J. herculano pires o mistério do ser ante a dor e a morte

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  • 1. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte Uma viso atual da problemtica existencial luz da Filosofia, da Religio e da Cincia
  • 2. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte Ttulo: O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte Autor: J. Herculano Pires 3 Edio 1996 3.000 exemplares Capa: caro Reviso: Demetre Abrao Nami Direitos desta edio reservados Editora Paidia Ltda., segundo os dispositivos legais. Pedidos : Editora Paidia Ltda. Rua Dr. Bacelar, 505 - V. Clementino CEP: 04026-001 - So Paulo - SP - Brasil C.G.G.: 48.054.506/0001-00 Inscrio Estadual: 109.772.113 Tel. (11) 5549-3053 - Fax (11) 5182-5836 Site: www.editorapaideia.com.br 2
  • 3. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 3 Para Samuel Balababian que desceu entre os supostos destroos da Arca de No, no Monte Ararat, foi escravo dos bedunos no deserto, barbeiro em Buenos Aires e barbeiro nos Dirios Associados de So Paulo, na Rua 7 de Abril, onde me contava anedotas armnias, e um dia me perguntou: Por que temos de sofrer tanto neste mundo e morrer sem ter conseguido nada? Se Samuel no entendeu esta resposta, estaremos quites, pois muita coisa que ele me contou, na lngua da Torre de Babel, misturando rabe, armnio, espanhol e portugus, eu tambm no entendi. O principal que no rosto envelhecido e cansado de Samuel, tocado pela sombra da morte, passou um sopro de alegria quando eu lhe disse que a sua pergunta me levara a escrever um livro.
  • 4. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 4 ndice O que todos devemos saber .......................................................... 5 1. Os Capatazes de Deus ............................................................ 9 2. Os Mecanismos do Sensvel ................................................. 14 3. Do Sensvel ao Inteligvel .................................................... 21 4. O Mundo sem Dor................................................................ 31 5. A Lagosta de Sartre .............................................................. 37 6. Os Caminhos Incertos da Experincia .................................. 43 7. As Revolues Conceptuais ................................................. 49 8. Os Caminhos Escusos da Moral ........................................... 55 9. O Controle tico da Moral ................................................... 61 10. A Sntese Esttica da Conscincia ...................................... 67 11. Os Perigos da Conscincia Prtica ..................................... 74 12. O Ser Moral........................................................................ 83 13. A Certeza da Vida Aps a Morte........................................ 90 Ficha de Identificao Literria.................................................. 99
  • 5. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 5 O que todos devemos saber O avano do conhecimento nos ltimos dois sculos, e particularmente neste sculo, deu-nos, pela primeira vez no mundo, os dados necessrios para o esclarecimento cientfico da problemtica existencial, ou seja, da natureza e da condio do homem. O desenvolvimento da razo e, conseqentemente, das tcnicas de pesquisa abriu-nos possibilidades decisivas de uma penetrao mais profunda no mistrio de ns mesmos. Libertamo-nos da sistemtica filosfica e do emaranhado contraditrio das proposies teolgicas, para encararmos o problema do homem com realismo, sem os temores e os embaraos da superstio e da religio. Mas a pesada herana dos milnios de obscurantismo, alimentados pela magia primitiva, pelo temor do sagrado, pela nebulosidade dos conceitos formais sobre as coisas e os seres, tudo isso em conflito com a mentalidade mitolgica, as concepes materialistas, a ferocidade das instituies religiosas, gerava um pandemnio que no podia levar a nada. Todos tinham e no tinha razo, mas vencia a sem-razo dos mais poderosos. Atualmente, apesar dos pesares, a metodologia cientfica e as tcnicas romperam as antigas barreiras, graas aos resultados positivos de suas atividades, criando condies mais favorveis a um tratamento objetivo do problema do homem. Nossa viso atual oferece mais opes racionais para uma tomada de posio realista e liberta de perturbaes da metafsica fidesta. Acentuou-se nas massas a tendncia pelas descobertas cientficas e definiu-se a existncia de uma elite do saber que dispe de recursos para afugentar as fascinaes da mentira piedosa. Queremos hoje a verdade provada e no apenas o carimbo oficial dos supostos
  • 6. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 6 donos da infalibilidade consagrada pela evidente falibilidade humana. Essa a razo de voltarmos, neste livro, s teses antigas sobre o homem e particularmente sobre os temas de Lon Denis em seu livro O Problema do Ser, do Destino e da Dor. No repisamos esses temas, mas procuramos desenvolv-los mais amplamente na perspectiva filosfica e cientfica dos nossos dias. A posio de Denis, ligada aos fins do sculo passado e princpios deste sculo, ainda bem recente. Mas o aceleramento cultural de hoje encurtou as fases, antes seculares, da complementao de dados substanciais em diversos rumos da problemtica. No se trata, pois, de uma reviso arbitrria de obra clssica e consagrada culturalmente, que continua vlida e necessria, na sua inteireza de pensamento e linguagem, mas de um desenvolvimento tambm necessrio dos temas do grande pensador da Lorena, que teria hoje novos dados para enfrentar Voltaire na quase polmica de que o poeta Gaston Luce, contemporneo de ambos, nos d numa rpida informao em seu livro Vida e Obra de Lon Denis. Os leitores de Denis vero que no nos ativemos ao seu esquema e nem tentamos reformular as suas proposies. Procuramos apenas ajustar a sua temtica realidade dos nossos dias. Valemo-nos de nossa afinidade com Denis e sua obra para continuar tratando do assunto, com a maior amplitude possvel, no desenvolvimento atual da cultura. Essa uma exigncia do nosso tempo, considerada como indispensvel em todos os ramos do conhecimento. Cada fase do desenvolvimento cultural cria novo clima e oferece maiores possibilidades para o trabalho intelectual. As obras clssicas correspondem s diversas fases do passado e so consideradas completas em si mesmas, obras feitas e intocveis na sua dignidade de testemunhas da grandeza do seu tempo. crime desfigur-las a pretexto de atualiz-las, como fazem hoje as religies crists em suas novas edies da Bblia. Essa violao
  • 7. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 7 criminosa (crime moral e crime cultural ao mesmo tempo) s ocorre, por estranho que parea, justamente nas reas religiosas, que consideram sagradas as obras da revelao. Ignorncia e interesse imediatista de venda e de proselitismo so as molas dessa criminalidade religiosa. Mas no se pode negar a cada poca o direito e o dever de elaborar as suas prprias obras, que testemunharo as condies culturais de seu tempo. No tocante ao problema que enfrentamos neste livro, a necessidade de uma atualizao epistemolgica se impe, no aproveitamento das novas condies surgidas para o melhor e mais completo conhecimento do problema luz dos novos dados obtidos pela pesquisa histrica e cultural em geral. Ante o avano cientfico e filosfico da atualidade, com reflexos profundos no plano religioso, a concepo geral do mundo, a mundividncia especulativa ou dogmtica do homem comum, negativa ou positiva, ampliou-se nas perspectivas csmicas. Materialistas e espiritualistas, racionalistas e fidestas, romperam a estreiteza de suas convices acanhadas. Uma nova revoluo coprnica explodiu no interior das bastilhas, das Igrejas e por trs das muralhas do Kremlin. Por toda a Terra, como num desafogo de milnios, a mente popular e a das elites abriram-se sofregamente para a percepo do ilimitado. O curioso que essa abertura ocorreu sobre os destroos da segunda conflagrao mundial, num misto generalizado de temor e esperanas. Essa virada do finito para o infinito confirmou a validade das utopias, segundo a tese de Karl Mannheim. A descoberta cientfica da percepo extra-sensorial comprovou a capacidade humana de antecipar mentalmente as realidades futuras. Fomos obrigados literalmente obrigados a aceitar uma nova cosmoviso, em que o homem no mais aparece como o bicho da terra, to pequeno, de Cames, mas a Fnix egpcia de asas misteriosas, que vence o tempo, o espao e a morte. Todas as nossas idias sobre a realidade nossa e
  • 8. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 8 do mundo foram postas em cheque. A matria foi virada no avesso pela descoberta da antimatria, perdeu sua solidez em troca da fluidez, que considervamos uma heresia cientfica, e o espao fsico e imutvel dispersou-se na multiplicidade dos hiperespaos. Somente os alrgicos ao futuro, na expresso de Remy Chauvin, continuaram a bater no peito, como beatos inconversveis, repetindo os credos de um passado sombrio. Como na teoria aristotlica de potncia e ato, basta-nos abrir as plpebras aps o sono para que a viso da alvorada nos atualize na realidade nova. Os que quiserem continuar de olhos fechados podero faz-lo, como toupeiras que se recusam a sair da cova. A liberdade do homem s limitada por ele mesmo. O seu prprio despertar depende do seu desejo ou no de ver o raiar do Sol. Estimular nos leitores esse desejo a principal finalidade deste livro provocado por um velho armnio de esprito jovem, curtido nas dores do mundo.
  • 9. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 9 1. Os Capatazes de Deus As explicaes religiosas sobre a dor e a morte apiam-se at hoje em conceitos mitolgicos provenientes da mais alta Antigidade. Originam-se da idia primitiva e, portanto, simplria da criao do mundo pelos deuses. Esses deuses, por sua vez, no passam de criaturas humanas divinizadas, que regem o mundo em que vivemos e todo o Universo atravs de poderes mgicos que se manifestam na realidade sensvel em forma de decretos irrevogveis. Camos assim nas garras de um fatalismo totalitrio, do qual no podemos escapar de maneira alguma. Nascemos, vivemos e morremos como peixes de um aqurio ou como os galinceos de um vasto galinheiro, criados apenas para o corte impiedoso dos interessados em lucros. A vontade humana no conta. Os deuses nos criam, alimentam e devoram. Somos animais de corte que se contentam com as raes e as vtimas inferiores que nos permitem caar. O mximo que podemos fazer suplicar de mos postas que os deuses no se esqueam de nos dar as raes e de tratarnos de maneira benigna. Dispomos do recurso das splicas e da obedincia, dos ritos de submisso, dos louvores obrigatrios aos deuses para, pelo menos, conseguirmos algumas concesses benvolas dos poderosos, mas sempre na certeza de que iremos para o sacrifcio mais cedo ou mais tarde. Contamos tambm com a proteo possvel de alguns capatazes generosos, que podem aliviar-nos quando quiserem. Com o advento do Monotesmo, da crena de um Deus Supremo nico, nossa miservel condio subumana no melhorou muito. O Senhor implacvel jamais concordou em conceder-nos a alforria. Continuamos presos como os negros nas senzalas e ten-
  • 10. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 10 tamos revoltas inteis, que s serviram para aumentar as nossas dores. O Deus Supremo irascvel e pode irritar-se com as nossas pretenses. O chicote da dor est sempre erguido sobre os nossos lombos e a morte sempre espreita para nos ceifar. Os raios de Jpiter podem cair sobre as nossas cabeas a qualquer momento, sem sabermos por que motivo. Deus no precisa de motivos e no se preocupa com arrazoados de espcie alguma. Apesar dessa irredutvel e trgica viso da vida, continuamos a viver, pois gostamos de estar vivos e detestamos a morte. A dor mais insuportvel se torna suportvel quando nos lembramos das ameaas dos capatazes de Deus sobre as penas eternas. A idia de uma eternidade de dores nos perturba e preferimos esperar vivos a hora do corte. S os que se desesperam e no encontram alvio algum na vida acabam apelando para a morte. Desse impasse resultou a rebelio das senzalas no plano mental, com as tentativas de golpe de Estado da Filosofia e das Cincias. O Positivismo, o Materialismo, o Pragmatismo e outros ismos da mesma espcie tentaram abrir algumas brechas de liberdade nas muralhas da vida, para libert-la. Mas caram numa situao desesperadora, pois tiraram dos homens as poucas esperanas que lhes restavam. O Buda e o Cristo chefiaram revoltas mais aceitveis. Mas o Buda apelava para a fuga e o Cristo pareceu suspeito, por se dizer Filho de Deus. Os capatazes puseram a boca no mundo, com ameaas terrveis para os que se bandeassem para o lado inimigo. Era perigoso arriscar um olho para quem s possua dois. Surgiram os msticos do terceiro olho, mas os homens sensatos desconfiaram de uma cilada, em virtude da prpria posio esquiva desse olho estepe. Na prpria Bblia hebraica que os capatazes diziam, com autoridade indiscutvel, ser a Palavra de Deus, figurava o pacto de No com Iav (o Deus dos Judeus), povo esperto firmado logo aps o Dilvio. Nesse pacto estava clara a posio de Deus, que
  • 11. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 11 exigira duas coisas da Humanidade: o povoamento total da Terra e a reserva absoluta de todo sangue derramado para a alimentao do Senhor. At hoje os judeus ortodoxos mantm matadouros rituais em que o sangue dos animais abatidos reservado exclusivamente para Deus. A fim de evitar abusos, os capatazes inventaram que a alma de todos os seres est no sangue, de maneira que, com os chourios, o homem corria o risco de engolir almas de animais e animalizar-se. Ficou claro que Deus era carnvoro, quando No lhe fez um altar no Monte Ararat, aps o Dilvio, e Iav debruou-se guloso sobre as carnes assadas que o esperto No pusera para ele no altar. Iav no comeu as carnes, mas aspirou gulosamente as deliciosas emanaes daqueles assados, em que o sangue das vtimas subia nas espirais de fumaa. Quem visse Iav naquele momento, de narinas escancaradas para no perder o menor fiozinho de fumaa alimentcia, podia compreender a importncia do sangue humano (o mais precioso) nos banquetes celestiais. E quem visse as matanas coletivas no mundo e as fogueiras acesas febrilmente pelos inquisidores compreenderia a razo daquele dispositivo do pacto que dizia: Povoai toda a Terra, enchei-a com vossa descendncia. Iav exigia todo o sangue dos animais e da humanidade para a maior produo dos frigorficos celestiais. Os capatazes de Deus tambm compreenderam isso e criaram taxas especiais a serem pagas pelos que, ritualmente impedidos de comer carne em dias santificados, recebessem licena especial, de maneira a que no se diminusse a matana universal de que resultariam os estoques de sangue. Por tudo isso o sangue se tornou a mais preciosa das coisas nos ritos e sacramentos das Igrejas. Pois nem mesmo o sangue sagrado do Cordeiro de Deus havia sido poupado! Deus perdoava tudo aos homens, menos a dor e a morte, sem as quais no seriam possveis as matanas. Esse quadro, toscamente esboado, da Tragdia Universal, pode despertar os homens para uma compreenso mais clara e
  • 12. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 12 precisa do significado da dor e da morte na Terra. Continuamos, ainda hoje, submetidos fascinao dessas idias arcaicas, com que ainda se alimentam teologias e filosofias sanguinrias por todo o mundo. Enquanto no nos livrarmos dessa fascinao cruenta no chegaremos compreenso real do que so a dor e a morte na vida humana e continuaremos a viver sem saber por que o fazemos. Nossa vida humana tem o sentido estranho de uma concesso condicionada s exigncias interesseiras de um grande monoplio celestial do sangue. E continuaremos a derramar o sangue dos animais e dos nossos semelhantes para agradar a um Deus insacivel. Por mais invenes e conquistas que fizermos, no passaremos da condio desses trogloditas que continuam em matanas selvagens e brutais nos pases mais supostamente civilizados deste planeta ensangentado. Isso prova que a Civilizao no passa de uma domesticao de feras indomveis. Mais de vinte grandes Civilizaes desfilaram pelo planeta at hoje, segundo os clculos de Toynbee, e os homens continuam os mesmos. As dores do mundo aumentaram, a ao das Civilizaes mostrou-se contraditria, eliminando males antigos e criando novos e mais terrveis males. O progresso das Cincias e das Tcnicas foi enorme. O homem voa mais seguro e mais veloz que os pssaros, chegou a pousar na Lua e voltar Terra, mas enfermidades terrveis se espalharam pela Terra, como as vrias formas cancergenas, os enfartes, os distrbios nervosos, psquicos e mentais e assim por diante. Vivemos no mundo do terror, da insegurana, carregando em ns mesmos o germe dos males que nos assaltaro e nos mataro na hora prefixada de dipo. Devastamos a Terra, polumos a atmosfera que temos de respirar, liquidamos as defesas ecolgicas naturais, envenenamos o cu e o mar. As perspectivas de novas dores e tragdias inevitveis so muito maiores e mais ameaadoras do que nos milhes de
  • 13. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 13 anos decorridos. Chegamos ao cmulo de voltar ao canibalismo e aos massacres genocidas. Aumentamos muito a nossa capacidade de produzir novas, mais agudas e mais espantosas formas de dor para toda a Humanidade. Parece evidente que, mais do que o acaso ou o destino, somos ns os produtores dos males que nos afligem. Estamos na hora de perguntar se a dor realmente uma das alavancas da evoluo humana e da evoluo geral, ou apenas um subproduto de nossas loucuras industrializantes. Seria a dor, como supusemos at agora, um meio de desenvolvimento da sensibilidade ou uma forma de seu embotamento? Tentamos suprimi-la atravs de anestsicos e somos forados a multiplic-la por meio de mecanismos infernais. Qual a funo da dor, da misria, do sofrimento individual e coletivo no mundo em que vivemos? As crianas choram ao nascer com medo do mundo ou por piedade de si mesmas? So mltiplos os problemas da atualidade mundial, envolta em sangue, desespero e lgrimas. Sabemos que iremos morrer, mas cada morte aumenta as dores do mundo e em cada enterro ou cremao desaparece um ente querido que lana os vivos em novas angstias. No descobrimos ainda nenhum meio de dominar as dores que nos perseguem, como hienas famintas, desde que nascemos at o momento fatal da morte.
  • 14. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 14 2. Os Mecanismos do Sensvel O mundo do sensvel e o mundo do inteligvel, em que Plato divide a realidade, encerram os mistrios da morte e da vida. Temos no sensvel o mundo morto da matria bruta ou compacta, e no inteligvel o mundo da matria refinada e vibrtil, animada e dotada de sensibilidade. Apesar do dualismo aparente, esses dois mundos se fundem na realidade nica do pondervel universal, hoje inteiramente acessvel aos nossos instrumentos ou aparelhos externos e extracorpreos de percepo. O Deus bblico dos judeus, herdeiro das tradies mgicas do Egito, arrancou o mundo do nada, do vazio da sua cartola, mas os deuses gregos, srios e modestos, preferiram arranc-lo da realidade subjacente das coisas, que constitui o plano do sensvel. Deucalio e Pirra, os heris do dilvio grego, repovoaram a Grcia catando pedras e atirandoas para trs, sem olh-las, para no perturbarem o milagre da converso dessas pedras em seres humanos. Essa parbola aparentemente ingnua contm o segredo da relao entre o sensvel e o inteligvel. Os primeiros judeus nasceram do barro de Ur, na Mesopotmia, mas os primeiros gregos nasceram das pedras de Delfos, onde ergueriam mais tarde o Orculo de Apolo. Apesar de nascidos do barro, do limo da Terra, como diz o texto sagrado, os judeus se arrogaram o ttulo racial de Filhos de Deus. Toda essa estria muito curiosa e cheia de subentendidos e significados ocultos, que somente hoje se tornam transparentes. Os orculos gregos viam mais longe que os profetas judeus. Mas o que mais nos interessa, confirmando os poderes intuitivos dos gregos, a revelao dos mecanismos do sensvel, no processo de transformao das pedras em homens. Na linha ato-
  • 15. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 15 mista posterior, filsofos gregos, como Leucipo e Demcrito, mostrariam que a pedra, insensvel em si mesma, era sensvel nossa percepo, carregando em suas entranhas catalpticas o germe oculto da humanidade ps-diluviana. As entranhas da pedra constituam-se, como hoje sabemos, de torvelinhos atmicos. A inrcia aparente da pedra velava, na realidade, o futuro nas franjas do Vu de sis. A herana egpcia da Grcia arcaica, consubstanciada na mitologia da pedra e nas mutaes da metempsicose, permitia aos gregos compreender os mecanismos do sensvel. A gestao secreta das energias atmicas no ventre das pedras no ameaava o mundo com exploses destruidoras, mas, prometendo-lhe antes a multiplicao das espcies vivas, desde as misteriosas favas de Pitgoras, at o repovoamento da Hlade aps a Guerra do Peloponeso. Reconhecida a funo geradora do mineral, tornava-se possvel a compreenso das relaes entre os vrios reinos naturais. Alm disso, a concepo monista do mundo e do Universo, antecipada na matemtica lrica de Pitgoras, com sua msica das esferas siderais e a teoria do isolosmo, segundo a qual a Terra era um ser vivo, levaria compreenso de que o sensvel e o inteligvel no eram mundos antpodas, mas fundidos e interpenetrados. Essa realidade panormica, captada pela intuio grega, preparou-nos para aceitarmos mais tarde, em tempos amargos do planeta, que a dor no tinha funes puramente humanas. No apenas o homem que sofre com a dor, mas toda a estrutura sensvel do gigantesco organismo de um Universo vivo. Sendo assim, no podemos atribuir as dores do mundo, que levaram Schopenhauer loucura, apenas s aes humanas. Foi o que Kardec percebeu, nas suas pesquisas espritas, ao verificar que as mesas-girantes eram movidas, no por cargas eltricas ou magnticas, como supusera a princpio, mas por emisses ectoplsmicas dirigidas intencionalmente e controladas por intelign-
  • 16. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 16 cias reveladoras dos arcanos da natureza. Kardec, de origem palingensica celta, percebeu a profundidade e a extenso dessa renovao dos conceitos do seu tempo, mas viu-se obrigado a restringir-se s condies culturais mdias da sua poca para, como professor e didata exmio, preparar com sua obra os caminhos do futuro. Sempre que Kardec se restringe ao aspecto humano dos problemas espritas o faz por necessidade metodolgica, pois a Europa do seu tempo no estava em condies de poder enfrentar com proveito as idias avanadas que devia apresentar e defender. Nem sequer os problemas atmicos haviam se desenvolvido. Convm lembrar que as razes celtas e, portanto, drudicas de Kardec estavam ligadas, de um lado, Filosofia Grega da rea socrtica, e de outro lado aos ensinos do Cristo, na Palestina. Aristteles referiu-se aos celtas como o nico povo filsofo que havia encontrado no mundo, e o prprio Kardec incumbiu-se de estabelecer o confronto, na Revista Esprita, dos princpios do Cristianismo e do Espiritismo com a doutrina trplice dos druidas. historicamente evidente essa trplice ligao, como Kardec o provou no seu estudo citado. Depois de sua morte, Kardec voltou ao assunto numa comunicao medinica em que considerou a Frana como uma espcie de refletor dos pensamentos renovadores do Alto. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo considerou Scrates e Plato como precursores das idias crists, restabelecendo as ligaes espirituais entre a Palestina do tempo de Jesus, a Frana e a Grcia antiga. So essas as trs fontes da Cultura Esprita. A Universidade Esprita do futuro ter a incumbncia de aprofundar os estudos desse problema de importncia fundamental para a Era Csmica de que j nos aproximamos. No plano mstico da Histria Crist, a lenda piedosa da fuga de Madalena para a Frana, aps a crucificao do Cristo, pode ser considerada como uma prova potica da ligao dos bardos celtas (poetassacerdotes) com o surto literrio do Romantismo, exposto no manifesto de Victor Hugo como produto do impacto do Cristia-
  • 17. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 17 nismo no mundo. No foi -toa que o tmulo de Kardec em Paris foi esculpido nos moldes de um dlmen drudico, fixando na pedra os altares rsticos das florestas celtas. O princpio kardeciano da unidade seqente, que ele expressou da maneira mais simples e didtica: Tudo se encadeia no Universo, reflete-se na sua vida e na sua obra. A Grcia, a Palestina e a Frana formam o patamar do novo mundo que nasce das entranhas minerais do planeta e envolve toda a Terra na rede sutil e ao mesmo tempo poderosa de uma nova concepo da vida, do homem e do mundo. Nessa concepo, a dor nos revela a sua face oculta. A mecnica dos tomos, semelhante mecnica dos astros, teve a imensa teia de aes e reaes que abrange o finito e o infinito em suas mltiplas expresses. E nessa teia se insere a fludica das mnadas, no conceito platnico que Leibniz desenvolveu em nosso tempo; a mnada platnica a idia, semelhante forma aristotlica que modela as coisas e os seres. Na sua essncia apenas um ponto invisvel no espao e sua pequenez escapa s nossas possibilidades de avaliao matemtica. Na sua mnima estrutura encerra a mxima potncia. a sntese mxima. Menor que as homeomerias de Empdocles, formas infinitesimais dos rgos e dos membros das coisas e dos seres, que se ajustam na formao material desses rgos e membros. o smen invisvel e impondervel do pensamento de Deus que fecunda a matria. Henri Bergson viu-as em caudais, na sua genial concepo do lan vital infiltrando-se na matria para aglutinar os seus elementos no processo da evoluo criadora. Hegel antecipara essa viso na sua teoria esttica, descrevendo a epopia do belo em luta com a matria, desde as formas monstruosas da arte oriental antiga, nos templos indianos, at o artesanato das criaes estticas da Europa. A Cincia atual, nas pesquisas sobre os centros padronizadores dos rgos e membros de corpos animais, especialmente
  • 18. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 18 de ratos, mostraram que as homeomerias no so uma criao imaginria e ingnua, mas a percepo, antecipada pelos gregos, das formas padronizadoras existentes nos corpos. Deslocando-se um brao de frente de um embrio de rato para o lugar de uma perna traseira, e vice-versa, a perna cresce como brao e o brao como perna. A curiosa idia das homeomerias aparece ento como uma forma de percepo dos padres ocultos no corpo. Confirmou-se tambm, com essas pesquisas, a intuio de Claude Bernard sobre a necessidade de um modelo energtico para o corpo humano. Nas recentes e famosas pesquisas da Universidade de Kirov, na URSS rejeitadas pelo Estado Materialista dogmtico, mas sustentadas pelos cientistas pesquisadores , estes fizeram a descoberta do corpo-bioplsmico do homem, modelo e sustentador do corpo fsico, ao qual deram essa denominao por ser ele o corpo que d vida ao corpo material e constitudo de plasma fsico. Pesquisadores da Universidade de Prentice Hall, dos Estados Unidos, confirmaram essa descoberta e a divulgaram em livro editado pela Universidade. Os mecanismos do sensvel foram assim descobertos. Trata-se de processos atmicos e subatmicos, nos quais intervm a antimatria e as mnadas. Estas representam o elemento espiritual, designadas pelo Professor Rhine, na Parapsicologia, como extrafsicos. graas a essa conjugao de foras, somente agora comprovadas pela pesquisa cientfica objetiva, que os mecanismos do sensvel transformam o reino mineral em vegetal e este em reino animal, do qual surgiu na Terra o Reino Hominal, configurado na Espcie Humana. Em todo esse vasto, profundo e multimilenar processo da evoluo criadora, a dor se manifesta nos atritos, desajustes e disperses de elementos, despertando a sensibilidade mondica atravs de estmulos e desenvolvimentos sucessivos. Kardec sustentou essa teoria, que j confirmara em suas pesquisas da Cincia Esprita, na segunda metade do Sculo XIX. Lon Denis a sintetizou na sua conhecida expresso potica: A alma
  • 19. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 19 dorme na pedra, sonha do vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, sustentou a existncia do dinamismo-psquicoinconsciente, como elemento universal determinante dos processos evolutivos em todos os reinos da Natureza. Kardec antecipou a teoria da transcendncia das atuais Filosofias da Existncia, sustentando, com base em suas pesquisas espritas, que o Reino Hominal evolui para a Angelitude, no desenvolvimento das potencialidades do homem. A Angelitude a condio anglica que a Humanidade dever atingir na sua evoluo terrena, transferindo-se para os Mundos Superiores das constelaes csmicas. Dessa maneira a dor se apresenta, fora dos limites estreitos da concepo antropomrfica, como uma decorrncia natural dos processos evolutivos em todo o Cosmos. uma conseqncia dos esforos despendidos pelas coisas e os seres, em luta com os obstculos internos e externos com que todos ns e todas as coisas e seres se deparam nos caminhos da evoluo universal. Toda estase adquirida configura uma situao de impasse que ter de ser rompida pelos mecanismos do sensvel. Sofre a pedra, sofre o vegetal, sofre o animal e sofre o homem em cada curva implacvel do desenvolvimento de suas potencialidades. Denis viu isso com clareza ao afirmar que a dor uma lei de equilbrio e educao, referindo-se especialmente Humanidade. A essa lei universal nada e ningum pode fugir. O universo teleolgico, dirige-se, em tudo e em toda parte, a finalidades definidas. No isso que vemos ao nosso redor, desde que nascemos at morrermos? Um fato assim to evidente, incessantemente repetido, j trs em si mesmo o selo natural da sua comprovao, que s os espritos sistemticos podem pr em dvida. No tocante reencarnao humana, que apenas um detalhe da lei grega da palingenesia, do constante e inevitvel renascimento de todas as coisas e todos os seres, trazemos em nossa
  • 20. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 20 prpria conscincia a certeza secreta de termos de passar por esse processo. Mas na reencarnao humana o problema da dor se complica com a presena no homem da conscincia de si mesmo e de seus deveres. Ao e reao so inevitveis, em todos os planos, mas o homem tem a vantagem de saber qual o seu destino e como pode e deve empregar o seu livre-arbtrio para alcanar os objetivos superiores da sua destinao csmica. Ele o responsvel nico pelas suas opes e os seus atos, pensamentos, desejos e palavras. O perdo de Deus pode auxili-lo em suas situaes desesperadas, mas s ele mesmo pode redimir-se, corrigindo e superando os seus erros. Pesa sobre os seus ombros a responsabilidade moral que adquiriu na sua evoluo espiritual. Nenhum sacerdote e nenhuma entidade espiritual pode livr-lo dos compromissos que assumiu. Deus no o castiga nem o recompensa. O Tribunal de Deus est instalado em sua conscincia e ele mesmo se condena e se pune, no uso pleno da sua liberdade. Seus sofrimentos e angstias nasceram de sua prpria conscincia e s nela podem apagar-se. Deus lhe conferiu a jurisdio de si mesmo. A dor que o aflige no castigo de Deus, mas fogueira que ele mesmo acendeu e pode apagar por si mesmo. Essa solido do homem a sua prpria grandeza. Ele tem nas suas mos o poder de fazer e desfazer o seu destino, de se fazer maldito ou se tornar divino.
  • 21. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 21 3. Do Sensvel ao Inteligvel O reino mineral contm, na sua dinmica secreta, todas as potencialidades da criao. Permanece em xtase (como adormecido) sujeito apenas movimentao externa que lhe dada pelo vento, pela chuva, pelos desnveis das camadas de terra interiores, pelos abalos ssmicos e as erupes da pirosfera nas exploses vulcnicas. Ante a extenso tranqila e imvel dos areais no deserto, das montanhas e geleiras impassveis, os homens se julgam senhores absolutos de um mundo morto. Mas a intuio mondica os adverte que a vida palpita sob os disfarces da morte. Os panoramas majestosos da solido externa sugerem-lhe o formigar oculto das potncias em gestao. Os vendavais, os rios, os temporais e os sismos lhe mostram que, sob a inrcia aparente das coisas h uma trepidao secreta. As mnadas modelam em silncio as formas das coisas e dos seres, as constelaes atmicas atritam-se com as sementes mondicas, fazendo-as germinar. As potncias adormecidas acordam no ventre das camadas minerais e determinam a partognese das primeiras floraes vegetais. Na seqncia dessas atividades secretas os vegetais despertam as potncias animais e nessas se manifestam os primeiros sintomas da inteligncia subjacente em cada gro de areia, em cada folhinha tmida de relva. Assim como no cadver que se retira intacto de um tmulo em que no se desfez, e ao ser exposto infiltrao do ar comea a se desfazer em vermes pululantes, a terra morta explode em movimentao incessante e o mundo fervilha nas manifestaes vitais. A qumica da vida rompe o silncio mortal e desencadeia a proliferao dos seres. A dor fulgura pela primeira vez nas fibras
  • 22. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 22 do sensvel, revelando a passagem mgica deste para o inteligvel. O homem, se j existisse, como o figuramos neste quadro gensico, poderia ento perceber as primeiras manifestaes da inteligncia incubada nas estruturas aparentemente mecnicas das coisas e dos seres. O princpio inteligente se revela no tropismo das razes que penetram no solo em busca de gua, na corola das flores que se voltam para a luz do Sol, no instinto dos animais que buscam alimento e proteo, desenvolvendo as proles e construindo suas tocas como se obedecessem a esquemas previamente traados. A imagem ancestral da Terra morta atualmente revista pelos astronautas que pousam na Lua. Testemunho de Deus, o homem assiste epopia da Gnese planetria num minsculo recorte do Universo e o faz atravs da seqncia das geraes terrenas, na magia telrica e espantosa das reencarnaes progressivas da sua prpria espcie. O que a Gnese Bblica nos apresenta num esquema fantasioso, A Cincia do homem reconstri no tempo com seus dados objetivos, colhidos nas entranhas do planeta. O grande laboratrio guarda os seus registros na prpria carne da Terra para que o homem possa reconstruir o seu prprio passado na consulta memria planetria. Desgnio, inteno, atividade criadora, previso, tudo isso ressalta das investigaes cientficas na crosta terrena e nos depsitos de fsseis. Atribuir tudo isso ao acaso seria negar a casualidade como seqncia de ocorrncias sem sentido. Seria fazer do acaso um ser casualmente inteligente. A Cincia no se alimenta de acasos, mas de causas. So estas que importam para a tomada de conscincia do homem diante da realidade universal. As mistificaes forjadas na Filosofia, na Teologia e na Cincia, para afastar a presena de uma Inteligncia Suprema na realidade csmica (ou minimiz-la), so manifestaes evidentes de uma vaidade de pigmeus africanos escolarizados. O homem ainda
  • 23. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 23 no dispe de possibilidades para uma investigao dessa natureza em amplitude csmica. As opinies dos sbios, como dizia Kardec, so vlidas na medida em que se ajustam especialidade do sbio. A verdade sobre o Cosmos conhecida ainda em termos arrasadoramente insuficientes para que algum possa negar a evidncia, comprovada at agora na pesquisa de dados objetivos, de que a estrutura inteligente do Cosmos s pode ser explicada pela ao de uma Inteligncia Csmica. Os mecanismos do sensvel e a evoluo do inteligvel na Terra esto decisivamente comprovados pelas pesquisas cientficas. Qualquer refutao dessa evidncia s ter valor quando apoiada em pesquisas da mesma ordem. Fora disso, s temos opinies pessoais que nada valem no campo cientfico. Na Cincia Esprita a prova da existncia de Deus dada em termos rigorosamente cientficos, pelo exame objetivo e lgico da estrutura da realidade csmica. A concluso lgica de bronze, como assinalou Richet, a quem os mais significativos fenmenos parciais no conseguiram convencer. O veredicto final de Kardec foi assim resumido: No h fenmeno inteligente sem causa inteligente, e a grandeza do fenmeno corresponde necessariamente grandeza da causa. Podemos acrescentar que no h grandeza maior, mais evidente e mais comprovada do que a da Inteligncia Csmica revelada em todos os aspectos conhecidos do Cosmos. Essa rigorosa posio cientfica s pode ser contestada por meio de sofismas facilmente elaborados por criaturas opiniticas. A dor, em seus mltiplos aspectos, fsicos e morais, acha-se entranhada na realidade csmica como elemento necessrio da evoluo universal, que decorre dos processos naturais de desenvolvimento das potencialidades gensicas atravs da passagem da potncia a ato. Todo ato um parto e todo parto doloroso. S podemos supor um mundo sem dor imaginando o completo de-
  • 24. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 24 senvolvimento de todas as potencialidades das coisas e dos seres, o que no passaria de pura especulao imaginativa. Nos mundos em que a matria densa predomina, como o nosso, o esprito ainda est sujeito s leis fsicas e viriais, ou seja, biofsicas. Os longos ciclos evolutivos necessrios ao desenvolvimento das potencialidades mostram-nos que o processo no imediato ou mgico, mas lento e gradual, regido ao mesmo tempo pelas leis fsicas, biolgicas e espirituais. As relaes entre esprito e matria implicam sempre em contrastes dialticos de ao e reao, de luta e fuso, antes que atinjam o plano dialtico da fuso harmoniosa, segundo a concepo de Hammeleim. Nas primeiras fases gensicas o esprito (no caso designado apenas como princpio inteligente) atrai a matria dispersa, como o m atrai a limalha, e aglutina a matria aos esquemas formais do projeto divino. Incorporada a matria ao esprito, a fuso se realiza objetivando a sntese. Mas esta vai ser o resultado de um duplo e recproco apresamento: o da matria pelo esprito e o do esprito pela matria. A dor reponta naturalmente desse embate de potncias adversas. Por isso Kardec definiu a matria como o lao que prende o esprito. Essa priso recproca do esprito matria e da matria ao esprito prolongase no tempo e no espao, na durao necessria para que as potencialidades do esprito se desenvolvam. Todos sabemos, por experincia prpria, como os desejos imediatistas da matria se opem aos anseios de transcendncia do esprito e vice-versa. Por isso Unamuno considerou o homem como um drama e os existencialistas atuais reconheceram, inclusive Sartre, que o objetivo do homem a transcendncia. Do materialismo filosfico passamos, em plena era pragmatista e materialista, concepo do homem como esprito, o que foi uma vitria inegvel e irredutvel de Kardec. O princpio do inteligvel em Plato no se refere apenas inteligncia dos seres, mas tambm inteligibilidade de todas as coisas. Praticamente, o inteligvel a chave da compreenso geral
  • 25. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 25 do mundo, sem a qual a porta do saber no se abriria para a Humanidade. Passar do sensvel ao inteligvel equivale a uma escalada espiritual que leva os seres do plano da simples percepo das coisas ao plano complexo da compreenso de toda a realidade. Na Cincia Esprita esse princpio platnico aparece como aplicao do mtodo racional explicao da realidade. Na Filosofia Esprita ele a Razo de Deus ordenando o mundo, justificando o homem e ajustando o pensamento humano ao real. Na Religio Esprita ele o sustentculo nico da f, pois s a f racional, como sustenta Kardec, pode enfrentar a razo face a face, de igual para igual, em todas as fases da evoluo humana. A f dogmtica, cega e irracional, que se apia em opinies tiradas de velhas tradies mitolgicas e folclricas, murcha nos caminhos da evoluo na medida em que a Razo do Mundo vai se revelando inteligncia humana. O emurchecer da f dogmtica amargo e trgico, mergulhando as religies formalistas e dogmticas no charco dos interesses materiais, fato que hoje estamos presenciando em todo o mundo. So dolorosas as manobras feitas pelo dogmatismo opressor para sustentar-se em p ou de ccoras na corrente evolutiva. Ao contrrio disso, a f racional ou raciocinada acompanha e no raro antecipa as posies novas do pensamento na busca da verdade legtima e natural. O homem trs em si mesmo, na sua conscincia e na sua afetividade, o impulso fidesta. Descartes, na sua busca introspectiva da realidade, mergulhando no cogito, em profunda cogitao filosfica, descobriu a idia de um ser supremo e perfeito em si mesmo e declarou que a idia de Deus est no homem como a marca do obreiro em sua obra. Kant observou que essa idia o mais elevado conceito formulado pela mente humana, pois encerra em si mesma a sntese da realidade universal. Kardec, em suas pesquisas psicolgicas sobre a questo, concluiu que o homem trs em si a lei de adorao, que se comprova no plano histrico pelas manifestaes universais, de todos os povos e de
  • 26. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 26 todas as fases da evoluo humana. A exigncia constante dos ritos de adorao em todas as condies existenciais do homem revela a natureza ntica dessa lei e todas as condies do homem provam que ela tem sua fonte no prprio onto, ou seja, no prprio ser da criatura humana. Disso resulta que o homem um ser religioso. Mas a religio, para Kardec, embora se manifeste historicamente em processos rituais, no se prende a essas formas de simples exteriorizao, definindo-se, na sua expresso mais legtima, como adorao ntima e consciencial. Corroborando isso, Bergson uniu a religio moral, considerando que a verdadeira religio individual e absorvente, no se conformando com as religies formais e coletivas. Pestalozzi, que foi mestre de Kardec, j havia afirmado, antes da tese bergsoniana, que a verdadeira religio a Moralidade. A dor marca a religio em todos os seus aspectos, revelando que a sua origem est no impulso de transcendncia do homem. Dessa maneira, o conceito antropomrfico da dor, como castigo de Deus, resultante do pecado, seja como problema de conscincia ou como resultante crmica, proveniente de aes malficas em vidas anteriores ou remorsos decorrentes dessas aes na vida presente, no passa de um resduo do antropomorfismo que assinala as fases iniciais do desenvolvimento humano. A palavra karma indiana e provm do snscrito, mas vulgarizou-se na cultura esprita pelo fato de reduzir a expresso esprita efeitos da lei de ao e reao numa s palavra. A tendncia ao antropomorfismo, natural no homem, contribuiu poderosamente para integr-la na linguagem esprita, sem nenhum prejuzo doutrinrio quanto sua significao. A Doutrina Esprita tem a sua terminologia prpria, especfica, que no pode ser alterada ou atualizada, como pretendem alguns novidadeiros. Mas isso no impede que um termo ou outro, absorvido naturalmente pelo meio esprita, a ponto de se tornar usual, seja aceito pelos estudiosos. Alguns jovens afoitos e alguns velhotes novidadeiros querem transformar
  • 27. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 27 a terminologia esprita num saco de gatos, sem o menor respeito tradio e estrutura da doutrina. Na lingstica em geral a lei de absoro de termos enxertados permite esses enxertos quando eles podem facilitar o trnsito das lnguas, sem prejuzo das estruturas lingsticas em questo. Em geral, a prpria linguagem afetada por esses atentados terminolgicos rejeita os termos imprprios, devolvendo-os praia, como faz o mar com os detritos lanados nas suas guas. As estruturas lingsticas, como todas as demais, defendem-se das intromisses de terminologia estranha. O caso da palavra karma um dos poucos que foram pacificamente aceitos em todo o mundo, e essa aceitao universal a nica forma de legitimao do novo termo na antiga terminologia. Isso ocorre quando as leis de euforia e de afinidade conceptual no repudiam o termo e no uma pessoa, nem um grupo de novidadeiros ou uma instituio doutrinria que decide sobre a aceitao. Por influncia do antropomorfismo desenvolveu-se no meio doutrinrio esprita a idia restritiva de que todo aleijo ou situao anmala de natureza crmica. No obstante, o prprio Kardec adverte que muitos desses transtornos ocorrem por causa das imperfeies da matria densa, de que se constitui o nosso mundo. Foi o que Hegel postulou em sua teoria da evoluo esttica e Bergson reconheceu na sua teoria do lan vital. A restrio antropomrfica do karma desfigurou a aplicao indiscriminadamente aos casos de acidentes reencarnatrios. Uma criana nasce com deficincia numa perna ou num brao e logo um sabereta esprita promove a suposta devassa do seu passado, acusando-a de crimes inverificveis. Precisamos compreender que o esprito reencarnante tem o seu passado e trs o seu karma, mas tambm enfrenta uma nova experincia em que est sujeito a acidentes vrios na fecundao e na gestao, no parto, nos problemas da hereditariedade biolgica e assim por diante. Assim como temos em nosso destino a programao e o livre-arbtrio, temos tambm na experincia da reencarnao o karma e a margem naturalmente livre da
  • 28. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 28 nova experincia natalina. verdade que a programao crmica leva em conta os acidentes provveis, mas a margem de liberdade indispensvel na experincia reencarnatria, e que acima dos objetivos de resgate existe o interesse bsico de aprendizado e desenvolvimento das potencialidades. A teoria fatalista de Espinosa, em sua formulao matemtica irredutvel, no corresponde Doutrina Esprita de causa-efeito, precisamente por nos mostrar o mundo asfixiado numa estrutura sem liberdade e, portanto, sem opes, sem margem para a experincia do esprito. Todas as possibilidades experienciais do homem estariam sumariamente excludas do processo da vida, ante esse despotismo divino, que na verdade no seria divino, mas satnico. Por outro lado, as funes essenciais do inteligvel estariam obstrudas, condenandose o esprito a uma vida terrena de trabalhos forados, sem a mnima possibilidade de opo. A prpria interveno de Deus e a atividade dos espritos protetores estariam fatalmente barradas diante dessa programao de computador eletrnico. foroso considerar-se tambm a impiedade e at mesmo a imoralidade da permanente exibio dos crimes do passado nos aleijes da atual existncia. Entre os gregos houve correntes filosficas que anteciparam o fatalismo espinosiano de maneira ridcula, admitindo-se, na teoria do eterno retorno, que na reencarnao os homens voltavam s aldeias e casas estritamente semelhantes s do passado, com todas as suas delcias. Ao invs do progresso, da evoluo das coisas e dos seres, teramos apenas a repetio intil e permanente das situaes e condies anteriores. Scrates mostrou a insanidade dessas teorias de razes mitolgicas e antecipou a teoria livre da reencarnao esprita. Existem, naturalmente, os crculos viciosos das reencarnaes repetitivas, a que se apegam espritos irresponsveis e indolentes, mas a esses que Lzaro se refere, numa de suas mensagens includas em O Evangelho Segundo o Espiritis-
  • 29. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 29 mo, advertindo que os guias da humanidade em marcha faro esses indolentes avanar, com a dupla ao do freio e da espora, que corresponde ao da conscincia e da dor sobre esses retardatrios. De que serviriam os protetores e a ao benfica das provaes dolorosas, se a programao dos destinos fosse absoluta e, portanto, esmagadora? Kardec lembra que nenhum esprito se reencarna para repetir o passado criminoso, pois nenhum processo reencarnatrio tem por finalidade o mal, mas apenas o bem. Os que fracassam na reencarnao, retornando s prticas anteriores, so nufragos e no predestinados. Cada reencarnao implica uma misso e no existem misses criminosas. tempo de reexaminarmos essas questes, evitando as perguntas frvolas que muitas vezes se nos deparam no meio esprita, como esta: Por que sofrem os animais? Sofrem porque evoluem e porque toda evoluo, consciente ou inconsciente, sempre acompanhada das dores do parto que anunciam as transies evolutivas para planos superiores. Nada se faz sem esforo e, portanto, sem dor. Ningum supera a gravitao sem esforo e dor. necessrio o explodir dos foguetes espaciais para que o homem sinta a presso atmosfrica e a gravitao terrena para se lanar no espao sideral. O homem no mais do que um dos elementos ativos da natureza, como os vegetais e os animais. Cabe-lhe, em conjugao com os demais elementos, trabalhar a terra, modific-la, preparla para o futuro, sacrificando-se ao lado dos seres massacrados por ele em suas experincias evolutivas. Tendo atingido o desenvolvimento mental necessrio para lhe dar supremacia sobre os demais, no se conformou com a sua condio animal e atingiu a duras penas a condio superior do subumano, de que ainda hoje no conseguiu libertar-se. Proclamou-se filho nico de Deus, com direitos de herdeiro exclusivo sobre toda a criao, e no se sujei-
  • 30. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 30 tou s exigncias da humildade e da simplicidade para prosseguir na escalada, j ento de ordem moral e no fsica. O mito grego de Prometeu, que roubou o fogo do cu, d-nos a medida do atrevimento humano. A inconformao com a dor e a morte simbolizada no mito pelo roubo do fogo divino e a condenao de Prometeu, entregue aos abutres do Cucaso, simboliza a condenao da espcie humana s condies perecveis das espcies animais. A imolao voluntria do Cristo, para salvar a Humanidade do seu orgulho estpido e orient-la nos caminhos mais suaves da humildade e do sacrifcio, foi o socorro da Humanidade Crstica, dos mundos superiores do Cosmos, tentando despertar o homem terreno para o seu engano desastroso. Se o exemplo do Cristo e os seus ensinos tivessem sido aceitos no estaramos mais num mundo de provas e expiaes, mas teramos o Reino de Deus implantado e florescente na Terra. No plano moral que o homem atingiu, dotado das luzes da conscincia, bastaria a sua aceitao da humildade para que o desenvolvimento de suas potencialidades divinas se acelerasse. Infelizmente, empolgados pelo orgulho e a arrogncia, continuamos a considerar-nos como os privilegiados de Deus e nos embriagamos com o vinho dos tonis inteis de Ssifo, que rodamos sem cessar at o cume da montanha e o deixamos rodar encosta abaixo sem nenhum proveito. Nosso orgulho no nos permite aceitar a condio humana, que nos sujeita s doenas, dor e morte. Camos na contradio de sonhar com a eternidade da vida carnal, esquecidos de que a carne um simples agregado atmico sujeito dissoluo temporal. Aniquilamos o prprio planeta em que vivemos e ateamos fogo a ns mesmos, tentando superar a morte com alucingenos que a abreviam e com o ridculo expediente dos cadveres congelados. Tamanho foi o nosso orgulho, que acabamos nos frigorficos como animais de corte.
  • 31. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 31 4. O Mundo sem Dor Toda a nfase deste captulo podia ser representada por uma pgina em branco. A evoluo da dor equivaleria instalao universal do nada, esse conceito vazio, segundo Kant, esse zero absoluto da anti-realidade, essa negao da negao, em termos dialticos; seria o princpio de tudo o que no nem pode ser. Pitgoras, para figurar a solido de Deus antes da Criao, recorreu idia do Uno, o nmero 1, sem procedncia nem conseqncia, imvel no Inefvel. Sartre, em nosso tempo doloroso, para devolver o homem ao nada de que teria sado, teve de recorrer contradio de uma frmula dialtica que levaria o pensamento frustrao total de si mesmo. No h sada para a idia do nada, seno no solipsismo da volta ao nada, que nada nem pode ser. A imaginao pitagrica teve pelo menos a coerncia de recorrer ao acaso, admitindo um estremecimento do 1 no inefvel, que multiplicaria a unidade, desencadeando a Dcada, o nmero 10 que deu nascimento ao Todo. Filsofos e telogos cristos vangloriam-se at hoje da originalidade da Bblia, que fez Deus tirar o mundo do nada, tirar o real do irreal. Mas a Bblia um livro judeu e no cristo. Configura-se nessa vanglria a glria v de um roubo do nada. Na verdade, o nada s pode existir em termos de relatividade, o que, subordinando-o ao todo, anula toda a sua pretenso existencial. Para o nada existir seria necessria a existncia dos elementos formais do nada, que no seriam nada, mas alguma coisa. Tudo isso pode parecer uma cogitao vazia, mas no , pois se processa nos quadros histricos do pensamento antigo e mo-
  • 32. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 32 derno, levando-nos a uma concluso mentalmente objetiva: o nada uma impossibilidade do pensamento. Como a dor um elemento do sensvel, chegamos a outra concluso inevitvel: o mundo sem dor uma abstrao gratuita que s existiria no imaginrio absoluto e inconseqente, pois a excluso da dor implicaria necessariamente a inexistncia de qualquer atividade. Seria o mundo da morte absoluta, sem a esperana da ressurreio, que acarretaria a dor absoluta. Nesse solipsismo do absurdo chegamos a outra impossibilidade do pensamento: a da definio absoluta de Deus. Nada mais podemos fazer do que aceitar a sua realidade como ela se apresenta na introjeo imemorial da nossa conscincia profunda, em que Descartes a encontrou na sua cogitao assombrosa, ou neg-la, negando ao mesmo tempo toda a realidade. Essa exigncia da negao total decorre das condies epistemolgicas da nossa cultura, que no permite mais a fragmentao do saber, com as posies ilhadas de campos gnosiolgicos ilhados e enfeudados em provncias esprias do Conhecimento. Hoje o Conhecimento um s, o macio do Saber, no admitindo uma Cincia dos homens mais do que homens e outra dos homens simplesmente homens da diviso estratgica de Descartes. A unificao do Ser produziu, ao mesmo tempo, a fragmentao profissional das especialidades, no plano da prtica cientfica, e massividade da generalizao globalizante. Ou admitimos a existncia de Deus como Conscincia Csmica abrangente ou a rejeitamos como impossibilidade lgica (na Lgica Antiga e na Lgica Moderna), de maneira que os capatazes de Deus foram banidos de seus cargos e expulsos do processo cultural. Foi o que Dilthey colocou de maneira precisa em seu ensaio sobre A Tragdia da Cultura, em que o aumento de conhecimentos supera a capacidade individual da mente humana. A Filosofia das Cincias abrangeu numa viso gestltica, globalizante, os setores dispersos da investigao. A crena foi afastada
  • 33. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 33 como posio ingnua do passado e a f tornou-se conhecimento comprovado. Kardec postulou a prevalncia da f como certeza decorrente da experincia e da prova. Foi ainda mais longe, mostrando que a Revelao, instrumento divino do Saber, ao mesmo tempo humana e divina, pois os cientistas revelam com mais segurana que os profetas. Denis Bradley, ante as experincias medinicas de que participou nos Estados Unidos, proclamou: Eu no creio, eu sei! John Laurence, biofsico da NASA, declarou num simpsio em So Paulo: O ncleo do tomo no tem massa e rege a constelao atmica. Tentamos agora descobrir o ncleo do homem. Essa viso cientfica e geral da realidade no permite mais a antinomia crena e saber, que propiciou no passado sombrio o poder eclesistico sem limites do fanatismo religioso. No h mais lugar para fanatismos de qualquer espcie no mundo atual, iluminado pelas esperanas da Era Csmica. Os fanticos ideolgicos so os ltimos abencerrages do nosso sculo, condenados de maneira inapelvel extino total. Os espritas, primeiros chamados para a compreenso da Cincia Integral e que na sua maioria refugiaram-se num beatismo de sacristia , esto intimados a alijar dos ombros as cargas do misticismo igrejeiro para poderem assumir a herana do sculo. O conhecimento epidrmico da doutrina que herdaram os transformaram em adversrios de si mesmos. S lhes resta um caminho a seguir: o rompimento com os compromissos sectrios das religies formalistas em que foram criados e alimentados, pelo aprofundamento corajoso no estudo dos seus princpios doutrinrios. A deformao sistemtica do homem, no mundo inteiro, pelos telogos e clrigos, na explorao do medo morte, no terror do sagrado e no comrcio deslavado da simonia, transformou os homens em criaturas servis, hipcritas e levianas, incapazes de encarar com seriedade e coragem os problemas espirituais. A raa de vboras que o Cristo enfrentou e denunciou em Jerusalm espalhou-se por toda a
  • 34. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 34 Terra, contagiando a Humanidade. O meio esprita no podia escapar a esse contgio. A mais vigorosa e libertria doutrina j surgida no mundo converteu-se, nas mos de multides ignorantes e obtusas, em novo muro de lamentaes. Os beatos das religies dogmticas trocaram de pele mas no perderam suas manhas. Substituram os ritos catlicos pelos passes e preces, a gua benta pela gua fludica e os rosrios de repeties medrosas pelos colares de contas de If, na magia primitiva das religies mgicas da selva, negras e indgenas. A marafa ou cachaa de lcool de cana, principalmente na Amrica, substituiu nos batuques da macumba os vinhos sacramentais de uva. No pandemnio das supersties os deuses africanos e americanos demonstraram aos ingnuos que a sabedoria divina no est nos livros, mas na boca dos exus, no batuque dos tambores e nas defumaes de charutos e ervas milagrosas. A miscigenao religiosa (na verdade mgica e selvagem) gerou ento as religies mestias de que tratou Euclides da Cunha, sucedneos mais fceis dos complicados sacramentos dos padres paramentados. A linguagem e os ritos da selva substituram os instrumentos sagrados de ouro e prata e o latim incompreensvel. As prticas da Gocia arcaica, ou magia negra, os batismos de sangue animal em cabeas raspadas e humilhadas derrotaram os ritos batismais de gua. Era inevitvel o abandono do livro, do estudo, da reflexo sobre problemas superiores, nesse meio bastardo em que o analfabetismo e a ignorncia eram regra e praxe de virtudes salvadoras. No meio esprita a infiltrao das prticas selvagens, graas ao analfabetismo geral e a repulsa das criaturas simples aos problemas culturais, conseguiu infiltrar-se. A confuso comodista entre simplicidade e estupidez levou muitos espritas simplrios a deixar a doutrina de lado como intil inveno de gente letrada e vaidosa. Nos meios culturais o reflexo dessa situao desastrosa levou comodistas altamente considerados a moverem campanhas difamatrias contra a doutrina e seus adeptos, em nome de um
  • 35. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 35 Cristianismo desfigurado e de uma cultura cientfica mentirosa. A obra de Kardec ficou confinada a poucas pessoas de bom-senso e livres de preconceitos. Era mais uma curiosidade do sculo XIX do que uma formulao doutrinria superior. Como se isso no bastasse, criaturas de pretensa sapincia, consideradas semi-sbias por seus ttulos acadmicos, num meio em que a cultura era luxo e no dever, aceitaram mistificaes ridculas como a de Roustaing como complemento necessrio da obra kardeciana, mais voltada para a Cincia dos homens do que para a Cincia divina. Como pode manter-se, at hoje, em instituio respeitvel por seu passado essa mixrdia indigna? Toda uma mitologia do absurdo se mistura s realidades claras da doutrina kardeciana, a comear pelo nascimento mitolgico de Jesus, gerado numa falsa gravidez de tipo histrico na reformulao dos evangelhos por entidades visivelmente trapaceiras com a finalidade nica de ridicularizar a doutrina racional e cientfica do Espiritismo. Entretanto, na mesma hora que isso acontece, as Cincias confirmam em suas pesquisas, sem o saber e sem o querer, os princpios da doutrina ultrajada e rejeitada. No precisaramos de mais evidente prova da impossibilidade de um mundo sem dor. O ensino e abnegao de Jesus transforma-se historicamente em motivos de lutas sangrentas por dois milnios. A obra modelar de Kardec modelo de racionalidade, fundada em pesquisas cientficas da fenomenologia paranormal, modelo de critrio cientfico, modelo de abertura para novas perspectivas no campo do Conhecimento, modelo de respeito s leis naturais, modelo de correo justa e pacfica dos erros clamorosos do passado, modelo cartesiano da busca da verdade sem precipitao e sem preconceitos, foi simplesmente rejeitada como anticientfica e supersticiosa por abrir s Cincias novos caminhos de busca no sensvel e no inteligvel. No faltava, sequer, ao mestre sacrificado, as credenciais da cultura universitria, como peda-
  • 36. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 36 gogo, continuador da obra de Pestalozzi, mdico e professor de Cincias Mdicas, diretor de estudos da Universidade de Paris, com suas obras aprovadas e adotadas pela Universidade. O que houve de dor nesse episdio histrico moderno foi suficiente para provar que estamos ainda muito longe de podermos sonhar com um mundo de paz eterna, como queria Kant. Sofreu Kardec, sofreu sua esposa Amlie Boudet, sofreram os companheiros e colaboradores do mestre. Porque toda luta pela evoluo, nos mundos inferiores, sempre marcada pela dor em todos os seus aspectos. Mas agora, que at mesmo na rea materialista ideolgica da Terra, a obra de Kardec se impe por sua inegvel legitimidade, necessrio que os espritas enfrentem a grande tarefa de estud-la, pesquis-la e elev-la ao plano que lhe cabe na atualidade. Estudar Kardec, pondo de lado todas as tentativas de desfigurao da mesma que foram semeadas no meio doutrinrio por seus pretensos superadores, j uma contribuio, por modesta que seja, ao reconhecimento da abnegao do mestre. E mais do que isso, o estudo srio, consciencioso e respeitoso dessa obra monumental um dever de todos os que a seguem como filosofia de vida, mesmo que tropeando nas pedras do caminho. Essa obra representa um momento culminante do desenvolvimento cultural da Terra. E a Terra necessita dela, hoje mais do que nunca. Se o movimento esprita no revelar condies para compreender a herana kardeciana, estaremos falidos perante ns mesmos.
  • 37. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 37 5. A Lagosta de Sartre A morte nos espera na sala de partos, quando no se precipita a ir buscar-nos no ventre. Costuma-se dizer que comeamos a morrer ao nascer e essa uma verdade biolgica. Mas, apesar dessa naturalidade milenria da morte, no nos acostumamos com ela, por uma razo muito simples, que o gosto pela vida. Entretanto, quando a vida se prolonga demais, perde pouco a pouco o seu gosto. O envelhecimento uma forma de expulso. A velhice no uma ceifadora esqueltica, mas uma bruxa que nos enxota da vida com sua vassoura voadora. A situao do velho atirado como que num depsito de automveis gastos e enferrujados a de um pingim na Praia Grande: a temperatura o castiga, as juntas lhe dem, a saudade o oprime, a gua do mar parece gua choca de lagoa tropical, ele quer arrancar-se dali e gritar que est vivo, mas falecem-lhe as energias e a disposio. Ele se acaba, mas ainda no se acabou e a chamazinha tnue da esperana, a ltima a apagar-se, bruxoleia irnica em seu corao de casa assombrada. E ainda surgem os poetas gozadores que, como Bilac, dizem coisas assim: Envelheamos rindo, como as rvores fortes envelhecem, agasalhando os pssaros nos ramos, dando sombra e consolo aos que padecem. demais! Eles no tm mais ramos, nem fora, nem capacidade para rir ou sorrir, sua sombra esqueltica e seu consolo mal d para o consumo prprio. Contam que Victor Hugo envelheceu trotando na sala com os netos nas costas, que o faziam feliz. Conta Simone de Beauvoir, nas suas memrias da maturidade, que Jean Paul Sartre, ao sentir que envelhecia, preferiu enlouquecer e comeou a ser perseguido por enorme lagosta que o
  • 38. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 38 acompanhava por toda parte, amedrontando-o. Ele, que no gostava dos psicanalistas, pois um deles j o havia convencido de que era uma personalidade mutilada, pois no possua o superego, preferiu assim mesmo um tratamento analtico. Simone arranjoulhe uma jovem enfermeira e esta se engraou com o doente e o doente com ela. Isso provava que a velhice no estava to prxima; restavam foras ao filsofo para conquistas amorosas. Mulher decidida e prtica, apesar de filsofa, Simone mandou a enfermeira embora, espantou a lagosta e tomou conta do companheiro antes que fosse tarde. Sartre continuou a envelhecer, gastou suas ltimas energias na sua volumosa obra Crtica da Razo Dialtica e acabou perdendo o seu nico olho, pois foi picego desde criana e sempre viu o mundo enviesado, com um olho s. A velhice o abateu e ele hoje confessa que no vai bem das pernas, como nunca foi da bola. Esse novssimo episdio da Histria da Filosofia mostra-nos que o gosto pela vida de uma resistncia a toda prova. Mas h outros fatos que provam o contrrio. Por exemplo: o filsofo argentino Jos Ingenieros temia mais a velhice do que a morte e dizia no querer passar dos quarenta anos. Como passou, suicidou-se. Mas claro que a preferncia pela morte foi forada e no voluntria. O certo, o normal, o velho apagar-se naturalmente como lamparina que esgotou o azeite. Os que se preveniram no suicdio ou na loucura ainda conservavam mais mocidade do que podiam supor. Estas parbolas servem para mostrar que, embora nos acompanhando desde o nascimento, a morte uma companheira indesejvel. Heidegger lembra que at na linguagem comum usamos o reflexivo se para afugentar a morte, como na expresso: Morrese, onde o se transfere a morte para os outros. Morremos, mas sempre a contragosto. Mas quando nos convencemos realmente de que a morte apenas uma mudana, como dizia Victor Hugo
  • 39. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 39 depois de suas experincias espritas com Madame de Girardin, recebemos a morte com alegria, pois ela nos tira o fardo das costas e nos leva ao encontro dos amigos e seres queridos que foram antes de ns para o outro mundo. Talvez tenha sido por essa certeza que Hugo se divertia com os netos enquanto a esperava. Os romanos, particularmente na Repblica, gostavam de exaltar a velhice. A senectude j naquele tempo dava os frutos geralmente balofos ou amargos das subgeraes de senadores. Ccero insistia na importncia da maturidade que dava repouso alma, amortecendo as inquietaes da carne. Casos como o de Marco Antnio e Clepatra ilustravam bem o perigo das fases hericas da juventude. Com essa teoria conseguiram envelhecer Roma, que se afundou na perverso da velhice impotente, mas ainda de fogo aceso, em homenagem aos deuses. Passaram, com o tempo, a confiar mais nos gansos do Capitlio do que em suas legies aguerridas e acabaram massacrados pelos brbaros. No podemos enfeitar a velhice com sugestes ilusrias. Ela simplesmente o processo natural de desgaste das coisas materiais no decorrer do tempo. Por isso diz o vagabundo de Knut Amsun: A velhice no nos d experincias nem sabedoria, mas cabelos grisalhos e rugas. E acrescenta, lembrando a empfia e as tolices dos sbios em todo o mundo: Deus me livre de ser um sbio. Sartre no sbio, mas filsofo, ou seja, amante da Sabedoria. Na posio de amante dessa divindade etrea, sempre se manteve em guarda contra o carrancismo dos homens casados com divindades de carne e osso, geralmente demasiado exigentes. Aceitou que Juliette Grecco se fizesse Musa do Existencialismo no Caf de Fiore, onde gostava de escrever. Considerou a seriedade como falsa categoria filosfica e, mesmo agora, depois dos sessenta anos e cego, declara s revistas parisienses que no gosta de conversar com pessoas de mais de 30 anos de idade. Era natural que arranjasse, ao sentir que envelhecia, uma companheira sem compromissos para o acompanhar na velhice. A enorme lagosta
  • 40. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 40 promissos para o acompanhar na velhice. A enorme lagosta que o seguia pelas ruas de Paris era um fantasma desinibido, explorado e devorado impiedosamente pelos franceses, que na loucura por lagostas chegaram quase a provocar uma guerra de lagostas com o Brasil. Isso mostra que Sartre, inimigo de mitos e mitlogos, fugia com sua lagosta das terrveis homenagens que os becios costumam prestar aos sbios que envelhecem glorificadores de si mesmos s custas da glria alheia. Nenhum desses aproveitadores se sentiria bem numa solenidade acadmica em que a enorme lagosta aparecesse nas costas do filsofo, como o bacalhau nas costas do antigo propagandista de Emulso de Scott. Talvez a nica vantagem da velhice seja o aguamento da crtica e da irreverncia nos velhos inteligentes, que afiaram no correr dos anos a sua lmina de ironia. O sorriso irnico de Voltaire contribuiu mais para a libertao dos homens das garras da moral burguesa do que o sorriso suspeito e enganador da Mona Lisa. Os burgueses no se livraram at hoje da subservincia dos burgos medievais. A ironia brota da inteligncia, e quando trs ainda o cheiro da terra no corta ao lu, mas poda. Podar a burguesia da sua ramagem de subservincia semear no solo as sementes de um novo mundo, livre de milionrios e mendigos. Ele viveu com um p na cova e o outro na plataforma de foguetes do Cabo Canaveral. Todos envelhecemos, mas Voltaire soube transformar o seu desgaste orgnico em refinamento do esprito afiando-o como lmina de navalha. Os clrigos o amaldioaram por toda parte e o consideraram morto e enterrado, mas Kardec provou a sua sobrevivncia em suas pesquisas medinicas da Passage SaintAnne, em Paris. S h uma maneira de fugirmos ao envelhecimento, que preservando a nossa liberdade espiritual, pois o esprito no envelhece. Os que se fazem independentes em meio servido geral
  • 41. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 41 podem sorrir como Voltaire da arrogncia dos estpidos, covardes e venais, que esmagam os indefesos com os recursos de suas castas exploradoras, em nome de Deus e das instituies criadas pelos egostas. O sorriso de Voltaire salvou o soneto de Bilac, pois se pudermos envelhecer como ele, usando o sorriso irnico ante a farndola dos falsificadores da espcie humana, ajudaremos o mundo a se livrar das aves de rapina. A lagosta de Sartre foi uma encenao inconsciente com esse mesmo sentido. O envelhecimento orgnico est tambm sujeito ao do psiquismo. A vontade de cada um pode acelerar ou retardar os processos do desgaste orgnico. Simone mesmo, apesar de sua posio agnstica, reconhece que no podemos chamar a Humanidade de espcie humana, porque ela supera as condies da animalidade em suas transformaes incessantes para um vir-a-ser imprevisvel. As reaes psicolgicas provocadas pelo envelhecimento so as mais variadas. Nas pessoas que temem a morte os sintomas da velhice geralmente provocam pnico e sensao de marginalizao. H os que se revoltam e procuram todos os disfarces possveis para manterem aparncia juvenil. Os que encaram com realismo o problema procuram apenas os recursos da gerontologia, tentando apenas evitar o aceleramento do processo. E h os que, maneira dos antigos romanos, entregam-se ao prazer de uma vida crepuscular, mais contemplativa do que ativa, gozando a perigosa placidez da aposentadoria real ou emocional. O temperamento de Sartre no se adapta a essas formas de acomodao. De certa maneira ele se compensou com a evocao da lagosta gigante, que lhe dava a sensao do perigo, beira da loucura, que lhe garantia, ao mesmo tempo, a sensao juvenil de pendurar-se na boca de um abismo e a possibilidade de sentir-se gal ao lado da enfermeira. Simone confessa que se ralou de cimes, o que deve ter reforado a permanncia psicolgica da lagosta.
  • 42. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 42 O caso mais curioso de entrega ativa velhice ocorreu com o famoso escritor colombiano Vargas Villa, que passou a maior parte de sua vida na Europa, considerando-se intelectualmente francs e emocionalmente italiano. No prefcio de sua novela bis, sucesso rococ entre os anos 20 e 30 em todo o mundo, encarava a velhice como a fase fantstica da vida, que lhe tirava as possibilidades do real mas o compensava com a possibilidade de evocar suas antigas lutas e paixes num clima de paz e encantamento. Figurava-se dotado de umas asas tnues e leves que lhe permitiam voar ao crepsculo sobre os campos de seus antigos combates, cheios dos destroos de suas vitrias passadas. Nem tudo dor nas dores do mundo. A imaginao humana capaz de doirar com reflexos de um sol interior as paisagens cinzentas. Vargas Villa se dizia capaz de evocar suas antigas emoes, fazendo-as ressuscitar do estado catalptico que haviam cado, com a vantagem de no se apresentarem com as trepidaes inquietantes do passado. Muitos jovens sonharam, ao l-lo, com as delcias do envelhecimento, mas poucos conseguiram passar pelos arcos de triunfo dessa viso legendria.
  • 43. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 43 6. Os Caminhos Incertos da Experincia Os adultos e os velhos se apegam experincia da vida como seu galardo e prova indiscutvel de sabedoria e autoridade. Mas as novas geraes se revoltam, de uma forma ou de outra, contra essa pretenso das geraes envelhecidas. O conflito de geraes no decorre simplesmente das diferenas etrias, dos desnveis da idade. O processo da experincia constitui-se de dois elementos fundamentais: a conquista progressiva do mundo dos adultos pelos jovens, que comeam pelo instinto de imitao que caracteriza as fases infantis e molda os jovens pelo comportamento, o vesturio e as regras sociais e morais dos avs e dos pais. Por isso, na educao antiga as crianas e os adolescentes eram considerados como adultos em miniatura. A revoluo pedaggica de Rousseau produziu o primeiro impacto nessa sistemtica, abrindo as perspectivas da educao moderna, fundada na Psicologia da Infncia e da Adolescncia e na orientao tica das novas geraes. Os mtodos de amoldagem foram pouco a pouco cedendo lugar aos processos de desenvolvimento das potencialidades. Pestalozzi, mais educador do que pedagogo, o que vale dizer mais prtico do que terico, deu aos fins da educao um sentido universalista, segundo o qual o educando no devia amoldar-se ao passado, mas lanar-se ao futuro. Kant reconheceu que a educao tinha por objetivo real, no a acomodao, mas o deslocamento do ser no espao e no tempo, em busca da perfeio. Voltava ao princpio socrtico do desenvolvimento das potencialidades ocultas no educando. Cada ser trazia em si a sua prpria sabedoria, cabendo ao educador proceder no educando o parto do esprito, com a revelao das suas potencialidades. A educao se trans-
  • 44. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 44 formava, assim, no processo de desenvolvimento no educando de toda a sua perfectibilidade possvel, ou seja, de toda a perfeio que o ser pode atingir. Essa a educao universal da Humanidade, que no se confunde com a adaptao do ser aos usos e costumes, crenas e vivncias de uma determinada sociedade. Ao examinar essa proposio, descobrimos de imediato as molas secretas da evoluo humana, que Kardec, discpulo e continuador da pedagogia pestalozziana, revelou, atravs de suas pesquisas dos fenmenos paranormais, a natureza do homem, integrando-o na realidade csmica como uma unidade palingensica que, como todas as coisas, no se perde nem se destri com a morte corporal. A Economia Divina no permitia o desperdcio sem sentido de sua maior e mais bela conquista, que a formao do ser humano. Nada se perde, tudo se transforma. A teoria posterior, baseada em Kardec, no dnamo-psiquismo de Gustave Geley, confirmava-se claramente na descoberta desse vetor ou unidade energtica do processo evolutivo. Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, essa a lei, proclamou Kardec, repetindo o ensino de Jesus a Nicodemos. Essa descoberta cientfica do Espiritismo, que as Cincias posteriores foram obrigadas a confirmar, desde Richet at Rhine, marcou o maior avano do Conhecimento Humano na segunda metade do sculo XIX, abrindo os caminhos do espantoso progresso cientfico do nosso sculo. Era natural que os povos da Antigidade, apesar das intuies da sabedoria grega clssica, no tivessem podido entrar no uso e gozo desse conhecimento, por falta dos recursos e do clima libertrio que s apareceriam mais tarde. A agressividade dos sculos de arbtrio era endgena, brotava das entranhas do homem como herana das fases primrias em que a razo era esmagada pela brutalidade da fora em suas mnimas manifestaes. Essa herana ainda pesa sobre ns, mas a abertura do nosso sculo facilitar
  • 45. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 45 a extino dos seus ltimos resduos, apesar da resistncia dos instintos animalescos que carregamos. A experincia favorece a adaptao do homem ao mundo, mas a insegurana do homem ante a variedade das situaes que enfrenta o leva a criar e manter dispositivos de segurana que so cristalizaes da experincia embargando as vias de acesso ao futuro. Podemos ver isso com nitidez nas estruturas sociais de todos os tempos. As foras de defesa da sociedade convertem-se em dispositivos de represso que as transformam em mecanismos rgidos de asfixia da liberdade. O ensaio de Denis em Rougemont, A Aventura Ocidental do Homem, confrontando as condies massivas das tribos e das hordas com as massivas civilizaes orientais, tornou transparente essa afinidade histrica dolorosa. Esparta venceu Atenas, engrenando de novo o cidado ateniense na opressividade das estruturas brutais, agora desenvolvidas ao mximo na racionalidade anti-racional da expanso tecnolgica. A civilizao crist negou-se a si mesma por medo de suas prprias criaes e apego sua suposta perfeio. A advertncia de Jesus: quem se apega a sua vida perd-la- foi aplicada s avessas na traduo latina dos romanos. Ao se conluiar com o Imprio, a Igreja Crist perdeu o sentido da sua vida espiritual e se profanou na aventura ocidental das conquistas a ferro e fogo. O mesmo aconteceu na rotina da vida familial, onde a autoridade dos pais, voltada para a segurana dos filhos, despertou-lhes a revolta ante as exigncias contrrias ao impulso de renovao das novas geraes. Ingenieros proclamou em As Foras Morais que a juventude toca a rebate em toda renovao. Dewey mostrou que a funo das novas geraes no a de se acomodar s experincias das geraes passadas, mas a de reelabor-las de acordo com as exigncias dos novos tempos. Mas o apego dos homens s estruturas cristalizadas e prescritas e aos formalismos hipcritas negou aos
  • 46. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 46 filhos o direito de cumprir os seus deveres, estabelecendo, assim, conflito de geraes com todos os excessos do desespero e da angstia, a chamada angstia existencial dos nossos dias. A experincia tem a sua validez limitada pelas condies de cada poca. O processo experiencial regido pelas leis da evoluo, na medida dos novos problemas que surgem. A escala de valores de uma poca torna-se perempta na poca seguinte. Disso decorre a inaplicabilidade das normas do passado ao comportamento humano da poca seguinte. A idia de que a moral decorre dos usos e costumes j se torna caduca em nossos dias, dado o avano do conhecimento no campo das Cincias Humanas, particularmente no plano psicolgico e no ontolgico. Graas s contribuies de Bergson, Ren Hubert, Kerschensteiner e Rhine ficou demonstrado que a moral decorre das leis extrafsicas da conscincia, manifestadas atravs do pensamento. Ao contrrio do que se pensava at agora, os usos e costumes no surgem apenas dos meios sociais em organizao, mas tambm e sobretudo das exigncias conscienciais do homem. Os costumes (morais) que parecem determinar a moral, na verdade so determinados, orientados e disciplinados pelas exigncias conscienciais provenientes das aspiraes de ordem, paz e felicidade inscritas na mente e na afetividade humana e projetadas pela vontade no plano das atividades prticas. A experincia concreta no mundo revela ao homem os meios de ao mais compatveis com aquelas aspiraes. Os instintos animais em evoluo, nos processos evolutivos para o plano hominal, desenvolvidas as suas potencialidades, convertem-se em imperativos conscienciais que Scrates e Kant j haviam previsto em suas intuies antecipadoras. Em cada nova gerao esses imperativos conscienciais se renovam, modificando o panorama moral do planeta. As fases de aparente retrocesso correspondem aos perodos de conflito em que a cons-
  • 47. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 47 cincia luta contra o apego ao passado. Em nosso tempo visvel essa luta contra preconceitos formais e hipocrisias cristalizadas e j h muito rompida pelas exigncias da vida prtica. Toda moral legtima se impe inevitavelmente pela prpria fora da sua autenticidade. Na reelaborao da experincia as novas geraes quebram os tabus do passado, destroem os preconceitos e arrancam as mscaras da hipocrisia institucionalizada. Aldous Huxley revela, em O Gnio e a Deusa, a condio conflitiva a que chegou a moral vitoriana na Inglaterra atual, no mais elevado plano da intelectualidade. Dos destroos da ltima conflagrao mundial a moral saiu esfarrapada em todo o mundo. No se trata de uma decadncia ou at mesmo, como querem alguns retardatrios, da morte da moral, mas de uma renovao profunda que tem de remover pesados escolhos custa de grandes sacrifcios e duras vergonhas. Passado esse perodo de transformao, o gnio no se mostrar to esquizofrnico ao peso da sua inteligncia e a deusa no ser to leviana e inconseqente. Impe-se a volta naturalidade nas relaes sociais, afastando-se os escolhos dos formalismos mentirosos com sua carga de hipocrisia aviltante, deformadora da criatura humana. O homem decado ter de reabilitar-se ao peso da sua prpria conscincia. Suas aspiraes de pureza, bondade e justia provm da mnada divina a idia de Deus no homem , que nunca foi nem poder ser afetada pelas crises da instabilidade social. O avano cultural no se faz ao acaso das circunstncias. regido por leis que o conduzem com segurana nas vias precisas. Sartre pregou e anunciou uma nova moral existencial que no chegou a formular. Sustentando a nadificao do homem na morte, no dispunha de condies para a tarefa que se propunha. Simone tentou socorr-lo, publicando um ensaio sobre uma possvel moral da ambigidade que, nas suas contradies, no passou de um ovo gorado. Hubert, na sua modstia e discrio, formulou
  • 48. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 48 o Esquisse Dune Moralit, estabelecendo as bases do seu Trait Gnrale de Pdagogie, duas contribuies vlidas para as perspectivas do futuro mundial. No Trait Hubert se coloca numa posio pedaggica tipicamente esprita, oferecendo uma viso interligada e dinmica do processo moral e do processo educacional que corresponde s exigncias crescentes do nosso tempo. O predomnio de Dewey nas escolas e centros universitrios do Brasil barrou a penetrao entre ns dessas contribuies de Hubert. Tivemos a oportunidade de introduzir esses trabalhos de Hubert na Cadeira de Histria e Filosofia da Educao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de