J. J. Veiga - Melhores Contos

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(*)Melhores Contos

Melhores Contos

j. j. VeigaSeleo de J. Aderaldo Castello

No quero arriscar um palpite dizendo) que Jos J. Veiga seria o primeiro a realizar no conto brasileiro o que o romance) j absorvera -- as duas formas de realidade, aquela cientfica e racional, esta artstica e irracional -. mas no resta dvida de que ele, embora possa no ser pioneiro neste particular, o fez com perfeio em Os cavalinhos de Platiplanto. (...) Se a armao tcnica tradicional no sofre abalos profundos nas mos de Jos J. Veiga -- pois a pintura de ambientes e a inventiva constituem o seu mais poderoso! instrumento de expresso e chegam a dar a medida de sua arte -- o que ele renova precisamente o ngulo de viso dos acontecimentos.Hlio Pluora

... Sua arte poder-se-ia definir como a do realismo mgico, quero dizer, a do conto fantstico em que todos os elementos so os da vida cotidiana, em que h o mistrio sem haver (a no ser em raras excees) o arbitrrio. Para isso concorre, em grande parte, o fato de serem todas essas histrias vistas por espritos de criana, cujo mundo, como se sabe possui vrias dimenses de que o adulto, posteriormente, se esquece. (...) O Sr. Jos J. Veiga parte dessas aparncias da vida real para uma vida profunda que pode ser ou um episdio cotidiano ou o mistrio que no chega a se decifrar e que se dissolve, por assim dizer, afinal, com a mesma gratuidade com que apareceu.

Wilson Martins

Jos J. Veiga, 1989

4 EDIO, 2000

1 REIMPRESSO, 2005

Diretor Editorial

JEFFERSON L. ALVES

Superviso Grafica NADIA BASSO

Diagramao e Reviso (coord.) FERNANDO DE BENEDITO GIO (CONTROLE)

Reviso

JOS LUIZ MARTINS DENISE SANTOS

Arte Final PAULO S. CASSARES

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Veiga, Jos J. 1915-1999

Melhores contos de J. J. Veiga / Seleo de J. Aderaldo Castello - 4. ed. - So Paulo : Global, 2000. (Melhores Contos).

ISBN 85-260-0228-7

1. Contos brasileiros I. Castello, Jos Aderaldo,

1921- II. Ttulo. III. Srie.

94-4106 CDD-869.935

ndices para catlogo sistemtico:

1. Contos : Sculo 20 : literatura brasileira 869.935

2. Sculo 20 : Contos : literatura brasileira 869.935

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Colabore com a produo cientfica e cultural.

Proibida a reproduo total ou parcial desta obra

sem a autorizao do editor.

N DE CATLOGO: 1728

Jos Aderaldo Castello nasceu em 1921, na cidade de Mombaa, Cear, onde passou a infncia e adolescncia em pequenos engenhos e fazendas de criao. Graduou-se bacharel licenciado em Letras Clssicas e Vernculas pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo. Logo a seguir, convidado para professor-assistente da Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade em que se formou, dava incio carreira docente e de pesquisador em Literatura Brasileira-, doutoramento, livre docncia e ctedra, pelo decorrer de 1945 a

1984, quando se aposentou. Mereceu o titulo de Professor Emrito da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - USP. Tambm lecionou na Universidade Mackenzie.

Esteve como professor visitante nas universidades da Provena e Bordeaux na Frana, e de Colnia na Alemanha. Foi diretor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So

Paulo; membro do Conselho Estadual de Cultura de S. Paulo; e da Comisso de Avaliao dos cursos de ps-graduao em Letras e Lingstica/Capes, nos dois primeiros binios de sua instalao

Escreveu para peridicos estrangeiros e nacionais tendo sido crtico da revista Anhembi e colaborador efetivo do Suplemento literrio de O Estado de S. Paulo. Conta com vrias publicaes em livros, das quais ressaltamos: Realidade e iluso em Machado de Assis; Manifestaes literrias do Perodo Colonial; Presena da Literatura Brasileira - histria, crtica e antologia, em colaborao com Antnio Cndido; Jos Lins do Rego - Modernismo e regionalismo; A Literatura Brasileira - origens e unidade (1500 - 1960) Do Real ao Mundo do Menino Possvel

boquinha da noite

no mundo que o menino impossvel

povoou sozinho! (Jorge de Lima)

A composio dos contos de Jos J. Veiga muito mais tradicional do que inovadora, no obstante a sua incurso no fantstico, no onrico ou no surrealista. Alguns contos consistem numa situao

desfecho, quer dizer, num quadro que sintetiza antecedentes, esclarecendo a relao entre o familiar ou coletivo, envolvente, e o individual. Prevalece, ento, uma viso emanada do geral, condicionando uma situao singular. Outros so a pequena narrativa de uma etapa de vida. Culminam em final dramtico, por vrios motivos: distanciamento de culturas, marcado por reaes preconceituosas; hostilidade implacvel do prepotente contra o mais fraco; ou ainda, a perversidade dos que so algozes, em contraste com a passividade da vtima, que ignorava o que lhe seria reservado. Ainda h casos em que o conto se reduz a uma espcie de episdio

chave na trajetria do protagonista, pressupondo, pois, antecedentes e conseqentes; finalmente, h outros que so a representao seletiva de uma experincia completa em si mesma, j superada e, portanto, simplesmente evocada.

Para as diferentes abordagens da realidade que nos transmite, o autor no se deixa preocupar com as especificidades da paisagem, de maneira a identific-la regionalmente. Na verdade, o que se impe na concepo da paisagem a configurao do espao que comporte o clima de envolvimento de situaes, conjunturas ou episdios singulares ou da condio humana. A paisagem, portanto, ambientao, concebida reciprocamente com a ao. Reduz-se ao essencial necessrio, ao dimensionamento do universo representado, em que freqentemente se passa do equacionamento com5o real para as libertaes onricas ou fantsticas. Contudo, quase todos os contos se apresentam equacionados com o universo rural em que se destacam pequenas propriedades e excepcionalmente pequenos vilarejos, reais ou imaginrios. Sente-se sempre a presena desse universo sertanejo, interiorano, com seus valores e sua rotina de vida.

Surpreendemos tambm certa freqncia de vocbulos, que so peculiares quele universo, e frases feitas, em consonncia com a oralidade de algumas narrativas. E a caracterstica freqente do conto contado para ser ouvido, por sua vez favorece o despojamento da narrativa e solicita a colaborao do ouvinte para a viso do espao e neste, simultaneamente, para o desenrolar da ao. Aqui, preciso frisar, quando fala o personagem-criana-narrador diretamente, mesmo que a evocao seja feita pelo adulto em que a criana se transformou, o que nos fica de fato a impresso de que estamos ouvindo a prpria criana. Citemos o conto Professor Pulqurio, que de incio registra claramente a confisso memorialstica: Quando eu era menino... A evocao da viso experincia da criana, que o verdadeiro protagonista, organizada pelo adulto, cuja interferncia resulta na interdependncia das duas idades. Vejamos: primeiro, aquilo que aconteceu e que deve ser narrado ou relembrado, uma vez j esquecido por todos, salvo pelo adulto-narrador que se prope relembr-lo a partir de dados da memria, guardados desde a infncia; a seguir, o perfil do heri dos- acontecimentos; o convvio da criana-testemunha com o heri que lhe informa sobre a descoberta que fez de documentos antigos, indicadores da existncia de um tesouro escondido; o que ele pretende, para desenterr-lo em proveito de todos: apelos aos habitantes da vila, sempre indiferentes, assim tambm as autoridades; o protesto do heri, s ento mobilizando a comunidade, que imediatamente volta a sua ateno para o desfecho de uma situao de verdadeiro impasse, criada pela forma de protesto; finalmente o desfecho, quando todos retornam indiferentes rotina de todos os dias. E habilmente o autor consegue dar narrativa uma dimenso machadiana, desde a estrutura, linguagem, anlise de reaes, reflexo crtica explcita ou implcita, at o desvendamento da impiedade humana, ao mesmo tempo que acentua um tanto caricaturescamente o distanciamento entre iluso e realidade prtica, no obstante as ambies humanas.

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Jos J. Veiga de uma maneira geral investiga a condio humana, onde a solidariedade sofre com a perversidade e a indiferena, ou com os preconceitos e o egosmo e ale mesmo com a passividade. Mas se assim o mundo dos adultos, esses aspectos negativos s excepcionalmente so tambm do universo da criana ou adolescente, como exemplifica um nico conto que, ao contrrio de outros de temtica infantil, de ambientao urbana. E sem dvida a riqueza maior do narrador reside exatamente na representao do universo da criana/adolescente naquele condicionamento rural. Oscila entre a relao com o universo adulto e a fantasia devaneio ou mesmo sonho, peculiares da primeira idade. Talvez porque o espao condicionador seja o rural, ele propcio aos sentimentos despojados, ingnuos ou puros. E com as possibilidades perceptivas e intuitivas da prpria criana, alm do seu poder de imaginao ou fantasia, se reconhece o universo circundante, seja do homem adulto, seja mesmo dos irracionais. Da parte da criana um querer penetrar-descobrir-saber, embora apenas com os instrumentos da percepo e da sensibilidade. E enquanto a realidade concebida composta com o seu prprio real mais devaneio ou sonho ou fantasia incorpora a criana, por ela igualmente incorporada, sem prejuzo da perspectiva de compreenso futura por parte da prpria criana ao se fazer adulta. Porque, felizmente, a criana ainda no sabe discernir entre o certo e o errado, o bom e o mau, para no dizer o bem e o mal, ainda est longe dos poderes da conscincia moral com seus parmetros de conduta. Ela percebe ou intui conforme com as circunstncias e assim que d expanso sua maquinao ou aguarda aqueles esclarecimentos futuros. De qualquer maneira, ela cria livremente a sua autodefesa, uma vez que tambm alvo da maldade dos adultos ou das vicissitudes da vida. Se amparada pela solidariedade, igualmente atingida por antipatias e, sem dvida, aspira a conhecer o porqu das coisas e do nosso comportamento.

Tanto na representao do universo do adulto quanto do infanto-juvenil, ou de ambos simultaneamente, o real alterna com o imaginrio onrico ou fantstico , embora este derive daquele. Quer dizer, ambos coexistem. Sem dvida o real e o real como componente implcito na temtica ou prprio do seu condicionamento, portanto com ela relacionado o prprio real, mas selecionado, isto , reduzido ao essencial. dessa captao e

7representao do real que emerge a imaginao liberada e livre, desdobrando-se ao exagero, ao absurdo, para alm da noo de tempo e de espao. Por exemplo, em O galo impertinente, que nos lembra O edifcio, de Murilo Rubio, geraes inumerveis de engenheiros se sucedem na construo de uma estrada, finalmente inaugurada. Mas nela surge um galo misterioso de enormes propores, tormento de todos e ameaa de vidas, de forma que aquela perfeio alcanada abandonada, quando na verdade desde o incio no tinha finalidade, no traduzia uma solicitao ou necessidade definida.

Tambm o fantstico e o absurdo residem s vezes no mistrio que envolve as coisas e as pessoas, espcie de encantamento, que desvendado, se desfaz. Embora intil, consola ou ilude, no tem preo, mesmo sendo precioso e imprescindvel. Veja-se assim A mquina extraviada, que, de repente, sem se saber de onde, trazida por homens que logo desaparecem, surge num pequeno lugarejo, brilhante e muda, exposta ao tempo e curiosidade embasbacada dos habitantes locais que aos poucos a incorporam no seu universo e cuidadosamente a preservam. Esse intil misterioso e inegocivel passa a ser um smbolo existencial no importa de que iluso, contudo essencial quela pequena comunidade, como na crnica O sino de ouro de Rubem Braga.

Mas reconsideremos ainda e so os mais numerosos os contos cujo ngulo de viso o infanto-juvenil. H casos, como ressaltamos, em que se passa do real ao onrico, este com o seu poder ao mesmo tempo libertador e liberador da criana, seja em defesa contra o cerco dos adultos, seja para a reordenao e reconhecimento do universo independente e prprio da infncia, ou para as duas coisas ao mesmo tempo. Se relemos Os cavalinhos de Platiplanto, remergulhamos mesmo nas liberdades criadoras da literatura infantil. Desvendamos ento um veio da sua prpria gnese, ou seja, o recurso de atribuir criana a revelao, digamos, autobiogrfica do seu universo, fazendo ao mesmo tempo com que o leitor adulto se reverta por sua vez ao universo da prpria infncia, enquanto se identifica com a representao daquele outro. Mas h casos em que o testemunho que se fixou na infncia rememorado pelo adulto, de maneira a sobrepor um ngulo de viso tardio, memorialstco, ao do registro originrio. Em outras palavras foi o que vimos em Professor Pulqurio e melhor se

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constata em A usina atrs do morro, em que a viso fantasiosa ou fantasiada da infncia pode revestir-se de sentido metafrico. Denuncia-se a o poder da mquina, devoradora da paz e da solidariedade, da vida simplria e pacata, do espontneo e natural, sem respeito pela tradio, tranqilidade e liberdade de certa condio humana. Finalmente, o conto Fronteira, o inverso dos demais contos de representao do universo infanto-juvenil. Aqui, em vez da passagem do real ao onrico fantasioso, passa-se deste segundo nvel ao primeiro, flagrando o momento em que a criana perde ou comea a perder o seu prprio poder de fantasia.

Para a configurao desse universo infanto-juvenil, ou melhor, da criana, o autor adequadamente preferiu o ngulo de viso dos seus pequenos heris, assim ampliando e colorindo o universo real ao sabor da percepo desviada antes para a fantasia do que para a prpria realidade, quando o medo no a desfigura ou a desproporciona ao exagero. Quer dizer, a prpria criana v, sente e configura seu universo, cuja dimenso do real ao imaginrio depende sempre dela, mesmo quando projetada no adulto. E nos dois livros de Jos J. Veiga Os cavalinhos de Platiplanto e A mquina extraviada, predominam os contos que representam este universo emergindo do real circundante para a libertao fantasista ou onrica, alguns casos em nvel do fantstico e poucos limitados ao verossimilhante e racional. Tudo indica que o autor reconstitui um universo guardado amorosamente pela memria, quer dizer, da derivado, sem ser impedido de criar situaes paralelas e at de compor conjunturas s vezes dramticas e imprevisveis. O certo que esse todo criado ou recriado constitui uma importante e, sob muitos aspectos, original contribuio de Jos J. Veiga para o enriquecimento da narrativa ficcional brasileira.

Jos Aderaldo Castello

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NOTAS

1. De dois livros de contos de Jos J. Veiga Os cavalinhos de Platiplanto e A mquina extraviada, com publicaes sucessivas de diferentes editoras, utilizamos os textos que temos em mos, a saber: do primeiro, a 7 edio. Civilizao Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1974; do segundo, a 2 edio, pela mesma editora, 1974. Em respeito fidelidade dos textos, a reviso final ficou sendo da responsabilidade do autor.

2. Reproduzimos do primeiro livro indicado na nota anterior, com doze contos, um total de nove; e do segundo, com catorze, transcrevemos onze.

So dispostos na mesma ordem em que aparecem nas respectivas obras, naturalmente um grupo de contos depois do outro, mas sem separao expressa. Ficam, assim, respeitadas as seqncias originais do prprio autor.

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A Usina Atrs do MorroLembro-me quando eles chegaram. Vieram no caminho de Geraldo Magela, trouxeram uma infinidade de caixotes, malas, instrumentos, fogareiros e lampies, e se hospedaram na penso de D. Elisa. Os volumes ficaram muito tempo no corredor, cobertos com uma lona verde, empatando a passagem.

De manhzinha saam os dois, ela de culote e botas e camisa com abotoadura nos punhos, s se via que era mulher por causa do cabelo comprido aparecendo por debaixo do chapu; ele tambm de botas e blusa cqui de soldado, levava uma carabina e uma caixa de madeira com ala, que revezavam no transporte. Passavam o dia inteiro fora e voltavam tardinha, s vezes j com o escuro. Na penso, depois do jantar, mandavam buscar cerveja e trancavam-se no quarto at altas horas. D. Elisa olhou pelo buraco da fechadura e disse que eles ficavam bebendo, rabiscando papel e discutindo numa lngua que ningum entendia.

Todo mundo na cidade andava animado com a presena deles, dizia-se que eram mineralogistas e que tinham vindo fazer estudos para montar uma fbrica e dar trabalho para muita gente, houve at quem fizesse planos para o dinheiro que iria ganhar na fbrica; mas o tempo passava e nada de fbrica, eram s aqueles passeios todos os dias pelos campos, pelos morros, pela beira do rio. Que queriam eles, que faziam afinal?

Encontrando-os um dia debruados na grade da ponte, apontando qualquer coisa na pedreira l embaixo, meu pai cumprimentou-os e puxou conversa; eles olharam-no desconfiados, viraram as costas e foram embora. Meu pai achou que talvez eles no

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entendessem a lngua, mas depois vimos que a explicao no servia: quando encontraram o preto Demoste de volta do pasto com a mula do padre eles conversaram com ele e perguntaram se lobeira era fruta de comer. E como poderiam viver na penso se no conhecessem um pouco da lngua? Por menos que falassem, tinham que falar alguma coisa.

O que me preocupou desde o incio foi eles nunca rirem. Entravam e saam da penso de cara amarrada, e o mximo que concediam a D. Elisa, s a ela, era um cumprimento mudo, batendo a cabea como lagartixas. Aprendi com minha v que gente que ri demais, e gente que nunca ri, dos primeiros queira paz, dos segundos desconfie; assim, eu tinha uma boa razo para ficar desconfiado.

com o tempo, e vendo que a tal fbrica no aparecia e no sendo possvel indagar diretamente, porque eles no aceitavam conversa com ningum cada um foi se acostumando com aquela gente esquisita e voltando a suas obrigaes, mas sem perdlos de vista. No sabendo o que eles faziam ou tramavam no sigilo de seu quarto ou no mistrio de suas excurses, tnhamos medo que o resultado, quando viesse, pudesse no ser bom. Vivamos em permanente sobressalto. Meu pai pensou em formar uma comisso de vigilncia, consultou uns e outros, chegaram a fazer uma reunio na chcara de Seu Aurlio Gomes, do outro lado do rio, mas Padre Santana pediu que no continuassem. Achava ele que a vigilncia ativa seria um erro perigoso; supondo-se que os tais descobrissem que estava havendo articulaes contra eles, o que seria de ns que nada sabamos de seus planos? Era melhor esperar. Naquele dia mesmo ele ia iniciar uma novena particular, para no chamar ateno, e esperava que o maior nmero possvel de pessoas participasse das preces. Na sua opinio, essa era a providncia mais acertada no momento.

Estvo Carapina achou que um bom passo seria interceptar as cartas deles e l-las antes de serem entregues, mas isso s podia ser feito com a ajuda do agente Andr Gis. Consultado, Andr ficou cheio de escrpulos, disse que o sigilo da correspondncia estava garantido na Constituio, e que um agente do correio seria a ltima pessoa a violar esse sigilo; e para matar de vez a sugesto falou em duas dificuldades em que ningum havia pensado: a primeira era que, nos dias de correio, s um dos dois saa em

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excurso, o outro ficava de sobreaviso para ir correndo agncia quando o carro do correio passasse; a segunda dificuldade era que as cartas com toda certeza vinham em lngua que ningum na cidade entenderia. Que adiantava portanto abrir as cartas? Era mais um plano que ia por gua abaixo.

Sem dvida o perigo que recevamos nesses primeiros tempos era mais imaginrio do que real. No conhecendo os planos daquela gente, e no podendo estabelecer relaes com eles, era natural que desconfissemos de suas intenes e vssemos em sua simples presena uma ameaa a nossa tranqilidade. s vezes eu mesmo procurava explicar a conduta deles como esquisitice de estrangeiros,, e lembrava-me de um alemo que apareceu na fazenda de meu av de mochila s costas, chapu de palha e botina cravejada. Pediu pouso e foi Ficando, passava o tempo apanhando borboletas para espetar num livro, perguntava nomes de plantas e fazia desenhos delas num caderno. Um dia despediu-se e sumiu. Muito tempo depois meu av recebeu carta dele e ficou sabendo que era um sbio famoso. No podiam esses de agora ser sbios tambm? Talvez estivssemos fantasiando e vendo perigo onde s havia inocncia.

Imaginem portanto o meu susto e a minha indignao com o que me aconteceu uma tarde. Eu tinha ido penso receber o dinheiro de uns leites que minha me havia fornecido a D. Elisa e na sada aproveitei a ocasio para dar uma olhada nos caixotes empilhados no corredor. Levantei uma beirada da lona e vi que eram todos do mesmo tamanho e com os mesmos letreiros que no entendi. Ia puxando novamente a lona quando notei uma fenda em um deles, e como no passava ningum no momento resolvi levar mais longe a minha inspeo. Abri o canivete e estava tentando alargar a fenda quando senti o corredor escurecer. Pensei que fosse a passagem de alguma nuvem, como s vezes acontece, e esperei que a claridade voltasse. Voltou, mas foi uma mo pesada agarrando-me pelo pescoo e jogando-me contra a parede. O puxo foi to forte que eu bati com a cabea na parede e senti minar gua na boca e nos olhos. Antes que a vista clareasse, um tapa na cabea do lado esquerdo, apanhando o pescoo e a orelha, mandou-me de esguelha pelo corredor at quase a porta da rua. Apoiei-me na parede para me levantar, e um pontap nas costelas jogoume esparramado na calada. Erguendo a cabea ralada do raspo

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na laje, vi o homem de culote e blusa cqui em p na porta, com as mos na cintura, olhando-me mais vermelho do que de natural. com a cabea tonta, o ouvido zumbindo e o corpo doendo em vrios lugares, e o canivete perdido no sei onde, no me senti com disposio para reagir. Apanhei umas coisas cadas dos bolsos, bati o sujo da roupa e desci a rua mancando o menos que pude.

Felizmente no passava ningum por perto. Se algum soubesse da agresso haveria de querer saber o motivo, e como poderia eu contar tudo e ainda esperar que me dessem razo?

Para no chegar em casa com sinais de desordem no corpo e na roupa desci at o rio, lavei o sangue dos rales do punho e da testa e o sujo do palet e dos joelhos da cala, enquanto pensava um plano eficiente de vingana. Uma pedrada bem acertada na cabea, ou uma porretada de surpresa, resolveria o meu caso. Ele no perderia por esperar.

Mas eu estava enganado quando supunha que ningum tinha visto. Em casa encontrei mame aflita. Meu pai tinha sado minha procura, armado com a bengala de estoque. Fiquei sabendo ento que D. Lorena costureira tinha visto tudo de sua janela do outro lado da rua e fora correndo contar vizinha dos fundos e a notcia espalhou-se como fogo em capim seco. Foi por isso que meu pai, ao dobrar a primeira esquina, foi cercado por um grupo de amigos que no o deixaram prosseguir. Achavam todos, e com razo, que ele no devia agir enquanto no me ouvisse. Tive ento que contar tudo, mas achei bom no dizer que tinha sido apanhado escarafunchando o caixote; disse apenas que tinha dado uma palmada nele por cima da lona.

Isso trouxe uma longa discusso sobre o possvel contedo dos caixotes, e concordamos que devia ser qualquer coisa muito preciosa, ou muito delicada, a ponto de uma palmada por fora deixar o dono alarmado. Mas que coisa poderia ser que preenchesse essa ampla hiptese?

Meu pai achou que estvamos perdendo tempo em aceitar a situao passivamente, enquanto em algum lugar, sabe-se l onde, gente desconhecida podia estar trabalhando contra ns; era evidente que aqueles dois no agiam sozinhos. As cartas que recebiam e os relatrios que mandavam eram provas de que eles tinham aliados. O que devamos fazer sem demora, props meu pai, era procurar o delegado ou o juiz e pedir que mandasse abrir os caixotes, devia

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haver alguma lei que permitisse isso. Se no fosse tomada uma providncia, as coisas iriam passando de mal a pior, e um dia quando acordssemos nada mais haveria a fazer.

O delegado, como sempre, estava fora caando. O juiz foi compreensivo, mas disse que dentro da lei nada se podia fazer, e acrescentou, mais aconselhando que perguntando:

Naturalmente no vamos querer sair fora da lei, no verdade?

Quanto agresso, se meu pai quisesse fazer uma queixa, o delegado teria que abrir inqurito desde que houvesse testemunhas.

Como a nica pessoa que tinha visto parte do incidente era D. Lorena, meu pai foi o primeiro a reconhecer que contar com ela seria perder tempo. D. Lorena era dessas pessoas que tm medo at de enxotar galinha. No inqurito, na presena do agressor, ela cairia em pnico e juraria nada ter visto. Assim, a despeito de toda atividade continuvamos sem um ponto de partida.

De repente a situao comeou a evoluir com rapidez, e fomos percebendo para onde ramos levados. O primeiro a se passar para o outro lado foi o carpinteiro Estvo. Estvo tinha uma chcara do outro lado do rio, atrs do morro de Santa Brbara. Quando os filhos chegaram idade de escola ele alugou a chcara a Seu Marcos Vieira, escrivo aposentado, e veio morar na cidade. Seu Marcos vinha insistindo com Estvo para vender-lhe a chcara, mas Estvo recusava, dizia que quando os filhos estivessem mais crescidos deixaria o ofcio e voltaria para a lavoura.

Pois no que Estvo achou de vender a chcara para aqueles dois, num negcio feito em surdina? Meu pai disse que o procedimento dele no tinha explicao, nem pela lgica nem pela moral. Houve mistrio na transao, isso era fora de dvida. Apertado um dia por meu pai, Estvo respondeu com estupidez, disse que fez o negcio porque a chcara era dele e ele no tinha tutor; depois, vendo o espanto de meu pai, seu amigo de tanto tempo, caiu em si e disse:

Vendi porque no tive outro caminho, Maneco. No tive outro caminho.

Quando meu pai insistiu por uma explicao mais positiva, ele abriu a boca para falar, mas apenas suspirou, virou as costas e foi-se embora.

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Seu Marcos teve que se mudar a bem dizer a toque de caixa. Quem fez a exigncia foi o prprio Estvo, que j estava servindo como uma espcie de procurador dos compradores. Seu Marcos pediu um ms de prazo, queria colher o milho e o feijo e precisava de calma para arranjar uma casa em condies na cidade. Estvo respondeu que no estava autorizado a conceder tanto tempo, que uma semana era o mximo que podia dar. Quanto s plantaes, Seu Marcos no se incomodasse, os compradores indenizariam o que ele pedisse; e se Seu Marcos tivesse dificuldade em encontrar casa, poderia mudar provisoriamente para a do prprio Estvo, que ia para a chcara ajudar os compradores nas obras.

Todo mundo reprovou o procedimento dos compradores, e mais ainda o de Estvo, que na qualidade de antigo proprietrio e amigo poderia ter dito uma palavra em favor do velho Marcos; mas Estvo era agora todo do outro lado, e nada mais se poderia esperar dele. Meu pai achou que no se devia dizer mais nada na frente de Estvo, pois no seria de admirar que ele estivesse contratado para espio. Se quisssemos nos organizar para a ressistncia, convinha no esquecer essa hiptese.

No mesmo dia que Seu Marcos, triste e ressentido, arriou seus pertences na casa desocupada por Estvo, o caminho de Geraldo Magela roncou na subida da ponte levando os estrangeiros na bolia e o carpinteiro Estvo atrs, em cima da carga. Ao v-los passar em nossa porta, meu pai virou o rosto, enojado; disse que nunca vira um espetculo mais triste, um homem de bem como Estvo, competente no seu ofcio, largar tudo para acompanhar aquela gente como menino recadeiro.

Mas no deixou de ser alvio v-los fora da cidade. Agora podamos novamente freqentar a penso de D. Elisa, conversar com os hspedes, saber quem chegava e quem saa, sem necessidade de falar baixo nem de nos esconder.

Durante muitos dias, quase um ms, no vimos aqueles dois nem tivemos notcias deles. Estvo de vez em quando vinha cidade, mas no sei se por influncia dos patres, ou se por vergonha, ou remorso, no conversava com ningum; fazia o que tinha de fazer, ia ao correio apanhar a correspondncia, sempre uns envelopes muito grandes, e voltava no mesmo dia. Nem passava mais por nossa porta, que seria o caminho natural; dava uma volta grande, passando pela rua de cima.

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Outro que tambm sumiu foi Geraldo Magela, parece que agora estava trabalhando s para os estrangeiros. Quando amos pescar bem em cima no rio, ou apanhar cajus no morro, podamos ouvir o ronco do caminho trabalhando do outro lado. Uma vez eu e Demoste samos escondidos para apurar o que estava se passando na chcara, mas quando chegamos na crista do morro achamos melhor no continuar. Haviam levantado uma cerca de arame em volta da chcara, muito mais alta do que as cercas comuns, e de fios mais unidos, e vimos sentinelas armadas rondando. Ficamos de voltar outro dia levando a marmota do padre, mas nem isso chegamos a fazer porque soubemos que o Andr gaguinho, que andara apanhando lenha do outro lado, fora alvejado com um tiro de sal na popa.

Um dia correu a notcia de que o casal no estava mais na chcara, havia subido o rio noite num barco a motor. Devia ser verdade, porque Geraldo Magela voltou a aparecer na cidade. Achamos que agora, com ele ali disposio, amos afinal saber o que se passava na chcara de Estvo. Geraldo sempre fora amigo de todos, deixava a meninada subir no caminho, trazia encomendas para todo rnundo, e quando o padre organizava passeios para os alunos de catecismo, fazia questo de contratar Geraldo, no aceitava oferecimento de nenhum outro, nem que tivssemos de esperar dias quando calhava de Geraldo estar viajando.

Mas no levamos muito tempo para descobrir que Geraldo tambm era agora do outro lado. Ele que fora trabalhador e prestativo, sempre preocupado em poupar a me desde que comprara o caminho exigiu que D. Ritinha deixasse de lavar roupa para fora , agora ficava horas no bilhar jogando ou bebendo cerveja e zombando dos peixotes. Quanto s obras que estavam sendo feitas na chcara, ele no dizia coisa com coisa. A meu pai ele disse que estavam apenas armando um pari, a outro disse que estavam instalando uma olaria. Quando Seu Marcos o interpelou com energia, ele deu uma resposta malcriada:

Vocs esperem. Vocs esperem que no demora.

E ficou olhando para Seu Marcos e assoviando, uma coisa que se D. Ritinha visse haveria de chorar de desgosto.

Vendo-o ali bebendo, fazendo gracinhas, faltando ao respeito com os mais velhos, e dando cada hora uma resposta, achei que ele estava apenas querendo fazer-se de importante, de sabedor de

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coisas misteriosas, talvez pelo desejo de imitar os patres. Foi essa tambm a opinio de Padre Santana quando soube da resposta de Geraldo a Seu Marcos.

Foi mais ou menos nessa poca que D. Ritinha apareceu l em casa para desabafar com mame. Comeou rodeando, falando nas mudanas que estava havendo em toda parte, e entrou no captulo do procedimento dos filhos quando crescem.

Para muita gente, ter filhos resulta num castigo, D. Teresa disse ela. Os desgostos acabam sendo maiores do que as alegrias.

Vi que mame ficou embaraada, com medo de dizer alguma coisa que pudesse magoar D. Ritinha. Por fim, disse vagamente:

Os antigos diziam que filho criado, trabalho dobrado.

Muito certo, D. Teresa. Veja o meu Geraldo. Um rapaz bem criado, inveja de muitas mes; de repente, esquece tudo o que eu e o pai lhe ensinamos.

Mame procurou consol-la dizendo que o procedimento de Geraldo deveria ser resultado de uma influncia passageira. A culpa era daqueles dois, que deviam estar enfiando coisas na cabea dele; quando ela menos esperasse, ele mesmo ia abrir os olhos e arrepender-se. D. Ritinha tivesse pacincia e confiasse em Deus. A D. Ritinha caiu no choro, disse que a culpa era dela, que o aconselhara a ir trabalhar para aquela gente. Ele no queria, mas ela insistira porque o ordenado era bom, at falara spero com ele. Agora estava a o resultado. De que adiantava o dinheiro sem a considerao do filho?

Quando mame comeou a chorar tambm, eu fiquei meio encabulado e sa sem destino.

Ao passar pelo chafariz encontrei Geraldo divertindo-se com um gato que havia jogado dentro do tanque. O bichinho esgoelava e pelejava para sair, e cada vez que ia chegando beirada Geraldo cercava e dava-lhe um papilote na orelha. Fiquei olhando, com medo de salvar o pobrezinho e ter de brigar com Geraldo. Mas quando o pobrezinho veio subindo no ponto onde eu estava, e Geraldo gritou para eu cercar, eu estendi o brao e apanheio pela nuca, como fazem as gatas. Pensei que Geraldo ia querer tom-lo, mas ele apenas olhou e foi-se embora dando gargalhadas e imitando o miado do gato, parecia coisa de louco.

Geraldo sabia o que estava dizendo quando mandou Seu Marcos

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esperar, porque um belo dia chegaram os caminhes. Chegaram de madrugada, e eram tantos que nem pudemos cont-los. A nossa lavadeira, que morava no alto do cemitrio, disse que desde as trs da madrugada eles comearam a descer um atrs do outro de faris acesos. Atravessaram a cidade sem parar, descendo cautelosamente as ladeiras, sacudindo as paredes das casas nas ruas estreitas, passaram a ponte e tomaram o caminho da chcara como uma enorme procisso de vaga-lumes.

Da por diante no tivemos mais sossego. Desde que amanhecia at que anoitecia eram aqueles estrondos atrs do morro, to fortes que chegavam a chacoalhar as panelas nas cozinhas apesar da distncia, nas paredes no ficou um espelho inteiro. Mame vivia rezando e tomando calmante, no queria mais que eu fosse alm da ponte em meus passeios. Achei que fosse receio exagerado dela, mas verifiquei depois que a proibio era geral, de todas as mes.

Geraldo andava ocupado novamente l do outro lado, e quando aparecia na cidade era guiando uns caminhes enormes, de um tipo que ainda no tnhamos visto, e sempre com uns sujeitos esquisitos na bolia, uns homens muito altos e vermelhos, os braos muito cabeludos aparecendo por fora da manga curta da camisa. Ficavam olhando para tudo com olhos espantados, entortavam o pescoo at o ltimo grau para olhar a gente quando o caminho j ia l adiante. Paravam no botequim ou no armazm e metiam caixas e mais caixas de cerveja para dentro do caminho, latas grandes de bolachas, caixotes de cigarros. Uma vez levaram todo o sortimento de cigarros da praa e os fumantes tiveram que picar fumo e enrolar palha durante quase um ms.

Quando os caminhes paravam em alguma casa de comrcio e ns fazamos grupos de longe para olhar, Geraldo ficava na frente fazendo palhaadas para nos provocar. Seu Marcos disse que ele havia perdido toda a compostura, e se no fosse por causa de D. Ritinha, era o caso de se dar uma surra nele.

E toda noite agora era aquele rudo tremido que vinha de trs do morro, parecia o ronronar de muitos gatos. No dava para incomodar porque no era forte, mas assustava pela novidade. De dia no o ouvamos, talvez por causa dos barulhos da cidade, mas quando batia a Ave-Maria, e todo mundo cessava o trabalho, l vinha ele. Ento a gente olhava para os lados da chcara e via um enorme claro no cu, como o de uma queimada vista de longe,

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s que no tinha fumaa.

Mas a grande surpresa foi quando o Geraldo veio cidade montado numa motocicleta vermelha. No vinha mais de roupa cqui de trabalho e botina de vaqueta, mas de parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz e gravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo e convidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outros ficaram de longe, ressabiados. Ele disse que no havia motivo para malquerenas, reconhecia que havia se excedido nas brincadeiras, mas no fizera nada com a inteno de ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se as brincadeiras. Ele estava ali como amigo para dar uma notcia que devia contentar a todos. A os mais desconfiados foram se chegando tambm, Geraldo mandou uns dois ou trs sarem na porta e convidarem quem mais encontrassem por perto. Num instante o salo estava cheio, quem estava jogando parou, havia gente -at do lado de fora debruada nas janelas.

Quando viu que no cabia mais ningum, Geraldo subiu numa das mesas e comunicou que fora nomeado gerente da Companhia e que estava ali para contratar funcionrios. Os ordenados eram muito bons, havia casa para todos, motocicletas para os homens, bicicletas para as crianas e mquinas de costura para as mulheres. Quem estivesse interessado aparecesse no dia seguinte ali mesmo para assinar a lista.

Como ningum estava preparado para aquilo, ficaram todos ali apalermados, se entreolhando calados. Quando algum se lembrou de pedir explicaes sobre as atividades da Companhia, Geraldo j ia longe na motocicleta vermelha.

Aps muita confabulao ali mesmo no bilhar, depois nas muitas rodas formadas nos pontos de conversa da cidade, e finalmente nas casas de cada um, muitos se apresentaram no dia seguinte, acredito que a maioria apenas para ter uma oportunidade de saber o que se passava na chcara. J no segundo dia os caminhes vieram busc-los, e foi a ltima vez que os vimos como amigos: quando comearam a aparecer novamente na cidade, ningum os reconhecia mais. Entravam e saam como foguetes, montados em suas motocicletas vermelhas, no paravam para falar com ningum.

Essas mquinas eram uma verdadeira praga. Ningum podia mais sair rua sem a precauo de levar uma vara bem forte com um ferro na ponta para se defender dos motociclistas, que

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pareciam se divertir atropelando pessoas distradas. Nem os cachorros andavam mais em sossego, quase todos os dias a Intendncia recolhia corpos de cachorros estraalhados. E quanta gente morreu embaixo de roda de motocicleta! O caso que mais me impressionou foi o de D. Aurora. Um dia eu ia atravessando o largo com ela, carregando um cesto de ovos que ela havia comprado l em casa para a festa do aniversrio do padre, quando vimos dois motociclistas que vinham descendo emparelhados. J sabendo como eles eram, D. Aurora atrapalhou-se, correu para a frente, depois quis recuar, e um deles separou-se do outro e veio direto em cima dela, jogando-a no cho, e trilhando-a pelo meio. Quando me abaixava para socorr-la, ouvi as gargalhadas dos dois e o comentrio do criminoso:

Voc viu? Estourou como papo-de-anjo.

D. Aurora morreu ali mesmo, e eu tive de voltar com o cesto de ovos para casa.

A impresso que se tinha era a de haver pessoas ocupadas unicamente em perturbar o nosso sossego, com que fim no sei. Ainda bem no havamos tomado flego de um susto, outro artifcio era aplicado contra ns. Mas no havendo motivo para tanta perseguio, tambm podia ser que os responsveis pelas nossas aflies nem estivessem pensando em ns, mas apenas cuidando de seu trabalho; ns que estvamos atrapalhando, como um formigueiro que brota num caminho onde algum tem que passar e no pode se desviar. Depois do estrago que vinha a curiosidade de ver como que estvamos resistindo.

Foi o que verificamos quando as nossas casas deram para pegar fogo sem nenhum motivo aparente. Primeiro era um aquecimento repentino, os moradores comeavam a suar, todos os objetos de metal queimavam quem os tocasse, e do cho ia minando um fumaceiro com um chiado to forte que at assoviava. Pessoas e bichos saam desesperados para a rua engasgados com a fumaa, sem saberem exatamente o que estava acontecendo. Ouvia-se um estouro abafado, e num instante a casa era uma fogueira. Tudo acontecia to depressa que em muitos casos os moradores no tinham tempo de fugir.

Depois de cada incndio aparecia na cidade uma comisso de funcionrios da Companhia, remexia nas cinzas, cheirava uma coisa e outra, tomava notas, recolhia fragmentos de material sapecado,

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com certeza para examin-los em microscpios. Pelo destino dos moradores no mostravam o menor interesse. Para no perder tempo em casos de emergncia, passamos a dormir vestidos e calados. Embora sem muita esperana, meu pai foi procurar o delegado para ver se conseguia dele uma providncia contra a Companhia. O delegado estava assustado como coelho, piscava nervoso e repetia como falando sozinho:

Uma providncia. preciso uma providncia.

Meu pai quis saber que espcie de providncia ele pensava tomar, e ele no saa daquilo:

, uma providncia. uma providncia.

Meu pai sacudiu-o para ver se o acordava, ele agarrou meu pai pelo brao e disse desesperado, quase chorando:

Eu estou de ps e mos amarradas, Maneco. De ps e mos amarradas. Que vida! quanta coisa!

Os espies eram outra grande maada. No sei com que astcia a Companhia conseguiu contratar gente do nosso meio para informla de nossos passos e de nossas conversas. O nmero de espies cresceu tanto que no podamos mais saber com quem estvamos falando, e o resultado foi que ficamos vivendo numa cidade de mudos, s falvamos de noite em nossas casas, com as portas e janelas bem fechadas, e assim mesmo em voz baixa.

Eu estava quase perdendo a esperana de voltarmos vida antiga, e j no me lembrava mais com facilidade do sossego em que vivamos, da cordialidade com que tratvamos nossos semelhantes, conhecidos e desconhecidos. Quando eu pensava no passado, que afinal no estava assim to distante, tinha a impresso de haver avanado anos e anos, sentia-me velho e deslocado. Para onde nos estariam levando? Qual seria o nosso fim? Morreramos todos queimados, como tantos parentes e conhecidos?

Passvamos os dias com o corao apertado, e as noites em sobressalto. Ningum queria fazer mais nada, no valia a pena. As casas andavam cheias de goleiras, o mato invadia os quintais, entrava pelas janelas das cozinhas. Nos vos do calamento, que cada qual antigamente fazia questo de manter sempre limpo em frente a sua casa, arrancando a grama com um toco de faca e despejando cal nas fendas, agora cresciam tufos de capim. O muro do pombal desmoronou numa noite de chuva, ficaram os adobes na rua fazendo lama, quem queria passar rodeava ou pisava por

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cima, arregaando as calas. No valia a pena consertar nada, tudo j estava no fim.

Mas a esperana, por menor que seja, uma grande fora. Basta um fiapinho de nada para dar alma nova gente. Eu estava remexendo um dia na tulha de feijo procura de uma medalha que cara do meu pescoo e encontrei umas caixas de papelo quadradinhas, escondidas bem no fundo. Abri uma e vi que estava cheia de cartuchos de dinamite. Guardei tudo depressa e no disse nada a ningum nem deixei meu pai saber, porque no queria coloc-lo na triste situao de ter de prevenir-se contra mim. Tudo era possvel naqueles dias.

Agora que nada mais h a fazer, arrcpcndo-me de no ter falado abertamente e entrado na intimidade dos planos, se que havia algum. Hoje que imagino a aflio que minha me deve ter passado na noite em que em vo esperamos meu pai para a ceia. com uma indiferena que no me perdo eu tomei a minha tigela de leite com beiju e fui dormir. Mame ficou acordada fiando, e quando tomei-lhe a bno no dia seguinte notei que ela estava plida e com os olhos vermelhos de quem no havia dormido. No tenho muito jeito para consolar, fiquei rcmanchando em volta dela, bulindo numa coisa e noutra, irritando-a com o meu nervosismo inarticulado. Ela mandava-me sair, passear, fazer alguma coisa fora, mas eu tinha medo de deix-la sozinha estando to deprimida.

No me lembro de outro dia to triste. Uma neblina cinzenta tinha baixado sobre a cidade, cobrindo tudo com aquele orvalho de cal. As galinhas empolciradas nos muros, nos galhos baixos dos cafezeiros, ou encolhidas debaixo da escada do quintal, pareciam aguardar tristes notcias, ou lamentar por ns algum acontecimento que s elas sabiam por enquanto. Em frente a nossa janela de vez em quando passava uma pessoa, as mos roxas de frio segurando o guarda-chuva, ou um menino em servio de recado, protegendo-se com um saco de estopa na cabea. E nos quintais molhados os sabis no paravam de cantar.

Em dias de sol ns ainda podamos resistir, podamos olhar para os lados da usina e apertar os dentes com dio, e assim mostrar que ainda no havamos nos entregado; mas num dia molhado como aquele s nos restava o medo e o desnimo.

A notcia chegou antes do almoo. Uns roceiros que tinham

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vindo vender mantimentos na cidade encontraram o corpo na estrada, a barriga celada no meio pelas rodas de uma motocicleta.

Depois do enterro mame mandou-me esconder as caixas de dinamite num buraco bem fundo no quintal, vendeu tudo o que tnhamos, todas as galinhas, pelo preo de duas passagens de caminho e no mesmo dia embarcamos sem dizer adeus a ningum, levando s a roupa do corpo e um saquinho de matula, como dois mendigos.

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Os Cavalinhos de Platiplanto

O meu primeiro contato com essas simpticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criana. O meu av Rubem havia me prometido um cavalinho de sua fazenda do Chove-Chuva se eu deixasse lancetarem o meu p, arruinado com uma estrepada no brinquedo de pique. Por duas vezes o farmacutico Osmsio estivera l em casa com sua caixa de ferrinhos para o servio, mas eu fiz tamanho escarcu que ele no chegou a passar da porta do quarto. Da segunda vez meu pai pediu a Seu Osmsio que esperasse na varanda enquanto ele ia ter uma conversa comigo. Eu sabia bem que espcie de conversa seria; e aproveitando a vantagem da doena, mal ele caminhou para a cama eu comecei novamente a chorar e gritar, esperando atrair a simpatia de minha me e, se possvel, tambm a de algum vizinho para reforar. Por sorte vov Rubem ia chegando justamente naquela hora. Quando vi a barba dele apontar na porta, compreendi que estava salvo pelo menos por aquela vez; era uma regra assentada l em casa que ningum devia contrariar vov Rubem. Em todo caso chorei um pouco mais para consolidar minha vitria, e s sosseguei quando ele intimou meu pai a sair do quarto.

Vov sentou-se na beira da cama, ps o chapu e a bengala ao meu lado e perguntou por que era que meu pai estava judiando comigo. Para impression-lo melhor eu disse que era porque eu no queria deixar Seu Osmsio cortar o meu p.

Cortar fora?

No era exatamente isso o que eu tinha querido dizer, mas achei eficaz confirmar; e por prudncia no falei, apenas bati a

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cabea.

Mas que malvados! Ento isso se faz? Deixe eu ver. Vov tirou os culos, assentou-os no nariz e comeou a fazer

um exame demorado de meu p. Olhou-o por cima, por baixo, de lado, apalpou-o e perguntou se doa. Naturalmente eu no ia dizer que no, e at ainda dei uns gemidos calculados. Ele tirou os culos, fez uma cara muito sria e disse:

exagero deles. No preciso cortar nada. Basta lancetar. Ele deve ter notado o meu desapontamento, porque explicou

depressa, fazendo ccega na sola do meu p:

Mas nessas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve o dono da doena. Se voc no disser que pode, eu no deixo ningum mexer, nem o rei. Voc no mais desses menininhos de cueiro, que no tm querer. Na festa do Divino voc j vai vestir um parelhinho de cala comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar tambm um cavalinho pra voc acompanhar a folia.

com arreio mexicano?

com arreio mexicano. J encomendei ao Felipe. Mas tem uma coisa. Se voc no ficar bom desse p, no vai poder montar. Eu acho que o jeito voc mandar lancetar logo.

E se doer?

Doer? capaz de doer um pouco, mas no chega aos ps da dor de cortar. Essa sim, uma dor mantena. Uma vez no ChoveChuva tivemos de cortar um dedo s um dedo de um vaqueiro que tinha apanhado panariz e ele urinou de dor. E era um homem foroso, acostumado a derrubar boi pelo rabo.

Meu av era um homem que sabia explicar tudo com clareza, sem ralhar e sem tirar a razo da gente. Foi ele mesmo que chamou Seu Osmsio, mas deixou que eu desse a ordem. Naturalmente eu chorei um pouco, no de dor, porque antes ele jogou bastante de lana-perfume, mas de convenincia, porque se eu mostrasse que no estava sentindo nada eles podiam rir de mim depois.

Enquanto mame fazia os curativos eu s pensava no cavalinho que eu ia ganhar. Todos os dias quando acordava, a primeira coisa que eu fazia era olhar se o p estava desinchando. Seria uma maada se vov chegasse com o cavalinho e eu ainda no pudesse montar. Mame dizia que eu no precisava ficar impaciente, a folia ainda estava longe, assim eu podia at atrasar a cura, mas eu queria tudo depressa.

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Mas quando a gente menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer. Por isso que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que s queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com fora, que eu nunca cheguei a t-lo.

Meu av adoeceu e teve de ser levado para longe para se tratar, quem levou foi tio Amncio. Outro tio, o Torim, que sempre foi muito antiptico, ficou tomando conta do Chove-Chuva. Tio Torim disse que, enquanto ele mandasse, de l no saa cavalo nenhum pra mim. Eu quis escrever uma carta a vov dando conta da ruindade, cheguei a rascunhar uma no caderno, mas mame disse que de jeito nenhum eu devia fazer isso; vov estava muito doente e podia piorar com a notcia; quando ele voltasse bom ele mesmo me daria o cavalo sem precisar eu contar nada.

Quando eu voltava da escola e mame no precisava de mim, eu ficava sentado debaixo de uma mangueira no quintal e pensava no cavalinho, nos passeios que eu ia fazer com ele, e era to bom que parecia que eu j era dono. S faltava um nome bem assentado, mas era difcil arranjar, eu s lembrava de nomes muito batidos. Rex, Corta-Vento, Penacho. Padre Horcio quis ajudar, mas s vinha com nomes bonitos demais, tirados de livro, um que me lembro foi Pegaso. Isso deu discusso porque Seu Osmsio, que tambm lia muito, disse que certo era Pgaso. Para no me envolver eu disse que no queria nome difcil.

Um dia eu fui no Jurupensem com meu pai e vi l um menino alegrinho, com o cabelo cado na testa, direitinho como o de um poldro. Perguntei o nome dele ele disse que era Zibisco. Estipulei logo que o meu cavalinho ia se chamar Zibisco.

O tempo passava e vov Rubem nada de voltar. De vez em quando chegava uma carta de tio Amncio, papai e mame ficavam tristes, conversavam coisas de doena que eu no entendia, mame suspirava muito o dia inteiro. Um dia tio Torim foi visitar vov e voltou dizendo que tinha comprado o Chove-Chuva. Papai ficou indignado, discutiu com ele, disse que era maroteira, vov Rubem no estava em condies de assinar papel, que ele ia contar o caso ao juiz. Desde esse dia tio Torim nunca mais foi l em casa, quando vinha cidade passava por longe.

Depois chegou outra carta, e eu vi mame chorando no quarto. Quando entrei l com desculpa de procurar um brinquedo ela me

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chamou e disse que eu no ficasse triste, mas vov no ia mais voltar. Perguntei se ele tinha morrido, ela disse que no, mas era como se tivesse. Perguntei se ento a gente no ia poder v-lo nunca mais, ela disse que podia, mas no convinha.

Seu av est muito mudado, meu filho. Nem parece o mesmo homem e caiu no choro de novo.

Eu no entendia por que uma pessoa como meu av Rubem podia mudar, mas fiquei com medo de perguntar mais; mas uma coisa eu entendi: o meu cavalinho, nunca mais. Foi a nica vez que eu chorei por causa dele, no havia consolo que me distrasse.

No sei se foi nesse dia mesmo, ou poucos dias depois, eu fui sozinho numa fazenda nova e muito imponente, de um senhor que tratavam de major. A gente chegava l indo por uma ponte, mas no era ponte de atravessar, era de subir. Tinha uns homens trabalhando nela, miudinhos l no alto, no meio de uma poroeira de vigas de tbuas soltas. Eu subi at uma certa altura, mas desanimei quando olhei para cima e vi o tanto que faltava. Comecei a descer devagarinho para no falsear o p, mas um dos homens me viu e pediu-me que o ajudasse. Era um servio que eles precisavam acabar antes que o sol entrasse, porque se os buracos ficassem abertos de noite muita gente ia chorar lgrimas de sangue, no sei por que era assim, mas foi o que ele disse.

Fiquei com medo que isso acontecesse, mas no vi jeito nenhum de ajudar. Eu era muito pequeno, e s de olhar para cima perdia o flego. Eu disse isso ao homem, mas ele riu e respondeu que eu no estava com medo nenhum, eu estava era imitando os outros. E antes que eu falasse qualquer coisa ele pegou um balde cheio de pedrinhas e jogou para mim.

Vai colocando essas pedrinhas nos lugares, uma depois da outra, sem olhar para cima nem para baixo, de repente voc v que acabou.

Fiz como ele mandou, s para mostrar que no era fcil como ele dizia e era verdade! Antes que eu comeasse a me cansar o servio estava acabado.

Quando desci pelo outro lado e olhei a ponte enorme e firme, resistindo ao vento e chuva, senti uma alegria que at me arrepiou. Meu desejo foi voltar para a casa e contar a todo mundo e trazelos para verem o que eu tinha feito; mas logo achei que seria perder tempo, eles acabariam sabendo sem ser preciso eu dizer.

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Olhei a ponte mais uma vez e segui o meu caminho, sentindo-me capaz de fazer tudo o que eu bem quisesse.

Parece que eu estava com sorte naquele dia, seno eu no teria encontrado o menino que tinha medo de tocar bandolim. Ele estava tristinho encostado numa lobeira olhando o bandolim, parecia querer tocar mas nunca que comeava.

Por que voc no toca? perguntei.

Eu queria, mas tenho medo.

Medo do qu?

Dos bichos-feras.

Que bichos-feras?

Aqueles que a gente v quando toca. Eles vm correndo, sopram um bafo quente na gente, ningum agenta.

E se voc tocasse de olhos fechados? Via tambm? Ele prometeu experimentar, mas s se eu ficasse vigiando;

eu disse que vigiava, mas ele disse que s comeava depois que eu jurasse. No vi mal nenhum, jurei. Ele fechou os olhinhos e comeou a tocar uma toada to bonita que parecia uma poro de estrelas caindo dentro da gua e tingindo a gua de todas as cores.

Por minha vontade eu ficava ouvindo aquele menino a vida inteira; mas estava ficando tarde e eu tinha ainda muito que andar. Expliquei isso a ele, disse adeus e fui andando.

No vai a p no disse ele. Eu vou tocar uma toada pra levar voc.

Colocou novamente o bandolim em posio, agora sem medo nenhum, e tirou uma msica diferente, vivazinha, que me ergueu do cho e num instante me levou para o outro lado do morro. Quando a msica parou eu baixei diante de uma cancela novinha, ainda cheirando a oficina de carpinteiro.

Esto esperando voc disse um moo fardado que abriu a cancela. O major j est nervoso.

O major um senhor corado, de botas e chapu grande estava andando para l e para c na varanda. Quando me viu chegando, jogou o cigarro fora e correu para receber-me.

Graas a Deus! disse ele. Como foi que voc escapuliu deles? Vamos entrar.

Ningum estava me segurando respondi.

o que voc pensa. Ento no sabe que os homens de

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Nestor Gurgel esto com ordem de pegar voc vivo ou morto?

Meu tio Torim? O que que ele quer comigo?

por causa dos cavalos que seu av encomendou para voc. So animais raros, como no existe l fora. Seu o quer tom-los.

Se meu tio queria tomar os cavalos, era capaz de tomar mesmo. Meu pai dizia que o tio Torim era treteiro desde menino. Pensei nisso e comecei a chorar.

O major riu e disse que no havia motivo para choro, os cavalos no podiam sair dali, ningum tinha poder para tir-los. Se algum algum dia conseguisse levar um para outro lugar, ele virava mosquito e voltava voando.

Sendoassim eu quis ver esses cavalos fora do comum, experimentar se eram bons de sela. O major disse que eu no precisava me preocupar, eles faziam tudo o que o dono quisesse, disso no havia dvida.

Alis disse olhando o relgio est na hora do banho deles. Venha pra voc ver.

Descemos uma caladinha de pedra-sabo muito escorreguenta e chegamos a um portozinho enleado de trepadeiras. O major abriu o trinco e abaixou-se bem para passar. Eu achei que ele devia fazer um porto mais alto, mas no disse nada, s pensei, porque estava com pressa de ver os cavalos.

Passamos o porto e entramos num ptio parecido com largo de cavalhada, at arquibancadas tinha, s que no meio, em vez do gramado, tinha era uma piscina de ladrilhos de gua muito limpa. Quando chegamos o ptio estava deserto, no se via cavalo nem gente. Escolhemos um lugar nas arquibancadas, o major olhou novamente o relgio e disse:

Agora escute o sinal.

Um clarim tocou no sei onde e logo comeou a aparecer gente sada de detrs de umas rvores baixinhas que cercavam todo o ptio. Num instante as arquibancadas estavam tomadas de mulheres com crianas no colo, damas de chapus de pluma, senhores de cartolas e botina de pelica, meninos de golinhas de reviro, meninas de fita no cabelo e vestidinhos engomados.

Quando cessaram os gritos, empurres, choros de meninos, e todos se aquietaram em seus lugares, ouviu-se novo toque de clarim. A princpio nada aconteceu, e todo mundo ficou olhando

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para todos os lados, fazendo gestos de quem no sabe, levantando-se para ver melhor.

De repente a assistncia inteira soltou uma exclamao de surpresa, como se tivesse ensaiado antes. Meninos pulavam e gritavam, puxavam os braos de quem estivesse perto, as meninas levantavam-se e sentavam batendo palminhas. Do meio das rvores iam aparecendo cavalinhos de todas as cores, pouco maiores do que um bezerro pequeno, vinham empinadinhos marchando, de vez em quando olhavam uns para os outros como para comentar a bonita figura que estavam fazendo. Quando chegaram beira da piscina estancaram todos ao mesmo tempo como soldados na parada. Depois um deles, um vermelhinho, empinou-se, rinchou e comeou um trote danado, que os outros imitaram, parando de vez em quando para fazer meisuras assistncia. O trote foi aumentando de velocidade, aumentando, aumentando, e da a pouco a gente s via um risco colorido e ouvia um zumbido como de zorra. Isso durou algum tempo, eu at pensei que os cavalinhos tinham se sumido no ar para sempre, quando ento o zumbido foi morrendo, as cores foram se separando, at os bichinhos aparecerem de novo.

O banho foi outro espetculo que ningum enjoava de ver. Os cavalinhos pulavam na gua de ponta, de costas, davam cambalhotas, mergulhavam, deitavam-se de costas e esguichavam gua pelas ventas fazendo repuxo.

Todo mundo ficou triste quando o clarim tocou mais uma vez e os cavalinhos cessaram as brincadeiras. O vermelhinho novamente tomou a frente e subiu para o lajeado da beira da piscina, seguido pelos outros, todos sacudiram os corpinhos para escorrer a gua e ficaram brincando no sol para acabar de se enxugar.

Depois de tudo o que eu tinha visto achei que seria maldade escolher um deles s para mim. Como que ele ia viver separado dos outros? com quem ia brincar aquelas brincadeiras to animadas? Eu disse isso ao major, e ele respondeu que eu no tinha que escolher, todos eram meus.

Todos eles? perguntei incrdulo.

Todos. So ordens de seu av.

Meu av Rubem, sempre bom e amigo! Mesmo doente, fazendo tudo para me agradar.

Mas depois fiquei meio triste, porque me lembrei do que o

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major tinha dito que ningum podia tir-los dali.

verdade disse ele em confirmao, parece que adivinhando o meu pensamento. Levar no pode. Eles s existem aqui em Platiplanto.

Devo ter cado no sono em algum lugar e no vi quando me levaram para casa. S sei que de manh acordei j na minha cama, no acreditei logo porque o meu pensamento ainda estava longe, mas aos poucos fui chegando. Era mesmo o meu quarto a roupa da escola no prego atrs da porta, o quadro da santa na parede, os livros na estante de caixote que eu mesmo fiz, alis precisava de pintura.

Pensei muito se devia contar aos outros, e acabei achando que no. Podiam no acreditar, e ainda rir de mim; e eu queria guardar aquele lugar perfeitinho como vi, para poder voltar l quando quisesse, nem que fosse em pensamento.

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Fronteira

Eu era ainda muito criana, mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam. Sabia que no se deve responder aos cumprimentos dos glimerinos, aquela raa de anes que a gente encontra quando menos espera e que fazem tudo para nos distrair de nossa misso; sabia que nos lugares onde a me-do-ouro aparece flor da terra no se deve abaixar nem para apertar os cordes dos sapatos, a cobia est em toda parte e morde manso; sabia que ao ouvir passos atrs ningum deve parar nem correr, mas manter a marcha normal, quem mostrar sinais de medo estar perdido na estrada.

A estrada cheia de armadilhas, de alapes, de mundus perigosos, para no falar em desvios tentadores, mas eu podia percorr-la na ida e na volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu no gostava de viajar acompanhado, a preocupao de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada, mas desde criana eu era perseguido pela insistncia dos que precisavam viajar e tinham medo do caminho, parecia que ningum sabia dar um passo sem ser orientado por mim, chegavam a fazer romaria l em casa, aborreciam minha me com pedidos de interferncia; e como eu no podia negar nada a minha me eu estava sempre na estrada acompanhando uns e outros. Mal chegava de uma viagem era informado de que fulano, ou sicrano, ou a viva de trs da igreja, ou o ancio que perdera a filha afogada estava minha espera para nova caminhada. E sempre tinham urgncia, negcios inadiveis a tratar em outros lugares, se eu no lhes fizesse esse favor estariam perdidos, desgraados,

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ou desmoralizados. Como poderia eu recuar e dar-lhes as costas, como se no tivesse nada a ver com os problemas deles? A responsabilidade seria muito grande para meus ombros infantis. Minha me preparava a minha matula, dizia coitado de meu filho, no tem descanso, beijava-me na testa e l ia eu a percorrer de novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando s vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negcios me eram remotos ou estranhos.

Minha nica esperana de liberdade era crescer depressa para ser como os adultos, completamente incapazes de irem sozinhos daqui ali; mas quando eu baixava os olhos para olhar o meu corpo de menino, e via o quanto eu ainda estava perto do cho, vinha-me um desnimo, um desejo maligno de adoecer e morrer e deixar os adultos entregues ao seu destino. Eu nunca soube h quanto tempo estava naquela vida, nem tinha lembrana de haver conhecido outra. Teria eu nascido com alpercatas nos ps e trouxinha as costas? Era difcil dizer que no, embora a hiptese parecesse inconcebvel.

Se eu me queixava a outras pessoas, elas faziam um ar compungido, engrolavam qualquer coisa para dizer que cada um tem que aceitar o seu destino, e eu compreendia que eles tambm estavam me reservando para quando precisassem de mim; outros presenteavam-me com garruchinhas de espoleta, automoveizinhos de corda, quando no um par de botinas novas. Tudo o que eles queriam de mim era resignao e presteza. Naturalmente eu podia acabar com aquilo a qualquer hora, mas e a responsabilidade?

Mas no se pense que as minhas caminhadas para l e para c fossem uma rotina desinteressante; nada disso. Raro era o dia em que eu no aprendia alguma coisa nova, e embora a descoberta s tivesse utilidade na estrada, eu a recolhia para utilizao futura, ou para ampliao de meus conhecimentos. Foi ao abaixarme num crrego para beber gua que fiz uma descoberta a meu ver muito importante: descobri que, quando se derruba uma moeda em gua corrente, no se deve pensar em recuper-la. Quem tentar faz-lo poder ficar o resto da vida beira da gua retirando moedas. como se a pessoa sangrasse a areia do fundo da gua e depois no conseguisse estancar o jorro de moedas.

Talvez eu no devesse ter contado isso a meu pai, pois no era difcil prever o que aconteceria. Ele riu em minha cara, e

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chamou-me fantasista. Como eu insistisse, ofendido, ele reptoume a prov-lo. Ainda a eu poderia ter desconversado, mas no: aceitei o desafio, como se tratasse de um ponto de honra. Leveio beira de um crrego, mandei-o soltar uma moeda na gua e s fora conseguimos tir-lo de l dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de intern-lo. Disseram que a culpa foi minha, mas no consigo sentir-me culpado.

Depois disso notei que as pessoas passaram a me evitar. A princpio pensei que estivessem sendo gentis, tivessem decidido dar-me afinal um descanso, depois de tantos anos de trabalho pesado; mas depois verifiquei que a situao era mais sria, nem na rua conversavam comigo, os poucos que eu conseguia deter estavam sempre apressados, davam uma desculpa e se afastavam sem nem olhar para trs.

De repente ocorreu-me um pensamento medonho: ser que minha me tambm pensava e sentia como os outros? Nesse caso, que martrio no seria a sua vida, preocupada todo o tempo em esconder de mim os seus sentimentos! Alarmado com essa possibilidade, eu a observei durante dias, escutei-a no sono, tentando surpreender uma palavra, um gesto, qualquer coisa que me denunciasse o seu estado de esprito. s vezes me parecia que o meu medo estava confirmado, mas no minuto seguinte eu estava novamente em dvida. A nica maneira de esclarecer tudo era naturalmente abrir-me com ela. Mas logo que comecei a expor-lhe o meu caso percebi o erro que havia cometido. Estava eu certo de querer, a verdade, e no a compaixo de minha me? Qual seria nesse caso o papel de uma boa me dar-me o que eu queria ou o que eu temia? Que direito tinha eu de for-la a uma deciso dessa ordem?

Quando acabei de falar ela abraou-me chorando e s conseguia dizer: Meu filho, meu filho to infeliz!.

Qual seria o sentido dessa frase aparentemente to clara? Seria pena pela minha sorte de guia forado, pela minha capacidade de amedrontar os outros ou estaria ela pensando na minha sina de amedrontador da prpria me? Chorei tambm, mas depois percebi que eu no tinha motivo nenhum para chorar, eu estava chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela situao? Que culpa tinha eu da minha vida?

Enxuguei as lgrimas e senti-me como se tivesse acabado de subir ao alto de uma grande montanha, de onde eu podia ver

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embaixo o menino de cala curta que eu havia deixado de ser, emaranhado em seus ridculos problemas infantis, pelos quais eu no sentia mais o menor interesse. Voltei-lhe as costas sem nenhum pesar e desci pelo outro lado assoviando e esfregando as mos de contente.

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Tia Zi Rezando

O frio que eu sentia no peito e nos ps deixava-me confuso e apreensivo. Eu sabia que estava deitado, mas no sabia onde. Tanta coisa havia acontecido nas ltimas horas, e eu ainda no estava preparado para tomar meu rumo. S uma coisa eu sabia: eu no podia voltar para casa. Tinha havido um incndio, eu vi a casa pegar fogo, ouvi os gritos medonhos de Lzio, com certeza preso nas ripas do telhado desabado. Corri para l, mas quando passei o porto o calor era to forte que no pude chegar mais perto. Gritei por Lzio, mas s um gemido rascante como ronco de porco sangrado vinha da casa. Rodeei pelos fundos para ver se havia alguma possibilidade de salv-lo, e vi meu tio Firmino correndo e tossindo e tapando a boca e o nariz com a ponta do cachecol. Chamei-o forte e ele continuou correndo at sumir-se atrs de uma moita de bananeiras. Corri atrs dele, ainda chamando-o, e ouvi um tiro disparado na minha direo. Gritei que no atirasse, que era eu, e ele deu mais um tiro. Ele deve estar louco, pensei, e virei para trs disparado, saltei a cerca de taquara em frente casa, sem perder tempo em procurar o porto, e notei que algum corria atrs de mim, ainda atirando. A noite estava escura, o claro do incndio tinha ficado para trs. Continuei correndo e saltando buracos, ou as manchas escuras do terreno que eu tomava por buracos. Ouvi um ltimo tiro, um belisco quente na orelha, e ca de bruos.

Agora aquele frio no corpo e o medo de descobrir que estava em alguma situao sem remdio. Fiquei quieto por um instante, para me certificar de que estava sozinho, pois seria desesperador

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abrir os olhos e ver-me cercado por um grupo de inimigos mal-encarados. Primeiro tomei conhecimento dos grilos tinindo em volta de mim, e tiniam to alto que tive vontade de gritar para ver se os silenciava. Uma coisa a gente debruar-se noite no parapeito de uma ponte, no longe das luzes da cidade, e escutar os grilos crilando embaixo; mas estar no nvel deles, em lugar que no se sabe que ponto ocupa no mapa, e sem saber o que que vai acontecer no minuto seguinte, coisa bem diferente. S no gritei porque tive medo das conseqncias. Apertei o rosto no cho com fora e descobri que estava chorando, no alto, mas baixinho, como criana doente.

No sei quanto tempo estive nessa posio, mas quando pude novamente assuntar em volta ouvi um cachorro latindo longe, os latidos vinham amaciados pela distncia. Contra o que estaria ele protestando? Quem lhe faria justia neste mundo escuro? Agradeci quele cachorro desconhecido por estar vivo naquele momento, e voltei a pensar em mim mesmo, talvez por alguma secreta associao de idias.

Firmei-me nas mos para ver se conseguia levantar o corpo, pelo menos o tronco, e notei que estava deitado sobre lama. A lama, que imaginei preta e lodosa, espirrou fria entre os meus dedos. Limpei o rosto no ombro, de um lado e do outro, e senti os gros de terra riscando-me a pele. A orelha ainda doa uma dor fina, mas no a palpei, com medo de no encontr-la no lugar e tambm de contaminar o ferimento.

Levantei-me com dificuldade, primeiro ajoelhando na lama barrenta, depois erguendo-me nas pernas, o que fiz em vrias tentativas porque o cho embaixo escorregava, devia haver uma inclinao no terreno e no encontrei nada perto para segurar, umas canas de capim que agarrei arrebentaram-se em minha mo. Eu no sabia para que lado caminhar, tudo parecia dar no mesmo, resolvi seguir no rumo de onde tinha vindo o latido do cachorro agora calado, com certeza coando pulga ou dormindo em alguma cozinha de terra batida. Mas supondo que eu chegasse a esse rancho isolado, de onde no vinha mais nenhuma luz, que iria eu dizer ao morador? No obstante, continuei caminhando no escuro.

Eu no podia entender a hostilidade de meu tio, sabendo embora que ele no era de rir toa para mim. Por que estaria ele to raivoso? Que estaria ele fazendo na casa de Lzio quela hora

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da noite? E o incndio? Era certo que ele no gostava de Lzio, estava sempre criticando-o, ou mostrando m vontade com ele, como se no bastasse ao pobre homem o fardo de sua manqueira; mas tocar fogo na casa sabendo que ele no poderia correr, era uma maldade muito grande, mesmo para meu tio Firmino.

Veio-me uma aflio repentina de ir para casa discutir o assunto com tia Zi. Embora reservada e comedida no falar, ela devia ter alguma coisa a dizer, e manejando-a como aprendi eu poderia tomar uma frase aqui, uma palavra ali e assim ter alguma idia do que estava se passando com meu tio. Lembrei-me que alguns dias antes, estando eu deitado e fingindo dormir, eu os ouvi discutindo no quarto, mas falavam baixo e a porta estava fechada. Parece que tia Zi disse que era cedo ainda para contarem a verdade, tio Firmino falou em idade para malcriao e idade no sei para mais o qu. Eu sabia que o assunto era comigo mas no pude ouvir mais, tia Zi suspirou, tio Firmino deu corda no relgio com jeito de quem est com raiva, apagaram a luz e as correias da cama rangeram. No dia seguinte eu provoquei minha tia de todo jeito, volta e meia eu falava em idade, mas a julgar pelo alheamento que ela manteve podia-se jurar que ela no estava escondendo nada de mim.

Havia uma poro de coisas que eu no entendia, por mais que as revirasse na cabea. A reviravolta de meu tio na minha amizade com Lzio era uma delas. Quando eu era menor, e Lzio sofria de fraqueza do juzo, e passava o dia resmungando sozinho, ou brigando com uns e com outros, e s era calmo e alegre comigo, tio Firmino nunca censurou minha amizade com Lzio; mas quando Lzio voltou da temporada que passou fora e no quis mais brigar com ningum, at conversava concatenado, e montou a oficina de latoeiro no largo numa casa que era de meu tio, e eu passava as tardes conversando com ele e ajudando-o a polir os bules e pichorras que ele fazia para vender aos roceiros, a tio Firmino deu para censurar, jogar indiretas e por fim proibir que eu passasse tanto tempo com Lzio. Como eu gostava de Lzio e conversava com ele com mais desembarao do que com meu tio e at minha tia, nem pensei em acatar a proibio. Se meu tio estava em casa eu pegava um livro ou a lousa para fingir que ia estudar, ou pegava a vassoura e o carrinho para dizer que ia limpar o quintal; mas logo que desconfiava que meu tio tinha sado ele no era

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homem de ficar muito tempo em casa eu disfarava, apanhava o bon e me escapulia. Nisso eu contava com a cumplicidade pelo menos passiva de minha tia. Tenho certeza que ela percebia tudo, mas nunca disse uma palavra de advertncia a mim nem de denncia a meu tio. Ela era fraca de vontade, mas enredeira no era. Uma vez, quando eu ia saindo quase correndo para a oficina de Lzio, nem tinha ainda posto o bon, estava com ele diante dos olhos, esbarrei em tio Firmino que vinha entrando inesperado. Ele seguroume pelos braos, sacudiu-me e disse:

J vai para ajudncia? s eu virar as costas, hein? Fiquei to assustado que no me lembrei de nada para dizer.

Mas felizmente tia Zi vinha atrs e salvou-me dizendo que eu ia comprar um carretel de linha para ela; e para evitar qualquer confuso de minha parte, acrescentou como se fosse verdade:

No esquea: nmero 40. Diz a Seu Zeca que eu pago depois.

Tio Firmino deu-me o dinheiro de m vontade, censurou tia Zi por comprar fiado e gritou para mim:

Um p l e outro c, hein? vou ficar esperando o senhor. Outra coisa difcil de calcular eram as variaes de meu tio.

Eu nunca sabia quando ele ia ser bom para mim ou ia me bater. Ele era to esquisito comigo que eu desisti de entend-lo, aceitava seus agrados repentinos com desconfiana e procurava ficar longe dele o mais que podia. Tia Zi disse que eu no devia fugir dele nem pensar nele com raiva, mas ser paciente com ele porque ele tinha uma vida muito atribulada. Mas como poderia eu descansar perto de tio Firmino, se pelo menor motivo ele mudava de gnio e gritava comigo? At hoje no sei por que ele avanou para me bater, brigou com tia Zi quando ela no deixou, esbandalhou a cadeira no cho e saiu sem acabar de jantar s porque tia Zi disse que eu parecia com ele. Quando ela disse isso numa conversa toa ele soltou o garfo no prato, ps as duas mos na mesa e perguntou, j com o nariz arreganhado:

Como foi que voc disse? Que ele parece comigo? Tia Zi ficou to passada que at perdeu a fala, eu vi o pescoo

dela inchar e a boca amolecer. E quando ela quis se desculpar, apenas confirmou o que havia dito:

Ento no parece, Firmino? No s eu que acho; todo mundo acha.

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? Pois eu vou ensinar esse maroto a parecer comigo gritou ele, levantando e j esticando a mo para me agarrar.

No dia seguinte ele veio com um brinquedo que sabia que eu queria, um daqueles cineminhas que a gente enfia um carto por baixo de um vidro cheio de riscos e v uma poro de figuras se mexendo. Aceitei o presente mas no achei jeito de sorrir quando agradeci.

Eu gostava de conversar com Lzio porque ele contava histrias de meu pai, disse que trabalhou para ele muito tempo. Perguntei quando foi, porque no me lembrava, ele disse que foi quando eu estava ainda no calcanhar de meu pai, querendo dizer que eu ainda no era nascido. Perguntei por que ele tinha deixado de trabalhar para meu pai, ele suspirou e respondeu:

Enredo. Muito enredo.

Eu quis saber que enredo, e de quem, mas do jeito que ele pegou a bater uma chapa de folha na banca eu vi que ele no queria falar mais no assunto. Depois, quando eu estava catando feijo com tia Zi, e ela estava muito alegre e conversadeira, eu puxei a conversa para esse assunto de Lzio com meu pai. Ela me olhou muito assustada, apurou o ouvido para ver se tio Firmino no vinha chegando, e disse em voz baixa:

Pelo amor de Deus, no deixe seu tio saber que voc conversou esse assunto com Lzio.

Da por diante ela ficou pensativa e triste e no quis mais conversar, e eu compreendi que seria intil querer saber mais.

com essas coisas a vida estava ficando muito complicada para mim. Eu sabia que devia ser agradecido a meus tios pelo que eles faziam por mim, criavam-me como filho desde pequeno e eu no queria ser ingrato nem dar desgosto; mas era difcil saber o que devia fazer, quando pensava que ia agradar desagradava.

Uma vez Lzio pediu-me para levar um amarrilho de bules e chocolateiras para a venda de Seu Bailo, era um manojo enorme e eu no queria ir pela rua com aquela lataria sacudindo e batendo. Eu disse que levava mas acabei no levando, na esperana de que ele mesmo levasse ou arranjasse outra pessoa. Quando nos encontramos depois disso ele estava muito zangado, comeou a me criticar e maltratar. Eu fui ficando envergonhado, da vergonha passei raiva e no tendo razo respondi bruto. Ele disse que eu era imprestvel, que de amizade assim ele no precisava, e

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eu sa pela porta afora.

Quando tia Zi soube que eu no estava indo oficina de Lzio ela quis saber por que era. Contei a briga e ela ficou to mortificada que parecia que era com ela. Depois comeou a falar rodeado, como quem quer dizer uma coisa e no acha jeito, falava e repisava, e de tudo o que ela disse eu s pude entender foi que eu no devia brigar com Lzio de jeito nenhum, mesmo que ele zangasse comigo. Queria que eu fosse ver Lzio e pedir desculpa. Achei isso muito esquisito, porque tio Firmino era o primeiro a implicar com Lzio, e do jeito que ele falava na mesa quase todo dia parecia que ele no queria que eu fosse amigo de Lzio. Foi justamente por implicncia com Lzio, e acho que tambm para eu no ir tanto oficina, que meu tio ficou de picuinha com ele at ele se mudar da casa do largo. Perguntei a tia Zi por que ela achava to importante eu no brigar com Lzio e ela respondeu que um dia eu ia saber.

Se eu vou saber um dia, por que a senhora no me diz logo? perguntei.

Por enquanto ainda cedo. Quando chegar o dia espero no estar mais neste mundo ela respondeu.

A vida para mim era rodeada de complicaes.

Lzio no gostava de falar em meu tio Firmino. Toda vez que eu contava alguma coisa em que entrava o nome de meu tio, ele ficava calado ou falava em outra coisa, isso era sempre. Mas um dia ele disse abertamente que se meu tio algum dia falasse alguma coisa contra a memria de minha me eu no devia acreditar, era tudo mentira. Foi s o que ele disse, por mais que eu insistisse por uma explicao. E isso devia ser importante tambm, porque ele disse que h muito tempo queria me avisar, e tinha medo que morresse antes.

Depois que Lzio se mudou para o rancho eu passava dias sem v-lo, o rancho era longe e eu no podia estar arranjando desculpa para passar tanto tempo fora de casa todo dia, principalmente quando meu tio parecia estar me vigiando mais do que nunca. S quando eu sabia que ele tinha sado para demorar que eu dava uma escapulida ligeira. Tia Zi estava vendo tudo, mas eu sabia que ela no ia contar.

Quando eu soube que os dois tinham brigado no mercado, e que tio Firmino tinha dado uma cabrestada em Lzio, mesmo

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sabendo que ele era fraco e doente, nem podia se firmar direito numa das pernas, e que Lzio apenas disse que um dia perdia a cabea e contava tudo o que aumentou ainda mais a fria de meu tio, sendo preciso vrias pessoas o agarrarem para ele no machucar Lzio fiquei aflito para ir ao rancho conversar com Lzio. Mas com meu tio em casa, resmungando e batendo com as coisas, quem disse que eu tinha coragem? S depois de escurecer, quando meu tio disse que ia jogar sete-e-meio para se distrair, foi que eu pude sair tambm. Tia Zi queria que eu deixasse para o outro dia, mas eu disse que no podia esperar. Ela ento recomendou que eu tivesse muito cuidado e no demorasse.

Agora ela devia estar diante do oratrio rezando, se no estivesse sendo apertada por tio Firmino para dar conta de mim, embora ele j soubesse muito bem. Eu queria estar l para defend-la afinal ela sempre me defendeu, embora escondido , mas por enquanto ela vai ter que contar apenas com suas oraes. vou ter que passar algum tempo fora de casa at ver em que p ficaram as coisas. At l eu j cresci e ento posso olhar tio Firmino de frente, sem medo nem desorientao, e conversar qualquer assunto sem baixar os olhos nem tremer a voz.

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Professor Pulqurio

Quando eu era menino e morava numa vila do interior, assisti a um episdio bastante estranho, envolvendo um professor e sua famlia. Embora sejam passados muitos anos, tenho ainda vivos na memria os detalhes do acontecimento, ou pelo menos aqueles que mais me impressionaram; e como ningum mais que viveu ali naquele perodo parece se lembrar, muitos chegando mesmo a duvidar que tais coisas tenham acontecido a prpria filha do professor, que eu vi aflita correndo de um lado para o outro chorando e pedindo socorro, quando eu lhe falei no assunto h uns dois ou trs anos olhou-me espantada e jurou que no se lembrava de nada resolvi pr por escrito tudo o que ainda me lembro, antes que a minha memria tambm comece a falhar. Se o meu testemunho cair um dia nas mos de algum investigador pachorrento, possvel que aquela ocorrncia j to antiga e, pelo que vejo, tambm completamente esquecida, exceto por mim, seja afinal desenterrada, debatida e esclarecida.

Naturalmente minhas esperanas so muito precrias; conto apenas com a colaborao do acaso e, como sabemos, se a histria rica de triunfos devidos unicamente ao acaso, tambm est cheia de derrotas s explicveis pela interferncia desse fator imprevisvel. Assim, vou fazer como o viajante que encontra um pssaro ferido na estrada, coloca-o em cima de um toco e segue o seu caminho. Se o pssaro aprumar e voar de novo, estar salvo embora o viajante no esteja ali para ver: se morrer, j estava de qualquer forma condenado.

Esse professor de quem falo era um homem magro e triste,

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morava em uma casa de arrabalde de cho batido. Fora professor em outros tempos, antes da criao do grupo escolar servido por normalistas. Para sustentar a mulher e os vrios filhos ele no apalpava servios: vendia frangos e ovos, tranava rdeas de sedenho, cobrava contas encruadas, procurava animais desaparecidos, e vez por outra matava um porco ou retalhava uma vaca. Vendo-o desdobrarse em tantas e to variadas atividades, era difcil compreender como ele ainda conseguia tempo para escrever artigos histricos para o jornalzinho de Pouso de Serra Acima, localidade a doze lguas de nossa vila para o sul. A bem da verdade devo dizer que seus artigos nunca davam o que falar. Sabia-se vagamente que ele escrevia, mas pouca gente se dava ao trabalho de ver o que era. Tambm nunca se incomodou com a indiferena do pblico, nem nunca deixou de mandar a sua colaborao -sempre que um assunto o entusiasmava. Pulqurio se chamava esse homem esforado.

De vez em quando eu encontrava um nmero do jornalzinho de Serra Acima rolando l por casa, mas confesso que nunca li um artigo do professor Pulqurio at o fim; achava-os maantes, cheios de datas e nomes de padres, parece que a fonte principal de sua erudio eram as monografias de um frei Santiago de Alarcn, dominicano que estudara a histria de nosso Estado e publicara seus trabalhos numa tipografia de Toledo. Meu pai guardava alguns desses folhetos, que me lembro de ter manuseado sem grande interesse.

No obstante a falta de interesse por seus artigos, professor Pulqurio ficou sendo o consultor histrico da vila. Sempre que algum queria saber a origem de um prdio, de uma estrada velha, de uma famlia, era s consult-lo que dificilmente ficaria na ignorncia. Eu mesmo, que nunca me interessei por esses assuntos, sentia-me descansado ao pensar que sempre o teria ali mo caso houvesse necessidade. E sem lhe dar muita ateno, por causa de sua prolixidade e de sua lentido no falar, eu o tratava com deferncia para no correr o risco de ser repelido quando precisasse dele. Quando o encontrava na rua, ou no armazm do meu tio Luclio, eu perguntava pela famlia, ou pelos negcios, e evitava falar em histria, porque se cometesse a imprudncia de falar em seu assunto favorito teria que perder muito tempo ouvindo uma longa explicao naquela voz preguiosa.

Um dia ele estragou o meu truque perguntando-me de chofre,

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logo aps os cumprimentos habituais, se eu conhecia a histria do tesouro do austraco. Era preciso muita ttica para responder. Se eu dissesse que conhecia, pensando abreviar a conversa, o tiro poderia sair pela culatra; ele haveria de querer comparar os meus dados com os dele, e a minha ignorncia denunciaria a minha inteno; se dissesse que no conhecia, teria que ouvi-la do princpio ao fim, com todos os afluentes.

Vejo que no sabe disse ele. Alis no de admirar, porque a mocidade de hoje no perde tempo com o passado. Mas no pense que eu estou censurando. um fenmeno facilmente constatvel, aqui e em toda parte. As causas so inmeras. Em primeiro lugar...

Nesse ponto ele deve ter notado algum sinal de impacincia em mim, porque deteve-se e desculpou-se:

Desculpe a minha divagao. Eu queria falar do tesouro do austraco e j ia me enfiando- por outro caminho. Se voc quiser ouvir a histria vamos ali ao armazm de seu tio. assunto fascinante para um jovem. Quem sabe voc no se anima a ir buscar o tesouro? Ficaria rico para o resto da vida!

Sentado num saco de feijo no fundo do armazm, o professor Pulqurio falou-me de um tesouro incalculvel que estaria enterrado na crista de um dos nossos morros. Eram sacos e mais sacos de ouro enterrados na prpria mina por um engenheiro austraco que a explorava secretamente. O filo era to rico que ele mandara chamar um filho na ustria para ajud-lo. Quando o rapaz chegou, anos depois devido s dificuldades de comunicao, e surgiu de repente em cima do barranco, o pai matou-o com um tiro julgando tratar-se de algum assaltante. Verificado o engano, o engenheiro resolveu dar ao filho o tmulo mais rico do mundo: enterrou-o na mina com todo o ouro j extrado e deixou um roteiro propositalmente complicado. O professor conseguira o roteiro e agora procurava localizar a mina. Impressionava-o a frase final do roteiro, depois de muitos circunlquios e pistas falsas: Chegando nessas alturas, procure da cinta para a cabea que encontrar ouro grosso e riqueza nunca vista.

Mas ningum deve supor que o professor Pulqurio fosse um homem ambicioso. Ele no queria ficar com todo o tesouro, estava pronto a dividi-lo com quantos quisessem participar da busca, e at achava que quanto mais gente melhor.

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Existiria mesmo o tal tesouro? Parece que o povo no estava acreditando muito. A nossa febre de ouro havia passado, deixando todos com a sensao de logro. Quase no havia na vila e imediaes um curral velho, um pedao de alicerce, um moiro de aroeira no meio de um ptio, que no tivesse sido tomado como apelo mudo de um tesouro. Cavoucado o lugar e revolvida a terra, o nico resultado positivo eram os calos nas mos do cavouqueiro. O povo andava muito desinteressado de tesouros quando o professor apareceu com o seu roteiro.

A mania do tesouro poderia ter passado com o tempo, sem gerar transtorno, se a linguagem enigmtica do roteiro no tivesse fascinado o professor. Ele passava tardes ou manhs inteiras no armazm de meu tio, atrapalhando o servio e os fregueses, revolvendo mentalmente o roteiro, procurando penetrar no sentido oculto das frases, descuidando de suas obrigaes. Muitas vezes a mulher precisava mandar um dos meninos busc-lo para atender a algum negcio que no podia esperar, ou pedir dinheiro para alguma despesa urgente. Mas devo dizer que o professor era muito delicado com os filhos, nunca se irritava quando era interrompido em suas meditaes, e at pedia a meu tio que fornecesse umas balas ao garoto para pagar depois.

Enquanto ele se limitou a falar no roteiro e nas investigaes que estava fazendo para localizar a mina, no tnhamos motivo de queixa. Era uma nova mania inofensiva, at servia para desviarlhe a cabea de seus problemas domsticos. Gostvamos de vlo fazer clculos sobre o nmero de sacos de ouro que devia haver na mina, tomando por base o tempo que o austraco trabalhou sozinho, a quantidade de cascalho que um homem pode balear em um dia, e o teor de ouro que devia haver em ca