Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    Ivan iLLich

    O DIREIT O AODESEMPREGO

    CRIADORA DECADENCIA DA IDADE PROFISSIONAL

    Editorial AlhambraTtulo do o ri ginal ingls:

    The Right To Useful Unemploymentand its professional enemies

    Ttulo do ori ginal espanhol:La decadencia de la edad profesional

    T r a d u o d e

    Joaquim Campelo Marques

    I v a n I l l i c h, 1 9 7 8Ficam reservados todos os direitos.

    vedada a publicao deste texto, integral ou parcial,por quaisquer meios de comunicao eletrnicos, mecnicos,reproduo xerogrfica, gravao, ou similares, exceto para

    fim de citao critica, sem o consentimento prvio e porescrito do editor e do Autor (detentor do copirraite).

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    NDICEINTRODUO ..............................................................................................3

    1 A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO............................................4a) Uma opo mundial ..............................................................................5b) Para uma cultura de produtos estandardizados .......................................6c) A pobreza modernizada ....................................................................... 11d) A metamorfose das necessidades.........................................................15

    2 OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES ........................................ 19a) Rumo ao fim de uma poca ................................................................. 24b) As profisses dominantes .................................................................... 26c) As profisses tirnicas ......................................................................... 29

    d) As profisses estabelecidas.................................................................. 32e) A hegemonia das necessidades imputadas............................................34

    3 COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES................................. 41a) Confuso entre congesto e paralisia ................................................... 43b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais..........................................47c) A confuso entre liberdades e direitos .................................................. 50d) A eqidade no desemprego criador......................................................53

    4 FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL .................................................. 57

    a) O traficante ........................................................................................ 57b) A aliana dos benfeitores pblicos........................................................ 59c) A profissionalizao do cliente..............................................................61

    5 O ETHOS POS-PROFISSIONAL.................................................................. 63

    APNDICE.................................................................................................. 65

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    INTRODUO

    H cinqenta anos, nove de cada dez palavras que um homem

    civilizado ouvia eram-lhe transmitidas como a um ind ivduo. Som ente umaem dez lhe chegava como elemento indiferenciado de uma multido na

    sala de aula, na igreja, em reunies ou espetculos. As palavras eram

    ento como cartas seladas, escritas a mo, bem diferentes da escria

    que hoje contamina nosso correio. Atualmente so poucas as palavras

    que tentam chamar a ateno de uma pessoa. Com regularidade de

    relgio, assaltam nossa sensibilidade as imagens, idias, sentimentos e

    opinies empacotadas e entregues atravs dos meios de comunicao,

    como artigos padronizados. Duas coisas se tornaram evidentes: 1) O que

    acontece com o idioma se tornou paradigmtico para uma ampla gama

    de relaes entre necessidade e satisfao; 2) Estes so, j, fenmenos

    universais, e nivelam o professor de Nova Iorque, o membro da

    comuna chinesa, o estudante de banto e o sargento brasileiro. Neste apndice

    a meu ensaio sobre a convivencialidade, pretendo fazer trs coisas: a)

    Descrever o carter de uma sociedade de mercado-de-bens intensivo, na

    qual a multiplicidade, especializao e volume das mercadorias destrem o

    ambiente propcio criao de valores de uso; b)Insistir no papel oculto que

    as profisses numa sociedade desse tipo desempenham ao modelar suas

    necessidades; c) Propor algumas estratgias para romper o poder

    profissional que perpetua esta dependncia do mercado.

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    1A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO

    Atualmente, chama-se crise quele instante em que mdicos,

    diplomatas, banqueiros e todo tipo de engenheiros sociais assume os

    controles e se suspendem as l iberdades. Tal como os pacientes, as

    naes se catalogam conforme o estado crtico. E isto porque a crise, depois

    de ter sido uma possibilidade de ligar rumos, hoje somente significa o ir-e-

    vir de um para outro lado. Remete, na atualidade, a uma ameaa

    ominosa, mas controlvel, contra a qual podem unir-se o dinheiro, a

    fora de trabalh o e a administrao. Um exemplo tpico deste tipo de

    resposta poderia ser o de uma cidade de 13 milhes de habitantes, a 2.500

    metros acima do nvel do mar, na qual, diante das cifras alarmantes de

    escassez e das dificuldades no abastecimento de gua para a maioria de seus

    habitantes, que somente tm acesso a menos de cinco litros, declara-se uma

    crise que dar mais trabalho aos engenheiros, em vez de racionar o

    consumo de 5% das pessoas que utilizam a metade da gua em suas tinas etanques. Entendida desta maneira, a crise acaba sendo sempre conveniente

    para os executivos e comissionados, especialmente para os urubus que vivem

    dos efeitos secundrios, no desejados, do crescimento anterior: os

    educadores que vivem da alienao da sociedade, os mdicos queprosperam

    base do trabalho e do cio que destruram a sade, os polticos que

    triunfam graas distribuio de um bem-estar que, em primeira instncia,

    foi tirado aos mesmos que recebem a assistncia.

    O termo crise, entretanto, no deve significar necessariamente isto. Nem

    deveria implicar uma corrida desatinada numa escalada pela

    administrao. Pode significar o instante de escolha, esse momento

    maravilhoso em que a gente se torna consciente da prpria priso auto-imposta

    e da possibilidade de uma vida diferente. E st a a cr ise que hoje,

    simultaneamente, os Estados Unidos e o mundo enfrentam.

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    a) Uma opo mundial

    O mundo se uniformizou numas quantas dcadas. As respostas humanas

    aos acontecimentos de todos os dias se tornaram standard. Embora os idiomas

    e os deuses ainda paream diferentes, a gente se une todos os dias admirvel maioria que marcha ao compasso do mesmo tambor. O

    interruptor de luz, junto porta, substituiu as mltiplas formas como

    antigamente se acendiam os fogos, as velas, os candeeiros. O nmero de

    pessoas que ligam interruptores de luz triplicou no mundo em dez anos; o

    fluxo de gua e o papel se converteram em condies essenciais para

    aliviar os intestinos. A luz que no provm das redes de alta voltagem e a

    higiene que exclui o papel higinico vm funcionando como medidores da

    pobreza de milhes de pessoas. A intromisso, sopotorfera s vezes, opaca

    outras, dos meios massivos de comunicao, penetra muito profundamente

    no bairro, no povoado, na sociedade, na escola. Os rudos emitidos pelo locutor

    e os anunciadores de textos programados pervertem diariamente as

    palavras de uma linguagem falada, transformando-as em tijolos de

    mensagens em pacotes. Para que os no ssos f ilhos hoje tenham a

    possibilidade de brincar num ambiente em que uma de cada dez palavras

    que ouvem lhes seja dirigida pessoalmente, eles devem estar isolados ou

    afastados no tempo, ou melhor, devem converter-se em marginais opulentos

    aos quais se proporciona cuidadosa proteo. Em qualquer parte do

    mundo pode-se notar um rpido enquistamento da aceitao disciplinada que

    caracteriza o auditrio, o cliente, o comprador. A padronizao da ao humana

    vai-se estendendo.

    Torna-se evidente agora que o problema crtico que a maior parte das

    naes enfrenta exatamente o mesmo: ou bem as pessoas se convertero

    em cifras de uma multido condicionada que avana para uma dependncia

    cada vez maior e enfrentaro, portanto, batalhas selvagens para obter

    um mn imo das drogas que alimentam os seus hbitos ou bem

    encontraro o valor que a nica coisa que pode salvar no pnico; ou

    seja, manter-se sereno e buscar em torno outra sada que no seja o bvio j

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    marcado como sada. Entretanto, muitas pessoas s quais se diz que os

    bolivianos, os canadenses, os hngaros enfrentam todos a mesma opo

    fundamental, no s se sentem atingidas como tambm se ofendem

    profundamente. A idia lhes parece no apenas louca, mas chocante. Noalcanam detectar a analogia nesta nova degradao amarga que vai

    permeando a fome do ndio do Altiplano, a neurose do trabalhador de

    Amsterd e a cnica corrupo do burocrata de Var svia.

    b) Para uma cultura de produtos estandardizados

    O desenvolvimento teve os mesmos efeitos em todas as sociedades:

    viram-se apanhadas numa nova trama de dependncia de mercadorias quefluem do mesmo tipo de mquinas, fbricas, clnicas, estdios de TV, Think

    tanks. Para satisfazer esta dependncia, tem-se de continuar produzindo,

    sempre mais, a mesma coisa: bens e servios padronizados por engenheiros e

    destinados aos consumidores que, por sua vez, so padronizados pelos

    educadores e promotores comerciais para que acreditem necessitar do que

    se lhes oferece.

    Sejam eles tangveis ou intangveis, so estes os produtos estandardizados

    do mundo industrial; assumem valor monetrio como mercadores e se

    estabelecem tanto pela ao do Estado como pelo mercado, embora o nvel de

    participao de um e outros varie nos diferentes regimes. As distintas

    culturas chegam a ser assim resduos inspidos de um estilo de ao

    tradicional, perdidas numa paragem mundial; um terreno rido, desbastado

    pela maquinaria necessria para produzir e consumir. Nas margens doSena e nas do Niger, as pessoas se esqueceram de como ordenhar,

    porque o lquido branco lhes chega engarrafado. Graas maior proteo do

    consumidor, na Frana o leite menos txico do que em Mli. verdade

    que agora existe um nmero maior de criaturas que bebem leite de

    vac a, mas os sei os da s mulheres, ricas e pobres, secam igualmente. A

    dependncia nasce com o primeiro vagido do beb que tem fome, quando seu

    organismo apreende o leite artificial, abandonando o seio materno que, dessemodo, se atrofia. Todas aquelas aes humanas, autnomas e criativas,

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    necessrias par a o florescimento do universo do homem, acabam por se

    atrofiarem. Os tetos de barro ou de palha, de junco ou de telha, foram sendo

    substitudos por tetos de concreto para uns poucos e de plstico para a

    maior parte. Nem os obstculos da selva, nem os matizes ideolgicoslibertaram os pobres e os socialistas de se apressarem a construir auto-

    estradas para os ricos, essas vias que os conduzem ao mundo onde os

    economistas tomaram o lugar dos sacerdotes. A cunhagem das moedas

    traga todos os tesouros locais e os dolos. O dinheiro desvaloriza o que no

    pode medir. A crise, pois, a mesma para to dos: a op o entre uma

    mai or ou um a men or dependncia de bens de consumo industriais. Uma

    dependncia maior significaria a destruio rpida e total das culturas comoprogramas de atividades de subsistncia que produzam satisfao; uma

    dependncia menor significa o florescimento variado de valores de uso em

    culturas de intensa atividade. A opo essencialmente a mesma para ricos

    e pobres, ainda que, mesmo imagin-lo, fosse extremamente difcil para

    quantos j esto acostumados a viver em um supermercado, diferente, mas

    somente no nome, das instituies para idiotas.

    Nas sociedades de industrialismo tardio, toda a vida se organiza em

    funo das mercadorias. Nossas sociedades de mercado intensivo medem seu

    progresso material de acordo com o aumento no volume e na variedade das

    mercadorias produzidas; e, segundo esta mesma linha, medimos o

    progresso social de acordo com a distribuio do acesso a esses bens e

    servios. A economia poltica converteu-se na grande propagandista a servio

    da dominao dos que produzem em grande escala. O socialismo se degradouao transformar-se numa luta contra a distribuio no igualitria e a

    economia de bem -estar identificou o bem pblico com a distribuio da

    opulncia e, num sentido mais estrito, com a humilhante opulncia do pobre:

    um dia de degradao organizada num hospital pblico, crcere ou laboratrio

    educacional, nos Estados Unidos, alimentaria durante um ms uma famlia da

    ndia.

    Ao depreciar todos aqueles custos aos quais a Economia clssica no

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    fixou preos, a sociedade industrial criou um ambiente no qual a gente

    no pode viver sem devorar cada dia o equivalente ao prprio peso em

    metais, combustveis e materiais de construo. Criou um mundo no qual a

    constante necessidade de proteger-se contra os resultados negativos docrescimento cavou novos abismos de discriminao, de impotncia e de

    frustrao. Nunca esquecerei a afirmao do ianque diante de um chileno:

    Seremos sempre ns os que, num mundo envenenado, vamos ter os filtros

    de ar de maior potncia. At agora os movimentos ecolgicos a servio do

    poder s tm servido para dar maior consistncia a esta orientao, ao

    concentrar a ateno pblica na irresponsabilidade tcnica de quantos irrigam

    zonas habicionais com subprodutos venenosos e mutgenos e, no melhordos casos, tm desmascarado os interesses privados que aumentam, para o

    indivduo, a dependncia de necessidades criadas. Mas, ainda agora,

    depois que se fixaram preos e custos para refletir o impacto sobre o meio

    ambiente (a desvalorizao devida aos prejuzos ou o custo da polarizao),

    no temos sido capazes de perceber com clareza que este processo substituiu,

    por artigos embalados e produzidos em srie, tudo aquilo que as pessoas

    faziam ou criavam por si mesmas.

    Faz a lguns anos, cada semana morre uma ou outra forma de

    expresso. As que permanecem se uniformizam cada vez mais. Entretanto,

    mesmo aqueles que se preocupam com a perda de variedades genticas

    ou com a multiplicao de istopos radiativos, no se advertem do

    esgotamento irreversvel das habilidades artesanais, das histrias e dos

    sentidos da forma. Esta substituio gradual de valores teis, mas nomercantilizveis, por bens industriais e por servios tem sido a meta

    compartida por faces polticas e regimes que, de outro modo, se

    oporiam uns aos outros violentamente.

    Por, este caminho, pedaos cada vez mais longos de nossas vidas se

    transformam de tal maneira que a vida passa a depender quase exclusivamente

    do consumo de mercadorias. Isto o que deveramos chamar crescimento

    da intensidade de mercado nas culturas modernas. Naturalmente, os

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    diferentes regimes aplicam recursos de maneira distinta: aqui decide a

    sa bedoria da mo oculta do mer cado, a li a do idel ogo e o

    planificador. Mas a oposio poltica entre estes proponentes de mtodos

    alternativos para a aplicao dos recursos, disfara somente o prpriodesprezo grosseiro que todas as faces e partidos nutrem pela liberdade

    e a dignidade pessoal. A poltica sobre energia em diferentes pases nos d um

    bom exemplo para estudarmos a profunda identidade que existe entre os

    diferentes promotores do sistema industrial, chamem-se eles socialistas ou

    liberais. Se exclumos lugares como a Nova Camboja, sobre a qual me falta

    informao, no existe elite no governo nem oposio organizada que

    conceba um futuro desejvel fundado em um instrumental social cujoconsumo de energia per cpita fosse inferior em vrias ordens de

    magnitude aos nveis que prevalecem hoje na Europa. Todas, as

    correntes polticas insistem num pretenso imperativa tcnico que torna

    inevitvel que o modo de produo moderno seja intensivo tambm no

    uso de energia. At agora no existe nenhum partido que reconhea que

    um modo de produo desta espcie castra inevitavelmente a capacidade

    criadora dos indivduos e grupos prim rios. Todos os partidos insistem namanuteno de nveis de emprego elevados na fora de produo e parecem

    ser incapazes de reconhecer que os empre gos tendem a destruir o valor de

    uso do tempo livre. Insistem em que as necessidades dos indivduos se

    definam, na forma mais objetiva e total, por especialistas diplomados

    publicamente para tal competio, e parecem insensveis conseqente

    expropriao da prpria vida.

    Nos fins da Idade Mdia, usou-se a assombrosa simplicidade do modelo

    heliocntrico como argumento para desacreditar a nova Astronomia. Sua

    elegncia foi interpretada como ingenuidade. Em nossos dias, no so

    poucas as teorias centradas no valor de uso, capazes de analisar o custo

    social gerado pela economia estabelecida. Estas teorias foram propostas por

    muitos outsiders da economia que situam suas perspectivas numa nova escala

    de valores: a beleza, a simplicidade, a ecolog ia, a vida em comunidade .Como uma forma recorrente de solapar estas teorias, a economia moderna

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    e seus praticantes tm-se dedicado a falsear e ressaltar os fracassos

    que, com freqncia, estes outsiders sofreram ao experiment-las em

    novos estilos de vida pessoal e se recusam a olh-las sequer do mesmo

    modo que o inquisidor legendrio se recusou a olhar atravs do telescpio deGalileu sendo que sua anlise poderia conduzir ao deslocamento do centro

    convencional do sistema econmico vigente. Estes instrumentos analticos

    distintos poderiam lev-los a pr os valores de uso no mercantilizveis no

    centro de uma cultura desejvel na qual somente se atribui um valor

    queles bens mercantis que fomentem uma extenso mais ampla desses

    mesmos valores de uso. Porm o que continua valendo no o que a gente

    faz ou cria, mas sim o produto das corporaes pblicas ou privadas. Todoscolaboram por igual no esforo de transformar nossas futuras sociedades numa

    grande brincadeira inconseqente, na qual cada lucro e cada satisfao de uma

    pessoa se transforma inevitavelmente em perda para as outras.

    Nesta estrada, ficaram destroados inumerveis conjuntos de infra-

    estruturas nas quais a pessoa enfrentava a vida, nas quais brincava, comia,

    estreitava laos de amizade e at de amor. Umas quantas das chamadas

    dcadas de desenvolvimento foram suficie ntes para desmantelar mais de

    dois teros dos moldes culturais do mundo. Antes dessas dcadas,

    aqueles moldes permitiam s pessoas satisfazerem a maior parte de suas

    necessidades segundo um modelo de subsistncia. Depois delas, o plstico

    substituiu a cermica, as bebidas gasosas substituram a limonada, o Valium

    tomou o lugar do ch de camomila, e os discos o do violo. Ao longo de

    toda a Histria, a melhor medida dos tempos maus foi o percentual dealimentos que se devia comprar. Nos bons tempos, a maior parte das famlias

    conseguiam quase todos os seus alimentos atravs do que cultivavam ou

    adquiriam num quadro de relaes gratuitas.

    At f ins do sculo XVIII, o a limento que se produzia alm do

    horizonte abarcvel pela vista do consumidor que olhasse de um campanrio

    ou minarete era menos de 1% em todo o mundo. As leis encaminhadas para

    controlar o nmero de galinceos e de porcos no mbito dos muros da

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    cidade sugerem que, exceo de umas quantas zonas urbanas mais extensas, '

    quase a metade dos alimentos tambm se cultivava igualmente dentro da vila.

    Antes da segunda guerra mundial, os alimentos trazidos de fora para uma

    regio determinada constituam menos de 4% do total que se consumia; almdisso, estas importaes estavam destinadas, em grande parte, s 11

    cidades que tinham mais de dois milhes de. habitantes. Atualmente, 40% das

    pessoas sobrevivem graas ao acesso que tm aos mercados interregionais.

    Conceber hoje em dia um mundo em que se reduzisse radicalmente o

    mercado mundial de capitais e bens representa um tabu pelo menos to

    abso luto como conceber um mundo no qual pessoas autnomas utilizassem

    ferramentas convivenciais para libertarem -se da necessidade de consumire para criar valores de uso em abundncia. Neste tabu se reflete a crena

    de que as atividades teis por meio das quais as pessoas se expressam e

    satisfazem as suas necessidades podem ser substitudas indefinidamente

    por bens e por servios.

    c) A pobreza modernizada

    Passado certo umbral, a multiplicao de mercadorias induz impotncia, incapacidade de cultivar alimentos, de cantar ou de construir. O af e o

    prazer, condies humanas, chegam a converter -se em privilgio de

    alguns ricos caprichosos. Em Acat zingo, como na maioria dos povoadozinhos

    mexicanos de seu tamanho, existiam, quando Kennedy lanou a Aliana

    para o Progresso, quatro bandas de msica que tocavam em troca de um

    trago e serviam a uma populao de 800 pessoas. Atualmente, os discos

    e as rdios ligadas a alto -falantes afogam todo o talento local. Socasionalmente, num ato de nostalgia, se faz uma coleta para trazer um

    conjunto formado com rapazes que abandonaram a Universidade, para

    cantar velhas canes em alguma festa especial. No dia em que a

    legislao venezuelana determinou para cada cidado um direito

    habitacional concebido como mercadoria, trs quartas partes das famlias

    acharam que as casinhas levantadas com suas prprias mos ficavam

    rebaixadas ao nvel de telheiros. Alm disso, e isto era o mais importante,

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    existia j um preconceito contra a autoconstruo. No se podia iniciar

    legalmente a construo de uma casa sem antes apresentar o plano desenhado

    por um arquiteto diplomado. Os dejectos e sobras da cidade de Caracas,

    teis at ento como excelentes materiais de construo, criavam agora oproblema que era livrar-se de refugos slidos. O homem que tentava levantar

    a prpria morada era olhado como um transviado que recusava cooperar

    com os grupos de presso local para a entrega de unidades habitacionais

    fabricadas em srie. Alm do mais, promulgaram-se inumerveis regulamentos

    que acoimaram sua ingenuidade de ilegal e at de delituosa. Este exemplo

    ilustra o fato de que so os pobres os primeiros a sofrer quando uma

    nova mercadoria castra um dos tradicionais ofcios de subsistncia. Odesemprego til dos inativos se sacrifica expanso do mercado de

    trabalho. A construo da casa, como atividade escolhida por algum,

    converte-se no privilgio de alguns ricos, ociosos e extravagantes.

    Uma vez se tenha incrustado numa cultura, a dependncia opulncia

    paralisante gera pobreza modernizada. Esta uma forma de desvalor que se

    associa necessariamente multiplicao de produtos industrais; escapou

    ateno dos economistas porque no se pode apreender com suas medies, e

    dos servios sociais porque seus mtodos no so operativos para estes

    casos. Os economistas no dispem de meios efetivos para incluir em seus

    clculos o que a sociedade perde quanto a uma certa satisfao que no tem

    seu equivalente no mercado. Assim, poda mos atualmente definir os

    economistas como membros de uma confraria que somente aceita aquelas

    pessoas que, no exerccio de seu labor profissional, sabem praticar umacegueira adestrada at a conseqncia social mais fundamental do crescimento

    econmico: alm de certo umbral, cada grau que se acrescenta quanto

    opulncia em mercadorias traz como conseqncia uma queda na habilidade

    pessoal para fazer e criar.

    Enquanto a pobreza modernizada afetou somente aos pobres, sua

    existncia e sua natureza permaneceram ocultas mesmo nas conversaes mais

    correntes. Na medida que o desenvolvimento, ou a moderniza o, chegou

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    aos pobres que at ento tinham conseguido sobreviver, apesar de sua

    excluso de muitos setores da economia de mercado, estes foram vendo-se

    implacavelmente constrangidos a sobreviver adquirindo mercadorias num

    sistema de compras, o que para eles significa sempre e necessariamenteobter as escrias do mercado. Os ndios de Oaxaca, que anteriormente no

    tinham acesso s escolas, so agora recrutados pelo sistema educacional

    para que ganhem uns certificados que medem precisamente sua

    inferioridade em relao populao urbana.

    Alm disso, e eis aqui a ironia, sem esse pedao de papel, no podem

    sequer trabalhar numa construo.

    Esse processo a modernizao de renovados aspectos da pobreza

    dos pobres continua ocultando-se, culpando as vtimas por sua apreciao

    indiferente diante do acesso aos privilgios do progresso. En quanto isso, a

    aliana non-sancta entre os produtores de mercadorias e seus assistentes

    profissionais continua unindo-se coesamente sem questionamento.

    Um resultado de forte significao social do que dizemos que agora apobreza modernizada se transforma na experincia comum de todos,

    exceo daqueles que no so to ricos que podem retirar-se para sua

    Arcdia. A medida que as facetas da vida, umas depois das outras, se fazem

    dependentes das mercadorias padronizadas, muitos poucos nos livra mos

    dessa experincia recorrente da pobreza modernizada. Nos Estados Unidos, o

    consumidor mdio ouve por dia quase cem anncios publicitrios, mas s

    uma dzia deles o fazem reagir e, na maioria dos ca sos, de forma negativa. At os compradores bem providos de dinheiro adquirem, junto com a

    mercadoria novidadeira, uma nova experincia de desutilidade. Sentem que

    adquiriram algo de valor duvidoso, talvez intil a curto prazo, ou mesmo

    daninho, algo que exige tambm complementos ainda mais custosos. As

    vezes, as atividades dos organismos de proteo ao consumidor tornam

    consciente este processo porque, se bem comeam por exigir controles de

    qualidade, podem levar a uma resistncia radical por parte do consumidor. H

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    muitos que se acham quase dispostos a reconhecer abertamente a

    existncia de uma nova forma de r iqueza: a r iqueza frustradora,

    produzida pela expanso cada vez maior de uma cultura de mercado

    intensivo. Alm disso, os opulentos chegam a pressentir o reflexo de suaprpria condio no espelho dos pobres. Entretanto, esta intuio

    geralmente no se desenvolve alm de uma espcie de romanticismo.

    A ideologia que identifica o progresso com a opulncia no se restringe,

    naturalmente, aos pases ricos. Essa mesma ideologia degrada as atividades

    no mercantilizveis ainda em zonas onde, at pouco, quase todas as

    necessidades se satisfaziam atravs de um modo de vida de subsistncia. Os

    chineses, por exemplo, inspirando-se em sua prpria tradio, pareciam estar

    dispostos a ser capazes de redefinir o progresso tcnico. Viam-se prontos a

    optar por uma bicicleta em lugar do jato. Parecia que davam importncia a

    seu prprio poder de deciso local como uma meta de um povo inventivo

    mais do que como um meio para a defesa nacional. Mas, em 1977, sua

    propaganda glorifica a capacidade industrial chinesa de dar, a baixo custo,

    maior assistncia tcnica, educa o, habitao e bem-estar geral. Atribuem-

    se provisoriamente funes meramente tticas s ervas que se encontram nas

    bolsas dos mdicos descalos ou aos mtodos de trabalho intensivo na

    produo. Neste caso, como em outros, a produo heternoma de bens

    quer dizer, dirigida por outros padronizada para distintas categorias de

    consumidores annimos, fomenta as expectativas irreais e, em ltimo termo,

    frustradoras. E alm disso este processo corrompe inevitavelmente a confiana

    da gente nessa sempre surpreendente competio autnoma que existedentro de si mesmo e em seu vizinho. A China representa simplesmente o

    ltimo exemplo da particular verso ocidental da modernizao por meio

    da dependncia de um mercado intensivo, que se apodera de uma

    sociedade tradicional, da mesma forma como alguns cultos irracionais surgiram

    em comunidades isoladas como resultado da invaso desses estranhos seres

    que se matavam na segunda guerra mundial.

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

    15/89

    d) A metamorfose das necessidades

    Entretanto, tanto nas sociedades tradicionais como nas modernas

    ocorreu uma alterao importante em um perodo muito curto: modificaram-se

    radicalmente os meios socialmente desejveis para satisfazer as necessidades.O motor atrofiou o msculo, a instrumentao escolar tolheu a curiosidade,

    o md ico se fez necessrio para todo homem em pleno vigor. Como

    conseqncia disso, as necessidades e os desejos adquiriram um carter que

    no tem precedentes histricos. Pela primeira vez, as necessidades se

    tornaram quase exclusivamente co-limitantes como as mercadorias. A liberdade

    de mover-se se degradou no esforo feito para produzir, distribuir e

    consumir o direito a transporte. A busca insistente de criar um mbito de

    liberdade se eclipsou ante o direito de consumir. Enquanto as pessoas

    chegavam onde podiam chegar por meio dos prprios ps, no precisavam

    para sua mobilidade seno da liberdade de movimento. Porm agora que

    os homens compreendem que so entes que devem transportar -se,

    distinguem-se uns dos outros pela amplido e qualidade de seus direitos

    ao uso de quilmetro-passageiro. O mundo j no to grande e distante, mas

    sim uma sucesso de lugares de estacionamentos. Para a maioria das

    pessoas, os desejos de adquirir acompanham as novas necessidades, e elas

    no podem imaginar sequer que um homem moderno possa aspirar a

    libertar-se de viver nesta dependncia de ser transportado. Esta si tu a o,

    que se apresenta hoje como uma inter dependncia rgida entre

    necessidades e mercado, legitima-se por meio de um chamado percia de

    uma elite cujo conhecimento, devido a sua prpria natureza, no pode ser

    compartido. Os economistas de todo tipo informam ao poltico que o nmero de

    empregos depende dos watts em circulao. Os educadores convencem o

    pblico de que a produtividade depende do nvel de instruo. Os gineclogos

    insistem em que a qualidade da vida infantil e materna depende de sua

    intromisso nela. Portanto, no podemos questionar efetivamente a extenso

    quase universal das culturas de mercado intensivo de mercadorias

    enquanto no se tenha destrudo a impunidade das elites que legitimam ovnculo entre mercadoria e necessidade. Este ponto fica muito bem ilustrado

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    com o relato de uma mulher sobre o parto. Encontrava-se num hospital e

    sentiu que o filho ia nascer. Chamou a enfermeira, a qual, em vez de

    ajud-la, correu em busca de uma toalha esterilizada para empurrar a

    cabea da criana para dentro, de volta ao tero. Ento ordenou me quedeixasse de fazer fora porque o doutor Levi ainda no chegou.

    Chegou o momento de tomar uma deciso pblica. As sociedades

    modernas, sejam ricas, sejam pobres, podem tomar duas direes

    opostas. Podem produzir uma nova lista de bens mais seguros, com menos

    desperdcios e mais fceis de compartilhar e, por fim, intensificar ainda

    mais a dependncia de produtos padronizados. Ou podem abordar o

    problema da relao entre necessidades e satisfao de uma forma

    inteiramente nova. Em outras palavras: as sociedades podem manter suas

    economias de mercado intensivo trocando somente o desenho do produto; ou

    podem reduzir sua dependncia da mercadoria. Esta ltima soluo encerra a

    aventura de imaginar e construir novas infra-estruturas nas quais os indivduos

    e grupos primrios possa desenvolver um conjunto de ferramentas

    convivenciais. Estariam organizadas de maneira que permitissem s pessoas

    formarem e satisfazerem, direta e pessoalmente, uma crescente proporo de

    suas necessidades.

    A primeira opo mencionada representa uma contnua identificao do

    progresso tcnico com a multiplicao de mercadorias. Os administradores

    burocrticos do etos iguali tr io e os tecnocratas do bem-estar

    coincidiram num chamado austeridade: substituir os bens que como os

    jatos no podem obviamente ser compartidos, por um equipamento

    chamado social como os nibus; distribuir mais eqitativamente as

    decrescentes horas de emprego de que se dispe e limitar a tradicional

    semana de trabalho a 20 horas; desenhar o novo tempo de vida de cio

    para ocup-lo em reaprendizagens ou servios voluntrios, maneira de Mao,

    Castro ou Kennedy. Este novo estgio da sociedade industrial se bem

    socialista, efetiva e racional nos introduziria simplesmente num novo estado

    da cultura que degrada a satisfao dos desejos ao convert-los num alvio

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

    17/89

    repetitivo de necessidades imputadas por meio de artigos padronizados. No

    melhor dos casos, esta alternativa produziria bens e servios de tal forma que

    sua distribuio fosse mais eqitativa. A participao simblica do indivduo

    nas decises sobre o que se deveria fazer poderia transferir-se davociferao no mercado ao voto na assemblia poltica. Poder-se-ia suavizar o

    impacto ambiental da produo. Entre as mercadorias, cresceriam certamente

    muito mais rapidamente os servios do que a manufatura de bens. Enormes

    somas de dinheiro se inverteriam na indstria oracular, a fim de que os

    profetas da administrao pudessem fabricar cenrios alternativos

    desenhados para escorar esta primeira opo. E interessante notar que

    estes orculos convergem para um mesmo ponto: em que ser iainsuportvel o custo social necessrio para produzir desde cima a

    austeridade indispensvel numa sociedade ecologicamente factvel, mas que

    ainda continua centrada na indstria.

    A segund a opo faria cair o pano sob re a dominao absoluta do

    mercado e fomentaria um etos de austeridade em benefcio de uma

    variedade de aes satisfatrias. Se bem que na primeira alternativa

    austeridade queira dizer aceitao dos ucasses administrativos em benefcio da

    crescente produtividade institucional, na segunda, austeridade quer significar

    essa virtu de social pela qual a gente reconhece e decide os l imites

    mximos de poder articulado que qualquer pessoa possa exigir, a fim de

    conseguir sua prpria satisfao e sempre a servio dos demais. A austeridade

    convivencial inspira uma sociedade a proteger valores de uso pessoais diante

    do enriquecimento inabilitante. Se num lugar as bicicletas pertencem comunae em outra aos ciclistas, a natureza convivencial da bicicleta como ferramenta

    no muda em nada. Tais mercadorias continuariam sendo produzidas em

    grande escala com mtodos industriais, mas seriam vistas e avaliadas de

    forma distinta. Atualmente, as mercadorias so consideradas somente

    como bens de consumo que alimentam as necessidades criadas por seus

    inventores. Dentro desta segunda opo, as mercadorias se valorizariam

    por ser matrias bsicas ou ferramentas que permitem s pessoasgerarem valores de uso para manter a subsistncia de suas comunidades

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

    18/89

    respectivas. Mas esta opo depende, certamente, de uma revoluo

    copernicana em nossa percepo de valores. Hoje, os bens de consumo e os

    servios profissionais constituem o centro de nosso sistema econmico e os

    especialistas relacionam nossas necessidades exclusivamente com esse centro.A inverso social que consideramos aqui colocaria no centro de nosso sistema

    econmico os valores de uso criados pelo prprio indivduo. E certo que a

    discriminao mundial contra os autodidatas viciou a confiana de muitas

    pessoas na definio de suas prprias metas e necessidades. Mas essa prpria

    discriminao deu or igem a uma minoria crescente que est enfurecida por

    esse despojamento insidioso.

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

    19/89

    2OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES

    Estas minorias vem j a ameaa que encerra para elas e para toda

    a vida cultural autctone os mega-instrumentos que expropriam

    sistematicamente as condies ambientais. Elas esto prontas para pr

    fim a uma Idade. Esto resolvidas a recuperar sua autonomia para fixar suas

    prprias metas, decididas a proteger o domnio sobre o prprio corpo, a

    memria e suas habilidades, determinadas a lutar contra a expropriao

    sistemtica do ambiente vital perpetrada pelo sistema industrial em expanso.

    Embora seja uma maioria que se encontra frustrada pelo transporte, poucos

    so os que esto decididos a opor-se a uma invaso ulterior de mais redes

    de estradas; se bem seja uma maioria que v seus sonhos e sua capacidade

    de sonhar destrudos pelo estrangulamento de seus ritmos vitais, so

    somente uns poucos aqueles que esto dispostos a pagar o preo necessrio

    para rechaar tal situao. Ainda que estejam em maioria o nmero de

    mulheres que vem seu equilbrio hormonal destrudo pela plulaanticoncepcional e uma maioria de empregados, os espaos de silncio

    interior contaminados pela msica ambiental, so somente uns poucos os

    que se organizam ativamente. Mas cada uma destas minorias representa

    uma categoria de pobreza modernizada que potencialmente se pode

    reconhecer como sendo a maioria. O industrialismo tardio justificou a

    organizao da sociedade como um conglomerado de mltiplas maiorias,

    todas estigmatizadas pelas burocracias provedores de servios; no obstante,no interior de cada uma destas maiorias se desenvolvem e crescem

    minorias ativas, que se combinam entre s i numa nova forma de

    dissidncia.

    Mas, para poder liquidar com uma Idade, ela deve ter um nome que

    pegue. Proponho que se d o nome de Idade das Profisses inabilitantes

    porque ela compromete a quantos a utilizam. Revela as funes anti-sociaisexercidas pelos fornecedores menos desafiados pelos educadores, pelos

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    mdicos, os assistentes sociais, os cientistas e outras belas pessoas.

    Simultaneamente instaura um processo contra a complacncia dos cidados

    que se submeteram, como clientes, a esta servido multifacetada. Falar

    do poder das profisses inabilitantes envergonha as vtimas e as leva reconhecer a conspirao do eterno estu dante, do caso ginecolgico ou do

    consumidor, com seus respectivos administradores. Ao descrever o

    decnio dos anos sessenta como o apogeu dos solucionadores de problemas,

    evidencia-se de imediato no s o orgulho de nossas elites acadmicas como

    tambm a credulidade gulosa de suas vtimas.

    Mas este enfoque nos fabricantes da imaginao social e nos valores

    culturais pretende, mais que expor e denunciar: ao designar os ltimos

    25 anos como a Idade das Profisses tirnicas, tambm estamos propondo

    uma estratgia. Indica-se a necessidade de ir mais alm na redistribuio

    planejada de mercadorias de refugo, irracionais e paralisantes, que so a marca

    do Profissionalismo radical. O que proponho vai obviamente muito mais alm da

    critica da prpr ia profisso, que veio ganhando forma, nos ltimos anos,

    tanto na Amrica do Norte e na Europa quanto em certos pases pobres, entre

    mdicos, advogados ou professores, que se autodefinem freqentemente

    como profissionais radicais. Esta estratgia exige nada menos que o

    desmascaramento do etos profissional. A f e a confiana no tcnico

    profissional, seja ele cientista, seja terapeuta ou executivo, constitui o

    calcanhar-de-aquiles do sistema industrial. Portanto, somente as iniciativas dos

    cidados e as tecnologias radicais que desafiem diretamente a dominao

    enervante das profisses inabilitantes podero abrir o caminho para aconquista da liberdade medi ante uma competio no hierrquica, baseada

    na comunidade. Invalidar o etos profissional tal como existe atualmente

    condio necessria para o surgimento de uma nova relao entre

    necessidades, ferramentas contemporneas e satisfao pessoal. O

    primeiro passo para alcanar essa invalidao libertadora que o cidado

    adote um postura cptica e condescendente diante do tcnico profissional. A

    reconstruo social comea pela dvida.

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    Cada vez que proponho a anlise do poder profissional, como a chave para

    a reconstruo da sociedade, pergunto se no um erro perigoso escolher

    este fenmeno como eixo da recuperao do sistema industrial. Por acaso as

    formas organizativas dos estabelecimentos educacionais, mdicos e deplanificao so outra coisa que o reflexo da distribuio do poder e do

    privilgio de uma elite capita lista? No ser irresponsvel minar a confiana

    que o homem da rua depositou em seu protetor preparado cientificamente,

    em seu mdico ou em seu economista, precisamente nos momentos em que

    os pobres precisam de protetores, precisam do acesso escola, s clni cas

    e aos tcnicos? No deveria processar o sistema industrial, denunciando com

    maior fora os Rockefellers e os Stalins? Por acaso no ser umaperversi dade denegrir aquele que adquiriu com tanto esforo o

    conhecimento necessrio para reconhecer e servir nossas necessidades de

    bem-estar, particularmente, se os denunciados provm da mesma

    classe que protegem? De fato, no se devia assinalar e escolher estes

    indivduos como os lderes mais aptos a cumprir as tarefas sociais j em

    marcha e para identificar as necessidades das pessoas?

    As argumentaes contidas nestas perguntas s apresentam uma defesa

    frentica dos privilgios por parte daquelas elites que, inclusive podendo

    perder em dividendos, na verdade conseguiriam certamente maior status e

    poder se se tornasse mais eqitativo o acesso a seus servios nesta nova

    forma de economia de mercado intensivo. Uma segunda srie de obje es

    que se suscitam diante da possibilidade de uma sociedade moderna centrada

    nos valores de uso ainda mais sria: surge da conscincia do papelcentral que a segurana nacional adquiriu. Esta objeo particulariza, como

    ponto central da anlise, os conglomerados da defesa, que aparentemente se

    encontram no centro de toda sociedade burocrtico-industrial. O argumento

    exposto postula que as foras de segurana so o motor que est por trs da

    regulamentao contempornea universal no que diz respei to disciplina

    que depende do mercado. Identifica como principais fabricantes de

    necessidades as burocracias armadas que nasceram quando, sob Lus XIV,Richelieu estabeleceu a primeira polcia profissional, ou seja, agncias

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    profissionais que esto atualmente encarregadas de armamentos, da

    inteligncia e da propaganda. Desde Hiroxima, estes chamados

    servios tm s ido, parece, os que deter minam a pesquisa, o

    planejamento da produo e do emprego. Estes servios repousam sobre basescivis: como a escolaridade para a disciplina, o treinamento do consumidor para

    o desfrute do intil, o hbito s velocidades violentas, a engenharia mdica

    para a vida num refgio que abarca a terra e a dependncia padronizada dos

    temas da atualidade que dispensam policiais benvolos da cultura. Esta linha de

    pensamento v na segurana do estado o gerador dos padres de produo

    da sociedade e pensa que a economia civil , em grande parte, um resultado

    ou um pr-requisito do militar.

    Se fosse vlida uma argumentao construda em torno desta noo, teria

    uma sociedade deste tipo a possibilidade de renunciar ao poder atmico,

    mesmo sabendo quo venenoso, tirnico ou contraprodutivo pode resultar o

    excesso de energia ulterior? Como esperar que um estado conduzido

    pel a sua def esa tolerasse a organizao de grupos de cidados descontentes

    que desconectam suas vizinhanas do consumo para proclamar a liberdade de

    produzir em pequena e intensiva escala valores de uso, liberdade dada

    numa atmosfera de austeridade prazenteira e satisfatria? No teria uma

    sociedade militarizada que mover-se de pronto contra os desertores de

    necessidades, qualific-los de traidores e, se fosse possvel, exp-los no s ao

    desprezo mas tambm ao ridculo? No teria uma sociedade conduzida pela

    defesa que suprimir aqueles exemplos que levariam a uma modernidade no

    violenta, nestes instantes em que a poltica pblica exige uma descentralizaoda produo de mercadorias (que lembra Mao) e um consumo mais racional,

    eqitativo e supervisionado profissionalmente?

    Esta argumentao confere um crdito indevido ao militar como fonte da

    violncia num estado industrial. Devemos denunciar como uma ilus o a

    presuno de que as exigncias militares so culpadas da agressividade e

    destrutividade da sociedade industrial avan ada. Sem dvida, se fosse

    verdad e que os militares usurparam de algum modo o sistema industrial,

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    que de algum modo se desviaram do controle civil, as numerosas esferas de

    esforo e ao social, ento o presente estado da poltica militarizada teria

    alcanado um nvel irreversvel; pelo menos impossvel para uma reforma

    civil. Esta , de fato, a argumentao que os lderes militares do Brasilesgrimem, os quais vem nas foras armadas os nicos tutores legtimos da

    busca pacfica da industrializao durante o resto deste sculo.

    Mas isto simplesmente no assim. O estado industrial tardio no um

    produto do exrcito. O exrcito constitui mais um dos sintomas de sua

    orientao f irme e totalizadora. certo que o presente modo de

    organizao industrial pode ter seus antecedentes militares mais remotos em

    tempos napoleni cos. certo que a educao obrigatria dos meninos

    camponeses, em 1830, a ateno universal da sade para o proletariado

    industrial, em 1850, as crescentes redes de comunicao, tal como a maior

    parte das formas de padronizao industrial, foram estratgias introduzidas na

    sociedade, em primeiro lugar, como exigncias militares, e s mais tarde se

    entenderam como formas dignas de progresso pacfico, civil. Mas o fato de os

    sistemas de sade, de educao e de bem-estar necessitarem de uma lgica

    militar para ser promulgados como leis, no significa que no tivessem

    consistncia com o impulso industrial bsico que, de fato, nunca foi

    no-violento, pacfico ou respeitador das pessoas.

    Hoje em dia mais fcil ter esta viso. Primeiro, porque desde o Polris,

    j no possvel distinguir entre exrcitos de tempos de paz e de

    guerra, e, segundo, porque desde a guerra contra a pobreza, a paz est

    em p de guerra. Atualmente, as sociedades industriais esto constante e

    totalmente mobilizadas; esto organizadas para constantes emergncias

    pblicas; so bombardeadas com estratgias variadas em todos os setores;

    os campos de batalha da sade, da educao, do bem-estar e da igualdade

    positiva esto semeados de vtimas e cobertos de runas; as liberdades dos

    cidados se suspendem continuamente para lanar campanhas contra

    males sempre redes cobertos; cada ano descobrem-se novos habitantes

    fronteirios que devem ser protegidos ou recuperados de alguns novos

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    mal-estares, de alguma ignorncia previamente desconhecida. As necessidades

    bsicas formuladas e imputadas por todas as agncias profissionais so

    necessidades para a defesa contra males.

    Os professores e cientistas sociais que hoje procuram culpar os militares

    pela destrutividade das sociedades mercantilizadas intensamente so gente

    que tenta deter, de forma bastante torpe, a eroso de sua prpria

    legitimidade. Alegam que os militares levam o sistema industrial a este

    estado frustrador e destrutivo, e distraem, desta maneira, a ateno da

    natureza profundamente destruidora de uma sociedade de mercado

    intensivo que leva seus cidados s guerras de hoje. A quantos procuram

    proteger a autonomia profissional como uma vtima do estado militarizado, se

    responder com uma simples alternativa: a direo que os cidados livres

    devem seguir a fim de superar a crise mundial.

    a) Rumo ao fim de uma poca

    Para o senso comum, so cada vez mais evidentes as iluses que

    levaram a instituir as prprias profisses como rbitro das necessidades

    cada vez mais evidentes. Freqentemente, a gente v j o que realmente so

    os procedimentos no setor de servios por exemplo, os das companhias de

    seguros, ou os rituais que ocultam aos olhos do emaranhado formado pelo

    provedor-consumidor a posio existente entre o ideal em honra do qual se

    rende o servio e a realidade engendrada por este servio. As escolas

    que prometem a mesma ilustrao para todos geram uma meritocracia

    degradante e uma dependncia permanente de uma tutoria cada vez maior.Os veculos compelem todos a irem cada vez mais longe e a correrem mais.

    Mas o pblico ainda no tem claras as possibilidades de escolha. Os projetos

    patrocinados pelos lderes profissionais poderiam desembocar no surgimento

    de credos polticos compulsivos (com suas verses que acompanham um novo

    tipo de fascismo), ou ento as experincias que os cidados

    empreendessem poderiam desfazer nossa hybris como se fosse outra coleo

    histrica de loucuras, se bem neoprometeicas, embora essencialmenteefmeras. Uma opo informada requer que examinemos o rol especfico

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    das profisses para determinar quem nesta Idade obtm que coisa e por qu.

    Para ver o presente com clareza, imaginemos as crianas que logo

    brincaro entre as runas das escolas secundrias, dos Hiltons e dos hospitais.

    Nestes castelos profissionais convertidos em catedrais, construdos para

    proteger-nos da ignorncia, contra o desconforto, a dor e a morte, os meninos

    de amanh representaro de novo nas suas brincadeiras as desiluses de

    nossa Idade das Profisses, tal como ns reconstitumos as cruzadas dos

    cavaleiros contra o pecado e os turcos, na Idade da F, em antigos

    castelos e catedrais. Em seus brinquedos, as crianas asso-ciaro o grasnido

    universal que contamina hoje nossa linguagem com os arcasmos herdados dos

    grandes gngsters e dos caubis. Imagino-os chamando-se uns aos outros de

    Senhor Presidente da Assemblia ou Senhor Secretrio, em vez de

    Chefe ou Xerife.

    Recordaremos a Idade das Profisses como aque le tempo em que a

    poltica entrava em decomposio quando os cidados, guiados por

    professores, confia vam a tecnocratas o poder de legislar sobre suas

    necessidades, a autoridade de decidir sobre quem necessitava de tal coisa e o

    monoplio dos meios que satisfaziam estas necessidades. Lembraremos como a

    Idade da Escolarizao os tempos em que se treina vam as pessoas durante

    um tero da vida para que acumulassem necessidades prescritas, para durante

    os dois teros restantes passarem a ser clientes de prestigiosos traficantes que

    dirigiam seus hbitos. Recordaremos a Idade das Profisses como aquela na

    qual as viagens de recreio significavam o olhar fixo e formal para os

    estranhos e na qual a intimidade era um requentado programa de

    televiso da noite anterior, e votar era dar sua aprovao a um vendedor

    s para alcanar mais dele.

    Os estudantes do futuro se sentiro to confundidos pelas supostas

    diferenas entre as instituies profissionais capitalistas e as socialistas, como

    se sentem os estudantes de hoje com as pretendidas diferenas entre as

    ltimas seitas crists reformadas. Descobriro tambm que os bibliotecrios

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    profissionais, os cirurgies, os desenhistas de supermercados nos pases

    pobres ou nos pases socialistas, em fins de cada decnio, terminam com os

    mesmos registros, utilizando os mesmos instrumentos e construindo os

    mesmos espaos que seus colegas dos pases ricos tinham introduzido nosincios da dcada. Os arquelogos no fixaro os perodos de nossa Idade

    de acordo com os restos de cermica encontrados nas escavaes, e sim com

    as modas profissionais refletidas nas tendncias das publicaes das

    Naes Unidas.

    Seria pretensioso predizer se esta Idade, na qual as necessidades se

    projetam profissionalmente e de antemo, ser lembrada com um sorriso ou

    uma maldio. Naturalmente, espero que se lembrar da noite em que o pai

    saiu para a pndega, malbaratou a fortuna da famlia e obrigou os filhos a

    comearem do nada. Desgraadamente, muito mais provvel que esta

    Idade seja lembrada como os tempos em que toda uma gerao se lanou

    numa busca frentica de riqueza empobrecedora, permitindo a alienao

    de todas as liberdades, e que depois de ter posto a poltica merc das

    garras organizadoras dos receptadores de bem-estar, deixou que se extinguisse

    num totalitarismo tcnico.

    b) As profisses dominantes

    Enfrentemos primeiro o fato de que as associaes de especialistas que

    atualmente dominam a fabricao, a adjudicao e a satisfao de

    necessidades formam um novo tipo de cartel. E importante tambm saber

    reconhecer as novas caractersticas essenciais do profissional no industrialismotardio. Se no se reconhecerem, ocorrer inevitavelmente, no momento da

    discusso, o novo biocrata se ocultar por trs da mscara benvola do

    mdico da famlia de antanho; o novo pedocrata, em seus esforos para

    modificar comportamentos, tomar a forma do inocente mestre de

    Kindergarten, que faz umas experi ncias interessantes, e a luta que

    travemos contra o novo selecionador de pessoal, armado de todo um

    arsenal psicolgico para a degradao, ser levada a cabo ineludivelmentecom as antigas tticas desenvolvidas para defender-se contra o capataz da

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    fbrica. Se devssemos batizar a estes novos profissionais, eles

    mereceriam ser chamados de algum termo diferente, que ainda no temos.

    As novas profisses se encontram entrincheiradas muito mais profundamente

    que uma burocracia bizantina. So mais internacio nais que uma igrejauniversal, mais estveis que um sindicato, dotadas de maiores capacidades

    que qualquer xam e exercem um domnio mais forte que o de qualquer mfia

    sobre aqueles que desejam controlar.

    Entretanto, devemos distinguir cuidadosamente entre os novos especialistas

    organizados e os chantagistas mafiosos. Por exemplo: os educadores podem

    atualmente dizer sociedade o que deve aprender e podem desqualificar

    tudo que for aprendido fora da escola. De acordo com este tipo de

    monoplio, que lhes permite impedir que voc faa suas compras em qualquer

    outro lugar ou que voc fabrique seu prprio licor, pareceria primeira vista

    que lhes quadra a definio que o dicionrio d palavra gngster. Mas os

    gngsters acuam uma necessidade bsica, ao controlar os acontecimentos

    em proveito prprio. Atualmente os mdicos e os assistentes sociais

    como antes os sacerdotes e advogados ganham um poder legal de criar

    necessidades que, de acordo com a lei, somente eles podem satisfazer.

    Convertem o estado moderno numa corporao que abarca outras

    empresas, as quais, por sua vez, facilitam o exerccio de suas capacidades,

    garantidas pelas mesmas empresas.

    O controle legalizado sobre o trabalho tomou muitas formas distintas:

    os soldados ocasionais recusavam lutar enquanto no tivessem licena para

    saquear. Lisstrata organizou as mulheres submetidas para, pelo

    refreamento do sexo, obrigar os seus homens paz. Os doutores de

    Cos se juramentaram para divulgar somente aos filhos os segredos do

    oficio. Foram as corporaes que estabeleceram os currculos, as oraes, os

    exames, as peregrinaes e as provas por que teve de passar Hans Sachs

    antes que lhe permitissem calar seus vizinhos do burgo. Nos pases

    capitalistas, os sindicatos procuram controlar quem h de trabalhar,

    durante quantas horas e qual o salrio a perceber. Todas estas associaes

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    representam os esforos que os especialistas fazem para determinar

    como e por quem dever ser feito certo tipo de trabalho. Mas nenhum

    destes grupos constitui uma profisso em sentido estrito. As profisses

    tirnicas de hoje, das quais constituem um bom exemplo os mdicos oexemplo, literalmente, mais doloroso vo muito mais longe: eles decidem

    sobre o que que se deve fabricar , por quem e como se deve

    administrar. Elas proclamam um conhecimento especial, incomunicvel, no

    somente sobre o que as coisas so e como devem ser feitas como

    tambm sobre a razo por que se deve necessitar de seus servios. Os

    comerciantes vendem os artigos que armazenam. Os homens do grmio

    garantem a qualidade. Alguns artesos confeccionam o artigo de acordo comas medidas e os desejos do cliente. Os profissionais dizem a voc o que

    que voc precisa. Reclamam para si o poder de receitar. No s

    recomendam o que bom, como tambm decretam o que correto. A

    caracterstica do profissional no nem o lucro, nem uma longa preparao,

    nem as tarefas delicadas, nem a condio social. Seus rendimentos podem ser

    baixos ou consumidos pelos impostos, sua preparao pode demorar

    semanas em vez de anos. Seu status pode ser comparado ao da profissomais antiga da Histria. Melhor: a autoridade que o profissional tem para

    tomar a iniciativa de definir uma pessoa como cliente, para determinar as

    necessidades dessa pessoa e para entregar a essa pessoa uma receita

    que a defina neste novo rol social. Ao contrrio das prostitutas de antanho, o

    profissional moderno no aquele que vende o que os outros do grtis,

    principalmente aquele que decide o que se deve vender e no se deve

    entregar gratuitamente.

    Existe outra diferena entre o poder profissional e o de outras

    ocupaes. Este poder provm de fontes distintas. Uma corporao,

    um sindicato ou uma mfia obrigam a respeitar seus interesses e direitos

    por meio das greves, do suborno ou da violncia aberta. Uma profisso, tal

    como um clero, exerce o poder cedido pela elite, cujos interesses apia.

    Tal como um clero oferece o caminho da salvao seguindo os passos de umsoberano ungido, uma profisso interpreta, protege e administra um interesse

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    especial e deste mundo aos sditos de uma sociedade moderna. O poder

    profissional uma forma especial que o privilgio assume para receitar o que

    correto para os d emais e que, portanto, precisam d isso. E st e poder

    a fonte de status e de mando na Idade industrial tardia. Este tipo de poderprofissional s pode existir nas sociedades em que pertencer elite se

    consegue e legit ima por meio do status profissional. Isso cai

    perfeitamente bem Idade em que, at o acesso ao Parlamento, ou

    seja, Cmara dos Comuns, se encontra, de fato, rest rito a quantos

    obtiveram o ttulo de mestre que abona seu patrimnio de conhecimentos

    armazenados, ministrados na universidade. A autonomia e a licena profissonal

    para definir as necessidades da sociedade so a forma lgica que aoligarquia adota numa cultura poltica que substitui as antigas formas de

    credibilidade por certificados de stocks de conhecimentos entregues pelas

    universidades. O poder que as profisses tm sobre o trabalho que seus

    membros realizam diferente, portanto, no so mente quanto a sua

    exte ns o como tambm quanto a sua origem.

    c) As profisses tirnicasO mdico ambulante se converteu em doutor em medicina quando deixou o

    comrcio dos medicamentos aos farmacuticos e reservou para si a

    faculdade de receitar. Nesse momento, ganhou uma nova forma de

    autoridade, juntando trs papis num s personagem. A autenticidade

    sapiente para aconselhar, instruir e dirigir; a autoridade moral que faz sua

    aceitao no s til mas obrigatria; e a autoridade carismtica que permite

    ao mdico apelar a certo interesse supremo de seus clientes, que no sest por cima de sua conscincia, como, s vezes, at por cima da razo

    de estado. Naturalmente, este tipo de doutor ainda existe, mas dentro do

    sistema mdico moderno uma figura do passado. Atualmente bastante

    mais comum um novo tipo de cientista da sade aplicada. Cada vez mais se

    ocupa de casos e no de pessoas; ocupa-se dos desvios que detecta no

    caso, mais do que da dor que aflige o indivduo; protege o interesse da

    sociedade mais do que o inter esse da pessoa. Os tipos de autoridade que se

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    acumularam na imagem do doutor dos velhos tempos, durante os anos de

    liberalismo, e que colaboravam com o facultativo individual no tratamento do

    paciente, so desempenhados atualmente pela corporao profissional a servio

    do Estado. E a esta instituio que se atribui hoje uma misso social.

    Nos ltimos vinte e cinco anos, a medicina se converteu, de uma profisso

    liberal, numa profisso dominante ao adquirir o poder de indicar o que

    constitui uma necessidade de sade para o po vo em ge ra l. Os

    especialistas da sade, enquanto corpora o, adquiriram a autoridade para

    determinar que tipo de ateno mdica se deve ministrar sociedade em

    geral. J no um indivduo profissional o que atribui uma necessidade a

    outro indivduo como cliente, e sim uma agncia corporativa que atribui uma

    necessidade a camadas inteiras da populao e que, depois, se arroga o

    mandato de submeter prova a popula o inteira a fim de identificar

    aqueles que pertencem ao grupo dos clientes potenciais. E o que acontece na

    esfera do atendimento mdico totalmente coerente com o que acontece

    em outros domnios. Cada dia, uma nova seita se atribui uma nova misso

    teraputica e esta misso ganha legitimidade pblica. Obviamente, os

    educadores conquistaram o poder de diagnosticar e ministrar terapias do

    comportamento, como tambm os trabalhadores sociais, os policiais e os

    arquitetos, tal como os mdicos, que gozam de ampla autoridade para criar

    instrumentos de diagnstico que util izam para caar o cliente,

    instrumentos que o pblico j no ousa checar. Dezenas de fabricantes

    de outras necessidades procuram imit-los. Os banqueiros internacionais

    se atribuem o poder de diag nosticar as necessidades chilenas, sob Allende ou baixo Pinochet, e de definir as condies sem as quais no

    ministraro as terapias. Os especialistas da segurana avaliam o risco que

    vrios tipos de cidados representam e se atribuem a competncia de

    invadir o seu ambiente privado. J no h jeito de parar a escalada de

    necessidades se no se expem de forma poltica aquelas iluses que

    legitimam a tirania profissional. Muitas profisses se encontram to

    firmemente estabelecidas que no s exercem tutoria sobre o cidado-feito-cliente como tambm do forma a seu mundo-convertido-em-custo/dia.

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    A linguagem em que se percebe a si mesmo, sua percepo dos direitos

    e liberdades, e sua conscincia das necessidades, derivam da hegemonia

    profissional. A diferena existente entre o arteso, o profissional liberal e o

    novo tecnocrata pode tornar-se clara se enfatizamos suas tpicas reaes ante agente que desprezava seus respectivos conselhos. Se algum desprezava o

    conselho do arteso, era um louco. Se algum desprezava o conselho liberal,

    era condenado pela sociedade. Se algum escapa atualmente da ateno

    que o cirurgio ou o psiquiatra decidiram aplicar-lhe, o governo ou a

    profisso mesmo podem ser inculpadas.

    De arteso-mercador ou conselheiro culto, o profissional se transformou

    num cruzado filantropo que sabe como se deve alimentar as crianas, que

    alunos devem continuar os estudos mais avanados e que remdios a pessoa

    no deve tomar. De tutor que observava enquanto algum decorava a

    lio, o mestre-escola se transformou num educador cuja cruzada

    moralizadora lhe confere ttulo para intrometer-se entre algum e

    qualquer coisa que deseje aprender. At os empregados do canil de Chicago

    se transformaram em tcnicos de controle canino. Como resultado dessa

    mudana, o custo para eliminar um ca chorro se elevou em vinte anos de

    $7.50 para $320.00 dlares. Entretanto, 5.4% de todas as leses tratadas

    no hospital Cook County o maior do mundo so mordidas do melhor

    amigo do homem.

    Os profissionais exigem um monoplio sobre a definio de desvio de

    conduta e sobre suas solues. Por exemplo: os advogados afirmam que

    somente eles tm competncia e direito legal para dar assistncia num

    divrcio. Se algum descobre um mtodo para um divrcio faa voc

    mesmo, vai se meter numa dupla complicao: se no for advogado,

    expe-se acusao de prat icar sem l icena; se membro de um

    escritrio de advocacia , p ode ser expulso por falta de tica profissional.

    Os profissionais proclamam tambm um saber oculto sobre a natureza

    humana e suas fraquezas, saber que s eles podem aplicar com

    vantagem. Os coveiros, por exemplo, no se transformaram em

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    mem bro s de uma profisso por passarem a chamar-se empresrios de

    pompas fnebres, nem por obter diplomas escolares, nem por aumentarem

    os lucros, ou por se libertarem do odor que acompanha seu negcio quando

    um deles se elege presidente do Lions Club. Mas os empregados de pompasfnebres formam uma profisso, dominante e inabilitante, a partir do

    momento em que tm fora para conseguir que a polcia impea o teuenterro

    se no tiveres sido embalsamado e encaixota-'do por eles. Em qualquer

    campo em que se possa imaginar uma necessidade humana, estes novos

    profissionais inabilitantes proclamam ser os especialistas exclusivos do bem

    pblico.

    d) As profisses estabelecidas

    A transformao de uma profisso liberal em dominante equivalente ao

    estabelecimento legal de uma igreja de estado. Os mdicos transformados em

    biocratas, os professores em gnoseocratas, os agentes funerrios em

    tanatocratas algo que est muito mais prximo das clerezias subsidiadas

    pelo Estado do que as associaces comerciais. O profissional, como mes tre da

    linha de moda da ortodoxia, atua como telogo. Como empresrio moral,atua no papel do sacerdote: com sua atuao, cria a necessidade para sua

    mediao. Como cruzado benefactor, atua no papel de missionrio

    caa de ovelhas transviadas. Como inquisidor, pe fora da lei o no -

    ortodoxo: impe suas solues ao recalcitrante que recusa reconhecer-se como

    problema. Esta investidura multifacetada, combinada com a tarefa de aliviar os

    inconvenientes especficos da condio humana, faz que cada profisso seja

    anloga a um culto estabelecido. A aceitao pblica das profissestirnicas essencialmente um fato poltico. Toda afirmao nova de

    legitimidade profissional significa que as tarefas polticas de legislar, a reviso

    judicial de casos e o poder executivo perdem algo de sua independncia e de

    suas caracteristicas prprias. Os assuntos pblicos passam das mos de

    leigos escolhidos por seus semelhantes s de uma elite que se outorga seus

    prprios crditos.

    Quando a medicina sobrepujou recentemente suas limitaes liberais,

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    invadiu o campo legislativo e estabeleceu normas pblicas. Os mdicos sempre

    tinham determinado em que as enfermidades consistiam; atualmente a

    medicina determina quais so as enfermidades que a sociedade no tolerar. A

    medicina invadiu as cortes de justia. Os mdicos sempre ti nhamdiagnosticado quem era o enfermo; atualmente porm a medicina resolve sobre

    os que merecem tratamento. Os mdicos liberais prescreviam um

    tratamento: a medicina dominante tem poderes pblicos de retificao;

    ela decide o que teremos de fazer com o doente.

    Numa democracia, o poder de legislar, de aplicar as leis e de fazer justia

    deve derivar dos prprios cidados. Este controle do cidado sobre os

    poderes chaves foi restringido, enfraquecido e at abolido pela ascenso de

    profisses clericais. Um governo que dita suas leis de acordo com as

    opinies tcnicas de tais profisses pode ser um governo para o indivduo

    mas nunca do indivduo. Este no o momento de pesquisar quais foram as

    intenes para enfraquecer assim o poder politico, se a tirania profissional

    legitimou a sua invaso do poder legislativo por estar a servio da classe

    mdia, de quantos ganharam o poder com o suor do rosto, da

    multinacional ou da tentativa de estabelecer o socialismo, ou se

    respondendo indagao de a cada um segundo seu trabalho ou a

    cada qual segundo suas necessidades. Como condio necessria para tal

    subverso, basta indicar a desqualificao da opinio do vulgo p or parte

    dos profissionais.

    As liberdades civis se fundam na norma que exclui todo testemunho

    de ouvido das declaraes em que se baseiam as decises pblicas. O que a

    pessoa pode ver por si mesma e interpretar deveria ser a base comum

    para estabelecer normas obrigatrias. As opinies, as crenas, as dedues ou

    persuases no deveriam ser levadas em conta quando entram em conflito com

    testemunhos oculares: invertendo esta norma, as elites de tcnicos

    poderiam converter-se em profisses dominantes. Nos aparelhos legislativos

    e nas cortes de justia, descartou -se, de fato, o regulamento contra a

    evidncia que antes proporcionava testemunhos orais e oculares e se

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    substituiu pelas opinies proferidas pelos membros destas elites que se

    auto-abonam.

    Mas seria arriscado confundir o uso pblico de conhecimentos tcnicos

    com o juzo normativo entregue ao exerccio corporativo de uma profisso.

    Quando a corte de justia citava um perito artesanal por exemplo, um

    fabricante de armas para que revelasse ao jri os se gredos de seu

    ofcio, nesse mesmo lugar ele poderia instruir o jurado sobre sua arte.

    Apontava, numa demonstrao prtica, a parte do carregador do revlver de

    onde a bala tinha part i do. Hoje, a maioria dos tcnicos desempenha papel

    diferente. O profissional dominante leva ao jri ou aos legisladores a

    opinio dos colegas, todos iniciados na matria, em vez de apresentar

    evidncia baseada em fatos e em alguma destreza. Atua como telogo a

    servio da corte. Exige que se suspenda o regulamento dos testemunhos

    de ouvido, e solapa inevitavelmente o poder da lei. Deste modo, o poder

    democrtico se enfraquece cada vez mais.

    e) A hegemonia das necessidades imputadas

    Se no fosse por estar o indivduo pronto a considerar como carncia o

    que os tcnicos lanam em sua conta como necessidade, as profisses no

    teriam podido chegar a tornar-se dominantes e inabilitantes.

    A dependncia entre uns e outros (como tutores e alunos) se tornou

    resistente anlise porque se acha obscurecida por uma linguagem

    degenerada. As boas palavras de antigamente se transformaram em ferros

    em brasa que reclamam o controle dos tcnicos sobre o lar, a loja, o

    comrcio e o espao e sobre tudo o que ocorre nesse meio. A linguagem,

    o bem comum mais fundamental, se acha contaminada assim por esses

    fiapos de gria retorcidos, pegajosos, cada um sujeito ao controle de uma

    prof isso. O empobrecimento das palavras, o esgotamento da

    linguagem cotidiana e sua degenerao em terminologia burocrtica

    equivalem, de maneira mais intimamente degradante, de gradao

    ambiental to discutida. No se pode propor mudanas possveis nos

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    planos, nas atitudes e nas leis se no nos fazemos mais sensveis ao

    repdio destes nomes errneos que s ocultam a dominao. Quando

    aprendi a falar, falava-se de problemas somente nas matemticas ou no

    xadrez, de solues s quando eram salinas ou jurdicas, e necessitarse conjugava, mas quase no se usava como substantivo. As expresses

    tenho um problema ou tenho uma necessidade soavam loucas.

    Quando cheguei adolescncia, e Hitler buscava solues, tambm se

    estendeu o problema social. Descobriram-se meninos problemas com

    matizes sempre novos, entre os pobres, medida que os trabalhadores sociais

    aprendiam a catalogar suas vtimas e a padronizar suas necessidades. A

    necessidade, usada como substantivo, chegou a ser a forragem queengordou as profisses at a tirania. Assim se modernizou a pobreza. Os

    novos termos transformaram uma experincia pessoal e comunitria em

    assunto de tcnicas: os pobres se fizeram necessitados.

    Durante a segunda metade de minha vida ser necessitado chegou a

    constituir algo respeitvel. As necessidades, computveis e imputveis,

    promoviam na escala social. Ter necessidades deixou de ser um sinal de

    pobreza. O rendim ento econmico abru novos registros de necessidades.

    Spok, Comfort e os divulgadores de Nader treinaram os leigos na compra de

    solues dos problemas que tinham aprendido a cozinh ar de acordo com

    receitas profissionais. A educao qualificou os diplomados para subirem

    a alturas cada vez mais raras e plantar e cultivar ali cepas sempre novas

    de necessidades hbridas.

    Cada vez mais, um nmero crescente de medicamentos teve que ser

    adquirido com receita autorizada. Aumentou a prescrio e diminuiu a

    competio. Por exemplo, na medicina, recetaram -se cada vez mais

    remdios farmacologicamente ativos e as pessoas perderam a vontade e a

    habilidade de enfrentar uma indisposio ou um mal-estar. Cerca de mil e

    quinhentos produtos novos aparecem cada ano nas prateleiras dos

    supermercados norte-americanos: depois de um ano s 20%

    sobrev ivem. O resto se retirou aps algum tempo, tendo servido aos

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    vendedores como gancho, seja para experncias, ou por terem sido moda

    efmera, ou por se terem revelado perigosos para o consumidor,

    antieconmicos para o produtor ou por no terem resistido competio.

    Cada vez mais, os consumidores se vem forados a procurar ajuda dosprotetores profissionais do consumidor.

    Alm do mais, a substituio constante dos produtos faz que os desejos

    se tornem superfcias e plsticos. Embora soe paradoxal, o resultado que

    o consumo elevado segue a par de uma nova forma de indiferena de parte do

    consumidor: quanto maior for o nmero, o volume e a especificidade das

    necessidades que se lhes atribui profissionalmente, m aior se torna a

    indiferena para satisfazer seus prprios desejos, que j no sabe especificar.

    Cada vez mais, as necessidades se criam por slogans comerciais, as compras

    se fazem por ordens do decano universit rio, ou das especialistas em

    beleza, ou do gineclogo, do diet ista e de dezenas de outros

    diagnosticadores com poder de receitar. O resultado lgico que os

    quiromantes e os astrlogos nunca tenham experi mentado tanta

    prosperidade quanto hoje. Uma atri buio desse tipo parece quase razovel

    numa cul tura em que a ao prpr ia no o resu ltado de uma

    experincia pessoal em busca de uma satisfao, e em que o consumidor

    conseqentemente adaptado substitui as necessidades sentidas pelas

    aprendidas. A medida que a pessoa se torna tcnica na arte de

    apren der a necessitar, chega a ser cada vez mais remota a capacidade

    de aprender a moldar os desejos de acordo com a experincia. A

    medida que as necessidades se partem em pedacinhos cada vez maispequenos, cada um ministrado pelo especialista apropriado, o consumidor

    sente dificuldade de integrar num todo significante que se pudesse

    desejar com empenho e possuir com gosto as ofertas que em separado lhe

    fazem seus distintos tutores. Os administradores de empresa, os conselheiros

    do estilo de vida, os assessores acadmicos, os especialistas em dieta de

    moda, os desenvolvedores da sensibilidade e outros semelhados, percebem

    claramente as novas possibilidades de controle e se mobilizam paraequiparar os bens enlatados com estas necessidades interesseiras.

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    Necessidade, empregado como substantivo, a reproduo individual de

    um modelo profissional; a rplica em isopor do molde no qual os profissionais

    marcam seus artigos; o molde publicitrio do favo de mel do qual se

    fabricam os consumidores. Ser ignorante ou no estar convencido dasprprias necessidades chegou a ser o ato de dissoluo social imperdovel. O

    bom cidado aquele que se atribui necessidades grampeadas umas s

    outras com tal convico que afoga qualquer desejo de procurar alternativas

    ou de renunciar a estas necessidades.

    Quando nasci, antes que Stalin, Hitler ou Roosevelt fossem conhecidos,

    s os ricos, hipocondracos e membros dos sindicatos poderosos falavam de

    necessidades de cuidados mdicos quando lhes subia a temperatura. Era uma

    necessidade questionvel, porque os doutores no podiam fazer muito mais

    do que a av tinha fe ito. Na medicina, a pr imeira mutao das

    necessidades chegou com a sulfa e os antibiticos. Quando o controle

    das infeces chegou a ser uma rotina simples e efetiva, cada vez mais

    remdios passaram para a lista das receitas. A anotao da papeleta

    mdica do enfermo passou a ser um mono plio do mdico. A pessoa que

    se sentia mal tinha que ir a uma clnica para ser etiquetada com o nome

    de uma enfermidade e poder assim ser declarada legitimamente membro da

    minoria dos chamados doen tes; ou seja: pessoas dispensadas do trabalho,

    necessitando de ajuda, colocadas sob ordens mdicas e obr igadas a ser

    curadas, a fim de voltar em a ser novamente teis. Em outras palavras:

    quando a tcnica farmacolgica teste e medicamentos chegou a ser to

    barata e predizvel que a gente poderia ter prescindido do mdico, osacerdcio mdico chamou em seu auxlio o brao secular.

    A segunda mutao que as necessidades mdicas experimentaram ocorreu

    quando o doente deixou de ser minoria. Atualmente, muito poucas pessoas

    se livram de estar sob ordens mdicas durante algum lapso de tempo.

    Tanto na Itlia, como nos Estados Unidos, na Frana ou na Blgica, um de

    cada dois cidados est sendo acompanhado simultaneamente por mais de

    trs profissionais da sade, que o tratam, aconselham-no ou simplesmente o

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    observam. O objeto desta ateno especializada , na maior parte dos

    casos, a condio dos dentes, do tero, das emoes, da presso sangunea

    ou dos nveis hormonais, que o prprio paciente no est percebendo. Os

    pacientes j no so minoria. Os que so minoria atualmente so os vriostipos de transviados que escapam de um modo ou de outro das

    diferentes listas de pacientes. Esta minoria est constituda pelos pobres, os

    camponeses, imigrantes recentes e vrios outros que, s vezes por

    vontade prpria, se converteram em desertores do sistema mdico. H

    somente vinte anos, constitua indcio de sade normal, que se presumia

    bom, poder passar sem mdico. A mesma condio de no-paciente se

    v hoje como indicadora de desamparo ou de dissidncia. At mesmo acondio de hipocondraco mudou. Para um profissional liberal, esta era a

    etiqueta aplicvel e algum que chegava batendo com a porta, ou seja,

    designao reservada ao doente imaginrio. Agora, os mdicos a utilizam

    para referir-se minoria que lhes escapa: hipocondracos so os sos

    imaginrios. Ser parte do sistema profissional, como cliente toda a vida, j

    no um est igma que separa o incapacitado do c idado comum.

    Vivemos hoje numa sociedade organizada para as maiorias transviadas epara seus guardies. Ser cliente ativo de muitos profissionais no permite

    ter um lugar bem definido no reino dos consumidores para os quais esta

    sociedade funciona. Deste modo, a transformao da medicina, de profisso

    liberal de consulta, em profisso dominante e inabilitante, aumentou

    incomensuravelmente o nmero de necessitados.

    Neste momento crtico, as necessidades imputadas experimentam suaterceira mutao. Esto-se fundindo no que os tcnicos chamam problema

    multi-disciplinar e que, portanto, requer uma soluo multi-profissional. Em

    primeiro lugar, a multiplicao das mercadorias, procurando cada uma delas

    converter-se numa exigncia para o homem moderno, conseguiu um

    treinamento eficaz do consumidor para necessitar quando lhe fosse ordenado

    que necessitasse. Depois, a fragmentao progressiva das necessidades em

    partes cada vez menores e mais desconectadas conseguiu que o clientedependesse do juzo profissional para poder combinar suas necessidades

  • 8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador

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    num todo que tivesse sentido. Um bom exemplo nos d a indstria automotriz.

    Em fins dos anos sessenta, o equipamento opcional que se necessitava

    para fazer desejvel um Ford comum havia aumentado enormemente. A

    maior parte desse equipamento era instalada na prpria cidade de Detroit,e o comprador que vivia em Plains ou em qualquer outra cidade somente

    tinha a possibilidade de escolher entre o conversvel que desejava, mas com

    os assentos verdes que ele detes tava, e o com assentos de pele de leopardo

    que ia alegrar a namorada, mas com teto comum. O consumidor, que j havia

    aprendido a depender da merca doria, agora tem que aprender a

    resignar-se que outros escolham por ele.

    Por fim, o cliente treina para que necessite de uma ajuda-de-equipe ao

    receber o que seus guardies consideram um tratamento satisfatrio. Os

    servios pessoais que fazem o consumidor sentir-se melhor ilustram este

    ponto. A abundncia teraputica esgotou o tempo de vida disponvel de

    muitas pessoas sobre as que os servios profissionais diagnosticaram

    necessitar ainda mais. A intensidade da economia de servios tornou

    cada vez mais insuficiente o tempo, de que se necessita para o consumo de

    tratamentos pedaggicos, mdicos ou sociais. A escassez de tempo pode

    converter -se muito cedo no maior obstculo para o consumo de

    servios receitados, amide financiados por organismos pblicos.

    Sintomas desta escassez vo-se tornando evidentes desde os primeiros

    anos de qualquer pessoa. Desde o jardim da infncia, a criana est sujeita ao

    controle de uma equipe constituda de especialistas, como o alergista, o

    patologista da linguagem, o pediatra, o psiclogo infantil, o trabalhador social,o instrutor de educao fsica e o professor. Ao formar uma equipe

    pedocrtica (de poder sobre a criana) de tal tipo, muitos profissionais

    tentam compartir o tempo que se converteu no fator mais limitante da

    aplicao de novas necessidades. Para o adulto, no no colgio, mas no local

    de trabalho que se concentram os pacotes de servios. O chefe de pessoal,

    o tcnico em formao profissional, o instrutor de planto, o planificador de

    seguros, o animador de responsabilidades, conside ram proveitosocompartilhar o tempo do operrio que competir por ele. Um cidado sem

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    necessidades seria suspeitoso. Diz-se s pessoas que se precisa de seu

    trabalho no tanto pelo dinheiro que ganham como pela prestao de

    servios que obtm. As coisas comuns se extinguiram e foram substitudas

    por uma nova matriz, feita de condutos que fornecem servios profissionais. Avida se acha paralisada num permanente cuidado intensivo.

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    3COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES

    A inabilitao de cidados mediante a cominao profissional se completa

    por meio do poder da iluso. A religio deslocada, em ltima instncia, no

    pelo Estado, mas pelas esperanas postas nos profissio nais. Eles

    proclamam um conhecimento especial para definir os assuntos pblicos em

    termos de problemas. A aceitao desse clamor legitima o reconhecimento

    dcil por parte do leigo das carncias impostas, seu mundo se transforma em

    uma caixa de ressonncia de necessidades. Esta. dominao se reflete no perfil

    da cidade. Os edificios profissionais olham para as multides que formigam

    entre eles, em peregrinao contnua, rumo s novas catedrais da sade, da

    educao e do bem-estar. Os lugares sos se transformam em departamentos

    higinicos onde ningum pode nascer, adoecer ou morrer decentemente. No

    s os vizinhos serviais, mas tambm os mdicos liberais, que visitavam as

    casas, so espcies em extino. Os locais de trabalho adequados para a

    aprendizagem se con vertem agora em opacos labirintos de corredores quepermitem o acesso somente a funcionrios equipados com cartes de

    identificao. Os ambientes profissionais so o ltimo refgio dos dependentes

    de medicamentos.

    A adio prevalecente s necessidades imput veis por parte dos ricos e

    a fascinao paralisadora frente s necessidades por parte do pobre seriam

    completamente irreversveis se as pessoas e o clculo de necessidades

    fossem equiparveis. Mas no assim. Alm de certo nvel, a medicina

    engendra desamparo e enfermidade; a educao se converte no maior

    gerador de uma diviso inabilitante do trabalho; os sistemas de transporte

    veloz transformam as pessoas em passageiros durante 17% de suas horas

    te is e , por uma quantidade igual de tempo, em membros das

    quadrilhas de trabalhadores de estradas que trabalham para pagar o Ford, a

    Esso e o Departamento de Estradas. O nvel no qual a medicina, aed uca o ou o tra nsp ort e se co nv er tem em in str u mentos

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