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IX ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DE DEFESA 06 a 08 de julho de 2016, Florianópolis, SC UFSC Área Temática 2: Ensino, Formação Profissional e Pesquisa em Defesa O TRADICIONAL BANHO DE PISCINA ETNOGRAFIA DE UMA TRADIÇÃO INVENTADA NO COLÉGIO MILITAR DO RIO DE JANEIRO FÁBIO FACCHINETTI FREIRE PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

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IX ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DE DEFESA

06 a 08 de julho de 2016, Florianópolis, SC – UFSC

Área Temática 2: Ensino, Formação Profissional e Pesquisa em Defesa

O TRADICIONAL BANHO DE PISCINA – ETNOGRAFIA DE UMA TRADIÇÃO

INVENTADA NO COLÉGIO MILITAR DO RIO DE JANEIRO

FÁBIO FACCHINETTI FREIRE

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

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RESUMO

Os alunos dos Colégios Militares não são militares. Eles estão sujeitos ao ethos dessa

categoria profissional (“estão militares”) enquanto cursam a educação básica em uma das

treze unidades escolares distribuídas pelo Brasil. Esta condição única, de educandários

militares que não formam profissionais, tem enorme valor heurístico para investigar a

formação na caserna, a reprodução de seus valores, justamente pelo tipo peculiar de conflito

que surge na fronteira dos dois mundos – civil e militar –, com suas linguagens, costumes,

valores distintos, quando postos em tangência propedêutica. Este artigo extrai uma questão,

dentre diversas, trabalhada como etnografia em tese defendida recentemente: o percurso de

uma prática indisciplinar nascida dos discentes do Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ) –

o banho de piscina dos alunos fardados do terceiro ano – até sua cooptação como uma

“tradição” pertencente ao cerimonial militar. Se o objeto pesquisado demonstra potencial como

um locus de práticas que não são autênticas, porque mimetizadas das escolas de formação

(a Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN –, principalmente), mas que se querem

legítimas, porque reguladas pelas mesmas normas que norteiam a reprodução da categoria

castrense, também a metodologia merece destaque: trabalhou-se com a Teoria do Ator-Rede

(TAR), valorizando, como atores, os itens identitários que “montam” o militar: sua farda, seu

gestual, sua linguagem, etc. Isso permitiu investigar os usos desses itens, pelos alunos, como

apropriações e ressignificações que permitem, não uma relação conflituosa, mas um tipo

criativo de convivência negociada entre todos os atores, civis e militares.

PALAVRAS-CHAVE

sociologia da educação; sociologia dos militares; sociologia do ensino militar; antropologia dos

militares; teoria do ator-rede; contemporaneidade.

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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo extraiu um item trabalhado na tese em ciências sociais defendida em

setembro de 2015, na PUC-Rio, com o título: “Estamos alunos: um estudo sobre a identidade

contemporânea dos alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro” (CMRJ), cujo objeto inicial

foram os discentes daquele colégio, em sua complexa relação estabelecida com o Exército

Brasileiro, nos idos do século XXI.

O trabalho propriamente etnográfico da tese constou do acompanhamento do ano letivo

de 2014, em especial daquelas cerimônias entendidas como fundamentais dentro da rotina

escolar: entrada dos novos alunos (dividida em duas partes: a entrada propriamente dita e a

entrega da boina garança); aniversário do CMRJ; saída dos alunos formados no 3º ano. Foram

descritos os principais itens identitários que “montam” o militar (peças de fardamento;

linguagem; expressão corporal; etc.) e, principalmente, as maneiras excepcionais por meio

das quais os discentes vivenciam o uso desses componentes da identidade castrense, em

seu cotidiano de estudantes. O “banho de piscina fardado” extraído para este artigo teve o

mérito adicional de, além de participar do rol de apropriações e ressignificações realizadas

pelos alunos, ter sido “retomado” pelo comando do Colégio, sob a forma de uma tradição

inventada (HOBSBAWM e RANGER, 2012), e incorporado no cerimonial dos formandos do

3º ano do Ensino Médio (3ºEM).

A proposta inicial da tese desdobrou-se em outras possibilidades investigativas, tais

como a de que a condição ímpar (dentre as escolas do Exército) dos Colégios Militares e de

seus alunos – que não são militares, mas, de certa forma, estão militares –, favorecesse a

compreensão da formação castrense.

Sobre a orientação teórico-metodológica da pesquisa, destacamos o emprego da Teoria

do Ator Rede (TAR), dentro do que LATOUR (2012) chamou de uma “sociologia das

associações”. Evitando lançar mão de referenciais teóricos prévios1, buscando uma descrição

minuciosa que contemplasse igualmente todos os atores (humanos e não humanos), aqui

tratados como actantes2, a etnografia seguindo a TAR se mostrou propícia a incluir, em

interação, alunos e militares; peças de fardamento; normas e regulamentos; gestos corporais;

bem como releituras, tais como usos desviantes do fardamento ou de peças proibidas;

“golpes” e omissões; gingas e gírias.

1 “Mas você já viu algum pintor que inicie sua obra-prima escolhendo primeiro a moldura? (...) A moldura

faz a pintura parecer mais bonita, atrai o olhar, aumenta o valor, permite a datação da obra – mas não acrescenta nada à pintura em si. A moldura, ou contexto, é justamente a soma de fatores que não faz diferença para os dados, não altera o que se sabe deles” (LATOUR, 2012, p. 208-9). 2 “Proponho chamar de actante qualquer pessoa e qualquer coisa que possa ser representada” (LATOUR, 2000, p.138).

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2. O CMRJ E OS DEMAIS COLÉGIOS MILITARES

2.1. Antecedentes

Iniciamos na Guerra do Paraguai (1864 – 1870). Naquela contenda de uma instituição

incipiente, permaneceram características do Exército Português, tais como o cadetismo3 e a

estruturação hierárquica baseada nos privilégios de nascimento, ao invés da estruturação

meritocrática. Tal estruturação garantiu ampla presença de portugueses na oficialidade, bem

como dispensou, como acontecia em Portugal, a formação acadêmica desse segmento.

Interessa-nos enfatizar o quanto a Guerra expos as carências de uma Força Armada não

profissional e o quanto inaugurou uma demanda que modificou, profundamente, a instituição

no último terço do século XIX. Dela emergiu o Exército que se disse republicano e, no intuito

de entender melhor seus imaginário, identidade, valores, tradição e símbolos, recortamos o

tratamento dado à memória desse evento.

O Exército que voltou vitorioso cobrou melhores condições para sua existência. Em um

esquematismo didático, comparamos o que seria um primeiro exército – não profissional,

monárquico, sem formação acadêmica, aristocrático e mais velho – com outro – buscando a

profissionalização, de ideais republicanos, com formação acadêmica, meritocrático e mais

novo4. Neste conflito, saiu vencedor o segundo; apesar disso, o Exército republicano em

busca de profissionalização guardou muito dos costumes, dos símbolos, das relações

pautadas na tradição monárquica e na cultura portuguesa, principalmente após a reforma do

ensino promovida pelo Marechal José Pessoa.

2.2. A criação do CMRJ

Segundo CUNHA (2006), a criação de instituições asilares foi um movimento

internacional da segunda metade do século XIX. Lembramos que estas criações se

enquadram como “instituições totais” (GOFFMAN, 2001), no que se destinavam ao isolamento

de certos tipos de pessoas (velhos, cegos, órfãos, indigentes). A esfera militar estava sujeita

ao mesmo pensamento, o qual embasou a criação do Asylo dos Voluntários da Pátria, em

1868. Como instituição destinada prioritariamente aos militares, já reconhecidos como

desfavorecidos – situação essa que a Guerra do Paraguai em curso referendava –, o Asylo

foi financiado por subscrição popular, concretizando o pensamento assistencialista que veio

3Cadete é o título nobiliário criado por Dom José I em 1757, reabilitado pelo Marechal José Pessoa em sua reestruturação da formação militar. Recebe este título o aluno do primeiro ano da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em formatura em que lhe é entregue o espadim – réplica do sabre de Caxias – como confirmação de sua situação de militar. 4 Sobre este conflito, ver: CARVALHO (2005) e CASTRO (1995, 2002 e 2012).

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crescendo em relação ao Exército desde o período regencial: já o regente Araújo Lima,

Marquês de Olinda, em decreto de 1840,

“procurou estabelecer no Arsenal de Guerra da Corte um colégio para os filhos necessitados dos capitães e oficiais subalternos do Exército, medida extensiva a todas as províncias onde houvesse arsenais com estabelecimentos de aprendizes menores” (CUNHA, 2006, p.88).

Ao mesmo tempo em que, desde essa época, emergiu a ideia de criação de um colégio

para os filhos dos militares em uma perspectiva filantrópica, essa ideia se foi impregnando do

teor preparatório, entendido como a finalidade de reprodução do estamento militar

principalmente a partir dos seus próprios quadros (reprodução endógena).

Quando da proposta do regente Araújo Lima, a formação militar não se encontrava

regulada por legislação que impusesse escolaridade e formação específica ao futuro militar.

Essas se deram com a reforma de 1850, que normatizou a progressão hierárquica e inseriu a

formação acadêmica como necessária para as promoções. Sobre a necessidade de uma

formação específica para um “fazer militar”, citamos:

“A escola é, na realidade, uma instituição onde se ensinam as ciências físico-matemáticas em grande escala; (...) mas, por ventura, os moços que saem com carta do curso completo da escola são verdadeiros oficiais? (...) Não convirá que os oficiais, quando saírem das escolas, saibam tudo quanto diz respeito à sua arma? Poderão eles ter essa instrução pela teoria somente que se ensina na escola?” [Resposta do Ministro da Guerra Manoel Felizardo ao Deputado Ângelo Ramos, membro da oposição liberal ao governo conservador]5.

Amadureceu a ideia de um colégio que, mesmo se valendo do apelo assistencialista

mais geral, viesse a preencher o vazio de formação provocado pela ausência do nível escolar

médio no Brasil. “Preparatórios” eram escolas cujos cursos, de extensão variada, preenchiam

os pré-requisitos necessários ao acompanhamento do nível superior. Assim, um colégio militar

prepararia, principalmente dentro do universo de dependentes de militares, candidatos à

Escola Militar, viabilizando a melhora da formação intelectual desses quadros.

Espelhado no modelo francês (Prytanée Militaire de La Fleche), foi criado em 1889 o

“Imperial Collegio Militar”, com o objetivo de “proporcionar aos filhos de militares ou àqueles

que desejarem seguir a carreira das armas os meios de receberem instrução, que em poucos

anos lhe abra as portas das Escolas Militares do Império”6.

Prevaleceu, assim, o ensino preparatório sobre o assistencial7. Sendo aquele destinado

às escolas militares, militarizaram-se as práticas educativas dentro do colégio, na intenção de

5 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 31/05/1851, apud CUNHA, 2006, p.94. 6Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na quarta sessão da vigésima legislatura pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra Thomaz José Coelho de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. Apud CUNHA, 2006, p.137. 7 Sobre o conflito existente entre os ensinos preparatório e assistencial, em especial no CMRJ, ver: FREIRE (2007a, 2007b)

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um Exército que pretendia se profissionalizar8. Atesta essas características o depoimento do

aluno Nelson Werneck Sodré (1967, p.6), que lá estudou de 1924 a 1930:

“Porque o Colégio Militar não honrava o nome apenas na forma das edificações: o seu regime era integralmente militar. A administração era constituída por oficiais da ativa – só o general-comandante era às vezes da reserva (...). Os alunos eram grupados em Companhias, comandadas por capitães. Austero o regime, severíssimo. Os professores eram militares da reserva ou civis que tinham honras militares e ministravam as aulas fardados (...). Os trabalhos eram marcados por toques de corneta e por campainhas; tudo se processava em ordem e silêncio. Enquadrados pela instrução militar, desde o primeiro dia, os alunos portavam-se como soldados (...). Os exercícios militares eram diários (...). Diariamente havia formatura geral (...). O comandante com a oficialidade recebia a continência da tropa.

Fez-se presente desde o início a característica meritocrática de distribuir símbolos

(insígnias, medalhas) que evidenciam o mérito. Estes, porque carregados no próprio uniforme,

permitem a diferenciação entre os alunos por seu resultado intelectual9. Como herança

jesuítica10 imiscuída na meritocracia positivista, a hierarquização pelo rendimento escolar

passou a organizar o corpo discente no CMRJ. São distribuídos postos e graduações ao longo

de todos os anos de curso aos alunos que se destacam, de tal maneira que passam a existir

cabos e sargentos-alunos nas primeiras séries e um coronel-aluno no último ano. Sobre a

hierarquização meritocrática, nos diz FOUCAULT (2000, p.151):

“A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição”.

Gestado por mais de cinquenta anos nasceu o CMRJ, entre o fim assistencialista e o

preparatório, tendo, hoje, uma finalidade assistencial como único objetivo à sua manutenção.

Ao longo dos cento e vinte e sete anos seguintes, a rede de colégios estendeu-se ao total de

8Lembramos o quão é recente a definição de “práticas militares” em relação às pedagógicas. Mesmo as escolas militares voltadas à formação da oficialidade, ao longo do século XIX, não cumpriam uma rotina entendida, nos termos de hoje, como “militar”. Para isso colaborava a mistura entre formações destinadas à caserna com outras, como a de engenheiro civil. O crescente processo de profissionalização que se dá a partir da reforma de 1850 e que se desenrola no conflito entre “doutores” e “tarimbeiros” vai impondo costumes e comportamentos tipicamente castrenses dentro das escolas militares, tais como o uso dos uniformes, as formaturas, as sessões de ordem unida, etc. 9É interessante observar que o desejo pela diferenciação no uso dos uniformes (“des-uniformização”) leva às tentativas de institucionalizar outros símbolos para uso cotidiano: alunos que fazem parte de grêmios, que são monitores escolares, que são atletas ou tocam na banda escolar, querem o direito de usar nas fardas indicativos dessas particularidades. E é interessante observar, também, que a instituição oscila entre formalizar as diferenciações que entende como pertinentes, permitindo a criação e utilização de broches, bordados, placas e outros adereços, e reprimir, em outros momentos, a multiplicação dessas particularizações, porque elas acabam por contradizer, obviamente, o sentido de se usar uniformes. 10Sobre a prática do disputatio formalizado no plano geral dos jesuítas em 1599, com o nome de Ratio Studiorum, ver SAVIANI, 2007.

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13 unidades, como se segue: Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA – 1912); Colégio Militar

de Fortaleza (CMF – 1919); Colégio Militar de Belo Horizonte (CMBH – 1955); Colégio Militar

de Salvador (CMS – 1957); Colégio Militar de Curitiba (CMC – 1958); Colégio Militar do Recife

(CMR – 1959); Colégio Militar de Manaus (CMM – 1971); Colégio Militar de Brasília (CMB –

1978); Colégio Militar de Juiz de Fora (CMJF – 1993); Colégio Militar de Campo Grande

(CMCG – 1993); e Colégio Militar de Belém (CMBel – 2016).

2.3. O Marechal Pessoal e a criação do passado do Exército

O Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque nasceu em 1885 em Cabaceiras,

interior da Paraíba. Em 1903, ingressou na Escola Preparatória e de Prática do Realengo, Rio

de Janeiro. Com o fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, cursou sua

formação de oficial em Porto Alegre. De sua atuação destacamos o período de três anos que

passou na Europa, em estudos, quando – segundo CÂMARA (2011) – amadureceu a visão

de um Exército ligado à sua história, referenciado em suas tradições, e, ao mesmo tempo,

não descuidado dos avanços tecnológicos.

A partir de 1931, comandando a Escola Militar do Realengo, implementou um vasto

conjunto de códigos centralizados na figura do Duque de Caxias. O então coronel partiu da

idealização das virtudes do Duque de Ferro para implementar um programa de formação

afetiva que norteia o Exército até os dias de hoje:

“A aplicação dessa forma ideológica resultaria na prática de um conjunto de ações educacionais de natureza predominantemente afetiva. A adoção dessas ações, por seu turno, conduziria à consciência da valorização moral, ética, intelectual e profissional do futuro oficial. Em primeira instância, atingiria o espírito militar do próprio cadete; em círculo maior, o coração e a mente do público interno do Exército e, de forma mais abrangente, o coração do público externo do Exército, na fixação do significado do valor nacional do papel do oficial, o qual chegou a entrar para o vocabulário popular com a expressão ‘Caxias’ para designar pessoa de comportamento correto e mesmo rigoroso consigo e com o trato das coisas públicas na sociedade brasileira” (CÂMARA, 2011, p. 89).

Tendo em mãos o principal centro disseminador da cultura do oficialato, que é a escola

de formação, o Marechal estendeu sua preocupação, não só por símbolos planejados e

implementados, mas por um rol muito mais extenso – e sempre coerente – de componentes,

os quais podemos enfeixar como uma “disciplina militar”11 até então inédita.

11“Disciplina” que ele opunha à “politica”: se a primeira une, a segunda divide (CASTRO, 2002): “Não sou político. Não quero ser. A nossa maneira de fazer política tem sido a gênese de muitas infelicidades para o país (...) Ao assumir esse comando, reuni mestres e cadetes, advertindo-os de que seria desaconselhável o trato de assuntos em desacordo com a disciplina militar, separando-me completamente dos políticos. Só não chamo a isso um divórcio porque nunca estivemos juntos. Não se deve inferir daí que eu os condene. Absolutamente (...) Mas a política, para os políticos e mais ninguém” (MARECHAL JOSÉ PESSOA apud CASTRO, 2002, p.41).

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Nos idos do fim do Império e da República Velha se estabeleceu um ethos de extrema

exigência intelectual para os alunos, o qual, em relação com toda a simbologia meritocrática

que o Exército do século XX adotou, justificou o caráter elitista dos Colégios (porque

preparatórios), em contraposição a sua destinação como escolas assistenciais. Foge ao

fôlego esmiuçar os principais itens da reforma simbólica do Marechal Pessoa, que foram: o

título de cadete12;

os uniformes13, o brasão do cadete14, o espadim15 e o Corpo de Cadetes16.

3. O BANHO DE PISCINA

Este é o cenário do qual partimos: um Colégio centenário que nasceu em um contexto

assistencialista (das instituições asilares foucaultianas); que, apesar do discurso filantrópico,

se tornou a grande via preparatória para o ingresso na oficialidade do Exército; que, por esta

destinação preparatória, absorveu toda uma constelação de itens identitários organizados na

12“No sentido militar do termo, ‘cadete’ era o filho destinado às Forças Armadas para exercer postos de mando, em nível de oficial. Em 1757, passou a ser adotado em Portugal unicamente com sentido militar; representava o filho mais velho do nobre, a serviço do rei. Com a vinda da Família Real portuguesa para sua colônia na América, foi introduzido no Brasil” (CÂMARA, 2011, p. 91). Retomado pelo Marechal, o título – agora transitório – passa a representar um conjunto de valores associados à Caxias (“cadetes de Caxias”) que o aluno da escola militar deveria cultuar. Não mais associado ao berço, mas ao mérito – “(...) outorgado não pela nobreza hereditária, mas pela nobreza da inteligência, da cultura e da formação moral, baseada na integridade, na probidade, na honestidade e na lealdade” (CÂMARA, 2011, p.93). 13 Até então, o fardamento dos alunos não se distinguia do geral das fardas do Exército. Coerente com seu plano geral de distinção para valorização dos cadetes, o Marechal propôs um vestuário que os tornasse inconfundíveis e reestabelecesse seus liames históricos, notadamente pelos atributos e emblemas da indumentária militar, tudo enquadrado nos mais severos princípios da heráldica (CÂMARA, 2011, p. 93). Amparado nos uniformes de 1852 a 1860, os aspectos de tecido, corte, cor e adereços implementados na década de 1930 remetem a valores do passado e que foram defendidos em diversas vezes, tempos depois, como fundamentais à preservação da identidade da Força Armada. 14 “(...) um escudo orlado de azul-turquesa, tendo em campo de ouro o perfil estilizado das Agulhas Negras e, em abismo, uma torre de ouro. O mote inicial ‘Escola Militar’ posteriormente foi substituído por Agulhas Negras, em azul fitão em ouro; a estrela representativa da Escola, em ouro na parte inferior, lanças e fuzis em riste e um canhão por trás do terço inferior do escudo, por sua vez emoldurado com folhas de carvalho em sua própria cor” (CÂMARA, 2011, p.99). 15 Réplica em tamanho menor da espada usada pelo Marechal de Ferro na pacificação de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (1842 – 45), no comando contra Oribe e Rosas (1851 – 52) e na Tríplice Aliança (1865 – 70). O espadim é entregue em cerimônia de confirmação aos cadetes do primeiro ano, e devolvido à AMAN na primeira parte da cerimônia de declaração de oficiais, no quarto ano. O ato de recebimento é acompanhado de um juramento solene que enfatiza a pedagogia patronímica: “Recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar”. 16 Sua criação objetivou distinguir em um organismo próprio o que estava diluído, na forma do “corpo de alunos”, dentro do estabelecimento de ensino. No “Corpo de cadetes” – criado em 25 de agosto de 1931, com a presença do chefe do governo provisório, Getúlio Vargas – o Marechal José Pessoa passou a ter melhores condições para implementar o código de valores desejado, de controlar hábitos e comportamentos pela manutenção da disciplina. Esta disciplina deveria ser garantida pelos próprios cadetes, agora escravos de sua dignidade pessoal. Como mais um símbolo, o corpo de cadetes possibilita certo sentimento de pertença aos que nele ingressam, se mantêm e dele saem habilitados ao oficialato, fazendo parte de todo esse projeto de “aristocracia do mérito” buscado pelo Marechal.

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década de 1930, pelo Marechal José Pessoa; e que, nos dias de hoje – quando não mais se

confirma sua prioridade como via de acesso privilegiado à formação castrense – mantém a

mesma identidade para um público diferente. A “prática indisciplinar” apresentada a seguir

ilustra a complexa relação de ressignificação e apropriação estabelecida entre os alunos de

hoje no CMRJ, e os itens identitários postos a serviço da reprodução do ethos militar.

3.1. Primeiros banhos

Em 2002, o comando do CMRJ tomou

conhecimento de uma brincadeira dos

formandos: pular fardado na piscina, após o

término do ano letivo17. Como transgressão

disciplinar – um paradoxo, posto que os

discentes não eram mais alunos de fato –, a

travessura foi reprimida segundo a pior

interpretação possível: uma afronta aos

símbolos do Exército representados no

fardamento; uma desonra ao compromisso

assumido pelos discentes; uma vergonha que não poderia ser permitida, contra o nome e a

tradição do CMRJ. Reagindo a esta leitura da comemoração dos estudantes, o comando

determinou que os soldados da CiaCSv (responsáveis pela manutenção e segurança das

instalações) cercassem a piscina, para impedir o banho coletivo. A medida, visualmente

traumática – soldados barrando alunos!?! –, foi bem pouco efetiva: alguns estudantes

conseguiram pular, em algum momento (porque era logisticamente impossível manter uma

guarda diuturna na piscina), e a grande questão por detrás, ainda que não formalizada

naquele momento – o que estes jovens estão pensando da farda que usam? Que valor eles

reconhecem nela? – seguiu censurada, subliminarmente.

O banho, sem uma liderança central, em um tempo em que as mobilizações ainda não

se davam apoiadas nas redes sociais, foi pretendido como um prenúncio dos flash mobs18

posteriores. Com pretensão “carnavalizadora”, materializou o momento em que os alunos se

17Colaborou para a exequibilidade da brincadeira o fato de que as provas finais do 3º EM terminam antes das provas dos demais anos, no intuito de que os alunos estejam em condições de competir nos diversos certames para ingresso no Ensino Superior. Assim sendo, os concludentes do Ensino Médio cumprem todas as obrigações necessárias à sua diplomação ainda no começo de dezembro (ou até antes), passando a ocupar uma espécie de “limbo” disciplinar: não são mais alcançáveis pelo regulamento e o CMRJ não detém o direito de reter-lhes nenhum documento (diploma ou histórico escolar), nem obstaculizar seu prosseguimento nos estudos. 18 “Flash Mobs são aglomerações instantâneas de pessoas em certo lugar para realizar determinada ação inusitada previamente combinada, estas se dispersando tão rapidamente quanto se reuniram. A expressão geralmente se aplica a reuniões organizadas através de e-mails ou meios de comunicação social, notadamente pelas redes sociais digitais” Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Flash_mob

Imagem 1: Banho de piscina, 2014 - momento I

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puseram a salvo das normas, regulações e

interditos seguidos ao longo dos anos. Não

guardou objetivo de afronta, crítica ou mínima

reclamação contra os uniformes: antes, foi

uma explosão de pluralidade, ainda que

recatada, frente à subsunção imposta pelo

fardamento.

Em 2004, o fim de um ciclo de comando

e início de outro – evidenciando o efeito de

desconstrução que a sazonalidade detém

contra a perenidade das tradições – trouxe uma radical mudança no tratamento dado ao

banho, que começara a ser esperado pelos terceiranistas quase como uma festividade do

calendário escolar: o comando determinou que, se era para haver o banho, que ele fosse

conduzido pelo próprio comandante. Existe uma rica complexidade nesta decisão, sobre a

qual apontaremos alguns pontos principais:

Primeiro, o reconhecimento de quão pouco frutífera fora a oposição frontal à brincadeira;

se entendeu que o enfrentamento a valorizava, lhe dava corpo e arregimentava mais

discentes, além de ser uma publicidade negativa do CMRJ (lembremos que comandos são

vitrines para a avaliação dos comandantes, na expectativa de promoções futuras). Segundo,

que a cooptação da festividade deveria servir para esvaziá-la, ainda que houvesse o risco de

que esse esvaziamento abrisse espaço para alguma outra ideia mais radical e traumática, já

que o sentimento de livrar-se das normas permanecia intocado. Terceiro, que a ação de

chamar para si o comando da atividade esconde o fato de que ela nasceu iminentemente

“incomandável”, e formalizá-la seria, quando muito, um jogo de aparências para salvaguardar

os pilares da instituição militar: a hierarquia e a disciplina19. Parecer, enfim, que o CMRJ ainda

detinha algum poder sobre aqueles ex-alunos.

19 “As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei [sublinho meu]” (Estatuto dos Militares, art. 2º).

Imagem 2: Banho de piscina, 2014 – momento II

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3.2. A invenção das tradições

Hoje, mais de uma década passada do

início dessa transgressão festiva, fala-se,

incorporado ao discurso oficial, no “tradicional

banho de piscina dos alunos do 3º ano”. Como

mostram HOBSBAWM e RANGER (2012),

tradições são inventadas no interesse do

Estado ou mesmo de grupos sociais

específicos, para a manutenção da

identidade, coesão e estabilidade social,

frente às situações de rápida transformação histórica. É nesse sentido que a cooptação do

banho – iconoclasta, dionisíaco – pela instituição militar, reitera e reforça a imagem de coesão

e controle prestigiada pelo Exército, assim como (em outro exemplo que podemos trazer aqui)

a própria invenção dos itens identitários (principalmente, neste caso, o fardamento) pelo

Marechal Pessoa, sendo uma invenção de um passado idealizado, um passado de glória

querido pela pedagogia patronímica nascente, foi a escolha de uma história apropriada.

Ainda que concordemos, com CASTRO (2002, p.11), que não existe uma real oposição

entre tradições inventadas e “genuínas”, estando todas em processo de constante invenção

da cultura (tradição de invenção), cabe destacar essa solução conciliadora dada pelo

comando do CMRJ, no rol de inúmeras outras situações em que os alunos se apropriam e

ressignificam os itens identitários postos à sua disposição no cotidiano escolar.

3.3. O banho de piscina de 2014

As imagens deste capítulo sequenciam

o banho de 2014. Porque a transgressão foi

“estatizada”, os discentes já vêm para a data

trazendo boias, pés de pato e outros adereços

para o banho. Na imagem 1, transbordam

elementos da espontaneidade juvenil e uma

coleção de releituras, ressignificações e

apropriações criativas que, de nenhuma

forma, apontam para oposição ou rejeição dos

uniformes. Vemos culotes cor de pele que, de tão justos, parecem ausentes; cabelos soltos

Imagem 3: Banho de piscina, 2014 - momento III

Imagem 4: Banho de piscina, 2014 – momento IV

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sem coques ou redinhas; camisas fora das calças20. A expectativa do pulo, paradoxalmente

organizada, é um mostruário do apego livre pela farda, do amor singularizado pelas vestes.

Na segunda, boias ocupam o centro da cena. Lembrando dos detalhes a que chegam

as interdições dos uniformes – características dos cordões; cumprimento dos brincos;

tonalidade das unhas... – parece loucura a tolerância (ainda que não uma aceitação) com

salva-vidas roxos e azuis, além das boias de braço laranjas.

Na terceira, o uníssono do pulo. A aluna detentora do mais alto posto, a “coronel-aluno”,

puxou a “saudação colegial”: o “zum zaravalho”21. Em seguida, todos pularam juntos.

Na quarta, eles estão dentro d´água.

Adolescentes na festa de sua juventude.

Tubarões infláveis, colchões de ar cor-de-

rosa. Ao fundo, a plateia dos demais alunos,

antecipando sua reinvenção autorizada.

Na quinta, por fim, a consumação.

Alunos já saindo da piscina, tendo cumprido

seu ato livre de aceitação, nos próprios

termos, das regras, da história, da Pátria

vestida nos trajes. Os profissionais do

Colégio, circundando a piscina, garantiram a ordem e a segurança de seus estudantes.

20 Existem regulações precisas quanto ao uso dos culotes (calças específicas para os alunos da Cavalaria), dos cabelos, das camisas, das calças, etc. 21 “Consta que o então Tenente Japyr, instrutor de Educação Física e preparador das equipes esportivas do Colégio Militar do Rio de Janeiro, em 1928, durante o treinamento do time do futebol para o campeonato colegial, convidou alguns alunos a criarem um grito de guerra para estimular o grupo. Foi criada uma sequência de palavras, sem ordenação poética ou sentido explícito. A partir de então e com o uso contínuo, o grito tornou-se hábito e regra”. Esta é a versão mais consistente sobre a criação da saudação colegial. No fim dos anos 1990, durante a gestão do General de Brigada César Augusto Nicodemus de Souza (junto à Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial – DEPA, órgão de direção setorial dos Colégios Militares), responsável pela nacionalização de vários costumes nativos dos Colégios Militares mais antigos (Rio de janeiro, Porto Alegre e Fortaleza), em um processo, novamente, de invenção das tradições (HOBSBAWN e RANGER, 2012), o grito de guerra é instituído para as doze unidades do sistema, com a redação transcrita acima. Em suas “Memórias de um soldado” (1967), o General Nélson Werneck Sodré, aluno de 1924 a 1930, registrou o que seria um “antepassado” da saudação colegial: “A manifestação coletiva costumeira era o zum. Quando, no refeitório, o copeiro desajeitado deixava cair um prato, que se espatifava no ladrilho com barulho engrandecido pelo silêncio dos alunos, proibidos de falar, centenas de meninos, de boca fechada, faziam zum pelo nariz, e o zumbido ora crescia, ora baixava – e todos silenciosos, de olhos nos pratos, comendo. Acontecia, às vezes, qualquer coisa numa sala de aula ou de estudo, e era impossível saber o responsável; quando colocavam o problema, todos se acusavam” (p.13). Outros educandários do período registram gritos de guerra com a mesma função e durabilidade, como é o caso da “Tabuada” do Colégio Pedro II: “Ao Pedro II, tudo ou nada? / Tudo! / Então, como é que é? / É tabuada! / 3 x 9, 27 / 3 x 7, 21 / menos 12, ficam 9 / menos 8, fica 1 / zum, zum, zum / paratibum / Pedro II!”

Figura 5: Banho de piscina, 2014 - momento V

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4. APROPRIAÇÕES, RESSIGNIFICAÇÕES E A FORMAÇÃO MILITAR

Agora, vamos nos permitir um desvio um tanto longo do banho de piscina e de sua

apropriação pela instituição militar, na intenção de clarificar o que está em jogo na ruptura

(para o Exército) executada pelos alunos quanto aos itens que envergam, quando pulam na

piscina. Comecemos com o conceito de espírito militar. Em JANOWITZ (1967, p. 175),

“A profissão militar é mais que uma ocupação; é todo um estilo de vida. O oficial faz parte de uma comunidade cujas exigências sobre sua existência diária transcendem seus deveres oficiais. Com efeito, qualquer profissão que realize uma tarefa de ‘vida ou morte’, como a medicina, o ministério e a política, cria essas exigências. A missão fatal da guerra tem exigido que o oficial esteja preparado para abandonar sua rotina e compromissos pessoais de um momento para outro. Isso é óbvio e prosaico. Contudo, um pouco menos explícito é o fato de que qualquer profissão que se preocupe continuamente com a ameaça de perigo requer um forte senso de solidariedade para que possa funcionar com eficiência. A regulamentação minuciosa do estilo de vida militar tem o fim de realçar a coesão grupal, a lealdade profissional e manter o espírito marcial. Em boa medida, a doutrinação militar tem sido eficiente devido à comunidade relativamente fechada em que os militares têm vivido. Por sua vez, o estilo de vida da comunidade militar contribui para a autoconsciência e autoconfiança da elite militar”.

A ele reitera HUNTINGTON (1996):

“A direção, a operação e o controle de uma organização humana cuja principal função consiste na aplicação da violência é a qualidade peculiar do oficial” (p. 30). “Antes da administração da violência tornar-se a tarefa extremamente complexa que é na civilização moderna, era possível que alguém sem treinamento especializado pudesse exercer o oficialato” (p.31). “O ingresso nesse grupo [o oficialato] é restrito àqueles com educação e instrução indispensáveis e, geralmente, só é permitido pelo nível mais baixo de competência profissional. A estrutura corporativa do corpo de oficiais inclui não apenas a burocracia oficial mas também sociedades, associações, escolas, publicações, costumes e tradições. O mundo profissional tende a abranger uma proporção singularmente alta de suas atividades. Via de regra, ele vive e trabalha longe do restante da sociedade; física e socialmente, é provável que ele tenha menos contatos não-profissionais do que a maioria de outros profissionais. A linha que o separa do leigo ou do civil é simbolizada de público pelo uniforme e pelas insígnias do posto” (p.35).

É a situação de risco extremo – e a possibilidade de comprometer a própria vida – que

impõe características de segregação aos militares e aos seus familiares22.

Nossa referência principal para o conceito de espírito militar vem de CASTRO (1990),

que corrobora as conceituações anteriores, chamando a atenção para o papel crucial das

escolas de formação (em especial, as academias) na inculcação desse conjunto de valores,

atitudes e comportamentos. Este autor destaca os instrumentos postos a serviço desse

22Os exemplos elencados por JANOWITZ (1967) – medicina, ministério e política – parecem não distinguir o que seria o sacrifício da vida alheia do sacrifício da própria vida, no que a profissão militar se torna exclusiva.

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processo de subjetivação, tais como a alternação – uma forma particularmente intensa de

socialização secundária na qual “o indivíduo ‘muda de mundos’ e há uma intensa

concentração de toda a interação significante dentro do grupo” (BERGER e LUCKMAN apud

CASTRO, 1990, p.32). Ele também considera – ainda que com restrições – o conceito de

instituição total como em GOFFMAN (2001), sempre no intuito de explicitar que o espírito

militar demanda condições específicas para seu desenvolvimento. É importante lembrar que

ao Exército interessou, desde a República Velha e com mais intensidade a partir deste

período, influenciar a socialização do cidadão brasileiro, como mostra BAÍA HORTA (1994):

“Para Gaetano de Faria era necessário ‘fazer passar pelas casernas o maior número de cidadãos’; só assim o quartel tornar-se-ia a ‘escola da nação armada’. Segundo ele, na guerra, ‘os fatores morais têm mais influência do que os materiais’. Assim sendo, o soldado precisa mais do que instrução técnica – precisa de instrução moral’. Para o general, os pais e mestres são ‘agentes da sociedade’, encarregados em iniciar a criança no asseio na obediência, no respeito às conveniências, nos costumes e na grande lei do trabalho: ‘o papel que a sociedade civil confia aos pais e mestres, o Exército confia aos seus graduados, em cuja frente estão os oficiais’. Assim, o ideal seria que o regimento tivesse apenas que completar a obra começada pela mãe de família e continuada pelo mestre-escola’. Desta forma o Exército nada mais seria que ‘o prolongamento da escola’” (p.7).

Tudo isso converge para uma proposta que, inercialmente, se mantém nos Colégios

Militares. Por que “inercialmente”? Porque, ignorando a mudança das condições objetivas em

que os jovens vêm se inserir nos CM, ignorando as motivações segundo as quais os CM são

procurados agora, no século XXI, o Exército mantém, em boa parte, o conjunto de condutas

que funcionam em suas escolas de formação. O peso dessa história incrustada pelas paredes,

desses valores tatuados nos profissionais e dessa Pátria mimetizada nos invólucros

castrenses – pensemos nas fardas, mas também na linguagem restrita à caserna – mantêm

funcionando um grande dispositivo voltado à subjetivação do profissional castrense, porém

sem condições de concluir sua destinação. Não sendo nossa finalidade a listagem exaustiva

dos porquês dessa não conclusão, fiquemos com alguns tópicos, a título de exemplificação:

Porque os CM não detêm condições efetivas para administrar a ruptura de um tipo de

vida (a civil) para outro tipo de vida (a militar), como fazem as escolas de formação. Na

ausência dessas condições, fica parcialmente esvaziada, por exemplo, a finalidade da

cerimônia de admissão dos novos alunos (em suas duas partes: entrada e entrega da boina),

bem como se torna um simulacro – no sentido vulgar de falsificação – a “semana zero”, que

já pretendeu equivalência com a semana de adaptação das academias, na qual se choca,

pelo teste extremo, a disposição do cadete à permanência naquela escola.

Porque a sociedade, como um todo, afastou-se dos modelos que pautaram a

exemplaridade elogiada pelo General Gaetano de Faria. Se ainda encontramos pais que

valorizam a proposta pedagógica dos CM pelo que ela incrementa de ordem, disciplina e todo

um conjunto de valores da obediência, nem de longe esses responsáveis endossam, para

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seus filhos que pretendem que sigam a vida “paisana”, o ideário romântico preconizado na

pedagogia patronímica23.

Porque o conjunto dos profissionais incumbidos de, no cotidiano escolar dos Colégios –

em especial, do CMRJ –, operar com os dispositivos, não demonstra a necessária unidade de

pensamento, o mesmo consenso em torno do espírito militar, seja pela diversidade de suas

origens e formações (vieram das três Forças Armadas e das Forças Auxiliares), seja por

transformações – que não nos cabe investigar – em seus processos de formação. O que nos

remete a um desvio importante.

Existe um profundo consenso subliminar, um subentendido que perpassa a vivência da

caserna, sendo o grande vigia da qualidade do espírito militar. O conjunto das regras escritas,

por maior e mais detalhado que seja, não contempla o total das possibilidades,

particularmente no que concerne à comunidade dos Colégios Militares, com todas as suas

excepcionalidades. O subentendido se faz ainda mais necessário, como cola axiológica a unir

todas as ações em um mesmo mosaico coerente com a imagem veiculada pela Força Armada.

Mas é isso que vem a faltar, a ação eficaz do subentendido que normatiza nos pequenos

vãos deixados pela pluralidade, que arbitra a miríade de micro contendas brotando a cada

esquina, entre as salas de aula e os banheiros. Na falta deste subentendido – que é um

componente com o qual se pode contar nas escolas de formação –, germinam os interstícios,

os espaços de criação por meio dos quais os alunos se apropriam do campo simbólico

originalmente de posse do EB, e multiplicam-se as apropriações, as releituras e

ressignificações, não em uma confrontação, em um conflito – já que é difícil divisar uma

disputa entre forças –, mas aproveitando as linhas de inação, a estratégia bartlebyana de “não

agir” que parte da abstenção total para com as regras do jogo.

Assim é que essa pedagogia enaltecedora dos vultos históricos e de um passado

edulcorado, a qual tratamos de patronímica – prática esta que tem sua origem na areté

homérica, percorrendo a Idade Média e o romantismo do século XIX –, tão identificável nos

pavilhões batizados, nas mensagens de superação e de exemplo, nas letras dos hinos e

canções, nos “gritos de guerra” repetidos na Ordem Unida, encontra seus limites frente ao

público do CMRJ, limites que não traduzem, de maneira nenhuma, uma simples negação da

mensagem veiculada, mas a condicionante inegociável da adaptação dessa mensagem.

Porque não foi significativa a presença – ainda que existente – daqueles que renegam

o Colégio e que, simplesmente, não o amam. Posicionamentos revoltosos foram plotados,

porém considerados menos relevantes, frente às posturas que afirmaram o convívio pela via

23Também foge ao escopo deste trabalho vincular, de alguma forma, mudanças como essas ao que, por exemplo, SENNETT (2004), relaciona ao capitalismo sob o qual vivemos.

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da apropriação. Estas não endossam, ao pé da letra, a matriz axiológica que vertebra o

Exército, porém pinçam alguns componentes à la carte, para sua própria estruturação.

Outrossim, se viemos tratando da intencionalidade da formação proposta pelo Exército

(e, neste sentido, podemos afirmá-la como pedagógica24), temos de dedicar mais alguma

reflexão sobre esses actantes, os atores não-humanos, os dispositivos por meio dos quais o

CMRJ – emulando práticas formativas correntes nas escolas de formação – objetiva a

formação de certa identidade para os alunos dos Colégios Militares. Tratemos das fardas.

É claro que reconhecer as fardas como matérias de interesse25 – o que não está claro

para a Força Armada, já que esta procura se vincular a uma imagem de precisão e eficácia

(uma imagem de racionalidade moderna, portanto) – impõe considerar que outros sujeitos

nesta relação (lembramos – finalmente! – dos alunos) podem fazer a mesma leitura subjetiva

e almejar uma co-determinação singular para com seus uniformes. Apeguemo-nos a

expressão “co-determinação singular”. Se a identidade dos militares depende tanto assim da

sua exteriorização pela farda, sendo, neste caso, incontornável que esta expressão seja

única, uniforme e padronizada, como pensar em uma “co-determinação singular”, como um

“militar à la carte”, um militar ao gosto do freguês? Este é o impensável que acontece nas

releituras dos alunos. Precisaremos de uma longa colaboração de BOURRIAUD (2011):

“Como já foi dito, a reação de defesa mais comum consiste em exaltar a diferença na forma de substância: se eu sou ucraniano, egípcio ou italiano, preciso seguir, contra as forças de desarraigamento – maus ventos soprando não se sabe de onde –, tradições históricas nacionais que me permitam estruturar minha presença no mundo segundo um modo identitário. Oriundo de um contexto específico, cá estou eu fadado a perpetuar as antigas formas que me diferenciam dos outros. Mas quem são esses outros? É surpreendente constatar que, em última instância, a questão identitária se coloca de forma mais aguda nas comunidades imigradas nos países mais “mundializados”; as antenas parabólicas nos guetos comunitários, o encarceramento em costumes intransponíveis ao país de acolhida, os enxertos que não vingam... São as raízes que causam o sofrimento dos indivíduos: em nosso mundo globalizado, elas persistem à maneira desses membros fantasmas decorrentes de uma amputação, que suscitam uma dor impossível de combater, posto que causada por uma substância já inexistente. Em vez de opor uma raiz fixa a outra, uma “origem” mitificada a um solo integrador e uniformizador, não seria mais sensato apelar para outras categorias de pensamento, que nos são, aliás, sugeridas por um imaginário

24Pedagogia, em grego (“paidos agein”), se refere à condução da criança para a escola. Neste sentido, tem-se como pedagógica a ação educativa intencional, direcionada para algum objetivo. 25 No sentido das matters of concern, propostas por LATOUR (2004), em distinção às matters of fact. Este autor retoma, para entender o estatuto contemporâneo do design, sua discussão sobre a modernidade (1994), na qual atacou, como falsa, a separação entre cultura (subjetividade) e natureza (objetividade). O design, nos dias de hoje, se torna cada vez mais onipresente – tanto em compreensão (apropriação de mais e mais aspectos do que uma coisa é) quanto em extensão (uma diversidade cada vez maior de coisas) – e essa onipresença nos leva a uma realidade em que tudo tem a ver com design. Se tudo é pensado em termos de design, então a noção de objetividade – como separação entre seres humanos (de um lado) e objetos (os não-humanos, de outro lado) – perde seu sentido. Passamos da primazia das questões de fato, onde vigora a dicotomia “humanos x não-humanos”, para a primazia das questões de interesse, onde os objetos (distintos e apartados dos sujeitos) se tornam coisas (relacionadas aos “interesses” humanos; subjetivadas).

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mundial em plena mutação? Cento e setenta e cinco milhões de indivíduos no planeta vivendo um exílio mais ou menos voluntário, cerca de dez milhões a mais a cada ano, a banalização do nomadismo profissional, uma circulação sem precedentes de bens e serviços, a constituição de entidades políticas transnacionais: essa situação inédita não poderia ensejar um novo modo de conceber uma identidade cultural? (p. 18 – 19).

O Exército, ainda que em uma ação inercial iniciada no processo de sua reprodução

identitária nas escolas de formação – remetemos, sempre, à AMAN como exemplo definitivo

desse processo –, busca ancorar os discentes em costumes, valores e tradições que

personificam a instituição castrense. O que tomamos como um coletivo – a farda – e que

podemos abrir na plêiade de peças de uniforme, insígnias, gestos e linguagem privativos, etc.,

não são utensílios, no sentido estrito de objetos com funcionalidades, mas raízes – como

propõe BOURRIAUD (2011) – que vêm, cada uma, com seu próprio testamento para fixação

dos sujeitos. Senão, vejamos, em alguns exemplos.

As boinas garanças são sempre as mesmas, e obrigatórias. Seu uso é predefinido,

assim como os cabelos sobre os quais assentarão. Não é facultado achatá-las como pizzas

ou usá-las recuadas, como se usam certos bonés.

Os culotes distinguem – como prêmios! – os alunos de Cavalaria, e são folgados quando

não se estiver montando. Não importa o quanto as adolescentes, no fulgor de sua juventude,

os quiserem justos, delineando seus corpos.

Os brincos passam a ser tolerados porque as mulheres entraram no Exército; mas

apenas um – e discreto – em cada orelha. Nada de piercings de nenhuma espécie e em lugar

algum dos (sagrados) corpos.

Os exemplos desdobrar-se-iam ad aeternum. É fácil perceber que não se usa,

simplesmente, a farda, mas se adere a uma proposta subjacente (investe-se).

Os estudantes – naquela maioria que nos interessou por suas alternativas de

convivência – aprendem, em algum ponto de seus percursos como discentes, que o CMRJ

não tem o poder, sobre eles, que as normas parecem afirmar. Eles aprendem isso na

observação dos colegas mais velhos e dos interstícios, dos espaços de inserção das linhas

de inação, ou seja, aqueles vazios nos quais o texto canônico se omite, contando com um

subentendido que não se pronuncia.

Os alunos tomam para si os itens identitários, fazendo um uso seletivo – e, por que não

dizer, performativo26 – das memórias apensadas nesses itens. Não parecem declarar nada

contra o CMRJ e, por extensão, contra o Exército. Não se trata de contrapor uma raiz à outra.

Trata-se, antes, dessa ancoragem no ar, desse contrato em aberto, de manter-se em uma

26Aproximando do sentido que BUTLER (2003) atribui aos atos performativos de representação de si, como um jogo com os códigos, da articulação de signos que um indivíduo veste sem aderir a eles.

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relação de exploração das possibilidades – avoir (possuir), ao invés de être (ser). Nada de

essências!

Os alunos não discordam, portanto, dessa expressão pela aparência que as Forças

Armadas parecem manter, ainda que não formulada nos termos que desenvolvemos aqui; só

que eles a levam para outra direção, eles a experimentam adiante do que o Exército parece

experimentar.

Em sua argumentação sobre “porque a indumentária não é algo superficial”, MILLER

(2013) critica o entendimento moderno de que a superfície esconde alguma verdade interior,

de que existe uma verdade que não é aparente. Tomando como exemplo sua experiência

etnográfica em Trinidad, ele avança na direção contrária, de que a superfície – por meio de

um estilo (construção individual de uma estética baseada não apenas no que você está

vestindo, mas em como você o veste), e não de uma moda (ato de seguir uma tendência

coletiva) – é que expressa a verdade.

Na contramão de uma ontologia da profundidade27, o autor defende a evidência da

verdade, sua afirmação na superfície (para os trinitários – nativos de Trinidad – as pessoas

“profundas” são desonestas), concluindo que:

“Minha percepção é que sociedades relativamente igualitárias preferem metáforas sugerindo que as pessoas devem ser definidas por suas capacidades e realizações correntes; e que devem perder a posição conquistada quando essas capacidades declinam. Decorre daí que eles tendem a encarar a verdade e o ser à superfície. Em contraste, sociedades fortemente estabelecidas, com longas histórias de institucionalização, seja de classe ou de posição, tendem a encarar o ser e a verdade como algo profundamente situado dentro do eu e relativamente constante” (MILLER, 2013, p. 33 – 34).

Isso denota, não só a evidência da verdade – daquilo que realmente se é – na superfície,

mas seu caráter transitório e contingente – o que sou, amanhã posso não ser mais.

Este é o ponto onde o percurso conjunto entre a “superficialidade” do Exército e a dos

alunos estanca, e os discentes avançam. Porque o Exército se apega a uma ontologia do ser

como constante, perene, e que se expressa na superfície. O militar não tem duas caras: o que

ele é (imutável), ele aparenta. Os alunos aparentam o que eles são, mas este ser desancorado

está em devir. A coerência entre ser e parecer não quer dizer uma constância do ser.

O Exército busca sua força na troca efetuada entre seus profissionais – dispensáveis –

e a instituição – eterna. Os estudantes não se referenciam (nem querem se referenciar) nessa

verdade platônica. Os militares aparentam (e são) sua instituição e essa, por sua vez, é a

Pátria, também idealizada. Os alunos se co-determinam com os símbolos do Exército de uma

maneira livre, desde aqueles mais próximos do que a instituição quer exprimir em sua

27Que é como a modernidade ocidental situa o ser (núcleo do eu): no interior, em oposição à superfície, onde ele não está.

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identidade até os que reinventam, em modo mais radical, os itens identitários; desde aqueles

que, por subverterem a imagem com maior radicalidade, acabam por acionar mecanismos de

defesa institucionais e ter de lidar com eles, aos que, não professando em nada o credo

castrense, acabam sendo apoiados pela Força Armada, porque sua reinvenção preserva a

aparência querida pelo CMRJ28.

Enquanto, no sentido que procuramos demonstrar até aqui, para o Exército “se é o que

se usa”, para os discentes do CMRJ “se está aquilo que se usa”.

5. CONCLUSÃO

O que se apresenta ao etnógrafo quando do pulo dos terceiranistas é a ruptura brusca

de uma rotina normalizada. Sem pleitear nenhuma crítica aos costumes e valores da caserna,

sem afirmar (muito pelo contrário) desamor pelo colégio no qual estudam, os alunos criam,

em sua ação, uma exceção à virtude da perenidade consagrada pelo Exército.

Os itens identitários que exteriorizam o ethos militar distinguem seu público do universo

mais amplo da sociedade civil; grafam na superfície da farda, gravam na prosódia de seu

dialeto, imprimem na visualidade dos gestos restritos, uma categoria profissional misturada à

Pátria, no que esta significa a dimensão afetiva da Nação.

O processo de subjetivação conduzido pelas escolas de formação – e, inercialmente,

pelos colégios militares – pretende essas unidade e perenidade, essa doação de si ao que

ultrapassa os sujeitos; e os itens identitários – não vestidos, mas investidos – são totalmente

regulados por normas, colocando-se, desta maneira, além dos indivíduos: sacralizados.

Mas quando os alunos – que nunca foram militares e, por esta condição ímpar, detêm

a possibilidade bartlebyana do não-fazer – resolvem que querem pular na piscina fardados,

com todos os símbolos, todas as identificações e distinções, com toda a história do colégio e

do Brasil nos corpos, e isso é um ato festivo, carnavalesco, que não guarda nada de

confrontação, em um primeiro momento a reação institucional só pode ser de oposição: pela

preservação da farda, e nela a honra, os valores, as tradições do colégio e do Exército.

Mas o CMRJ cedo percebe que não tem instrumentos legais para impedir o ato. A

enorme estrutura burocrática da Força Armada guarda interstícios pelos quais o imponderável

28 Foge ao escopo deste trabalho esmiuçar os diversos tipos de relacionamentos observados na tese da qual ele foi extraído; como breve convite à leitura, explicamos que alguns alunos, justamente os de melhor “apresentação individual” (aqueles que se vestem e comportam mais de acordo com o preconizado pelos inúmeros regulamentos dos itens identitários) são os que menos professam os valores seguidos pela instituição. Eles se situam em um ponto da distribuição das aparências em que “acham bonito o visual militar”, por isso seguem as normas; só isso. Em outro ponto distante da distribuição das aparências, podemos encontrar a situação oposta dos alunos que têm péssima apresentação individual (sendo, inclusive, penalizados por isso), mas que, quando entrevistados, externaram uma aceitação bem maior de todo o “credo” castrense.

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acontece. Os alunos, que dias atrás estariam ainda ao alcance do regulamento disciplinar e

que, com tal transgressão, poderiam ser expulsos, já cumpriram todas as suas obrigações

escolares e não há como não lhes entregar o diploma. É aí que só resta ao CMRJ cooptar o

flashmob, abrigar no cerimonial a desordem, ainda que ela siga inexplicada.

Com mais uma tradição inventada (HOBSBAWM e RANGER, 2012) no intuito de

preservar a instituição e reforçar seu ideário de unidade e coesão, os discentes têm agora dia

certo e anunciado para se reunirem a volta da piscina e entoarem a saudação colegial29),

puxada pelo discente formalmente reconhecido como o “mais antigo” (de maior mérito

intelectual).

Lembramos, por fim, as palavras de Kafka:

“Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim os jarros de sacrifício; isso se repete sempre, sem interrupção; finalmente pode-se contar de antemão com esse ato e ele se torna em parte da cerimônia” (Aforismo XX).

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

BAÍA HORTA, José Silvério. O hino, o sermão e a ordem do dia: regime autoritário e a

educação no Brasil (1930 – 1945). São Paulo: Autores Associados, 1994.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicantes. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRASIL. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos militares.

Acesso em: 09 de março de 2015.

BUTLER. Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. São Paulo:

Civilização Brasileira, 2003.

CÂMARA, Hiram de Freitas. Marechal José Pessoa. A força de um ideal. Rio de Janeiro:

Bibliex, 2011.

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Page 21: IX ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE … · Recebe este título o aluno do primeiro ano da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em formatura em que lhe é entregue

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