IVE NOVAES LUNA A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DA MÚSICA...

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1 IVE NOVAES LUNA A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DA MÚSICA ESQUIZA Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito para a obtenção do grau de Doutora, na Linha de Pesquisa Teatro, Sociedade e Criação Cênica. Orientador: Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira FLORIANÓPOLIS 2015

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IVE NOVAES LUNA

A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DA MÚSICA ESQUIZA

Tese de doutorado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Teatro da

Universidade do Estado de Santa Catarina,

como requisito para a obtenção do grau de

Doutora, na Linha de Pesquisa Teatro,

Sociedade e Criação Cênica.

Orientador: Prof. Dr. André Luiz Antunes

Netto Carreira

FLORIANÓPOLIS

2015

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

N

935m

Luna, Ive Novaes

A maravilhosa expedição da música esquiza / Ive

Novaes Luna. - 2015.

250 p. il.; 21 cm

Orientadora: André Luiz Antunes Netto Carreira.

Bibliografia: p. 241-245

Tese (Doutorado) - Universidade do Estado de

Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-

Graduação em Teatro, Florianópolis, 2015.

1. Música. 2. Teatro. 3. Filosofia. I. Carreira,

André Luiz Antunes Netto. II. Universidade do Estado de

Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. IV.

Título.

CDD: 780 –

20.ed.

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IVE NOVAES LUNA

A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DA MÚSICA ESQUIZA

Tese apresentada ao Curso de Pós-graduação em Teatro, do

Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina,

como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em

Teatro.

Banca Examinadora

Orientador:__________________________________________

Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira - UDESC

Membros:

___________________________ ___________________________

Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici Prof. Dr Charles Feitosa

UNICAMP UNIRIO

____________________________ ___________________________

Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler Profª Dra Vera Collaço

UDESC UDESC

Florianópolis, 3 de junho 2015

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Para Clarissa Alcantara

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AGRADECIMENTO

A Clarissa, coorientadora clandestina e amorosa, mar aberto e

ventania, companheira atenta e a postos na barca desta escrita,

que somente com ela se fez, assim, possível.

A Iaci e Iara, amores de imensidão.

Às mãos dadas e ao passo a passo amoroso de Nádia e

Aristênio.

Aos colos, abraços, corres, broncas, socorros, carinhos, alegrias

e afetos de Ana Maria, Carina, Fernando, Iúri, Junão, Laetícia,

Marina, Oto, Sandra e Zé Rafael.

A Georgette Fadel e Lincoln Antonio, pelo caminho aberto e

pela arte que fazem: impulso primeiro dessa escrita.

Ao Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira.

Ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes

da Universidade do Estado de Santa Catarina.

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RESUMO

LUNA, Ive Novaes. A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DA

MÚSICA ESQUIZA. 2015. 167 f. Tese (Doutorado em Teatro,

na Linha de Pesquisa Teatro, Sociedade e Criação Cênica) –

Centro de Artes da Universidade Estadual de Santa Catarina,

Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2015.

A música e a cena teatral estão presentes nesta tese como

linhas movediças que, juntas, traçam caminhos imbricados em

torno do que denomino de música esquiza, e que tomo não

como um conceito que invento, mas como um modo de

funcionamento no encontro da música com a cena teatral. Para

esta composição, faço alianças com a filosofia de Gilles

Deleuze e Félix Guattari e com as falas de Stela do Patrocínio,

diagnosticada esquizofrênica, internada durante trinta anos em

um hospital psiquiátrico, no Rio de Janeiro. A partir dessa

aliança, vacilo em passadas que seguem em expedição pelos

termos devir-música, ritornelo e corpo sem órgãos; por uma

trans-história da música ocidental; e pelo espetáculo Entrevista

com Stela do Patrocínio, encenado pela atriz e diretora

Georgette Fadel e pelo músico e diretor musical Lincoln

Antonio, ambos paulistas. Ao longo dos trajetos, traço

contrapontos com as linhas que me levam a compor, decompor

e recompor uma partitura de tese, na qual a escrita lança pistas

que se desenham como pentagramas. Escolhi o método

cartográfico para traçar o mapa do fluxo dessa expedição, na

qual experimento a música como matéria autônoma expressiva

que se pode nomear música esquiza pela potência dos

encontros que faz com a cena teatral.

Palavras-chave: música; teatro; filosofia.

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RESUMÉE

LUNA, Ive Novaes. LA MERVEILLEUSE EXPEDITION DE

LA MUSIQUE ESQUIZA. 2015. 167 f. Thèse (Doctorat en

Théâtre. Ligne de recherche : Théâtre. Société et Création

Scénique) – Centre d’Arts de l’Université de l’État de Santa

Catarina, Programme de Postgrade en Théâtre, Florianópolis,

2015.

La musique et la scène théâtrale sont présentes dans cette thèse

à la manière de lignes mouvantes qui, ensemble, tracent des

chemins chevauchés autour de ce que je nomme musique

esquiza : non pas un concept que j’invente, mais un mode de

fonctionnement qui a lieu dans la rencontre de la musique et de

la scène théâtrale. Pour cette composition, je fais des alliances

avec la philosophie de Gilles Deleuze et Félix Guattari et avec

la parole de Stela do Patrocínio, diagnostiquée schizophrène et

renfermée pendant trente ans dans un hôpital psychiatrique au

Rio de Janeiro. À partir de cette alliance, je vacille en des pas

qui suivent en expédition à travers : les expressions devenir-

musique, ritournelle et corps sans organes ; une trans-histoire

de la musique occidentale ; et le spectacle Entretien avec Stela

do Patrocínio, mis en scène par l’actrice et directrice Georgette

Fadel et par le musicien et directeur musical Lincoln Antonio,

paulistas tous les deux. Au cours des trajets, je trace des

contrepoints avec les lignes qui m’amènent à composer,

décomposer et recomposer une partition de thèse, dans laquelle

l’écriture jette des indices qui se dessinent comme des

pentagrammes. J’ai choisi la méthode cartographique pour

tracer la mappe du flux de cette expédition, le long de laquelle

j’éprouve la musique en tant que matière expressive autonome,

musique qu’on peut nommer esquiza pour rendre compte de la

puissance de ses rencontres avec la scène théâtrale.

Mots-clé : musique ; théâtre ; philosophie.

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PENTAGRAMAS

Entradas e saídas_____________________________________15

Um sistema próprio de orientação________________________19

Pensamento que não sabe o que é pensar__________________ 21

Descompostura dos territórios___________________________24

Partitura de tese: rizoma e multiplicidade__________________27

32___________________________Diagrama da partitura de tese

34 ___________________Repetição de devires: diferença esquiza

36__________________________________Rasteio, toque, pouso

40_______________Passeio trans-histórico pela música ocidental

47___________________Dos nomoi fluídos aos modos centrados

Ritornelo: território ora, ora, ora, desterritorializável_________53

Máquina sonora na maquinaria cênica__________________ __60

Da cena polifônica à exegese da tonalidade em cena_______ __67

Atonalidade: multiplicidade esquiza em cena_____________ _ 72

Música e cena num presente sem espessura______________ __76

80______________A maravilhosa expedição do falatório de Stela

88__________________Falatório impresso: poesia além do muro

96__________O espetáculo “Entrevista com Stela do Patrocínio”

119__________________Música esquiza para além da Entrevista

122________________________Maquinária da e na cena teatral

O corpo sem órgão da música esquiza___________________136

Uma saída_________________________________________ 139

Outra saída________________________________________ 148

Esboços para uma partitura esquiza_____________________ 150

Entrevistas_________________________________________162

241______________________________Referência bibliográfica

Bibliografia consultada_______________________________245

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ENTRADAS E SAÍDAS

Adentro a pesquisa de tese com o desejo de compô-la a

partir de questionamentos que me fiz sobre a prática que

desenvolvo como cantora, compositora, maestrina, preparadora

vocal e diretora musical de espetáculos de teatro. Ainda que

cada um desses ofícios ganhe nomenclaturas diferentes, todos

eles fazem parte de uma mesma vivência com a matéria

musical propriamente dita. Matéria música. E como operar,

como compor os contrapontos em cada acontecimento no qual

esta matéria está presente?

A música e a cena teatral estão presentes nesta tese

como linhas movediças que, juntas, traçam caminhos,

imbricando-se, embaralhando-se, entrando por aqui e ali e, por

vezes, seguindo sozinhas para outros rumos. Comecei a estudar

música um pouco antes de estudar teatro e, desde então, música

e teatro caminham juntos na maior parte dos trabalhos que

faço. No teatro, experimentei pouco outro lugar que não fosse o

da música de cena. Neste território, transitei pelos ofícios de

cantora, instrumentista, compositora, diretora musical e

preparadora vocal e musical de atores. No entanto, agora, em

meio ao trajeto percorrido, inquieta-me não ter ficado satisfeita

em muitos dos trabalhos que fiz como compositora de música

de cena. Não se trata da qualidade das composições para cena,

como produto estético. Trata-se antes de seus funcionamentos

em cena. Nas composições que faço quando fora deste

território, geralmente deixo-me mais livre para os imprevistos

que a música vai trazendo durante sua feitura. Deixo que a

música tenha o tempo de compasso que queira, deixo que cada

frase tenha o tanto de compassos que lhe convenha, deixo que

as melodias brinquem com os intervalos, que modulem, que se

espalhem, e vou conhecendo-a pouco a pouco, até nascer.

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Geralmente não julgo. Aceito quando o que acontece durante a

composição resulta em uma novidade, ou em uma cançãozinha.

Faço cançõezinhas singelas, também. E também faço músicas

instrumentais bem ao gosto da tradição. Gosto de compor.

Então, brinco. E por que, então, quando componho para a cena,

o mesmo não acontece? Por que não componho com a mesma

liberdade grande parte das músicas que faço para a cena

teatral? E o que pode uma música neste território? Essas

questões não estavam escancaradas no início de meu trabalho

como musicista de cena, me vieram com o tempo, me vieram

quando percebi que alguma coisa se repetia impotente.

Comecei a perceber minha música, bonitinha, bem-feita, bem-

acabadinha, sem força expressiva nenhuma na cena. Comecei,

devagar, a ouvi-la melhor. E esta escuta me deixou atenta, e um

tanto acanhada. O último espetáculo que musiquei, não cheguei

a ir assistir. Mas, bem na altura do estômago, um movimento

acontecia. Assistindo alguns outros espetáculos, via que,

muitas vezes, o mesmo acontecia, musiquinhas. Eu já havia

pesquisado a música e a cena em trabalhos anteriores, mas

quando ainda estava surda para estas questões. Quando pensei

em fazer um doutorado, incialmente tive vontade de pesquisar

sobre a voz na cena teatral. Mas, ouvindo a precariedade

sonora que eu e outros músicos estávamos produzindo para o

teatro, decidi mudar meu tema, e encarar meu estômago. Aqui

estou, de entrada. Andei de cá para lá em minha pesquisa, até

me encontrar com a filosofia de Deleuze e Guattari, com o

devir-música e com o ritornelo. E passei a ouvi-los nas

músicas, nos sons dos dias, em minhas teimosias e caprichos, e

nas relações em que me ponho com os amores da vida. Começo

a experimentar aceitar meus ritornelos, ouvi-los bem, perceber

deles as formas e os motivos. É uma entrada. O início de uma

expedição que me oferece um novo pensamento.

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O primeiro impulso de uma escrita a respeito da música

de cena, deu-se no meu trabalho de conclusão de curso de

graduação em licenciatura em música, em 2000, quando

investiguei o coro trágico grego. Naquele momento imaginei

que entraria em contato com o primeiro encontro da música

com a cena. No entanto, no percurso da pesquisa, fui

entendendo que a tragédia, e, em consequência, o coro,

instituíam, na verdade, a separação entre elas, distinguindo os

seus códigos e criando duas linguagens: o coro trágico (a

música) e a cena (o texto trágico e cômico). Música e cena, no

teatro grego, passam a exercer funções distintas, em um mesmo

acontecimento; quando antes, nos rituais que antecederam a

tragédia, como os ditirambos, elas não se distinguiam em

função e mantinham suas matérias em composição: um som

equivalia a um gesto. Música e poesia. Música e texto. Música

e mimese. Entendi, durante a escrita daquele trabalho, que o

ritual foi se modificando na medida em que se estratificaram as

intensidades que o compunham.

Fiz minha segunda investigação e produção textual

sobre a música no acontecimento cênico durante a escrita de

minha dissertação de mestrado. Nela investiguei a prática

musical do Teatro Ventoforte, grupo paulista, dirigido pelo

artista plástico, ator e encenador argentino, Ilo Krugli, que

completa, neste ano de 2015, quarenta e um anos de existência.

Lançando o olhar sobre a prática cênica do Teatro Ventoforte

como festa e rito, discorri sobre a função simbólica da música

naquela cena como representação de uma memória, como um

signo de compartilha entre atores e público, por ambos se

reconhecerem parte do mesmo acontecimento. Cursei a escola

Casa de Teatro Ventoforte nos anos de 1991 e 1992, em São

Paulo, onde fiz uma passagem pelo elenco do grupo como

cantora no espetáculo O rio que vem de longe, escrito e

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dirigido por Ilo Krugli. Desde então, tenho trabalhado com

pesquisa, composição e execução musical para o teatro, e

percebo que atuar neste território exige compreender o ato

musical da cena, entender como a música atua na cena, com

que grau de potência, como se dão as variações dessa potência,

e como tal variação influi sobre a dimensão dramatúrgica.

Como este estudo de doutoramento poderia me ajudar a

perceber por onde, quando e com que potência, a música atua

na cena, devindo tal acontecimento? No decorrer de minhas

pesquisas empíricas na prática teatral, descubro que, diferente

do caminho que tomei na pesquisa anterior de mestrado, não é

pela “função simbólica”, pela “representação de uma

memória”, ou por um regime significante. Isto fica claro com a

noção de devir-música, apresentada por Deleuze e Guattari,

quando percebo a possibilidade de compor, a partir da noção de

acontecimento cênico, a música de cena como ato de criação da

própria cena, a cena em seu devir-música. Música de cena no

devir-música da cena: o devir-música da cena é a gênese da

música na cena teatral. Nesta operação, a música que nasce, já

nasce num devir-cena. E eis o bloco de devir por onde esta tese

passeia: o devir-música da cena faz bloco com o devir-cena da

música.

A escritura desta tese me põe à deriva, a mover-me

numa arriscada trajetória, sujeita a estar, simultaneamente,

rente ao chão e em mares, desertos, sertões e savanas,

navegadora e escafandrista, escarafunchando. Música esquiza

não é um conceito que invento, mas um modo de

funcionamento que percebo, não só no encontro da música com

a cena teatral, como também na composição da escrita desta

tese. Neste trajeto, vacilo em passadas esquizas, em linhas que

migram, que se enredam e se conectam, a fim de uma

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decomposição que venha compor uma experimentação possível

de ser nomeada música esquiza. Não é uma verdade expressa,

está mais para uma certeza vivida na intuição de um

acontecimento: a certeza de um ato vivido quando algo

acontece, sem dar peso aos registros que antecedem o

pensamento que dali nasce, sem a imposição da memória dos

códigos, sem porto de saída nem de chegada.

UM SISTEMA PRÓPRIO DE ORIENTAÇÃO

Um passeio esquizo é o caminho que encontro para me

levar ao possível dessa escritura, fazendo disto uma tese.

Porque encontrei-me com Georgette Fadel, uma atriz, e

Lincoln Antonio, um músico, que encontram com a fala

gravada de Stela do Patrocínio, uma louca, uma carioca

esquizofrênica, encarcerada por trinta anos em um hospital

psiquiátrico. Porque me contagiando desse encontro e dessa

fala cheguei a Deleuze e Guattari, ao seu pensamento esquizo,

rizomático, às suas máquinas desejantes, à multiplicidade de

devires, ao seu corpo sem órgãos. Porque a Stela do Patrocínio

do músico e da atriz, e Deleuze e Guattari, juntos, inspiram esta

tese a uma produção desejante, desejo de, com eles, abrir

percepções para uma música esquiza. E porque desejo desta

escritura não só um procedimento acadêmico, mas, também,

um desvelamento, é que a intuição, como método, fez-se

necessária. Intuição não como uma inspiração, nem como uma

simpatia confusa, mas como ato vivido – ato de intuição: seguir

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o fluxo de uma matéria, itinerar, ambular1. Intuição que, como

ato, engloba os movimentos infinitos do pensamento, sem

interesse em acessar realidades superiores, mas de arriscar um

gesto, “o gesto de orientar o pensamento sem referência, de

inventar seu próprio sistema de orientação.”2 Deleuze

investiga, em seu livro Bergsonismo – no qual discorre sobre a

intuição como método na filosofia de Bergson –, a intuição

como método filosófico rigoroso, no qual é tida como um ato

simples; simplicidade esta que, no entanto, não exclui “uma

multiplicidade qualitativa e virtual, direções diversas nas quais

ela se atualiza. Neste sentido, a intuição implica uma

pluralidade de acepções de pontos de vista múltiplos

irredutíveis.”3 E é pela intuição de um ritornelo que se segue

agora esta pesquisa de doutoramento. Tive desejo de retornar

ao território de minha investigação, buscando aprofundar as

diferenças que se apresentaram sobre os contrapontos possíveis

entre a música e a cena em meu primeiro encontro com a fala

de Stela do Patrocínio. Inicialmente, desejei investigar a

trajetória desta fala: do confinamento de onde soava, ao palco,

no espetáculo Entrevista com Stela do Patrocínio, tendo como

veículo condutor a sonoridade, tanto da fala mesma, quanto da

música composta a partir dela, para o espetáculo. Fui

convocada a pensar no fato de que se eu trouxesse Stela do

Patrocínio para o território de um eu-lírico, correria o risco de

imergi-la em águas rasas, onde ainda procura-se um fundo, um

motivo, uma forma para este sujeito, e, no caso de Stela, um

sujeito adoecido. No entanto, encontro-me com a esquizofrenia

de Stela, não no sentido de uma enfermidade, uma doença,

mas, sim, como um modo seu de existência, com a potência de

desejos e devires que produzem seu corpo sem órgãos. Desejo

1 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo, 2008, p. 7 2 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. 2004. p. 42. 3 DELEUZE, op. cit., p. 8.

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que produz em Stela desejo de fala, fala que se deseja como

música e cena. O passeio esquizo pela fala de Stela abre

territórios distintos, e apresenta seus “poderes, milagres,

mistérios”, tão bem por ela intuídos:

Eu sou Stela do Patrocínio

Bem patrocinada

Estou sentada numa cadeira

Pegada numa mesa nega preta e crioula

Eu sou uma nega preta e crioula

Que a Ana me disse

Vim de importante família

Família de cientistas, de aviadores

De criança prodígio poderes

Milagres mistério

Nasci louca

Meus pais queriam que eu fosse louca

Os normais tinham inveja de mim

Que era louca4

PENSAMENTO QUE NÃO SABE O QUE É PENSAR

Caminhar ao lado de Stela é sobretudo abraçar seus

mistérios. Abraçá-los sem pretender saber deles o que são,

apropriando-se de seus poderes e de seus milagres: matérias de

Stela. Poderes-potência. Milagre da possibilidade do

impossível. É um devir-criança de Stela que produz tais

matérias, facultando um “pensamento sem imagem”, como

4 PATROCÍNIO, Stela. Reinos dos bichos e dos animais é o meu nome:

Stela do Patrocínio. 2001, p. 66-68.

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propõe Deleuze, um “pensamento que não sabe previamente o

que é pensar e que não pode senão incessantemente retornar ao

ato que o engendra.”5 Stela que me leva a escutar em sua fala

uma outra música de cena, uma música esquiza sendo a

potência de um devir-música. Mas quê potência é esta? A

potência do efeito de um novo modo de existência, uma

existência inaudível que se faz audível, sonora. Segundo

Espinosa, “a potência de um efeito é definida pela potência de

sua causa, à medida que sua essência é explicada ou definida

pela essência de sua causa”6 De acordo com essa afirmação é

possível pensar que a música, enquanto potência, afeta: altera,

desloca, desterritorializa e colabora; e também mantém e

determina um território. A intensidade atribuída à sua potência

será relacionada diretamente com o quanto e o como afeta, uma

vez que tem como essência os próprios afetos que a sonoridade

carrega.

Nesta tese, convido a música à um passeio esquizo,

passeio que vacila em passos nômades, que escorrega errante.

Passeio singular que passa por uma terra. Tese-terra desterrada,

suposta precária, sendo o que pode e o que pede para ser. Tese

que descoloca um pensamento axiomático a respeito da música

e apresenta uma nova maneira de abordar a experiência

musical. Pensamento que passeia pela música enquanto faz

alianças com a filosofia e que, por isso, pede o

desvencilhamento dos velhos esquemas interpretativos ou

informantes do teatro e da música ocidental. Pede que o novo

que chega nascido desta aliança, não seja reconhecível ou

decifrável de imediato, mas que, antes, proporcione meios de

seguir um devir. E pede, ainda, que o novo traga, na sua

5 ZOURABICHVILI, 2004, p. 45. 6 SPINOZA, Benedictus de. Ética. 2008, p. 369.

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potência de recomeço, o que lhe é próprio: a diferença. A

diferença exige, no pensamento, “forças que não são da

recognição, nem hoje nem amanhã, potências de um modelo

totalmente distinto, numa terra incógnita nunca reconhecida ou

reconhecível”7 A intuição percebe o envolvimento dessas

forças que vem do novo, dos movimentos infinitos do

pensamento arrancado do seu “inatismo”, movimentos que

percorrem um “plano de imanência” aí erigido. O plano de

imanência age como um crivo, afirma Deleuze, como um corte

no caos – que, antes de ser definido por sua desordem, é

definido pela “velocidade infinita com a qual se dissipa toda

forma que nele se esboça.”8 Caos que é um vazio, e não um

nada; um virtual que contém todas as partículas e formas

possíveis, que surgem e desaparecem, sem “consistência nem

referência, sem consequência.”9 O caos desfaz a consistência

no infinito. O corte que esse plano de imanência produz no

caos, peneira como um crivo e articula os dados inatribuíveis,

dando-os sentido e consistência sem nada perder do infinito no

qual o pensamento mergulha. “Operando um corte no caos, o

plano de imanência faz apelo a uma criação de conceitos”10,

afirma Deleuze. Um desconcerto, regido pela intuição, que faz

remanejar a composição formal de um pensamento. É possível,

então, compor esta tese tendo a intuição como método?

Um pensamento que não sabe o que é pensar, põe em

funcionamento uma tese. Esta tese tece e opera conceitos

deleuze-guattarianos. Nela, por acidente, o sumário se faz

numa lista de frases como um glossário em blocos de pistas, no

entanto, apresentam-se ali pentagramas atípicos que indicam

7 DELUZE, Diferença e Repetição, 2009, p. 198. 8 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia, 1996. p. 153 9 Idem ibidem. 10 Idem, p. 60.

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que, as articulações e intervenções dos conceitos ativados por

esta filosofia, afetam diretamente o modo de fazer música,

desvelando a potência do seu devir. É uma invenção possível

pela natureza desse pensamento, que se move por intensidades,

dimensões e elementos em ressonância. Disto emerge uma

escritura e um pensar ativo, operando sua expressão e conteúdo

na produção de uma música esquiza.

DESCOMPOSTURA DOS TERRITÓRIOS

Descomponho como quem deseja enxergar através dos

muros, dos portões fechados à chave, das clausuras e dos

medos. Adentro a composição de tese, descompondo-a, a fim

de deslocar meu pensar e sentir a música do modo como, desde

minha infância, nas primeiras aulas de piano, fui sendo posta a

operar. A partir desse diferente modo que vai nascendo agora,

neste mesmo tempo em que escrevo, proponho uma

experimentação, um novo agenciamento dos elementos da

música, e um novo agenciamento da música no acontecimento

cênico, criando uma descompostura, um desarranjo dos

territórios formalizados tanto da música como da cena.

Começo por um passeio pelo conceito rizoma, de Gilles

Deleuze e Felix Guattari, buscando conexões para este novo

modo de operar pensamento e afecto. Rizoma é modelo de

realização das multiplicidades11, modelo que tomo para nutrir a

11 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia,

v. 1, 2000, p. 8.

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escrita desta tese, e que define o modo como pretendo

relacionar os elementos musicais na produção da

multiplicidade-música. Na expedição rizomática por esta

multiplicidade, todos os elementos são singularidades,

intensidades livres, que se põem em relação – devires –, com

outras multiplicidades. Os elementos musicais, aqui, explodem

as significâncias e as representações. Timbre, altura, ritmo,

harmonia, não querem dizer algo, nem estar no lugar de outra

coisa. Não desejam nada além de perguntarem-se: o que

posso? Qual a minha variação de potência quando me ponho

em relação com outros elementos, quando me misturo com

eles, quando deles me contamino e então me desfaço? Quando

me desfaço, preciso ainda deste nome “timbre”, carrego ainda

comigo um conceito? Posso vir a ser um componente que,

como fragmento expressivo, afeta e é afetado por outros

elementos, quando participo de um agenciamento que possa

virar as coordenadas perceptivas do espaço-tempo? De outra

maneira, a feitura da música estará sempre disposta a ir, como

uma flecha, a um centro fixo: mas a flecha jamais alcançará o

alvo, já que o movimento encontra-se no intervalo, no trajeto,

sendo ele a própria duração.

No “entre” que se produz nas relações dispostas em

uma multiplicidade-música, que pode acontecer pelos mais

diversos devires, os elementos postos em agenciamento

desvencilham-se dos conceitos dos quais são dotados, e das

formas por eles impostas, modificando, assim, suas naturezas.

Tais modificações fazem surgir modos de individuação –

compostos da relação de movimento e de repouso entre tais

elementos, e do poder de afetar e de ser afetado que cada um

deles dispõe –, que irão compor a novidade, o acontecimento

que se inaugura. O mesmo pode acontecer, por exemplo, em

uma cena teatral. Esse acontecimento se dá em dinamismos

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espaço-temporais12, feito de espaços e tempos livres, nos quais

não se fixam pontos, nem se supõe alvos de chegada. Em seu

Método de Dramatização, Gilles Deleuze apresenta as seis

propriedades de tais dinamismos: 1 – eles criam espaços e

tempos particulares; 2 – eles formam uma regra de

especificação para os conceitos que, sem eles, permaneceriam

incapazes de se dividirem logicamente; 3 – eles determinam o

duplo aspecto, qualitativo e quantitativo, da diferençação

(termo que engloba os verbos diferençar, onde teríamos o

vocabulário do atual, e diferenciar, no qual teríamos o

vocabulário do virtual); 4 – eles comportam ou designam um

sujeito “larvar”, “embrionário”; 5 – eles constituem um teatro

especial; 6 – eles exprimem Ideias. Tanto o acontecimento

musical quanto o acontecimento cênico constituem-se destes

mesmos princípios, uma vez que operam neste dinamismo.

Neste mesmo método, Deleuze propõe ainda que, para

descobrirmos a essência de alguma coisa, ou para determinar

algo relativo à Ideia, troquemos a questão “que é?” pelas

questões quem? quanto? como? onde? quando? E, novamente,

podemos aplicar estas questões à cena teatral e à música. Tais

dinamismos e questões propostas no Método de Dramatização,

de Deleuze, amplia em muito as percepções, as dimensões e os

afetos em jogo nestas duas artes.

A composição da multiplicidade-música se dá, então,

no acontecimento inaugurado na relação entre os seus

elementos. Tal relação, por sua vez, é tramada, também, por

vetores que irão constituir-se no agenciamento desta

multiplicidade com outras multiplicidades com as quais se põe

12 DELEUZE, G. “O método de dramatização” (1967) In: _______. A ilha

deserta e outros textos: Gilles Deleuze. Edição preparada por David

Lapoujade, 2006. p. 129.

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em jogo. Assim, os mesmos vetores que determinam um

território composicional, traçam linhas de fuga,

desterritorializam-se e lançam-se a um outro território, em

operações conectivas das mais diversas ordens e entre os mais

diversos elementos. Assim, também, constitui-se o

acontecimento cênico: uma multiplicidade que opera as

relações entre seus elementos, e com o mundo, por rizoma. Na

multiplicidade-cena, a música é, ela mesma, uma

multiplicidade em decomposição e recomposição durante o

tempo do acontecimento cênico, em relação com outras

multiplicidades em jogo: corpo, luz, espaço, elementos de cena

etc. Música: potência de agir no e do acontecimento cênico;

uma multiplicidade composta de outras tantas multiplicidades,

pondo em relação elementos, singularidades, numa variação

infinita de intensidades livres.

PARTITURA DE TESE: RIZOMA E MULTIPLICIDADE

Partitura musical é um desenho de sons, um desenho

que se escuta. Esses sons desenhados têm tamanhos diversos,

são cheios ou são vazios. Partitura é o desenho de um caminho

que o som segue como um rio, um fluxo, do começo ao fim (da

cappo ao finne). Na partitura há também silêncios grandes e

pequenos, frequências e intensidades, o romper das velocidades

e das lentidões. Desenho de afetos, e de como irão deslizar no

tempo. O tempo na partitura é posto como ponto de partida,

mas vai nos recônditos, nos cantinhos, aqui e ali, modificando-

se, desfazendo-se, e se fazendo em outros. Uma mesma

partitura cria mundos diversos. O desenho plano de uma

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partitura é um convite à produção de sonoridades, de

dimensionalidades, muito singulares: cada um que a decifra,

produz os sons de um modo próprio, subjetivo; pois uma

partitura irá sempre além de uma instrução sobre a altura e a

duração de cada nota, imposta sob um andamento, uma atrás da

outra, uma atrás da outra. Partitura é, antes, um abraço aos

estilos de composição de sonoridades, de texturas e de

intensidades: um mundo de sons, um pequeno universo, uma

invenção.

E como compor uma partitura de tese? É possível

compor uma tese como se compõe uma partitura? A tese

também se faz de encontros e de experimentações nela vividas.

Experimentações em bandos, experimentações a sós,

experimentações vida, que trazem questões que nos

impulsionam à pesquisa, que se diz, que se mostra, que executa

uma tese, um mapa de pesquisa. Tese como mapa de pesquisa:

canais, linhas traçadas durante o percurso de caminhada, linhas

nômades. Canais que se movimentam, que mudam de trajetória

no mesmo momento em que fluem. Rio de começo inexato e

fim impreciso.

A pesquisa que aqui transborda em rio-fluxo é mapa.

Pesquisa é mapa que se traça em rizoma que, por sua vez, é o

método de realização de uma multiplicidade. A multiplicidade

que estou denominando de música esquiza, compõe-se durante

o traçar do mapa. Uma multiplicidade diz respeito aos

elementos que lhe são singulares, que lhe são próprios; às suas

relações com outras multiplicidades; aos acontecimentos que se

dão nestas relações; à espaços e tempos livres; ao seu modelo

de realização, o rizoma; ao seu plano de composição,

constituído por platôs; e às linhas que a atravessam, que

constituem territórios, e que propõem, ao mesmo tempo, graus

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de desterritorialização13. Para a investigação de uma música

esquiza, é preciso, então, estar presente em cada um desses

princípios que caracterizam uma multiplicidade e, perceber,

realmente, como, quanto, onde, quando se compõe uma tal

música esquiza. Começo atentando para a experimentação da

sua prática mesma, como acontecimento musical, em relações

com outras multiplicidades – uma cena teatral, uma dança, uma

canção – afetando-as e sendo por elas afetada,

metamorfoseando e sendo metamorfoseada, acontecimentos

que se compõem nas próprias relações, no instante do encontro.

Fico atenta ao tempo de cada acontecimento: não do quanto

duram cronologicamente, ponteiro girando, do Cronos, que é

tempo da medida, metrônomo, dois por quatro, três por quatro,

quatro por quatro, seis por oito..., intervalinhos de tempo

sempre iguais, sucessões impostas, entre as pulsações14. Não

este, mas o tempo indefinido, que é tempo do Aiôn, que divide

o acontecimento “num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-de-

mais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo

tempo vai se passar e acaba de se passar.”15 A individuação do

tempo de uma canção não é a mesma minha, que a canto e

toco, ainda que os tempos sejam abstratamente iguais. Se me

13 “[...] as multiplicidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o

inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. As

multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade,

não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As

subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos

que se produzem e aparecem nas multiplicidades.” (DELEUZE, G.;

GUATTARI, F., 2000. p. 8). 14 “Boulez distingue na música o tempo e o não-tempo, o "tempo pulsado"

de uma música formal e funcional fundada em valores, o "tempo não

pulsado" para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem

velocidades ou diferenças de dinâmica” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F.

Mil platôs, v. 4, 2008, p. 41). 15 Idem, p. 41,42.

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percebo como sujeito, e não como multiplicidade, estou

assujeitada a forma da canção. A canção, ela mesma máquina

sonora, está no plano da própria composição, plano de

velocidades e de afetos, de graus de intensidades sem sujeito,

uma hecceidade.

Mesmo quando os tempos são abstratamente

iguais, a individuação de uma vida não é a

mesma que a individuação do sujeito que a

suporta. E não é o mesmo plano: plano de

consistência ou de composição das hecceidades

em um caso, que só conhece velocidades e

afetos; plano inteiramente outro das formas, das

substâncias e dos sujeitos, no outro caso.16

O movimento puro de uma canção tem duração

indivisível, uma vez que é ato; que não se reconstitui com o

espaço que deslocou no ar, com o batimento de cada uma de

suas frequências. Sendo eu já várias, há, então, no

acontecimento que se situa no “entre” eu e a canção que canto

– duas multiplicidades –, intensidades, acidentes,

individuações, nascidas do próprio acontecimento que, por sua

vez, é o próprio agenciamento das individuações na

temporalidade do devir, modificando-me e modificando a

canção que canto.

É preciso, também, estar atenta ao rizoma que a música

esquiza realiza, ao modo como faz suas conexões com outras

multiplicidades, a como ele conecta um ponto qualquer daquilo

que nomeio música esquiza – o acontecimento do “entre” – a

outro ponto qualquer de outra multiplicidade, ainda que suas

linhas, seus traços, não remetam a traços de uma mesma

natureza. Um rizoma não se compõe de unidades – unidade

16 Idem, p. 48.

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pulso, unidade ritmo, unidade harmonia, unidade tonalidade,

unidade andamento, unidade extensão, unidade melodia –, mas

de dimensões, de direções movediças, por isso pode compor

com todas as coisas do mundo. Rizoma não é uma estrutura de

composição, e nem busca estruturar o que quer que seja. Nem

é, também, método de reprodução, mas de produção incessante.

É uma antimemória, uma antigenealogia. Um rizoma não tem

um começo nem um fim, ele transborda de um meio e se

espalha, em busca de novas conexões que variem suas

dimensões e que modifiquem a natureza da multiplicidade que

compõe.

O plano de composição, do qual se constitui a música

esquiza, dá-se em diferentes platôs, como as outras

multiplicidades. Platôs são regiões contínuas de intensidades

que se desenvolvem não sob orientação de um ponto

culminante, nem em direção a uma finalidade exterior17, visto

que o método de realização que tais platôs compõem é um

rizoma que se espalha, e não uma raiz, não um sistema

pivotante que se aprofunda em uma só direção. Os rizomas são

feitos de platôs. Os vetores que o rizoma espalha, traça o

território de uma multiplicidade e, ao mesmo tempo, lança-a a

outros, desterritorializa-a em fluxos esquizos. “Chamamos

‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras hastes

subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um

rizoma. (...) Cada platô pode ser lido em qualquer posição e

posto em relação com qualquer outro.”18

A pesquisa foi se fazendo, então, como o mapa de um

rizoma, pelo qual se compõe também a possibilidade de uma

17 DELEUZE; GUATTARI, v. 1, op. cit., p. 33. 18 Idem ibidem.

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música esquiza. Mapa que aqui desenho como uma partitura.

Partitura de tese.

DIAGRAMA DA PARTITURA TESE

Neste mapa, os conceitos operam como platôs co-

presentes, coextensivos, que se chocam e se penetram, que

mudam as coordenadas de um território, de uma tonalidade, de

um modo. Pesquisa em caminho, agora mesmo em trajeto, em

um platô, onde não busco reconhecer nem começo nem fim na

partitura que desenho como partitura de tese. Busco conexões

entre pontos desta partitura, pontos que ganham velocidade

suficiente para tornarem-se linhas – notas que formam melodia

–, e linhas que conectam uma parte à outra, um mapa que traço

enquanto adentro na música esquiza. Tenho este mapa não

como meta de chegada, mas como um platô vibrante em

agenciamentos desejantes, desenhando novas conexões, novas

experimentações, como impulso para a escrita. Conceitos,

palavras-linhas que se entrecruzam e que, por isso, modificam

a todo instante o seu movimento e a sua estrutura. As palavras-

conceitos desenham linhas movediças nesta partitura nômade.

Essas linhas nada têm a ver com a retidão das linhas de um

pentagrama. Não pensei em cinco linhas paralelas como o pivô

de uma estrutura conceitual, aprofundando-se, terra adentro,

nela mesma, como uma raiz pivotante – ainda que seja possível

que tal raiz, a retidão de um pentagrama, penetre no rizoma por

algum tipo de agenciamento, que se conecte com ele, e que

também o constitua. Não pensei, porque tal estrutura gera

somente a lógica do decalque e da reprodução: chave, sistema,

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clave de sol, clave de fá, em dó maior, em três por quatro, seis

compassos por sistema, em piano da cappo ao finne. “Variação

sobre o mais velho pensamento. Do eixo genético ou da

estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo

princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito”. A lógica do

decalque e da reprodução “tem como finalidade a descrição de

um estado de fato, o reequilíbrio de correlações inter-

subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado

camuflado, nos recantos obscuros da memória e da

linguagem.” 19

Penso em libertar cada linha e multiplica-las ao infinito.

Cinco linhas que se abrem, se fecham, tramam-se e lançam-se

até outras tantas linhas quantas forem libertas da rigidez das

pautas, dos sistemas. Condições necessárias para compor uma

tese como partitura, e também um modo de composição de

uma música esquiza? E o que se passa em uma partitura de tese

que só se faz possível começando-a pelo meio? Passa-se que a

escrita irá de um lugar ao outro, formando “entres” que

carregam elementos, materiais, substâncias, dos lugares por

onde passa; “entres” que estão no meio de uma coisa e de outra

e não resignados à lógica de uma sequência, que não designam

uma “correlação localizável que vai de uma para outra e

reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um

movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem

início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade

no meio.”20 “Entres” que produzem, aqui e alhures no texto,

novas dimensões que, para além de conceitos, são operadoras

do conteúdo e da expressão desta tese.

19 Idem, p.21. 20 Idem, p. 37.

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Desenho esta partitura como uma experimentação real

de pesquisa. E, como mapa que é, proponho entradas e saídas

variadas, e conexões entre os campos por onde passeio,

evitando os decalques que porventura queiram impor a imagem

significante de um pensamento que aprisione a escrita ou de

uma partitura que aprisione a linguagem musical. No entanto, a

imagem existe, e não me livro, nem me esqueço dela em um

átimo. A imagem da partitura, do pentagrama e de todos os

sistemas, cheios de notações musicais, cheios de signos para

sons determinados, estão também, aqui e ali no texto,

compondo. Deleuze e Guattari sugerem projetar o decalque

sobre o mapa, religa-los, ressituar os impasses que o decalque

produz no mapa e por aí abri-los sobre linhas de fugas

possíveis, uma vez que é próprio do mapa poder ser decalcado,

e por ele mesmo comportar muitas vezes fenômenos de

redundância que se estruturam como seus próprios decalques21.

REPETIÇÃO DE DEVIRES: DIFERENÇA ESQUIZA

As linhas que traço durante o passeio pelos campos

desta pesquisa repetem diferenças, e movimentam-se agora

pelo desejo mesmo de desenhá-las no acontecimento da escrita.

Como mapa que desenha a investigação de uma música

esquiza, esta partitura de tese, composta por uma variação de

pentagramas, faz vibrar desejos, delírios, devires. São linhas de

devires ligando os mais diversos desejos e delírios, vetores de

um platô a outro, todo um rizoma transformando a natureza, as

21 Idem, p. 22, 23.

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intensidades e as dimensões da música. Devir-música, devir-

escrita, devir-fala, devir-canto, devires. Devires não são

correspondências de relações, nem o parecer-se com, nem

imitar alguma coisa, nem identificar-se com o que quer que

seja. Devir não é uma imaginação, não se faz na imaginação:

são devires-acontecimento22. O devir é da ordem da aliança, do

contágio, da comunicação. É por devir que entram em jogo

multiplicidades inteiramente diferentes e mudam suas

naturezas. Devir é um rizoma. E é já como uma multiplicidade

em devir-criança, em devir-mulher, em devir-canto, e em

tantos outros devires, que faço bloco com esta escrita. Uma

multiplicidade que muda de intensidades e de dimensões

porque, em devir, traço alianças com a multiplicidade que

estou compondo como música esquiza. Importa encontrar

entradas e saídas, e a maneira como se fazem as conexões. Só

assim há desmanche e composição de um corpo no qual os

órgãos se distribuem segundo os movimentos das

multiplicidades em devir, um corpo vivo em fluxo esquizo,

vivo de uma tal maneira que expulsa o organismo e sua

organização, um corpo sem órgãos. Digo isso porque, de outra

maneira, parece-me difícil criar uma partitura para a

multiplicidade deste fluxo que produz música. O esquizo tem

“o olho e a orelha agudos.”23

22 “Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se

fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna

"realmente" animal, como tampouco o animal se torna "realmente" outra

coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa

alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o

próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos

quais passaria aquele que se torna.” (DELEUZE; GUATTARI, v. 4, op. cit.,

p. 18.). 23 Idem, v. 1, op. cit., p. 43.

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O esquizo dispõe de modos de marcação

que lhe são próprios, pois, primeiramente,

dispõe de um código de registro particular

que não coincide com o código social ou

que só coincide com ele a fim de parodiá-

lo. O código delirante, o código desejante

apresenta uma fluidez extraordinária. Dir-

se-ia que o esquizofrênico passa de um

código a outro, que embaralha todos os

códigos, num deslizamento rápido,

conforme as questões que se lhe

apresentam, jamais dando seguidamente a

mesma explicação, não invocando a mesma

genealogia, não registrando da mesma

maneira o mesmo acontecimento.24

RASTEIO, TOQUE, POUSO.

A metodologia desta tese só encontra sentido num

método que, hoje, arrisca-se já bastante pela produção

acadêmica, o método da cartografia. E como funciona uma

cartografia? Funciona também como um modelo de realização,

como um rizoma. Para que a cartografia seja o modelo de

realização desta tese, é preciso que não haja mais sujeito e

objeto. Enquanto pesquisadora, faço uma imersão no objeto da

tese não como observadora que toma distância para observar

aquilo que pesquiso, mas como sendo a própria coisa

observada, misturada nela, fazendo-me parte daquilo que me

24 Idem, O anti-Édipo, 2010, p. 29.

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força a pensar25. É preciso, ainda, que o mapa de tese não se

enrijeça, que não se torne a fotografia estática de um território

de pesquisa, uma vez que o território é movente, e se atualiza

momento a momento. Mas, sobretudo, é somente possível

caminhar por um método cartográfico se eu me despojar das

imagens representativas do mundo, das verdades que existem

nas matérias formadas, de um olhar para os acontecimentos que

os determine e os meça por instrumentos precisos26 e de uma

escrita que pretenda buscar verdades ou fundamentos.

O caminho é que faz a pesquisa, e não a pesquisa que

determina o caminho27. É uma experimentação que deve ser

tomada como uma atitude, com compromisso na implicação da

realidade. Pesquisa-intervenção. O rigor que conduz este

caminho, se conecta com os movimentos da vida. Para tanto,

algumas pistas podem orientar o caminho da pesquisa, para que

ela não se perca em seu trajeto. No livro “Pistas do método da

cartografia – pesquisa intervenção e produção de

subjetividade”, lançado em 2009, os organizadores Eduardo

Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia, apresentam oito

pistas para o procedimento cartográfico, inspirados nos oito

princípios para a esquizoanálise, propostos no livro “O

inconsciente maquínico. Ensaios de esquizoanálise” de Félix

Guattari. Pistas, e não regras: ter a cartografia como método

25 PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método

da cartografia: pequisa-intervenção e produção de subjetividade, 2009,

Orelha. 26 REY, Javier. Tesis de maestria en Psicología Social. El acontecimento en

las prácticas psicológicas. Cap. 2, “Acontecimiento e cartografia”. Facultad

de Psicologia, Universidad de la Republica, Montevideo, Febrero 2015, p.

55. 27 Sentido tradicional da palavra metodologia, impresso na etimologia da

palavra metá-hodos. Caminho = hódos; “transformar o metá-hódos em

hódos-metá”. PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA. Idem, p.10.

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para uma pesquisa-intervenção, que traz na mesma valise o

conhecimento e a transformação, tanto da realidade quanto do

pesquisador; ter em consideração os gestos – rasteio, toque,

pouso e reconhecimento atento –, para o funcionamento da

atenção no trabalho do cartógrafo; entender que cartografar é

acompanhar processos; tomar movimentos-funções como

dispositivo sendo ele os de referência, de explicitação e de

produção e transformação da realidade; atentar para o fato de

que ao lado dos contornos estáveis do que denominamos

formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano coletivo das forças

que os produzem; estar ciente de que a recusa do objetivismo

positivista não deve conduzir à afirmação da participação de

interesses, crenças e juízos do pesquisador, uma vez que

objetivismo e subjetivismo são duas faces da mesma moeda;

trazer à cena a importância da imersão do cartógrafo no

território e seus signos; e propor uma mudança das práticas de

narrar28.

Como as pistas sugeridas pelos autores não são regras

de condução para o método de pesquisa, cada pesquisador

segue seu mapa do modo como entender ser mais adequado

para clarear seu território de pesquisa e promover, a partir dele,

uma operação simultânea de subjetivação-objetivação. O

método cartográfico propõe o rompimento com as estruturas

que estejam interessadas em representar objetos. Ele se

interessa, antes, pelo acompanhamento do processo, pela

implicação em processos de produção e pelas conexões de

redes e rizomas. A cartografia é sempre um mapa móvel, no

qual se deve desconfiar de tudo aquilo que parecer “o mesmo”,

pois nele pode estar camuflado um concentrado de

significações, de saber e de poder, “que pode por vezes ter a

28 PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, op. cit., p. 14;15.

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39

pretensão ilegítima de ser centro de organização do rizoma.

Entretanto, o rizoma não tem centro.”29

A Cartografia como método de pesquisa-

intervenção pressupõe uma orientação do

trabalho do pesquisador que não se faz de modo

prescritivo, por regras já prontas nem com

objetivos previamente estabelecidos. No

entanto, não se trata de uma ação sem direção,

já que a cartografia reverte o sentido tradicional

de método sem abrir mão da orientação do

percurso da pesquisa. O desafio é o de realizar

uma reversão do sentido tradicional de método

- não mais um caminhar para alcançar metas

pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do

caminhar que traça, no percurso, suas metas.30

Sigo a cartografia como um descompasso, já que se

trata de cartografar a desmedida do acontecimento no “entre”

por onde surge uma música esquiza. A cartografia como modo

de caminhar em direção a composição de uma tese que se

desenha como uma partitura esquizomusical. Como devir-

música e investigar sua potência dentro do acontecimento

cênico e, simultaneamente, emergindo dele, devir-escrita no e

do acontecimento da pesquisa? É por “entre” os traços de uma

cartografia esquizo que se desmancha o compositor cartógrafo

em composição de escritura e partitura.

29 Idem, p. 10. 30 Idem, p. 17.

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40

PASSEIO TRANS-HISTÓRICO DA MÚSICA CIDENTAL

Digo de início que não há uma gênese da música

esquiza localizada em algum lugar do tempo histórico. E

embora muitas vezes pensemos em formas e em gêneros

musicais, esclareço, de antemão, que a música esquiza não tem

nem um, nem outro. Não há uma forma que a estruture nem um

gênero que a defina. E não se trata de recusá-los. Trata-se,

antes, de abraçá-los todos de maneira informe e desgenerizada:

todos os modos, todos os nomoi, todas as tonalidades,

cromatismos, dodecafonismos. Música esquiza podem ser

tantas músicas, mas não qualquer música. Nem se trata de

eleger, nessa música ou naquela, tais elementos, tais

harmonias, tais melodias, tais ritmos ou tais tessituras que a

façam esquiza. O esquizo, para Deleuze e Guattari, é um polo

revolucionário que traça linhas de fuga do desejo, criando

tensão com outro polo – o polo paranoico facistizante,

moralizante, puritano e familista: “dois grandes tipos de

investimento social, um segregativo outro nomádico, que são

como dois polos do delírio.”31 O polo esquizo faz fugir linhas

que atravessam o muro das formações de soberania central (o

polo paranoico), e libera a passagem de fluxos

desterritorializados de abertura e desmoronamento,

ultrapassando os limites das formas e as fronteiras dos gêneros.

Entre esses polos do delírio, há oscilações surpreendentes, por

onde se desprende uma potência revolucionária, uma linha de

fuga,32 ou, inversamente, mantém-se uma maneira fascista que

31 DELEUZE; GUATTARI, O anti-Édipo, op. cit, p. 366. 32 Linha de fuga: expressão que, para Deleuze e Guattari, implica um

funcionamento de produção desejante, linha por onde o desejo escapa das

formas duras. Trata-se de um “fazer fugir”.

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41

incide no arcaísmo. Duas faces de um corpo sem órgãos. E é

sobre este corpo pleno, dobradiça e fronteira entre o molar e o

molecular, que ocorre essa partilha, paranoia-esquizofrenia.

Dois bordos de amplitude de um pêndulo que oscila em torno

da posição de socius como corpo pleno sem órgãos; por onde

chega a grande linha e, aí, “ou passa o muro e desemboca nos

elementos moleculares, puro processo esquizofrênico de

desterritorialização; ou então, emperra, salta, recai nas

territorialidades mais miseráveis do mundo.”33

A fuga, uma forma musical, também é revolucionária:

inicia-se com a exposição de um tema, que será novamente

apresentado durante o desenvolvimento de uma ou outras vozes

consecutivas, enquanto a primeira voz deixa de expor o tema e

parte para variações, fazendo durar a presença do tema para

além de seus contornos34, atualizando-o continuamente em suas

diferenças. Também, na música, observa-se que a fuga produz

uma multiplicidade de linhas que dissolvem a soberania formal

do tema em questão, fazendo escapar outras intensidades,

produzindo outras afecções. A fuga desenha na música um

rizoma, faz desencontrar as identidades e as alteridades do

tema, criando um movimento caleidoscópico onde as linhas,

em contraponto, apresentam contrários que ecoam e que se

espelham em reverberações defasadas35. A questão é: como a

música oscila nesse pêndulo, entre esses dois polos de

investimento do socius? Música que segue uma direção molar,

voltada para os grandes conjuntos, para os fenômenos de

33 DELEUZE; GUATTARI, idem, p. 372. 34 MOTA, Marcos. Dramaturgias: estudos sobre teoria e história do teatro e

artes em contato. UNB, 2011, p. 230. 35 WISNIK, José Miguel. O som o e sentido, 1989, p. 167.

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multidão; música de desmoronamento, cuja desterritorialização

leva cada vez mais longe, sem a complementariedade de uma

reterritorialização, de desligamento absoluto; e música esquiza,

que segue na dobradiça, no “entre”, na duração que é

movimento puro, uma direção molecular esquizonte, penetrada

nas singularidades, nas interações e ligações feitas por linhas

de fuga infinitesimais, contrariando as perspectivas dos grandes

conjuntos composicionais.

É deste modo que percorro, por saltos e acidentes, o

enredo rizomático da história da música ocidental: também um

movimento de fuga que contraponteia o acontecimento

imanente de uma música esquiza. Tudo é bem-vindo. No

entanto, não é pelas formas sociais-musicais molares, dos

grandes conjuntos, das formações de massa, que a história da

música põe em relação o caminho por onde me dirijo, e sim,

por uma direção singular feita de ordens diferentes, onde a

música esquiza monta suas máquinas sonoras e seus grupos em

fusão nas periferias, em micromultiplicidades. Componho uma

cartografia como uma fuga, desenhando às margens das

partituras do arcaísmo histórico da música, quando esta

encontra-se com a cena teatral.

Onde se produz a diferença de uma música esquiza no

acontecimento da música de cena ao longo de sua história?

Digo que a música faz-se esquiza quando se põe em relação

com alguma multiplicidade que esteja em devir-música no

acontecer da música. Quando se faz cena, e quando a própria

música, em devir, torna-se acontecimento, uma molécula

sonora desejante: seu desejo não deriva de uma falta, seu

desejo produz o que soa, vibra e flui, sem que represente um

sujeito, sem que aponte um objeto, sem que subordine suas

moléculas às estruturas molares. Música-grito-que-não-cala,

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seja lá porque for. Música-que-está-nascendo em qualquer chão

que não é seu. Música que se faz linha de fuga mínima,

imperceptível, em vez de obedecer às leis estatísticas dos

grandes conjuntos. Música-hecceidade, graus, intensidades,

acidentes, acontecimentos na música que compõem

individuações sem sujeitos. Música que não está no lugar de

alguém para dizer alguma coisa. Música esquiza é máquina

sonora desejante36, onde “tudo funciona ao mesmo tempo, mas

nos hiatos e rupturas, nas avarias e falhas, nas intermitências e

curtos circuitos, nas distâncias e fragmentações, numa soma

que nunca reúne suas partes num todo”37, e que, posta em

funcionamento, confunde produto e produção: como produto

de um desejo, põe-se a produzir um novo desejo. Desejo de

música que produz mais música de desejo.

Mas como isso se dá? Como acontece a uma música ser

a produção de um desejo e não produzir outra coisa senão um

novo desejo? Tomemos uma canção, por exemplo, executada

durante a realização do trabalho das catadoras de algodão. Ali,

onde é cantada, tal canção traz consigo um povo, uma

genealogia, um tempo e um espaço demarcados por uma

memória. Ela atua no território desta memória, atualizando

fragmentos mnemônicos que produz a voz de sujeitos que, por

sua vez, compõem uma coletividade. Esta canção, neste

território, tem o rosto marcado por traços sociais que mapeiam

uma ordem de razões e que articulam “meios causais e

processos organizados por significações que não são

36 “Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que

produz um no outro e acopla as máquinas. Em toda parte, máquinas

produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica:

eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada”. (DELEUZE;

GUATTARI, O anti-Édipo, op. cit. p. 12.). 37 Idem, p. 61, 62.

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propriamente musicais, mais antes, morais38”. Seu

funcionamento se dá na produção de um trabalho, de uma lida,

embala um fazer. Supomos que esta canção salte para outro

lugar, e que seja cantada por um outro povo (atores de um

teatro, por exemplo) passando a ser música de cena. Neste

caso, ela fará agenciamentos com um outro tempo e com um

outro espaço, no qual seu funcionamento não estará mais

associado à função que a originou, como gênese. Ainda que

nesta canção não haja modificações em seus elementos, e que

nela mantenha-se a melodia, a harmonia, os timbres e os ritmos

originais, ao soar em um acontecimento outro, tais elementos

mudam de dimensão na relação com o próprio acontecimento.

As dimensões que atuavam originalmente, em um campo de

trabalho, onde esta canção exercia uma função,

redimensionam-se, porque se colocam em conexão com um

outro território. No entanto, se trouxermos esta canção para

uma cena que a reterritorialize, mas que busque ainda, para tal

reterritorialização, ambiências do território de onde partiu,

pensando em manter a representação de sua terra natal e a voz

dos sujeitos que a cantam, haverá uma diminuição na potência

de redimensionar os seus elementos, pois, embora haja uma

mudança de espaço onde estas relações acontecem, não se

possibilitam as conexões que uma reterritorialização potente

provocaria. Parece, de início, que se produzimos uma cena que

pretenda representar o acontecimento nos campos de colheita

de algodão, aspiramos trazer o que lhe é previsto enquanto

sonoridade, compondo-a visando uma unidade de linguagem

entre os elementos cênicos. No entanto, será o imprevisto que

38 LIMA, Henrique Rocha de Souza. Da Música, de Mil Platôs: a

intercessão entre filosofia e música em Deleuze e Guattari. Cap. II, parte II,

I “O som e os traços de rostidade”. Dissertação de Mestrado em Estética e

Filosofia da Arte. Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade

Federal de Ouro Preto, 2013, p. 77.

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possibilitará a novidade do acontecimento. Cada elemento

cênico, vindo de territórios distintos, com seus modos de

individuação, traz suas matérias, dimensões e intensidades

próprias. O agenciamento entre os componentes de tais

elementos, e de um elemento com o outro, neste novo

território, poderá compor uma cena que, ao invés de

representar um acontecimento (a prática da colheita do

algodão, por exemplo), inaugure um contágio, um fluxo

esquizo que amplie as percepções sobre o acontecimento

mesmo, abrindo, aí também, possibilidades de novas vozes

produzidas por agenciamentos coletivos de enunciação.

Atualidade dos “fluxos esquizos” como

construção de novos “agenciamentos coletivos

de enunciação”. Coleta dos traços de

singularidade de um processo de produção de

agenciamentos de desejo no interior dos quais

se analisa o que emperra e o que possibilita sua

potencialidade transformadora. Análise de uma

individuação dinâmica sem sujeito, de uma

constelação funcional de fluxos sociais,

materiais e de signos que são a objetividade do

desejo. Análise de um devir.39

Assim, estaríamos diante de um evento que descompõe

a forma prevista de um acontecimento e torna-se a invenção e a

produção do próprio acontecimento, extraído de uma canção

desterritorializada. O importante seria, então, não organizar sua

forma, ou sua unidade no conjunto, mas garantir que cada

elemento mantenha sua potência ativa no acontecimento. A

música, como elemento vivo que compõe a cena, quanto mais

previsível, menos potente se torna, pois, ao invés de atuar na

39 ROLNIK, Suely B. In: GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações

políticas do desejo, 1985, p. 8.

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inauguração de um acontecimento, estaria submissa à

manutenção dos velhos procedimentos, decalques fundados por

mecanismos constituídos por um socius no qual se estabelecem

apenas enunciados de ordem dominante.

Como, quando, onde, quanto é possível compor uma

música que faça nascer um ouvido esquizo no meio do

pensamento que produz música de cena, que force o próprio

pensamento que a compõe a ouvir a novidade imprevista,

tornando o pensar uma invenção sonora espacional? Invenção

no lugar de representação? Há que se dispor a uma dimensão

inventivo-intuitiva (ao modo de Bergson), como um método

rigoroso, para perceber a produção de um pensamento corpóreo

em fluxo sonoro esquizo. Pondo em experimentação tal

método, desenho um rizoma com diferentes linhas da

construção histórica da teoria musical ocidental, atenta à

maneira como foi possível produzir, com estas mesmas linhas,

desterritorializações dos conteúdos propriamente musicais:

quando a música os arrastou para outros lugares, pondo-os em

operações ativas com os mais diversos devires, e quando, uma

vez desterritorializados, passaram a atuar como formas de

expressões desterritorializantes. Traço, portanto, linhas que

variam suas direções a todo tempo, e modificam a cartografia,

mais interessadas em acompanhar as processualidades dos

acontecimentos musicais do que em narrar uma cronologia

histórica e classificatória. Observo os agenciamentos entre os

seus fluxos materiais, sempre em relação com os fluxos sociais,

econômicos e políticos, e busco reconhecer, nesses

movimentos, os momentos nos quais a música, tendo fugido

das estruturas impostas e aos dualismos moralizantes exercidos

pela linguagem, fez-se música esquiza, e tornou-se capaz de

inventar fugas, sonoridades minoritárias, escapando à

codificação sem se deixar constituir uma nova máquina

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determinável como socius capitalista, utilizando-se de suas

multiplicidades materiais postas em relação em diferentes

dimensões, num contrainvestimento das produções e das

reproduções sociais. Como supor uma história universal da

música sem considerar que sua produção desejante já nasce

com o desejo codificado?

Se o universal está no fim, corpo sem órgãos e

produção desejante, nas condições

determinadas pelo capitalismo aparentemente

vencedor, como encontrar inocência suficiente

para fazer história universal? A produção

desejante também está desde o início: há

produção desejante desde que haja produção e

reprodução sociais. Mas é verdade que as

máquinas sociais pré-capitalistas são inerentes

ao desejo num sentido muito preciso: elas o

codificam, codificam o fluxo do desejo.

Codificar o desejo – e o medo, a angústia dos

fluxos descodificados – é próprio do socius.40

DOS NOMOI FLUÍDOS AOS MODOS CENTRADOS

Por milhares de anos, tantos grilhões: a aplicação da

manutenção de uma ordem social incide, ainda hoje, sobre a

criação musical. Tomemos, por exemplo, o momento da

irrupção do cristianismo, quando as canções ritualísticas foram

tomadas como modelo pelos estamentos sociais dominantes e

transformadas em instrumento social associado a diferentes

40 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo, op. cit., p. 185, 186.

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práticas de controle41. Há, neste movimento, a apropriação de

um evento musical, pelo Estado e pela Igreja. A partir de tal

apropriação, uma nova inscrição é imposta ao socius,

inaugurando uma intervenção, na qual é “tirado da vida e da

terra algo que vai permitir julgar a vida e sobrevoar a terra,

princípio de conhecimento paranoico”42, despótico. A cultura

oficial do Estado estruturou, a partir de modelos melódicos

ritualísticos – os quais tinham, até então, uma proveniência

divina–, a base para os nomoi43 (plural de nomos), composições

fixas, invariáveis, que designavam algo, que determinavam

uma lei. No entanto, se o nomos acabou por instituir uma

norma, segundo Deleuze e Guattari, ela existiu, inicialmente,

como uma distribuição sem partilha, sem fronteiras nem

cercados, que garantia a consistência de um conjunto fluído: “é

nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à polis.”44

Os nomoi deram a base escalar para os modos gregos,

na Grécia Clássica. Todos territoriais, receberam o nome de

seus países de origem: Jónio, Dório, Frígio, Lídio, Mixolídio,

41 A respeito disso, Barthes afirma: “o poder está presente nos mais finos

mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos

grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos

jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e

até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo: chamo

discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a

culpabilidade daquele que o recebe. (BARTHES, Roland. O prazer do texto,

1978, p. 11.). 42 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Idem, p. 257. 43 “Ao contrário dos objetos musicais a que chamamos ‘obras’, os nomos

não podiam ser separados dos poemas ou das circunstâncias que os

suscitavam. Alguns, porém, eram escolhidos para serem nomos nacionais,

devido, sem dúvida, a características específicas tiradas de um ‘folclore’

determinado.” (CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, 1994, p.

70.). 44 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 5, 2007, p. 51.

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Eólio e Lócrio. Cada modo seguia uma sequência de intervalos

que, associado a uma região ou povo, garantia-lhe um caráter

que o evidenciava como “províncias sonoras, territórios

singulares, cujo colorido e dinâmica interna estarão associados

a diferentes disposições afetivas e a diferentes usos rituais e

solenizados”45. Assim, o nomos constituía-se como uma lei não

escrita, “inseparável de uma distribuição de espaço, de uma

distribuição no espaço.”46 Os valores éticos atribuídos às

formas fixas dos nomoi eram a base do conhecimento do

músico que, conhecendo o caráter de cada modo, ficava

incumbido de conduzir o povo ao conhecimento e à verdade. O

ensino da música como instrumento de progresso moral,

através da mímesis, foi difundida pela doutrina do ethos,

estruturada por Damon de Atenas (c. 500 a.C. a ?), Segundo

esta teoria, os modos imitariam os costumes e o regime político

de seu país de origem, possuindo, cada um deles, um caráter

próprio, um ethos, de qualidade mimética e potencialidade

ética capaz de gerar virtude e ânimo no corpo e no espírito.

José Miguel Wisnik declara que:

Nas sociedades pré-modernas, um modo não é

apenas um conjunto de notas, mas uma

estrutura de recorrência sonora ritualizada por

um uso. As notas reunidas na escala são

fetichizadas como talismãs dotados de certos

poderes psicossomáticos, ou, em outros termos,

como manifestação de uma eficácia simbólica

(dada pela possibilidade de detonarem

diferentes disposições afetivas: sensuais,

bélicas, contemplativas, eufórica ou outras).47

45 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido, op. cit., p. 17. 46DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit., p. 118. 47 WISNIK, Idem, p. 75.

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Um modo é uma escala, um conjunto de notas que

segue uma certa sucessão de intervalos fixos entre elas. As

melodias são formadas pelas mais variáveis combinações de

notas de uma escala, uma escolha composicional. Tais

combinações formam frases melódicas. “A escala é uma

reserva mínima de notas, enquanto as melodias são

combinações que atualizam discursivamente as possibilidades

intervalares reunidas nas escalas como pura virtualidade.”48 O

intervalo é a distância entre uma nota e outra. Sendo fixo em

uma escala, torna-se variável quando disposto na composição

de uma melodia. Podemos pensar, assim, que uma escala,

devêm distintas melodias. E que as composições serão, deste

modo, constituídas dos mais diversos devires.

O conteúdo propriamente musical da música é

percorrido por devires-mulher, devires-criança,

devires-animal, mas, sob toda espécie de

influências que concernem também os

instrumentos, ele tende cada vez mais a devir

molecular, numa espécie de marulho cósmico

onde o inaudível se faz ouvir, o imperceptível

aparece como tal: não mais o pássaro cantor,

mas a molécula sonora.49

Tais devires acabam por desestabilizar a fixidez da

escala, modificando as distâncias entre os seus intervalos. Há

aí, então, um agenciamento intervalar, no qual as distâncias

passam a atuar como componente capaz de produzir

sonoridades-afecto. Portanto, é no “entre” uma nota e outra que

se encontra a potência de cada melodia. Esta potência é, no

entanto, variável, e irá depender da força movente com que

cada melodia fará seu passeio para longe do centro, ao invocar

48 Idem ibidem. 49 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit., p.32.

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seu caráter fugidio. Pois estamos falando de um sistema

centrado, o modal, no qual cada modo possui um centro

estabilizador, dotado de um poder atrativo que faz com que a

melodia se volte invariavelmente a ele. É o “entre” que

determina, assim, a natureza de cada intervalo, tornando cada

melodia uma multiplicidade em si. O trajeto melódico se dá nas

sucessões entre pontos, nota a nota, formando a melodia; no

entanto, “o entre-dois tomou toda a consistência, e goza de uma

autonomia bem como de uma direção próprias.”50 Gozar de

autonomia é liberar as linhas traçadas entre os pontos, assim

como as diagonais que delas se originam. Liberar, no sentido

de não prever a eles um caminho, senão dimensões e

intensidades, explosões, invenções, efemeridades.

Mas, afinal, de que maneira poderíamos realizar esta

operação de autonomia, de linhas de fuga? Levando em conta

que a base material para a composição da música compreende

todos os elementos musicais, disponíveis em toda a sonoridade

do mundo (há, nos sons de todo o dia, texturas, intensidades,

alturas, ritmo e melodia), o que liberta essas matérias do

sistema pontual musical – que se encontra todo pronto, e que

foi inventado pelos próprios músicos –, são os devires.

Somente em devir é que haverá uma invenção musical, uma

criação nova, uma música que não se acumule da memória de

sua história, que não esteja submetida a ela. Uma música na

qual, no trajeto de linhas no qual produz uma história, não se

aprisionem os fluxos das diagonais que inauguram seu

acontecimento. Deleuze e Guattari afirmam:

Não há ato de criação que não seja trans-

histórico, e que não pegue ao contrário, ou não

passe por uma linha liberada. Nietzsche opõe a

50 Idem, v. 5, op. cit., p.50;51.

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história, não ao eterno, mas ao sub-histórico, ou

ao sobre-histórico: o Intempestivo, outro nome

para a hecceidade, o devir, a inocência do devir

(isto é, o esquecimento contra a memória, a

geografia contra a história, o mapa contra o

decalque, o rizoma contra a arborescência) (...).

As criações são como linhas abstratas mutantes

que se livraram da incumbência de representar

um mundo, precisamente porque elas agenciam

um novo tipo de realidade que a história só

pode recuperar ou recolocar nos sistemas

pontuais.51

O sistema pontual da música e sua representação

didática, no entanto, foram elaborando-se, passo a passo, ponto

a ponto, em concomitância com a história das ciências

matemáticas, que procuravam padrões para explicar e prever os

fenômenos musicais. O estudo do caráter numérico e

harmônico dos intervalos musicais, por exemplo, foi

desenvolvido por Pitágoras, que calculou as proporções

numéricas entre os intervalos: quando uma corda vibra em uma

frequência fazendo soar um som, outras frequências, múltiplas

desta primeira, vibram internamente, e produzem outros sons

que, muito embora sejam quase inaudíveis, compõem o seu

corpo timbrístico. Deste modo, a ciência exata explica o porquê

de o timbre ser o componente sonoro que ressalta o caráter

material do som. Cada som tem um timbre, e o timbre, é como

soa cada som (a água da cachoeira soa, o vento soa, a porta soa,

o violino, o piano, a flauta, soam): o estudo pitagórico estuda o

corpo do som e o que ele representa. Segundo ainda o estudo

de Pitágoras, os sons que soam nessas frequências internas

múltiplas, fazem parte da escala da nota que lhes deu origem,

formando sua série harmônica e, por isso, são denominadas

51 Idem, v. 4, op. cit., p.95.

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harmônicos52. A ideia dos harmônicos gerou um modelo

musical e cultural que prezava pela permanência, sem

acidentes nem desvios (transformações)53, supondo que a

escala musical obedeça à uma ordem natural e que não

encontre outra possibilidade senão a de mantê-la, tornando-a,

assim, um equalizador social.

RITORNELO: TERRITÓRIO ORA, ORA, ORA

DESTERRITORIALIZÁVEL

Cultivava-se uma forma. A ideia dos harmônicos como

forma, pode determinar um território. A feitura musical que

busca na harmonia somente uma estabilidade, toma como

modelo o sedentarismo, no qual a relação do homem com a

terra é mediatizada pelo regime de propriedade, pelo aparelho

de Estado: enquanto o nomadismo distribui os homens num

espaço aberto, indefinido, não comunicante, o sedentarismo

constrói cercas, muros, e caminhos entre os cercados54. O

espaço do nômade varia sempre suas linhas. Há no caminho do

nômade uma polivocidade de direções, como um rizoma que

muda instante a instante a sua cartografia. E, ainda que este

espaço seja localizado, não pode ser delimitado, pois, ali,

manifesta-se um absoluto local: terra, na qual, ela mesma se

desterritorializa, seguindo seus acontecimentos, sempre

52 Sons harmônicos são aqueles “cujas frequências são múltiplas de uma

mesma frequência fundamental” (CANDÉ, op. cit., p.44.). 53 WISNIK, op. cit., p. 101. 54 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e

esquizofrenia. Vol. 5. 2007. p. 52.

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imprevistos. O espaço do nômade é um espaço liso. O do

sedentário, por sua vez, é estriado. Seus limites são traçados

por linhas de direções constantes, orientadas umas em relação

às outras que, ainda que se lancem de uma parte à outra,

estarão sempre dentro dos limites traçados, formando um

global relativo que freia ou impede a possibilidade de irromper

um espaço liso55.

No entanto, a mescla entre o nomadismo e o

sedentarismo possibilita uma composição que se utiliza, ao

mesmo tempo, de forma e desvio (a música sempre escapa),

pois da relação entre estes dois modelos surgiriam aspectos

variáveis, imprevistos: a princípio nos encontramos em um

campo harmônico dado, estabelecido, estratificado,

estruturado, estriado, como um todo limitado divido em partes.

Porém, se traçamos neste campo caminhos imprevistos, que

modifiquem os agenciamentos entre os conteúdos propriamente

musicais, afetando-os, até que façam se fazer ouvir forças não-

sonoras, somos levados a uma intervenção musical que

transcende a terra: mesmo ocupando um local, ela se faz

nômade, desterritorializada.

É o que pode a música em frente ao ritornelo, termo

que Deleuze e Guattari tomaram emprestado da música, e que

traz uma topologia própria, constituída de diferentes planos:

faz-se o esboço de um centro calmo e estável no seio do caos

(infra-agenciamento); estando já pousado sobre este centro

calmo e estável, organiza-se uma casa no espaço, “mas o em-

casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do

centro frágil e incerto, organizar o espaço limitado” (intra-

55 Idem, p. 54.

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55

agenciamento); a partir do em-casa, faz-se uma abertura, lança-

se, “arriscamo-nos a uma improvisação”56(inter-agenciamento).

Não são três momentos sucessivos numa

evolução. São três aspectos numa só e mesma

coisa, o Ritornelo. Vamos reencontrá-los nos

contos de terror ou de fadas, nos lieder também.

O ritornelo tem os três aspectos, e os torna

simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o

caos é um imenso buraco negro, e nos

esforçamos para fixar nele um ponto frágil

como centro. Ora organizamos em torno do

ponto uma "pose" (mais do que uma forma)

calma e estável: o buraco negro tornou-se um

em-casa. Ora enxertamos uma escapada nessa

pose, para fora do buraco negro (...). Depois o

ponto "salta por cima de si mesmo", e irradia

um espaço dimensional, com suas camadas

horizontais, seus cortes verticais, suas linhas

costumeiras não escritas, toda uma força

interior terrestre (essa força aparece também,

com um andamento mais solto, na atmosfera ou

na água). O ponto (...) saltou portanto de

estado, e representa não mais o caos, mas a

morada ou o em-casa. Enfim, o ponto se atira e

sai de si mesmo, sob a ação de forças

centrífugas errantes que se desenrolam até a

esfera do cosmo57.

Sendo territorial – uma canção, uma cantilena, um lugar

que tranquiliza, como vimos no caso da canção das catadoras

de algodão, lugar onde tem sua gênese –, o ritornelo traz

consigo a noção de repetição, entendida como reiteração de um

objeto: um tema, uma célula rítmica, uma passagem musical

qualquer, prevista pela forma musical, que toma por substância

56 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, 2007, p. 116. 57 Idem, p. 117.

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fórmulas rítmicas, plásticas, segmentos prosódicos, emblemas

de reconhecimento, de leitmotiv, de assinaturas, de nomes

próprios ou seus equivalentes invocatórios58.

Segundo Sílvio Ferraz, o caos é onde as coisas existem

e não tem forma; a terra é onde as coisas têm corpo, nome e

forma; e o cosmo é onde as coisas deixam de ter forma,

fragmentam-se, mas ainda carregam um punhado da terra onde

estavam: o ritornelo vai do caos, passa pela terra e chega no

cosmo. São pequenas frases rodando. Estas frases, enquanto

giram, batem em outras frases, e em outras coisas, e fazem

conexões com elas. Conectam-se, aí, coisas heterogêneas.

Neste encontro, tais frases, motivos, e outras coisas de natureza

diferentes, modulam-se, e fazem modular as coisas com as

quais se conectam. Este modular e ser modulado que acontece

no encontro, gera um ritmo, uma espécie de vai e vem em que

ora um, ora outro, é modulante ou modulado59. Cada conexão

acontece em uma velocidade, em uma densidade, engendrando

diversos tempos: o tempo liso, no qual não se sabe onde as

coisas começam e terminam; o tempo estriado, que se dá como

uma cerca que mede as porções de terra cercada; um tempo que

nos parece presente; um tempo que liga um momento atual a

um momento que passou (como lembrar alguém no momento

em que se canta); e um tempo louco, que conecta livremente

uma coisa com a outra, heterogeneidades, como ligar um som

as estrelas60.

58 LIMA, Henrique Rocha de Souza, op. cit., p. 97, 98, 100. 59 FERRAZ, Silvio. “Deleuze, música, tempo e forças não sonoras.”, 2010,

p. 72. Disponível em

http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_n09/Pag_67.pdf. Acesso em:

14 maio 2015. 60 Idem ibidem.

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57

É a novidade trazida pelo agenciamento entre os

componentes musicais, e entre eles e as coisas do mundo, ou o

fragmento delas, que irão desterritorializar o ritornelo. Neste

sentido, o ritornelo passa a operar na construção de planos

como meio de transporte, de composição, como fio condutor

dos devires que constituem seus conteúdos, e que, ao mesmo

tempo, são inseparáveis da expressão sonora, pois põem em

jogo os componentes musicais desterritorializados. Os devires

tornam sonoros os encontros. São blocos de encontros: do

instrumento com a voz; do tempo estriado com o liso; do som

com a cor; da música com a imagem. O ritornelo, como motivo

que circula, se faz por ele mesmo, se conecta com outros

ritornelos, ou mesmo com pontas de ritornelos, sem deixar, no

entanto, de ser territorial. A tarefa do compositor é desfazer o

território que é o ritornelo, arrancar as coisas do centro deste

território em conexões cósmicas que devolvam a autonomia ao

som61.

Podemos perceber a boa aventura que o som segue

desde os estudos de Pitágoras acerca dos harmônicos. Sua

teoria acabou por possibilitar um estudo sobre a Harmonia das

Esferas, uma cosmologia musical que, segundo José Miguel

Wisnik, faz a analogia entre o som e o número se estender a

outras ordens:

A pesquisa das proporções intervalares provoca

e alimenta o demônio das correspondências e a

suposição do caráter intrinsecamente análogo

ao mundo, pensado através da convergência de

considerações aritméticas, geométricas,

musicais e astronômicas. A ordenação

progressiva que se percebe na seriação interna

do som, em que certas qualidades melódicas se

61 Idem, p. 74.

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revelam regidas por qualidades numéricas,

integra uma cadeia maior de similitudes que

liga a terra e o céu e onde, num eco micro e

macro-cósmico, os astros tocam música.62

O devir cósmico dos gregos fez o som sair do meio

terrestre, lançando-o a um plano móvel que projeta a escala

musical numa distribuição cósmica. No agenciamento entre

sons e números, levado pelos gregos até e astrologia antiga, a

disposição dos sete planetas (Lua, Sol, Vênus, Mercúrio,

Marte, Júpiter e Saturno) desenha no universo uma escala

musical. Na antiguidade grega, a escala dá sentido ao termo

harmonia, como “ordenação, equilíbrio, e acordo que se

depreende dos sons musicais, no modo como conciliam e põem

em consonância a diversidade dos contrários”63. Wisnik nos

conta que Platão, no fim da República, converge o equilíbrio

necessário à cidade, em alegoria, em uma harmonia musical

celeste, através do mito de Er:

Trata-se do mito de Er, o Armênio, a quem é

dado voltar da morte e contar o que viu. Seu

relato epifânico desemboca numa descrição da

máquina do mundo que pode ser perfeitamente

reconhecida por nós, hoje como uma vitrola

cósmica: os oito círculos estrelares (o zodíaco

contendo os sete planetas) giram em rotação

suave pendidos de um fuso, em várias

velocidades (segundo os diferentes ritmos

planetários). Sobre cada círculo gira uma Sereia

emitindo um som diferente, “e de todas elas,

que eram oito, resultava um acorde de uma

única escala”, dando a ouvir, podemos dizer, a

gama de sons de seu estado idealmente

sincrônico. Mas o fuso roda nos joelhos da

62 WISNIK, op. cit., p. 99. 63 Idem Ibidem.

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59

Necessidade, e suas três filhas, as Parcas

(Láquesis, o passado; Cloto, o presente;

Átropos, o futuro), que cantam ao som das

Sereias, tocam e giram, cada uma a seu modo,

os círculos (“Cloto, tocando com a mão direita

no fuso, faz girar o círculo exterior, de tempos

em tempos; Átropos, com a mão esquerda,

procedia do mesmo modo com os círculos

interiores, e Láquesis tocava sucessivamente

nuns e noutros com cada uma das mãos”).64

Esta máquina do mundo, esta vitrola cósmica, onde

ressoa a harmonia universal idealmente sincrônica, por vezes

ecoa na operação da composição musical como busca da

organização de uma sociedade harmoniosa, na qual o desajuste

dissonante de um acorde imprevisto é um risco evitado. Dá-se

aí o encontro da música com sua potência “fascista”, a qual,

segundo Deleuze e Guattari, torna a música capaz de arrastar

povos e exércitos, “numa corrida que pode ir até o abismo,

muito mais do que o fazem os estandartes e as bandeiras.”65

No entanto, o seu caráter ambivalente, do qual nos fala

José Miguel Wisnik, faz com que a música opere tanto nesse

modelo agregador de uma sociedade idealmente harmônica,

quanto é capaz de desajustá-la, decompô-la, dissolve-la,

desintegrá-la: a música é risco eminente. É fator

desteritorializante, capaz de arrancar as cercas, misturar as

matérias dos meios, inventar territórios, contrapor motivos,

reterritorializá-los, e novamente desterritorializá-los, em

movimentos constantes, fluidez, maquinações capazes de

64 Idem, p. 100. 65 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit., p. 103.

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forçar o pensamento para novas direções. Ir do caos ao cosmo.

Estar entre caos e cosmos: a caosmose da música esquiza.

MÁQUINA SONORA NA MAQUINARIA CÊNICA

“Do caos nascem os Meios e os Ritmos”. Na escrita

deste texto, tenho intuído que, na maquinaria cênica do

acontecimento teatral, cada elemento cênico (corpo, espaço,

som, luz, objeto) é “um vivo”, tendo seus códigos

perpetuamente transcodificados. Tal transcodificação é o modo

como cada meio se põe em relação ao outro, como afirmam

Deleuze e Guattari: Assim, um vivo tem um meio exterior, que

remete aos materiais; um meio interior, que

remete aos elementos componentes e

substâncias compostas; um meio intermediário,

que remete às membranas e limites; um meio

anexado, que remete às energias e às

percepções-ações. Cada meio é codificado,

definindo-se um código pela repetição

periódica; mas cada código é um estado

perpétuo de transcodificação ou de transdução.

A trasncodificação ou transdução é a maneira

pela qual um meio serve de base para o outro

ou, ao contrário, se estabelece sobre o outro, se

dissipa ou se constitui no outro. 66

Então, cada elemento cênico tem, ele mesmo, o meio

exterior, onde estão dispostos os outros elementos cênicos com

os quais se relaciona; o meio interior, onde estão as matérias

que o compõe; o meio intermediário, como aquilo que lhe dá

66 Idem. p. 118.

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seus contornos; e o meio anexado, uma potência perceptiva

com a qual agirá, no acontecimento, tal elemento. A música,

como um dos elementos do acontecimento cênico, tem como

meio exterior toda a ambiência da cena, o espaço, o corpo, e

tudo o que ali se põe em relação; como meio interior, seus

elementos e substâncias: alturas, intensidades, motivos,

sonoridades, texturas, dimensões; como meio anexado, a

potência sonora com que seus componentes afetam e agenciam

o acontecimento cênico, fazendo bloco com os outros

elementos da cena teatral. O meio intermediário da música,

suas membranas e limites, seus contornos, são, no entanto,

incomensuráveis. Pitágoras, quando mede a frequência de uma

nota e delimita o contorno de um “corpo timbrístico”, não

alcança as dimensões absolutas de suas ondas em decibéis. Não

há como delimitar com exatidão a membrana de uma

frequência sonora, sendo, portanto, um corpo sem contornos.

Corpo que se move e afeta numa variação infinita de

intensidades e amplitudes. A música, em suas tensões sônicas,

vibra nos meios exteriores, nas matérias da cena, no corpo, no

espaço, e os afeta para além dos seus contornos. Na obra “O

ouvido pensante”, de Murray Schafer, encontro a clara

indicação deste fenômeno: “as tensões sônicas de uma

paisagem sonora existem num espaço virtual, passam através

das paredes da sala e se espalham, estendendo-se para o

horizonte acústico, em todas as dimensões.”67 Os contornos

sempre borrados da música, fazem-se na desmesura mesma de

sua potência, na intensidade de sua frequência: desta forma, o

meio intermediário da música está intrinsecamente relacionado

com seu meio anexado, com o modo como sua energia atua em

sua potência de agir. A música escapa, invade, penetra,

transpassa e atravessa os outros elementos. Vendo-se incapaz

67 SCHAFER, Murray. O ouvido Pensante, 1991, p. 80.

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de delimitar-se, a música causa, em seu meio exterior, um

contágio sem contensão: seu meio exterior se estabelece nos

materiais e, simultaneamente, dissipa-os, enquanto se desfaz e

se reconstitui nos meios todos que cruzam o tempo-espaço da

cena. Uma vez apropriada da potência expressiva de seus

componentes, produz um território; e, colocando-os em

contraponto com as matérias expressivas dos outros elementos,

modifica-se e modifica-os, desarranja-se e desarranja-os. A

música propõe uma desterritorialização. Máquina sonora em

operação na maquinaria cênica.

Caos: meio de todos os meios. Os meios encontram-se

abertos no caos antes de serem codificados, estando, por isso,

ameaçados de esgotamento ou de intrusão. “Mas o revide dos

meios ao caos é o ritmo.”68 Um ritmo acontece sempre que há

passagem de códigos entre dois meios, sempre que há uma

transcodificação no tempo de sua comunicação, desde que esse

ritmo não seja uma medida regular, um dogma. O ritmo com o

qual os meios enfrentam o caos é, antes, desigual, desmedido,

crítico:

É que uma medida, regular ou não, supõe uma

forma codificada cuja unidade medidora pode

variar, mas num meio não comunicante,

enquanto que o ritmo é o Desigual ou o

Incomensurável, sempre em transcodificação. A

medida é dogmática, mas o ritmo é crítico, ele

liga os instantes críticos, ou se liga na passagem

de um meio para outro. Ele não opera num

espaço-tempo homogêneo, mas com blocos

heterogêneos. Ele muda de direção. Bachelard

tem razão em dizer que “a ligação dos instantes

verdadeiramente ativos (ritmo) é sempre

68 Idem, p. 119.

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efetuada num plano que difere do plano onde se

executa ação”. O ritmo nunca tem o mesmo

plano que o ritmado. É que a ação se faz num

meio, enquanto que o ritmo se coloca entre dois

meios, ou entre dois entre-meios, como entre

duas àguas, entre duas horas, entre o lobo e o

cão, (...), Hecceidade. Mudar de meio,

produzindo com energia, é ritmo.69

Os meios não são territórios. O território é um ato que

afeta e territorializa os meios e os ritmos. O ato cênico,

portanto, instaura o território da cena que territorializa meios e

ritmos. “Há território a partir do momento em que há

expressividade do ritmo. É a emergência das matérias de

expressão (qualidades) que vai definir o território.”70 As

matérias sonoras não tornadas expressivas não participam de

um processo de territorialização. O território da cena, é, ele

mesmo, produzido neste processo de territorialização: a cena se

produz no mesmo instante em que se apropria dos meios,

tomando para si códigos dos componentes dos meios dos quais

se apropriou. Uma vez que o meio se efetiva através de uma

repetição periódica que, no entanto, não tem outro efeito senão

produzir uma diferença, a repetição é rítmica: o ritmo aparece

como uma síntese entre a repetição e a diferença, como a

repetição que produz a diferença. Deleuze afirma, em

Diferença e Repetição: “O teatro é o movimento real e extrai o

movimento real de todas as artes que utiliza.”71 É o teatro da

repetição, e não o da representação.

69 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit., p. 119. 70 Idem, p. 121. 71 DELEUZE, G. Diferença e Repetição, 2006, p. 30.

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No teatro da repetição, experimentamos forças

puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem

intermediário, agem sobre o spírito, unindo-o

diretamente à natureza e à história;

experimentamos uma linguagem que fala antes

das palavras, gestos que se elaboram antes dos

corpos organizados, máscaras antes das faces,

espectros e fantasmas antes das personagens –

todo o aparelho da repetição como “potência

terrível”.72

É no teatro da repetição que a música de cena, de fato,

mostra essa sua potência terrível, sua energia invadindo,

penetrando, transpassando, antes das palavras, dos gestos, das

máscaras. A música, em bloco com o devir-esquizo-música-de-

cena, ressoa por uma multiplicidade de direções o que, pela

repetição, produz-se como algo efetivamente novo. Então, algo

se dimensiona. As matérias sonoras são anteriores ao território

musical, assim como as matérias expressivas são anteriores ao

território cênico. Só há território quando os componentes do

meio deixam de ser direcionais e passam a ser dimensionais; e

quando estes mesmos componentes deixam de ser funcionais e

passam a ser expressivos. O território é, de fato, o ato cênico. O

processo de territorialização da cena, se dá, assim, no mesmo

momento em que as mais diversas matérias dos mais diversos

elementos que compõe a cena, deixam de exercer funções (uma

luz não terá mais, apenas, a função de iluminar, ela torna-se

expressão: ela atua) e passam a ser expressivas. A cena torna-

se, deste modo, o território cênico, no mesmo momento em que

suas matérias passam a atuar, têm potência de agir.

Uma polifonia é feita de componentes melódicos

variados que acontecem consecutivamente. Este é seu

72 Idem, p. 31.

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território. O componente melódico é feito de componentes

funcionais (altura, timbre, duração, intensidade). Os

componentes melódicos da polifonia tornam consecutivas

diferentes expressões de altura, timbre, duração, intensidade.

Tais componentes funcionais, sem se tornarem expressivos,

existem disponíveis no meio musical, mas sem território. É no

acontecimento, no ato, na cena desta polifonia que estas

diferentes direções criam dimensão, e estas funções, expressão:

o território da música polifônica.

A música polifônica apresenta uma emissão simultânea

de melodias variadas, numa superposição de linhas melódicas

independentes. A relação entre as melodias simultâneas se dá

livremente, em uma pluralidade que não ordena a direção

diagonal entre as melodias. Como em seu início a polifonia é

modal, é reiterativa: o movimento de cada melodia é circular,

em torno de uma nota fixa. Em sua circularidade, a melodia

segue, segundo Wisnik, um “não-tempo”, ou seja, “um tempo

circular do qual é difícil sair, depois que se entra nele, porque é

sem fim.”73 É possível perguntar, porém, como poderia a

relação entre as melodias se dar livremente, uma vez que se

viam destinadas à um movimento reiterativo, à um centro fixo?

O que, no entanto, viam-se libertas eram as relações que se

davam entre suas horizontais (melódicas) e verticais (de

duração), nas quais não seria possível identificar um ponto a

seguir. As diagonais, que ali se inauguravam, não anunciavam

um seguimento de ponto a ponto, não seguiam linhas de

direções fixas. Na polifonia as diagonais são mutáveis,

imprevistas. O ponto, liberto de um sistema pontual, faz

proliferar as linhas, desviando-as, como mostra-nos Deleuze e

Guattari:

73 WISNIK, op. cit., p.36.

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66

O importante é que todo músico procedeu

sempre assim: traçar sua diagonal, mesmo que

frágil, fora dos pontos, fora das coordenadas e

das ligações localizáveis, para fazer flutuar um

bloco sonoro numa linha liberada, criada, e

soltar no espaço esse bloco móvel e mutante,

uma hecceidade (por exemplo, o cromatismo,

os agregados e notas complexas, mas já todos

os recursos e possibilidades da polifonia, etc.).

(...) A diagonal é frequentemente feita de linhas

e espaços sonoros extremamente complexos.

Estaria aí o segredo de uma pequena frase ou de

um bloco rítmico? Sem dúvida, então, o ponto

conquista uma nova função criadora essencial:

não se trata mais simplesmente do destino

inevitável que reconstitui um sistema pontual;

ao contrário, é agora o ponto que se encontra

subordinado à linha, e é ele que marca a

proliferação da linha, ou seu brusco desvio, sua

precipitação, sua desaceleração, sua fúria ou

sua agonia.74

Enquanto função territorializada, as matérias de

expressão constituem planos de expressividade que

transportam, no meio interior dos impulsos, o que Deleuze e

Guattari chamam de Personagens Rítmicos, ou motivos

territoriais, que funcionam como ritornelos. Estes Personagens

atuam como elementos diferenciais que nascem do choque

entre as matérias de expressão, produzindo, no interior do

território, um nível de consciência estético, um plano de

consistência da relação entre as funções territorializadas: é a

relação entre funções territorializadas tornadas expressivas. Já

as matérias de expressão autônomas, que não mais respondem

uma função, atuam no meio exterior das circunstâncias e,

desengatando-se de um território, vão servir de elemento a um

74 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit. p. 96.

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67

outro: desterrritorializa para reterritorializar. Isto se repete e

repete e repete, desterritorializando e reterritorializando o

ritornelo. Essa aptidão é que torna possível que um território

faça contraponto com um outro. A intermodulação entre os

territórios, pela qual se mantêm abertos e conectados uns com

os outros, compõem, então, as Paisagens Melódicas, o

contraponto territorial. Se voltarmos à polifonia, percebemos

que ela se constitui tanto das matérias de expressão

territorializadas, agindo sobre os motivos territoriais que

compõem as melodias sobrepostas (os ritornelos), quanto das

matérias de expressão autônomas que, pondo em relação os

componentes melódicos, ou os motivos, formam os

contrapontos territoriais que marcam a polifonia (capazes de

desterritorializar os ritornelos): uma cena, uma música esquizo

de cena.

DA CENA POLIFÔNICA À EXEGESE DA

TONALIDADE EM CENA

Com a intensão de controlar o abalo sísmico polifônico,

a igreja implanta em sua prática musical o canto homofônico.

Sua intenção era promover uma apresentação mais clara das

palavras (que se encontravam nas horizontais, nas melodias)

dos textos litúrgicos para os seus fiéis75. Esta preocupação

trouxe a observância da relação vertical entre as vozes.

Enquanto na polifonia há uma multiplicidade de vozes

independentes, imiscíveis e superpostas, cantando textos

75 WISNIK, op. cit., p. l 17- 119.

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variados, na homofonia, as várias vozes cantam

simultaneamente o mesmo texto, subordinados a uma harmonia

Incorporado paulatinamente à homofonia, o sistema tonal vai

consolidando-se durante a reviravolta musical polifônica,

juntamente com a transição do mundo feudal para o

capitalismo. Segundo afirma Valéria Bittar, a música tonal

tornou-se, no final do século XVIII, “o emblema da expressão

musical ocidental, gerando formas por sua vez também

emblemáticas dessa cultura”76, quando já não é mais vista

apenas como uma espécie de linguagem, mas sobretudo como

um modo de comunicação. Diferindo da música modal que

circula em torno de uma tônica fixa, tendo-a como centro

atrativo, a música tonal propõe o deslocamento deste centro

através de modulações e produz “a impressão de um

movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo

para as novas regiões, onde cada tensão (continuamente

reposta) se constrói buscando o horizonte de sua resolução.”77

Até o começo do século XX, tanto a música modal

como a tonal, estiveram vinculadas à uma mensagem mimética

do real transpondo-o para um ideal sonoro social, irreal,

mágico, fantástico, mítico. No entanto, diferente do sistema

modal, no qual o centro produzia uma enorme atração,

evitando que as melodias escapassem dele, o sistema tonal vê-

se mais capaz de traçar linhas fugidias. Embora ainda apresente

76 “O sistema tonal passou por um fértil período de cruzamento e

transitoriedade com o sistema modal entre os séculos XVI e XVII vindo a

fixar-se, propriamente, na música do Ocidente a partir do século XVIII,

tornando-se no final desse século o emblema da expressão musical

ocidental, gerando formas por sua vez também emblemáticas dessa cultura.

(BITTAR, Valéria Maria Fuser. Músico e ato. Tese de doutorado em Artes

Cênicas. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2012, p. 30). 77 WISNIK, idem, p. 114.

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um centro, inaugura uma abertura, através das modulações, dos

passeios de uma tonalidade a outra, que possibilita “estender a

ação do centro aos tons mais longínquos”78, dissolvendo o

centro, desestabilizando-o. Neste novo processo de

territorialização, exegese da tonalidade, se produzem as

matérias de expressão, os motivos territorias ou Personagens

Rítmicos, como elemento estético. Tais matérias de expressão

adquirem autonomia ao interagir umas com as outras, em

relações móveis, em contrapontos territorias: são as Paisagens

Melódicas que propõem as modulações, pondo em risco o

próprio território tonal, pois passam a exprimir a relação do

território com o meio interior dos impulsos e com o meio

exterior das circunstâncias:

Ora, exprimir não é pertencer; há uma

autonomia da expressão. De um lado, as

qualidades expressivas estabelecem entre si

relações internas que constituem motivos

territoriais: ora estes sobrepujam os impulsos

internos, ora se sobrepõem a eles, ora fundem

um impulso no outro, ora passam e fazem

passar de um impulso a outro, ora inserem-se

entre os dois, mas eles próprios não são

"pulsados". Ora esses motivos não pulsados

aparecem de uma forma fixa, ou dão a

impressão de aparecer assim, mas ora também

os mesmos motivos, ou outros, têm uma

velocidade e uma articulação variáveis; e é

tanto sua variabilidade quanto sua fixidez que

os tornam independentes das pulsões que eles

combinam ou neutralizam79.

78 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 2, 2007, p. 38. 79 Idem, v. 4, op. cit., p. 124.

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70

Abre-se o seguinte ponto: é na relação dos Personagens

Rítmicos (como elementos estéticos) com as Paisagens

Melódicas (como o contraponto entre estes elementos) que

nasce uma música esquiza. Então, se transpormos esta

operação para o acontecimento cênico, somos levados a pensar

da seguinte maneira: 1) um elemento cênico é um território

(corpo, espaço, som, luz, objeto) instituído no mesmo momento

em que suas matérias deixam de ser funcionais e passam a ser

expressivas – tornadas expressivas, mas ainda dentro do

território (como componentes do próprio elemento:

temperatura, dimensão, ritmo, intensidade, densidade), essas

matérias põe-se em relação internas umas com as outras,

fazendo nascer uma qualidade estética, um Personagem

Rítmico; 2) pelas qualidade estéticas que adquiriram, as

matérias expressivas que formam cada elemento tornam-se

autônomas, e entram em relação com as matérias de outro (ou

de outros) elemento da cena, criando um contraponto com eles,

uma Paisagem Melódica. Vemos, assim, que é, também, na

relação entre as Personagens Rítmicas e as Paisagens

Melódicas que se dá o acontecimento cênico.

O sistema tonal, ou diatônico, estabelece um binarismo

explícito que elege dois modos e os fixa como modelos: o

maior (o jônio modal) e o menor (o eôlio modal). Por muito

tempo, e ainda hoje, atribuiu-se a cada modo certas

características: diz-se que o modo maior é capaz de representar

a alegria, a boa aventurança; o menor, a melancolia e a tristeza.

Deleuze e Guatarri observam, porém, no modo menor, maior

possibilidade de escapar da atração que o sistema centrado do

tonalismo impõe, e dizem:

No sistema tonal ou diatônico da música, as leis

de ressonância e de atração determinam, em

todos os modos, centros válidos, dotados de

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estabilidade e de poder atrativo. Esses centros

são assim organizadores de formas distintas,

distintivas, claramente estabelecidas durante

determinadas porções de tempo: sistema

centrado, codificado, linear, de tipo

arborescente. É verdade que o "modo" menor,

em virtude da natureza de seus intervalos e da

menor estabilidade de seus acordes, confere à

música tonal um caráter fugidio, evasivo,

descentrado. Isso explica a ambiguidade de ser

submetido a operações que o alinham pelo

modelo ou padrão maior, mas entretanto

também a de fazer valer uma certa potência

modal irredutível à tonalidade, como se a

música viajasse, e reunisse todas as

ressurgências, fantasmas do oriente, recantos

imaginários, tradições de todas as partes80.

Johann Sebastian Bach (1685-1750) levou a polifonia à

uma espécie de composição fugal, na qual estão contidas, além

da polifonia, a repetição de um tema em vozes variadas. Com

esta composição, Bach sincronizou dois mundos, este e o outro.

Pelas regras do contraponto, as mesmas na terra e no céu, a

harmonia entre os dois estava garantida: “A vida aqui em baixo

e ali em cima constituem, sem interrupção, uma fuga perfeita.

A lei da existência física e espiritual de Bach é a polifonia.”81

Trata-se de uma estrutura composicional que trabalha sobre

oposições defasadas de repetições que não se desenvolvem da

mesma maneira. Nela aparecem pelo menos dois grupos de

personagens (temas) que, como nos diz Wisnik, “se perseguem

e se escapam, que se alcançam e se distanciam, as vozes se

80 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 2, op. cit., p. 38. 81 CARPEAUX, op. cit., p. 112.

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confundem e se diferenciam continuamente até se encontrarem,

‘por uma última vez’, no fim do percurso.”82

Das intensificações do cromatismo, que utiliza os doze

semitons da escala cromática (na qual todos os intervalos de

uma escala são de um semitom), as tonalidades e seus campos

harmônicos ganharam graus de independência que levaram as

melodias para cada vez mais longe do centro tonal. Os

compositores dos séculos XVII ao IX desenvolveram os novos

coloridos e os matizes sonoros que a escala cromática oferecia,

até a música ocidental desembocar em um cromatismo

intempestivo que propôs dissipar os limites entre as

tonalidades. O sistema tonal, no entanto, ainda hoje opera,

muitas vezes, como um sistema centralizado, binário,

organizador e estruturante, tal e qual o sistema capitalista.

ATONALIDADE: MUTIPLICIDADE ESQUIZA EM

CENA

Entretanto, é preciso esperar que o cromatismo

se desencadeie, se torne um cromatismo

generalizado, se volte contra o temperamento, e

afete não somente as alturas, mas todos os

componentes do som, durações, intensidades,

timbres, ataques. Assim, não se pode mais falar

de uma forma sonora que viria organizar uma

matéria; nem mesmo se pode mais falar de um

desenvolvimento contínuo da forma. Trata-se,

antes, de um material deveras complexo e

82 WISNIK, op. cit., p. 167.

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bastante elaborado, que tornará audíveis forças

não-sonoras83.

A intensificação do cromatismo parece possibilitar, no

início do século XX, encontros frutíferos entre as matérias

sonoras. Visto que desde o início do estudo erudito da música

tentou-se estruturar formas sistemáticas para tais matérias, elas

não deixaram de encontrar-se libertas em seus meios, como

sonoridades carregadas de grande autonomia, prontas a

inaugurar, a todo tempo, um novo acontecimento, e outro, e

novamente outro. Muitos compositores daquele momento,

atentos ao desejo de fazer fruir agenciamentos livres, lançam

ao ar (assim como lançaram outros compositores, em outros

momentos) os rasgos fronteiriços dos sistemas musicais.

O atonalismo desenvolveu-se das muitas investidas à

fuga da tonalidade e de suas leis, fixadas nos séculos

anteriores. O cromatismo, já encontrado na obra de Wagner, e

mais tarde o dodecafonismo criado por Schoenberg que

rejeitaram, cada um a seu modo, o princípio tonal, libertando-

se do movimento cadencial de tensão e repouso.84 No lugar de

criar frases melódicas, as composições dodecafônicas criam

séries que renunciam a “recorrência melódica, harmônica,

rítmica, através de uma organização simultaneísta de todos os

materiais sonoros.”85 Esta música não se prestou a conduzir a

memória por caminhos seguros, logrando a escuta do material

repetido a ponto de não fazer-se mais reconhecer. Buscou

desierarquizar as notas, dando a todas elas a mesma

importância, a fim de ausentar qualquer centro melódico. Não

83 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 2, op. cit, p. 38. 84 WISNIK, Idem, p. 173. 85 Idem p. 174.

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há mais um tempo linear, previsível. A horizontalidade e a

verticalidade que configuravam a tonalidade, foram

subvertidas. Outras formas passaram a vigorar no ambiente

sonoro, abrindo possibilidades múltiplas na concepção das

obras. O tema, motivo condutor, ora monódico, ora polifônico,

ora melodia acompanhada por uma harmonia, também sofreu

aí uma explosão, tendo sido substituído por séries. Estas,

formadas pelas doze notas da escala cromática, tiram do jogo

melódico a possibilidade de um centro, como aponta Sílvio

Ferraz: “A série é, assim, este lugar em que todas as notas

(eventos e elementos) têm o mesmo valor e no qual todo o

pensamento da música tonal e da música modal (músicas nas

quais uma tonalidade principal serve como regente) deixa de

valer.”86Das possibilidades nascentes nesta nova música, uma

delas foi o espelho: uma série poderia, depois de sua exposição,

começar de seu inverso e seguir a diante, até o começo. E

qualquer novo impulso poderia ser apresentado. Wisnik

informa que Weber, em uma carta ao compositor Hildegard

Jones, propõem como ideia de série a inscrição latina:

S A T O R

A R E P O

T E N E T

O P E R A

R O T A S

86 FERRAZ, op. cit., p. 70.

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75

Winsik explica: “frase que pode ser lida em quatro

sentidos direcionais diferentes, à maneira de uma série que

pudesse ser, ao mesmo tempo, o original, a inversão, o

retrógrado, e o retrógrado da inversão.”87

De qualquer maneira, essas novas estruturas musicais

pareciam trazer para a sonoridade uma certa “área de atuação”

inscritas no espaço e no não tempo em que se apresentavam.

Neste mesmo momento, em todo o mundo ocidental,

aconteciam manifestações culturais que reivindicavam libertar

a arte de modelos arcaicos, e lançavam propostas de novas

relações mais intensas das linguagens artísticas, como a

performance art, que cria intercessões entre literatura, artes

visuais e artes do corpo. O teatro renunciava o drama, no

mesmo tempo em que a música renunciava à tonalidade,

recém-chegada. Talvez por ambos os modelos pressuporem

formas fixas, talvez por serem caminhos seguros a seguir,

quando a arte visava, naquele momento, rumos incertos, cheios

de novas possibilidades.

Modal, tonal ou atonal, a música sempre pretendeu o

encontro, e encontrou-se com matérias que as desensarilharam

das formas. E é se lançando em espaços desconhecidos,

inseguros, improváveis, intempestivos, pelo desejo do

encontro, formando blocos de devires com as coisas do mundo,

com as não-coisas e com os fragmentos de coisas, que música

pôde sempre arremessar-se ao cosmos.

87 WISNIK, idem, p. 183.

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MÚSICA E CENA NUM PRESENTE SEM ESPESSURA

A música dura o tempo que soa? Olivier Messiaen

(1908-1992), compositor francês neobarroco, não pensa assim.

Para ele, a música se põe fora do tempo cronológico, e ganha o

tempo da eternidade, sem início nem fim, como se sempre ali

estivesse.88 Deleuze apresenta o tempo da eternidade com o

tempo do Aiôn89, o presente do ator, um presente sem

espessura, no qual o acontecimento é um instante móvel, o já

ido e o por vir; não o que acontece, como um acidente, mas o

puro expresso no que acontece, que nos dá sinal e que nos

espera. Este instante extrai do presente, como dos indivíduos e

das coisas, suas singularidades, seus sons que não se

confundem com o barulho dos corpos, pontos singulares

projetados uma vez no futuro, outra no passado, formando

nesta dupla equação os elementos constituintes do puro

acontecimento. Transposto este tempo para o acontecimento

teatral, Deleuze afirma:

O presente do ator é o mais estreito, o

mais cerrado, o mais instantâneo, o mais

pontual, ponto sobre uma linha reta que não

cessa de dividir a linha e de se dividir a si

mesmo em passado-futuro. O ator é do tempo

do Aion: no lugar do mais profundo, do mais

pleno presente, presente que se espalha e que

compreende o futuro e o passado, eis que surge

um passado-futuro ilimitado que se reflete em

um presente vazio (...). O que ele desempenha

não é nunca um personagem: é um tema (o

tema complexo ou o sentido) constituído pelos

componentes do acontecimento, singularidades

88 FERRAZ, op. cit., p. 67. 89 DELEUZE, G. Lógica do sentido, 2003, p. 66.

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comunicantes efetivamente liberadas dos

limites dos indivíduos e das pessoas.90

Tenhamos claro que as matérias com as quais o teatro

compõe seus elementos estão em um plano imanente, livres em

um meio, coisas e não coisas do mundo. Tudo o que diz

respeito à cena se encontra nesse plano. Um desejo, um bloco

de devir, basta para fazer acontecer o encontro. Nova

expedição. As matérias expressivas entram em relação e

formam motivos que, impulso a impulso esculpem uma forma.

As formas, por sua vez, em articulações das mais variadas, ora

se fixam, ora se combinam e se modulam, ora fundem-se, ora

desaparecem e deixam um fragmentozinho. E eis que, no meio

desta expedição, acontece a cena. Neste novo plano de

composição em que se encontra a cena (entremeada de tantos

encontros), está soando a música de cena. É fácil supor que a

música tenha passado por uma expedição semelhante. Cena,

música, e seus ritornelos em um encontro que tem a potência

necessária para lança-los num maquinado cósmico. É preciso

querer este acontecimento. Intuição volitiva, transmutação.91 A

máquina sonora põe-se a funcionar, fazendo soar, então, seu

grande ritornelo cósmico no acontecimento teatral. Mas, afinal,

pergunto com Deleuze: “Que quer dizer então querer o

acontecimento?

(...) uma mudança de vontade, uma

espécie de salto no próprio lugar de todo o

corpo que troca sua vontade orgânica por uma

vontade espiritual que quer agora não

exatamente o que acontece, mas alguma coisa

no que acontece, alguma coisa a vir de

conformidade ao que acontece, segundo as leis

90 Idem, p.153. 91 Idem, p. 152.

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de uma obscura conformidade humorística: o

Acontecimento. (...) Não se pode dizer nada

mais, nunca se disse nada mais: tornar-se digno

daquilo que nos ocorre, por conseguinte, querer

e capturar o acontecimento, tornar-se o filho de

seus próprios acontecimentos e por aí renascer,

refazer para si mesmo um nascimento, romper

com o seu nascimento de carne.92

A expedição que aqui apresento chama-se Entrevista

com Stela do Patrocínio. As matérias expressivas que

compõem as falas de Stela tornaram-se autônomas a ponto de

pular o muro da instituição psiquiátrica onde viveu Stela. E

virou livro. E virou música que deviu cena. E virou

acontecimento teatral. Entrevista com Stela do Patrocínio é um

espetáculo executado por piano e voz, uma ópera mínima. Pude

assisti-lo pela primeira vez, no Teatro do Centro Integrado de

Cultura, em Florianópolis, no ano de 2006. Quando entrei no

teatro, a sala já estava cheia. Enquanto o público entrava, a

atriz Georgette Fadel, em frente ao palco, narrava, em primeira

pessoa, a chegada de Stela do Patrocínio no Centro Psiquiátrico

Pedro II, no Rio de Janeiro. O piano soava uma nota. Lincoln

Antonio, o pianista, variava o tempo, insistindo na gravidade

da cena. Assim que se apagaram as luzes da plateia, a atriz

subiu no palco, disse fragmentos soltos da narrativa, e começou

a cantar. Duo. Duplo. Dobra. O meio de uma expedição. Um

devir-louco das profundidades que sobe a superfície.

92 Ibidem idem.

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80

A MARAVILHOSA EXPEDIÇÃO DO FALATÓRIO DE

STELA

93

Stela do Patrocínio nasceu no dia 9 de janeiro de 1941,

no Rio de Janeiro. Era filha de Manuel do Patrocínio e Zilda

Xavier do Patrocínio. Era solteira. Tinha instrução secundária e

trabalhava de empregada doméstica. Aos vinte e um anos foi

diagnosticada esquizofrênica e internada no Centro Psiquiátrico

Pedro II94, no Engenho de Dentro. Foi transferida para a

93 Imagem disponível em: analyticon.arteblog.com.br. Acessado em 22 de

maio de 2014

94 Antigo Hospital do Engenho de Dentro e atual Instituto Municipal de

Assistência à Saúde Nise da Silveira, que abriga, desde 1952, o Museu de

Imagens do Inconsciente.

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Colônia Juliano Moreira95, em Jacarepaguá, em 1966, e lá

permaneceu até sua morte, em 1992.

Eu estava com saúde

Adoeci

Eu não ia adoecer sozinha não

Mas eu estava com saúde

Me adoeceram

Me internaram no hospital

E me deixaram internada

E agora eu vivo no hospital

como doente

O hospital parece uma casa

O hospital é um hospital96

Stela do Patrocínio sobreviveu ao processo de

mutilação da individualidade, da subjetividade, da

singularidade e do desejo, próprio das estruturas psiquiátricas

arcaicas e tradicionais que funcionavam no Brasil na década de

sessenta. Foi somente na década de oitenta que a Colônia

Juliano Moreira, onde Stela encontrava-se internada, passou

pelo o que foi chamado de Reforma Psiquiátrica. A partir de

então, houveram transformações no sentido da humanização e

do resgate da cidadania dos internos. Foram abolidos os

castigos, a lobotomia, as celas fortes e o eletrochoque97.

Entre os anos de 1986 e 1988 a artista plástica Neli

Gutmacher ─ professora da Escola de Artes Visuais do Parque

Lage, no Rio de Janeiro ─ e seu grupo de alunos foram

convidados pela Psicóloga Denise Correia para montar um

95 Fundada como instituição psiquiátrica em 1924. Tanto a Colônia Juliano

Moreira quanto o Hospital do Engenho de Dentro foram criados para

receber a grande demanda de internos do Hospício da Praia Vermelha. 96 PATROCÍNIO, op. cit., p.51. 97 Idem. AQUINO, Ricardo. “Estrela”, p.15.

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82

ateliê na Colônia Juliano Moreira. Foi quando Stela do

Patrocínio chamou atenção pela singularidade.

Parecia uma rainha, não se portando como as

outras, que se aglomeravam, pedindo sempre.

Diferenciava, em um silêncio agudo, sua forma

própria de se colocar no espaço. Impossível era

não vê-la: negra, alta, com muita dignidade no

porte, algumas vezes enrolada em um cobertor

com o rosto e os braços pintados de branco.98

Durante o desenvolvimento do trabalho do ateliê, Stela

do Patrocínio acabou estabelecendo uma ligação com a artista

Neli Gutmacher e com a estagiária Carla Gaguilard que,

admiradas pela poesia presente nas falas de Stela, decidiram

gravá-la. Em 1988, artistas envolvidos com o trabalho na

Colônia montaram a exposição “Ar subterrâneo”, no Paço

Imperial, com os trabalhos realizados durante as oficinas. Entre

as obras expostas estavam algumas falas de Stela transcritas

para pequenos quadros. Foi a primeira vez que a fala de Stela

rompeu a concretude dos muros da instituição. Em 1991 a

estagiária de psicologia Mônica Ribeiro de Souza gravou e

transcreveu os atendimentos que fazia com Stela, organizando-

os em um pequeno livro datilografado99. Em 1992, depois de

30 anos de isolamento, Stela do Patrocínio teve a perna

amputada por causa de uma hiperglicemia. A partir de então

recusou-se a falar e a comer. A ferida não cicatrizou e Stela

morreu de infecção generalizada.

Stela converteu a experiência vivida durante seus trinta

anos de encarceramento em palavras-potência, que devoram o

sentido e fazem desaparecer toda a organização da superfície,

98 Idem. MOSÉ, Viviane. “Apresentação”, p.20. 99 Idem, p. 155.

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83

poesia que nasce de uma ordem primária terrível. A força

imanente de sua fala a permite transmutar a fatalidade, o

trágico, aquilo em que não podia interferir. Maria Luiza

Monteiro Guimarães, em sua dissertação de mestrado,

intitulada Falas de Stela do Patrocínio: linhas de fuga para a

vida, afirma que “definindo seu espaço de sobrevivência na

própria situação limite onde era sempre reconduzida, Stela

mantinha-se produtiva e potente.”100 Como proprietária de um

corpo-espaço-tempo-gazes, Stela produz as três dimensões do

corpo esquizofrênico. Um corpo-coador, que capta a superfície

e a pele perfuradas por uma infinidade de pequenos buracos, e

não é mais que uma profundidade de um corpo que nasce

velho, transforma-se em criança e novamente em velho, “e

leva, engole todas as coisas nesta profundidade escancarada

que representa uma involução fundamental”. Um corpo-

despedaçado: “tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe,

penetração”, de dentes, de cabeleira, de brinco, de cabeça,

pele, carne e ossos101. Corpo-dissociado que não tem mais

superfície, “o interior e o exterior, o continente e o conteúdo

não têm mais limite preciso e se afundam em uma universal

profundidade”, extremos que giram no círculo de um presente

estreito cada vez mais repleto.102

100 GUIMARÃES, Maria Luiza Monteiro. Falas de Stela do Patrocínio:

linhas de fuga para a vida. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da PUC-Rio, 2009, p.19 101 “Tá respirando tá enxergando tá ouvindo vozes

Tá com dentes completos e fortes

Tá com um pouquinho de cabeleira

Tá de brinco tá bem vestida bem calçada

Toda quarta feira você vem

Já tá com cabeça

Tá com pele tá com carne tá com ossos” (PATROCÍNIO, op. cit., p. 105.). 102 DELEUZE, G. Lógica do sentido, op. cit., p. 90.

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84

Eu não sou da casa, eu não sou da família, não

sou do mundo, não sou de nenhuma das

cabeças e de nenhum dos corpos. Não sou do

mundo, não sou da família, não sou da casa,

não sou de nenhuma das cabeças e de nenhum

dos corpos. Não sou do ar, do espaço vazio do

tempo e dos gazes. Se anda no ar no espaço

vazio e nos gazes, como ar espaço vazio tempo

e gazes, não como forma humana, matéria

humana e carne humana pesada.103

Investir numa análise do discurso sobre a fala escrita e

impressa de Stela como procedente de uma mente

diagnosticada como esquizofrênica, seria jogá-la em um espaço

tão limitado quanto raso. O que Stela do Patrocínio oferece

como arquivo primário é fonte documental de vida, de coisa

experimentada, e cabe bem à arte, pois no acontecimento

poético que faz de seu mundo não há compromisso com as

noções convencionais de corpo, de família, de tempo e nem de

espaço. Stela rebela-se contra uma organização que lhe foi

sempre inquirida para que coubesse no mundo. Contra os três

estratos que nos amarram violentamente, mais precisamente

como indicam Deleuze e Guattari: o organismo com sua

superfície, a significância e a interpretação com seus ângulos, e

a subjetivação e sujeição firmando o ponto.

Você será organizado, você será um organismo,

articulará seu corpo — senão você será um

depravado. Você será um significante e um

significado — senão será desviante. Você será

sujeito e, como tal, fixado, sujeito de

enunciação rebatido sobre um sujeito de

103 PATROCÍNIO, 2001, p. 91.

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enunciado — senão você será apenas um

vagabundo.104

Sua fala deflagra a experimentação de um Corpo sem

Órgãos. Como criar para si um corpo sem órgãos? Perguntam

Deleuze e Guattari no início do terceiro capítulo de seus Mil

Platôs. Tão claro apresentam: desejo é produção. Corpo que

não quer “formas, funções, ligações, organizações dominantes

e hierarquizadas, nem transcendências organizadas para extrair

um trabalho útil.”105 Corpo que é só como matéria que pode

ser, e ocupar, um espaço, com variações incessantes de

intensidades. “Ele é a matéria intensa e não formada, não

estratificada, a matriz intensiva.”106 Como matéria, ele não

testemunha totalidades, nem se projeta em um sujeito. É

improdutivo, inconsumível, irrepresentável: “nada é

representativo, mas tudo é vida e vivido.”107 Corpo que conecta

à sua anti-produção a produção de desejos sempre novos,

desejos que produzem desejos.

O despojar-se do ideal de um corpo organizado,

individuado, nos dizeres de Stela, oferece um princípio

transformador que resiste aos modos de organização e

subjetivação impostos ao corpo, que borra os contornos do

tempo, que não mais intercala vida e morte, mas é morte-vida

numa involução criadora, e que inventa um mundo onde só lhe

cabe o movimento da verdade, puro movimento que

transforma, não fixa, não funda nem fundamenta. O olhar que

Stela lança de dentro para fora de si é o mesmo que a

engravida, que a vigia, que a persegue, que a cuida e a

104 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 3, p. 22. 105 Idem, p. 21. 106 Idem, p. 13. 107 Idem. O anti-Édipo, op. cit., p. 35.

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examina. O olhar que lança de fora para dentro de si a conecta

com a sua existência no mundo, e produz sua própria fala.

Eu aprendi a beber, comer e fumar, não sabia.

Não sabia?

Não.

E como é que você aprendeu?

Aprendi quando eu fui agarrada pra relação

sexual e quando eu fui fodida.

E como foi isso, como é que isso aconteceu?

Quando eu tava sozinha, não conhecia nada,

não conhecia ninguém. Tem que contar a minha

vida toda pra você, né? Você tá interessada em

saber da minha vida, né? Eu mesma não sei da

minha vida direito. Que eu não sei como pode

formar uma cabeça, um olho enxergando, nariz

respirando, boca com dentes, orelha ouvindo

vozes, pele, carne, ossos, altura, largura, força.

Pra ter força o que é preciso fazer? É preciso

tomar vitamina.

Mas como aconteceu isso? Como que você foi

agarrada?

Eu fui agarrada quando eu estava sozinha, não

conhecia ninguém, não conhecia nada, não via

ninguém não via nada, nada de cabeças e

corpos, nada de casa, nada de mundo. Eu não

conhecia nada, eu era ignorante.

Você só começou a conhecer depois que você

foi agarrada?

Depois que eu fui agarrada pra relação sexual e

pra foder.

Depois que você teve essa relação sexual é que

você começou a conhecer todas essas coisas?

Foi depois. Só depois que eu comecei a andar,

ter noção e ficar sabendo.

Antes o que que você fazia?

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Eu não fazia nada, não dependia de nada, não

fazia nada. Era como uma parasita, uma

paralisia, um câncer.

Então você acha que você só nasceu pro mundo

depois da sua primeira relação sexual?

É. Só depois da primeira relação sexual. E já

estou carregada de relação total, sexual, fodida,

botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo

nenhum.

(...) Mas você acha que desde que você nasceu

até você conhecer esse homem você não sabia

comer nem beber?

Não sabia.

Não? E como é que você sobreviveu?

Do nada.

Como? Ficou esses anos todos sem comer e

sem beber e conseguiu sobreviver como? Como

foi isso, viveu de que?

Eu não existia, não tinha uma existência, não

tinha uma matéria.

Quer dizer que você começou a existir com

quantos anos?

Quinhentos milhões e quinhentos mil. Logo de

uma vez já velha. Eu não nasci criança não, eu

nasci já velha. Depois é que eu virei criança.

E agora, você é o que?

Continuei velha. Me transformei novamente

numa velha, voltei ao que eu era: uma velha108.

108 Transcrição da gravação da entrevista de Stela do Patrocínio feita por

Neli Gutmacher, cedida a mim por Lincoln Antonio.

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FALATÓRIO IMPRESSO: POESIA ALÉM DO MURO

Em 2001 a psicóloga, psicanalista e doutora em

filosofia Viviane Mosé organizou as falas de Stela do

Patrocínio em um livro, transpondo-as fielmente para a poesia

escrita, sem nenhuma interferência no conteúdo. A obra foi

intitulada Reino dos bichos e dos animais é o meu nome – Stela

do Patrocínio, e publicada pela editora Azougue Editorial em

parceria com o Museu Bispo do Rosário. Stela dispõe um

movimento de fala que dá consistência ao que se apreende

como uma matéria poética, ao repetir frases inteiras mudando

a organização do tempo e das repetições:

Eu não tenho cabeça boa não

Eu não sei o que é que tem aqui dentro

Eu não sei o que é que tem aqui dentro

Eu não sei o que é que tem aqui dentro

Eu sei que tem olho

Mas olho pra fazer enxergar como?

Quem bota pra enxergar

Se não sou eu que boto pra enxergar?

Eu acho que é ninguém

Enxerga sozinho

Ele se enxerga sozinho109

Sua voz encontra um escape para além de um conteúdo

organizado e de controle; salto além do muro. Stela salta e des-

109 PATROCÍNIO, op. cit., p. 89.

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salta muros, de dentro para fora de fora para dentro, é o que

garante sua existência:

A vida a gente tem que aceitar como a vida é

E não como a gente quer

Se fosse como eu queria

Eu não queria ver ninguém no mundo

Eu não queria ver ninguém na casa

Eu queria estar todo o tempo comendo,

bebendo e fumando

Assim é que eu queria que fosse meu gosto

Mas como eu pulei muro despulei muro

Pulei portão despulei portão

Pulei lá de cima pro lado de fora

Do lado de fora pro lado de dentro

Quer dizer que eu...

Não como eu gosto

Eu não esperava pular muro pular portão

Pular janela despular janela.110

A primeira preocupação de Viviane Mosé ao começar a

organização do material colhido foi encontrar a sonoridade dos

textos, por entendê-los poesia. Não a interessou julgar a

classificação nosográfica da fonte, a descrição e exposição de

sua doença, senão apresentar a potência ética, política e estética

da poesia de Stela, velha, criança, poeta e louca, sendo ela

mesma sua imensa obra poética que ainda não deixou de ser.

Na introdução do livro, Mosé deixa claro que o compôs como

uma transposição da poesia oral para poesia escrita: “o que foi

uma fala aparece aqui como escrita. Trata-se de dois universos

110 Idem, p. 109.

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distintos que permanecerão distintos.”111 Uma transdução

possível entre campos para além das linguagens de superfície.

Stela inventa sua própria língua e faz falar a língua pura com

um sentido extragramatical, sonoro, espacial; mas é preciso que

este sentido seja válido em si, isto é, que venha do pavor e que

se transporte e se reencontre para além dos muros e buracos

negros.

As gravações em fitas cassetes foram muito importantes

para a qualidade dos textos, uma vez que, através da escuta,

Viviane Mosé pôde perceber o ritmo da fala de Stela e o lugar

de suas pausas. E, ao transpô-la para o texto escrito, tentou

chegar o mais próximo possível da sonoridade que ouvia.

Segundo a organizadora, Stela expunha sua fala, seu

“falatório”, de um modo muito correto, cometendo raríssimos

erros gramaticais. Mosé comenta ainda que não houveram

cortes internos nos textos, não foram coladas partes soltas. O

que apresenta em sua publicação são falas inteiras, ditas num

só fôlego, ou fragmentos de conversas que isolou de um

contexto. Segundo ela, a fala de Stela se concebe como olhar,

como espacialidade, como configuração; e este foi o fio tecido

na concepção do texto escrito como exegese, como obra

artística que pretende revelar o universo singular de Stela.

Para publicar o livro, Mosé partiu da constatação de que

o discurso de Stela havia ultrapassado os muros da colônia112.

Lugar esse, como tantas outras colônias e instituições

psiquiátricas que, desde a alta idade média, instituíram-se como

os primeiros domínios de exclusão da loucura, para que o

discurso da loucura não circulasse como os outros, para que

111 MOSÉ. In: PATROCÍNIO, op. cit., p. 26 112 Idem, p. 31.

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não corresse o risco de “dizer uma verdade escondida113”:

verdade que a maior parte dos outros discursos não podem

proferir, e que os outros não podem perceber. Para que

continue enclausurado, a sociedade exerce sobre este discurso

um poder de coerção, impondo-lhe o verossímil, o natural, o

científico, o verdadeiro114. A língua pode ser um muro, ela

impõe-nos um rosto que funciona como um sistema, o da

rostidade, muro branco-buraco negro, conforme afirmam

Deleuze e Guattari, muro branco de projeções de significâncias

e buraco negro de subjetividades115. Rostos dicotômicos e

arborescentes, determinando o significante e o subjetivo que

fazem retornar neles a linguagem. A linguagem castra, isola,

separa, aliena-nos em sujeitos, no sentido de identidade, de

princípio da apropriação; e o rosto é o redundante porta-voz.

Princípio que gera uma arrogância subjetiva em relação ao

mundo e faz com que vivamos o pensamento e a palavra

racional, lógica, causal, e afastemos a vida, as intensidades e a

linguagem inventiva, que é a linguagem artística, em prol de

um pensamento que nos induz a pensar por causa e efeito, onde

a diferença está subordinada à identidade. Apesar de inflexível,

por vezes, faz-se neste muro uma brecha, uma fissura por onde

escapa, entre outras coisas, uma palavra intensiva,

desconcertante, que nos possibilita saltar o muro e sermos

aspirados do buraco negro das subjetividades, e perceber que o

que é pensado poderia nunca ter sido, e que poderá deixar de

ser, sendo muitas coisas ao mesmo tempo.

Além do livro de Viviane Mosé, outras produções

foram geradas a partir das gravações das falas de Stela do

Patrocínio, como o espetáculo teatral Stella do Patrocínio -

113 FOCAULT, Michel. A ordem do discurso, 1996, p. 10. 114 Idem. p. 18. 115 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 3, p. 31.

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óculos, vestido azul, sapato preto, bolsa branca e... doida, de

Clarisse Baptista (Rio Branco – AC); o curta-metragem Stela

do Patrocínio – a mulher que falava coisas, de Marcio de

Andrade (Rio de Janeiro – RJ); o espetáculo de dança Alma

aprisionada, da Cia. Balé de Rio Preto (SP); a performance

multimídia Claridade Luz e o vídeo-poema Espaço Vazio , do

grupo Axial (São Paulo – SP); o artigo Loucura e Literatura:

O Discurso Poético de Stela do Patrocínio de Marcos Roberto

Teixeira de Andrade, publicada na Revista Gatilho do

Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade

Federal de Juiz de Fora; a dissertação de mestrado Falas de

Stela do Patrocínio: linhas de fuga para a vida, de Maria Luíza

Monteiro Guimarães (PUC – RJ); o espetáculo Mundo Animal,

do grupo Boato (Rio de Janeiro – RJ); e, por fim, o espetáculo

Entrevista com Stela do Patrocínio, de Georgette Fadel e

Lincoln Antonio, e o CD homônimo do espetáculo, de Lincoln

Antonio, também criados a partir das falas de Stela, que

inspiram e motivam a produção desta tese na composição do

possível de uma Música Esquiza. Todas essas obras foram

possíveis pela insistência de Stela em estar sempre em processo

de duplicar-se, de elaborar mundos, corpos, tempos e espaços

múltiplos. Maria Luíza Guimarães afirma, em sua dissertação

citada acima, que as falas de Stela “carregam os traços de sua

resistência ao adestramento e à disciplina, como também aos

modos de subjetivação impostos ao corpo pelas posturas

exteriores ou interiores a que o submetemos”116. Louca e poeta

e personagem real de um teatro de vida desumana, Stela

carrega um corpo resistente. Resistência que comunga com o

desejo de Artaud de desconstituir-se para reconstruir-se

novamente e novamente, ciclo após ciclo:

116 GUIMARÃES, op. cit, p. 16.

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Se o teatro, assim como os sonhos, é

sanguinário e desumano, é, muito mais do que

isso, por manifestar e ancorar de modo

inesquecível em nós a ideia de um conflito

eterno e de um espasmo em que a vida é

cortada a cada minuto, em que tudo na criação

se levanta e se exerce contra nosso estado de

seres constituídos, é por perpetuar de um modo

concreto e atual as ideias metafísicas de

algumas Fábulas cuja própria atrocidade e

energia bastam para desmoronar a origem e o

teor em princípios essenciais117.

A fala de Stela como arte produz uma consistência

ontológica própria, constrói um real autônomo: um campo de

projeção da experiência vivida que não serve como

representação de uma realidade. Nesse campo criou seus

duplos, para sobreviver à realidade instaurada pela

racionalidade ocidental que lhe cedeu como única possibilidade

de espaço um hospital psiquiátrico, e como única possibilidade

de identidade uma esquizofrenia. Os devires da fala de Stela,

inspiraram de modo singular e perturbador os artistas Lincoln

Antonio e Georgette Fadel. Os devires-animal de Stela foram

juntar-se aos devires voz e música destes dois artistas que, em

bloco, traçaram linhas de fuga para o falatório de Stela,

lançando-o nos gazes puros do espaço-vazio-tempo da cena,

sem querer subjetivar Stela representando-a, e sem querer

trazer significados linguísticos para seu discurso. Porque a arte

não é um fim, e sim, um instrumento que traça linhas de vida,

devires reais, que não se produzem somente na arte. São fugas

ativas, que não fazem da arte um lugar de fuga, um refúgio, são

“desterritorializações positivas”, conforme Deleuze e Guattari,

“que não irão se reterritorializar na arte, mas que irão,

117 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo, 1999, p. 105.

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sobretudo, arrastá-la consigo para as regiões do a-significante,

do a-subjetivo e do sem-rosto”.118 Georgette, ao ler o livro de

Stela e ouvir as músicas que Lincoln compôs para essas

palavras, afirma: essa palavra é impecável, essa palavra é

sintética e diz amplamente coisas que levam para outra

dimensão. Para Lincoln, o discurso de Stela é inspirador,

sugere música, um discurso inusitado, diferente, que tem uma

potencialidade musical desconcertante: não entendo como

ninguém mais fez música com isto, eu não conheço quem tenha

musicado, mas é muito fácil pegar um trecho ali, porque tem

essa coisa muito pop – “Eu não sei fazer justiça”, uma frase

dessa, assim. Isto aqui dá música. E de fato, foi dando. 119

118 DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 3, p. 57. 119 FADEL; ANTONIO. Entrevista concedida a mim em 2010. (Ver

anexos).

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95

120

Eu sempre fui assim

Desde que me compreendo como gente eu sou

assim

Que antes era um macaco à vontade

depois passei a ser um cavalo

depois passei a ser um cachorro

depois passei a ser uma serpente

depois passei a ser um jacaré121

120 Imagem disponível em: entrevistacomstela.wordpress.com. Acessado em

29 de outubro de 2012.

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ESPETÁCULO “ENTREVISTA COM STELA DO

PATROCÍNIO”

No ano de 2001 o cantor e ator paulista Ney Mesquita

foi convidado para cantar no lançamento do livro Reino dos

bichos e dos animais é o meu nome – Stela do Patrocínio,

organizado por Viviane Mosé. Para acompanhá-lo, convidou o

pianista e compositor Lincoln Antonio. Lendo os textos de

Stela do Patrocínio, Ney e Lincoln perceberam neles um

conteúdo extra-cotidiano, farto de possibilidades, ritmo e

poesia. Decidiram, então, montar um espetáculo musical com

piano e voz que partisse desse material. Lincoln Antonio teve

acesso às gravações das falas de Stela, e usou em suas

composições muitos trechos que não estão publicados no livro.

Em entrevista cedida a mim, em 2010, Lincoln Antonio

comentou que, ouvindo as gravações, notou que Stela construía

um discurso e o repetia com outra intenção, em outro dia.

Lincoln percebeu, também, repetições de temas, como a ideia

do cientista, dos médicos, e da família. E, das observações que

fez, concluiu que não se trata somente de falas ditas ao acaso, e

que também não são sempre improvisos com as palavras, senão

que, com tais acasos e improvisos, Stela organizou um material

estético para o seu discurso, compondo uma obra.

Lincoln musicou primeiro alguns textos do livro. Como

ele e Ney Mesquita estavam, naquele momento, lançando o CD

Quintal ─ com composições de Lincoln e de outros

compositores paulistas, interpretadas por Ney Mesquita ─,

foram inserindo nos shows as canções compostas a partir das

falas de Stela e experimentando possibilidades. Deixando-se

121 Transcrição da gravação da entrevista de Stela do Patrocínio feita por

Neli Gutmacher, cedida a mim por Lincoln Antonio.

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influenciar pela sonoridade dessa fala, Lincoln optou, desde o

começo da pesquisa, por melodias insistentes, obstinadas e

econômicas, harmonizadas, em sua maioria, por acordes

maiores, que permitissem um grande campo de interpretações

para Ney Mesquita, e que possibilitasse a ele tratá-las como um

canto-fala, um canto que desse corpo a fala de Stela, tornando-

a tridimensional. Os textos escolhidos tinham tanto o propósito

de expor a diversidade dos pensamentos de Stela quanto o de

favorecer o canto. Entre eles, há uma grande entrevista que

Stela cedeu à artista plástica Neli Gutmacher, na qual expõe

sua percepção sobre o mundo, sobre a realidade e sobre seu

cotidiano na colônia. Veio de Ney Mesquita a ideia de musicá-

la. A partir daí, surgiu a personagem da entrevistadora, vivida,

naquele momento, por Lincoln Antonio. A prática da

composição desta parte extensa, e que diferia tanto do que se

pode entender por letra de canção, trouxe uma nova dimensão

no caráter composicional das músicas do show. Para esta

investigação sonora, Lincoln Antonio buscou uma espécie de

música que defini, num primeiro momento, de meio

esquizofrênica, pois o que compunha me reportava a um duplo,

canto e piano que não se comprometem em acompanharem-se,

tornando imprevistas as conduções das linhas melódicas e das

harmonias das canções. A composição deste trecho da

entrevista com Stela se articulou como um rizoma, e espalhou a

sonoridade desta invenção sonora pela composição musical de

todo o espetáculo: “A experiência de musicar a entrevista, que

é um trecho longo, muito diferente de uma canção, forneceu os

elementos básicos da composição geral: poucos acordes,

modulações bruscas, passar de uma ideia pra outra sem

preparação, trabalhar o canto no limiar da fala.”122

122 ANTONIO, 2009. Vídeo Entrevista com Stela do Patrocínio (Lincoln

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Já com um grande número de canções compostas a

partir da fala de Stela, Lincoln Antonio e Ney Mesquita

estruturaram um show só com este repertório e o intitularam de

Entrevista com Stela do Patrocínio. Lincoln Antonio traçou um

roteiro no qual cabiam improvisações, onde existiam espaços

de possiblidades inventivas tanto para o piano quanto para a

voz123. No entanto, na medida em que o foram apresentando,

notaram que estavam em busca de trazê-lo mais para perto do

território do teatro, e de abrir mão do formato de espetáculo

musical. A fim de dar vida a este desejo, decidiram chamar a

atriz e diretora paulista Georgette Fadel para dirigi-los.

Segundo comenta Georgette, em entrevista cedida a mim, o

espetáculo já estava pronto quando Lincoln Antonio e Ney

Mesquita a chamaram. Não houve interferência da sua direção

no que já havia sido descoberto e criado pelos dois artistas.

Houve, apenas, uma afirmação deste fato:

Teve uma sutileza assim: a primeira vez que vi

[o show] foi lá no Cacilda Becker, e eu lembro

que eles fizeram, e era isso aí, a palavra, a

música sendo cantada ali por aquela figura, pelo

Ney, com aquele pianista de costas, e os dois

estando inteiros ali a serviço daquele lance,

estava tudo bem. Eu falei, depois do primeiro

ensaio, que eu não via necessidade de mexer

em nada, mas que a gente podia ver o que

estava me provocando aquilo e garantir esses

Antonio e Stela do Patrocinio. Voz Ney Mesquita.). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=JIGl5eamwO8. Acesso em: 26 maio

2015. 123 Ney Mesquia 3 song Stela do Patrocínio. Ney Mesquita, voz. Lincoln

Antonio, piano. Gravado por Daniel Chaia no lançamento da revista

Azougue 10 anos, Sesc Pompeia, Sao Paulo, Brasil, julho de 2004.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yw4f2pXHCwI. Acesso

em: 26 maio 2015.

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pontos, entender o que estava posto ali e definir

aquilo como o trilho do trem. Então, a gente

começou a dar uma olhada, vendo o que estava

legal. Começamos a estudar as diagonais, o

quanto era bonito se o Ney ficasse parado numa

luz, ou o quanto era bonito que o Ney viesse até

a plateia. A gente começou a definir em que

música era bonito a imobilidade, ou a sombra.

Então a gente começou a definir umas

coisinhas. Mas não tinha nada pra ser criado,

tinha uma necessidade de entender o que tinha

sido criado, pra isso não virar um nada, vir pra

consciência, só.124

Após um ano de ensaios esporádicos com Georgette

Fadel, Entrevista com Stela do Patrocínio foi apresentado no

teatro Cassilda Becker, no bairro da Lapa, em São Paulo.

Outros seis meses passados de novas experimentações, em

busca de um formato cada vez mais teatral, geraram outra

apresentação, desta vez no teatro da Funarte, também em São

Paulo. Ney Mesquita, negro como Stela do Patrocínio, trazia ao

espetáculo uma atmosfera vocal que garantia sua presença, sem

ser preciso a composição de uma personagem Stela, uma

personificação, muito menos uma representação. O canto de

Ney Mesquita pretendia corporificar no ar, matéria condutora,

a aura daquela existência. Um pouco depois da apresentação na

Funarte, Ney Mesquita faleceu, em 2004. Georgette e Lincoln

decidiram continuar o espetáculo, com Georgette assumindo o

seu lugar.

124 FADEL. Entrevista concedida a mim em 2010. (Ver anexos).

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100

Há alguns anos a busca de uma “nova palavra”

vem se tornando vital para o meu trabalho.

Nova velha palavra. Palavra que não venha

trazer uma ideia para na sequência se retirar,

vazia. Mas palavra de carne, que é ideia, mas é

corpo. Palavra-VIDA. E então Stela do

Patrocínio nos vem com essa poesia brutal que

emociona e acorda. Agride e amplia os sentidos

da vida. Como dizer estas palavras? Que ator é

necessário? Que cena tornaria tridimensional

esse discurso precário? E então Lincoln

Antonio e Ney Mesquita respondem a estas

questões com a tão sonhada quebra de

fronteiras entre linguagens e nos revela a

grandeza do pensamento de Stela através de um

lirismo profundo: canto-fala, ator que canta o

que não poderia ser dito dentro dos moldes

tradicionais da fala teatral, ator que dança o que

não poderia ser gesto coloquial. O objetivo: dar

voz potente à lucidez rara deste discurso. E

agora, num gesto supremo de afirmação da

vertigem apaixonada da vida – tão de acordo

com a poesia de Stela – Ney Mesquita morre e

lança no ar essa voz-espírito. Consideramos

importantíssimo continuar. Agora não mais

dirigindo o trabalho, mas como intérprete: a

pesquisa da simplicidade, da intimidade e da

delicadeza que são exigidas para se pisar sem

naufragar nesse território – limite de uma

interpretação que transita “naturalmente” entre

personagem, artista e narrador. Para mim, a

indizível emoção de dar voz a dois espíritos de

inteligência luminosa e amorosa: Stela e Ney.

Feliz herança!125

125 FADEL, G. Programa do Espetáculo. Clip do espetáculo Entrevista com

Stela do Patrocínio, Nucleo do Cientista, Sao Paulo, Brasil. Disponível em:

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Tendo o trabalho desenvolvido por Ney Mesquita como

uma referência forte para a sua composição, Georgette conta,

em entrevista, que muitos de seus gestos e trejeitos foram

mantidos por ela, pelo desejo de narrar uma presença que ali

esteve antes dela. Presentificar uma ausência. Ney Mesquita é

revivido na gestualidade de Georgette Fadel.

Então quando o Ney morreu aconteceu um

fenômeno comigo que já tinha acontecido em

outros momentos que foi a história da

substituição. Substituir alguém. E, nesse caso,

alguém que tinha morrido. Então foi uma coisa

louca porque era também uma homenagem,

também vontade de presentificar coisas

interessantes que essa pessoa tinha criado.

Então a Stela é toda cheia de trejeitos do Ney.

Bobagens. Tipo a história da velha, ou da

criança, “eu não nasci criança”, como se tivesse

alguém segurando [a criança no colo], isso é do

Ney.126

Júlia Zákia, iluminadora e cineasta paulista, foi

chamada para compor a luz do espetáculo. Com a iluminação,

compôs o cenário. Não há nenhum objeto em cena além do

piano. Mas a luz desenha corredores, janelas, quartinhos,

espacinhos e grandes espaços de luz, que não impõem, porém,

delimitações, nem colocam Stela em algum lugar concreto; ao

invés disso, abre espaços e os amplia. Espaços-luz onde

Georgette brinca de Stela, onde faz Stela soar. A luz passeia

suave entre as tonalidades âmbar e branca; tons médios que

confortam e acomodam o público, para a escuta dos textos

densos e poéticos da cena. Os contrastes entre o claro e o

https://www.youtube.com/watch?v=TnWWNnqmyxQ. Acesso em: 26 maio

2015. 126 FADEL. Entrevista, 2010. (Ver anexo).

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escuro contracenam com o espírito de Stela, e trazem para a

cena, novamente, o duplo, o não ser, o não querer existência

que sua fala propõe. Os focos sugerem diferentes dimensões

para o palco, escondendo/mostrando a personagem e o piano,

espaço cênico em contraponto com o gesto e a música. O palco

nu, sem vestimenta, sustenta a imanência de um piano, único

objeto em cena. Imóvel, duro, vertical, objeto concreto:

madeira e metal e osso que capturam a luminosidade da cena.

E, ao mesmo tempo, máquina sonora que compõe, em

contraponto com o ar deslocado pelos movimentos e pela voz

da atriz, com as vibrações no espaço, com a duração dos

gestos, um acontecimento cênico imprevisto. Atriz e pianista

estão em devir-música: apostam em uma insistência

funâmbula, mínima, explosiva, matérias deambulantes das

falas de Stela. Concretude que rompe com sua estrutura ao

lançar-se em desterritorializações, ao inventar linhas de fuga

para o território tonal em que ele mesmo investe, tornando-se

inesperado. Ao desterritorializar-se, revela a potência vocal da

personagem, instaura a voz de tantos outros, multiplicidade de

multiplicidades, sobre a qual Georgette-Stela deslizam e

compõem juntas uma máquina de guerra. Piano que é voz de

Stela, Stela que é voz da atriz, multiplicidades de vozes em

dimensões que se englobam umas nas outras, em um outro

grau, irrepresentáveis, inomináveis. Música e voz que

conectam outros tempos, outros espaços. Música, que sim, a

própria voz da cena.

Durante a entrevista gravada com Stela, a entrevistadora

pergunta porque ela está olhando para a parede enquanto fala.

Neste instante, o falatório de Stela ganha outra dimensão, suas

palavras ficam brancas, planas, verticais, escorregadias,

encurraladas, sem possibilidade de fuga. “Nesse espaço

ambíguo entre a evidência do falar e a obscuridade do

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esconder, abre-se a possibilidade do delírio.”127 Porque Stela

fala para a parede? Um contraponto com o eco, uma

ressonância perdida? Uma condição de seu aprisionamento,

uma atitude encarnada no puro vivido? Uma tentativa de

transpor o muro branco, criar fissura na superfície, confrontar o

que a enclausura? Criar uma voz-alma-gaz que transpasse o

duro concreto? Misturar-se ao branco até dissolver o organismo

que lhe impõe um significante? Fugir das sobrecodificações de

subjetividades que marcam seu corpo e martelam sua cabeça, já

que nasceu sem rosto? O rosto é organização forte, ao perdê-lo,

livra-se também do sentido da linguagem e de suas

significações dominantes. “Desfazer o rosto não é uma coisa à

toa”,128 nos dizem Deleuze e Guatarri. Stela vem ao mundo

desrostificada. Nela, o muro é insólito e desmesurado, sem

significante algum. Stela escava os buracos do mundo que

inventa, e faz dessa superfície esburacada sua máscara. Pintado

de branco, seu rosto, sua cabeça inteira, não pertencem mais a

seu corpo, sua máscara branca nada dissimula, é denúncia da

ausência de rosto.

(...) quando o rosto desaparece, quando os

traços de rostidade somem, podemos ter certeza

de que entramos em outro regime, em outras

zonas infinitamente mais mudas e

imperceptíveis onde se operam os devires-

animais, devires-moleculares subterrâneos,

desterritorializações noturnas que transpõem os

limites do sistema significante.129

127 PELBART, Peter Pal. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura

e desrazão. 2009, p. 27. 128 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 3, p. 57. 129 Idem, v. 2, op. cit., p. 66.

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Um muro. Realidade vertical e sólida que delimita,

esconde, separa. Obstáculo mudo que protege os que estão

dentro dos que estão fora, e os que estão fora dos que estão

dentro. Mas onde está esse dentro e esse fora? Peter Pál Pelbart

investiga a relação do Fora com a loucura. Ao ser uma

“exposição descampada ao Fora”, a loucura é, ao mesmo

tempo, “cercada numa exclusão e numa reclusão”: a loucura é

“a exposição pura ao Fora” e, também, “clausura desse Fora

numa personagem exilada”. O Fora é a morada única para o

louco, dobra escancarada que vira um Dentro. A loucura “é

Clausura do Fora num Dentro absoluto, e por isso profundidade

absoluta. Que na loucura todo Fora vira Dentro significa

também que toda a superfície submerge numa

profundidade.”130 É certo que num muro sempre haja um

portão, mas é por um quase que aquilo que guarda o muro e o

130 PELBART, op. cit., p. 149-151.

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portão se torne um intransponível Fora. Há saída de dentro do

Fora? Ou há saída se condicional? Ainda que se consiga sair

por ele, o lugar onde se esteve dentro, interrompido, impedido,

acompanha-o no fora. Eis a loucura hospitalar, fechamento do

fora. Fardo casa de detenção, presídio. Fardo sanatório,

hospital psiquiátrico.

Estar internada é ficar todo dia presa

Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo

portão

Maria do Socorro não deixa eu passar pelo

portão

Seu Nelson também não deixa eu passar lá no

portão

Eu estou aqui há vinte cinco anos ou mais131

No início do espetáculo, Georgette anuncia ao público

que estão em um hospital: “Então agora eu estou aqui, sem ter

família, sem ter ninguém por mim, morando aqui, nesse

hospital”. A partir de então, em nenhum outro momento esta

referência torna a voltar. Temos as falas, as canções, os gestos

e danças de Georgette, o piano, Lincoln no piano, e os espaços

vazios preenchidos de gestos, som e luz. E tudo se coloca em

dimensões que não situam nem espaço, nem tempo. São

dimensões que vão se compondo e se desfazendo, remontando-

se e se refazendo em outras dimensões. Todo o espetáculo é um

jogo de invenção de espaços efêmeros, dentro-fora

contrapontoados, que explodem toda a estrutura que concreta a

parede de Stela. É a implosão de um hospital. É a explosão da

psiquiatria. É a dissolução da estrutura na imanência do

processo, uma outra relação com o fora. As forças do fora são

liberadas pela potência do pensamento de Stela, pensamento de

131 PATROCÍNIO, op. cit., p. 55.

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resistência; o fora de Stela é uma abertura ao futuro da sua

poesia contagiosa, virulenta, cruel. A força do fora é a vida que

brota de dentro do falatório de Stela, sua voz livre.

Não há o que compreender. Não há uma narrativa. A

personagem nem é mais ela mesma, e nem nós, público, somos.

Lugar de esquecimento. Não há um espetáculo igual ao outro.

Para além do roteiro das canções, não há marcação, nem do

espaço que Georgette irá ocupar, nem de quanto tempo dura

cada canto, cada fala, nem de quantas vezes o piano repete tal

ou qual acorde, e nem tempos grandes ou pequenos de pausa. É

no acontecimento de cada apresentação que as dimensões se

ampliam, se aglutinam, aumentam e diminuem. Intensidades

livres. Composição no acontecimento. Composição de um

espetáculo teatral? Composição de uma realidade? Composição

de um hospício? Para estes questionamentos Georgette propõe

um pacto com o público:

Então eu já abro assim: o hospital, esse hospital

das almas, é o teatro, é o hospício e é o mundo.

É esse lugar onde a gente vai realizando,

sacando, compreendendo essas nossas loucuras

todas. Então eu acho que quando se estabelece

isso, já se coloca assim: estamos falando aqui,

de igual pra igual, nesse território onde a

loucura humana conspira e forma a realidade.

Então eu estou aqui, estou no teatro, estou

ligada, e isso aqui é um hospício. Por ser teatro,

por ser vida, por ser hospício mesmo, aqui,

nesse hospital. Aqui onde estamos é um

hospital. Então aqui já é um primeiro pacto.

Depois, (...) a linguagem é que vai criando:

“mas o olho, como é que o olho faz pra

enxergar, se não sou eu que boto pra enxergar?”

O fato de poder dizer isso com autoridade e ser

ouvida, significa que estamos num hospício,

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porque se na rua alguém chegasse e dissesse

isso pra você, talvez você tivesse medo,

entendeu? E no teatro, não, isso ganha o

volume justamente do portal da transcendência,

“não, aqui é o lugar onde isso vai ser dito, vai

ser ouvido, vai ser ponderado e está sendo

representado com uma luz”. Então, é a

linguagem que estabelece o espaço, e o espaço

é múltiplo. Obviamente isso pode nem passar

pela minha cabeça, tipo “onde a gente está? Tá

num hospício? Ok, estamos num hospício. Não,

estamos num teatro”. Ou “beleza, estamos no

mundo, estamos na vida”.132

O pacto que se estabelece tem relação com a

amorosidade com que Georgette traz a presença de Stela ao

palco, “tipo amigona da Stela”, que a faz transbordar, que

desvela os agenciamentos de Stela com as coisas do mundo,

com as multiplicidades para além de si, compondo o seu corpo

sem órgãos, seu corpo gazes-puro-espaço-vazio-tempo;

criança-prodígio-poderes-milagres-mistérios; leite-condensado-

chocolates-cigarros; família-médico-cientistas-aviadores. A

atriz não pensou e em estruturar uma personagem; pensou,

antes, em brincar com as palavras, em buscar o que as palavras

de Stela a induziam pensar, em sentir mais as palavras de Stela

do que encarnar uma Stela mesma, quis soltar as “palavras ao

vento”. Buscou, assim, mais um modo de dizer vivendo do que

de uma figura para representar, de carne e corpo humano. Para

dançar as palavras, Georgette criou uma partitura de variações

de intensidades, onde encontrou em cada canção uma

atmosfera, uma máscara que não fosse a de uma Stela

encarnada, mas de suas vociferações, palavras-máscara-sem-

132 FADEL. Entrevista, 2010. (Ver anexo)

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rosto, que já não traduz ninguém. Movimento e som que

desenham uma realidade efêmera, “firulinhas ao redor”:

Então, o que tem ali quando eu entro pra fazer,

o que eu penso? Palavras, geometria no espaço.

Eu procuro me ater a isso. Agora, me ater a isso

não é prender o raciocínio nisso, não. Isso é o

que é certo pra mim. E aí, dependendo do que

vai rolando em termos desse desenho, a emoção

e as pequenas situações, ou pequenas

associações, vão surgindo no meio desse

caminho. Então, por exemplo, tem essas

músicas: “meu passado foi, um passado de areia

e mar de Copacabana”. Então eu sei que tenho

um movimento oscilatório pra frente e pra trás,

eu sei que estou olhando pra uma luz que me

ofusca. Então essa luz, de vez em quando ganha

leituras, proporções, associações. De vez em

quando é só a luz no meu olho. De vez em

quando eu associo com uma experiência que eu

estou vivendo diretamente. De vez em quando

isso vem como um mito. Mas o gesto está ali. O

que aparece a partir dessa pequena partitura,

desse pequeno caminho de movimento, são

muitas coisas. E às vezes, nada. Algumas vezes

eu estou ali simplesmente cumprindo aquilo, e

realmente dizendo “meu deus do céu, como está

feio, como tá ruim, eu estou desafinada, aquela

pessoa não tá gostando, meu deus, será que

tãnãnã”, entendeu? Mil coisas passam pela

minha cabeça, inclusive esse tipo de coisa. Mas

está garantido ali o quê? Está garantido voz no

espaço, geometria. Está garantido que eu estou

ali. Eu, o meu espírito...eu nem falo muito eu

Georgette, porque eu não sei...eu estou ali.

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Então, é meio por ai, entendeu? E aí passa tudo.

Passa ela, passa o Ney. Tudo.133

Lincoln e Georgette optaram por ter o texto de Stela

como ponto de partida, mas não ficam completamente presos a

ele. Escolheram adaptar minimamente o texto à linguagem

teatral, e à canção, deixando-se livres para repetições e

inserções de pequenos pedaços de falas suas e não de Stela.

Mudaram de lugar uma frase ou outra, e compuseram com a

matéria que Stela oferecia, uma vastidão, um mar aberto, um

hospital de todos os nascimentos. Stela nasce várias vezes

durante o espetáculo; nasce cavalo, macaco e jacaré, nasce

covarde, nasce injusta, nasce louca, nasce negra, preta e

crioula, nasce velha, a mais velha de toda a família, nasce com

quinhentos milhões e quinhentos mil anos, nasce criança

prodígio, nasce... nasce... nasce... Todas as vidas de Stela se

dimensionam em luz, movimento e som, em sucessões de

cenas-gênese de mundos diversos. O conteúdo musical são

devires que compõem a máquina de guerra Stela, devires-

animal, devires-criança, devires-mulher, que potencializam a

força e redimensionam o tempo e o espaço de cada nascimento.

Georgette declara:

Eu acho que música ajuda em momentos que

você precisa criar dramaturgicamente assim,

duas funções: uma delas é quando você precisa

se referir a esse mundo, criticando ele,

discutindo ele de mil maneiras. Canções sobre e

pautadas nesse mundo. E outra função é a

criação de outros mundos. E eu acho que dessa

função a gente tinha que abusar. Eu acho que

quando entra som, instrumento, com cuidado,

com musicalidade, a gente consegue instaurar

133 FADEL. Entrevista, 2010.

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também outras esferas, outros raciocínios,

outras lógicas. Por isso eu acho que a Stela é

tão musical imediatamente de cara. Porque é

uma outra lógica, um outro mundo. E parece

que nesse outro mundo existe um outro som.134

Inserido no espaço cênico, o texto de Stela é poesia

vocalizada, sonorizada, corporificada e devolvida ao ar, espaço

livre. Todos os elementos em cena são matérias da voz de

Stela. A luz, a música e os movimentos agem como matérias

expressivas heterogêneas. Cada uma dessas matérias

expressivas é autônoma – não carregam consigo nenhum

vestígio de símbolo, e nem buscam fim em nenhuma forma –, e

funcionam como componente de passagem de um nascimento a

outro. É a coexistência dessas matérias expressivas

heterogêneas, e a sobriedade do agenciamento135 entre elas, que

possibilita a composição (em contraponto) do plano de

consistência e dos enunciados da cena: ópera maquínica de

Stela. A respeito do que possa ser máquinico, Deleuze e

Guattari indicam ser a própria síntese de matérias de expressão

heterogêneas. Tais sínteses, por sua vez, formam, então, os

enunciados maquínicos:

Uma cor vai ‘responder’ a um som. Não há

motivos e contrapontos de uma qualidade,

personagens rítmicos e paisagens melódicas em

tal ordem, sem constituição de uma verdadeira

ópera maquínica que reúne as ordens, as

espécies e as qualidades heterogêneas. O que

chamamos de maquínico é precisamente esta

síntese de heterogêneos enquanto tal. Visto que

134 FADEL. Entrevista, 2012. 135 “É a sobriedade dos agenciamentos que torna possível a riqueza dos

efeitos da Máquina.” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 4, op.

cit., p. 161.).

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estes heterogêneos são matérias de expressão,

dizemos que sua própria síntese, sua

consistência ou sua captura, forma um

"enunciado", uma "enunciação" propriamente

maquínica. As relações variadas nas quais

entram uma cor, um som, um gesto, um

movimento, uma posição, numa mesma espécie

e em espécies diversas, formam outras tantas

enunciações maquínicas136.

Lincoln Antonio afirma que o espetáculo é uma ópera

mínima. “Ópera porque é um drama musical. Tudo é cantado.

Mínima porque reduzida na sua formação: uma solista (Stela),

sua antagonista (a entrevistadora) e o acompanhamento

instrumental do piano”137. Composta por enunciados

maquínicos, na ópera mínima que é a cena de Stela, há um

núcleo essencial: trata-se de um hospital psiquiátrico onde vive

Stela do Patrocínio, uma esquizofrênica que fala coisas.

Acontece que, a partir deste núcleo – onde se encarcera a

loucura para que tudo esteja calmo –, lançam-se, sem destino,

componentes, fragmentos das matérias expressivas, que entram

em agenciamentos uns com os outros, deterritorializando-se do

núcleo, sem intenção de se estabelecerem em um novo

território, senão de se reterritorializarem sucessivamente,

sempre em partida. Ritornelo cósmico. Cena imprevista. Ária.

Máquina. Maquinária138. As enunciações de Stela são

136 Idem, p. 143. 137 ANTONIO. Entrevista, 2004. 138 Termo que “roubei” de uma nota de rodapé de Henrique Lima. Ele

explica: “O termo ‘maquinária’ da voz é fruto da inserção do acento agudo

na palavra “maquinaria”, que, de resto, é a palavra que consta no texto

original de Mil Platôs ‘machinerie’ (p.373). Esta expressão é traduzida por

‘maquinaria’ ao longo do texto, com exceção de sua ocorrência na página

105 do volume 4 da 1ª edição (1997) da tradução de Mille plateaux para o

português brasileiro. A palavra-valise produzida aí – por engano, acredito –

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invenções de uma língua menor que recusa afirmações

instituídas, estruturadas; a voz da qual emana a fala de Stela é

um transbordamento de múltiplos devires, é matéria que

conduz a língua para outras direções, uma invenção: onde

cabem grandes pausas; onde o tempo se inventa no

acontecimento da fala, dilata-se e se contrai; onde só há

imprevistos; onde não se espera nada; onde não há metas; onde

está livre. Maravilhosa expedição do falatório de Stela. Esta

língua que Stela inventa não tem autor, não tem autoria. Essa

língua dá voz aos corredores povoados, às cadeiras vazias

espalhadas pelo pátio, às roupas estendidas nos varais, ao

cérebro examinado em cima da mesa: Stela, com seus órgãos

espalhados pelo hospital-mundo, cria uma língua sem origem,

sem sujeito enunciador que se reconheça e identifique “em uma

ordem de significações dominantes ou de poderes

estabelecidos”139. O que Stela inventa são funções criadoras,

que agenciam coletivos de enunciação, onde não há

especificidades, mas populações: “O que um músico faz em um

lugar servirá para um escritor em outra parte, um erudito faz

domínios bem diferentes se moverem, um pintor tem

sobressaltos com uma percussão: não são encontros entre

domínios, pois cada domínio já é feito, em si mesmo, de tais

encontros.”140 A exegese dessa língua é um pensamento que,

quando deslocado do domínio conceitual da esquizofrenia para

o pensamento esquizo, inclui códigos não marcados, não

sociais, mas que lhe são próprios, e que apresentam sua própria

fluidez quando desliza entre os diversos códigos,

consiste na contração dos termos máquina, maquinaria e ária, numa mesma

palavra, uma palavra valise que nos parece expressar bem o tipo de

composição que está em jogo no procedimento de Luciano Berio em

Visage.” (LIMA, op. cit., p. 62.). 139 DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos, 1998. p. 37. 140 Idem, p. 38.

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embaralhando-os, e, então, porque partem de desejos,

produzem novos modos de experimentar o pensar.

O esquizo dispõe de modos de marcação que

lhe são próprios, porque dispõe primeiramente

de um código de registro particular que não

coincide com o código social, ou que só

coincide para fazer sua paródia. O código

delirante, ou desejante, apresenta uma

extraordinária fluidez. Poder-se-ia dizer que o

esquizofrênico passa de um código ao outro,

que embaralha todos os códigos, num

deslizamento rápido, segundo as perguntas que

lhe são feitas, não dando nunca a mesma

explicação, não invocando a mesma genealogia,

não registrando da mesma maneira o mesmo

acontecimento141.

Nesse entre territórios ao qual a fala de Stela se lança –

matéria compondo com matérias heterogêneas –, Georgette

passeia, também, de modo imprevisto, em maquinações com as

matérias, maquinária que redimensiona gesto, música, voz, luz,

espaço e tempo. Sem forma, sem formação, sem formatura.

Precariedade é só para o corpo que pode: “E então Stela do

Patrocínio nos vem com essa poesia brutal que emociona e

acorda. Agride e amplia os sentidos da vida. Como dizer estas

palavras? Que ator é necessário? Que cena tornaria

tridimensional esse discurso precário?”142

Para esse discurso precário, vário, buliçoso, esse

enunciado maquínico que é o falatório de Stela, Georgette

maquina, desterritorializando a voz do âmbito da fala e

141 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo, op. cit., p.31. 142 FADEL. Programa do espetáculo Entrevista com Stela do Patrocínio,

2004, p. 12.

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reterritorializando-a no âmbito da sonoridade: seja fala ou seja

canto, essa voz está sempre em jogo com a sonoridade,

operando com a variação do seu material timbrístico, temporal,

intensivo e extensivo, e funcionando, deste modo, como

matéria sonora em agenciamento com as outras matérias em

cena. Stela cria primeiro um estilo, um modo próprio de se pôr

a falar, de como soltar ao vento suas palavras erradias, que ela

coloca em combinações únicas, em combinação maquínica. É

um estilo143 que combina comunicações sem códigos, onde a

voz é corpo: um corpo que não se estrutura em uma linguagem,

nem se organiza como um discurso, mas que desliza em

texturas e intensidades entre os significados. Sendo assim, a

enunciação que Stela inventa é, ela mesma, redimensionada na

máquina cênica que Georgette e Lincoln operam. Isso acontece

porque, como a cena é uma multiplicidade composta de

multiplicidades, o enunciado de Stela é, ao mesmo tempo, uma

multiplicidade e um produto, também, dos agenciamentos

maquínicos que se dão no acontecimento cênico. E é como

produto de um agenciamento coletivo que a fala de Stela se

despersonaliza, se descola de Stela, em expedição cósmica, que

não vêm de, nem vai para uma terra natal.

Georgette escolhe como dizer o texto durante cada

apresentação. E quantas vezes irá repetir tal frase, e que

tamanho de pausa irá utilizar entre as frases, e quanto tempo irá

ficar dançando. Lincoln Antonio acompanha a improvisação da

143 “O que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do

mundo, é precisamente o procedimento de uma variação contínua. Ora,

dentre todos os dualismos instaurados pela linguística, existem poucos

menos fundados do que aquele que separa a linguística da estilística: sendo

um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agenciamento de

enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro de uma

língua.” DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 2, op. cit., p. 41.

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atriz e tem a mesma liberdade que ela. Existem muitos

momentos improvisados para que os artistas se divirtam. Isso

se relaciona diretamente com a ideia da música como

dramaturgia porque o ritmo, a sonoridade e intensidades

variantes e sempre novas perfazem as possibilidades de

significação e geram tensões que, como vimos acima, influem

na materialidade da cena. A voz que Georgette empresta à

personagem tem a presença do tamanho do tempo em que ficou

calada. É uma voz que articulada bem o que quer dizer, que

tem gana, que tem seu lugar no espaço vazio da cena. Ao

mesmo tempo, sabe que será ouvida, sabe de sua beleza, tem

consciência que de fará gozar aqueles que a escutam. Dessa

mescla de tranquilidade e desejo surge uma voz presente e

doce. O sopro falatório que deixa clara cada intenção. Quase

todos os textos são cantados. As melodias aproximam o canto

até o limiar da fala. Georgette executa os textos cantados

passeando bem entre as modulações, acompanhando as

mudanças bruscas de andamento presentes no espetáculo. Esse

passeio garante o movimento que acorda o público, a todo

instante, para um novo afeto.

A gente recebe às vezes coisas mais duras, que

não ajudam muito o ator a, depois de cantar,

falar. Porque você acaba de cantar um negócio

e ai você cai numa situação dramática. A

mesma pessoa que acabou de cantar está posta

de novo no teatro. Ou seja, esse som aqui tem

que estar contaminado, tem que ter uma

coerência, não precisa ser cartesiana, boba, mas

tem que ter uma coerência com o que foi

adquirido naquela música.144

144 FADEL. Entrevista, 2012.

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116

Não é possível descrever as pretensões exatas de cada

melodia executada pelo piano de Lincoln. Não há referências

melódicas. Não está definido um gênero musical. Mas

podemos entender suas intenções a partir das articulações que

escolhe, assim como as dinâmicas por ele utilizadas:

Eu quis afastar qualquer referência mesmo, que

você pudesse dizer: é isso, é sei lá o quê. E aí,

quando você faz só piano e voz, você não

caracteriza muito mesmo. Tem uma música no

espetáculo que eu digo que é um batuque, mas

ninguém vai reconhecer como um batuque.

Então não dá pra você ter essas referências. E

na Stela, eu quis muito trabalhar com poucos

acordes, e não usar as cadências clássicas de

dominante e tônica. Eu quis evitar esse tipo de

coisa.145

Tais articulações e dinâmicas jogam todo o tempo com

a articulação e a dinâmica executadas pela atriz. A vocalização

do texto faz a comunhão com o público, uma vez que a fala de

Stela é ato individual de vontade e inteligência que quer

comunicar, que quer afetar o mundo. A potência dessa fala

alcança e ocupa a sala de espetáculo e carrega com ela as

diferentes matérias que a compõe. As melodias das canções

feitas a partir dessa fala, propõem embalar, arremessar, e

aprisionar com violência os seus conteúdos, jogando com

diferentes afetações, de libertação e de controle. Mesmo tendo

sido compostas dentro de campos tonais, tais canções muitas

vezes não trilham caminhos previsíveis, insistindo em

pequenos ostinatos melódicos e rítmicos, em intervalos de

segunda menor, que prendem e enclausuram a fala no canto,

sem deixá-la lançar-se. E saltam, para outro pequeno ostinato,

145 ANTONIO. Entrevista, 2012.

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117

para outra pequena clausura, instituindo a prisão imanente.

Outras vezes, as melodias exploram o território de um campo

tonal relativo no qual, dizem Deleuze e Guattari, “reinventa

novas modalidades, que conduz o maior e o menor para uma

nova mescla, e ganha a cada vez domínios de variação contínua

para esta ou aquela variável”146. É assim que Lincoln permite

com que Stela passe para o primeiro plano, numa efervescência

que permite com que se faça ouvir, por si mesma, suas matérias

moleculares. Stela está livre e experimenta o voo.

Piano e voz fazendo presente a multiplicidade que é

Stela. Em entrevista, Lincoln Antonio declara ter atraído para

sua composição o movimento de um “pensamento

esquizofrênico”, através do qual passa de uma ideia melódica

e/ou harmônica para outra, sem preparação, com o propósito de

desorganizar o campo tonal onde se insere cada canção. O que

Lincoln propõe em sua música esquizofrênica é a transgressão

da ordem tonal expressa, ou da dominação de um certo campo,

fazendo com que melodia e harmonia, sutilmente, transgridam,

sem abandonar o campo. O modo como Lincoln Antonio opera

o material sonoro na composição da música do espetáculo ativa

a imprevisibilidade, levando em conta que um imprevisto não é

uma improvisação, algo que se improvisa em tal situação. Um

imprevisto acontece. Na música, assim como na cena teatral, há

espaços para improvisos. Ou, então, faz-se uma improvisação

quando um imprevisto qualquer acontece. O improviso

decorre, assim, de um imprevisto.

Pra mim eu chamei um pouco do pensamento

esquizofrênico mesmo. Você vai de um acorde

pro outro sem relação. E volta. Ou então vai

pra um terceiro. Criar essas relações que não

146 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, v. 2, op. cit., p. 39.

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118

são tonais. Que acabam sendo outra. Então

geralmente tem uma ambiguidade, sobretudo

as primeiras músicas, que têm uma

ambiguidade maior e menor que nunca se

resolve porque a harmonia não descreve isso

mesmo. Cria outras relações. O trecho da

entrevista é bastante isso. Tem uma pergunta e

ela muda de ideia, tem outra melodia. Depois

ela volta. Mais pra frente ela pode voltar pra

esse material temático, mas nunca é

exatamente igual, porque os versos não são

iguais, não é métrico, não têm rima.147

O pensamento esquizofrênico de Stela que inspira a

composição de Lincoln Antonio, dá indícios do movimento

sonoro que intuo como sendo o de uma música esquiza de

cena, no sentido onde permite a feitura de uma partitura única,

surpreendida pelas próprias desterritorializações que produz,

fazendo fugir linhas que se conectam imprevisíveis ao tempo

espacial da cena teatral. Com poucos silêncios que muito

afetam, interrompidos por comentários melódicos onde soa

sozinho o piano e inesperados ataques de palavras insistentes e

atormentadas, a voz de Stela torna audível o inaudível de sua

loucura.

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

Eu era ar, espaço vazio, tempo

E gases puro, assim, ô, espaço vazio, ô

Eu não tinha formação

Eu não tinha formatura

Não tinha onde fazer cabeça

Fazer braço, fazer nariz

Fazer céu da boca, fazer falatório

Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

147 ANTONIO. Entrevista, 2012.

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119

Fazer cabeça, pensar em alguma coisa

Ser útil, inteligente, ser raciocínio

Não tinha onde tirar nada disso

Eu era espaço vazio puro.148

MÚSICA ESQUIZA PARA ALÉM DA ENTREVISTA

São encontros fantásticos, potentes, milenares, que se

reinauguram a cada acontecimento teatral. O acontecer da cena

é um ato generoso, uma heterogenia. Encontros possíveis e

imprevistos. Imersão no efêmero. Duração – o movimento puro

do instante –, um presente que se divide ao infinito num antes e

num depois. É toda uma linha reta percorrida pelo Instante, é a

forma vazia do tempo dos acontecimentos-efeitos. Esse

instante, deslocado sobre a linha vazia, sempre já passado,

sempre ainda por vir, é o eterno retorno dos acontecimentos

puros que extrai do presente apenas singularidades. O ator

contra-efetua cada acontecimento e extrai um único

Acontecimento que comunica com todos os outros, voltando

sobre si mesmo, através de todos os outros, com todos os

outros. Colocamos uma fermata no tempo, dando ao tempo a

duração do seu desejo: tempo da eternidade, instável e

modulável, fora dos eixos (o tempo de Messiaen). Instante que

dilata, redimensiona e reintensifica, instante no fora do tempo,

no vazio do presente, e temos o tempo da cena teatral. Nele,

misturam-se coisas e não-coisas do mundo, ritornelos, pontas

de ritornelos, que em linhas não-direcionais, esbarram e

modulam uns aos outros. Para cada esbarrão, para cada

encontro, este presente vazio do ator, no tempo da cena,

148 PATROCÍNIO, op. cit., p.82.

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compõe ritmos distintos. A cena lança-se no tempo-espaço de

uma fermata efêmera e louca que, conectando livremente uma

coisa a outra, reinventa desarrazoados espaços e tempos para

uma música esquiza.

A polifonia cósmica da cena teatral não empilha

códigos que exercem funções referenciais e ditam ações. Um

jogo desta natureza dispõe os elementos em relações estáveis e

passivas, fixando cada elemento a um significante estético, sem

ultrapassar o nível da associação representativa, sem levar em

conta as relações internas de cada elemento. No entanto, é na

relação que acontece no interior de cada elemento, entre as

matérias expressivas, que tais matérias deixam de operar como

conteúdos qualitativos que exercem a função de marcar e

medir, e ganham vida autônoma em suas relações externas, não

mais como um motivo ou tema fixo, mas como potência

expressiva, enérgica, incisiva e objetiva. As circunstâncias

externas, nas quais se põem a atuar os agenciamentos cênicos,

estão relacionadas às circunstâncias internas de cada elemento.

A potência desse agenciamento dependerá, assim, da

autonomia das matérias expressivas que compõe cada elemento

em cena. Enquanto fechados em si, fixados em referências

pelas quais levantam placas, dificilmente haverá, entre os

elementos cênicos, transbordamentos, modulações, invenções,

encontros potentes que façam explodir, expandir, transgredir,

os significados, as subjetivações, os sujeitos.

E qual acontecimento cênico desejamos? Num salto,

numa mudança de vontade, desejamos não mais o que

acontece, mas alguma coisa no que acontece. Não o

acontecimento dos códigos, onde as partes correspondem às

formas, onde as matérias funcionam como um caos submetido

à uma ordem. Não o acontecimento das organizações ou dos

desenvolvimentos, estratificações, formas e sujeitos, no qual os

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121

elementos e funções são estratos, ou relações entre estratos. Ao

contrário, desejamos aquele acontecimento que implica uma

“desestratificação de toda a natureza”, dentro do qual as

relações de velocidade e lentidão entre partículas, tais como

aparecem no plano de consistência, realizam movimentos de

desterritorialização, puros afectos ativos num empreendimento

de dessubjetivação149. Acontecimento no qual a relação entre as

matérias inaugure também uma nova relação com o perigo,

com a loucura, com os limites. Encontro fugaz de acasos, como

propõe a performer e filósofa Clarissa Alcantara:

Do acaso dos encontros, inventamos um núcleo,

um centro descentrado, um eixo deslocado, uma

constante marcha que nos assegura um

contragiro. Desejamos o acontecimento! Nossas

posições estão multiplicadas; lugares privados

são ilhas movediças, as linhas desfocadas

borram os contornos. Estão difusos os limites

entre o céu, a terra, o mar, entre o viver e o

fazer arte, entre o sentir e produzir desejo.

Falamos coisas, misturamos coisas, perdemos

os rumos, encontramos o inesperado,

reinventamos o pequeno mundo, corporeamos

almas, bebemos e nos embriagamos um do

outro. Somos limiares de intensidade150.

Inventar um núcleo descentrado. Não buscar um centro

fixo para a encenação. Intuir, proporcionar as diferenciações

inesperadas que, nos giros e contragiros da feitura da cena,

atuam sobre os padrões reiterados. O que pode uma luz, um

cenário, um figurino? O que pode um texto? O que pode uma

149 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4. p. 60. 150 ALCANTARA, Clarissa. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise.

2011, p. 58.

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música? Talvez tenhamos de sentir a potência de cada

elemento, recebe-los, entregarmo-nos, abri-los e abrirmo-nos

para o contágio, antes de pensar em abrir as cortinas.

MAQUINÁRIA DA E NA CENA TEATRAL

O acontecimento cênico: uma maquinaria que rompe

com o jogo das representações e abraça os imprevistos do ato;

instante vazio que age inventando-se a si mesmo. O

acontecimento cênico como uma maquinaria põe em

funcionamento uma operação maquínica molecular, mínima e

alongada. É próprio da cena o intempestivo, o que cresce em

intensidade e se aprofunda, e, trazendo à superfície a

profundidade, multiplica seus acessos e suas riquezas em todos

os círculos da sensibilidade. O que é da cena é a maquinação

dos encontros que se dão, na cena, como blocos de devir. Tudo

que é da cena se faz bloco de devir no interior da própria cena.

Então, um devir-luz da cena faz bloco com o devir-cena da luz:

devir-sombra; devir-escuridão; devir-claridade imensa. O

devir-imagem da cena, faz bloco com o devir-cena do cenário:

devires dimensionais, devires de profundidade, devir-textura. O

devir-música da cena, faz bloco com o devir-cena da música:

devir-criança em sua cançãozinha, devir-intensidade no trágico

das fúrias, devir-dissonância na gagueira da língua, devir-

canção-molécula-sonora-de-pássaro, devir-ritmo num ritornelo

cósmico. Dois ou mais desses elementos cênicos podem fazer

parte de um mesmo devir. Música e luz fazem bloco com o

devir-morte da cena. Os blocos de devir que compõem a cena

contagiam-se uns dos outros. É por um contágio involutivo que

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123

os planos se aniquilam ou se correspondem, fazendo irromper

na cena os matizes, as texturas, as sonoridades: a cena está

povoada151.

A linguagem inventou o dualismo: somos brancos ou

somos pretos, somos mulheres ou somos homens. Isto é bom

ou é mau, faz bem ou faz mal. Deleuze propõe lutar contra a

linguagem, traçar uma linha vocal ou escrita que force a

linguagem passar por esses dualismos, definindo variações no

uso de uma língua menor. 152 No lugar do “ou” coloquemos um

“e”, para podermos, então, compor multiplicidades

minimamente extensivas: somos brancos e pretos e amarelos e

muitas matizes, mulheres e homens e outros, somos bons e

maus e nem somos bons nem maus, bonitos e feios e graves e

agudos, somos fortes e fracos e pequenos e médios e grandes:

somos uma multiplicidade. Um pino de luz sobre um ator é

uma ausência-presença num agora vazio e movediço,

estendido de infinitos ontens e intermináveis amanhãs. Um

ruído estridente em cena é grave e agudo, é enfadonho e vivaz.

É o que pode um corpo para além da linguagem, no fora da

linguagem.

Antonin Artaud: um neutro, feminino e masculino. Em

seu neutro, pesado e fixo, às vezes inexistente (“repouso, de

luz, de espaço enfim”), há um massacre, um teatro da

151 “No devir não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há história.

Trata-se antes, no devir, de involuir: não é nem regredir, nem progredir.

Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se

cada vez mais deserto e, assim, mais povoado. É isso que é difícil explicar:

a que ponto involuir é, evidentemente, o contrário de evoluir, mas, também,

o contrário de regredir, retornar à infância ou a um mundo primitivo.

Involuir é ter um andar cada vez mais simples, econômico, sóbrio.”

(DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos, op. cit., p. 39.). 152 Idem, p. 44.

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124

crueldade. Uma guerra que se alimenta de uma guerra e cospe

sua própria guerra. No neutro, em seu recolhimento, a vontade

espreita a guerra e provoca sua saída. O ventre é vazio por

onde o silêncio deve começar, no ventre a respiração desce e

cria seu vazio arremessado para o cume dos pulmões. Seu

masculino não é nada, ele mantém a força e o sepulta na força,

é um ativo comprimido que mantém a vontade enérgica da

respiração; no exterior, é uma batida do suspiro de uma boca

fechada, uma “larva de ar” que explode na água no momento

em que se fecha. Seu masculino, “para fazer sair o grito da

força”, se apoiaria no ponto dos estrangulamentos que

comanda a irrupção dos pulmões. Do vazio de seu ventre

alcança o vazio que ameaça o cume dos pulmões, a respiração

cai então sobre os rins, é um grito feminino, terrível grito

subterrâneo armado em guerra, para o qual ele precisa cair. Seu

feminino é tonitruante e terrível. É abandono, angustia, apelo,

invocação, gesto de súplica, um descer nas profundidades para

logo voltar à superfície. O masculino assombra o feminino

como sombra, mas é no feminino que apoia a força dos seus

músculos, nos rins; é na altura dos rins que todo o sentimento

feminino realiza seu vazio, o soluço, a desolação, a respiração

espasmódica, o transe. Para criar, Artaud, não precisa da força,

apenas da fraqueza, de onde surgirá a vontade com toda a força

da reivindicação. Artaud contamina sua respiração dessas

matérias desgenerizadas, e nela apoia o seu grito: “o grito da

revolta pisoteada, da angústia armada em guerra e da

reivindicação.”153 Ultrapassando os dualismos, Artaud varia na

língua menor que inventou para si.

Para Antonin Artaud, a cena é “um lugar físico e

concreto que pede para ser preenchido”, fazendo com que ela

153 ARTAUD, A. O teatro e seu duplo, op. cit., p. 167, 168, 169.

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fale sua linguagem concreta154. Uma linguagem, no entanto,

que escapa à própria linguagem, e versa novos sentidos; que

independe da palavra e inventa uma língua. Artaud substitui,

então, a poesia da linguagem por uma “poesia no espaço” que

não pertence mais ao domínio das palavras:

Digo que essa linguagem concreta, destinada

aos sentidos e independente da palavra, deve

satisfazer antes de tudo aos sentidos, que há

uma poesia para os sentidos assim como há

uma poesia para a linguagem e que a linguagem

física e concreta à qual me refiro só é

verdadeiramente teatral na medida em que os

pensamentos que expressa escapam da

linguagem articulada.155

A linguagem física, a linguagem material e sólida que

se distingue da palavra, segundo Artaud, consiste em tudo que

ocupa a cena, em tudo que nela se manifesta e se exprime

materialmente. Artaud afirma que os modos de expressão

utilizáveis em cena (música, dança, artes plásticas,

pantomimas, mímica, gesticulações, entonações: os elementos

e suas matérias expressivas) são próprios da “poesia no

espaço”. É intrínseco, em cada um destes modos, uma “poesia

própria”, e depois, “uma espécie de poesia irônica”, que

provém do jeito com que cada modo de expressão se combina

com os outros. Essas combinações têm como consequência,

reações e destruições recíprocas156. Deste modo, a poesia da e

na cena será sempre provocada, tanto pela “poesia própria”,

que instaura um motivo territorial no acontecimento cênico,

quanto pela “poesia irônica”, que inaugura um contraponto,

154 Idem, p. 36. 155 Idem ibidem. 156 Idem, p. 38.

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uma polifonia ativa entre os motivos, e os modifica, instante a

instante, imprevisivelmente. Para Artaud, a música, a dança, as

artes visuais, a pantomima, os elementos de cena em geral, só

produzem algo, concreta e objetivamente, através de uma

presença ativa em cena, quando são “capazes de aproveitar as

possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece”. As

formas imobilizadas da arte, deixando-se substituir pelas

“formas vivas e ameaçadoras” cedem ao que Artaud chama de

tentação física da cena, e é por aí que o sentido da velha magia

reencontra, no plano do teatro, uma nova realidade157. São

agenciamentos rizomáticos operando as forças atrativas em

blocos de devires. Sóbrio, econômico e simples, o

agenciamento entre esses elementos torna possível a riqueza

dos efeitos de uma máquina cênica, a própria maquinação do

desejo (ou dos desejos) da cena que se produz. Mas afinal, em

que nos tenta fisicamente a cena? Onde tal poder físico nos

ameaça? Ameaça-nos o espírito e os ossos. São os desarranjos

do controle, da lógica segura de um corpo familiar e

organizado, abrindo assombrosas fissuras na superfície. O que

nos ameaça e atrai como “tentação física” é a possibilidade do

flagelo como instrumento direto e materialização de uma força

inteligente, ou a ameaça de uma doença como uma espécie de

entidade psíquica? “Ninguém pode dizer por que a peste atinge

o covarde que foge e poupa o dissoluto que se satisfaz sobre os

cadáveres.”158 Vitorioso e vingador ao mesmo tempo, máquina

molecular desejante e máquina de guerra, o teatro de Artaud é a

peste que se apodera das imagens adormecidas e as impulsiona

a gestos extremos: “como a peste, o jogo teatral é um delírio e

é comunicativo.”159

157 Idem ibidem. 158 Idem, p. 33. 159 Idem, p. 39.

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Tudo aquilo que está na e que é da cena põe-se em

risco. Toda a matéria está ali ameaçada e ameaça a cena.

Diante disto, pergunto-me, o que ameaça a composição de uma

música quando esta é música de cena? O que ameaça um

músico quando compõe para a cena? Um músico compõe na

cena? Um músico compõe fora da cena e depois apenas a

reproduz dentro da cena? Há de um tudo, o problema é quando

o que se ouve é qualquer coisa. Uma musiquinha qualquer

acompanhando e ilustrando a cena. Um músico de cena é

presença ativa em cena? É possível ao músico de cena também

ceder às tentações da cena, entregar-se aos efeitos das formas

vivas e ameaçadoras e aproveitar de suas possibilidades físicas

imediatas? Como compõe um músico quando está fora e

quando está dentro da cena? Corro riscos também ao me fazer

tais questões? Há vinte e quatro anos venho trabalhando como

musicista de cena e em nenhuma de minhas composições para

a cena teatral me vi realizada com a música que produzi,

percebendo que tenho produzido música na e da cena como

forma imobilizada. Trata-se de uma condição de subordinação

em frente a territórios determinados, fixos, e instituídos da cena

teatral. A expedição em que me levo nesta pesquisa é o que me

permite construir este problema, uma posição de problema,

sem querer encontrar a solução (o que me inspiram os diálogos

com Deleuze). É que a música esquiza me sacode pelos

ombros, desloca-me, acorda-me em novos acordes e me põe

em outros acordos. O que interessa não é responder a estas

questões, e sim, sair delas. Movimento que acontecerá às

minhas costas, na saída, ou no momento em que eu piscar.

As formas imobilizadas, subordinadas à unidade fixa de

seus territórios determinados, não sustentam seu equilíbrio

aparente diante à heterogenia da cena, não garantem sua

suposta estabilidade rígida que evita os excessos e as

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experiências-limite, diante da imprevisibilidade provocadora e

tentadora do acontecimento teatral. O acontecimento cênico

que se põe a funcionar segundo a fixidez das formas, é um

subordinado às formas condicionadas, de fácil digestão,

próprias às formações de massa, de gigantes organismos bem

controlados. Uma cena teatral como esta, dominada pelas

reproduções e pelo uso excessivo de decalques, compostas por

matérias formatadas e assujeitadas, só sabem responder aos

territórios instituídos. Nesta cena, nada se produz, tudo se

reproduz e se anti-produz. O grito de Artaud atravessa como

um raio, para que Deus perca de vez seu juízo. Não há nada de

mais inútil do que um órgão, mas sua luta não é contra os

órgãos, e sim, contra o organismo.

O receio de uma lesão que intervém na estabilidade da

cena, comprometendo a livre heterogenia, é o mesmo que evita

o contágio. Sem contágio não há heterogenia. No entanto,

ameaça e contágio são próprios da cena. Passividade e

segurança não fazem acontecer a cena teatral, sem esforço, o

que fazem é reproduzir estéticas banais, agem por reação, por

resposta programada, sem jamais estar à altura de instaurar um

acontecimento. Passividade e segurança repelem a máquina

desejante, não suportam seus ruídos, seus acidentes, sua

imprevisibilidade. É que uma máquina desejante não assegura,

não aspira, nem se subordina a nenhuma unidade estrutural.

Como produção incessante de desejo, a maquinaria cênica põe

em combustão construção e funcionamento, uso e montagem,

produto e produção, e é neste sentido que seu produto é o

próprio processo. O desejo percorre todos os meios, em seus

detalhes e por inteiro, vibrações e fluxos de toda natureza,

introduzindo cortes e capturas, é desejo sempre deambulante.

No entanto, quando um sistema como este da dimensão teatral,

reduz-se a um estado de representação, a produção e a relação

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dos elementos cênicos em questão tornam-se alienadas,

estagnadas, limitadas a instâncias de significâncias estéreas; e o

desejo, por sua vez, já nasce capturado. A representação

simbólica, explorada em excesso, entorpece o desejo na

produção de subjetividades mórbidas, fixando-o como um

objeto sempre faltoso, apontado para um fim sempre

inatingível e escondido numa fonte nunca encontrada. Assim,

tendo o desejo e sua produção capturados, só é possível para o

teatro uma representação subjetiva infinita, da qual ele destaca

uma estrutura finita que só pode representar sua própria

ausência160.

As relações formais que estruturam os elementos da

cena funcionam como muros, são paredes à prova de som que

impedem a música esquiza de penetrar com seu devir-

molecular desestruturante a cena teatral. O que pode uma

música esquiza num teatro de metáforas e metonímias, cuja a

estrutura só vale para representar algo não representado na

representação? O que traz a música esquiza para a superfície de

um teatro cujo simbólico designa os elementos de uma

representação subjetiva, elementos que funcionam apenas

como puros significantes, puros representantes não

representados de onde aparecem ao mesmo tempo os sujeitos,

os objetos e suas relações?161 Como a peste, por um contágio

estranho e imperceptível, a música esquiza pode agir

diretamente e profundamente sobre a sensibilidade dos órgãos,

a partir de vibrações e intensidades de sons inaudíveis e

lancinantes, com ritmos, ressonâncias e tessituras de mesclas

cromáticas surpreendentes, pondo em movimento uma

dimensão sonora de modo excepcional e incomum,

160 Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo, op. cit., p. 402, 403. 161 Idem ibidem.

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expressando aquilo que rotineiramente não se expressa. Como

a peste, a música esquiza de cena pode pôr em uso as

entonações de forma absolutamente concreta, devolvendo às

sonoridades suas possibilidades de comoção física, seu poder

de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa. Ela pode

agir contra a música rasteiramente utilitária, devolvendo-lhe

suas potências de encantamento. Pode, ela também, ser uma

experiência acessível de todos dias162.

Desejo, contágio, ameaça, imprevisto: inerências da e

na cena. O que é da cena na música esquiza são seus impulsos,

intensidades, dimensões, ela também, “poesia no espaço”, fora

do tempo. Da cena, são os blocos de devir, a maquinação dos

agenciamentos entre os elementos, os fluxos que põem em

funcionamento sua maquinaria. O que é da cena é a sua própria

máquina, que põe em movimento os agenciamentos sempre em

vias de desterritorialização, traçando, na cena, suas variações e

mutações163. Na cena, realizam-se encontros: são os elementos e

as suas matérias, coisas e não-coisas, que se agenciam

inseparáveis à cena. As relações na cena exprimem-se no

mesmo instante em que fundam o território da cena. No

entanto, exprimir não é pertencer, pois há uma autonomia da

expressão na relação que as matérias estabelecem com o

território. O corpo do ator, lançado também em encontros que o

modifica, desorganiza-o, é muitas vezes levado a um ponto

onde não pode mais dizer, “eu sou isto, eu sou aquilo, isto me

pertence, eu pertenço àquilo”. Mas afinal, o corpo pertence ou

não pertence à cena? Cria-se aqui, talvez, um paradoxo

indissolúvel: sua autonomia expressiva não pertence à cena, no

entanto, onde há um corpo de ator, ativo, atuante, há cena;

162 Sobre a linguagem articulada. (Cf. ARTAUD, op. cit., p. 46, 47.). 163 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, v. 4, op. cit., p. 146,147.

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onde houver um corpo atuando, eis aí uma cena, seja na rua, no

palco, ou num quarto fechado. O mesmo não se pode afirmar

da cena, do acontecimento cênico, pois não há como uma cena

existir sem um corpo. Este corpo pode não estar em cena, mas

se há cena haverá um corpo atuando mesmo que ausente. Cada

elemento que entra na/em cena, é matéria corpórea, incorpórea,

objetal, musical que mantem sua existência expressiva

autônoma, não porque cumpre funções passivas, mas porque

põe sua energia ativa em relação. É como máquinas órgãos que

se acopla com outras máquinas-fontes. Fluxos e cortes, cortes e

fluxos, que ora conectam, ora interrompem, pondo em

operação a complexa maquinaria cênica: uma pequena

máquina emite um fluxo, uma outra corta, extraindo o fluxo,

alternando por variações contínuas as intensidades do desejo

que faz mover:

Há tão somente máquinas em toda parte, e sem

qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com

seus acoplamentos, suas conexões. Uma

máquina-órgão é conectada a uma máquina-

fonte: esta emite um fluxo que a outra corta.

(...)

Sem dúvida, cada máquina-órgão interpreta o

mundo inteiro segundo seu próprio fluxo,

segundo a energia que flui dela: o olho

interpreta tudo em termos de ver – o falar, o

escutar, o cagar, o foder... Mas sempre uma

conexão se estabelece com uma outra máquina,

numa transversal em que a primeira corta o

fluxo da outra, ou ‘vê’ seu fluxo cortado pela

outra.164

164 Idem, O anti-Édipo, op. cit., p. 11-16.

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A cena teatral não é um organismo, mesmo que se

aceite trata-la como tal, um corpo organizado, estruturado, com

começo e fim previstos. No entanto, a cena teatral, tomada aqui

como acontecimento, é antes um corpo sem órgãos. Não é um

mero mecanismo posto em funcionamento autômato; é uma

maquinaria complexa, sutil, delicada, ruidosa, imprecisa,

imprevista, com devires-imperceptíveis e devires-moleculares

de toda espécie, assim como grossas matérias e materiais de

naturezas distintas a avolumar o espaço: cada elemento uma

máquina órgão ligada a outra máquina órgão, conectadas por

uma multiplicidade de fluxos e cortes, pondo em movimento a

maquinaria cênica. Ela mesma, simultaneamente, uma máquina

fonte e uma máquina órgão acoplada às outras tantas máquinas

da maquinaria cênica. Mas, também, a cena funciona nos

“entres” das máquinas, no meio delas, todas dispostas em um

plano que opera em ritmos variados, em fluxos maquínicos.

Entre as máquinas, a cena integra e desintegra a si mesma, e

aquilo a que se acopla; não está pronta nem terminada, e nem

começa agora quando se abrem as cortinas. Assim como não há

uma luz, uma voz, uma música, não há uma cena. Cada

máquina órgão extrai partículas das matérias em conexões e,

assim, vai-se compondo um corpo (cênico) sem órgãos que não

se organiza nem se desenvolve sobre estratos, formas, sujeitos,

mas que arranca o órgão à sua especificidade para fazê-lo devir

"com" o outro. Corpo que se compõe no mesmo instante em

que cria composições, em movimentos e repousos, em

velocidades e lentidões, nos agenciamentos, nas passagens, nos

saltos; em relações que o levam mais próximo daquilo que está

em vias de se tornar, e através das quais se tornam. São

devires, o processo mesmo do desejo, que inventam o plano de

composição do corpo sem órgãos, em movimentos de

desterritorialização, em empreendimentos de dessubjetivação:

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Um corpo não se define pela forma que o

determina, nem como uma substância ou sujeito

determinados, nem pelos órgãos que possui ou

pelas funções que exerce. No plano de

consistência, um corpo se define somente por

uma longitude e uma latitude: isto é, pelo

conjunto dos elementos materiais que lhe

pertencem sob tais relações de movimento e de

repouso, de velocidade e de lentidão

(longitude); pelo conjunto dos afectos

intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou

grau de potência (latitude). Somente afectos e

movimentos locais, velocidades diferenciais.165

O grande corpo (cênico) sem órgãos, a maquinaria

cênica, tudo o que irrompe do acoplamento das matérias dos

elementos, e das intensidades e variações de suas potências, é o

acontecimento cênico em si. O que é da cena são os seus

órgãos destituídos, de onde foram arrancadas as funções e as

especificidades; são os devires que a põe em agenciamentos,

territorializações e desterritorializações das quais participa; são

os seus fracassos e os seus imprevistos.

O corpo (cênico) sem órgãos é um despossuído; um

distúrbio orgânico que recusa autópsias, uma força extrema em

carne viva, que realiza seu acontecimento. Corpo que vive,

vitorioso e vingativo, o seu funcionamento. Essa é a

maquinaria das pestes e dos contágios, de um estranho

maquinado, maquinando o impossível até que tudo se torne, de

repente, nosso elemento normal166.

165 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, op. cit., v. 4, p. 47. 166 ARTAUD. O teatro e seu duplo, op. cit., p. 23,24, 26.

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É assim que Antonin Artaud inventa sua vida e cena, e

cria para si seu corpo sem órgãos:

Levando-o pela última vez

a mesa de autópsias para

refazer sua anatomia

o homem está doente porque está mal

construído.

Atem-me se quiserem

mas temos que despir o homem

para raspar-lhe esse micróbio que o pica

mortalmente

deus

e com deus

seus órgãos

porque não há nada mais inútil que um órgão

Quando vocês o tiverem feito um corpo sem

órgãos, o haverão libertado de todos os seus

automatismos e o haverão devolvido a

sua verdadeira liberdade

Então poderão ensinar-lhe a dançar ao revés

como no delírio dos bailes populares

e esse revés será

seu verdadeiro lugar167.

167 Idem. Para terminar com el juicio de dios y otros poemas, 1975, p. 30,

31. (Tradução minha).

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E é assim que Stela do Patrocínio inventa sua vida e

cena, e cria para si seu corpo sem órgãos:

Eu já fui operada várias vezes

Fiz várias operações

Sou toda operada

Operei o cérebro, principalmente

Eu pensei que ia acusar

Se eu tenho alguma coisa no cérebro

Não, acusou que eu tenho cérebro

Um aparelho que pensa bem pensado

Que pensa positivo

Que é ligado a outro que não pensa

Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar

Eles arrancaram o que está pensando

E o que está sem pensar

E foram examinar esse aparelho de pensar e não

pensar

Ligados um ao outro na minha cabeça, no

cérebro

Estudar fora da cabeça

Funcionar em cima da mesa

Eles estudando fora da minha cabeça

Eu já estou nesse ponto de estudo, de

categoria168

168 PATROCÍNIO, op. cit., p. 69.

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O CORPO SEM ÓRGÃOS DA MÚSICA ESQUIZA

Tenho ouvido muito o barulho do mar. Barulho das

grandes ondas, e as reverberações que confundem o som de

quando quebram com o de quando se esticam na areia.

Pequenos estalinhos de som da espuma branca, que aqui na

casa ressoa. Ontem, novos cantos de passarinhos, nova estação

que chega, migrações que ouço. Passagens de sons. É que tudo

soa. Há sempre, enquanto escrevo, o contraponto de pássaros e

marulhos e o som brutal de uma geladeira velha. Ela soa assim:

um barulho mais forte se sobressai, fazendo soar um ostinato

pequenininho de uma nota só, em tessitura média, com um

ataque curto que logo é sugado para dentro dela mesma,

cíclico, maquinal; mais fraco, mas ainda bem audível, soa um

pedal grave que oscila um pouco; e, no fundo, mais fraquinho e

bem à vontade, soa um agudo frenético, brincalhão. Entre esses

três sons que se destacam, soam uns harmônicos que não sei

descrever, mas que se misturam entre as melodias e formam

com elas o corpo do som dessa geladeira rabugenta.

No contraponto entre os marulhos do mar, os cantos dos

passarinhos e a rabugice da geladeira, às vezes entra o som da

chuva caindo no telhado da casa e no chão da varanda, do

vento quando é forte, quando é brisa e quando é ventania, das

folhas e dos galhos que os ventos balançam, dos grilos (porque

o verão acabou e as cigarras, para onde foram?), do miado do

gato, e a voz do amor que tenho. Corpo da polifonia que varia

todo dia. Variações que não emudecem nunca. Matérias dos

dias. É espontâneo em mim deixar de ouvir o barulhão da

geladeira mesmo enquanto soa, e voltar a ouvir as

reverberações do mar quando explode uma onda. Disparos.

Sobressaltos. Acalantos. Há sempre um colo breve no canto do

passarinho. Há invasão pulsante de uma saudade no som da

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chuva caindo. Há sempre? Há sempre o mesmo? Nem. Não

posso dizer isso assim sem sentir agora mesmo diferente.

Pensei assim porque me veio logo, mas sei que tudo muda

enquanto vivo e não estou por aqui presente. Nem presente no

dia, nem presente na escrita. Às vezes não me sei, não me

tomo, não me canto, não me rejo, não me escuto. A cena é esta,

e essa é a música esquiza que se faz sozinha nos dias todos de

minha presença-ausência na maravilhosa expedição que é a

vida. E quando em cena, no acontecimento desta expedição, eis

que às vezes aparece a representação daquela que sou quando

não estou presente. Momentos de cena. Horas de cena. Dias de

cena (e paro por aqui porque ainda não tenho coragem de

seguir além). Cena e música esquiza, compondo, com as

matérias dos dias, o acontecimento dessa expedição.

Crio diariamente o corpo sem órgão dessa música

esquiza com as escolhas que faço nos momentos em que estou

presente. Crio no acontecimento mesmo, porque é quando a

música já está soando. Colho delas suas sonoridades e os afetos

que elas trazem consigo. Colho os coloridos. Agora, por

exemplo, soam os sons da geladeira, as reverberações do

oceano, a torneira cacarejante, a água caindo na pia, os passos

de que eu amo no entorno do balcão da pia, o teclado do

computador enquanto teclo, e nenhum vento nem passarinho.

Deixo soltas as matérias como soam. E não faço soar a música

que escuto. Nesse corpo sonoro que agora ouço, não organizei

os tempos nem as intensidades, nem escolhi os sons para

compor melodia, mas poderia. Eu poderia gravá-los e editá-los

e fazê-los soar, expressando as relações que ali comporiam o

território sonoro de uma música esquiza. Esquiza, porque eu

não definiria os tempos, ainda que pudesse. Porque escolheria

alturas que independessem de um campo determinado. Porque

a harmonia que, porventura, eu escolhesse, passearia por onde

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quisesse. Isso é uma coisa. Outra coisa é a seguinte: se eu

pegasse todo esse material e resolvesse criar uma música a

partir deles, e não com eles, com piano, flauta, percussão, seria

possível criar um corpo sem órgãos para essa invenção? Sim,

eu poderia. É que a música é feita dessas matérias sonoras que

estão livres no mundo. Tudo soa. Tudo é forte e fraco e grave e

agudo e longo e curto e consonante e dissonante. Tornar

expressivos os componentes, sem aprisiona-los, é criar para

eles um corpo sem órgãos, um corpo sonoro sem órgãos. Um

corpo sem organização dos órgãos. Isso não quer dizer que é só

fazer qualquer coisa, mas que é preciso deixar acontecer

alguma coisa. O acontecimento deste dia soar em uma melodia

na flauta, é possível, sem que esse dia imponha seus tempos,

sem que esse dia imponha um território fixo, sem que esse dia

queira ser representado. O corpo sonoro sem órgão da música

esquiza traz, para deste dia, seus próprios afetos, e não a

representação dos afetos do dia: é um dia cinza e chuvoso, que

já fez um tantinho de sol que já foi embora, e agora a noite vem

chegando. Vou representa-lo sonoramente e acabo com a

possibilidade de a música ser um acontecimento neste dia,

deste dia. Posso, mesmo em dó maior, fazer com que a música

deste dia aconteça, desde que eu deixe livre a melodia para ir

onde queira, visitar outros tons, perder o tom, mudar seus

tempos, ficar quietinha no canto; e deixar que o mesmo

aconteça com a harmonia, que se mantenha ou que passeie, que

se suspenda, que se acabe, que se desmanche, que se

estraçalhe, que caia num buraco e que não queira voltar. Não

posso acreditar que o dia deixe de variar seus rumores.

Inengendrar o corpo sonoro de um acontecimento. Acontecer.

Estar presente sem representar. Existir, inventando modos

variáveis para a existência. Inventar existência. Os sons não

estão aí para isso?

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O esquecimento é sempre bem-vindo se quero me livrar

das referências. Quando não sei mais o que aprendi, nem me

lembro mais o que ouvi, posso compor sem projetos, porque

não irei me atar em uma estrutura musical. Deixar as matérias

acontecerem dentro da minha composição. Essa geladeira,

quando soa, não pede compreensão. Ela soa porque precisa.

Porque o som faz parte de seu funcionamento.

UMA SAÍDA

Saio, e nada se esgota. Porque não sei onde se encontra

a saída. Saídas são derramamentos, transbordamentos,

esgotamentos. Enfim, é quando se lança mão, abre-se mão, vê-

se escorregar por entre os dedos todo o medo do conteúdo, que

nunca esteve sob controle, e toda expressão, que nunca

pretendeu separar-se dele. Estou no meio do salto. Suspensa.

Entre a tremura da coxia e o esplendor do palco. Entre o show

e a cena. Entre meu fantasma na cena em que toco, e o êxtase

da força de meu corpo iluminado à frente de um microfone. É

que sou cantora, não atriz. No teatro, sou musicista de cena.

Entro nua na cena teatral, e sinto como isso me afeta, toco

agora esses efeitos. E pergunto-me: quanto me deixei tocar

pelos afetos que me transpassaram no encontro com a cena?

Agora, agora, agora. Presente vazio e movediço, linha infinita

estendida. Como, quando, onde, quanto do meu corpo, que não

é “meu”, pode agora tocar o medo, a submissão, tocar a

ausência, tocar os flagelos, as imperfeições, arregaçar em sons

tudo aquilo que agora me ameaça. Quero encontrar uma saída.

Aparecem saídas. Nunca uma conclusão. Uma tese que se

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prese nunca deveria pretender uma conclusão. Erro

metodológico. Erro epistemológico. Uma tese inventa saídas.

Suas saídas, um todo aberto. Os dedos e minha embocadura

nos buracos da flauta, as cordas vocais, sabem bem mais o que

fazer do que meu raciocínio ordinário, que teima em me roubar

a tese e me enfiar nas armadilhas de um doutorado, um mago

irônico que aponta uma multiplicidade de direções. Cabuloso,

fabuloso desafio. Abraço a abertura de caminhos. Para imergir

na cena da tese é preciso perder o lastro da embarcação segura.

Maravilhosa, maravilhosa, maravilhosa perdição. Afinal de

contas, estou ameaçada do que nessa expedição? De um

fracasso? Fracasso de que, de quem? Da música, da musicista?

Porque a pesquisadora está, finalmente, se fazendo agora,

agora enquanto fracassa, agora enquanto se perde, agora entre

entradas e saídas, agora enquanto crio novidade e uma

estratégia do fracasso.

A expedição da música esquiza maquina-me

imprevistos. Maquinar imprevistos é o que essa música me

ensina agora a fazer. O que invento agora como saída é um

território que ultrapassa esta página branca; são diagonais que

me lançam para outros rumos, a pular muros, para dentro e

para fora; são transversais que me atravessam e também me

carregam: e vou. Vou diferente agora, porque só agora salto, de

fato, pelo meio, e não como imaginei antes, o início de um

salto, suave, plano, seguro. Escrevi para uma disciplina prática

do doutorado: Tenho medo e dedos de sobra que me apontam o

seguir. E irei, covarde que sou, onde me disserem: vá! Ah, sim,

o medo... O mesmo medo que esteve presente em várias

composições que fiz para música de cena. Compus, pisando em

ovos, covarde e submissa aos territórios dominados da cena.

Com medo de que eu poderia ameaçar, confundir, anarquizar a

unidade imperial, canônica de cada cena, e foi meu medo o

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grande articulador e cúmplice para mantê-las estáveis. Calei à

força as sonoridades que poderiam inventar uma língua nada

materna para a poesia no espaço de cada montagem. Rezei

forçado às estruturas de cada cena, e reproduzi sonambúlica

outras estruturas, fingindo não adular, mas ao menos respeitar

todas elas. Minha composição não ameaçava em nada,

subalterna e operária, fiz impotente as ameaças potentes, e me

vi por elas aprisionada. O medo e a submissão às linguagens e

às autoridades da cena só reproduziram matérias sonoras

submissas (musiquinha de fundo, bonita música para embalar a

cena). E me pergunto de novo, já outras coisas: como, quando,

onde o despotismo está ameaçado, ao contrário de ser uma

ameaça? Quando a ameaça torna-se potente? Quem é, afinal, o

músico de cena? Que lugar ocupa sua composição para à

composição da cena? Qual o lugar de afetação real da música

para a cena? Enquanto musicista alguma vez me pus estas

questões? Quanto o músico, a música, pelo pão e leite, pela

ameaça e medo de ficar de fora da cena, submetem-se ao jogo

despótico das ameaças? Quando uma composição, uma

invenção, seja de música ou de cena, torna-se ela mesma uma

ameaça ao que ameaça? Quando uma cena e uma música,

enfim, desarranjam e desativam o centro nervoso e perverso de

subjetividades estéticas submissas, e produzem um

acontecimento esquizo, uma intensividade molecular que corre

livre pelo meio das polaridades mortíferas, quando se produz

um outro tipo de ameaça, a grande peste, que só poupa quem

está em contato com os cadáveres, quem põe o dedo na ferida,

em percepção direta com a presença ativa, e fere mortalmente

quem dela se proteja.

Música que se apropria das matérias do tempo e do

espaço da cena, dos afetos da cena e dos afetos outros que

atravessam quem a compõe. Afetos que não são intrínsecos da

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cena, mas que, gerados a partir de seu encontro com o músico

de cena, entram em cena, transcodificados na composição da

música que nela irá soar. Uma vez tornados potentes, os afetos

são capazes de intervir no acontecimento musical e cênico,

como parte de sua composição. A cena recebe, assim, uma

nova invenção dos materiais e afetos que sua maquinaria põe

em fluxo. Aí, já nada mais se reproduz, não mais se ilustra ou

imita um afeto. A potência ativa dos afetos da música dá à

música essa presença ativa em cena. Ativa porque intervém, no

lugar de servir.

Aqui, no meio de um salto de saídas, cujo intervalo se

modifica a cada instante, experimento uma máquina-escrita-de-

guerra e a ponho a funcionar. Nada se quer seguro quando se

inventa um caminho de desvios. Trajeto que só encontra sua

consistência no movimento dos esbarros e quedas e assaltos e

enganos e esquecimentos e desligamentos e contra-efetuações,

nos mais inesperados potentes encontros. Fluxo e corte, jorro e

contenção: gigante usina de desejo funcionando.

Comecei a escrita desta tese inventando um caminho de

obscuridade luminosa, no meio do percurso me fiz fantasma, e

não me deixei saída. Intitulei meu projeto de doutorado de A

maravilhosa expedição do falatório de Stela, no qual pretendia

investigar a trajetória da fala de Stela do Patrocínio, desde o

hospital onde Stela esteve reclusa até o palco do espetáculo

Entrevista com Stela do Patrocínio. Mas nada sabia de Stela,

do hospital, muito menos das matérias pestilentas deste

falatório. Comecei o doutorado pensando em analisar as

músicas do espetáculo. Que música de cena Lincoln havia

composto ali? Algo diferente, sem nome, sem forma, acontecia

naquele piano, de fala corporeante, que arregaçava a boca de

Stela no corpo de Georgette.

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Do imperceptível, não dava conta do que percebi e,

assustada, atrapalhada (afinal, isso tudo era um doutorado!), fui

perdendo os sentidos, deixando de ouvir o devir-música do

falatório sendo Stela; só Georgette Fadel e Lincoln Antonio, o

músico e a atriz, e o sentido da música e o sentido da cena. Foi

quando interrompi o fluxo, enredei o percurso, perverti o curso

e busquei acordes seguros, mais familiares, submetendo-me a

autoridade instituída da lógica centralizada – tonalidade

acadêmica. Quimera! Não sabia, até aquele instante, que a

pesquisa só pode existir de fato se ela corre sem fundo, quando

vem sem lastro, mastro, segue dando fio, sem fio condutor

seguro. Cordata, não suportei a ameaça de ficar assim tão

perdida, não percebi que a perdição era a luz ameaçadora da

novidade que trazia. Então, enfiei mais duas grossas linhas na

pesquisa assegurando um triângulo, três círculos e um nó.

Passei a investigar dois outros espetáculos dos quais Lincoln e

Georgette também participavam, pensando em ampliar as

possibilidades de pesquisa da música de cena. O primeiro

espetáculo: Rainha[s], duas atrizes em busca de um coração,

com direção de Cibele Forjaz, direção musical de Lincoln

Antonio e atuação de Georgette Fadel e Isabel Texeira; o

segundo: Barafonda, da Cia. São Jorge de Variedades, com

coordenação de Patrícia Guíford, direção musical de Lincoln e

atuação de um grande elenco de quarenta artistas. Abandonei,

assim, o desejo de seguir em trajeto kamikaze pela linha vazia

e infinita de Stela, pela peste e seu falatório contagioso. Nesta

nova composição, o espetáculo Entrevista com Stela do

Patrocínio, sendo o Real, rodava ao fundo, ruído misterioso,

quase calado.

Viajei, assisti, entrevistei, comecei a fazer análises

musicais das canções dos espetáculos. A certa altura, sem

fôlego, desisti do Rainha[s]. Parti para minha qualificação,

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enredada em Barafonda e Stela, tentando encontrar pela

história da música a fiação com a cena. Não fui aprovada. Revi

meu texto. Decidi que iria investigar a música como voz

enunciativa do eu-lírico em Stela e como voz enunciativa do

eu-épico em Barafonda. Escrevi um novo texto. Novo

equívoco. Fiz minha segunda qualificação, passei, e tranquei.

Suspendi o doutorado por um ano, imaginando que, longe da

lógica instituída, poderia aprofundar melhor minha

investigação, atravessar mais suavemente meu fantasma pelos

muros, penetrar mais a fundo nos buracos, estudar sobre a

semiologia teatral e semiologia musical, ouvir com mais calma

seus diálogos e seus contágios, encontrar um rosto. No entanto,

o fantasma que era, era Stela, que havia me soprado a fala e me

impulsionado para o salto. Andava assombrada pelo livro

guardado de Viviane Mosé e o disco com as canções do

espetáculo, e era quando os visitava, às vezes, que as janelas se

abriam, entrava luz, era hora feliz. Até que, investigando o

sentido da cena, caio em um outro novo encontro com Artaud

(o encontro se repetia, a diferença era não ter mais dezessete

anos).

Atravessa-me agora um ovo gigantesco, toda uma

repartição de intensidades, um corpo sem órgãos. Não chego a

ele, nele não posso chegar, nunca acabo de chegar a ele, “é um

limite”. Nada disto é tranquilizador, às vezes aterrorizante,

quase me conduz à morte este corpo sem órgãos. Ele me pré-

existe, mas de todo modo, sim, eu tenho um, um não, vários, eu

faço ele, “não se pode desejar sem fazê-lo” – e ele espera por

mim, “é um exercício, uma experimentação inevitável”. O

fantasma de Stela que eu era chegou mais perto, começou a vir

me visitar. Dispo-me. Visito-me. Acontece algo. Escuto-me,

vendo claro, vendo longe, enfim, que o eu-lírico que eu mesma

me oferecia, aparecia-me como uma camisa de força onde eu

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teimava em me enfiar, e as semiologias só voltavam para

oferecer uma bandeja com arroz, feijão, chuchu e

eletrochoques. Atravessam, assim, derrubando paredes, os dois

filósofos e seus mil platôs, chegando aos tropeços, produzindo

gagueira, mostrando toda a eficácia da surdez, desfazendo

rostos, devolvendo-me sem volta ao corpo sem órgãos de

Antonin Artaud.

Empreendo a nova expedição inevitável, já feita e

começada, onde sobre ela já me arrastava, como um verme,

cega, correndo como louca. A música música música e a cena e

Lincoln e Georgette e Stela e Artaud e Deleuze e Guattari, e os

encontros amorosos da vida. Não há um “eu” onde eu possa

enfiar-me como fantasma, nem Stela sem sujeito, nem

doutorado sem tese, nem tese sem processo, nem pesquisa sem

vida. Feliz encontro, como diz Georgette. Abandonei a

semiologia e mergulhei numa filosofia. Uma filosofia

diferente, dita “da diferença”, que só funciona na prática,

estendida sobre uma superfície, um chão liso de deslizes, uma

terra estriada de bandos, onde a diferença não mais está

subordinada à unidade, ao centro, ao fundo, ao fundamento, à

lógica do Um. Os dedos do medo ainda em riste. Mas que

filosofia pop é esta? A “virada do tempo”.

Durante transcrições das entrevistas que fiz com

Lincoln, anos depois de entrevista-lo, salta-me como um grito

em minha surdez sua fala de músico que fala sobre um

pensamento esquizofrênico, o que o havia guiado para compor

as canções de Stela. Pensamento esquizofrênico, pensamento

esquizo, movimento esquizonte? Não o da doente Stela, mas o

do devir-falatório louco de Stela. Música do devir-fala-de-

Stela. Esquiza, súbita, abrupta análise. Esquizoanálise,

esquizodrama, esquizomúsica? Mas, atenção! Nada disto é

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modelo, nem receita. O esquizo escorre pelo meio, informe,

sem engendração. Estou tomada por uma música esquiza. É

sobre ela que durmo, que velo, que luto e sou vencida, que

procuro meu lugar, que descubro minhas felicidades inauditas e

minhas quedas fabulosas. É por ela que agora sou penetrada, e

que penetro na vida como música, pelo que amo.

Componho a tese. Ela me vem aos ouvidos, tão sonora

que só me resta anotá-la em partitura, encontro a continuidade

radical de minha pesquisa iniciada sobre a música na cena

teatral, sentindo agora a força com a qual ela atua neste

território desterritorializado da cena, pelos encontros que faz

com os elementos da própria cena. Com o contágio virulento

da filosofia de Deleuze e Guattari vem a possibilidade de

estender e agudizar a percepção. Um todo aberto que me põe

escancarado um outro modo de intuir e ouvir e tocar a música,

ela mesma, sendo a cena em ritornelo, em repetições loucas,

deslizantes, imperceptíveis, moleculares, da pura diferença

esquiza. Uma potência que age. Outro modo de existir e

pesquisar. Que maravilhosa expedição!

Passeio trans-histórico da música, que como ritornelo,

devolve-me desconfigurada, transcodificada, a prática que

venho desenvolvendo nas minhas composições e nas parcerias

com os músicos. Estranha-se a lida habitual com os

componentes musicais, no momento em que me deixo perder

nos tempos, nas tonalidades, nos campos harmônicos, e o

impossível vem possível, conteúdo e expressão fazendo soar

um inaudível. Inventam-se termos para o que se compõe,

porque eles vêm sem rosto, sem nome, é uma linha de fuga que

se traça autônoma, em pleno deserto e seguimos (e como nos

alegramos!). Libertar as matérias sonoras da clausura a qual

estão submetidas, ponto a ponto, no interior das teorias e das

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formas, não foi, afinal, desde sempre, o ofício do músico? A

intervenção, a invenção, a desorganização, o desmembramento

sobre as matérias sonoras, tornando-as potentes. As teorias e as

formas sempre foram feitas disto e, depois formatadas, postas à

disposição para serem usadas. No entanto, é a autonomia das

matérias sonoras, atualizando em seu interior a expressividade

dessas relações na música, que faz a festa. Deixá-las livres no

interior de uma música, não quer dizer abandonar os motivos e

as formas sonoras já prontas, quer dizer criar com as matérias

sonoras novas explosões entre motivos e formas, relações que

se atualizam no interior e que expressam também uma cena,

onde se inauguram matérias imprevistas, onde soa uma

potência esquiza, uma invenção musical e cênica. A potência

dessa expressividade só pode produzir afetos potentes, é a

potência dos afetos da música que torna seus encontros

potentes. Encontros potentes da música, sempre novas

invenções e invenção de novo acontecimento, uma outra cena.

Novos acontecimentos cênicos que inventam novos encontros

entre artistas, com o público, com a vida, com o mundo.

Inventa-se um mundo, faz-se outros mundos, e novos modos de

neles existir.

Tenho olhado para as mãos vazias e os dedos

espalmados do medo, e arrisco dar-lhe a mão. O fantasma de

Stela, agora revelado no espelho resguardado, anda mais solto

pela casa, e quando abro os ouvidos, os rins, o ventre, os

pulmões, as vísceras, o peito, os poros, para escutá-lo melhor,

que tamanho maravilhamento! Algo se desorganiza sem dor, e

se reorganiza sem esforço, e novamente se desorganiza, e se

reorganiza. Fluxo e movimento. Pelo pêndulo esquizo sigo em

expedição. Saio agora por aqui e encontro mil saídas. E logo ali

a diante avisto um milhão de outras entradas. É que agora só

aprendo conceitos em sobrevoo, efetuados em corpos, que

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dizem o acontecimento. Sigo pássaro em agitação discreta,

sendo esse acontecimento.

OUTRA SAÍDA

Porque entre uma hora e outra, no meio de um instante

da vida, tenho a impressão de que algo finda. E isso que agora

encerro, não sei bem como, onde, nem quando comecei. Intuo

que é tempo de sair agora, porque algo cala, e o silêncio que

sinto dentro, vazio imenso, verde escuro, lodoso, aponta um

dedo que rabisca um ponto nessa escrita. Um ponto final. Era

de se esperar que eu escrevesse, de saída, o que concluo da

pesquisa desta tese. Acontece que tudo transborda. Eu tentei,

sim, mas saiu falso, tolo, pueril. Um tatibitate. É que não

posso. Não tenho nada a dizer a respeito disso. Estou aqui, com

nova disposição, em uma nova entrada, e o que posso deixar

que se diga, é que muita coisa me atravessou durante o

processo desta escrita. Se sou máquina, agora falho. Pane no

funcionamento. Pausa de semibreve onde sobrescrevo

voluntariamente uma fermata infinda. Quero o silêncio de

muitas páginas. E se sobre elas insiro símbolos gráficos pretos,

pequenininhos, que quando se juntam uns com os outros

ganham algum significado, é porque isso acontece mesmo. Eu

não pretendia correr este risco. Não pretendia porque os

sentidos do vazio que sinto nada tem a ver com os significados

que possam vir a invadir o grafismo deste acontecimento. E

agora estou ineficiente. Esse agora não é aquele que daqui a

pouco se dilui em outro agora no qual eu possa chegar a ter a

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eficiência de concluir sabiamente uma tese, é um agora

infinito, é o que sinto. Mas vamos lá, vou emergir um pouco.

Nestes últimos tempos, estive às voltas com novas

percepção sobre a música, a cena, e suas eficiências. Hesito um

pouco em falar nisso, a verdade é que não é tão simples.

Quando digo que estive às voltas, é porque fiquei no entorno da

filosofia, da música e da cena, sem tocá-los de fato. Estive no

entorno de escritas sobre os elementos e suas matérias, suas

expressividades, suas potências, seus afetos, e de como

funciona uma música e uma cena quando tudo isso neles se

junta. No entorno do caos e do cosmos, de muros e de buracos,

das repetições, das repetições, das repetições dos ritmos. Dos

meios e dos entre-meios, dos territórios, das cançõezinhas, das

linhas de fuga. No entorno quer dizer que não pisei em nada.

Mas acontece que alguma coisa subiu à superfície e me levou

para fora. Estou quietinha, sentada numa cadeira pegada numa

mesa de mãos dadas com Stela e continuo muda. Essa emersão

parece que não vai dar certo. Mas vamos lá, vou emergir mais

um pouco.

No meio de tantas voltas, o encontro com o ritornelo

me forçou um pensamento, e já não pude ficar mais tão longe:

ao fechar o livro, me olhei no espelho e vi que aquele motivo

formal se parecia comigo. Eu estava acostumada com o que

via, todo dia, todo dia. E não sei porque, sempre que vejo um

ritornelo, tem uma cor amarela forte que o circunda, como sol,

margaridas e girassóis. O sol, um imenso ritornelo cósmico,

lançando raios, mudando as cores das peles, dos tecidos das

roupas, mudando o grau das temperaturas, entrando pelas

janelinhas. E agora, toda a vez que eu for tocar uma partitura, e

chegar a hora de voltar para alguma parte, será que não vai dar

vontade de arregaçar aqueles dois tracinhos que grafam o

ritornelo, e gritar para as notas para que voem? Meu devir-

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criança gostou muito do ritornelo. Emerjo um pouco mais, e já

estou perto de uma superfície.

ESBOÇOS PARA UMA PARTITURA ESQUIZA

São esboços de estudos que foram se fazendo a partir

das entradas na filosofia de Deluze e Guatarri enquanto traçava

a pesquisa desta tese. O primeiro desenho é a partitura de tese.

Este esboço produziu-se em ressonância com os Pentagramas

que indicam os caminhos da escrita. Ao desenhá-lo, mantive as

cinco linhas que formam os cinco blocos de pistas do

pentagramas, trocando as letras por imagens que sugerem

algumas das sonoridades que embalaram a escrita. As

sugestões são as seguintes:

Mar, maresia, maremoto, marolinhas Ruídos de geladeira. Máquinas

Vozes de uma ou várias pessoas Contrapontos

Brisa, vento e ventania Coda Livre

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Sobre a partitura joguei materiais que, assim como as

sonoridades, fizeram parte do dia-a-dia da pesquisa. Essas

matérias sugerem as texturas, as alturas e as intensidades de

cada nota, ruído, granido, dos sons, enfim, que a composição

possa intuir. A tese encontrará seu acabamento no momento da

defesa quando apresentarei a composição executada desta

partitura, intercalando-me com ela. Ao final destes esboços que

seguem, há duas outras possibilidades de partituras, dois

pentagramas de intensidades diversas, cada um composto de

cinco linhas que se enredam sobre uma superfície onde soam

intensidades e fluxos e cortes. São rizomas que não começam

nem terminam: uma matéria sonora de variação infinita. Estes

dois pentagramas executam também a pesquisa e a escrita desta

tese.

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ANEXOS – ENTREVISTAS

As entrevistas anexadas foram gravadas em 2010, em

Belém do Pará, e em 2012, em São Paulo, SP. Nelas, Georgette

Fadel e Lincoln Antonio falam sobre seus processos, nos

espetáculos Entrevista com Stela do Patrocínio, do Núcleo do

Cientista; Barafonda, da Cia. São Jorge de Variedades; e

Rainha[s], duas atrizes em busca de um coração, com direção

de Cibele Forjaz.

As entrevistas e suas tantas camadas fluorescentes

seguem a atmosfera dos esboços. Sua leitura colore e

prescinde. Que venha por deleite.

Entrevista com Georgette Fadel. Setembro de 2010

Entrevista com Lincoln Antonio. Setembro de 2010

Entrevista com Georgette Fadel. Junho de 2012

Entrevista com Lincoln Antonio. Junho de 2012

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Entrevista com Georgette Fadel em setembro de 2010.

Belém do Pará.

Georgette – Ok, então, desde o começo. O começo mesmo

teve a ver com você, com a Unicamp, aquela prova de aptidão,

eu tinha decidido fazer teatro de repente.

Ive – Mas você já fazia alguma coisa.

G – Não fazia nada, nada, nada, nada. Tinha feito uns meses de

conservatório Carlos Gomes.

I – Em Campinas.

G – Em Campinas, mas já visando a história da Unicamp e

tudo, porque aí aquela educação tradicional, fiz colegial e aí

tinha que fazer uma faculdade, um terceiro grau. E eu não

frequentava teatro, não tinha nada a ver com teatro, e na hora

de preencher a ficha, pra decidir a onda do vestibular me deu

um aperto no peito e eu pirei, falei: não tem nada de física nem

de engenharia, que era o que eu ia fazer, astrofísica, falei: eu

vou enlouquecer, eu preciso de uma coisa que englobe tudo,

tudo tudo tudo, corpo, voz, pensamento, sentimento, ideias,

dança, aí coloquei artes cênicas, a gente se encontrou, aí rolou

essa vida acadêmica. Fui fazer USP, fui conhecendo pessoas

com as quais eu estou até hoje, que é o povo da São Jorge. Fiz

EAD, me formei em direção na ECA e interpretação na EAD, e

conheci pessoas fundamentais, Mariana Cene, Luis Mármora,

Patrícia Guíford, Paula Klein, Alexandre Krugui, Marcelo

Romagnoli, Cláudia Missura, toda uma turma, a Bel [Isabel

Texeira], entendeu? Então foi uma onda bem via USP, via esse

convívio com essa moçada. Então conheci diretores como a

Cibele [Forjaz], diretores como Sérgio de Carvalho, todo

mundo nesse âmbito aí. Aí pintou a São Jorge, a Companhia

do Latão, eu fui indo naturalmente, me reunindo com pessoas e

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formando companhias, porque na época tinha uma onda de

diretores muito fortes e tal, a gente estava lá na faculdade, nos

restava nos juntar. Porque também eu não tinha muita vontade

de ir batendo de porta em porta pra ver se eu conseguia me

encaixar em algum lugar. Eu fiquei com vontade de criar ali,

porque eu tinha muita coisa pra dizer, muita vontade de criar,

falei: eu vou criar. Tinha a história de ser diretora também, de

gostar de organizar e tal, e aí eu juntei a moçada e rolou a São

Jorge, e o Sérgio de Carvalho me convidou pra fazer parte do

Latão como atriz, não era o Latão ainda, era o começo do

Latão, a primeira vida do Latão, e aí isso foi se desdobrando

em muitas outras coisas. Depois disso rolaram trabalhos

importantes, como o núcleo Bartolomeu, como com a

Companhia Estável que eu trabalhei um tempo com eles, como

a Gota d’água, como as Rainhas, como o trabalho com o Frank

Castorf, que é esse diretor alemão bacana também que eu

trabalhei com ele um tempo. E com a Stela do Patrocínio eu

encontro com o Lincoln. E desde o começo, desde a EAD e da

ECA, rolou essa história de música ao vivo, nem sei explicar

direito por que. Parece que foi um dado que já de cara foi

colocado. Todo mundo gostava de cantar, todo mundo queria

cantar, tocar, todo mundo queria...

I – Isso dentro da EAD ainda?

G – É, eu lembro que na maioria das peças a música era feita

ao vivo. Tô tentando lembrar se teve alguma peça que eu fiz

que a música não era ao vivo. O Castorf, o alemão. Sabe, nas

outras tinha a possibilidade de entrar uma gravação. O Pedro, o

cru, era uma mistura. Tinha um DJ em cena, ele ia colocando

Roberto Carlos, um pá, pá, pá, mas tinha uma hora que a

bandinha tocava, que a gente cantava. Então eu não lembro de

outra peça. Sempre tem uma onda, sempre estou com um

tambor ou um trompete, aí tem que tocar três notas no baixo, aí

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sei lá quem aprende o baixo, e tal, e vai fazendo isso na São

Jorge, no Latão, é muito música ao vivo. O Lincoln eu conheci

no Latão. Depois do Latão, o Lincoln veio trabalhar com a São

Jorge, então eu tenho a impressão que tem também um

movimento bem grande entre grupos. A Bel não é de grupo

nenhum, mas foi da Companhia Livre, a gente se encontrou na

EAD. Então é com essas pessoas que acho que existe uma

coisa comum nessa história também da fala não ser uma fala

realista, então por isso a gente canta também um pouco. Acho

que tem a ver com isso, sabe? De a gente dar mais significação

a uma fala perdida, uma fala muito cotidiana, muito banalizada.

Então por isso em vez de falar há também essa vontade de

cantar. E teve Stela do Patrocínio, A Gota d’àgua, Rainhas. Eu

estou cantando umas canções do Guarnieri num showzinho.

De repente rolou uma coisa de música, instrumentos, músicos

trabalhando com a gente. Pianista, clarinete, pá pá pá, pá pá pá.

Isso tá engrossando cada vez mais, o projeto novo da São Jorge

tem a ver com isso. O Núcleo do cientista vai pro próximo

trabalho.

I – Então você conheceu o Lincoln no Latão. E na Stela você

dirigia. Pensando nesse caminho, focando um pouco na Stela,

quando você dirigia o show do Lincoln, que foi convidado para

tocar no lançamento do livro na Viviane Mosé, e a partir disso

foi germinando esse projeto da Stela. Eles chamaram você pra

dirigir quando já pensavam em um show.

G – Eles pensavam em show mas já estava tudo ali. Eu não fiz

nada... esse negócio de dirigir... eu ajudei o Lincoln a pensar

numa ordem e eu só falei assim “puta, eu acho do caralho”.

Essa foi minha direção. Foi só uma coisa assim “não faz mais

que isso, não faz mais nada além disso, deixa nesse lugar de

possibilidade de improvisação, de criação”. Mas foi só isso, eu

não meti a mão.

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I – Mas quando eles te chamaram pra dirigir, o que eles

pretendiam? Que desejo eles tinham?

G – Eu acho que o que rolou foi o seguinte, teve uma sutileza

assim, tipo a primeira vez que vi foi lá no Cacilda Becker, e eu

lembro que eles fizeram e, puta que o pariu, era isso aí, a

palavra, a música sendo cantada ali por aquela figura, pelo Ney

[Mesquita], com aquele pianista de costas, e os dois estando

inteiros ali a serviço daquele lance, estava tudo bem. Eu falei,

depois do primeiro ensaio, que eu não via necessidade de

mexer em nada, mas que a gente podia ver o que estava me

provocando aquilo e garantir esses pontos, entender o que

estava posto ali e definir aquilo como o trilho do trem. Então a

gente começou a dar uma olhada, vendo o que estava legal,

começamos a estudar as diagonais, o quanto era bonito se o

Ney ficasse parado numa luz, ou o quanto era bonito que o Ney

viesse até a plateia. A gente começou a definir em que música

era bonito a imobilidade, ou a sombra. Então a gente começou

a definir umas coisinhas, entendeu? Mas não tinha nada pra ser

criado, tinha uma necessidade de entender o que tinha sido

criado pra isso não virar um nada, vir pra consciência, só. Um

monte de coisa que eu já fiz tem a ver com isso. Eu não sou

uma diretora super inventiva. Me chamam geralmente pra isso,

quando uma pessoa tem um material que já é dela, que já está

incorporado totalmente no universo da pessoa, aí só pra

identificar e dizer “super tesão, aquela hora principalmente,

podia ter mais dois momentos daqueles”, sabe? Então a mesma

coisa aconteceu com a Stela. Então quando diz direção, eu acho

que não é direção, já tem novas palavras, esse público

antecipado que acompanha e vai dizendo “pô, aqui pegou”,

mas acompanhando o trabalho mesmo. Então com a Stela foi

isso. Então quando o Ney morreu aconteceu um fenômeno

comigo que já tinha acontecido em outros momentos que foi a

história da substituição. Substituir alguém. E, nesse caso,

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alguém que tinha morrido. Então foi uma coisa louca porque

era também uma homenagem, também vontade de presentificar

coisas interessantes que essa pessoa tinha criado, e tal. Então a

Stela é toda cheia de trejeitos do Ney. Bobagens. Tipo a

história da velha, ou da criança, “eu não nasci criança”, como

se tivesse alguém segurando, isso é do Ney. Então ganhou um

tom narrativo porque eu estou narrando uma coisa que ele

fazia. Não sou eu que estou fazendo, sabe. Eu estou lembrando,

“lembra que quando o Ney fazia a velha fazia assim?”. Então o

fato de eu estar substituindo aumentou a cadência narrativa do

negócio, que eu até acho que nesse caso só podia ser assim

porque se não ia ficar sempre com uma referência do Ney

tentando correr atrás dele ou criando uma outra coisa e eu não

queria criar uma outra coisa, eu queria cantar aquelas músicas

ali, bem do jeito que o Ney cantava. Só que o Ney era cantor,

então ele tinha um negócio de poder segurar mais na beleza da

voz, sabe? Tinha uma coisa mais de cantor, então o canto dele

era uma coisa mais segura, mais firme, mais linda. E aí eu dei

uma teatralizada maior, dei uma movimentada maior, fiquei

brincando mais, sei lá o quê. Porque de vez em quando é duro

pra mim esse negócio de ficar cantando, entendeu? Não é uma

coisa super... só é legal, e eu sinto firmeza quando tem um viés

onde eu posso brincar com a história de máscara, se não eu me

sinto totalmente deslocada. Que nem na história do showzinho

do Guarnieri, eu tô com microfone. Esse negócio de microfone

me pirou, porque o som não sai de você. Você fica ouvindo

aquele negócio, fica com vontade de melhorar

instantaneamente. Então a Stela ainda tem uma coisa mais

orgânica que é o “Bah!”. Agora, esse negócio de cantar, da

cantora, tá mais longe do que da atriz. Então a história com o

Ney tinha outra...tinha uma coisa mais da beleza mesmo da

música, da voz dele e tal. Então era um show bem bonito nesse

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sentido. E aí comigo foi pra outro lugar, mas tem uma

referência nele, sem dúvida. Referência forte no Ney.

I – É interessante, porque mesmo que você chame de um

público antecipado, e não de uma direção, de qualquer maneira

tem o seu olhar no espaço, nesse espaço cênico, né? E depois

você mesma ali tem de preencher, não mesmo igual mas...

G – Bicho, isso acontece comigo. Eu vivo substituindo. Eu vou

substituir agora a Mariana numa peça que eu dirigi. Eu vou

entrar. Eu já entrei uma vez. Eu já entrei no lugar da Lavínia

Pannunzio, no Bartolomeu. E eu já entrei em outra peça

também que eu tinha dirigido pra fazer... Isso é uma coisa bem

legal, porque você tá de fora e você vê tudo, ou pelo menos

você vê como aquilo poderia ser mais inteligente e a pessoa

que tá fazendo não saca às vezes. Isso acontece muito comigo.

Então você dirigindo a peça antes, você vê isso. Quando você

vai entrar é mais fácil, é muito mais fácil. Eu até pensei que

podia ser uma técnica muito interessante essa história dos

atores ensaiarem um espetáculo com outras pessoas, dirigindo

esse espetáculo. E um mês antes todo mundo entra. Eu acho

que seria uma loucurinha. Porque aí você vê tudo na criatura.

Seria uma loucura mesmo. Pra mim já aconteceu muito isso e

foi legal. Você constrói uma coisa fora e depois entra naquilo.

No caso do Ney foi uma bosta porque ele morreu, né? Mas no

caso da Lavínia Pannunzio, eu fiz e uma vez ela assistiu e aí,

quando ela fez foi louco, porque daí ela fez “meu deus, entendi

como pode ser”. Aí ela fez uma outra coisa muito louca,

encaixou uma energia, e tal.

I – E o Ney já cantava tudo, né? Desde os textos mais soltos até

a entrevista. Ou o Lincoln ainda continuou compondo depois

que você entrou na cena?

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G – Eu acho que a única música que o Ney não cantava era

Claridade Luz, que o Lincoln me mostrou na minha casa, logo

depois de o Ney ter morrido. E eu coloquei um pouco de texto

a mais.

I – Vocês tiveram que mexer um pouco nas tonalidades?

G – Acho que sim. Acho que em tudo. Mesmo porque é tudo

encadeado. Se começa num tom, todas as músicas têm que ir

mais ou menos naquela região ali, porque uma coisa vai

juntando na outra. Então eu acho que teve que mudar tudo. A

gente na verdade fez muitos poucos ensaios. Começou já na

brincadeira, assim. Às vezes eu me sinto um pouco preocupada

por causa disso, na verdade. A Gota d’água também eu ensaiei

em vinte dias. Porque eu gosto dessa história: “tem uma coisa

aqui, então vamos já fazer”. E com a Stela rolou isso. O Ney

morreu e com o corpo do Ney ainda presente a gente disse

“meu, vamos continuar a Stela”. Mas com quem fazendo? Aí o

Lincoln falou: “com você. Você podia cantar”. E eu disse:

“super podia mesmo”. E aí a gente fez três ensaios, porque eu

já sabia as músicas. Eu sabia as músicas e nem pensei nessa

história de não ser cantora, de ter que segurar uma hora. Nem

pensei nisso. Se eu tivesse pensado, não teria rolado. Eu falei:

“ah, eu sei as músicas, eu sou afinada mais ou menos, vai

rolar”. E com a Gota d’água, a mesma história de um molejo

mais cara de pau com as coisas pra também botar pra frente um

pouco, sabe? Porque a Stela poderia ser uma coisa visualmente

tananã, uma coisa cerca com lonas e Artur Bispo do Rosário

por todos os lados, e uma luz que dialogasse com esse cenário.

O que a gente tem é a luz. A luz eu acho preciosa depois que a

Júlia entrou. Mas esse “poderia ser, poderia ser, poderia ser”

poderia ser mil coisas. Essa síntese, a simplicidade da Stela é o

que eu acho mais legal. A gente acabou de fazer agora num

antiquário, numa sala, tinha um monte de abajur, um monte de

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gente sentada, um monte de peça antiga, e foi tudo bem,

entendeu? As pessoas assim coladinhas como você tá, e aí é

uma coisa meio “tudo bem”. Tinha gente que olhava e não

entendia nada, porque tinha ido pra ver um show de música,

que é o que geralmente tem, e aí aquelas falas todas, tal, tal, tal.

E teve gente que achou muito louco, ficou pirado. Então eu

acho que é um espetáculo que o fato de ele ser um joguinho de

dados, assim meio qualquer lugar, faz com que ele seja mais

aberto, mais fluido. Acho que Rainhas também é assim, mas já

tem uma outra estrutura. Quando a gente estreou no SESC

Paulista, descia uma estrutura com lampadazinhas num dado

momento, entendeu? Tinha um negócio assim das nossas

camarinhas terem luzes ao redor com biombos. Era todo

chique. Aí, de repente, ele foi virando uma favela. E tudo bem,

entendeu? É claro que tem uma coisa de você se sentir assim

mais montada. Então eu acho que essa mobilidade dos objetos

que compõe aquela linguagem vai facilitando também, sabe?

Agora, o Lincoln não toca em piano que não seja piano mesmo.

Não pode ser elétrico. É uma coisa assim. Ele falou: “eu prefiro

fazer na sanfona. Se tiver que fazer um dia, assim,

despojadamente, que seja na sanfona”.

I – Mas o espaço da Stela, foi uma coisa que eu fiquei

pensando. Eu estava tentando juntar as leituras com a Stela

ainda, porque eu ainda não tinha assistido o Rainhas ainda.

Assisti no Youtube, isso que você disse que tinha, essas

lampadinhas que desciam. Mas uma coisa que eu fiquei

pensando foi nesse espaço psiquiátrico, esse espaço sanatório,

onde a loucura se institui como realidade ali, enfim. Na cena da

Stela o que traz esse espaço, a memória desse lugar, é a história

do próprio texto colocado. Aquele texto colocado de uma

maneira tão poética, e que traz uma leveza praquela loucura

que acaba levando a gente pra um outro espaço. É engraçado

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porque parece que deixa ali só aquele ar, como se aquilo

pudesse estar, mas não se vê.

G – Eu acho que naquele texto do início tem essa dica que é:

“então agora eu tô aqui, sem ter família, sem ter ninguém por

mim, morando aqui nesse hospital”. Então eu já abro de tipo

assim: o hospital, esse hospital das almas, é o teatro, é o

hospício e é o mundo. É esse lugar onde a gente vai realizando,

sacando, compreendendo essas nossas loucuras todas, sabe?

Então eu acho que quando se estabelece isso, já se coloca do

tipo assim: estamos falando aqui, de igual pra igual, nesse

território onde a loucura humana conspira e forma a realidade.

Então eu estou aqui, estou no teatro, estou ligada, e isso aqui é

um hospício. Por ser teatro, por ser vida, por ser hospício

mesmo, aqui, nesse hospital. Aqui onde estamos é um hospital.

Então aqui já é um primeiro pacto. Depois, com certeza, isso

que você está falando, eu sinto também exatamente assim. Que

a linguagem é que vai criando, tipo “mas o olho, como é que o

olho faz pra enxergar, se não sou eu que boto pra enxergar?” O

fato de poder dizer isso com autoridade e ser ouvida, significa

que estamos num hospício, porque se na rua alguém chegasse e

dissesse isso pra você, talvez você tivesse medo, entendeu? E

no teatro, não, isso ganha o volume justamente do portal da

transcendência, “não, aqui é o lugar onde isso vai ser dito, vai

ser ouvido, vai ser ponderado e está sendo representado com

uma luz”. Então, é a linguagem que estabelece o espaço, e o

espaço múltiplo. Obviamente isso pode nem passar pela minha

cabeça, tipo “onde a gente tá? Tá num hospício?” Ok, estamos

num hospício. Não, estamos num teatro”. Ou “beleza, estamos

no mundo, estamos na vida”

I – Mas quando você faz Stela, quando você pensa no caminho

dessa encenação, de vir desse canto do Ney, e aí a sua entrada

lá dentro e tal, e como você falou, botou uma teatralidade? A

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teatralidade vai até aonde? Até você perceber uma

personagem? Isso é uma coisa que às vezes eu fico querendo te

perguntar. Você pensa Stela, ou você pensa...

G – Não, penso um cheirinho. Penso eu, Georgette, bem

representando mesmo. Tipo amigona da Stela. Essa

proximidade do tipo “ela fazia assim, ela era chique assim, ela

era inteligente assim, ouçam isso, ouçam isso”. Sabe quando

você dá uma imitada? Mas com amor, gostando. Então é isso

que eu sinto. Quando eu tiro as coisas de dentro do pacotinho,

eu mostro como quem diz: “olha o que traziam pra essa pessoa,

e atenção para: leite condensado que todo nós amamos e tal.

Stela, pra você”. Então tem essa proximidade, assim. Em

nenhum momento eu pensei em fazer uma composição, Stela,

tal. Tem só assim brincando, como eu acho que as palavras me

induzem a achar... o que eu estou querendo dizer é assim: eu

sinto que eu sou mais as palavras dela, do que ela. Então, como

eu acho, como eu entendo a forma que aquele raciocínio tem.

Mais isso do que a figura dela, carne, corpo, que também nem

sei se é uma coisa que eu quero lembrar, ou saber, porque eu

acho que ela perdeu perna, perdeu braço. Então é o tipo de

coisa assim, a picanha ali, pá pá, a história de pensar nas

palavras: “palavras ao vento, palavras ao vento”, também dá

uma liberada, entendeu? As palavras e tal, e se liberar de uma

forma. Porque, por exemplo, do Artur Bispo do Rosário, o que

rola, tipo assim, ele, a figura dele e a nave espacial, e o manto e

tal tal tal, tem uma coisa corporificada muito forte. Você tem

vontade de fazer ele um pouco. E vai trabalhar com o Bispo,

tem aquela história, aquele cabelo dele, aquele jeito dele. A

Stela, ela fala, sabe? Falava. E foi definhando, o corpo físico

dela ali. Então eu sinto que o que dá mais vontade é ir por esse

viés da libertação poética. É claro que sempre é bem-vinda

uma biografia, sei lá como chama isso. Mas acho que passa

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longe. Pra mim, em termos de interpretação, acho que nem

tocou.

I – E quem então está ali, Georgette, na cena? De alguma

maneira é uma composição. A sua presença na cena é uma

composição. Você compôs, né? Então tem essa palavra, a

Stela, e o que mais? Sei lá, “pensei nisso e nisso, sinto isso

quando...”.

G – Escuta, tem uma onda de movimentos. Uma onda de

movimento e som. Então, como se fosse uma partitura que tem

variações, mas não entro totalmente sem saber o que fazer. Sei

que aqui, nesse momento, vou pra perto e tal, tem esse tipo de

energia, cada música parece que tem uma atmosfera. Muito

gerado da música e das palavras, como se a música e as

palavras fossem a máscara, menos a Stela figura encarnada e

mais palavra, som do Lincoln e um espaço vazio, corpo. Então,

esses elementos, eu fui brincando com eles, um pouco

inspirada na trajetória do Ney. Totalmente inspirada na

trajetória do Ney, a partir dela, desenhando firulinhas ao redor.

Então quem tem ali quando eu entro pra fazer, o que eu penso?

Palavras, geometria no espaço. Eu procuro me ater a isso.

Agora, me ater a isso não é prender o raciocínio nisso, não.

Isso é o que é certo pra mim. E aí, dependendo do que vai

rolando em termos desse desenho, a emoção e as pequenas

situações ou pequenas associações vão surgindo no meio desse

caminho. Então, por exemplo, tem essas músicas: “meu

passado foi, um passado de areia e mar de Copacabana”. Então

eu sei que tenho um movimento oscilatório pra frente e pra

trás, eu sei que eu tô olhando pra uma luz que me ofusca. Então

essa luz, de vez em quando ganha leituras, proporções,

associações. De vez em quando é só a luz no meu olho. De vez

em quando eu associo com uma experiência que eu estou

vivendo diretamente. De vez em quando isso vem como um

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mito. Mas o gesto está ali. O que aparece a partir dessa

pequena partitura, desse pequeno caminho de movimento, são

muitas coisas. E às vezes nada. Algumas vezes eu estou ali

simplesmente cumprindo aquilo e realmente dizendo “meu

deus do céu, como está feio, como tá ruim, eu estou desafinada,

aquela pessoa não tá gostando, meu deus, será que tãnãnã”.

Entendeu? Mil coisas passam pela cabeça, inclusive esse tipo

de coisa. Mas está garantido ali o quê? Está garantindo voz no

espaço, geometria. Está garantido que eu estou ali. Eu, o meu

espírito...eu nem falo muito, eu Georgette, porque eu não

sei...eu estou ali. Então é meio por ai, entendeu. E aí passa

tudo. Passa ela, passa o Ney. Tudo.

I – Mas se a gente fosse pensar nessa coisa do teatro, nessa

concepção de criar uma personagem... eu estou meio insistindo

porque eu queria chegar no Rainhas. Rainhas tem um outro

barato de personagem, né?

G – Rainhas vai mais longe nisso, mas é uma brincadeira

também.

I – É uma brincadeira. Mas na Stela ela não fica tão clara. Na

Rainhas vocês esclarecem isso. Está posto. Na Stela...isso que

eu fico pensando que é muito maluco, porque eu nunca vi, eu

nunca pensei “ah, ela está representando, interpretando a

Stela”. Mas eu também fico pensando: “mas a Georgette é a

Georgette, é claro, mas a Georgette...

G – Não sai por ai, cantando. Mas olha, acho que tem um

pouco a ver com uma coisa assim do tipo uma inversão

possível e bem-vinda nesses tempos. Porque assim: eu poderia

cantar também. Sim, eu poderia.

I – Na rua, você diz.

G – É. É isso aí mesmo. Como se fosse assim: o teatro tem que

responder a cada momento para aquela sociedade que está ali.

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Tem que responder, não, responde naturalmente ao que está

rolando ali, aquele tempo, só. É essa galera que está aí, é essa

galera que cria. O que está rolando hoje em dia, o que é? Porra!

Tudo convencionado, tudo meio morto, você não tem relação

de verdade muito com ninguém. Dá vontade de ficar sozinho. E

o tempo todo invertido, tudo meio intoxicante, todo mundo

vestindo muitas máscaras. Então todas essas máscaras sociais

do dinheiro e máscaras da fama, ou da não-fama, da miséria, da

opressão, do ser descolado, do ser artista alternativo, do ser

legal, do ser o mais ou menos, tananá, todo mundo com

máscara e tal. Então o teatro é o lugar onde agora tem uma

inversão total de dizer assim “bom, todas essas máscaras aí,

pápápá”. Agora, no teatro, a máscara do eu, entendeu? Coisa

que eu acho que é uma inversão. Então essa história desse MC

em cena, de é tudo no meu nome, eu sou o narrador. Sou eu

mesmo que estou aqui, é meu coração que está aqui. Sou eu

mesmo. Eu até falo na Rainhas, assim, bem literal, eu acho a

Rainhas super...até boba, assim, sabe? Bem do tipo “eu sou

uma atriz, eu tenho trinta e seis anos e estou completamente

aberta”. De vez em quando, quando eu falo isso, eu digo “eu

não estou completamente aberta”. Então parece que o palco, a

arena, virou o lugar literalmente, esteticamente, do

desnudamento do eu, até uma medida possível, como se lá a

gente pudesse agora ver o que é uma pessoa viva, em

performance no mundo, entende? Então a construção da

personagem tem a ver com a construção de alguém que age no

mundo, esse ator que age no mundo, que de repente poderia

sair performando, poderia fazer uma composição aqui. Ou, no

mínimo, estar sabendo o que está compondo aqui nesse

cenário. Então eu acho que a Stela é um pouco isso, tipo “eu

poderia”. Tem uma coisa fluida entre vida e arte, atriz e

personagem em figuras, estados performáticos, não no sentido

de relaxar em cena e fazer uma coisa cotidiana, realista. Mas

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no sentido em que justamente esse estado de cantoria, de

energia, extrapole, invada, seja o estado onde a gente possa

viver mesmo. Então eu acho que essa noção de personagem

passa por isso, está incluído nisso, está incluído na brincadeira,

não é alguma coisa contrária a isso. Por isso que eu acho que

nas Rainhas tem isso, por exemplo, colocar peruca, casaco,

imaginar. Não só imaginar. Eu sinto que eu poderia ser essa

rainha mesmo. Sinto que eu poderia. E aí, se eu tivesse que

salvar uma pessoa da família? Eu tenho compaixão, mas... eu

sinto que eu poderia ser. Tem um lado meu que participa desse

arquétipo, entendeu? Então é uma brincadeira possível. Tira a

peruca e também sou mil outras coisas, também sou. Então eu

acho que o importante está sendo pra mim essa história de não

fixar numa coisa e ir em direção a ela, uma coisa fixa, a

persona Georgette que faz as coisas mais ou menos desse jeito.

Porque eu acho que eu faço mesmo. Mas no mínimo poder

brincar de várias coisas. Pra configurar a brincadeira, e pra

configurar a liberdade da gente de transitar por muitas

máscaras.

I – E a voz, Georgette? Porque você fala que na Stela a palavra,

o movimento, o som... Porque o Lincoln diz em algum lugar

que vê a Stela como uma ópera mínima, e que mesmo você

tendo posto alguns textos no espetáculo, ainda é quase todo

praticamente cantado.

G – Olha, eu não tenho nenhum trabalho super aprofundado

com a voz, sabia? O que eu tenho é essa paixão mesmo pelas

palavras, então eu fico sempre ouvindo essa história da

percussão mesmo. Gosto dessa história das consoantes. Eu

tenho prazer de falar. Então é uma coisa que naturalmente, eu,

quando vou me aquecer, sempre que vou fazer um trabalho de

sei lá o quê, pra mim de cara vem a vontade de usar a voz. Pra

cima, pra baixo, forte, fraco. Gosto. E eu sinto, como eu estava

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falando antes, uma coisa concreta como se fosse um braço,

como se fosse uma musculatura, assim como eu abro a mão,

assim como eu corro e tal, tem essas pernas vocais. Eu imagino

um corpo, sabe? Então eu gosto dessa parada. De um namoro.

De um namoro com as palavras. Então a Stela foi um pouco

isso. Quando o Ney e o Lincoln me mostraram, eu nem tive

como negar. Eu fui pra casa deles pra dizer não, porque eu não

podia, tinha um monte de coisa pra fazer, eu falei: “meu, eu

vou ter que falar delicadamente que eu não posso”. Quando eu

li e ouvi as músicas, uma ou outra, eu falei “não dá, porque

essa palavra é impecável”, sabe? Essa palavra é sintética e diz

amplamente coisas que levam pra outra dimensão. Aquela da

velha, “eu não nasci criança, eu nasci já velha, depois que eu

virei criança, e agora eu continuei velha, eu me transformei

novamente no que eu era. Eu nasci com quinhentos milhões e

quinhentos mil anos”. Coisas desse tipo. Eu não tenho vontade

de falar qualquer coisa, mas Gota d’água, Stela do Patrocínio,

Qorpo Santo, Mário de Andrade, coisas de amigos meus,

queridos, Marcelo Romagnoli e Sérgio de Carvalho, com o

povo do Latão, essa dramaturgia, Cláudio Chapira, Gustavo

Machado, Gero Camilo. Tem um pessoal que vale a pena abrir

a boca, quase como uma fruta, um doce. Então o meu trabalho

técnico em relação à voz é um pouco esse. Nenhum, e ao

mesmo tempo eu sou muito cheia de imagem em relação à voz.

Então eu gosto. Quando tem que fazer alguma coisa cantada

pra mim é sempre mais fácil do que quando eu tenho que, de

alguma maneira, jogar fora. Eu tenho que achar musicalidade

ali, intrínseca, mesmo nesse jogar fora, sabe? E eu acho que

nesse ponto tem a história da pegada do Lincoln que facilita

tudo porque é um cara que entende a parte teatral, ou seja,

entende a situação e a inserção que aquilo vai ter numa história

ou num todo, e é um maestro, né? É um pianista daquele jeito

que ele é, inteligente, né? Então eu acho que tem essa história

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do Lincoln, porque grande parte das minhas lembranças boas

dessa história de cantar, de falar, tem a ver com o Lincoln. No

Latão...eu lembro que a gente fez no Latão uma história de

uma chamada de uma feira, em Recife. Era uma feira, em

Recife, e a gente tinha que fazer, isso, um ambiente sonoro.

Então a gente ficou inventando “eu tenho lã de barriguda pra

travesseiro”...parecia uma coisa jogada, mas ele ia ajudando a

gente a, devagarzinho, criar um ambiente inteiro, entendendo

bem o que o diretor estava indicando, também. Eu acho que o

Lincoln tem uma sensibilidade que é mais difícil achar. A

gente recebe às vezes coisas mais duras, que não ajudam muito

o ator a, depois de cantar, falar. Porque você acaba de cantar

um negócio e ai você cai numa situação dramática. A mesma

pessoa que acabou de cantar está posta de novo no teatro. Ou

seja, esse som aqui tem que estar contaminado, tem que ter

uma coerência, não precisa ser cartesiana, boba, mas tem que

ter uma coerência com o que foi adquirido naquela música. Na

Gota d’água tem essa história. Aquela música “pra mim, basta

um dia, não mais que um dia, meio dia” que ela cantando pro

Creonte e um pouco pro Jasão, tal tal tal, me dá um dia para eu

preparar esse veneno, pra sair da casa. E, logo depois da

música, entra o Jasão e ela tem que dar uma disfarçada: “Jasão,

que bom que você veio, venha menino” e é genial porque

parece que a música entrega para essa situação. Tudo: a

música, a melodia, a letra. Parece que entrega ela. Então eu

acho que tem uma coisa que é claro que o ator interfere e

constrói e pá pá pá, mas tem também uma coisa que já vem ali

de quem escreveu bem, de quem compôs bem aquela música e

tal.

I – E o que é essa personagem cantando, Georgette. Porque é

diferente a Georgette cantar e a Elizabete cantar, ou a Stela. E

agora que você está fazendo o show do Guarnieri, que são

canções, que diferença de espaço, o que tem de diferente no

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espaço da presença na cena? Porque de alguma maneira, pra

cantar você precisa estar lá, também, né?

G – Olha, eu acho que tem, fora as coisinhas que a gente já

levantou, eu acho que tem, nos dois casos, esses fantasmas

representados. No caso do Guarnieri é o Guarnieri. A mesma

situação. Eu não faço o Guarnieri. E tem uma diferença em

relação à Stela, porque na Stela a gente toca numa história de

se vestir um pouco dela e de falar as palavras dela, e no caso do

Guarnieri são palavras de personagens dele. Então é diferente.

Mas nos dois casos tem fantasmas por trás que estão sendo

representados. Homenageados, representados. E pra serem

representados, um toque ou outro de palavras que eles

disseram, um trejeito deles que possa lembrar, que possa trazer

a espiral deles pro palco. Então eu acho que nos dois casos o

que acontece, e de uma maneira muito diferente no caso do

Guarnieri e da Stela, é que existe uma atmosfera

fantasmagórica, alegre, de homenagem. Fantasmagórica, no

caso, porque estamos falando de mortos, entendeu? Mas não de

uma coisa negativa. E no caso da Stela, o fato de ela cantar,

tem um sentido de abrir uma chave da poesia aprisionada em

terra numa certa condição. Eu acho que o Lincoln, com a

música que ele compôs, brincou com coisas duras. Ele

amaciou, brincou e lavou coisas que estavam presas naquela

encarnação que ela teve. Eu acho que tem um sentido

espiritualístico.

I – Mas se a gente pensar em Gota d’água, que é a personagem

que canta, essa mesma que recebe o Jasão. É essa personagem

que canta.

G – É essa personagem que canta.

I – E aí?

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G – E aí é só um deslocamento de eixo, porque, olha só, eu tô

aqui, você me conhece há vinte anos, e eu tenho, mais ou

menos, uma coisa que vai indo na minha vida, né? Você me

reconhece. Só que eu sinto que se eu desse uma deslocada no

meu eixo, como diria o Dom Juan do Castañeda, no meu ponto

de aglutinação, uma outra realidade se abriria, e você poderia

nem me reconhecer. Eu poderia estar mais magra, com uma

outra cara, outra altura, outro nível de realidade. Então eu

acredito nessas realidades sobrepostas e que elas estão atuando.

O que eu quero dizer é o seguinte: que no caso da Gota d’água

eu te respondo a mesma coisa, é a Joana e a Joana é super outra

coisa, e ao mesmo tempo eu sinto que é o mesmo espírito

universal aglutinado em outra manifestação, então é a mesma

voz. Eu sinto a mesma coisa, o mesmo ponto que constrói outra

cor, sabe? Então, mesmo sendo, mesmo se eu fizesse um velho,

uma coisa longe de mim, o princípio da expressão seria o

mesmo. Que não está em mim...acho que até...que está em

mim. Por isso que eu não me considero muito nada. Porque eu

sou ainda muito vaidosa, entendeu? Tenho uma história ainda

muito em mim. Porque acho que esse ponto, a expressão nem

tem que ser minha. A expressão tem que ser esse através:

passou por mim, eu encaminho pra poder ser apresentada de

uma maneira mais exuberante. Então eu diria que a

personagem cantar tem a ver com o impulso que eu posso dar

pra ela, que eu, como atriz, nesse ponto, posso dar pra ela se

manifestar melhor. Então, de alguma maneira, quando eu

canto, eu me revelo. Então tem eu, a personagem, essa máscara

e tal. O que eu estou falando é que essa mascara e eu, ela pode

ser aqui, pode ser aqui, podem ser muitas, várias, são várias

máscaras, mas sou sempre eu. Não é isso, é o contrário disso.

Nunca sou eu. A questão do eu é essa pulverização total. Então

não é que sou sempre eu. É sempre a mesma voz porque a

substância é a mesma, é a voz de todos nós. Eu gostaria que

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quando eu cantasse, a personagem cantasse, ela cantasse

porque todo mundo pede isso, porque não tem outro jeito, ela

tem que cantar. Ela tem que organizar de uma forma mais

florida, mais florescente aquela fala. Tem que entrar um tã nã

nã agora. Por que? Porque faz parte dessa mandala entrar agora

isso.

I – Trabalhando um pouco com preparação vocal de ator, eu

percebo que às vezes tem uma dificuldade de entender que

aquele canto é uma ação. Que não pode ser “agora a atriz vai

cantar” e ela vai lá e canta.

G – Total. Isso é foda.

I – E ontem, vendo a Rainhas, isso era muito bacana de olhar

porque tem a atriz, que já é, de alguma maneira, a personagem,

né? Mas tem a atriz, que é essa autorreferencialidade, e a

Elisabeth cantando, né? Então você vê, e é interessante o

trabalho de voz que vocês fazem ali porque tem isso que você

está falando. Apesar de ser a mesma voz, tem um outro lugar

onde ela aparece, né?

G – É, total, porque a gente vai brincar agora que eu sou a

Elisabete. Então eu fico imaginando como ela falaria, eu acho

que ela tem uma voz grossa, uma voz tal tal tal, a gente pensa

em dublagem de filme americano “esse é o seu lugar, lady

Maria. E eu agradeço o grande favor que o meu Deus me fez

não permitindo que eu viesse a cair aos teus pés”. Ela falou:

“Pô, esse cair é legal, cair”. Brincando. Então essa máscara é a

possibilidade de uma brincadeira. Mas uma brincadeira de

presentificação. Você presentifica esse arquétipo, você traz um

pouco ele, traz a espiral, a mandala dele está posta aqui, então a

força dele também se apresenta. Eu penso também muito na

Elisabete. Na verdade, mais pro final da peça, quando eu entro,

eu penso assim: “pô, essa mulher deve ter sido...”. Essa história

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de ter uma referência como a Stela, o Guarnieri e, nesse caso, a

Elisabete, vestir mesmo um perucão, e tudo sarrista, porque a

peruca é mais ou menos, é tudo mais ou menos, em algum ligar

é quase uma criança brincando mesmo, né? Ela foi uma puta

estadista. Ela ficou quarenta anos, num momento em que

nenhum rei sobrevivia mais de três porque assassinavam,

porque morria de doença, da puta que o pariu, ela solteraça,

inventando essa história de virgindade, criando uma aura. Uma

mulher totalmente louca. E aí eu entro, eu digo assim: “eu sou

a Elisabete I, eu sou a rainha da Inglaterra, meu email é pa´pá

pá”. Então é claro que tem uma outra voz, a voz de um

arquétipo que está sendo tocado. Eu toco nesse arquétipo pra

conseguir através dele construir o meu. Acho que tem um

pouco, em todos os trabalhos, essa volta. Inclusive na Gota

d’água. Eu represento, eu toco nessa máscara, nessa, levanto

um pouco, faço um jeito, um tipo, frequento um pouco aquele

lugar da Stela fumando e respondendo na primeira pessoa,

talvez como eu imagino que seria a palavra dela, pra quê? Pra

voltar pra mim a questão. Pra voltar pra mim, mim essa

geração, esse momento, nós, nós. Voltar pra mim nós, nesse

momento. Aqui nessa terra, não entendendo nada. Então nas

Rainhas tem isso, na Gota d’água tem isso, na Stela tem isso.

Um se alimentar daquele arquétipo. O arquétipo da louca, o

arquétipo da estadista, o arquétipo da mulher traída que é capaz

do sacrifício máximo, da feiticeira que é a Joana, mas tudo

rebatido. Aí imediatamente rebate. Até que a gente fica um

pouco de saco cheio dessa história de metalinguagem, porque a

gente tá autorreferente total, mas eu acho que é um pouco isso

aí, porque a gente está tentando entender os novos padrões, os

novos arquétipos que a gente está tendo que construir. Então

você fica botando pra fora o negócio. Então nas Rainhas tem

essa cena dessa coleira, por exemplo, que sou eu. Era eu, não

tendo tempo pra ensaiar uma cena Elisabete. Tive que usar o

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meu cotidiano e perceber que eu tinha um raciocínio de

Elisabete, rainha. Eu queria viver quarenta anos no poder,

entendeu? Por isso é que eu não tinha tempo pra nada. Então

teve que voltar pra mim pra eu poder construir um esboço de

uma máscara. Minha, mas que me atravessa e eu dou forma.

I – E o trabalho com as Rainhas, como foi aparecendo? Você

estava fazendo Stela com o Lincoln...

G – Eu estava fazendo um monte de coisa. Estava fazendo

Stela, fazendo ainda quase nada da Gota, mas um pouco,

sempre trabalhando com a São Jorge. Aí foi um momento de

vida daqueles bem doidinhos, daquelas transições, de tudo, a

Bel e a Cibele me convidaram. É um projeto da Bel, né? Aí eu

imediatamente aceitei, coisa que não acontece muito comigo,

porque tudo precisa ser um estudo muito delicado dos meus

horários, entende? Tudo é muito já amarrado, sabe? E aí foi

aquele grito de liberdade: “Claro, claro que eu vou fazer isso.

Não quero nem olhar na agenda”. Como foi com a Stela. “Vou

fazer, é impossível não fazer esse texto incrível com a Bel, com

a Cibele”. Então surgiu assim. Aí, eu e a Bel, a gente adora

cantar, a Cibele e a Bel tinham assistido a Stela, conheceram o

Lincoln, chamaram o Lincoln e aí começou esse processo dele

assistir um ensaio ou outro. A gente disse pra ele: “Lincoln,

isso aqui é música”. E aconteceu uma coisa bem louca, assim.

A gente tinha vontade de musicar o texto do Schiller. Por que?

Porque ele estava destacado, ele era alguma coisa que dizia

respeito à gente numa proporção de linguagem um pouco lá

colocado numa linha mítica. Então a gente estava aqui: “puta, o

grampo, tal tal tal” e de repente (cantando) “não peça à lei que

lhe peça a espada para acabar com a inimiga que odeia”. A

gente sentiu que de uma maneira bem toscona, era isso. Que o

Schiller merecia ser coroado com o grifo da música, com o fato

de que a gente sabe que a música, principalmente como o

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Lincoln faz, a música dele faz com que você vá prestando mais

atenção ao que está sendo dito, então ele vai meio

acompanhando o raciocínio, crescendo e tal. Então ele foi

compondo. Ele foi compondo duas vozes. A gente foi falando

pra ele, por exemplo: essa música a gente cantava em uníssono

no começo, eu e a Bel. Aí eu falei pra ele: “não, eu não posso

cantar isso. Me faz um contracanto, sei lá como chama isso,

uma outra voz que responda: mate-me. Mato”. Sabe, essas

coisas? Poder responder. Daí ele fez, aí criou duas vozes, aí

tinha uma história da Maria ser a heroína da peça do Schiller.

A gente, de alguma maneira manteve isso, porque ela

é...porque o Schiller dá isso pra ela, não tem o que fazer. E

então a gente falou “Lincoln, ela canta. Ela tem que cantar

umas músicas, tipo “errei sim”, pô, quem não errou e tal. Ou

então quando ela é libertada e tal. Elisabete é mais seca. Tinha

duas músicas da Elisabete que a gente cortou. Tinha essa

história desse excesso. Sabe quando ela virava e cantava? Eu

falei “não, não, não”. Pelo menos, como eu entendia, não tinha

como, sabe? E a gente meio que pra equilibrar esse processo de

teatro que é um cu, né? Pra equilibrar as duas tem que cantar,

tal. Eu falei “não precisa cantar. É a Maria que tem que

cantar.” A gente nem questionou muito o Lincoln. A gente

falou: “Lincoln, a gente tirou”. E muita música caiu fora nas

Rainhas. Ficaram realmente as musiconas que tinham a ver,

mas muita música caiu fora. Eu cantava pra dormir ali, o arco-

íris, tal tal tal, tinha uma musiquinha ali.

I – Eu tenho que traçar paralelos entre um espetáculo e outro, o

que eu consigo ver de possibilidades. Então eu vejo primeiro

essa coisa que você mesma falou, da loucura instaurada, só que

em lugares muito diferentes, porque num é realmente o espaço

da loucura, e no outro, essa loucura que, a princípio, está em

um lugar de ordem. Então tem essa diferença, mas, de qualquer

maneira, tem essa piração, essa loucura, essa coisa humana que

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parece que transcende um pouco os limites, enfim. E outro

paralelo é esse lugar da música. E não sei se você concorda

com isso e se consegue falar de outros que você vê, outros

paralelos aí.

G – Eu acho o jogo muito semelhante e a energia muito

diferente. O jogo muito semelhante e a energia que está sendo

jogada muito diferente, sabe? Eu acho que a música nas

Rainhas tem aqueles momentos que a gente canta e tem uns

momentos que a música fica entrando o tempo todo pra pontuar

mil coisas, criar mil contrapontos. Quando o Lincoln faz as

Rainhas é uma coisa. Quando o Manuzinho faz, é outra coisa.

O Manu chuta pra outro lado a peça. O Manu enfatiza a

dramaticidade da coisa, a peça termina muito mais densa. O

Lincoln faz um jazz pra outro lado, entendeu? Então tem isso

também. Então aí tem a Rainhas com o Lincoln e a Rainhas

com o Manu. Porque, por exemplo, Rainhas com o Manu é

muito mais lírico, muito mais lírico. E aí toca um pouco na

Stela, muito mais na Stela pra mim, porque na Stela, a música

do Lincoln tornou uma coisa delicada. Por mais que tenha

escatologia e por mais que ela grite e diga “eu tenho que

enfrentar a violência”, eu acho que o viés que ele pegou dela, o

que ele captou dela foi a beleza, o lirismo, assim quando fala:

“eu sou indigente, não tem ninguém por mim, não”, o fato de

ser piano, a maneira como ele toca vai criando um ambiente de

pura beleza e dignidade pra ela, sabe? A gente vai fazendo do

começo ao fim uma homenagem, do começo ao fim uma

apologia do pensamento dela. E no caso da Rainhas, não. É

tudo cortado, é tudo meio criticando, tem crítica. Então a gente

tá “eu sou a rainha da Inglaterra!” e o Lincoln tá (canta uma

melodia cheia de notas estacadas, ágeis e fortes). O Manu, não.

O Manu vai (canta notas longas e graves, dando a entender que

são tônicas de uma sucessão de acordes maiores, que dão

gravidade à situação) entendeu? Então o Lincoln critica mais

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essa briguinha de poder entre elas, essa... e o Manu faz essa

brigona ter um tom mais dramático e aí ele é todo cheio de

notas. Então quando a Bel canta “não ouves a trompa da pátria”

aí todo mundo chora. E o Lincoln, não. O Lincoln é

econômico. Ele vai só dando um pouco a trilha, como ele faz

na Stela, nos momentos mais “não sei o que é que tem aqui

dentro, não sei o que é que tem aqui dentro”, quando ela brinca

mais e tudo o mais com o raciocínio. Então eu acho que uma

diferença é essa. Porque na Stela, o lirismo, o tempo todo a

gente cuidando, parece que a música do Lincoln cuida das

palavras da Stela. E no caso das Rainhas a música do Lincoln

cuida no sentido de fazer elas serem bem entendidas, mas a

coisa vem com mais crítica, com mais... estamos contando uma

história. Nas Rainhas a gente está contando uma história e as

músicas estão concatenadas com os raciocínios, né? Então por

isso que são musiconas, porque são duas rainhas cantando, e

uma está assim e a outra está assim e tal tal tal, então estão

atreladas a raciocínios muito fortes. No caso da Stela não são

personagens tão definidas.

I – E não tem uma narrativa, né?

G – Também não tem uma narrativa e mesmo sendo uma

personagem super definida como é a Stela, o Lincoln descolou.

Descolou no sentido de não deu bola, não imaginou ela

cantando. Pegou a musicalidade da fala dela e foi trabalhar.

Então eu acho que são coisas bem diferentes nesse aspecto. O

que tem de igual é um tipo de sensibilidade que o Lincoln tem

e como sou eu também na parada eu acho que tem uma coisa

que vai e volta, mas que ele, principalmente, como diretor

musical tem, do tipo de composição dele, alguma coisa em

comum, um tipo de composição diferente, insólita, um tipo de

melodia diferente, interessante, insólita. Então tem muito a

marca do Lincoln. O tipo de musicalidade dele eu reconheço,

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então parece que tem o espírito dele ali, é uma semelhança

entre as duas coisas. O fato de ele gostar de um pouco de

desacerto, de uma coisa um pouco torta no cantar, então por

isso que ele não se importa que eu cante a Stela, porque ele

acha que tudo bem um pouco eu perder o tempo, eu perder o

ritmo ou esquecer, ou ter que dizer “Lincoln me ajuda no tom”.

O Lincoln gosta de trabalhar com essa precariedade de função.

Então a Stela tem isso e as Rainhas também tem isso. O fato de

serem atrizes e não cantoras, de não serem cantoras. Não é nem

de serem atrizes, mas de não serem cantoras. Então isso dá

também um tipo de coisa não tão certinho, parece que tem uma

tortice aí nos dois espetáculos. E acho que uma absoluta nessa

história da música como uma possibilidade de colocar o

raciocínio um tom acima para ser melhor visto, melhor

ponderado, melhor sentido. Sentido como as partes da gente.

I – Em uma entrevista eu estava lendo que você coloca a

música na Cia São Jorge como uma presença festiva, de

compartilhar com o público essa festa. Na Stela e nas Rainhas

você consegue dizer a mesma coisa, da música como uma

aglutinação, como elemento de aglutinação festiva? Ainda vê

como festa ou é um outro espaço, uma outra celebração?

G – Escuta, a onda com a São Jorge é uma coisa muito

específica, eu sinto. Porque a São Jorge tem mesmo essa

pegada. A gente trabalhou dentro de um albergue pra morador

de rua, a gente tinha mesmo que chamar as pessoas. A música

tinha mesmo uma função de tipo “não tem como você não vir

atrás dessa procissãozinha cantando essa musiquinha legal.

Venha”. Era realmente uma coisa de uma necessidade mais

relacionada a uma coisa de festa, mesmo. Tipo: “vem pra

festa”. Porque o teatro não conseguia entrar de uma outra

maneira ali, entende? Não conseguia entrar de uma maneira

“atenção, vamos fazer agora essa cena de gabinete”. Então,

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mesmo na rua, logo depois, a gente fez uma peça grande, mas

também teve peças anteriores que...a primeira peça da São

Jorge que eu dirigi era uma coisa que tinha uma guitarra

elétrica, aí depois entrou um violino, aí esse bando virou um

bando de extraterrestres. Já foi uma coisa muito louca. E eu

acho muito legal ver gente tocando e som sendo produzido

naquele momento. Então, desde o começo da São Jorge

começou assim, essas experiências radical chique, assim

totalmente louca. A menina tocava mal o violino, aí a gente

compunha hinos pras personagens cantarem, sempre uma onda

de composição. Aí ei fui dar aulas em Santo André, a mesma

coisa aconteceu, eu sempre conduzia um pouco pra isso tipo “a

gente podia compor uma música aqui nesse momento”. Aí a

moçada começou a compor pra caramba. A escola de Santo

André é super conhecida por a moçada gostar de compor

música. Todo espetáculo tem música ao vivo, texto musicado

em alguns momentos, pá pá pá, por uma questão de um gosto

que foi surgindo desde o começo lá da São Jorge. Então tem

alguma coisa de diferente por que a São Jorge é onde eu estou

há muito tempo, então parece um processão de treze anos. No

caso das Rainhas e da Stela são coisas mais pontuais. No caso

da São Jorge eu sinto um pouco que lá sou eu. É uma coisa

mais abrangente pra mim. Então eu acho que na São Jorge a

música... mesmo porque não tem... a gente é muito mais cara

de pau, e não tem um diretor. Então o que acontece é que a

gente vai colocando, vai chutando, vai... na São Jorge eu sinto

uma abertura de caminhos. Aí a gente faz uma banda, aí o

Lincoln dirigiu uma peça muito louca que ele tentou fazer

várias vozes, tinha duas flautas doces que tocavam três notas,

eu no trompete tocava mais duas. Aí ele conseguiu fazer um

lance com o trompete, duas flautas, um clarinete que o outro

cara também tocava duas notas, e ele conseguiu fazer um lance,

sabe? Então, na São Jorge tem esse negócio precário, muito

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precário o quanto cada um toca. Nessa última peça tem

literalmente uma música que é um “ tá tá tá tá” na bateria,

porque a Mariana sabe fazer isso na bateria e a Patigui entra

com um puta de um baixo e faz “ton ton ton ton ton”. Só.

Entendeu? Então a São Jorge é... a gente vai arranjando. Uma

coisa roots, entendeu? E Stela, não. É aquela onda do Lincoln,

é um piano, então é muito diferente. Como a música vai

chegando na São Jorge é uma coisa muito louca.

I – Mas você acha que ela oferece coisas diferentes pro

público?

G – O quê?

I – A música.

G – Aonde, na São Jorge?

I – É, em cada lugar desses. Porque na São Jorge você está

dizendo que a música convida....

G – Acho que oferece. Acho que oferece coisa diferente. Por

exemplo, na última peça tem o quê? Tem um teclado ruim,

aperta o botão, faz (imita som de bateria eletrônica). E fica uma

cena de arrumação com essa merda aí. Aí, de repente, vai lá,

aperta o botão do teclado e entra harmonia junto, fica horrível,

horrível, horrível. Então a música na São Jorge é feia, de vez

em quando. As pessoas dizem “meu deus, eu não acredito que

eles fizeram isso”. Aí acerta o negócio, aí para o teclado, aí tem

esse tipo de coisa, entra uma música muito repetitiva. Essa

música vai cansando o público, vai cansando o público. E eu

acho que no caso da Stela e das Rainhas é mais uma coisa de

beleza, porque é bonito ouvir eles tocando. Então tem beleza.

Na São Jorge quando a beleza aparece, aparece muito

específico, tem muito mais ironia, a música é muito mais

irônica. A não ser no espetáculo que o Lincoln fez a direção

musical que aí ele arranjou umas coisas medievais, ensinou a

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gente a tocar isso, aquilo, pá pá pá. Aprumou a gente. Mas de

um modo geral todo mundo é meio nerd, entendeu? Mas sei

lá... o Lincoln colocou o quê? O Lincoln colocou, não! A gente

colocou na primeira montagem. Tinha aquela “Inês saiu

dizendo que ia comprar pavio pro lampião”. Um sambão. A

gente já tinha colocado. Mas o Lincoln veio, colocou só o

surdo, um puta surdão e daí, num determinado momento,

entrava uma sanfona e tal. Ele cuidou de um lirismo que a

gente não tinha. Então a passagem do Lincoln pela São Jorge

trouxe essa história de um repertório. Por exemplo, ele que

ensinou a gente a tocar e cantar jongo. Então tem essa história

popular. Ele ensinou a gente a tocar no pandeiro coco, samba,

ele deu uma instrumentalizada. Ler um pouco de partitura,

entendeu? E ele traz uma história de beleza. E a gente aprendeu

isso com ele. Então a gente está lá no próximo projeto, e ele vai

entrar daqui a pouco. A gente está se preparando, tipo “pô,

quando o Lincoln chegar pode pegar isso aqui...”. Porque a

gente vai o quê? A gente vai com uma lata pra rua cantando,

entendeu? Aí ele “ah, podia ter isso aqui, isso aqui também,

pega esse agogô”. Ele vai compondo assim com a gente. Mas

ele não está sempre com a gente. A gente trabalhou

ultimamente com Luiz Gayotto que é muito diferente do

Lincoln. O Luiz Gayotto, a gente levou o teclado e ele disse

“adorei esse teclado!”. O Lincoln, eu acho que daria outras

soluções pra esse teclado. Mas ele também é cara de pau. Por

exemplo, nesse espetáculo que ele fez essa onda com a gente

assim mais medieval e que a gente cantou Inês e tal, ele

também botou um Roberto Carlos, Amada amante, tocando. A

gente insistiu, mas ele falou: “eu gosto, pode colocar, eu

gosto”. Então a São Jorge, não é que é uma história

completamente diferente, mas é diferente porque a música é

percebida pelo público, ás vezes, como uma provocação, ou

como uma distorção. E de vez em quando ela fica bonita. Então

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tem muitos efeitos. Principalmente agora. A última peça da São

Jorge é bem torta, é bem dissonante, entendeu?

I – E o Lincoln vai trabalhar nela?

G – Não, nessa que está pronta a gente já tá rodando com ela

há um ano e meio. Mas nesse projetão que está entrando agora,

sim. Vamos ver se ele vai curtir, porque a gente já está fazendo

alguma coisa. Mas eu sempre sinto como uma coisa só,

entendeu? Quando eu estava fazendo as Rainhas eu saia do

ensaio da São Jorge e ia pras Rainhas. Então eu estava

discutindo uma onda lá, essa questão vinha comigo e aí na

cena, às vezes, das Rainhas tem mais representação de

questões levantadas na São Jorge do que qualquer coisa ali

relacionada à Bel. Então eu sinto que tem uma continuidade,

como se pudesse dizer assim: “quais são as semelhanças e as

diferenças?” Eu diria: “tem mil semelhanças e mil diferenças,

mas o fato é que pertencem à mesma roda da fortuna ali,

entendeu? Uma pode ser um claro, a outra um escuro, e tal.

Então tem uns toques. Por exemplo, quando eu canto no final

“a vontade de povo muda nas viradas do acaso”, isso poderia

estar num espetáculo da São Jorge. Mas é muito diferente.

Principalmente porque nas duas peças, nas Stela e nas Rainhas

tem esses pianistas tocando. Então é totalmente outra coisa,

bota a coisa num patamar musical da excelência deles,

entendeu? Eu estou falando deles porque tem o Manu também,

que é um puta pianista. Então tem um diferencial porque eles

estão em cena. Tem muitos momentos que eu acho que olharia

pra eles, entendeu? Porque até o teatro dá um pouco o lugar pra

eles tocarem mesmo, e tal. A Stela eu acho que tem muito isso,

o quanto é ele. O piano dele eu acho incrível.

I – Mas na São Jorge você também atua, Georgette?

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G – Atuo. Eu fiz As bastianas, uma peça só, e agora eu estou

bastante ensaiando a próxima.

I – Mas aí você dirige também?

G – As três primeiras peças eu dirigi. Agora eu dirigi essa

última, fiz uma anterior como atriz, fiz uma direção musical na

São Jorge junto com outras pessoas. Então tem um

revezamento, é uma familinha ali, que está há muito tempo, já.

E aí saíram as pessoas e tal, mas fica sempre um núcleo ali.

I – Mas quando você atua não vai outra pessoa dirigir?

G – Vai. Vai outra pessoa dirigir. A gente está bem relax disso,

sabe? A gente está bem confiando um no outro, num momento

bem bom, agora. Então tem. Tem um revezamento bom. Por

exemplo, na peça anterior tinha só três pessoas em cena. As

outras estavam fazendo assistência pra mim, a outra estava

cuidando de todo o visual da peça tipo direção de arte, cenário,

figurino, tudo. E é isso. Então ficaram três de fora e três de

dentro, entendeu? Então é por isso que eu estou falando, sabe?

Eu entendi um pouco o requinte que é isso, assim. Isso poder

acontecer assim de uma maneira totalmente natural. Natural

assim: batalhada. Mas de um jeito natural, sem imposição.

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Entrevista com Lincoln Antonio, em setembro de 2010.

Belém do Pará.

Ive – Você começou a compor as canções de Stela do

Patrocínio para o lançamento do livro?

Lincoln – Pro lançamento do livro eu fiz a primeira música,

que é a que tem no [CD] Quintal, que o Ney gravou. E mostrei

pra ele.

I – É Stela do Patrocínio?

L – É, Eu sou Stela do Patrocínio. E aí, quando eles foram

lançar [o livro] em São Paulo, já tinha mais músicas prontas, e

a ideia estava ali, já tinha surgido. O Ney sugeriu de tocar essas

músicas no lançamento. Foi isso. E eu nem toquei, eu gravei no

piano, fiz um playback pro Ney cantar, porque eu tinha uma

outra história pra fazer. Fui tocar num outro lançamento de

livro, que já estava agendado. Eu emprestei o som, fiz toda a

produção lá, mas não toquei. Foi isso. Isso foi o quê? Dois mil

e um, dois mil e dois, não lembro.

I – Você me mostrou que vocês pensaram numa harmonia,

você e o Ney, que começaram esse projeto da Stela em cima

dessa ideia dos textos, né?

L – É, começou assim, eu fiz essa música, depois fiz aquela da

cabeça, Lugar de cabeça é na cabeça, aí fiz a da velha... a da

velha eu fiz e achei estranho. Eu fiz essas. Até que o Ney

sugeriu fazer a música da entrevista, a entrevista como ela

editou no livro, no final. Aí, isso, eu achei interessante. Fiquei

umas três semanas fazendo isso. E fiz, meio que numa tacada

só, também. E, ali, eu acho que estão os temas da peça, naquela

entrevista. Depois, fui fazendo outras músicas, mas, de certa

maneira, procurando uma parte consciente. Uma parte, não.

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Mas desenvolver os temas que já estavam lançados nas

primeiras canções e na entrevista. Ou seja, a entrevista tem... é

mais fácil de mostrar isso, você mudar de assunto, as

modulações bruscas e mudar de tom, mudar de assunto. As

primeiras músicas da Stela, como estão hoje, tem muito isso

de, às vezes, polarizar em dois acordes. São dois acordes que

não têm muita essa relação de dominante e tônica,

subdominante, é uma relação mais...a primeira música, a

Quadrilha, o tom da Georgette é D e F. Então vamos dizer, ela

começa em D, a melodia canta só D e A (Lincoln cantarola

mostrando melodicamente a como funcionam a cadência dos

dois acordes onde se situa quase a primeira parte da canção e

a modulação que substitui os acordes antes tocados por A e F).

E é só isso a música, né? Eu estava procurando muito essa

coisa mínima, de ter poucos elementos, mas, também, não ter

uns elementos óbvios. Então quando você põe o D e põe o F,

você está em D, está em F, mas não tem uma modulação de um

para o outro, e você nem desenvolve em cada tom, é só ali, ali,

ali, num outro lugar, num outro lugar, voltou para ali, foi pro

outro lugar, e é isso. Essa, acho que é a mais radical, nesse

sentido de ter os dois acordes e eles nem se relacionarem muito

entre si, como se fossem dois estados diferentes. Na entrevista

tem um tanto isso, de às vezes você estar lá num tom...o

começo da entrevista é isso, Bb, tararam, e aí, de repente, eu

ponho o D. Fui pro D e aí volto pro Bb direto, sem preparação,

sem nada. Então, eu procurei usar isso, mudar de opinião,

mudar de ideia, sem avisar, sem preparar, nada. Muda de ideia

e vai pro outro lugar. E, aí, faz aquela coisa. Aquela coisa

também não é uma coisa que se desenvolve, é completa, ela é

breve. Tem um tema que volta várias vezes na entrevista, que é

o tema do “eu tava na família, aprendendo a ler e a escrever”,

fica só nisso, nunca vai pra frente, né? Então isso também é

legal. É uma base pra você dizer várias coisas. Você pode dizer

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muitas coisas, só com isso. Eu tenho agora assistido uns

musicais, ouvindo óperas, tentando abrir a minha cabeça

também pra outras coisas. Pra possibilidade dramática da

música nesse sentido da fala. Não da canção. Canção, legal.

Canção, acho que domino até um pouco mais. Mas o diálogo, a

cena, aquele coloquial que é cantado, que é mais estranho que a

canção. A canção, está tudo mundo acostumado, mas um

diálogo... A entrevista traz isso mais, né? O trecho da

entrevista. Então, eu estava um pouco atrás disso, de achar

células mínimas, que pudessem apoiar um discurso, que

voltaria, que sempre voltaria. Então, a entrevista é um

confronto desses vários temas. Tem, sei lá, cinco, seis, sete

temas ao todo, mas sempre volta. Eles vão sendo apresentados

até uma parte, depois eles voltam.

I – O que você chama de música mínima tem relação com o

espaço onde habitava Stela? Você tinha a gravação das falas da

Stela quando compôs?

L – Tinha. Mas, no começo, a maior parte do trabalho foi

baseado no livro. A gravação foi mais tardia, mas no final eu

fui ouvir a gravação. Ouvi e selecionei vários trechos e vários

trechos eu transcrevi da gravação e, de fato, fiz várias coisas

com as transcrições. Há pouco tempo eu estava olhando esse

material que eu transcrevi e boa parte eu musiquei mesmo, mas

mais no final do processo. E depois, depois inda de o Ney

morrer, quando a Georgette entrou na história, eu fiz outras

músicas, eu fiz pra Georgette, também, a partir dessas

transcrições que eu tinha feito da gravação.

I – A fala da Stela tem também essa recorrência, né? Ela volta.

É muito bacana porque ali na gravação você consegue entender

que ela volta. Ela reafirma.

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L – Não é um improviso dela. Ela constrói um discurso e

repete o mesmo texto, com uma outra intenção. É um outro dia,

ela repete de outro jeito, mas é o mesmo texto. Fora os

assuntos, as frases, a ideia do cientista, os médicos, a família.

I – Eu vejo uma relação estreita entre a composição que você

faz com as gravações das falas de Stela. Você pensou nisso

quando compôs?

L – Essa relação, eu não lembro de ter feito. Eu sei que, muita

coisa que eu não tenho pra te dizer, você que vai descobrir,

sabe? Esse tipo de coisa, por exemplo.

I – E a fala? Eu estava conversando um pouco com a Georgette

sobre a personagem. Na Rainhas, por exemplo, a auto

referencialidade é muito forte. Tem a Elisabeth, tem a

Georgette. Na Stela, a Stela não é a personagem Stela. A

Georgette não leva a Stela. Ela não está representando a Stela.

Tem uma auto referencialidade também. Mas é muito sutil. E

tem essa fala da Stela, com essa palavra da Stela. Eu fico

pensando, o que foi compor pro Ney, que era um cantor, que ia

cantar, e depois entregar e compor pra Georgette, que é uma

atriz que, por mais que cante e que se dê muito bem nesse

espaço, é uma atriz.

L – Então, isso eu também tenho pensado. Quando eu compus

foi estreitamente ligado ao Ney. Eu nem sei dizer em que

medida. A gente tinha feito o [show de lançamento do CD]

Quintal, sempre ensaiava, sempre cantava, era uma coisa muito

forte. Ele ia lá em casa, a gente cantava. Ele enchia o saco e ia

embora. Uma coisa muito livre, assim. Eu fazia uma música

nova, mostrava pra ele. Tinha uma coisa muito próxima. Eu fui

fazendo tudo pra ele, né? Eu não sei dizer o quanto que eu

calculei pra voz dele, ou não. Mas ele estava do meu lado, eu

tinha a oportunidade de fazer e mostrar pra ele, e ele achar

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muito legal, ou mais ou menos. Ele reagia, também, né? Em

geral ele aceitava muito, assim. Mas tinha essa medida. Eu

sabia que estava fazendo pra ele, estava com ele na minha

cabeça, ele estava sempre cantando o que era criado, a

entrevista, tudo. A gente foi construindo realmente juntos o

espetáculo. E, com a Georgette, a coisa foi pra um lado

dramático, teatral, que talvez jamais fosse com o Ney. Agora,

com o Ney era muito interessante, um homem fazendo a Stela.

Isso, por si só, já valia a cena. Mesmo que ele não fizesse

nenhuma micagem, como faz a Georgette. Porque, também, ele

cantava pra caralho. Então, abria a voz e aquilo ia longe. A

gente fez dois ou três dias na Funarte, foi uma semana antes de

ele morrer, e a gente gravou. Um dia gravou inteiro, o outro a

gente gravou uma parte, e que é basicamente esse espetáculo

que a gente faz com a Georgette. Era esse roteiro. Depois, eu

fiz mais duas ou três músicas, mudou uma ou outra coisa, mas

era exatamente essa forma. Quando a gente acabou a

temporada a gente viu que era isso: “agora vamos trabalhar um

pouco em cima desse formato”. A gente conquistou um

negócio. Foi uma amiga nossa assistir, a Isla Jairo, que é uma

cantora e compositora lá de São Paulo, que é médica

acupunturista, que conheceu a Stela, que fez estágio lá no

[hospital] Juliano Moreira e conheceu a Stela. Ela foi assistir,

um desses dias, e ela falava: “nossa! Eu vi a Stela. Parece que

ela estava ali, materializada de algum jeito”. Porque, claro, né?

Todo o discurso dela ali, forte, forte, forte, mesmo que a gente

tivesse errado, acho que ela ainda estaria ali. Então, tinha isso.

E ele também trazia esse lado negro da Stela, mas forte que a

Georgette. Isso era muito legal. Ele tinha as trancinhas no

cabelo. E o Ney era um grande cantor. Então, não precisava

muita coisa além de cantar pra coisa acontecer. A Georgette

ganhou por outro lado. Pelo espaço todo que ela faz questão

de... e além do espaço do palco, quando ela sai do palco, ela faz

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isso várias vezes, vai embora, e você não sabe quando ela vai

voltar, como vai voltar.

I – E antes de ouvir as gravações das falas da Stela, por onde

você foi escolhendo sua composição? E porque você e o Ney

chamaram a Georgette pra dirigir? Que desejo vocês tinham?

L - Bom, o discurso da Stela é inspirador, né? E, também,

aquilo sugeria música, né? O jeito, pra mim, sugeriu fazer

música. Porque, às vezes, você gosta de um texto, isso é muito

comum, adora o negócio e tal...tem coisa que eu estou há vinte

anos ali tentando fazer, e não sai. E, talvez, nunca saia mesmo.

Aquilo é legal, mas sei lá... aí, não sei nem te dizer porque que

não sai. Mas, o dela, primeiro tinha um discurso pouco comum,

era inusitado o que ela diz, era interessante, diferente. Por outro

lado, também sugeria música. Eu ia tentando, ia saindo. Estava

dando certo. Eu acho que por isso. Ia dando certo. Demorou?

Demorou três anos pra fazer tudo. Mas ia dando certo. Pegava

o negócio, rolava. Pegava outro, mais ou menos. Pegava outro,

rolava. Quer dizer, virava música. Tinha uma potencialidade

musical forte. Não entendo como ninguém mais fez música

com isso. Eu não conheço, pelo menos, quem tenha musicado.

Mas é muito fácil pegar um trecho ali, porque tem essa coisa

muito pop, né? “Eu não sei fazer justiça”, uma frase dessa,

assim. É isso aí mesmo, né? Pronto. Ou então, a Cabeça, é isso

também. O texto é muito sugestivo pra fazer alguma coisa. De

você falar, falar sobre um ritmo, mesmo uma coisa hip hop já

daria certo, enfim. Pra mim, bateu, no fundo, nisso. “Isso aqui

dá música”. E, de fato, foi dando. Foi tendo um resultado. Tem

coisa que não tem. Eu acho que dá, e não dá. E demora muito a

dar, e, às vezes, nunca dá. Então, também tem um ponto aí, que

é difícil explicar. O que dá ou não. Também depende muito de

cada um. E aí, à medida que a gente foi vendo que era um

espetáculo de teatro, a gente não queria fazer um show, a gente

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queria fazer um espetáculo acústico, sem microfones. Ia ser,

então, teatro. Agente estava atrás de um outro formato que não

era o show, que não era o roteiro de canções. Embora a Stela,

em grande parte, seja um roteiro de canções, mas foi se

fazendo de um outro jeito. Como se você tivesse pensado num

show, e vai compondo canção por canção pra esse show, e não

junta várias canções pra fazer um show. Já é uma coisa

diferente. E aí tinha necessidade de ter uma direção. De ter

alguém de fora, né? Essa era a direção. Eu não lembro

exatamente... a ideia foi do Ney, de chamar a Georgette. Isso

eu lembro bem. Agora, em que momento a gente chamou ela,

exatamente, porque...mas ela entrou, assim... deixa eu pensar...

a gente fez... ela entrou tipo, um ano antes de o Ney morrer,

por aí. Ensaios assim: um ensaio aqui, outro daqui há um mês.

Eu lembro que a gente fez, no fim de um ano, um espetáculo

no Casilda Becker, ali na Lapa, que foi o primeiro que já tinha

a orientação dela, já experimentou um roteiro, e foi bem legal

esse espetáculo. Foi, tipo, depois de um ano. Aí, depois de seis

meses, a gente teve esse outro formato na Funarte, e logo

depois, o Ney morreu. Então, nesse período de seis messes é

que teve mesmo a atuação da Georgette em construir uma

história. Agora, eu não me lembro bem a cronologia.

I – Mas você pode dizer o que era a Entrevista antes e depois

da direção da Georgette, ainda antes dela entrar na cena?

L – Eu acho que a Georgette entrou muito delicadamente na

coisa, ela entendeu que já tinha toda uma história pronta, ali. O

roteiro fui em que fiz, das canções. Mais ou menos, esse

roteiro, eu tracei ele com a ajuda deles, do Ney e da Georgette

também. Ela orientava ele em algumas coisas, mas ela ficou

mas dando um feedback do que, de fato, dirigindo, assim: “faça

isso, faça aquilo”. Não teve esse tipo de coisa, praticamente.

Orientou alguma luz... Aí, quando ela assumiu, veio a Júlia. A

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Júlia chegou a assistir essa apresentação do Ney. A iluminação,

eu acho, desenhou mais o espetáculo, até no sentido da direção.

O que fez esse acabamento maior aí, foi a luz, com a Júlia. Aí a

gente já era mais esse trio aí, nós três. E a Juliana também. Nós

quatro. Mas, na verdade, eu acho que o papel da Georgette foi

pequeno, de diretora atuante. Ela viu que já tinha muita coisa

pronta e foi mais confiando na gente fazer, e estava ali na

retaguarda. Foi bem isso, assim.

I – Eu perguntei a mesma coisa pra Georgette e ela falou

exatamente o mesmo. Que pensou mais em manter o que vocês

já haviam construído.

L – Porque também tinha, desde o princípio, a ideia de ser um

espetáculo livre, improvisado. Então não caberia muito a coisa

de... a gente queria achar o ambiente, o jeito de fazer um

negócio livre. O roteiro das canções já bastava pra gente. Aí,

daí pra frente, vamos pirar, vamos embora, cada espetáculo vai

ser um. Com a Georgette isso ampliou mesmo, né? No espaço.

Dramaturgicamente isso realmente ganhou um sentido. Com o

Ney a gente não pode experimentar, na verdade. Chegou num

momento que: “ah, é daqui pra frente”, e aí não teve o pra

frente. A Georgette que realizou isso.

I – A gente vai no teatro pra ver Stela do Patrocínio e ouvir o

texto de uma esquizofrênica. Quando a gente chega lá, a gente

perde essa referência, a gente não vê uma esquizofrênica dentro

de um hospital psiquiátrico. A gente não vê um hospital

psiquiátrico na cena, nem uma esquizofrênica. A gente não vê

isso quando a gente chega no teatro. A gente se depara não

com uma esquizofrenia, mas com uma fala que está podendo

ser dita nesse espaço. E está podendo ser dita porque se

confabulou, de alguma maneira, que... o que eu quero dizer é

que não haveria outro espaço, que não esse espaço teatral pra

dar tanta beleza, pra dar tanto lirismo e tanta leveza, pra uma

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fala que, no fim das contas, se você for ler pensando no estado

da Stela realmente, trinta anos enfiada num hospital

psiquiátrico, é pesado. Então, o que eu penso é que, o que nos

remete ao estado de loucura é exatamente o grau de poesia e de

beleza que vocês deram à essa fala, que não é uma fala

cotidiana.

L – Mas eu acho que é isso aí. Eu acho que a música... essa fala

da Stela está ali, diante da parede. Mas se você põe nesse nível

da música e da dança, porque o espetáculo é muito dançado

com a Georgette, ela vai pra outros lados, ela ganha uma outra

dimensão. Eu não sei o quanto as pessoas sacam isso, mas o

início do nosso espetáculo situa, né? É importante situar.

Mesmo que tudo que a gente faça depois não remeta a isso. E

eu também acho sempre importante que seja um lugar fechado,

que lembre que estamos aqui, fechados.

I – E o que é compor pra teatro? Qual a diferença de compor

pra teatro e compor sem compromisso com a cena?

L – No teatro, cada projeto é uma coisa, né? É uma aventura.

Não sei, acho que eu nunca fiz duas coisas parecidas. Até,

porque, eu não faço sempre, eu não sou um compositor que

está sempre fazendo pra teatro, está sempre trabalhando com

ele. Na verdade, eu frequentemente trabalho com teatro, mas

cada projeto é um projeto mesmo, cada grupo é um grupo, tem

uma possibilidade musical. Pra mim, a grande coisa é ter a

música ao vivo, os atores cantarem, tocarem, o que seja. Tem

mais esse barato. Já fiz trilhas também, que às vezes você

consegue... eu fiz um último trabalho com a Cia. Livre que tem

uma parte acústica, com piano, cantada, e tem uma parte toda

eletrônica. Tem uma discotecagem mesmo, que a mesma

pessoa que toca piano faz isso. Tem esses dois mundos. Mas

esse mundo eletrônico eu chamei outra pessoa pra fazer,

porque pra mim... eu nem teria paciência de manipular sons,

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esse tipo de coisa, e tal. Mas a peça exigiu, quer dizer, essa até

foi uma ideia minha. Tinha uma situação lá que pedia dois

mundos diferentes, mas esse outro mundo, que não acústico, eu

precisava chamar alguém pra completar o trabalho. Então, cada

peça é uma aventura. A Stela é, diferentemente, um trabalho

que pretende ser radical no sentido da música. Então, eu estou

querendo fazer outra coisa assim. Realmente cênica, teatro,

mas realmente música. Mas aí, também, como se livrar um

pouco dos chavões de musical, ou de ópera, desse lugar, assim,

faz um espetáculo com várias canções, por exemplo, como um

musical. Como fazer isso de uma maneira mais original. Ou

então, como fazer um espetáculo todo cantado? É um negócio

bem complicado, porque não é qualquer coisa que se presta a

isso, ou não é qualquer tema, ou texto, que você consegue botar

com essa cara, né? Como eu falei da Maria Stuart, você

poderia fazer uma ópera, mas aí o cara tem que... é um

trabalhão! É um trabalho de anos, talvez. Porque, senão, você

vai usar os recursos que você tem na mão, e aquela coisa vai

ficar mais ou menos, vai ficar legal, mas não chega a ser muito

especial. Aí, também, não vale a pena fazer assim. Então, o

trabalho com teatro, eu acho que sempre exige muito, e eu acho

que um trabalho realmente original, radical, com teatro, exige

muito tempo. Exige também um acerto da coisa, essa coisa,

esse tema, ou esse texto, não sei. O ideal seria sempre você

produzir do zero tudo, né? Não vou pegar um texto, nem

sequer uma história eu vou pegar. Isso também que eu tenho

conversado com a Georgette. Mesmo com o Harbor Homo que

ela quer fazer, eu tenho falado: “olha, eu vou fazer umas

coisas, mas eu gostaria que você pegasse, cantasse, me

devolvesse, pra que a gente fosse batendo bola. Não quero ficar

aqui compondo pra você cantar”. Porque não vai dar certo isso.

Porque eu tenho uma certa dificuldade de entrar nesse tema do

Harbor Homo, por exemplo. Eu acho bonito, e tal, mas no fim

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das coisas não é uma coisa que me pega mesmo. O que pega é

a vontade de a Georgette fazer. Isso é mais importante do que o

texto, pra mim. Eu gosto muito dela, tenho uma confiança nela,

aí eu fico a fim de me lançar nessa ideia. Mas aí a gente precisa

realmente fazer junto. Que foi a experiência que eu tive com o

Ney. A gente estava ali juntos. Então eu acho que um trabalho

tem que ter isso. Sobretudo com ela, que é a intérprete

principal. Depende muito disso, né? Da equipe estar ali

produzindo junto. Eu sempre insisto nisso. “Eu vou dar pra

vocês mas não está pronto. Eu quero que vocês peguem e

mexam, e me devolvam e digam o que não está legal”. Eu

quero a recusa também. Mas isso não acontece, é muito raro.

Não aconteceu nas Rainhas, não aconteceu na Cia. Livre. Não

houve tempo pra isso, porque você precisa de um negócio

alargado. Voltando na Stela, foram três anos fazendo, não

foram três meses como as Rainhas. Três meses não dá pra fazer

isso tudo.

I – Você diz que a Stela é uma ópera mínima.

L – Ópera, porque é tudo cantado, porque está tudo ali na

música. Hoje em dia é um pouquinho menos, a Stela, porque a

Georgette colocou vários textos. Mas no começo eu era

radicalmente contra qualquer texto. Eu queria tudo cantando,

porque o barato é esse. Mas, tudo bem, licença poética aí, pra

ela falar umas coisas.

I – Uma coisa que eu ainda não sei, que eu não conheço, é

sobre a sua formação, sobre o seu caminho.

L – Bom, a minha ligação com teatro é desde sempre. Eu diria

até que antes de fazer um show, eu fiz uma peça. Desde os

quinze anos. Em Santos, teve um curso de teatro no Sesc, que

eram vários meses, que eu participei quando tinha quinze anos,

e esse curso resultou em duas peças infantis, uma peça adulta, e

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um espetáculo de dança, e aí eu fiz os arranjos pras peças

infantis, gravei, e tocava na peça adulta, que era O noviço, do

Marins Pena. Tocava... fazia uma espécie de música incidental

mesmo, fazia alguns comentários. Então, a minha ligação com

teatro é desde sempre. Sempre fiz coisas. Às vezes mais, às

vezes menos. Nos últimos anos, com frequência, né? Tenho

feito mais agora, até. Eu fiz vários trabalhos no Rio com

musicais. Tem um pessoal agora que faz tudo que é musical no

Rio, que é o Cláudio Botelho e o Charles Muller. Tudo que é

musical que fazem no Rio são eles que fazem. Eu trabalhei

com eles desde o início. A gente fez um espetáculo só de

George Gershwin, com direção do Marco Nanini. Depois a

gente fez um outro só de Irving Berlin, também com direção do

Marco Nanini. Eu fiz os arranjos, toquei em cena em um, no

outro eu só escrevi. Depois a gente fez um espetáculo só com

canções do Chico Buarque, dirigido pela Bibi Ferreira. Eu tive

essas experiências no teatro musical mais clássico, vamos dizer

assim, com eles. Se bem que, nessa época, tinha um tanto de

invenção. Hoje em dia está mais assim block buster mesmo.

Fora isso, em São Paulo, fiz algumas coisinhas aqui e ali,

trabalhei com As graças, um pouco. Acho que as coisas mais

importantes são as de agora mesmo, depois da Stela, com a São

Jorge, com a Cia. Livre com a Cibele, a Rainhas e a Raptada

pelo raio. Então essa é a minha história com o teatro. Aí, fora

isso eu fiz composição e regência na Unesp. Eu gosto muito de

música, né? Então eu gosto de pegar uma partitura e ler, isso é

um a hábito que eu tenho, de ficar tocando, de procurar coisas.

Eu posso dizer que, em grande parte, eu sempre procurei

coisas, nunca fiquei muito numa área ou noutra. Isso também

me dificulta um pouco. Eu sempre estou tentando fazer uma

síntese disso tudo, né? Eu acho cada vez mais difícil. Eu tenho

pensando muito nisso: “pô, como é que eu vou juntar o coco

com a ópera? É possível? Ou não é por aí?”

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I – Durante o meu mestrado, eu perguntei pro Ilo o que um

músico precisava para ser um músico do Ventoforte.

“Disponibilidade”, ele respondeu. “O músico precisa estar

disponível”. Isso eu vejo muito no seu trabalho. Eu conhecia

você da Barca, e antes de assistir você na Stela, eu assisti você

fazendo Frank Wedekind, as tragicomédias.

L – O espírito da terra.

I – E eu achei muito maluco aquilo. Você entrava em cena

junto com a Débora Duboc, e tinha um personagem, com

cartola, fraque. Uma coisa que não tinha nada a ver com o

Lincoln da Barca. Você tem essa disponibilidade. Então, tem

esse Lincoln que compõe, mas que está na cena, também,

muito disponível. Eu acho que isso no teatro é muito raro. Um

músico que compreenda esse espaço teatral, e que tenha essa

disponibilidade pra cena.

L – É. E, antes de estar disponível na cena, pros ensaios, né?

Sobretudo. Porque aí que está a coisa. Eu tenho isso mesmo, de

poder acompanhar ao máximo, de te pagarem bem, pra você

acompanhar ao máximo. O ideal é estar todo dia lá, mesmo.

Porque isso faz a diferença mesmo, de descobrir as coisas. O

Rainhas eu acompanhei muito, mas foi um processo curto,

mais direcionado. Eu me considero um músico um pouco

atípico, nesse sentido. Não é o meu projeto, essa coisa da

música, sabe? O ambiente da música, as questões dos músicos,

ou da música. Não. Minha questão é mais ampla. É teatro

também, sei lá. Minha questão é outra, não é uma questão

setorial da música. Ao mesmo tempo, eu não deixo de ser

músico, de me considerar músico e tudo mais, dizer: “eu sou

um homem do teatro, mas eu sou músico, gosto de tocar

piano”. Ontem eu tive muito essa sensação, que eu gosto

mesmo é de tocar piano. Eu gosto de tocar piano nessa

situação, por exemplo, ou em várias outras, ou mesmo em

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show, só. Dançar jongo e tocar pandeiro de coco eu faço, gosto

de fazer e vou fazer sempre, mas faz sentido mesmo quando eu

chego no piano. Parece que ali a coisa... então eu tenho tido

essa sensação, de que eu dei uma puta volta na Barca. No

começo da Barca foi um pouco a negação de tudo isso, né? Eu

parei de compor porque precisava aprender essas outras coisas.

Não tinha espaço pra inventar nada, eu queria aprender isso, e

tal. Foi um grande percurso, pra hoje em dia voltar a ouvir Tom

Jobim com prazer, por exemplo, sabe? Que é um cara que

realmente eu acho fenomenal, assim. Eu estou precisando,

agora, fazer uma nova síntese disso tudo, conseguir encaixar

isso tudo pra ir adiante, nessa perspectiva. Então, resumindo,

eu me sinto bem músico, embora não tão músico quanto os

músicos são.

I – Eu me lembro que, quando eu estava na graduação em

música, em professor me disse que, uma coisa é ser flautista, e

outra coisa é tocar flauta no teatro. O que eu percebo é que pro

pessoal da música eu sou do teatro, mas pro pessoal do teatro,

eu sou da música. A diferença é que, pro pessoal da música não

interessa eu ser do teatro, mas pro pessoal do teatro interessa eu

ser da música. Eu não sei se você sente isso. Mas eu sinto que o

pessoal do teatro me recebe como uma musicista que vai

minimamente olhar, dar uma olhada pra música. Agora, o

pessoal da música me recebe como uma coisa um pouco

menor, por eu ser do teatro.

L – É isso mesmo. É exatamente isso. Eu sempre falo isso. O

ambiente teatral é muito mais estimulante. Muito mais. Eles

querem música, eles te ouvem. Sobretudo agora, ultimamente,

com a Cibele. A Cibele é muito musical. Gosta de música, quer

música. Os atores com que a gente tem trabalhado também, são

disponíveis, querem cantar, gostam de cantar. Você não tem

isso na música, né? Os músicos querem fazer o que eles já

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sabem fazer, o que eles já fazem. No geral, é isso. Não tem

processo. Não tem processo um músico. É raro. Você tem: qual

é o repertório, cadê o tom, qual é a partitura, qual é o acorde,

qual é o ritmo. Ah, então tá. E pronto. Dois ensaios, resolveu.

A gente gosta de complicar um pouco mais. Como diz a

Georgette, a gente gosta de complicar um pouco mais. E no

teatro é isso mesmo. Exatamente isso. Agora, achar o espaço

da música no teatro também não é simples. Porque, mesmo que

todo mundo queira música, e você queira também, nem sempre

você consegue colocar. Então, pro Rainhas eu tenho um pouco

de frustação de não de ido um pouco mais, porque as

circunstâncias não permitiram. Talvez a gente pudesse ter ido,

se fosse diferente. Mesmo com o Raptada pelo raio também.

Embora o Raptada pelo raio seja uma peça cheia de sons e

músicas, da Cia. Livre. É uma peça cheia de sons, ela é repleta.

I – A Georgette falou uma coisa interessante do seu trabalho.

Ela falou: o Lincoln gosta da precariedade, de pegar o pessoal

que não sabe fazer nada, e com isso montar um material. E isso

é dificílimo.

L – É, eu tenho um pouco esse pensamento que, até eu estou

tentando mudar um pouco de... “pô, vamos trabalhar com o que

tem, vamos facilitar”. A Stela, imagina, eu adoro a Stela

porque é isso. Não tem cenário, tem só luz e piano, né? Eu

acho o máximo isso. Mas eu também acho estimulante, um

desafio, procurar isso, procurar fazer com o mínimo. É a minha

formação João Gilberto, sabe? Sou muito João Gilberto nesse

sentido de o mínimo é o máximo, de procurar isso. O meu

pensamento nunca é de agregar coisas, juntar coisas; é sempre

de tirar e procurar o essencial, e esse essencial ter força. Agora,

tem uma medida disso tudo, né? Às vezes, não é só de um

violão que você precisa, precisa de um violão, de uma flauta e

de uma bateria, sei lá. Também não vou ser cabeça dura, né?

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Um piano... pô, um piano pra mim sempre resolve o problema,

porque, enfim, é o que eu faço melhor, é tocar piano. Então se

tem um piano, legal, está resolvido. Mas, também, está

resolvido pode ser um problema, porque eu vou no que eu já

sei, né? E o teatro te pede outras coisas, às vezes. Então eu

procuro estar atento a isso. Essa história agora com a

Georgette, começando o Harbor Homo, eu estou pensando em

uma música que ela possa tocar até, eventualmente. Estou

pensando nessas coisas. Jamais estou pensando em botar um

piano lá, jamais estou pensando em fazer um negócio

complicado, que eu não sei se não tiver um pianista como é que

vai ser feito. É um pensamento bem inicial, porque a gente não

sabe o que que vai dar. Ontem a gente conversou um pouco,

pode ser que tenha piano, pode ser que tenha mais gente, pode

ser que tenha várias coisas. Aí já vai pra outro rumo. Eu gosto

disso também, de procurar um... de estar só na voz, estar só no

canto. Imagina um musical que só tem voz. As pessoas

contando. É bem difícil isso. Pode ser um trabalho a muito

longo prazo. Pô, é bem legal imaginar essa possibilidade, você

não precisa de nenhum instrumento. Você bate aqui, você tem

o mínimo ou, no máximo, os atores tocam. Também acho isso

muito legal, quando está na mão do ator tudo, né? Não tem

nenhum músico sequer. Ou, se tem um músico, o músico é ator

também, muito mais do que eu tenho sido, porque eu não sou.

Eu sou músico. Posso até ter um comportamento cênico, mas

não tenho a atitude do ator, não chego a ter, nunca tive, mesmo

no Espírito da terra.

I - E que contribuição um músico pode trazer pro teatro, o que

você acha? O que você, enquanto músico, pensa de sua

contribuição no teatro?

L – Pensando no trabalho que eu faço com as companhias a

longo prazo, eu sempre procuro estimular muito o ator a ter

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uma história pessoal com a música. Por exemplo, tocar um

instrumento é um negócio todo ator devia fazer. Pandeiro. Mas

tocar mesmo. Tocar bem um pandeiro, tocar bem um clarinete.

Isso tudo é uma ferramenta, e é uma possibilidade de ter uma

disciplina de estudo, um conhecimento. É uma coisa que é

legal pro ator. Tocar bem um instrumento, ter essa relação com

a música. Além de cantar. No geral os atores cantam bem. Isso

não é um problema, cantar, né? Mas eles também querem

tocar, mas, às vezes, não têm tempo pra tocar. Então eu tenho

contribuído nesse sentido, de a música estar com eles de uma

maneira mais permanente, mais cotidiana. Não só em um

processo de trabalho, ou não só quando eles estão fazendo aula,

mas ter a música mesmo ali, abrir o ouvido, ouvir mais coisas,

né? Ter uma possiblidade ampla. Eu acho que música e teatro,

essa dobradinha aí é imemorial, né? Está sempre aí. Por outro

lado, as possibilidades são muito amplas. Não é só a tradição,

né? Não é só a tradição da ópera, do musical ou de qualquer

outra coisa, não. Eu acho que muita coisa ainda pode ser feita.

Eu acho que é um campo de experimentação, mesmo. E de

criação. Eu fico mais estimulado aí do que na canção

simplesmente. Na canção de shows, nesse ambiente. É mais

difícil hoje em dia eu compor uma canção. Eu sempre

pergunto: eu vou fazer isso pra que mesmo? É difícil pegar

uma letra, ou mesmo desenvolver um tema assim do nada. Eu

estou sempre procurando coisas maiores. A canção tem que ser

um impulso para outras coisas, pra algo maior, algo mais

amplo.

I - Se afirmarem: aqui nesse espetáculo tem a música do

Lincoln. A gente reconhece nesse espetáculo a música do

Lincoln. Você acha que isso poderia acontecer por que? Como

foi se configurando o trabalho musical que tem sua assinatura?

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L – Eu não sei. Eu realmente não sei. Talvez, alguma coisa da

composição. Mas também não sei te indicar, é isso, é aquilo.

Porque, da Stela pra Rainhas, o que pode ter de semelhante?

Eu gosto um pouco disso, dos acordes irem de um pro outro

sem muita preparação. Isso tem um pouco também nas

Rainhas. Rainhas tem um pouco. E até ontem eu insisti nisso,

numa hora que tinha uns trechos instrumentais do piano, eu

sempre repetia uns temas, assim. Que é ir de um acorde pro

outro assim, direto. Umas cadências. Eu acho que tenho muito

um pensamento harmônico, no fim das contas. Embora eu

esteja sempre na luta pra me livrar disso... a história da Barca é

um pouco isso, também, de não ir pelo harmônico, só. Mas

adoro um acorde! Mas o acorde certo. A procura do acorde

certo, assim. Jamais é pôr um monte de acordes, mas é você

pôr os dois acordes que vão fazer a diferença, assim. Talvez

seja isso, um pouco. Mas eu também não sei direito, não. Não

sei o quanto que eu alcanço com essa ideia. Não sei. O Stela

tem muito isso. Rainhas, eu acho que tem também. Eu acho

que tem um limite de se falar sobre si próprio. Tem coisa que

eu realmente não sei. Parece que chega um momento que eu

mesmo não quero avançar na análise, sabe?

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Entrevista com Georgette Fadel, em junho de 2012. São

Paulo.

Georgette – O Lincoln trouxe [para os ensaios de Barafonda] a

história do Reisado. Uma dramaturgia longa, com um monte de

acontecimento, toda cantada, dialogada, com pandeirinho, e tal.

Isso inspirou um monte, e na verdade inspirou muito mesmo,

muito. Porque embora não tenha isso no espetáculo, a gente viu

a possibilidade de dialogar claramente, uma dramaturgia

mesmo, cantada, pra além do que a gente conhece como ópera,

ou essas coisas mais acessíveis assim, porque, por incrível que

pareça, a gente tem muito mais no imaginário o que é uma

ópera do que o que é um reisado, do que é um maracatu, do que

é sei lá o quê. A minha formação, por exemplo, eu sei bem o

que é uma ópera, mas eu nunca tinha ouvido um reisado. E a

gente fez um aqui. Tem luta de espadas, e luta com um e luta

com outro. E muito pandeiro, a gente ficou um tempo no

pandeiro, achando que a gente iria usar aquilo um pouco mais

direto do que a gente usou. Chegou uma hora que a gente

percebeu que não ia usar realmente assim a coisa em si, mas

que estava entendido que era possível ter um diálogo. Tanto é

que na rotatória, que é uma das cenas que a gente tem diálogo

entre um coro mais dionisíaco, mais mãe terra e os moradores

do bairro, ou os representantes de uma ordem etc., tem um

diálogo que a gente se inspirou um pouco nessa possibilidade.

E ficamos muito tempo quebrando a cabeça, tentando encaixar

mais diretamente, mas não era o caso. O Lincoln, a gente

também foi encomendando pra ele, coisas mais originais

mesmo desse espetáculo, sabe? Chegou uma hora que a gente

percebeu que tinha que ter composição mesmo, não só das

letras e tal, mas também de tudo, sabe? Não dava pra pegar

uma melodia e um ritmo ali, do que a gente tinha estudado do

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reisado ou do tanãnã, ou jongo, a gente ficou tentando enfiar o

jongo de muitas maneiras. Conseguimos colocar na festa, no

final. Mas a gente falou: “Não, jongo, jongo, o nascimento tem

que ter o jongo” e tal. Mas chegou uma hora que, não. Era

outra coisa, que o Lincoln realmente teve que compor. O

cortejo do: “Cantemos sempre intenso e forte, o que nos faz

mais vivos em direção a morte”, a gente ia falando pra ele, que

precisava ser forte, e ao mesmo tempo festivo. Então, o que

que é isso? Ele trazia. E trouxe coisas... a gente não achou que

fosse ter que compor tanto, sabe? A gente imaginava que ia ter

que enfiar letras, letras nossas, textos, num tipo de coisa já

existente, mais tradicional, tal, tal, tal. E aí não era isso. E

também músicas. A gente compôs muitas músicas lá pra trás,

desde o começo do projeto mesmo, que foi a primeira etapa,

que foi o Barafonda que estava financiado pelo fomento, antes

de a gente entrar na Petrobrás, a gente fez um trabalho já

pesquisando a Barra Funda, que gerou umas performances.

Cada ator dirigiu uma performance, já sobre a Barra Funda, pra

começar a levantar o material. A gente até fez um buraco aqui,

entrou no prédio vizinho, fez uma instalação no prédio vizinho,

fez um buraco aqui, porque estava abandonado.

Ive – Na parede?

G – Na parede. A gente botou um armário na frente e, como se

tudo tivesse saindo do armário, o público foi pra lá.

Completamente abandonado. A gente até acha que foi por isso

que eles começaram a reformar isso aí. E aí a gente teve essas

experiências que eram sobre a Barra Funda, pra gerar material

sobre este espetáculo, pro Barafonda. Mas era bem no início.

Dois anos atrás, entendeu? E a gente compôs muita música pra

esses experimentos. Pra esses seis, sete, experimentos.

I – São uns vídeos que tem na internet?

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G - São. Foi pra exposição de Praga. A gente fez uns

videozinhos. Não são super videozinhos, mas como eles foram

bem editados, mostram uma experiência bem intensa na rua. A

gente fez, por exemplo, um Dzi Croquettes no Minhocão,

dançando e tocando muito toscamente, mas pros ônibus, pro

nada. Entendeu? Falando do crack, pá pá pá. A gente fez essa

história aqui atrás, aqui do lado. Fizemos um encontro de

quatro coros na rotatória. Coro do Lopes do Oliveira, a gente

pirou muito. Foram sete experiências.

I – Isso nos dois anos?

G – No começo do Barafonda. Era um fomento que a gente

pegou, um edital que a gente pegou, e ele tinha um ano de

duração, e o objetivo dele era gerar essas performances que já

seriam, desde o início, um material, um primeiro degrau pra se

chegar no Barafonda. Um projeto que estávamos escrevendo

na Petrobrás. E aí a gente já compôs muita coisa nesses

experimentos. E eu acho que nada ficou. Mas foi...

I – E eram composições de vocês?

G – Eram composições da gente. Então, o Lincoln pegou toda

uma atmosfera, sabe? Muita coisa que a gente estudou, que a

gente compôs, pá pá pá, e não usou nada, mas usou tudo e

sintetizou nessas músicas. Realmente uma direção musical

forte, sabe? E mesmo com todas as imperfeições, tudo mais,

porque, por exemplo, a gente sabe que tem uma desafinação

total, de vez em quando a gente não canta quatro vezes, canta

três, e aí atrapalha tudo, e a gente não entende muito bem as

coisas, mas o Lincoln tem uma tranquilidade que ele acha que é

isso aí mesmo. Que também não pode ter uma perfeição que

deixe tudo muito no lugar, porque, na verdade, as coisas não

são tão no lugar assim mesmo. Então a gente adora isso assim

nele, porque daí também não tem uma pressão em cima de

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coisas que não podem ser resolvidas facilmente. Então teve

esse processo do Lincoln realmente pegar e compor e sintetizar

as coisas. E esse coro meio bagunçado, onde tem uma moçada

meio sem ritmo, onde tem uma moçada meio desafinada, que

nem sempre executa com perfeição, e essa história do Lincoln:

é o que é. Numa festa: é o que é, sabe? No teatro a gente tem a

tendência de segurar a vida, e fechar demais as coisas. De

repente uma voz desafinada no meio é interessante. Uma coisa

que traz uma diferença.

I – E vocês pensavam no texto como dramaturgia? Como letra

musicada? Esse texto musicado é dramaturgia?

G – Até, eu diria, que são os momentos mais importantes da

dramaturgia que a gente passa pra música, eu acho, sabe?

Quando tem realmente que ser entendido, enfatizado,

compartilhado, absorvido, deglutido, a gente fala: “isso aqui

tem que ser música”.

I – Por que?

G – Porque o público vai pegar por todos os lados. Vai poder

dançar aquilo, cantar aquilo, ouvir aquilo repetidamente, e sem

contar que já cola com uma emoção, com um tipo de emoção,

com um tipo de atmosfera. Já cria... e mesmo as partes faladas

do espetáculo a gente tendeu a considerar como música,

entendeu? Essa separação, eu acho que vai tosqueando a

questão. Tosqueando no sentido de tornar tosca a questão.

Porque as falas, por exemplo, das Iós, todas elas, como é em

coro, como são três, porque é uma personagem feita por três

pessoas, a gente tem que falar tudo junto. Então pronto. Então

tem que achar os apoios juntos, tem que tal tal tal, então vira

uma coisinha que você tem que...

I – Eu tava falando pro Lincoln que a Barafonda não é uma

peça todo o tempo musicada mas, no entanto, a música está

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sempre presente no ritmo, no pulso, um pouco disso que você

está falando. Você tem a sensação de que realmente tem uma

linha que conduz esse pulso, esse ritmo. Por que isso acontece?

G – Eu acho que são muitos fatorezinhos juntos. Em primeiro

lugar o gosto que a gente tem por cantar. Eu gosto muito dessa

pesquisa vocal, como essa pesquisa de timbres, alturas, forças,

sabe? Intensidades. Eu curto a história de ouvir a palavra falada

como uma coisa que tem muito claramente uma... e que é

muito rico, até mais rico que um (canta uma melodia). Rico em

termos de que você pausa, breca. É uma coisa muito doida a

palavra falada. E eu encaro, eu, às vezes, até parto disso, pra

tudo, dessa partitura vocal. Talvez uma coisa um pouco da

Cia., a gente gosta disso. Tanto é que Patrícia, desde o começo,

nos textos, sempre trazia uma coisa assim, e tanãnã, e tãnãnã

(meio cantarolado), e aí isso foi variando até chegar num:

“Vem, vem, vem (cantado)”. E aí o vem, vem, desembocou

nela de novo. Uma coisa inspirando a outra e tal. Então eu acho

que tem um gosto pessoal, uma percepção de a gente sentir que

é a mesma coisa, sabe? A gente gosta disso. A história da rua.

De ter que falar amplo, e tal tal tal, você não pode falar de uma

maneira coloquial, de uma maneira cotidiana e, pelo contrário,

você tem que falar super alto, porque tem uma galera. Então

parece que isso cria necessariamente uma outra musicalidade,

que acho que é mais próxima da poesia, do cantar, do que da

prosa, do cotidiano. Do blá blá blá aqui. Então acho que são

alguns fatorezinhos. O fato de a gente saber que pega mais,

então é uma opção também clara. Você tá na rua, vê uma

pessoa cantando, um grupo cantando, atrai. A gente sabe disso.

É armadilha pra catar mesmo. Uma música bonita, que o

público possa repetir, cantar junto, que tenha tambor, ou que

tenha instrumento, pô, beleza, né? Você proporciona algum

nível de beleza, harmonia ou desarmonia, mas que tenha esses

elementos atrativos que a música tem, entendeu? Acho que é a

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mesma relação com dança. Acho que a gente também tem essa

vontade. Que o movimento também seja dança. Que essas

fronteiras entrem no esquecimento.

I – Nos seus trabalhos a música tem uma força muito grande,

motivadora. Eu queria te perguntar, pensando nisso, que força é

essa que tem a música no teatro, quando ela tem, e quando ela

não tem. Porque você vê espetáculos nos quais a música não

tem exatamente essa força, né? Que a gente pode até talvez

pensar que ela não está imbricada, juntinha, ali, com a

dramaturgia.

G – Escuta, acho que no teatro a música, pelo menos até agora,

o que eu posso acrescentar aí, eu acho que quando ela não tem

um sentido dramatúrgico, ela não está encaixada num sentido

do que precisa ser comunicado. Até agora, o que eu tenho

sentido, assim, por exemplo, na Gota D’Agua, quando ela

canta pro Jasão: “Deixa em paz meu coração” é porque aquilo

não pode ser falado. É pouco falar. Quando é pouco falar,

sabe? O que eu posso dizer de mais concreto, embora seja

pouco falar isso, é que quando é pouco falar, você tem que

cantar, no teatro. Parece que se não é isso... ou então,

obviamente uma cena: “Ô, vou cantar uma música pra você”.

Tudo bem, mas não é isso que eu tô falando. Quando a

linguagem é... eu vou falar uma coisa, mas eu não falo, abro a

boca e canto, é porque aquela coisa precisa... é que nem

máscara. Por que você põe máscara de papelão na sua cara?

Um nariz enorme, ou uma orelha enorme? Porque você precisa

elevar aquela vibração, já colocar ela de cara, falar assim: “é

um outro, e é assim”. E acho que com a música tem isso. A

Stela do Patrocínio: dá pra falar aqueles poemas? Dá. Dá pra

falar. Mas... “eu tava tomando claridade luz”. Se essa melodia

que o Lincoln compôs, desde a primeira vez que a gente ouviu

a gente falou: “Meu!”. É como se eu tivesse falando. Eu tô

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falando. Mas a maneira de dizer isso não pode ser: “Eu tava

tomando claridade luz”. Não pode ser. Mas esse: “eu tava

tomando claridade luz” (cantando), parece que está mais do

tamanho da imagem sabe? E aqui também no Barafonda. Essa

história do Prometeu. Pra você parar uma praça, criar uma

imagem ali, outra atravessando o Minhocão, e o público ficar

ali numa pulsação contigo, tem que ter uma bateria, uma

guitarra, tal tal tal, amplificado, assim. Parece que a música

cerca e empurra a comunicação. E a sensação que eu tenho é

que literalmente com a música a gente lança uns ganchos no

público, sabe? “Não vai sair daqui”. Porque a música tem leis

específicas ali, que você vai ter que ficar até o final pra fechar

dentro do seu campo emocional essa melodia aí. Você vai

querer saber onde vai terminar esse show, essa música. Sabe?

Pra mim é isso, entendeu? É quase como um deslocamento

mesmo de... estamos num plano, outro plano. Líquido, gasoso.

Aqui precisamos de mais emoção. Então vamos cantar.

I – Na Barafonda a música começa com um pop rock, e tem

samba e tem jongo e não sei o que lá, e mesmo assim ela tem

um bloco de sonoridade, né? Na música desse espetáculo você

não fica estranhando. O que você acha que dá essa liga? Que

forma esse bloco?

G – Precisava pensar com bastante cuidado sobre isso, porque

acho que é muito múltiplo, mesmo. Eu acho que o que dá

unidade é o coro. É o grupo. É o grupo ser o mesmo e ter uma

intenção x, narrativa, em relação a todas elas. Porque elas são

muito diferentes. Você pega uma como: “Prometeu entregou o

fogo aos homens” (cantando rock). E depois: “Cantemos

sempre intenso e forte”. E aí o tiririca: “na Barra Funda

compadre...”. “Vem, vem...”. Raul Seixas. Não tem unidade.

Uma unidade claríssima de elementos. Acho que o que tem é o

fato dessas pessoas terem um determinado tipo de atitude que é

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a mesma. Acho que está no coro, na junção dos atores, a coisa.

E no fato de ser, por si só, estações. Então você não cobra isso

de maneira nenhuma. Porque de cara rola o Prometeu, na

sequência sai a rádio com uma cantora já cantando coisas um

pouco da época, de certas épocas, né? De outras décadas, e tal.

Então você já de cara diz: “Beleza, estamos panorâmicos”.

I – E a Georgette Fadel e a música? Porque você canta no

teatro, mas também canta fora dele, como no show do

Guarnieri. O quê a música interessa pra você?

G – Eu acho que tem elementos ali na música que são

sintéticos. O que quero dizer, é que são capazes de juntar os

corpos, entendeu? Como num jogo bom, também, você tem

corpo, você tem coração, você tem cabeça. Acho que a música

pode unificar o ser de novo. Sabe? É uma expressão muito

completona. E que é abstrata ao mesmo tempo. Eu acho que

tem elementos que... mas eu nem gosto de falar assim: música,

teatro. Acho que teatro e música é a mesma coisa. Não é nem

teatro e dança a mesma coisa. Teatro, música, dança, artes

plásticas, a mesma coisa. Tudo bem, você muda a mídia em

que a coisa está se expressando, mas a coisa que está se

expressando, o movimento a vida que está se expressando é o

mesmo. E acho que a música, cantar, bota o ser humano numa

potência. Sabe flor quando floresce? É legal ver a raiz da flor?

É legal ver a raiz da flor. Beleza. É legal ver o caule da flor? É

legal, tal. Mas quando a flor, a flor mesmo... eu acho que o ser

humano é dançante, cantante, pintante, sabe? Então eu acho

que quando a gente canta, a gente tira a palavra de um sentido

morto, que a gente sabe que está tendo entre a gente, e parece

que tem um florescimento. Parece que você usa várias, todas, e

explicitamente as potências dos teus corpos. Assim como

quando você dança também, não é? Dá a sensação de que você

não tá usando menos o seu corpo do que você poderia usar.

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Você está usando o corpo no mais delicado dele, no mais

elaborado dele, no mais...sabe? Usando todas as leis que você

pode reconhecer nele naquele momento. Você vai compor uma

música: você para e...tudo que você sabe, tudo que você pensa,

tudo que você é.

I – Mas então, você falando tudo isso, eu lembro daquela

entrevista com você em Belém, onde você fala sobre tirar a

palavra do cotidiano. E você falando dessa potência e tal, será

que a gente pode dizer que a Barafonda tem tudo isso? Como

se traça a dramaturgia na música da Barafonda? Como se traça

a música dos trabalhos que você participa?

G – Eu gosto muito da ideia de tudo cantado. Eu gosto muito

da ideia de que tudo é... de que essa fronteira realmente é uma

fronteira bem bobinha mesmo, bem bobinha, porque em

essência a fala tá ali, é musical e tem que ser tratada com a

mesma atenção e a mesma consciência que um estudo musical

mesmo. E acho isso urgente. Porque acho que a gente padece

disso, da boa fala, sabe? Da fala que vem à altura das palavras,

do sentido que está posto ali, do espírito que está posto ali. Eu

acho que a gente sabe falar pouquíssimo. Acho que a nossa fala

é antiga e viciada. É o pior do antigo. É o viciado, uma coisa

parecida com dublagem.

I – De que fala você está falando?

G – A fala no teatro. Os diálogos no teatro, a fala no teatro. É

difícil encontrar quem fale! Fale! Bote a palavra em ação,

sabe? Pra gente entender a música. Pra gente entender a

musicalidade. Porque eu acho que o teatro, a moldura do teatro,

não importa se é um teatro careta ou não, mas ser teatro, ali na

sua frente, faz da fala música, você entendeu? Mesmo uma fala

cotidiana ultrarrealista, bem realista, vira música no teatro se tá

cuidada, se tá falada, mesmo. Ela vira música. Ela se enquadra,

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você ouve a música dela. Então o teatro é o lugar onde essas

fronteiras podem... entendeu? Realmente uma pessoa pode

estar aqui conversando com você ali, como a gente entende a

musicalidade de uma fala mais cotidiana, e de repente daqui já

partir pra outra coisa. Aí, quando entra uma música, uma

canção, instrumento, uma coisa mais organizada, reconhecível

como: “isso é uma canção, isso é uma música”, eu tenho

impressão que define os picos da coisa, sabe? Nas rainhas, por

exemplo, ou mesmo aqui na Barafonda, as músicas dão

claramente pro público onde ele deve prestar muita atenção

porque ali é uma síntese, um haicai do espetáculo todo. Ou

daquele momento. Então eu estou falando de uma coisa quase

careta que acontece aqui, sabe? Tipo: “gente, isso aqui precisa

ser cantado”. E que momentos dramatúrgicos são esses? O que

significa isso na nossa dramaturgia? Significa que são os

momentos realmente fundamentais, que o público precisa

realmente absorver aquilo de uma maneira muito especial.

Então a música entra como um elemento assim de grifo, de

absorção instantânea e inquestionável. Vai ser ouvido de uma

maneira especial. Vai ser grifado. Vai ser reconhecido como

um elemento pilar dessa dramaturgia. No caso da Stela é outra

coisa, né? No caso da Stela é o tempo todo. Esse piano que é

quase o mar por onde ela...

I – É, mas tem uma coisa na Stela que é o seu movimento.

Tanto o movimento de corpo quanto o movimento da fala, essa

que você está falando, onde você ouve a melodia da fala, né?

Na Stela é muito fácil de entender como você está com aquela

música introjetada o tempo todo. O que me chama a atenção na

Barafonda é que você tem essa música introjetada o tempo

inteiro e, no entanto, elas são completamente estranhas,

esquisitas, uma da outra, é uma esquizofrenia musical. Porque

tem plugada, tem não plugada, aí passa um cara com um

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radinho, aí tem um cavaquinho. Então se for pensar, é uma

loucura...

G – Eu acho que no Barafonda, talvez o que dê unidade não

seja a música. Talvez o que dê unidade seja o nosso caminhar.

É o espaço e é o som da rua. Acho que o som da rua dá

unidade. E a gente tá na rua, mas o soberano ali é a rua. É o

carro, a buzina. É o tudo. A gente canta a musiquinha, e tal.

Beleza. Mas o que tá ali de base de tudo é o som da rua. Então

por isso eu acho que a esquizofrenia pode acontecer, assim

como a rua é esquizofrênica, como a cidade é esquizofrênica.

Como tem uma pessoa conversando ali, outra gritando ali, um

lava-carro aqui, um barulho de sei lá o que aqui o tempo todo,

pá pá pá, sabe? A gente é mais um elemento. Um elemento

cortante, gritante, mas mais um. Se você fica um pouco pra trás

do cortejo ele já não existe, aquela peça não está acontecendo.

Então entra um monte de outras coisas que não são a gente.

Você não está protegida por nada. Você é um acontecimento

ali como tem ali na esquina um hospital com gente morrendo.

Você não está ali numa sala ideal. Você não está no mundo

ideal. E acho que música ajuda em momentos que você precisa

criar, dramaturgicamente assim, duas funções: uma delas é

quando você precisa se referir a esse mundo, criticando ele,

discutindo ele de mil maneiras. Canções sobre e pautadas nesse

mundo. E outra função é a criação de outros mundos. E eu acho

que dessa função a gente tinha que abusar. Eu acho que quando

entra som, instrumento, com cuidado, com musicalidade, a

gente consegue instaurar também outras esferas, outros

raciocínios, outras lógicas. Por isso eu acho que a Stela é tão

musical imediatamente de cara. Porque é uma outra lógica, um

outro mundo. E parece que nesse outro mundo existe um outro

som. Então acho que ajuda. É o carnaval. Você vai fazer um

momento que precisa ser alegre. Você precisa instaurar um

plano de alegria, um plano de um mundo fundante, de um

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centro de mundo, de uma coisa ancestral. Como é que você vai

fazer? Você tem que trazer música. Você tem que trazer

música. Porque ele é que vai instaurar um outro ponto de

aglutinação de energias. Então, como uma máscara no espaço

todo, uma máscara no tempo, sabe? Uma máscara no tempo e

no espaço. Aquele tempo, aquele espaço, se diferenciam, e

você instaura um outro momento, que eu acho que não é pouca

coisa. Porque a gente também precisa desse treino. Porque é

assim que a gente vai transformar mesmo. A gente fala: “esse

mundo como tá, foda-se!” Né? Vai explodir mesmo! Cacete!

Ninguém se liga, é uma merda. Quer dizer, um monte de gente

se ligando, e tal, mas é gente dividida pra caramba. Uns lutam

por terra, outros lutam por ser mulher, outros lutam por ser

negro, outros lutam contra a lata de alumínio, tal, como se

fossem lutas separadas e nada se junta, e tudo esfacelado e a

grana comendo solta e todo mundo muito louco atrás de sei lá o

que. Você diz: “bom, eu não acredito nesse mundo”. Beleza.

Como criar outro, então? Que outro vai ser esse? Precisa de

muita imaginação prum outro mundo, porque eu não sei se a

gente consegue imaginar outro. É foda! A gente consegue falar

abstratamente sobre isso: “é um mundo onde todo mundo ajuda

todo mundo, onde todo mundo ama todo mundo, onde o

capitalismo é menos selvagem”. A gente tá sem imaginação pra

instauração e criação de mundos diferentes. De lógicas

diferentes. Então eu acho que a música ajuda demais nisso. A

gente ser capaz de: “Beleza, a gente está falando de amor,

então o que que é concretizar isso? O que que é? Talvez ter

uma roda, uma ciranda? Beleza. Uma roda, uma ciranda. Isso é

uma forma de pulsação amorosa”. E aí se canta aquilo, e tal,

tal, tal. E aí acho que tem outras coisas que precisam de

elaboração diferenciada mesmo. Estou achando o nosso

raciocínio, a nossa visão de mundo muito limitada. Eu tô

achando não, né? Acho que todo mundo tá achando. A gente tá

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muito limitado, a nossa visão de mundo: “amar é isso, um

relacionamento é isso, um casamento é isso. Trabalhar é isso,

dinheiro é isso. Meu objetivo é esse, viver é isso. Morrer é um

medo, um negócio estranho. Acredito. Não acredito em deus.

Deus é isso, é aquilo. Existe. Não existe. Partícula ou onda”?

Sabe? Nossa comida é um lixo. Nossa vida é um lixo. Então

acho nosso pensamento restrito. E acho que dançar e cantar, ou

seja, sair do realismo, trabalhando de uma outra maneira com a

palavra, de uma outra maneira com o tempo, de uma outra

maneira com o espaço, ajuda a gente. Dá pra criar outro

universo. Só tem que tomar cuidado, porque é uma liberdade

imensa. Não pode criar um mundo de merda. Mas é uma

liberdade. Eu acredito nisso, embora acredite muito que a gente

tem que saber da nossa história. Saber bem claramente. Mas

essa história de um mundo a se inventar, um tipo a se inventar,

sabe? O contrário do que gente ouve, de que está tudo

inventado e que agora só pode recombinar as coisas, reciclar as

coisas, porque tá tudo inventado. Como assim tá tudo

inventado? Não tem nada inventado! O que tem inventado é

isso aqui que é horrível. Tem um mundo horrível inventado. É

impossível que seja só isso. Impossível! Então acho que a

música quebra fácil a fronteira do prosaico. É fácil entrar em

êxtase com música. Você tem que cantar, se não é difícil.

Organiza de outras maneiras.

I – É muito mais fácil você chegar num espetáculo e ver a

música, e ver o texto, e ver a coisa toda indo de qualquer jeito

sem ter nenhuma relação de uma coisa com outra. Você vê um

pedaço de luz, um pedaço de cena, um pedaço de música. As

coisas acontecendo sem diálogo entre elas.

G – É porque é sempre mais fácil fazer uma coisa malfeita do

que uma coisa bem feita, né? Acho que a explicação é um

pouco essa. Simplesmente. E acho que talvez a gente conte

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com uma força isolada da música, do texto, como se a gente

estivesse trabalhando com esferas diferentes. A gente não está

trabalhando com esferas diferentes. Nada é dividido. Eu já fiz

espetáculo onde tudo estava dividido e é horrível. Mas eu acho

que essa síntese também é do ator. Acho que só o ator pode

fazer a síntese. Por exemplo: eu estou numa cena falada e aí eu

tenho de cantar, nenhum diretor... é claro que a cena pode

ajudar a ser clara a ligação. Mas é o ator quem vai fazer esse

trânsito. E não é um trânsito super simples, né? É um trânsito

que você precisa ter uma cara de pau pra passar uma

fronteirinha, né? Porque você tá falando, de repente você vira e

canta! Tem uma pequena vergonhazinha, talvez. Essa

passagem de linguagem, acho que não é só pra cantar, uma

passagem de linguagem brusca causa risco da patetice. Sabe?

Você tá dum jeito, aí você vai pra outro jeito. Nesse trânsito

você fica desprotegida, um pouco. Então acho isso uma

dificuldade. Você não pode sucumbir a isso. Você tem que

cantar, você tem que cantar! E essa passagem o ator que quer

fazer. Se ela é suave, beleza. Se ela é brusca, ela é brusca. E aí

você tem que peitar isso. E aí o medo de ser ridículo, o medo

de não funcionar, porque é um saltozinho, né? Você tem que

peitar aquele corpo, né? É outro corpo né? É tudo outro quando

você canta ao invés de falar. A sua cara muda, a sua respiração

muda, seu tubo muda inteiro, né? Então essas passagens entre

uma coisa e outra são abissais. Acho que é aí que a gente se

ferra um pouco. Acho que tanto por falta de colhão, de assumir

que é uma passagem mesmo, como um salto, eu vou lá e dou

um pulo e caio em outro lugar, ou então entender passagens

que levam, passagens de curvinha mesmo, que levam ao canto

mais naturalmente, sem trancos. São mil situações, né?

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Entrevista com Lincoln Antonio, em junho de 2012. São

Paulo

Ive – Como foi o processo de composição da Barafonda, e

como se deu esse processo com os músicos e com o elenco?

Lincoln – O importante da São Jorge é que é um grupo que já,

há muito tempo, trabalha com música. Eu cheguei a dar aulas

pra eles durante dois anos, só aulas mesmo, em 2003 e 2004,

quando tinham um fomento que era pra estudo, só. Isso foi

muito legal pra essa época porque eu estimulei muito eles a

tocar algum instrumento. Então teve gente que pegou flauta,

clarinete, outros mais devagar ficaram só batucando um pouco,

mas enfim, é um grupo que sempre botou música nos

espetáculos, e teve essa experiência forte de musicalização.

Então, quando eu voltei pra trabalhar agora com eles, já tinha

esse cenário de uma maturidade musical que possibilitava fazer

várias coisas, e nesse projeto agora tinha o coro, né? Então

tinha bastante gente. E você sabe, você trabalha com grupo,

você junta dez às vezes é difícil, mas se você junta trinta é mais

fácil porque um leva o outro, você acaba tendo um resultado de

coro interessante. E é uma galera jovem, a fim de tocar, de

cantar, e tal. Então tinha uma base de possibilidades bem

grande nesse processo. E como foi uma criação conjunta do

elenco da São Jorge, a Pati, o Rogério, a Georgette, Paula,

Krugi, Capoano, acho que essas pessoas que fizeram a

dramaturgia e foram construindo o espetáculo com o pessoal

do coro e tal. Então, esse pessoal queria música. Eles estavam

sempre apostando na música, “vamos resolver essa cena com

uma música, vamos fazer uma música aqui”. Então, a ideia

realmente era fazer um musical. Mas isso tudo nunca foi

planejado assim, não foi rabiscado um roteiro... foi sendo feito.

A Barafonda foi sendo feita na experiência, no improviso: saía

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pra rua, preparava um texto e ia pra rua, depois refazia esse

texto. Não sentou pra escrever. Então foi um processo

totalmente colaborativo mesmo, de escrever, encenar,

experimentar, e aí as coisas irem ficando... E nessas primeiras

escritas que geravam material pra ir pra cena, o Krugi que

escrevia mais em verso mesmo, em rima, ou então pegando os

textos dos gregos e adaptando, já pensando numa música. A

gente recebeu, eu e o Jonathan, uns textos às vezes enormes

que eram pra virar música. Alguns menores, alguns que o

Jonathan pegou e botou mais uma cara de letra mesmo. Mas os

que mais me interessavam eram os textos grandes. Eram as

cenas grandes que você podia fazer uma música mais longa,

que você podia testar mesmo a capacidade dramatúrgica da

música, que podia ter uma experiência mais interessante de

música e cena, do que fazer aquela cançãozinha só. Então, o

que me animava mais eram as grandes cenas. Na verdade, têm

três. A primeira do Prometeu na Marechal; depois a do

Dionísio, quando ele aparece, o samba dele; e antes ainda a da

rotatória, que foi uma das cenas que mais demorou a ser feita.

As músicas foram feitas assim: tinha um texto, e aí eu ou o

Jonathan fazíamos a música, pra gente levar, experimentar, e aí

a gente mexia, e tal. Mas foi mais esse processo de composição

solitária mesmo. O Jonathan fez algumas coisas, eu fiz outras,

e algumas a gente fez junto nos intervalos dos ensaios. A gente

fez algumas que entraram, e acabaram saindo, umas três,

quatro músicas que ficaram de lado. Porque a peça ia se

construindo em sua dramaturgia, também, à medida que ela ia

avançando. Não tinha uma coisa fechada. Pouco a pouco foi

fazendo esse trajeto, de sair da Marechal, passar pela sede. Isso

foi sendo descoberto. Mas a única música que foi feita lá, com

os atores mesmo, com o coro, é a música da rotatória, que foi

uma cena bem complicada, talvez a mais complicada de chegar

num termo, porque tinha questões técnicas por ser ali na

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rotatória, “bota microfone”, “não bota”, bota microfone e não

funciona... e essa cena é o embate do coro do Dionísio com o

que eles chamam de coro das privadas, o privado com o

público, esse embate na rotatória. E aí esse coro das privadas

nem cantaria, elas só tocariam trompete, teriam uma voz lírica.

Mas depois colocou texto mesmo, e agente chegou nesse lugar

que é: o coro do Dionísio canta, e o coro das privadas, fala. E

foi essa música que demorou mais a ser feita, e a que foi mais

construída em conjunto com os atores. Eu tinha uma ideia

temática que é a dela, que é simples, né? Dois acordes que vão

subindo de tom sempre. E aí a gente foi construindo assim.

Tinha um texto enorme também. O trabalho então não foi só

musical, mas poético, de colocar ali o que era essencial mesmo.

Foi a parte mais colaborativa de música e letra entre todos. E aí

a questão de arranjos é como dá pra fazer, né? Não dá pra

idealizar. É o instrumental que você tem ali, são aquelas vozes

que você tem... então, eu fui vendo que, à medida que ia se

aproximando da estreia, a gente tinha que garantir o coro

cantando em uníssono legal, e a base certa de percussão, e

quando precisava de alguma harmonia sim, quando não, enfim.

Mas, mesmo assim, a gente tem bastante variedade. A Josi é

uma figura importante, porque ela toca violão, cavaquinho,

baixo, então ela segura muito a onda junto com o Jonathan. Até

mais que o Jonathan, porque o Jonathan está mais no violão,

só. E ela atira em vários lados assim, fica importante. Tem

umas cenas que ela toca guitarra, o baixo. Se tivesse mais dois

músicos mesmo, talvez a gente ganhasse mais corpo.

I – De músicos são você, o Jonathan...

L- Eu, na verdade, não participo. Nos dias que você assistiu eu

estava tocando, mas só participo de vez em quando. Se bem

que eu acho legal o teclado na Marechal. Acho que cola um

pouco as vozes com o resto, ele faz um meio de campo assim,

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mas no geral... toquei um pouco de sanfona... mas não precisa

muito, eu acho. De músicos são o Jonathan e a Josi. A Marina

e o Major são mais da percussão, embora eles façam cena

também. O Carlo é outro cara que atua também, é poeta, e tal, e

também toca legal. São esses. Que tocam mesmo são esses.

Tem um quinteto, digamos, aí.

I – Na cena do parto tem uma atriz que toca piano, tem uma no

violino também...

L – É, mas são bem aprendizes, assim...

I – Mas funciona bem, né?

L - É, eu acho que o teatro tem isso. Você pode criar uma

partitura, criar uma ópera, tudo bem... mas é mais você

potencializar, sabe? Aquela nota, aquele som de violino que vai

fazer só “temmmmm”. Isso já é um acontecimento. Tudo vira

um acontecimento, então. Teatro tem isso, né? E aí é até

interessante você trabalhar com um pessoal que não domina

mesmo, porque ele vai fazer aquilo ali de um jeito que....

I – São trinta atores. Você falou de usar o recurso do

uníssono...

L – É, o que a gente tem de legal lá é... como é coro, a gente

consegue ter dois coros cantando, esse embate das privadas e

do público. Tinha essa ideia de ser dois coros cantando, mas

não rolou isso. Pelo menos são dois coros. Mas um coro fala,

não canta.

I – A Barafonda vem de um projeto que se chama Ao coro

retornarás, que foram dois anos de experiência. Fizeram

oficinas pequenas. Quando você e o Jonathan pensaram nas

composições, fizeram alguma relação, ou usaram referencias

do coro grego?

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L – Isso vem no texto, né? O texto, por exemplo, da rotatória,

que vem encontrar o Dionísio... essa música tem uns versos

que são das Bacantes mesmo. Quando fala “o da rua, o do

palácio”, isso é do primeiro coro das Bacantes. Os atores

trouxeram isso no texto.

L – Então você e o Jonathan não fizeram texto, letra?

L – O Jonathan fez um pouco. Por exemplo, essa daí é a

contribuição grega, o resto é invenção: “o da rua, o do palácio,

da calçada, do porão, vem cantar essa barafonda, vem não sei o

que lá esse cordão”. Aí fala do Largo da Banana, da banana. Aí

já é... mas é nesse espírito grego, evocativo e tal. Tem a ver. A

música da rotatória também, o coro do Dionísio se coloca, se

posiciona, é bem isso. O primeiro texto, o do Prometeu, é um

poema do Rainer Miller, A libertação de Prometeu. Eu peguei

dele. É um poema longo, e eu fui pegando a história um pouco

usando a ideia dele, mas modificado algumas coisas. Foi a

música que eu mais botei a mão na letra. É, a música do

Dionísio também se refere muito ao Dionísio mesmo, faz a

relação com a Barra Funda, mas fala do Deus mesmo, de ser

um estrangeiro, de ser perseguido, e tal. Essa história toda

aparece lá. Agora, um estudo mais musical do coro grego, não.

Não fizemos. Acho que nem é possível, né? Poderíamos só

imaginar o que seja, né? Tudo tem alguma referência. Se você

for procurar, tem algum verso que é de algum lugar. É bem

creator common. O que é interessante, né? Mas, eu não sei

dizer. Mesmo o texto das Iós é uma mistura de textos, tem

Pablo Neruda... isso é interessante no projeto. Teve uma

liberdade de pegar as coisas e usar, de ser feito na hora do

próprio processo, assim, que é bem legal, bem interessante.

I – O que é pra você uma direção musical em geral, e o que foi

dirigir Barafonda?

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L – Em teatro, eu não tenho uma ideia de direção musical,

porque nunca é o processo que você quer, né? É o processo que

existe, a situação que existe. Cada situação é uma. A da Cia

Livre você viu, né? Muito menor, piano e percussão. A Stela do

Patrocínio, por exemplo, a mais mínima possível. Então, eu até

comentei muito com o pessoal da São Jorge de num próximo

processo agente fazer o inverso. Vamos sentar e vamos pensar

no que a gente quer fazer, de que jeito, em como vai ser a

música, fazer o contrário do que foi. Não ir construindo num

processo de experimentação. Pelo menos criar uma ideia mais

firme, compor antes, fazer um pouco antes as coisas: “vou usar

tais instrumentos, preciso de tais cantores”. Fazer um pouco ao

contrário do que a gente costuma fazer. Com o que tem, a gente

vai e faz. Os recursos humanos que a gente tem, a gente vai

usar. E eu tenho sempre a preferência de fazer ao vivo do que

gravado, né?

I – E você pensa em uma unidade?

L – O pensamento da unidade vem no fim, quase, sabe? Eu

tento, no final, deixar a coisa com uma coerência. Mas aí, vem

a menina com o violino e diz: “posso tocar essa música? Eu

estava lá arriscando...”. E pode, né? Porque foi um processo

completamente inclusivo. Eles não falavam não pra nada,

praticamente, no sentido geral. E eu também gosto disso, acho

que é a hora de ela pegar o violino e tocar mesmo. Então

vamos lá. Mas, agora, ali, eu precisava garantir o mínimo de

percussão, primeiro. Não era nem harmonia. Era garantir dois

ou três que segurassem mesmo a onda. Se não, fica aquele

monte de ganzá fazendo uma barulheira. No começo todo

mundo tinha ganzá. Aí, tirou tudo isso. Tentou reduzir ao que

era... mesmo porque não davam conta de tocar, dançar, fazer

cena. Era muita coisa, né? Então a unidade, a coerência você

vai conquistando mais do meio pro fim do processo. Mas a

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Barafonda tem mais essa pegada do samba. A música do

Dionísio é um samba, e a música do começo, que é no futuro,

já é uma música mais rock’n roll, mais dissonante, mais uma

outra chave, assim. As Iós tem uma chave mais pseudo pop. É

engraçado que as pessoas pensam futuro e pensam rock, né?

“A gente quer fazer um show no futuro na Praça Marechal, um

rock’n roll!”. Eu falo: “rock’n roll, sei, muito futuro, né?”.

Então, tem que ser música eletrônica, talvez. Mas... total

preguiça de entrar nesse mundo. Então, o nosso futuro é rock

mesmo, já tá bom. E esse trio é legal, das Iós. Elas cantam

legal, cantam agudo, é bem bacana as três juntas. Eu gosto

muito, na primeira música, de como é essa história das vozes.

Eu também fiz ela pensando um pouco nisso, um pouco Arrigo

Barnabé, no sentido de... são módulos. Repete, acrescenta uma

voz, uma faz, a outra completa a frase, tem muito isso de você

ir tecendo.

I – Foi você quem fez esse arranjo?

L – Foi. Também experimentando com elas. Muitas coisas eu

gravava e dava uma guia pra elas. Essa música especialmente

era isso. As frases. Uns quartetos de versos que uma canta um,

uma canta outro, e você vai completando assim, porque fica até

mais fácil do que todo mundo cantar tudo. Tem essa ideia. Ela

é bem construída nesse sentido. Acho que sobretudo essa. As

músicas das Iós têm isso, são várias frases. É a mesma coisa da

Stela, que você pode repetir mais ou menos, que você pode

cantar uma e depois outra, ou o inverso, essa coisa de módulos.

I – É interessante, porque elas falam o que depois elas cantam,

e depois falam...

L – Esse é um recurso... é outro mundo, a música. Você precisa

repetir, precisa retomar, e repetir de outra forma, vindo de

outro lugar. Acho muito legal isso estar no teatro, né? E, às

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vezes, cantar em coro é mais difícil pro entendimento do que

solo, né? As várias vozes cantando, parece que anestesiam um

pouco o sentido das palavras, o ouvido do público.

I – É tem o aspecto visual...

L – É engraçado isso. A Lu Favoreto que me chamou um

pouco a atenção pra isso: “eu entendo muito mais quando uma

só pessoa canta do que quando todos cantam.” É interessante.

Problema esse, né? Porque... esse é um pouco o estilo que eu

tenho cultivado. Não a lógica da canção, as ideias encadeadas,

que você chega no fim e repete. Não. Eu tento fazer uma coisa

mais aberta, que possibilite mais o improviso. O improviso é

uma palavra importante.

I – Improviso de quem?

L – Do cantor. Na Stela isso é muito claro. Na Barafonda não

tem isso, tanto. Acaba que a tendência é fixar mesmo as coisas.

Mesmo as músicas das Iós, da Marechal, e a outra, que

poderiam ser abertas, elas acabam... experimentam,

experimentam: “não, então vamos fazer assim.” Fazem daquele

jeito, e tal. Mas elas que decidiram assim. Poderia ser mais

livre. Talvez se ficasse em cartaz, e ganhasse mais confiança,

elas poderiam detonar um pouco mais esse combinado e ir mais

a diante.

I – Você diz que houve um processo de inclusão, de muitos

sins. Mais houve uma hora de dizer não pras coisas, também?

L – Sim, sim. Você vê, e o que não está dando certo, o que está

sobrando, você vai cortando. Em todos os aspectos da

encenação isso rolou. Uma hora, queriam todas com umas

cabaças, uns afoxés, assim, grávidos, e todos tocando na

Marechal. Eu falei: “não vai dar certo, isso”. Já perto da

estreia, pegar isso, aprender a tocar isso, e faz um barulhão

aquele troço... é super bonito, mas chama o Ilú Obá pra fazer

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isso... Uma hora, a gente fez um monte de pífanos de PCV, pra

tocar no coro das cabritas. Sobrou vestígios disso. Só as Iós

tocam, às vezes, um pouquinho, e tal. Algumas coisas iam

caindo mesmo, a gente até esquecia. Outras eu fui tirando. Um

problema sério: os meninos cantando, né? Tem um ou outro

assim que é terrível de desafinado. Então a gente ficava em

cima: “olha, vamos cortar, hein! Fica ligado!”. Tem um deles

que eu chegava perto e ele nem cantava, calava a boca. Esse

era um problema, mas também é difícil falar pro cara: “não

canta!”, no meio do coro, “dubla”. É pior ainda, né? Tinha que

pegar o cara e fazer um estudo intensivo de abrir o ouvido

pra... porque eu não acredito que a pessoa seja completamente

desafinada. Mas, naquela altura, não dava pra fazer nada,

assim. Então... mas não teve muito problema em relação a isso,

de tirar coisas assim, não. As coisas acabam se configurando na

própria realidade. Pra mim, o mais importante é entender o que

eles cantam. O desafio é sempre esse. E o coro soa legal. Foi

soando cada vez melhor na temporada. Várias vezes eu me

emocionava. Tá legal.

I – Você pode falar um pouco sobre o potencial dramatúrgico

da música? Há diferenças, por exemplo, no potencial

dramatúrgico na Stela e na Barafonda?

L – Eu não sei se consigo te falar sobre isso, não. Assim... não

tenho um pensamento claro sobre isso. Porque a Stela é um

negócio muito direcional, é a atriz naquele lugar fechado. E a

Barafonda é aquele monte de gente na rua, né? Então são

realidades opostas. E a gente foi fazendo na base da

experimentação mesmo, né? Que tipo de música vai soar na

rua? É com microfone? Porque todas essas questões: é com

microfone, não é com microfone, tem percussão, não tem

percussão, isso tudo influencia no entendimento, na

comunicação. Mas eu não sei, não tenho um pensamento claro

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sobre isso. O texto é uma coisa importante. Talvez, seja a

primeira coisa importante. Um texto bom, dramaturgicamente,

e bom pra cantar, também.

I – O texto da música?

L – O texto da música. E aí, por exemplo, a gente trabalhou

muito com gêneros populares, samba, marcha, muito por aí.

Mesmo o rock, também é. A Stela é um pouco mais livre, nesse

sentido. Eu não quis caracterizar. Não quis, mesmo. Embora

algumas coisas sejam próximas de um gênero, mas tem sempre

um estranhamento. Na Barafonda, não. A gente se aproximou

mesmo disso. Deliberadamente. Às vezes, menos, mas no geral

é uma marcha, um samba. Eu acho que tem isso, também. Um

espetáculo de rua precisa ter... eu não sei se eu diria isso... ele

precisa ter essa referência em coisas que as pessoas estão

acostumadas, pra poder se comunicar. Não sei. Você poderia

fazer um espetáculo estranhíssimo que comunicasse, também.

Então, não é uma regra isso.

I – Você pode dizer que no teatro existe uma música que não

tem nenhum compromisso com a dramaturgia? No caso da

Barafonda e da Stela é claro que ela está completamente

comprometida. Porque?

L – Acho que na Barafonda teve esse pensamento desde o

princípio, de ser música. De escrever o texto pensando se vai

ser música. Então, a gente vai caminhar aqui com música, a

gente vai fazer essa cena aqui com música. Esse pensamento é

inaugural na dramaturgia. Vai ser música, isso aqui. E vai ser a

música que o Jonathan e o Lincoln vão fazer. Então, isso estava

claro pra eles. Já vem com isso. A gente tem que fazer uma

música boa pra isso. Uma música que dá certo. Porque há

muitas possibilidades, também. Te respondi? Acho que não,

né?

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I – Talvez se eu perguntasse, então, o que é essa música boa

pra isso?

L – Porque eu acho que tem duas situações da música na cena.

Que é a situação da ópera clássica, do recitativo e da ária. É a

hora em que a ação transcorre, né? E a hora em que o

personagem dá uma viajada ali. A Stela é mais o personagem

viajando, o tempo todo. A entrevista é que traz um pouco mais

de ação. Mas na Barafonda é isso o tempo inteiro, porque as

músicas contam histórias, conduzem o público e tal, mas a

música também é uma reflexão, é um lírico do personagem,

então... eu agora tenho pensado muito nisso. Recitativo e ária.

Não pra ficar nesses modelos da ópera, mas, inclusive, pensar

essas coisas juntas, não separadas. Esses dois momentos, que

na ópera clássica são bem distintos. Mas pensar isso integrado.

Porque muitas vezes a canção, por exemplo, no teatro

brechtiano a canção nunca se confunde com a dramaturgia, ela

é uma coisa a parte, um comentário, ela é “agora é a hora da

música”, não tem uma mistura, né? Eu sou mais interessado na

mistura. Bom, eu sou interessado num teatro que seja todo

cantado, começa por aí. Então, já se confunde mesmo, já

mistura mesmo.

I – A Barafonda não é sempre música, mas me parece que ela

apresenta uma música que não se interrompe.

L – Na Barafonda eu acho tudo bem integrado. Você sai da

música pro texto, do texto pra música, é uma coisa bem... você

não faz a quebra brechtiana. Você está meio que num mundo

só, em que ora você fala, ora canta, mas é quase a mesma

coisa. Está na ideia original do projeto, né? O coro. E a gente

foi fazendo isso sem elaborar muito, sem ter esse pensamento

de “vai ser tudo música”, sabe? O texto é muito assim. Mesmo

o texto da rádio, que é um texto de locutor de rádio, é um texto

diferente, está em um outro grau de poesia, e tal... tudo tem

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uma frase bacana, tem essa potência musical. Não se pensou

em separar.

I – E você vê diferença na composição da música que é feita

pra rua, como a da Barafonda, e para sala, como a da Stela?

L – Não completamente, porque você não consegue ter

controle de tudo. Mas de, então, estudar isso: que música pra

rua? Porque, na Barafonda, eu sabia que seria um espetáculo

de rua, mas não a que nível, o quanto iria ser na sede, o quanto

iria ser na rua. Isso não estava previsto, né? E, também, se a

gente iria cantar no gogó, ou se teria microfone, com fio, sem

fio... porque tem várias situações, lá. Isso também é uma

questão complicada, tecnicamente. É um desafio. Eu acho legal

ter microfone sem fio, mas acho que valeria a pena prever e

estudar como fazer. Então decidiram ir pra rua no gogó. Então,

que músicas cantar no gogó? Porque é diferente. A música do

Dionísio, que é uma música de rua, do Dionísio e do coro, seria

impossível ele cantar no gogó esse tipo de música. Teria de

fazer... primeiro ele teria que realmente ter uma voz pra isso,

cantar mais no agudo, mais pra fora. Ali é um samba, com

aquela malandragem do samba, não tem como. Mesmo que ele

fosse um puta cantor, não é a música pra isso. Precisa

amplificar, precisa colocar um microfone. Esse é um assunto

que valeria a pena, num próximo processo, a gente estudar

mais previamente. Porque a gente foi fazendo, né? Foi

fazendo, fazendo, fazendo, à medida que aparecia a

necessidade, e tal. Não teve tempo de estudar. Teve um tempo

de experimentar, mas eu gostaria de estudar mais isso. Porque

aí, cada processo é um. Isso significa que é um tipo de elenco,

um tipo de lugar, de teatro. Isso tudo influencia. Acho que vale

a pena, agora, que a gente está ficando mais maduro, mais

velho, estudar mais isso, a situação. Ter um pouco mais de

clareza sobre como é o ambiente, o espaço que a gente vai

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ocupar, e aí, então, ver qual é a música pra isso. Uma coisa é

fazer na sala, outra coisa é fazer na rua. É completamente

diferente o resultado. Agora, te dizer como é a música de um

lugar e como é a música de outro, aí eu não tenho uma resposta

pra isso, não. Só tentativa e erro. E também, às vezes, a gente

acha que não dá certo, e vai mexendo, mexendo, e acaba

dando. É misterioso, assim, no fim das contas.

I – Você pensou em referências para compor a música da

Stela?

L – Não, referencias pontuais, não. Na Stela eu quis afastar

qualquer referência mesmo, que você pudesse dizer “isso é sei

lá o quê”... e aí, quando você faz só piano e voz, você não

caracteriza mesmo muito. Tem uma música lá que eu digo que

é um batuque, mas ninguém vai entender como um batuque,

porque não tem tambores, e tal, então não dá pra você ter essa

referência. E na Stela eu quis muito trabalhar com poucos

acordes e não usar as cadências clássicas, né? De dominante e

tônica. Evitar esse tipo de coisa. Então eu chamei pra mim um

pouco do pensamento esquizofrênico, que vai de um acorde pro

outro sem relação, e volta. Ou então vai para um terceiro. Criar

essas relações que não são tonais. Que acabam sendo outras.

Geralmente tem uma ambiguidade, sobretudo as primeiras

músicas que têm uma ambiguidade maior/menor, e que nunca

se resolvem, porque a harmonia não escreve isso mesmo, então

cria outras relações. O trecho da entrevista é bastante isso: tem

uma pergunta, e ela muda de ideia e canta uma outra melodia, e

mais pra frente ela pode voltar pra esse material temático, mas

nunca é exatamente igual, porque os versos não são iguais, não

são métricos, não têm rima, e tal. Então isso é uma coisa que

me interessa muito, trabalhar com temas, com motivos, e ir

desenvolvendo um pouco, ali no ritmo do texto ou da cena.

Isso eu acho bem teatral. Bem interessante. Porque, aí, você

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fica exatamente entre o recitativo e a ária. Pensando

musicalmente o recitativo como uma coisa que está mais ali no

ritmo da fala, que não tem tantos saltos melódicos, ele não é

lírico, né? Mas, ao mesmo tempo, tem elementos da ária

porque é temático, né? Ele tem temas musicais, tem motivos.

I – Você diz que em ambos os espetáculos tem essa junção?

L – Tem. O Barafonda tem especialmente em algumas

músicas, nas músicas maiores: na música do Dionísio, na da

rotatória... a música da rotatória ela é sempre Am / D7, essa

cadência, e vai subindo de tom em tom. E tem umas duas ou

três melodias que se encaixam aí nessa cadência, que é muito

simples, mas sempre vai variando, porque a resposta é sempre

de um jeito, o coro, e tal. E vai subindo de tom à medida que a

cena vai ficando mais tensa. É uma ideia bem simples, fica

sempre nessa roda, rodando essa cadência dos dois acordes.

Sobretudo nessas três músicas, e na música das Iós, também,

ali em frente à sede. A música das Iós poderia ser uma música

da Stela. Eu fiz totalmente assim... não tem essa cadência na

Stela, não tem esses dois acordes, são outros dois acordes, mas

é a mesma ideia de ter dois acordes que não definem qual é o

tom, e em cima só desses dois acordes, tem três ou quatro

melodias, e elas falam algumas coisas com isso.

I – Qual é a diferença de compor para um espetáculo que você

mesmo irá tocar, e pra outro que outros músicos tocarão?

L – Eu tenho feito um esforço de não tocar, porque, primeiro, é

muito trabalho, né? Porque não dá pra tocar e fazer a direção

musical. Primeiro problema. A não ser no caso da Stela, que é

muito concentrado. É importante estar de fora. Pra fazer a

direção, você tem que estar de fora, em alguma medida. Eu

tenho achado muito mais eficiente quando tem músicos e eu

faço a direção musical, embora eu goste bastante de tocar,

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também. Mas acho cada vez mais complicado fazer essas

coisas todas.

I – E são processos de direção bem diferentes. Na Barafonda

tem essa ideia da colaboração, de processo colaborativo, que

você se utilizou um pouco dela na sua direção. E na Stela, a

direção era sua e da Georgette. De cena a da Georgette, e sua a

da música, né? E os dois diretores estavam em cena.

L – Na Stela, a gente fala direção porque tem que ter um

diretor, né? A gente foi lá e fez. Não teve uma direção. A

direção, a gente dá a cada dia. Na verdade, é isso. Nunca teve

um ensaio da Stela. A Georgette aprendeu as músicas e a gente

foi fazendo. O que mais teve de direção foi a luz. O que mais

teve de desenhado nele. Cada cena tem uma luz, então, a luz

acompanha a Georgette, mas tem um desenho pra cada cena. E

um roteiro. A gente tem a sequência das músicas. O máximo

que a gente fez de direção foi fazer um roteiro. O resto era o

dia a dia. O produto de cada dia, mesmo.

I – Mas será que vocês assinando a direção não tenham mais

propriedade disso, mais liberdade de improviso do que se

tivesse um outro diretor?

L – É que na Barafonda, com trinta atores, você tem um limite

de improvisação, né? Por mais que você queira, se não... tem

essa dupla coisa mesmo. Está sempre se trabalhando o sentido

da cena, a posição do ator, e tal, mas nunca se marca. Não tem

marcação, tem uma liberdade dentro dessa coisa. Sobretudo no

final, no Largo da Banana, que é uma cena de festa. Quer dizer,

os atores precisam estar naquele clima de festa, interagindo

com o público, contando história. Mas eu queria pensar numa

coisa assim como é a Stela, nesse sentido do improviso, mas

um pouco mais amplo, com três atores e três músicos, sei lá.

Eu acho que é possível fazer. Improvisado, com um roteiro, ou

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mesmo sem roteiro. Acho que dá pra fazer, bem improvisado.

Com umas ideias básicas, com um roteiro básico, porque aí

você tem muito mais jogo, também, né? Eu sou um pouco

preguiçoso pra pensar em coisas mais fechadas. Eu queria uma

relação de música e cena mais interessante, mais arrojada,

nesse sentido de... eu acho que a palavra é improviso mesmo.

Tudo que a gente pode improvisar. Mas, ao mesmo tempo

contar uma história, ao mesmo tempo não vai ser uma jam, vai

ser teatro. Como fazer teatro e música, teatro musical, mas

tendo esse componente do improviso, da improvisação forte.

De que maneira você consegue fazer isso. Posso fazer isso

num grupo, além de duas pessoas, como é na Stela, ou três.

Mais músicos e mais atores em cena.

I – Você acha que o leitmotiv pode ser um recurso de

dramaturgia musical?

L – Eu acho que sim. Eu sempre penso em organizar a música

por aí, por pequenos motivos, por pequenas ideias. Se você for

ver, Wagner não é nada além disso também. São trinta,

quarenta motivos, mas são motivos pequenos. Tem que ser

pequeno, mesmo. E é muito diferente da ideia da canção, sei lá,

pensar em A ópera do malandro, as canções do Chico são

lindas, geniais, mas não tem uma unidade. Bom, A ópera do

malandro é uma ópera brechtiana mesmo, né? Uma ideia

brechtiana. Na Barafonda, foi meio como foi indo. Às vezes eu

conseguia repetir alguma coisa, repetir alguma ideia. Mas é por

isso que eu estou sempre querendo, num próximo processo,

“vamos pensar antes, vamos compor antes, vamos, pelo menos,

organizar algum material antes, que vai nos ajudar na

experiência de campo mesmo”.

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