetro de validade autoridade coletiva do 16 EGITO. Lei N. 162 de 1958. Dipe sobre o Estado de Emergncia. Disponvel em < http://www.emerglobal.com/lex/law-1958-162 >. ltimo acesso em 11 de fevereiro de 2011.

  • 11 Estado e suas instituies pblicas. Em outras palavras, o direito a resposta

    mais comum perguntas do tipo: o que pode conferir a uma pessoa o tipo de

    poder autorizado que a poltica supe que os governantes possuam sobre os

    seus governados? O que capaz de justificar o uso da fora e da violncia

    pelas instituies oficiais contra aqueles que desobedecem suas decises?

    Assim, possvel perceber que o direito oferece a justificativa geral para a

    autoridade estatal. Em outras palavras, nossas prticas sociais revelam um

    relativo consenso, no plano ideolgico, de que o direito a justificativa geral

    que confere autoridade coletiva ao Estado. Todavia, este relativo consenso,

    revela-se frgil em circunstncias excepcionais como s vividas pelos

    cidados egpcios sobre o mando de um regime ditatorial que j dura 30

    anos, quando esto em jogo fortes consideraes antagnicas sobre a

    justia. (DWORKIN, 2003, P. 137).

    Situaes de desobedincia civil como s desencadeadas no Egito a

    partir do dia 25 de Janeiro expem que o direito, enquanto justificativa geral

    autoridade estatal no produz efeitos a menos que as pessoas estejam de

    acordo que o direito existe, quais so as suas prticas e reconheam uma

    razo ao mesmo tempo moral e prtica para voluntariamente se

    subordinarem a ele, tal qual sditos diante de seu soberano. Deste modo,

    qualquer teoria plena do direito deve poder responder positivamente, de

    forma muito mais concreta e atraente, a perguntas do tipo: o fato de uma Lei

    ter sido aprovada por uma instituio legislativa oferece alguma razo para

    obedec-la? Por qu devemos nos sujeitar s normas editadas por um

    regime poltico eleito por uma maioria mesmo quando nos opusemos a ele

    nas urnas? Essa obrigao vlida mesmo para os cidados que

    desaprovam a legislao ou a consideram errada em princpios? Dado o tipo

    de coisa que todos aceitamos como fundamentos do direito, sobre quais

    circunstncias os cidados esto moralmente livres para desobedecer aquilo

    que se considera como direito com base nestes fundamentos?

    Nossas concepes jurdicas devem ser capazes de explicar

    persuasivamente de que modo aquilo que ela chama de direito oferece uma

    justificativa para o dever poltico de obedincia de cada cidado autoridade

    coletiva de sua comunidade; uma justificativa que s no se sustenta em

  • 12 casos especiais, quando algum argumento antagnico for particularmente

    forte. Em termos semelhantes Ronald Dworkin nos ensina que nossas

    concepes de direito devem poder explicar porque as decises passadas de

    nossas instituies polticas e jurdicas caracterizam obrigaes genunas

    aos cidados. Segundo Dworkin, o centro organizador de cada concepo de

    direito a explicao que apresenta desta obrigao geral. (DWORKIN,

    2003, PP. 231 e 232). Nestes termos percebemos nesta condio geral um

    pressuposto normativo para que os cidados voluntariamente se subordinam

    soberania do direito e reconheam sua fora o relativo poder que tem

    toda e qualquer proposio jurdica de justificar a coero em vrios tipos de

    circunstncias excepcionais (DWORKIN, 2003, p. 136). Eis que surge o

    enigma da legitimidade.

    Para Dworkin um Estado legitimo se sua estrutura e suas prticas

    constitucionais forem tais que seus cidados tenham uma obrigao geral de

    obedecer s decises polticas que pretendem impor-lhes deveres

    (DWORKIN, 2003, pg. 232).

    Todavia, a tradio acadmica aplica uma certa diviso do trabalho

    ao refletir sobre o direito. Os filsofos polticos examinaram os problemas

    relativos fora do direito, e os acadmicos e doutrinadores jurdicos se

    debruam sobre os problemas concernentes aos seus fundamentos - s

    circunstncias nas quais proposies jurdicas podem ser aceitas como bem

    fundadas ou verdadeiras. Em conseqncia, as filosofias do direito so em

    geral teorias desequilibradas do direito: tratam basicamente dos fundamentos

    e praticamente silenciam sobre a fora do direito (DWORKIN, 2003, p. 137.).

    No obstante, Dworkin argumenta que quando comparamos duas teorias do

    direito devemos levar em considerao as duas partes de cada uma delas

    para decidir sobre suas conseqncias prticas.

    O contnuo desenvolvimento das nossas instituies jurdicas depende

    da percepo crtica da realidade, de modo a enriquecer os fatos pela

    imaginao contrafactual. Compreender de onde emana a fora do direito

    vital para a construo de um sistema jurdico mais efetivo, capaz de

    perceber os cidados, no como sditos, mas como co-autores de uma

    histria comum, fonte da sua fora e legitimidade. Assim, nosso sistema

  • 13 jurdico pode tornar-se atraente obrigao poltica de fidelidade geral ao

    direito como uma questo de fraternidade, expresso do reconhecimento da

    dignidade de todos aqueles que, unidos pelo interesse em um mundo comum

    que os distinguem enquanto membros de uma mesma comunidade,

    compartilham entre si da liberdade e da igualdade.

    A hiptese que motivou o desenvolvimento desta pesquisa a de que

    a fora do direito melhor compreendida luz do espao pblico institudo

    numa realidade intersubjetiva criada pelo discurso e pela ao poltica dos

    cidados. Em outras palavras, que a fora do direito depende da participao

    de cada cidado que, unidos em uma comunidade, so capazes de agir, na

    singularidade e na pluralidade, pelo interesse em um mundo comum,

    votando-se para a reflexo acerca dos assuntos considerados relevantes

    pela sua comunidade.

    Esta hiptese ser melhor estudada nos dois primeiros captulos desta

    monografia. No primeiro captulo adota-se como referncia para o estudo o

    sistema de organizao poltica da polis grega. No segundo captulo discorre-

    se sobre o modo como Jrgen Habermas foi capaz adequar os elementos

    normativos do modelo de organizao grega aos desafios sistmicos das

    nossas complexas sociedades contemporneas.

    O Espao Pblico, esta realidade intersubjetiva, na medida em que

    constituda pela comunicao coletiva, depende, como ficou destacado na

    descrio dos eventos que caracterizaram a onda de protestos no Egito, dos

    meios de comunicao que a sociedade dispe. Aparentemente a internet e

    as ferramentas de comunicao em rede dela derivadas, demonstraram na

    emergncia egpcia um enorme potencial enquanto plataforma de

    comunicao para o agir poltico. A populao egpcia foi capaz de utilizar,

    blogs, ferramentas de rede social e ambientes de edio coletiva de

    documentos para a constituio de esferas pblicas autnomas orientadas

    defesa e realizao de interesses relevantes para todo o povo do Egito, como

    Liberdade, Democracia e melhores condies de vida.

    Eventos como os deflagrados no Egito, expem o suporte que grupos

    sociais encontram na internet para organizarem-se e agirem segundo uma

  • 14 racionalidade voltada para a cooperao do entendimento mutuo, tal qual a

    racionalidade comunicativa identificada por Habermas em sua Teoria do

    Discurso. A constante re-incidncia de eventos deste tipo indicam e reforam

    esta capacidade da Rede para o agir comunicativo.

    Nesta linha, o terceiro captulo ir expor, em elementos da cultura que

    permeou o desenvolvimento e as especificaes tecnolgicas da internet,

    que no se trata de uma caracterstica casual, mas que a prpria rede possui

    uma patente vocao para o agir e racionalidade comunicativos.

    No quarto captulo esta hiptese ser demonstrada pela anlise

    detalhada de uma emergncia semelhante a do Egito, onde a populao

    paquistanesa utilizou a Rede para se mobilizar e agir em defesa dos ideais

    de democracia e liberdade contra um governo totalitrio. Por esta via, espera-

    se fundamentar a defesa por um maior reconhecimento e assimilao do

    Estado das possibilidades comunicativas proporcionadas pelas novas

    tecnologias como meio para espelhar em suas prticas os pressupostos

    normativos expressos no modelo de democracia deliberativa desenvolvido

    por Habermas em sua celebre obra: Direito e Democracia: entre facticidade

    e validade.

  • 15 1. O modelo grego Em O que Poltica? Hannah Arendt, uma das mais interessantes e

    relevantes filosofas polticas do sculo XX, justifica que falar de poltica, sem

    lanar olhares s experincias polticas originrias da Antiguidade grega

    uma tarefa rdua e enganosa; e isso pela simples razo de que nunca, seja

    antes ou depois, os homens tiveram em to alta considerao a atividade

    poltica, nem atriburam tamanha dignidade ao seu mbito ( ARENDT, 1998,

    pg. 201). A Grcia Antiga , seno o bero da Civilizao Ocidental,

    certamente o bero da Democracia Ocidental. A Polis, a forma de

    organizao poltica das Cidades-Estados gregas constituiu a base

    experimental e conceitual de toda a nossa tradio poltica. Deste modo, no

    sem razo, a renomada autora alicerou o seu pensamento poltico em

    inovadoras re-leituras das obras de filosofia poltica da Antiguidade,

    sobretudo aquelas do Perodo Socrtico.

    Arendt enxergou na polis uma referncia para iluminar as instituies

    polticas e jurdicas de nossa sociedade pela luz de um mundo comum

    circunscrito pelo discurso intersubjetivo Em A Condio Humana, a autora

    expe que o pensamento clssico grego preconizava que todas as

    atividades humanas so condicionadas pelo fato de que os homens vivem na

    companhia com outros homens (ARENDT, 2004, pg. 31). Pelo nascimento

    somos inseridos em um mundo comum que direta ou indiretamente

    testemunha a presena de outros seres humanos e sem o qual nenhuma vida

    humana possvel (ARENDT, 2004, pg. 31).

    Observamos que desde o nascimento a vida humana inteiramente

    trespassada por prticas associativas que definem obrigaes em virtude do

    pertencimento a algum grupo biolgico ou social, como as responsabilidades

    da famlia, amigos ou vizinhos. Contudo, em seu pensamento poltico Arendt,

    chama a ateno para a profunda e sensvel distino que os gregos

    identificaram entre as formas de associao compelidas pelas necessidades

    inerentes vida biolgica e aquelas pautadas pela liberdade factualmente

    experienciada pela convivncia entre iguais, sendo que, apenas desta ltima,

    poderia emanar a verdadeira poltica.

  • 16 Arendt nos ensina que a Polis grega foi estruturada pelo abandono do

    regime da gens pela destruio de todas as unidades organizadas base de

    parentesco como a phylie (ARENDT, 2004, P. 33). Este fato simbolizou que

    o homem grego recebera - alm da sua vida privada, fundada pela

    necessidade caracterstica da comunho natural do lar (oikos) - o seu bios

    politikos quando os cidados, que compartilham da liberdade e da igualdade,

    aparecem e se revelam na convivncia em um espao comum.

    O lar dizia respeito quilo que era prprio (idion), subordinado, ao

    domnio do pater-familias. No lar, as pessoas se subordinavam mais severa

    desigualdade pela organizao do trabalho e da produo e demais

    atividades inerentes manuteno da vida biolgica. O pater-familias era

    responsvel por prover os alimentos e a segurana face ameaas internas

    (por exemplo: revoltas de escravos) e externas (outros senhores que

    desejassem destruir sua casa e famlia), a mulher era sua propriedade e lhe

    competia a procriao e o cuidado com os filhos; aos escravos cabia auxiliar

    com as atividades domsticas. Para assegurar a ordem domstica, o pater-

    familias exercia, pela violncia coercitiva, um poder totalitrio sobre a vida e a

    morte de seus subordinados (sua mulher, filhos e escravos). Seu domnio

    no era limitado por nenhuma lei ou justia.

    Ao reino do lar os gregos identificaram a esfera de vida privada

    indicando, em sua acepo original, o sentido de privao, estar privado ou

    destitudo de trs coisas essenciais vida verdadeiramente humana: 1) ser

    privado da realidade que advm do fato ser visto e ouvido por outros; 2)

    privado de uma relao objetiva com eles decorrentes do fato de ligar-se e

    separar-se deles mediante um mundo comum de coisas; e 3) privado da

    possibilidade de realizar algo mais permanente que a prpria vida.

    Em resumo, para os gregos a esfera privada residia na ausncia de

    outros; para estes o homem privado no se d a conhecer, e portanto como

    se no existisse (ARENDT, 2004, P. 68). Em conseqncia, os feitos da

    esfera privada permaneciam sem importncia ou significado para os outros. A

    esfera privada, no entanto, significa que o indivduo possui o seu lugar em

    determinada parte do mundo e portanto capaz de pertencer a um corpo

    poltico que vai constituir a sua complementar, esfera pblica.

  • 17 Com a vitria sobre a necessidade da vida em famlia os homens

    poderiam ascender ao espao da vida pblica, espao de possibilidade do

    fenmeno poltico. Por pblico Hannah Arendt designou dois fenmenos

    correlatos mas no perfeitamente idnticos: 1) aquilo que podia ser visto e

    ouvido por todos e tem a maior divulgao possvel; e 2) aquilo que

    comum, sendo extensvel, nesta medida, ao prprio mundo humano que,

    sendo produto de mos humanas se distingue do lugar que ocupamos nele, o

    mundo natural (ARENDT, 2004, pg. 62).

    Esta dupla dimenso caracteriza o espao pblico como o espao

    comum que viabiliza a experincia da realidade intersubjetiva do mundo pelo

    exerccio interativo da ao (praxis) e do discurso (lexis).

    Ao e discurso so os meios pelos quais os seres humanos se

    manifestam uns aos outros, no enquanto meros objetos fsicos, mas

    enquanto homens e distinguem ativamente suas identidades pessoais e

    singulares", para revelar o "quem", em contraposio ao "o que" algum .

    (ARENDT, 2004, PP. 189 e 192). A identidade humana aparece ento como

    uma realizao no espao pblico e no como dada.

    Deste modo, enquanto seres singulares, a esfera pblica nos rene na

    companhia uns dos outros e resulta na paradoxal pluralidade de seres

    singulares. Arendt ressalta que:

    No homem, a alteridade que ele tem em

    comum com tudo o que existe, e a distino

    que ele partilha com tudo o que vive, torna-se

    singularidade e a pluralidade humana a

    paradoxal pluralidade de seres singulares. (

    ARENDT, 2004, P. 67).

    Por esta paradoxal pluralidade e ressaltando que nossa percepo da

    realidade depende totalmente da aparncia, Arendt expe que o espao

    pblico condio existencial da realidade essencialmente humana. Para

    Arendt a presena de outros que vem o que vemos e ouvem o que ouvimos

    garante-nos a realidade do mundo e de ns mesmos (ARENDT, 2004, PP.

    60).

  • 18 Na medida em que a poltica prescinde da capacidade dos cidados,

    na singularidade e na pluralidade, agirem e se comunicarem coletivamente,

    esta encontra no espao pblico o seu lugar gerador. A poltica segundo a

    filsofa seria o fazer de um espao prprio ao discurso e ao, onde

    nenhuma violncia era tolerada, quando os cidados voltam-se para a

    reflexo em torno dos assuntos comuns e, deste modo, assumem a

    responsabilidade pelo que ocorre neste mundo. A experincia da polis grega

    expe uma forma de organizao poltica na qual, por livre iniciativa, os

    homens podiam libertar-se da esfera privada da famlia (caracterizada como

    espao do ocultamento, das necessidades e das hierarquias) para discutir, no

    espao pblico (caracterizado como espao do aparecimento, da liberdade e

    da relao entre iguais) os princpios e regras comuns que governaro a sua

    comunidade.

    Para tanto, Arendt afirma que a ao poltica deve ser livre,

    transcender mediao meio-fim ou a qualquer finalismo teleolgico e

    espelhar princpios polticos de maneira a existir na realidade intersubjetiva

    do espao pblico. Independentemente do quo bem intencionada e altrusta

    seja a ao; seus objetivos e motivos no poderiam suportar a luz

    implacvel e crua da constante presena de outros no mundo pblico (

    ARENDT, 2004, P. 61). Para alcanar uma realidade genuinamente pblica a

    ao poltica precisa emergir hermeneuticamente dos princpios circunscritos

    no discurso intersubjetivo do espao pblico. Arendt expressa a distino

    entre os princpios polticos com os motivos e finalidades que condicionaram

    a ao nos seguintes dizeres:

    Distintamente de sua meta, o princpio de

    uma ao pode sempre ser repetido mais uma

    vez, sendo inexaurvel, e, diferentemente de

    seu motivo, a validade de um princpio

    universal, no se ligando a nenhuma pessoa

    ou grupo em especial. (ARENDT, 1979, P.

    199).

    Entretanto, a despeito da inexauribilidade e universalidade dos

    princpios, a [sua] manifestao somente se d atravs da ao, e eles se

  • 19 manifestam no mundo enquanto dura a ao, existem, deste modo, apenas

    no domnio das prticas deliberativas da comunidade (ARENDT, 1979, P.

    199). Tal concepo de princpio encontra considervel semelhana com

    desenvolvida por Ronald Dworkin em Levando os direitos a srio. O autor

    norte americano denomina por princpio: um padro que deve ser observado

    no porque v promover ou assegurar uma situao econmica ou social

    considerada desejvel mas porque uma dimenso de justia ou equidade

    do ponto de vista da normalidade. (DWORKIN , 2007, PP. 36 e 141).

    Do mesmo modo, em nossas decises judiciais emblemticas,

    sobretudo quelas decididas em nossas cortes constitucionais, visvel a

    distino entre os motivos e finalidades particulares daquele que moveu a

    ao e os princpios de onde emergiu a sua validade jurdica. Observa-se que

    estes ltimos repercutem numa realidade pblica enquanto os primeiros

    permanecem restrito s partes que estiveram diretamente envolvidas no

    caso. Em A Identidade do Sujeito Constitucional, Rosenfeld, exemplifica

    com o caso Roe v. Wade e argumenta que, todas as decises

    constitucionalmente significativas produzem algum impacto na identidade

    constitucional (ROSENFELD, 2003, PP. 45 e 46).

    No caso Roe a controversa deciso da Suprema Corte norte-

    americana decidiu que o direito privacidade, ao abrigo da Dcima Quarta

    Emenda Constituio dos Estados Unidos, recepcionou a escolha de uma

    mulher em abortar, desde que equilibrada com dois outros bens

    legitimamente tutelados pelo Estado: 1) o direito da vida pr-natal e 2) o

    direito sade da mulher. Ao afirmar que estes interesses se tornam cada

    vez mais fortes ao longo da evoluo da gravidez concluiu que deveriam ser

    analisados luz do corrente trimestre da gestao. Para Rosenfeld este ato

    de construo judicial exerceu um inquestionvel e significativo impacto

    sobre a identidade constitucional dos Estados Unidos a tal ponto que,

    dificilmente seria um exagero dizer que essa deciso provocou uma crise na

    identidade constitucional dos americanos (ROSENFELD, 2003, P. 45). Tais

    repercusses emergiram no do interesse da senhora Norma L. MacCovey

    em abortar a sua terceira gravidez ou do fato do tribunal ter-lhe concedido

  • 20 este direito; mas sim, na tenso entre vrios princpios polticos expressos no

    debate em torno do aborto e na deciso da Suprema Corte Americana.

    Cumpre ainda ressaltar que do modo como fora descrito por Hannah

    Arendt, o modelo de organizao poltica grego expressa algumas

    semelhanas com o modelo poltico de uma Comunidade de Princpios,

    desenvolvido por Dworkin, em o Imprio do Direito. Assim como na polis

    grega, numa Comunidade de Princpio a poltica assume a forma de uma

    arena de debates sobre quais princpios a comunidade deve adotar como

    sistema, sua concepo de justia, equidade e devido processo legal. A

    prtica poltica deve, deste modo, evitar ser vista como um balco de

    negociao onde cada participante tenta fazer valer as suas convices e

    ceder o mnimo possvel para o estabelecimento de regras que representam

    um acordo de interesses ou pontos de vistas antagnicos. Dworkin ressalta

    que se o direito fosse o produto de uma negociao onde cada parte tentou

    ceder o mnimo possvel pelo mximo de retorno seria injusto e no apenas

    equivocado, uma interpretao deste acordo que abranja algo que no fora

    explicitamente acordado.

    Dando prosseguimento s semelhanas, numa Comunidade de

    Princpios, o direito e as obrigaes polticas no se esgotam em um conjunto

    de regras apreensvel em decises particulares tomadas pelas instituies

    polticas; so antes o reflexo de um sistema de princpios que essas decises

    pressupem e endossam.

    Cada membro aceita que os outros tm

    direitos, e que ele tem deveres que decorrem

    desse sistema, ainda que estes nunca tenham

    sido formalmente identificados ou declarados.

    (DWORKIN, 2003, p. 255).

    O direito, compreendido desta maneira, expande e aprofunda o papel

    de cada cidado no desenvolvimento das normas pblicas de sua

    comunidade, pois exige o tratamento de suas relaes sociais como regidas

    de modo caracterstico e no espasmdico por essas normas. Reclama o

    reconhecimento do papel de cada cidado como colaborador de um romance

  • 21 em cadeia de onde emana o fenmeno jurdico. Com relao a ltima

    observao, Dworkin destaca que:

    Observamos que muitas de nossas atitudes

    polticas, reunidas em nosso instituto de

    responsabilidade coletiva, pressupem que em

    certo sentido somos os autores das decises

    polticas tomadas por nossos governantes, ou,

    pelo menos, que temos boas razes para

    pensar assim. (DWORKIN, 2003, p. 229).

    Em linhas anlogas, percebe-se que um dos elementos fundamentais

    para a compreenso da cidadania, segundo o referencial arendtiano, a

    noo da capacidade do cidado, enquanto membro pleno da esfera poltica

    em uma sociedade, de assumir sua responsabilidade pelos acontecimentos

    de seu mundo e se posicionar nele. Desta forma, v-se que, para Arendt, na

    poltica fundamental que se desenvolva uma atitude de cuidado para com

    tudo aquilo que relevante para este mundo comum e contribuir para que o

    conjunto de instituies polticas e leis que nos foram legados no seja

    continuamente transformados, ao sabor das circunstancias e dos interesses

    privados de alguns (DUARTE, 2008, P. 86).

    Numa abordagem complementar, o modelo de Dworkin pressupe que

    nossas prticas polticas devem perseguir a interpretao da comunidade

    como um agente moral autnomo capaz de adotar, expressar e ser fiel ou

    infiel a princpios prprios diferentes daqueles de quaisquer de seus

    dirigentes ou cidados enquanto indivduos. Dworkin deu essa exigncia

    especfica de moralidade poltica o grandioso nome de integridade para

    ilustrar sua ligao com um ideal paralelo de moral pessoal. Ao fazer isso ele

    endossou um raciocnio complexo sobre as responsabilidades das

    autoridades e dos cidados que, desvelvel apenas pela atitude interpretativa

    sem recorrer a supostos atributos metafsicos, encontra a sua expresso

    natural na personificao da comunidade que no pode ser reproduzida por

    uma traduo dedutvel na forma de exigncias individuais s autoridades e

    cidados.

  • 22 A integridade poltica supe uma

    personificao particularmente profunda da

    comunidade ou do Estado. Pressupe que a

    comunidade como um todo pode se engajar

    nos princpios de equidade, justia, ou devido

    processo legal adjetivo de algum modo

    semelhante queles que certas pessoas

    podem engajar-se em convices ideais ou

    projetos (DWORKIN, 2003, p. 204).

    A integridade reconhece o direito como produto da colaborao de

    cada cidado na tessitura de uma histria comum de eventos e atos que

    atraem obrigaes, mesmo que, na maioria das vezes, no percebam de

    forma consciente, que esto assumindo um status especial medida em que

    a histria se desenvolve. Graas atitude interpretativa, esta histria pode

    ser revelada, sempre em retratos parciais e definir grupos, suas respectivas

    obrigaes e responsabilidades. Para tanto, a integridade exige a adoo de

    um padro coerente e uniforme que requer a consistncia entre as prticas

    polticas e jurdicas ao longo da evoluo histrica da comunidade.

    Neste ponto, cumpre-me trazer para discusso uma ressalva feita

    pelo profcuo constitucionalista norte-americano Michel Rosenfeld, para

    quem, em ltima instncia, o princpio poltico da integridade tal qual

    apresentado por Dworkin inadequado na medida em que seu contedo de

    integridade por demais amorfo para fornecer uma estrutura suficiente

    imaginao contrafactual. (ROSENFELD, 2003, P. 31). Em sua critica

    Rosenfeld leciona que a integridade deve ser apreendida no domnio

    intersubjetivo circunscrito pelo discurso que vincula todos os atores humanos

    que esto e sero reunidos pelo mesmo conjunto de normas jurdicas. Deste

    modo, a expresso plena da integridade poltica s concebvel mediante

    um exerccio imaginrio que envolve uma extrema compreenso de todas as

    pocas e uma simultnea apreenso de todas as variveis interpretativas

    possveis, combinadas com a habilidade de destilar e condensar tudo isso em

    uma narrativa coerente e confivel (ROSENFELD, 2003, P. 41).

  • 23 Em obste, nossa prpria perspectiva fragmentada e limitada; na

    melhor das hipteses tem um acesso parcial e incompleto realidade

    emprica de nossas decises polticas do passado e a mais plida e fugidia

    intuio da realidade das geraes futuras. Deste modo, parece

    absolutamente impossvel desenvolver um quadro coerente da integridade

    com base no que nos empiricamente e historicamente acessvel. Em razo

    desta pobreza inerente ao real necessrio recorrer ao ideal.

    Destarte isso, uma concepo adequada da integridade deve ser

    capaz de lidar com esta antinomia entre real e ideal e, pela imaginao

    contrafactual, erguer pontes entre os fatos e os contrafactos (ROSENFELD,

    2003, P. 43). Noutras palavras, prosseguindo com a analogia da ponte, o

    princpio da integridade poltica como fora expresso por Dworkin apenas foi

    capaz de apontar um lugar ideal a ser perseguido, mas silenciou-se quanto a

    construo de um meio que viabilizasse o acesso a este ideal a ser

    perseguido. Em sntese, a considerao expressa por Rosenfeld desafia o

    princpio da integridade poltica a estabelecer relaes muito mais concretas

    com as prticas democrticas de nossos sistemas polticos.

    Contudo, a caracterstica de transcendncia inerente realidade

    intersubjetiva do espao pblico grego seria capaz de conferir forma e

    existncia ao princpio de integridade poltica. Ao falar especificamente sobre

    a realidade deste espao comum, Arendt leciona que por esta expresso

    devemos entender aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trs

    quando morremos. Transcende a durao de nossa vida tanto no passado

    como no futuro: preexistia nossa chegada e sobreviver nossa breve

    permanncia. isso que temos em comum no s com aqueles que vivem

    conosco, mas com aqueles que viro depois ns. (ARENDT, 2004, P. 65).

    o carter publico da esfera publica que capaz de absorver e dar brilho

    atravs dos sculos a tudo a que os homens venham a preservar da runa

    natural do tempo. Se o mundo deve conter um espao pblico, no pode ser

    construdo apenas para uma gerao e planejado somente para os que esto

    vivos: deve transcender a durao da vida de homens mortais. (ARENDT,

    2004, P. 64).

  • 24 Na medida que os princpios jurdicos da polis encontravam sua

    existncia na realidade intersubjetiva do espao pblico, assimilavam a

    capacidade do pblico de transcender a mortalidade da vida humana e

    vincular todos os atores humanos que esto e sero reunidos em seus

    domnios. Deste modo s a existncia de uma esfera pblica e a

    subseqente compreenso intersubjetiva da realidade do mundo em uma

    comunidade de coisas que rene os homens e estabelece uma relao entre

    eles poderia garantir-nos a realidade da integridade de nossas prprias

    comunidades polticas contemporneas.

    Pelo espao pblico o direito da polis poderia ser criado como produto

    da colaborao de cada cidado na redao de uma histria comum de

    eventos e atos que atraem obrigaes. Graas atitude interpretativa esta

    histria pode ser revelada, sempre em retratos parciais e definir grupos, suas

    respectivas obrigaes e responsabilidades. Deste modo, assim como numa

    Comunidade de Princpios, a Polis grega podia assimilar a obrigao poltica

    de fidelidade geral polis e seu direito categoria mais geral das obrigaes

    associativas e, deste modo, sustentar a legitimidade de suas instituies, e

    as obrigaes polticas que elas pressupem, como uma questo de

    fraternidade (DWORKIN, 2003, p. 258).

    Mas e quanto nossa prpria sociedade poltica? Seria possvel

    identificar em nossas complexas e pluralistas comunidades polticas

    contemporneas um espao para o discurso intersubjetivo que satisfaa as

    condies h pouco identificadas no espao pblico grego? A integridade

    poltica encontra, em nossa prpria comunidade poltica, um espao

    discursivo capaz de lhe promover forma e realidade? Este espao pblico

    seria capaz de conferir legitimidade e fora para as disposies jurdicas da

    nossa comunidade poltica?

    Hannah Arendt mostra-se bastante ctica quanto a esta

    possibilidade. Segundo a autora, nas sociedades liberais caracterizadas

    como sociedades de massa, a lgica privada ganha dimenso pblica e a

    poltica passa a se constituir numa mera esfera administrativa atribuda ao

    Estado. Arendt mostra que uma das manifestaes mais claras da crise do

    mundo moderno o esvaziamento poltico do espao pblico que passa a

  • 25 orientar-se em torno da idia liberal de espao agregador de indivduos

    interessados que passam a experimentar uma forma radical de existncia

    privada. (ARENDT, 1998, P. 123). Ao negar esfera pblica sua natureza

    poltica; a poca moderna trouxe no seu lugar uma sociedade despolitizada

    marcada pela atomizao, competio e instrumentalizao de tudo, uma

    sociedade de homens que, sem um mundo comum que a um s tempo os

    relacione e separe, ou vivem em uma separao desesperadamente solitria

    ou so comprimidos em massa (BARRACHO, 2002, P. 90). Estabelece-se,

    deste modo, o desinteresse pela poltica, ou seja, a alienao do homem em

    relao ao mundo.

    A passagem da sociedade - a ascenso da

    administrao caseira, de suas atividades,

    seus problemas e recursos organizacionais -

    do sombrio interior do lar para a luz da esfera

    publica no apenas diluiu a antiga diviso

    entre o privado e o poltico, mas tambm

    alterou o significado dos dois termos e a sua

    importncia para a vida do individuo e do

    cidado, ao ponto de torn-los quase

    irreconhecveis. (ARENDT, 2004, P. 47 e 48)

    Em conseqncia, perde-se o senso comum capaz de construir

    significados compartilhados por uma comunidade. Neste contexto, na esfera

    da vida pblica o que os homens tm em comum no um mundo de

    significaes, aes e palavras compartilhadas, mas a gesto de seus

    interesses privados. Na sociedade de massa os sujeitos deixaram de

    exercitar a cidadania enquanto capacidade de pensar do ponto de vista de

    outra pessoa. Perde-se, assim, a confiana no outro e a capacidade de agir

    com ele no espao pblico.

    Entretanto, Jrgen Habermas esforou-se por superar este ceticismo

    com sua Teoria do Discurso, onde buscou apreender a possibilidade, ao

    menos ideolgica, de um espao pblico genuno em nossas sociedades

    contemporneas.

  • 26 2. O ESPAO PBLICO CONTEMPORNEO. Aluno de Arendt na Alemanha, Habermas deu continuidade aos

    estudos do espao pblico, chamado em suas obras de esfera pblica, e

    buscou resgatar a percepo e importncia deste espao privilegiado para a

    legitimidade poltica das nossas complexas e plurais sociedades

    democrticas contemporneas.

    Em Mudana estrutural do espao pblico, o ilustre professor da

    escola de Frankfurt leciona sobre o processo de constituio do espao

    pblico da burguesia europia, nos sculos XVII e XVIII e, posteriormente,

    afirma o seu declnio no sculo XIX.

    No incio do sculo das luzes a intensificao do comrcio e seu

    conseqente florescimento urbano favoreceram a emergncia de uma

    sociedade civil organizada. na cidade, centro da atividade econmica e

    cultural da sociedade burguesa que nasce um embrionrio espao pblico

    pr-poltico cujas principais instituies eram os sales, os cafs e as

    associaes culturais. Habermas expe que os cafs e sales surgidos como

    instituies na Frana e na Inglaterra, em meados do sculo XVII, assumiram

    funes sociais semelhantes nestes dois lugares.

    Inicialmente emergiram como centros de uma crtica literria; locais

    onde a literatura tinha de se legitimar, em que havia o encontro da

    intelectualidade com a aristocracia (Habermas, 1984, p.48). Cenrio cultural

    que revela o incio de um processo de substituio da representatividade

    pblica das cortes por novas instituies caracterizadas por organizar a

    discusso pblica permanente entre os membros de uma elite privada: o

    pblico que freqentava os sales e cafs. Mais que isso, a atitude intelectual

    dos pensadores iluministas orientada pela crena na iluminao atravs da

    razo, da cincia e do respeito a humanidade significou um processo de

    mudana de sociabilidade e prticas culturais. Sobre isso, o historiador

    francs, vinculado a historiografia da Escola dos Annales, Roger Chartier

    descreve estas mudanas nas seguintes linhas:

  • 27 Este movimento [a partir do intelectual para o desenvolvimento cultural/social] implica coloc-los em prtica em duas ideias: em primeiro lugar que a prtica pode ser deduzida dos discursos que a autorizaram ou justificaram e em segundo lugar que possvel traduzir em termos de uma ideologia explcita o significado latente de mecanismos sociais (CHARTIER, 1991, P. 18).

    Para Habermas o espao pblico burgus emergiu a partir destas

    mudanas culturais mobilizadas pelo iluminismo. Sua investigao sobre o

    espao pblico burgus orienta-se em torno da seguinte questo: quais

    seriam as condies gerais necessrias para que a racionalidade iluminista

    pudesse permear a discusso acerca das questes pblicas e ser usada para

    promover processos sociais e de emancipao humana? Em outras palavras

    quais seriam as condies para um projeto de transformao do mundo em

    direo a uma sociedade mais humana, justa e igualitria por meio da

    realizao do potencial humano para a razo, em parte atravs da tica do

    discurso?

    Seu trabalho ressoa, ento, a partir das tradies filosficas de Kant,

    do Iluminismo e do Socialismo Democrtico. Contudo, Habermas crtica e

    percebe o Iluminismo como um projeto inacabado que deve ser corrigido e

    completado (CRAIG, 2002, P. 351). Habermas observa que a racionalidade

    iluminista caracterizada pela necessidade de prever e controlar resultados a

    partir da experimentao e teorizao do mundo para orientar a ao ao xito

    de acordo com os parmetros de sucesso determinados por um sistema. Por

    sua orientao a fins, este tipo de racionalidade recebeu a alcunha de

    estratgica.

    Contudo, o filsofo de Frankfurt pondera que a perda de centralidade

    da religio e outras tradies, testemunhada pela Europa do perodo

    moderno nos tornou incapazes de oferecer, atravs de uma racionalidade

    orientada ao xito, respostas substantivas perguntas de natureza tica ou

    moral do tipo: como devemos viver?

    O xito da racionalidade estratgica depende que lhe seja oferecido

    critrios normativos. Sua estrutura argumentativa muda quanto a definio

  • 28 de critrios normativos. Assim, no capaz de responder a questionamentos

    ticos sem recorrer a fundamentos metafsicos pressupostos em alguma

    teoria. Por estes limites, a racionalidade instrumental revela-se inadequada,

    em ltima instncia, para clarificao sobre os procedimentos e normas sobre

    os quais depende o debate pblico. Ento surge uma questo crucial: qual a

    forma de justificao racional que dispomos em nossas deliberaes morais

    e polticas, para afirmar a validade das proposies ticas ditas por ns

    mesmos e pelos outros? Segundo Habermas este tipo de questo s pode

    ser satisfeito por uma racionalidade mediada pela comunicao orientada ao

    entendimento mtuo.

    Destarte isso, sero racionais, no proposies que atendam

    verdade objetiva, mas aquelas que possam atender, ou vir a atender, os

    requisitos da argumentao e da contra-argumentao, da prova e da

    contraprova visando um entendimento compartilhado: aquilo que sabemos,

    fazemos e dizemos s racional quando sabemos ao menos implicitamente

    por que nossas opinies so verdadeiras por meio de proferimentos

    correspondentes ( HABERMAS, 1999, P. 100). Ao resgatar esta dimenso

    comunicativa da racionalidade mediante a substituio do paradigma

    epistmico que se baseia na relao sujeito-objeto pelo paradigma da

    intersubjetividade mediada lingisticamente, Habermas contornou o dficit da

    definio do critrio normativo da racionalidade estratgica.

    Habermas argumenta que a razo comunicativa se fez presente com a

    formao no final do sculo XVII e incio do sculo XVIII da "esfera pblica

    burguesa", um reino "de comunicao marcado por novas arenas de debate,

    de formas mais abertas e acessveis do espao pblico urbano e

    sociabilidade, e uma exploso de impresso cultural " (MELTON, 2001, P. 4),

    conforme ser exporto nos prximos pargrafos.

    Em 1709, de to numerosos, os freqentadores dos cafs sentiram a

    necessidade de fazer uso de veculos de comunicao como jornais e

    folhetins, com a finalidade de preservar a coeso e garantir a

    representatividade de suas discusses. Surgiram os primeiros jornais,

    consagrados arte e critica cultural que logo se interessaram por questes

    de importncia mais social e poltica.

  • 29 Com o agravamento da tenso entre os abusos dos governos

    absolutistas e o crescente poder econmico da burguesia, a esfera pblica

    burguesa assumiu um tom mais poltico e critico e fazendo uso da razo

    pblica se transformou em um ambiente de resistncia poltica autoridade

    pblica estatal. A medida em que a sociedade civil se fortaleceu,

    protagonizou uma re-acomodao entre a cidade e a corte; entre sditos e

    soberanos. neste quadro que, no final do sculo XVII, nasce o jornalismo

    de convico no intuito de assegurar simultaneamente as estratgias

    contraditrias tanto de imposio das regras formais de gesto da res

    publica por parte do Estado burgus como de autonomia da privacidade e da

    domesticidade (RODRIGUES, 1990, P. 39).

    Os cidados reclamaram o esclarecimento sobre os temas antes

    restritos ao Estado e Igreja e fizeram circular suas opinies em meios de

    publicidade como folhetins e pequenos jornais17. Um dos temas reivindicados

    pela burguesia foi o acesso poltica. Para os pblicos dos cafs tais

    veculos de comunicao constituam mais que meros objetos de suas

    discusses; eram tambm parte integrante delas. Quanto a isso, Habermas

    destaca as inmeras correspondncias trocadas entre leitores e editores que

    semanalmente selecionavam algumas cartas serem publicadas

    (HABERMAS, 1984, P. 42).

    Neste momento observou-se um conflito entre dois tipos de

    publicidade, de um lado uma instituda publicidade prpria das cortes, a

    publicidade representativa da autoridade feudal, no para, mas ante o povo,

    e caracterizada pela neutralidade entre pblico e privado; e do outro lado,

    uma emergente e crtica esfera pblica democrtica, assente na distino

    entre pblico e privado, cuja origem remonta ao iluminismo setecentista e

    definida em oposio primeira. Um dos traos que mais chamou a ateno

    de Habermas sobre este segundo tipo de publicidade foi a sua localizao no

    domnio privado:

    17 de extrema importncia fazer notar a importncia condicionante, mas no determinante, que teve a prensa de tipo mveis, pelo alemo Johannes Gutenberg: forneceu uma parte indispensvel do ambiente global de onde estes processos culturais surgiram (Lvy, CbC, P. 26).

  • 30 Includa no domnio privado encontrava-se a

    autntica esfera pblica, dado que era uma

    esfera pblica constituda por pessoas

    privadas. (...) A esfera pblica burguesa pode

    ser entendida inicialmente como a esfera das

    pessoas privadas reunidas em um pblico;

    elas reivindicam esta esfera pblica

    regulamentada pela autoridade, mas

    diretamente contra a prpria autoridade, a fim

    de discutir com ela as leis gerais da troca na

    esfera fundamentalmente privada, mas

    publicamente relevante, as leis do intercmbio

    de mercadorias e do trabalho social

    (HABERMAS, 1984, PP. 40 e 42)

    A Modernidade se estruturou com base no princpio de que o poder

    social emanava desta esfera, compreendida como espao de comunicao

    das pessoas privadas, reunidas livremente como pblico para a discusso e

    deliberao consensual de seus assuntos comuns. Quanto ao carter elitista

    destes espaos Habermas afirma que no deve-se crer que a concepo de

    pblico que implica a igualdade do simplesmente meramente humano tenha

    sido efetivada com os sales, cafs e associaes, mas com eles foi

    institucionalizada enquanto idia e, dessa forma, colocada como

    reivindicao, no entanto eficaz (Habermas, 1984, p.52).

    O filsofo alemo enxergou nesta noo de esfera pblica,

    historicamente identificada com a esfera pblica burguesa do final do sculo

    XVII e incio do sculo XVIII, constituda por indivduos privados que, em

    conjunto, debatem publicamente assuntos de interesse geral, um

    pressuposto normativo de controle e legitimao do poder poltico exercido

    pelo Estado administrativo. Apesar das contradies no seio da esfera

    pblica burguesa, Habermas entendeu esse espao como um lugar onde a

    expresso e a ao comunicativa podiam favorecer um agir coletivo capaz de

    possibilitar uma existncia solidria, no coercitiva, libertadora e igualitria

    entre os homens.

  • 31 Se comparado ao valor simblico que a polis gozava dentro do

    universo da cidade-estado grega o embrionrio espao pblico burgus,

    circunscrito s mesas de discusses dos sales e cafs europeus e

    expandido pelos jornais da burguesia, estava longe de se tornar,

    minimamente que seja, associvel ao espao pblico grego. Contudo, ao

    assimilar um modo comunicativo de racionalidade com as possibilidades

    proporcionadas pelo desenvolvimento tecnolgico dos veculos de

    comunicao este novo espao pblico burgus alargou a capacidade de

    comunicao coletiva; o espao pblico ganhou ento a conotao de lugar

    de uma possvel confluncia de vozes, fato que, no espao pblico

    contemporneo, se torna ainda mais contundente. Nesse contexto, os meios

    de difuso ou de publicizao assumiram a funo de meios que viabilizaram

    o dilogo entre a burguesia, as outras classes que foram surgindo e o

    Estado.

    Assim, no chega a ser espantoso as repercusses que esta poderosa

    estrutura social deliberativa teve no desenvolvimento das democracias

    contemporneas. Estes espaos pblicos burgueses funcionaram como

    espcies de caixas de ressonncia para movimentos que culminaram na

    Revoluo Francesa, a Revoluo Atlntica, no sucesso da Revoluo

    Americana, e incutiram seus princpios polticos na Declarao da

    Independncia Americana, na Carta de Direitos dos Estados Unidos, na

    Declarao Francesa dos Direitos do Homem e do Cidado e em muitas

    Cartas Constitucionais dos pases democrticos.

    em torno do sculo XVIII que as autoridades feudais (igrejas,

    prncipes, nobreza) se dividem em elementos pbicos e privados. O poder da

    nobreza foi transferido para rgos da autoridade pblica - parlamento e

    instituies legais. Neste mbito o poder pblico passou a ser exercido pelo

    Estado. A sociedade civil burguesa passou a desempenhar um contrapeso

    nova autoridade. A expresso pblico ganha um novo significado identificado

    com a camada da populao fora do Estado, que no corresponde s

    instncias do poder administrativo. Este pblico vai-se alargando, junto com o

    surgimento do moderno aparelho de Estado, ao qual se liga a ento

    emergente camada de burgueses e assume a posio central de pblico. At

  • 32 ento o sentido da palavra liga-se esfera do poder pblico, quilo que

    estatal, ou seja, que se objetiva na administrao permanente. E, se sai do

    mbito da monarquia, onde h uma crte e uma pessoa investida de

    autoridade, passa a representar o funcionamento regulamentado de um

    aparelho munido de monoplio da utilizao da fora. (HABERMAS, 1984)

    Habermas, contudo, reconhece que, a partir do sculo XIX esse

    espao entrou em declnio com desenvolvimento da publicidade e estratgias

    de mercado que intensificaram o carter comercial dos meios de

    comunicao de massa e pela amenizao da dicotomia entre o pblico e

    privado devido s aes do estado de bem-estar social. Habermas chega a

    chamar este processo de re-feudalizao do espao pblico estabelecendo

    uma analogia com os tempos pr-iluministas denunciando a passagem de

    uma esfera pblica critica para uma esfera pblica estratgica, quando, entre

    outros fatores a imprensa deixa de expressar a opinio pblica para agendar

    o pblico de acordo com interesses alheios aos seus.

    O excelso filsofo diagnstica ainda que, na medida em que as

    sociedades se tornam mais complexas, a integrao social proporcionada

    pela solidariedade presente em nossa racionalidade comunicativa

    substituda pela integrao funcional promovida pela racionalidades

    estratgica dos sistemas jurdicos, econmico e poltico. Tal processo de

    retrao deriva da impotncia da racionalidade comunicativa em impor suas

    relaes de entendimento e solidariedade, presentes na linguagem informal

    cotidiana dos nossos relacionamentos pessoais e incompreensvel pela

    linguagem formal tecnicista dos sistemas sociais especializados (DURO,

    2011).

    Para o pensador germnico o enfraquecimento da fora integrativa da

    solidariedade coloca a sociedade em um beco sem sada. Ao passo que a

    racionalidade comunicativa se caracteriza pela busca cooperativa do

    entendimento mtuo a racionalidade estratgica, presente nos sistemas

    sociais especialistas, consiste na orientao da ao para o xito a partir das

    avaliaes dadas. Na medida em que o xito da ao, segundo a

    racionalidade estratgica depende do sistema social envolvido, os vetores

    integrativos de cada sistema social tornam-se dispersos. O vetor no sistema

  • 33 econmico medido pelo meio dinheiro, enquanto na poltica, avaliado pelo

    meio poder. Em conseqncia, a estratgia na economia deve ser maximizar

    o benefcio em funo do custo na obteno do lucro, enquanto na poltica

    tem que ser a conquista da confiana dos eleitores traduzida em votos. Esta

    divergncia entre os vetores sistmicos coloca as complexas sociedades

    polticas contemporneas num constante risco de desintegrao.

    Este estado de crescente risco desintegrativo demandou mudanas

    estruturais esfera pblica para preservar a fora associativa das nossas

    comunidades polticas. Ao perceber e expressar este cenrio geral Habermas

    promoveu uma sensvel reformulao da acepo original do conceito de

    esfera pblica, historicamente identificado com a esfera pblica burguesa,

    como maneira de salvar a validade normativa de seu modelo. Assim, em

    Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Habermas apresenta a

    esfera pblica contempornea numa verso bastante diferente da do espao

    pblico burgus, alterando a relao entre sistemas e sociedade:

    A esfera pblica pode ser melhor descrita como uma rede para comunicar informaes e pontos de vista; os fluxos de comunicao so, no processo, filtrados e sintetizados de tal forma que se aglomeram em feixes de opinies pblicas tematicamente especificadas. Do mesmo modo que o mundo da vida como um todo, a esfera pblica tambm reproduzida por meio da ao comunicativa, para qual o domnio da lngua natural suficiente; esta configurada para a compreenso geral na prtica comunicativa cotidiana. (...) Em sociedades complexas, a esfera publica forma uma estrutura intermediria que faz a mediao entre o sistema poltico, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ao especializados em termos de funes, de outro lado. Ela [a esfera pblica] (...) se ramifica espacialmente num sem nmero de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e sub-culturais, que se sobrepem uma s outras; essa rede se articula objetivamente de acordo com pontos de vista funcionais, temas, crculos polticos, etc., assumindo a forma de esferas pblicas mais ou menos especializadas (...);

  • 34 alm disso, ela se diferencia por nvel, de acordo com a densidade da comunicao, da complexidade organizacional e do alcance, formando trs tipos de esfera pblica: esfera pblica episdica (bares, cafs, encontros na rua), esfera pblica da presena organizada (encontros de pais, pblico que freqenta o teatro, concertos de Rock, reunies de partidos ou congressos de igrejas) e esfera pblica abstrata, produzida pela mdia (leitores, ouvintes e espectadores singulares e espalhados globalmente) (HABERMAS, 1997: II, PP. 92 e 107).

    O autor abandonou, portanto, o modelo bipolar que colocava a

    sociedade civil em contraposio ao Estado, e optou pela considerao de

    diversos pblicos ou arenas discursivas espalhados pela sociedade. Esta

    reformulao prepara caminho para um novo modelo de circulao do poder

    poltico, que tem como elemento central uma concepo deliberativa de

    democracia e a nfase nos processos de institucionalizao. A esfera pblica

    redimensionada dentro de um modelo de comportas e assume um papel

    mais amplo e ativo nos processos formais mediados institucionalmente

    (HABERMAS, 1997, P. 88). Neste modelo os processos de comunicao e

    deciso poltica j esto ancorados na sociedade por uma abertura

    estrutural permitida por uma esfera pblica sensvel, permevel, capaz

    inserir no sistema poltico os conflitos existentes na periferia. Neste modelo, o

    sistema poltico no mais pensado autopoiticamente, mas constitui um

    centro polirquico.

    A estratgia adotada por Habermas para a operacionalizao desse

    modelo se d a partir da relao centro-periferia. Sendo o ncleo do sistema

    poltico os seguintes complexos institucionais: a administrao (incluindo o

    governo), o judicirio e a formao democrtica da opinio e da vontade

    (incluindo as corporaes parlamentares, eleies polticas, concorrncia

    entre os partidos, etc.). Nas margens da administrao forma-se uma espcie

    de periferia interna, que abrange instituies variadas, dotadas de tipos

    diferentes de direito de auto-administrao ou de funes estatais delegadas,

    de controle ou de soberania (universidades, sistemas de seguros,

    representaes de corporaes, cmaras, associaes beneficentes,

  • 35 fundaes, etc.).

    Desse modo a poltica deliberativa para Habermas se d mediante

    duas vias: a formao da vontade democraticamente constituda nos espaos

    institucionais e a construo da opinio informal nos espaos extra-

    institucionais. A integridade deste sistema complexo ancorada pelos

    processos de normalizao, que se iniciam nas esferas pblicas informais e

    desguam, pelo caminho procedimental, nas instncias formais de

    deliberao e deciso. A concepo procedimental de democracia uma

    concepo formal e assenta nas exigncias normativas da amplificao da

    participao dos indivduos nos processos de deliberao e deciso e no

    fomento de uma cultura poltica democrtica (LUBENOW, 2010).

    Esta nfase no processos de institucionalizao torna o direito, do

    ponto de vista sociolgico da teoria da ao, responsvel pela integrao

    social entre sociedade e seus sistemas; na medida em que assimila e

    harmoniza tanto: i) o uso da racionalidade estratgica (na qual a ao

    orientada pelo xito), quando os cidados obedecem lei por temor da

    coero segundo um clculo custo/benefcio em que avaliam se o benefcio

    auferido pela transgresso da lei compensa o custo que pode advir das

    sanes previstas na lei; quanto ii) o uso da racionalidade comunicativa (na

    qual a ao orientada para a busca cooperativa de entendimento

    recproco), quando os cidados agem motivados pelo respeito lei,

    convencidos de sua legitimidade (DURO, 2011).

    Para Habermas o direito funciona como um mediador lingstico capaz

    de orientar a racionalidade estratgica dos sistemas pela racionalidade

    comunicativa da sociedade civil (HABERMAS, 1997). Isso possibilita, por

    exemplo, que as reivindicaes da sociedade, expressas comunicativamente,

    como a proteo da esfera privada contra as disfunes ocasionadas pelos

    sistemas sociais ou a preservao do meio ambiente, possam ser

    promulgadas na forma de leis que os agentes envolvidos com os sistemas

    sociais tm que levar em considerao para realizar a escolha racional da

    melhor estratgia de ao a partir da lgica prpria de cada sistema.

    Desta maneira, o fenmeno jurdico emerge de uma rede de atos

    discursivos praticados entre pessoas e instituies, enquanto

    institucionalizao de um projeto intersubjetivo de sociedade. Este projeto

  • 36 fornece os critrios normativos que orientam a ao estratgica dos sistemas

    sociais especialistas.

    Contudo, conforme exposto no captulo anterior, para ser realmente

    integrativo tal projeto precisa ser capaz de espelhar e dar coerncia aos

    princpios polticos ressoados no espao pblico. Isso exige um tremendo

    esforo das nossas instituies pblicas, em especial dos nossos tribunais,

    em adotar um padro hermenutico coerente e uniforme capaz de orientar a

    ao pblica com integridade.

    Sob esta perspectiva, os espaos pblicos operam como ambientes

    onde a concepo destes projetos intersubjetivos torna-se possvel pelo meio

    da racionalidade comunicativa. De acordo com Habermas, o ato de reunir-se

    como pblico d-se quando os indivduos, ao se reconhecerem

    reciprocamente em sua liberdade comunicativa, exercem a soberania,

    discutem e articulam acordos livremente, sem presses ou coaes, internas

    ou externas e, inclusive, com a garantia de poder manifestar e publicar

    livremente sua opinio sobre as oportunidades de atuar segundo interesses

    gerais. Nos casos de um pblico mais amplo, esta comunicao requer a

    mediao de meios de comunicao precisos de transferncia e

    influncia.mDeste modo, vemos que este modelo est amplamente ancorado

    e condicionado pelos meios comunicao que a sociedade dispe.

    Entretanto, vale frisar que, apesar da importncia da mundanidade, o

    espao poltico no poder ser reduzido ao espao fsico ou aos corpos fsicos

    que o vivificam, essas entidades tangveis no eram em si o contedo da

    poltica ( a polis no era Atenas, e sim os atenienses) (ARENDT, 2004, P.

    207). O espao pblico assim um espao estabelecido entre pessoas

    graas a atividade coletiva da comunicao, e no uma dada localidade,

    conjunto de instituies, ou mesmo meios de comunicao. Sua realidade

    consiste em poder ser visto e ouvido por todos em diferentes posies e

    perspectivas sendo bastante distinta da realidade do espao fsico, condio

    geral para os movimentos da vida orgnica. Nesta medida, possvel afirmar

    que a realidade do espao pblico reside estritamente em nossa forma de

    perceber e apreender o real atravs da experincia.

    Pierre Lvy (2004, P. 14) chamou de transcendental histrico aquilo

    que estrutura a experincia dos membros de uma determinada comunidade.

  • 37 Em As Tecnologias da Inteligncia Lvy ensina como a maneira de

    apreender o real atravs da experincia condicionado por processos

    materiais tecnologias. Segundo o supracitado autor de origem francesa,

    nossa experincia com o mundo est intensamente trespassada por coisas e

    tcnicas, de tal forma que o indivduo pensante quase no se distingue, mas

    ainda se distingue, de um coletivo cosmopolita composto por dobras e

    volutas no qual cada parte se relaciona holisticamente entre si e com o todo

    de maneira objetiva, mas tambm subjetiva. (Lvy, 2004, P. 11).

    Assim, a realizao do modelo habermasiano de espao pblico, e sua

    capacidade de orientar a ao social pela racionalidade comunicativa esta

    intimamente condicionada pelas tecnologias que a sociedade dispe.

    Conforme os ensinamentos da epistemogia tecnolgica de Pierre Lvy,

    possvel afirmar que as tecnologias condicionam, sem, no entanto,

    determinar os processos e as prticas comunicativas e deliberativas do

    espao pblico. Neste sentido, as novas tecnologias e os diferentes meios de

    comunicao ganham relevncia enquanto constituem o meio que as

    viabilizam.

    Para reforar esta hiptese ressalta-se a importncia que a impresso

    de tipos mveis teve para viabilizar os jornais e folhetins que possibilitaram

    ao espao pblico burgus transcender os limites circunscritos s paredes

    dos cafs e sales iluministas. Quanto s implicaes de ordem mais geral

    que a imprensa de tipos mveis trouxe para o desenvolvimento da nossa

    sociedade, o filsofo e educador canadense Hobert Marshall McLuhan

    afirmou em: Os meios de comunicao como extenses do homem, que a

    imprensa de tipos mveis foi, por si mesma, o maior limite de ruptura na

    histria da leitura fontica (McLuhan, 1969, P.58). Sem a imprensa, no

    seria possvel o alargamento da capacidade coletiva de comunicao que

    caracterizou o surgimento do espao pblico burgus, ao menos no da

    forma como ocorreu.

  • 38 3. A VOCAO COMUNICATIVA DA INTERNET.

    A internet tem modificado amplamente os meios que a nossa

    sociedade dispe para comunicar e agir coletivamente. Na introduo de A

    Brief History of the Internet os seus Pais Fundadores apresentam ao

    pblico suas consideraes sobre as implicaes sociais da Rede:

    A Internet tem revolucionado o mundo dos

    computadores e das comunicaes como

    nenhuma outra inveno foi capaz. A inveno

    do telgrafo, telefone, rdio e computador

    prepararam o terreno para esta, nunca antes

    vista, integrao de capacidades. A Internet ,

    de uma vez e ao mesmo tempo, um

    mecanismo de disseminao e divulgao

    mundial da informao e um meio para

    colaborao e interao entre indivduos e

    seus computadores, independentemente de

    suas localizaes geogrficas.

    (...) Hoje, termos como

    [email protected] (ou

    [email protected], no caso do

    Brasil) e http://www.nomedeempresa.com (ou

    http://www.nomedeempresa.com.br, no caso

    do Brasil) so usados diariamente por milhes

    de pessoas.

    (...)

    A Internet hoje uma grande infra-estrutura de

    informao, o prottipo inicial do que

    frequentemente chamado de Infra-Estrutura

    Global da Informao. A histria da Internet

    complexa e envolve muitos aspectos -

    tecnolgicos, organizacionais e comunitrios.

  • 39 E sua influncia atinge no somente os

    campos tcnicos das comunicaes via

    computadores, mas toda a sociedade, na

    medida em que usamos cada vez mais

    ferramentas online para fazer comrcio

    eletrnico, adquirir informao e operar em

    comunidade.18

    Proponho que, no que concerne racionalidade comunicativa, a

    internet constitui um tipo especial de tecnologia. Seu carter especial reside

    no fato de constituir uma tecnologia cvica - conforme apregoado por

    Jonathan Zittrain, professor de Internet Governance and Regulation da

    universidade de Oxford. Ao adjetiv-la como cvica ressaltamos o fato de que

    o seu desenvolvimento e arquitetura no so frutos dos esforos de uma

    nica instituio, responsvel por prover um servio, mas sim num processo

    colaborativo permanentemente aberto participao de todos circunscritos

    em seus domnios. Para tornar esta hiptese mais evidente, sero expostos

    nas prximas linhas alguns elementos histricos presentes no

    desenvolvimento da internet e que fundamentam a sua vocao

    comunicativa.

    O projeto da internet foi inspirado pelas idias expressas em dois

    artigos cientficos: Man-Computer Symbiosys (1960) e On-Line-Man-

    Computer Communication (1962); ambos de autoria do psiclogo Joseph

    Carl Robnett Licklider. Nestes artigos Licklider argumentou que os

    computadores poderiam ser utilizados para expandir as capacidades

    cognitivas do ser humano graas ao estabelecimento de i) uma espcie de

    simbiose homem-mquina e ii) pela criao de uma rede de comunicao

    computadorizada, uma espcie de centro de pensamento para resoluo

    colaborativa de problemas e compartilhamento de conhecimento. Em 1962

    Licklider foi contratado por Jack Runa, ento diretor geral da ARPA, 18 LEINER, Barry M.; CERF, Vinton G.; CLARK, David D.; KAHN, Robert E.; KLEINROCK, Leonard; LYNCH, Daniel C.; POSTEL Jon; ROBERTS, Lawrence G.; WOLF, Stephen. A Brief History of the Internet. Disponvel em: < http://www.isoc.org/internet/history/brief.shtml >. Acesso em 12 de dezembro de 2010. Nossa traduo.

  • 40 Advanced Research Projects Agency (Agncia de Pesquisa em Projetos

    Avanados, em ingls) para realizar estas idias na criao de uma rede

    computadorizada que conectasse vrios centros de pesquisa do exrcito e

    universidades americanas. Esta rede posteriormente recebeu o nome de

    ARPANET e, no final da dcada de 80, deu origem a rede mundial de

    computadores, a Internet.

    Para os objetivos da presente pesquisa tentaremos expor como a

    ARPANET envolveu um grupo de pesquisadores cuja dinmica de trabalho

    fora profundamente baseada em liberdade e igualdade, pressupostos que,

    como vimos, caracterizam condies de possibilidade do espao pblico-

    poltico e da racionalidade comunicativa.

    A liberdade, estava expressa por um profundo acordo no escrito de

    que no haveria nenhuma autoridade de controle centralizada. Conforme as

    palavras Leonard Kleinrock, um dos mais influentes cientistas da computao

    que participaram da criao da ARPANET este compromisso foi refletido na

    arquitetura da prpria internet:

    Na verdade, em minhas primeiras publicaes

    sobre a concepo de redes de pacotes,

    apresentei um protocolo de roteamento

    totalmente distribudo de maneira que

    nenhuma parte da rede tivesse a

    responsabilidade total sobre seu controle, ao

    invs disso o controle seria compartilhado por

    todos. Este viria a se tornar um dos princpios

    fundamentais da filosofia de design Internet.

    (KLEINROCK, 2010).

    Como uma extenso deste princpio de controle compartilhado, os

    pesquisadores puderam delegar e compartilhar o desenvolvimento da

    ARPANET a um grupo auto-organizado e distribudo de pesquisadores e

    estudantes de ps-graduao que atuou de forma colaborativa para o

    desenvolvimento da Internet. Para Kleinrock o efeito lquido deste primeiro

    acordo no escrito foi o de que o controle da internet esta investido em todas

  • 41 as pessoas que usam a rede e no restrito s operadores e fornecedores

    como seria esperado em um projeto corporativo.

    A igualdade por sua vez estava expressa pelo forte sentimento de

    comunidade e confiana que unia os pesquisadores envolvidos. Alm disso,

    havia um forte respeito e reconhecimento pelas ideias manifestadas por

    todos os membros do grupo independentemente do seu grau de formao

    acadmica. De acordo com Kleinrock neste grupo as ideias e os produtos da

    pesquisa foram livremente compartilhados por todos; a gratificao no

    residia em um sentimento de propriedade, mas na ampla utilizao, pelos

    outros, dos trabalhos criativos desenvolvidos. Os pesquisadores possuam

    autonomia e liberdade para desenvolver os seus trabalhos, contudo, no o

    faziam de forma isolada. Os protocolos e mesmo as principais decises do

    grupo eram problematizadas e discutidas deliberativamente atravs da

    circulao de documentos conhecidos como RFCs (Abreviao da

    expresso: Requisio para Comentrios, em ingls). Os RFCs

    caracterizaram um tipo de memorando, at hoje utilizado pelo IETF (Internet

    Engineering Task Force) para instituir seus mtodos, comportamentos,

    investigao, ou inovaes aplicveis ao funcionamento da Internet e

    sistemas conectados Internet19.

    Segundo Kleinrock estes princpios foram incrustados no DNA da

    internet na medida em que se tornaram cruciais para o seus

    desenvolvimento:

    O segredo do poder da Internet est no fato

    de que abraa e encoraja a centenas de

    milhes de pessoas a contribuir com suas

    idias, o conhecimento e as obras e

    disponibiliz-los aos outros de forma interativa

    na Internet. H um tremendo poder na filosofia

    da Internet da investigao aberta, no

    compartilhamento de idias e obras, sem 19 Wikipedia, Request for Comments Disponvel em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Request_for_Comments >, ltimo acesso em: 07 de Janeiro de 2011.

  • 42 estrutura de controle autoritrio e confiana

    nos membros da comunidade (KLEINROCK,

    2010).

    Deste modo, o desenvolvimento da internet foi guiado por uma, e em

    alguma medida para a, racionalidade comunicativa. De certa forma possvel

    identificar como comunicativa a racionalidade que guiou a dinmica de

    trabalho dos pesquisadores da ARPANET e noutra medida tambm

    possvel argumentar que a ARPANET fora desenvolvida para constituir uma

    plataforma de comunicao que viabilizasse este tipo de dinmica grupos

    maiores geograficamente separados.

    Na introduo desta monografia vimos como a populao do Egito fez

    uso das possibilidades comunicativas da internet para se mobilizar e expor

    para o mundo a sua luta contra um governo totalitrio que persistia no poder

    desde a dcada de oitenta. No prximo captulo apresentado um caso

    semelhante para destrinchar de forma mais detalhada o papel que teve a

    internet e suas tecnologias derivadas no suporte ao agir cooperativo de

    grupos orientados pela racionalidade comunicativa.

  • 43 4. O BLOQUEIO PAQUISTANS AO YOUTUBE.

    Vinte e um de Fevereiro de 2008, um vdeo,20 gravado em um

    aparelho celular, postado no Youtube tornando pblico indcios de

    manipulao nas eleies presidenciais do Paquisto. Suas imagens

    expunham uma pessoa depositando vrias cdulas em favor do Partido

    Poltico Muttahida Qaumi Movement21 (MQM) na urna eleitoral, com a

    conivncia dos responsveis pela zona NA250 em Karachi. Logo aps a

    publicao, as imagens foram divulgadas em grupos de e-mails, blogs,

    espaos virtuais de discusso, todos engajados com as eleies

    paquistanesas.

    Entretanto, no dia seguinte, a internet tomada por queixas de

    paquistaneses que relatavam a inacessibilidade do site de compartilhamento

    de vdeos no Paquisto. Imediatamente a blogosfera22 poltica do pas

    suspeitou que tratava-se de um ato de censura governamental. Blogs como

    PKPolitics23 e Adnan Crazy Blog24 publicaram notas de protesto sobre o

    banimento do Youtube. O Blog Adnan Crazy especulou que bloqueio fora, em

    verdade, uma reao imagens onde: se entoavam louvores de eleies

    livres e justas no Paquisto. Awab Alvi, autor do Blog Teeth Maestro

    relaci