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Transformações no Mundo Árabe o Kula jornal espaço de troca entre estudantes de ciências sociais da usp edição #1 maio/junho de 2011

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Transformações no Mundo Árabe

o Kula j o r n a l

espaço de troca entre estudantes de ciências

sociais da usp

edição #1maio/junho de 2011

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O KULA é uma publicação do Cen-tro Universitário de Pesquisas e Estudos So-ciais (CeUPES), o centro acadêmico do curso de Ciências Sociais da USP, construída em reuniões abertas da Comissão de Comunica-ção, Cultura e Arte da entidade. Todas as contribuições publicadas em O KULA, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo, são de responsabilidade exclusiva dos autores que as assinam e não refletem necessariamente a opinião da atual gestão do centro acadêmico nem do conjunto dos estudantes do curso. Críticas e sugestões serão sempre muito bem-vindas e devem ser encaminha-das por meio dos contatos relacionados abai-xo. Uma versão digital de O KULA estará disponível.

Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais - CeUPESGestão Cirandeia - 2010/2011Blog: http://ceupes2011.wordpress.comE-mail: [email protected]: @ceupesFone: 3091-3748

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O Kula é um sistema de trocas tradicional baseado em princípios de reciprocidade que Malinowski estudou quando esteve nas Ilhas Trobriand, na antiga Melané-sia. Essas trocas são vistas sob a égide das conchas, isto é, cada uma das populações envolvidas na troca cria suas conchas e faz com que elas sejam trocadas por outras ao longo do percurso que pode durar cerca de cinco anos para ser completado. A lógica do sistema é simples, isto é, conchas são trocadas por outras equivalentes. Aqui, então, está o nosso KULA, isto é, nós enquanto seres sociais trocando nossas dádivas que, em vez de conchas, são nossos textos (opinativos, jornalísticos, críticos, li-terários etc.) e nossas artes (fotografia, tirinhas, charges etc.). Esperamos, com isso, tornar nossa comunicação um fato social total, isto é, que todos e todas possam contribuir e que isso possa ser um fundamento da nossa prática de estudantes, ou seja, olhar atento para a nossa realidade sem nos esquecermos da intervenção enquan-to sujeitos sociais.

Por que “O KULA”?

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editorialPonta pé inicial 3

capa: transformações no mundo árabeA Primavera Árabe e as Vassouras Insurretas 4Revolta ou revolução? 5As Revoluções Árabes e suas lições ao Brasil 6 O que a Revolução dos Jasmins diz à América Latina? 7

especial 8sociedade

Um estereótipo Inconveniente 10 O porquê do “x” 11

As conchas dessa ediçãoeducação e movimento estudantil

Reorganização e unidade no movimento estudantil: barricadas abrem caminhos 11

contosCachola cacheada 13As Pessoas do Sol 15Ode às camas de hospital ensangüentadas 16

poemasDelírios Verbais 17Quadrilha Real 18Salmo 19

quadrinhos 20retratos sociais 22

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É com grande satisfação que a atual gestão do Cen-tro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais (CeUPES), o centro acadêmico de nosso curso, apresenta a todxs estu-dantes a primeira edição do Jornal do CeUPES, construído e aprovado em reunião aberta da Comissão de Comunicação, Cultura e Arte da entidade.

O Jornal do CeUPES nasce com um objetivo bastante ousado: servir como instrumento para que todxs estudantes de Ciências Sociais possam compartilhar informações, experi-ências, opiniões, conhecimentos, para quem sabe assim poder-mos coletivamente caminhar no sentido de construir sínteses e de amadurecer nossa forma de ver as coisas.

Todas as edições terão um tema de capa, a ser decidido em reunião aberta prévia da comissão responsável acima cita-da e ao qual será reservada uma seção especial do jornal, como uma espécie de sugestão. A ideia é que exista espaço para to-dos os tipos de manifestação, seja por meio de textos, como artigos, poemas ou contos, seja por meio de desenhos, como charges ou tirinhas, que não necessariamente precisam estar de acordo com o tema de capa, pois existirão também outras seções, conforme a demanda dxs estudantes que passarem a colaborar.

Para esta edição, devido a todos os acontecimentos que temos observado recentemente em países do Oriente Médio e do Norte da África, o tema escolhido foi “Transformações no Mundo Árabe”, até porque esses eventos, permeados por mobilizações coletivas e mudanças políticas conquistadas, co-locam-se como rico objeto de reflexão por parte de qualquer uma das três áreas que compõe o nosso curso e também de certa forma servem como motivo de inspiração àqueles que de uma forma ou de outra anseiam por algum tipo de mudança do atual estado de coisas.

As transformações no mundo árabe mostram, ao me-nos, que a história não acabou.

Por fim, vale frisar que para o sucesso da iniciativa é preciso que todxs participem, lendo, concordando, discordan-do e enviando sugestões, críticas, réplicas etc. A qualidade de cada edição vai depender diretamente de todxs nós! Boa leitu-ra!

Gestão Cirandeia 2010/2011

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P o n t a p é i n i c i a leditorial

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A mobilização das tra-balhadoras (es) terceirizadas (os) trouxe à tona todo lixo que repre-senta a terceirização na universi-dade e no país. Escancarou o pro-jeto de universidade privatista da reitoria em sua faceta mais imun-da. Um projeto de universi-dade voltado ao mercado é um projeto de universidade de costas para os interesses dos trabalhado-res em todos os sentidos. Faltam vagas para a maioria pobre da população; permanência para os poucos representantes desta que conseguem entrar; não se produz nada para ajudar em suas precá-rias condições de vida; exploram, cada vez um número menor de trabalhadores ganhando cada vez menos (dado que um terceirizado ganha 1/3 de um efetivo); e repri-me-se todos aqueles que ousam resistir. Já o mercado sai ganhan-do em larga escala: aprovam-se cursos pagos para a graduação, o gasto público diminui na medida em que aumenta a terceirização, as pesquisas atendem as necessi-dades do mercado e legitimam a “ordem” vigente. Isso é a base da produ-ção de conhecimento na USP, e de produção da vida, fora dela. O projeto do governo petista segue as bases do governo tucano: a super-exploração dos trabalhado-res e a privatização dos serviços. Desde FHC até Dilma, passando por Lula, as medidas neoliberais elevaram à décima potência todas as desigualdades favorecendo uns poucos (como Eike Batista e seus

R$30 bi de fortuna) em detrimento da maioria. Assim os operários da construção civil de Jirau, revolta-dos com suas condições de vida e trabalho, deixaram claro. É nessa conjuntura, que grande parte da academia conse-guiu propagandear que a luta de classes havia sido extinta e que a história se daria inteiramente por dentro do capitalismo, único siste-ma possível para a vida. O conjun-to da esquerda, bastante presente no movi-mento estudantil, não soube travar uma trincheira ideo-lógica e política contra este tipo de ilusão acadêmica, deixando os es-tudantes e os trabalhadores a mer-cê desta ideologia barata. Mas fruto deste desenvol-vimento anárquico e desumano de-senvolveu-se uma crise eco-nômica de proporções históricas, piorando as condições de vida dos trabalha-dores de todos os países, incluindo os das nações capitalistas centrais Frente a esta situação, os trabalha-dores europeus e depois o conjun-to da população Árabe mostraram para o mun-do todo que é possível lutar, que a luta de classes nunca deixou de ser o motor da histó-ria. Nas palavras de Zizek, a primavera árabe provou que “tudo que é sóli-do desmancha no ar”. A produção acadêmica he-gemônica da Ciências Sociais se nutriu da teoria do fim da his-tória. Soterrada pela Primavera Árabe, esta ideologia que separa ciência e política em duas vocações, mos-trou sua face mais ácida durante o conflito das terceirizadas. Escan-dalizada pelos lixos espalhados nos

corredores, Sandra Nitrini, direto-ra da FFLCH, escre-veu uma car-ta assinada por todos os chefes de departamento, repudiando o mo-vimento, sem dedicar uma linha em repudiar a terceirização ou o não pagamento dos trabalhado-res, e ainda reivindicando o fato da categoria em greve ser substi-tuída por outra. Fernando Limongi e An-tônio Pierucci mostraram que sua pretensa neutralidade legitima a exploração e o descaso com os trabalhadores terceirizados. A luta de classes, extinta das aulas destes e outros professores voltou pela porta do banheiro, arrastando toda esta ide-ologia para o meio do lixo jogado nos corredores. Com este retorno avas-salador, todo o velho há de pe-recer. O movimento estudantil busca um novo respiro e, assim, se defronta com toda a sua po-tencialidade transformadora. A intervenção de estudantes ao lado dos trabalhadores terceirizados demonstrou que é a vocação do ME superar o rotineirismo cor-porativo de sempre e, assim, en-trar em debates nacionais e in-ternacionais, buscando refletir os grandes problemas da sociedade e colo-car-se na linha de frente de transformar a teoria e as idéias em força material, que penetre nas massas e abra as portas para uma nova e possível vida!

Alexandre Guimarães é es-tudante do terceiro ano e André Bof é do quarto ano. Ambos miliam na LER-QI.

A Primavera Árabe e as Vassouras Insurretas

capa: transformações no mundo árabe

Por Alexandre Guimarães e André Bof

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Revolta ou revolução?Por Max Gimenes

capa: transformações no mundo árabe

O ano de 2011 começou com o norte da África e o Oriente Médio em efervescência política e social. Desde então, as revoltas populares que explodiram em alguns países, como Tunísia e Egito, entraram para a pauta de discussões da so-ciedade brasileira. A cobertura da mídia tra-dicional talvez tenha feito boa par-te de nós enxergar essas mobiliza-ções como luta deliberada desses povos por “liberdade” e democra-cia representativa. Mazelas foram trazidas à tona, e tudo como se o Ocidente tivesse acabado de des-cobri-las. Em paralelo, foram dei-xadas de canto necessidades eco-nômicas imediatas do povo, não satisfeitas ante a opulência da elite. Muitos ativistas de esquer-da, no entanto, não ficam atrás quando o assunto é abordagem “ideológica”, aqui no sentido pró-ximo de Durkheim, de análise que parte da ideia à realidade, para de-pois tentar adaptar a última à pri-meira. A compreensão das trans-formações no mundo árabe passa necessariamente por uma análise desapaixonada do fenômeno, pos-sível mesmo que o indivíduo tenha lado, como todos invariavelmente têm. Este texto não tem como objetivo apresentar um estu-do aprofundado e sistemático, mas apenas convidar à reflexão a respeito de uma questão não meramente semântica, mas emi-nentemente política. Como dizia Florestan, o debate terminológico não nos interessa por si mesmo, mas porque o uso das palavras traduz relações de poder e de do-minação. Seria tarefa da burguesia, segundo ele, confundir os espíritos

quanto ao significado de algumas palavras-chave. Ao passo que a re-volucionários caberia a tarefa de desfazer tal confusão, jamais con-tribuir com ela. O dicionário de política de Bobbio contribui com a reflexão. Poderíamos dizer que uma revolu-ção nacional ou regional implica, ao menos a partir da Revolução Francesa, uma manifesta motiva-ção ideológica, uma vontade de subversão total da ordem vigente em busca de algo que jamais exis-tiu, que conduz a transformações no modelo sócio-econômico. Uma revolta, por seu turno, tem carac-terísticas diferentes, como o anseio vago por um regresso a princípios originários pervertidos ou insatis-fações políticas e econômicas mais conjunturais, passíveis de serem parcialmente atendidas sem mu-dança estrutural, o que abafa o le-vante. No caso de Tunísia ou Egi-to, por exemplo, países de maioria muçulmana, o fator religioso cor-robora a hipótese desse “olhar para trás” como motivação e não pode ser ignorado. Tampouco pode ser ignorada a influência das necessidades econômicas, como é evidente no episódio do rapaz que desencadeou protestos na Tunísia após atear fogo ao próprio corpo. Expressões como “re-volução cidadã”, para utilizar o exemplo do processo de demo-cratização da sociedade em curso no Equador, escapam a esta crítica por dizerem respeito a um elemen-to isolado, no caso a cidadania, e trazerem “revolução” em seu sen-tido corrente de rápida e/ou gran-de transformação. O que parece descabido é falar em Revolução Árabe ou Egípcia, por exemplo. A

insistência desesperada em chamar de “revolução” acontecimentos mundo afora não mostra senão a debilidade de parcela da esquerda, aparentemente incapaz de manejar instrumentos legados sem fazê-lo de forma dogmática ou afetada. Talvez seja mais cauteloso enxergar o fenômeno como ajus-te de contas do capitalismo glo-bal com os arranjos institucionais incompatíveis dessas sociedades, que impõe à livre circulação de capitais uma onerosa mediação desempenhada por ditadores pa-rasitas, que são tolerados apenas na medida em que sua derrubada coloca em risco interesses hege-mônicos. No caso do Egito, por exemplo, em que contribui para uma autêntica revolução a bana-lização do termo ao ser aplicado a um processo tutelado pelo im-perialismo estadunidense e que pode vir a conduzir ao governo do Estado egípcio, ainda que “laico” e “democrático” formalmente, al-guém como Mohamed ElBaradei, que não surpreenderia se fizesse uma administração corrupta e pró-EUA/capital financeiro e frustras-se o conjunto da população? Esse conjunto de transfor-mações é positivo e progressista, e para reconhecermos isso não pre-cisamos chamá-lo de revolução. O fato de chamarmos um processo de revolução não o faz mais próxi-mo de ser efetivamente uma revo-lução. Ao contrário, corre-se assim o risco, a despeito da boa vontade, de torná-la mais distante.

Max Gimenes é estudante do terceiro ano e faz parte da gestão Cirandeia.

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Por Gustavo Rego

capa: transformações no mundo árabe

As Revoluções Árabes e suas

lições ao Brasil

Desde o início do ano, o mun-do discute a “Revolução Árabe”. Trata-se da maior mobilização po-lítica que a geração nascida entre os 80-90 já viu. Em meio ao con-formismo que vivemos, em que a participação política é vista com in-diferença ou repulsa, presenciamos milhões de jovens e trabalhadores indo às ruas lutar por melhores condições de vida e por um mun-do mais justo. Nada poderia chocar mais a nossa (aparentemente) mor-na vida política. Mas esta revolução não se explica apenas pela excepcional coragem do povo árabe. É preci-so contextualizá-la. Entre julho e agosto de 2007 foi dado o início de uma séria crise econômica mun-dial a partir dos EUA. É fato que o cenário de crise ainda não foi su-perado: os EUA continuam com sua economia instável e na Europa segue a crescente revolta popular. Após um longo ciclo de expansão desenfreada do capital, vivemos um verdadeiro giro histórico na situa-ção mundial. A crise que se iniciou no campo da economia colocou as massas em movimento e deu origem a uma crise no campo da política. Até o momento, os Esta-dos árabes representam (ou repre-sentavam) um dos principais focos do imperialismo mundial, seja por sua importância geopolítica estra-tégica, ou pela enorme importância econômica de suas reservas de pe-tróleo. Governos ditadores servi-ram como importantes aliados do imperialismo reprimindo qualquer

iniciativa popular que ameaçasse seu domínio na região. Entretanto, os países árabes se tornaram extre-mamente dependentes da econo-mia externa (principalmente da Eu-ropa), e quando a crise chegou até eles, os ditadores não conseguiram conter o impulso combativo dos jo-vens e trabalhadores. Deu-se início a uma revolução democrática que já derrubou dois ditadores, conquis-tou diversos direitos civis e impor-tantes avanços sociais. Sem dúvida, uma desestabilização do No entan-to, não é possível dizer ainda quão profundas serão as transformações. Se avançam até uma radical rees-truturação da economia e rompi-mento com o imperialismo, ou se apenas alteram o regime político, permanecendo em uma situação de desigualdade social e dependência externa. O sucesso da revolução árabe depende principalmente do desenvolvimento da conjuntura política global, tendo em vista que esta revolução localiza-se em um contexto geral de crise. Ao mesmo tempo, o que acontece no mundo Árabe causa sérios impactos na conjuntura global, tanto pela subi-da no preço dos barris de petróleo, quanto pela influência política. Portanto, o Brasil não está isolado do que acontece no mundo árabe hoje. Assim, para que o pro-cesso de transformação mundial se aprofunde, chegando também ao Brasil, é necessário adotar uma po-lítica conseqüente no país, aprovei-tando as brechas deixadas pela elite dirigente, além de praticar solidarie-

dade ativa à Revolução Árabe. O PSOL tem procura-do agir nestes dois campos. No parlamento, procura se postular como alternativa à política domi-nante, ao mesmo tempo em que se engaja nos processos de mobi-lização popular e constrói, através do jornal Juntos!, um setor de ju-ventude voltado para ação políti-ca combativa e ampla. No terreno internacio-nal, o PSOL enviou dois corres-pondentes e trouxe ao Brasil um dirigente sindical tunisiano. Isso possibilitou trocarmos experiên-cias e ajudarmos na construção de um novo partido, semelhante ao PSOL, na Tunísia. Embora a discussão sobre revoluções possa parecer puro sonho distante, devemos nos lembrar, que, até antes da revolução árabe estourar, poucos apostariam que esta região seria palco de tantas transformações. É preciso fazer como os jovens árabes, que tomaram as ruas pois enxergaram que por trás da opressão se escondia a possi-bilidade de uma sociedade mais justa. O Juntos! é uma tentativa de tentar resgatar esse espírito de luta e esperança na transfor-mação. Vamos juntos! Façamos a nossa praça Tahrir!

Gustavo Rego é estudan-te do terceiro ano. Ele é militante do PSOL e cola-borador do jornal Juntos! (jornaljuntos.blog.br).

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Não precisa ser muito entendido no assun-to, para logo fazer a asso-ciação entre essas ditadu-ras árabes, que passam por forte tensão no momento, com as ditaduras do nosso próprio continente. Refiro-me à Venezuela e a Cuba. Ditadura Venezuelana? Sim! É preciso ser muito ingênuo para classificar de outra forma aquilo que in-felizmente ocorre no país. Não vou exemplifi-car e esmiuçar os motivos que tornam Cuba e Vene-zuela ditaduras – afinal, seria desnecessário - e par-tirei do princípio de que to-dos já têm isso em mente. Não preciso citar as inú-meras atrocidades contra a democracia perpetradas por Hugo Chavez, preciso? Alguns pseudo-comunistas de plantão podem se en-furecer com a utilização desse título como forma de me referir a essa figura esquizofrênica que é o nos-so querido Chavez, outros podem dizer que isso não passa de criação da mídia como forma de denegrir e descreditar a figura do pre-sidente venezuelano, mas isso não faz diferença e não é o foco do que pre-

tendo dizer aqui. A questão central é bastante simples: o que a população cubana e ve-nezuelana tem feito para combater a repressão, a censura e a violação de di-reitos primordiais (no caso, usarei a Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos da ONU como referência) em seus próprios países? A resposta é “não o suficien-te”. E é aqui que entra a essência do título desse texto: essa revolução que começou na Tunísia, der-rubou o ditador do Egi-to, Hosni Mubarak, e que agora ameaça o ditador da Líbia, Kadafi, e assusta ou-tros países com a possibi-lidade de infecção, como a Arábia Saudita, deixa uma incógnita no ar. Se eles, árabes, tão conservadores e fechados, estão se rebe-lando, então por que nós, latino-americanos, com um amplo histórico de luta contra a repressão, estamos calados? Essa é a mesma per-gunta que Yoani Sánchez – jornalista cubana - faz a si própria. Yoani é uma ferre-nha contestadora da situa-ção vivida pelos cubanos

O que a Revolução dos Jasmins diz à América Latina?

e da atuação do governo; questionadora da atuação de Fiedel e seu irmão. Em seu blog, “Ge-racion Y”, ela diz: "No he vivido una revolución, mu-cho menos ciudadana, pero esta semana, a pesar de la cautela de los noticiarios oficiales, he presentido que el canal de Suez y el mar Caribe no quedan tan le-jos, no son sitios tan dife-rentes." Em suma, ela quis dizer que, se eles – tunisia-nos, egípcios, líbios - po-dem se rebelar contra o que está acontecendo, contra a situação em que vivem, en-tão o povo cubano também pode. Não sabemos ainda se todo esse cenário árabe repercutirá de alguma for-ma aqui à Oeste do Atlân-tico, mas uma coisa é cer-ta, essa situação vivida por Cuba e Venezuela tem data de validade. Na Venezuela ainda se trata de algo recen-te, enquanto que em Cuba já é algo que se arrasta há décadas, mas ambas as di-taduras chegarão ao fim, mais cedo ou mais tarde.

Fernando Borges é estudante do primeiro ano.

Por Fernando Borges

capa: transformações no mundo árabe

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Expedição dos trobriandeses para a realização do Kula. Bronislaw Malinowski, 1922

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Malinowski em campo com os trobriandeses. Malinowski, 1922

Imagens do Kula especial

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Cerimonial de ato do Kula. Malinowski, 1922.

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Expedição para o Kula. Malinowski, 1922.

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Uma boa maneira de descrever o con-ceito de estereótipo é caracterizá-lo como uma idéia preconcebida imposta a determina-do grupo de pessoas, coisas ou lugares. Partir da definição nos ajuda a identificar sua impli-cação no cotidiano, que lamentavelmente é recheado com exemplos de imposições dessa natureza: quem não conhece o estereótipo do homossexual, que nos martela a idéia do quão espalhafatoso, alegre, desinibido ou audacioso é esse grupo de indivíduos? Ou o da dona de casa, que vai buscar em Ataulfo Alves e em sua Amélia inspiração para a própria existên-cia? No outro extremo, o da feminista “roxa”, sempre pronta a queimar o sutiã ao menor si-nal da doença machista? E podemos perma-necer horas a fio peneirando tais imagens: o carioca malandro, o baiano preguiçoso, o po-lítico corrupto, o mackenzista que não conse-guiu passar na USP... Encontrando-os dessa maneira, per-passando-lhes de forma bem humorada, ve-mo-los como inocentes produtos daquela cul-tura dita “popular”. Triste engano. Inocente é crer em sua aparente inocuidade. Estereótipo é uma manifestação de preconceito, pura e tão somente! Não há correlação nenhuma entre a opção sexual e a “alegria LGBT” de ser. Não há correlação nenhuma entre ser matriarca de uma família e gostar de lavar, passar, cozinhar e não ter a “menor vaidade”. São essas cone-xões que produzem crimes como a imagem do negro bandido, que ainda associa quantidade de melanina com tendência ao mau-caratismo, e que nós, cientistas sociais, temos a obrigação de desconstruir. Pensemos, por um momento, nos este-reótipos que nos são impostos. Pensemos no

Um estereót ipo Inconveniente

Por Felipe Eduardo Lázaro Braga

sociedade

quanto eles se distanciam ou se aproximam de nós, enquanto indivíduos. É dessa reflexão que talvez emirja o clássico estereótipo fefe-léchiano: o esquerdista, grevista, que tirava notas ruins nas exatas e tem intensos assomos de emoção ao ouvir as composições de Chico Buarque; aquele que um dia fará a revolução comunista. E se o estudante cursa Ciências Sociais, elevamos todas essas características ao quadrado. É claro que existem inúmeros colegas com tais tendências. O que não po-demos é permitir que elas sejam atribuídas ao universo do corpo discente da nossa faculda-de, afinal carregamos o orgulho da pluralida-de de ideologias que convivem nos corredores da FFLCH: esquerdistas, direitistas, marxistas, anarquistas, surfistas, malufistas. Sabemos que muitos veículos de im-prensa, conhecidos analistas políticos e até membros da própria comunidade uspiana auxiliam na perpetuação desse estereótipo unidimensional, mas cabe a nós demonstrar o quão universal é essa unidade da Universi-dade. E como fazer isso? Ora, participando ativamente da vida da faculdade, carregando a idéia de que seja qual for sua filiação, ideo-logia ou gosto musical, VOCÊ TEM O DI-REITO DE TER SUA OPINIÃO OUVIDA! E o CeUPES, enquanto órgão de representa-ção dos estudantes das Sociais, está de braços abertos para escutá-lo. Afinal, o plural sem-pre é mais instigante que o singular, e a plura-lidade fefeléchiana merece ser cantada, seja ao som de rock, pop, bossa ou funk. Vítimas de estereótipo, uni-vos

Felipe Eduardo Lázaro Braga é estu-dante do primeiro ano.

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Há muitas discussões de que a lingua-gem é andropocentrista, ou seja, põe o homem (o gênero masculino) no centro do discurso. Às vezes nos questionamos do porquê de usarmos “todos” para falar de todos e todas, ou “pais” para se referir ao pai e à mãe; no limite, sobre o “homem” representar a “humanidade”. Fato é que na linguagem o gênero femi-nino é excluído do discurso, há nele uma opres-são – pela exclusão – da mulher. E isso reflete, no fundo, a forma de organização da socieda-de e as crenças e/ou ideologias que lhe estão internalizadas, ou “uma radiografia do que se pensa”, nas palavras da linguista Eulália Lledó. Pensemos no papel de destaque que o homem tem em relação à mulher na sociedade; ele se expressa na família, no campo de trabalho, na linguagem.

O porquê do “x”sociedade

educação e movimento estudantil

Reorganização e unidade no movimento estudantil: barricadas abrem caminhos

A língua não é imutável, ela se constrói organicamente na própria vivência das pessoas. E assim como cabe aos falantes a sua constru-ção, cabe também a eles a sua reconstrução. No entanto, enquanto não houver von-tade política e disposição para tal mudança ela nunca ocorrerá. Daí vêm os usos de “@”, “as/os” e o nosso “x”, que vocês verão com frequência da-qui pra frente nos textos assinados pela atual gestão do CeUPES. Optamos por um discurso que inclui homens e mulheres de forma igualitária tanto no texto como na prática discursiva em detrimento do andropocentrismo, do machismo e do sexis-mo que estão envoltos na linguagem.

Gestão Cirandeia 2010/2011

Os oito anos do governo Lula foram marcados pela continuidade do programa neoliberal, de retirada de direitos e expan-são da iniciativa e interesses privados. Com o governo Dilma, não será diferente. Após a decepção, os movimentos sociais passam por processo de reorganização e com o mo-vimento estudantil não é diferente. Embora os principais responsáveis pelo divisionismo no movimento sejam o PT/PCdoB, que aderi-ram ao projeto priva-tista e mercantilista de educação proposto pelo Banco Mundial, é necessário debater a reorganização do Movimento Estudantil

com os companheiros que se mantiveram na luta, dentro ou fora da UNE. A ruptura com a UNE pelo PSTU levou a polarização do movimento entre quem está fora ou dentro da UNE. Isso enfraqueceu ainda mais o ME combativo, cristalizando uma fragmentação precoce. O proces-so de reorganização é complexo e encontra em diversos espaços potenciali-dades, contribuições e dimen-sões diferen-tes, que devem ser trabalhadas e interligadas. Isso porque nenhum setor da esquerda hoje tem as respostas definitivas para os desafios e dilemas que estão colocados. Qualquer

Dan, Cavivi, Framil e William

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estudantil perdendo de vista a necessida-de da unidade para enfrentar os ata-ques é um retrocesso. Com a chegada do PT ao palá-cio do planalto, a direção majoritária da UNE passou de malas e baga-gens para o lado do Banco Mundial e seu projeto para a educação na América Latina. No entanto, seus fóruns ainda hoje atraem uma grande quantidade de estudantes, que muitas vezes só tem a UJS/PC do B e outros setores de direita como referên-cia política. A participação nesses fóruns tem sentido enquanto dispu-ta pela apre-sentação de uma alternativa diferente de ME. A construção de uma nova entidade hoje significa atropelar a possibilidade de uma construção ampla e unitária, com coletivos organizados e estudantes inde-pendentes. Apesar disso, os setores que cons-troem a oposição de esquerda da UNE devem, também, se debru-çar de maneira mais intensa na construção desta unida-de. Consideramos um erro, diante deste cenário de crise e fragmentação, apostar todas as forças na disputa interna da en-tidade. Discordamos da análise de reto-mada da UNE para o campo combativo e, como conseqüência disso, o aprisiona-mento do movimento estudantil dentro da agenda da UNE. É preciso construir espaços de unidade e luta por fora da UNE, como foi o Seminário de Uberlân-dia ocorrido em 2010, que contou com a participação de militantes da ANEL e da esquerda da UNE. É necessário ter claro em quais marcos queremos reorganizar o movi-mento. Acreditamos que o mo-vimento estudantil é um movimento social, ten-

do como pauta clara a defesa da edu-cação pública com uma perspectiva de transformação da sociedade. Portan-to, o debate vai para além da unida-de pontual em algu-mas lutas ou do debates acerca das superestruturas. O capitalismo subordinou a educação a seus interes-ses, mercantilizando-a. Por isso, a defesa da educação exige a negação radical do capitalismo. Ou seja, é necessária uma proposta alter-nativa de educação, pautada nas lutas, voltada aos movimentos sociais e ligada aos trabalhadores. É preciso combater as concep-ções que enxergam o Movimento Es-tudantil unicamente como espaço para “captação de quadros” e não como de movimento combativo e revolucioná-rio. É necessário construir uma dinâmi-ca de militância para que os estudantes identifiquem o ME como possibilidade real de organização coletiva. O estu-dante deve se entender como sujeito político consciente, ensaiando o pro-tagonismo da nos-sa revolução mesmo diante deste cenário difícil. Nosso pal-co deve ser horizontal, auto-organiza-do, onde todos sejam atores principais. O movimento estudantil de hoje deve ser completamente coerente, não só na teoria, mas na prática com o projeto de sociedade que defendemos para o futu-ro.

Framil e William são estudantes do primeiro ano, Cavivi é do segundo e Dan é do terceiro. Todos são militantes do Coleti-vo Barricadas Abrem Caminhos (barricadas.org).

c r í t i caParticipou de algum evento cultural, assistiu a um filme ou a uma peça de teatro, leu um livro? Se gostou ou não gostou, não importa, escreva uma resenha para compartilhar com seus colegas as impressões que teve. O KULA também é um espaço para o exercício da crítica.

educação e movimento estudantil

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Na ciranda da vida da me-nina, tudo era riso. A família era riso, os amigos, as brincadeiras e até a 3ª série era riso. Se não era riso, era sorriso. Tudo era motivo para novos sonhos: a amiga nova, as contas de vezes e as empreita-das das bonecas. Mas, entre uma diversão e outra, surgiam dúvidas na sua cabecinha cacheada: “por que as pessoas morrem?”, “por que as pessoas brigam?”, “por que eu sou assim?”. Claro, ela estava na fase dos porquês. As perguntas todas eram facilmente respondi-das pelos seus pais. Para as mais complexas, eles utilizavam como recurso argumentativo o divino: “porque Deus quer assim”, “por-que Deus quer assado”. Essas respostas eram mais do que sufi-cientes e, se não fossem, não ha-via problema, pois a garota logo se distraía e se encantava por qual-quer outra coisa.

Até que um dia, uma dúvi-da muito séria começou a repousar devagarinho em sua cachola. Não se sabe de onde ela veio, talvez de alguma aula na escola, talvez de seu irmão mais velho - que ado-rava envolvê-la com confusões - talvez do próprio silêncio da noite ou das profundezas de sua mente. Correu até o escritório de sua mãe e bateu na porta, a mãe atendeu

Cachola cacheada Por Fernanda Ortega

contos

sorridente, mesmo ocupada. A me-nina perguntou:

— Mãe, eu aprendi na escola que o universo surgiu do Big Bang, de uma bolinha que explodiu. A professora não disse isso, mas pen-sei que a bolinha surgiu de Deus, porque Deus é o começo de tudo, né? Mas... Se Deus é o começo de tudo, de onde veio Deus? – termi-nou a pergunta e sorriu, aguardan-do a chave daquele mistério.

A mãe franziu a testa e, pen-sativa, respondeu:

— Não sei, Manu. Algumas coisas são inexplicáveis.

A garota arregalou os olhos:

— Mas como não sabe?

— Ora, não sei. Os pais não sabem de tudo.

A menina e seus cachos fi-caram em choque: isso nunca tinha acontecido, a mãe sempre soubera de tudo. Resolveu perguntar tam-bém ao pai, e ele também não sabia! A professora da escola só respon-deu que aquela era uma questão fi-losófica. Ai, ai, ai... Se ninguém sa-bia, ela mesma teria que descobrir. Foi então que, sem saber, desenvol-veu uma investigação.

O plano era simples: puro em-

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pirismo. Ela queria saber como Deus surgiu. Ele deveria ter surgido do nada, do vazio. Mas como algo poderia apare-cer a partir de coisa nenhuma? Ora, ela precisava de algo vazio para descobrir. Entusiasmada, saltitante e sorridente, re-virou a casa e encontrou uma lata azul de biscoitos amanteigados vazia. Era perfeita. Ensaboou e enxaguou a o re-cipiente, retirando todas as migalhas de biscoito, e o secou com todo o cuidado que poderia ter uma garota de oito anos. Depois, pediu uma fita crepe para a mãe. Deu voltas e voltas com a fita ao redor da lata de biscoitos e a escondeu no baú atrás de sua cama. Ninguém nunca po-deria abrir aquilo, pois poderia estragar todo o seu projeto. Ela estava certa de que demoraria muito para que algo sur-gisse do vazio daquele cilindro achata-do. Talvez sua vida inteira. Pensava em abrir aquilo aos 90 anos, ao final de sua vida. Mas poderia demorar muito mais, teria que deixar aos cuidados de seus filhos. Era assim que queria começar a desvendar a origem de Deus, a origem do universo, da Via Láctea, dos astros e planetas e, por fim, da vida! A cacho-la cacheada queria saber se algo poderia surgir do nada.

A partir desse dia, não deixava ninguém chegar perto de seu baú. Havia algo precioso lá dentro. Seus cabelos en-caracolados lhe diziam que poderia sur-gir um novo Deus dentro daquela lata de biscoitos amanteigados, ou, então, poderia ocorrer lá dentro um outro Big Bang, de onde surgiriam novos sistemas solares e, também... Novos seres vivos! Nossa! Vidas estariam em jogo se abris-sem aquela coisa! Ela era a guardiã des-ses seres. Na realidade, ela era o deus deles, esse mistério estava solucionado.

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A cachola viajava por ideias ainda mais distantes: imaginava que talvez o nosso universo também estivesse dentro de uma lata de biscoitos de outra meni-na de oito anos – que seria o nosso Deus -, que viveria em outro universo dentro de outra lata e assim por diante, infinita-mente.

Certo dia, cacholando sobre o as-sunto, percebeu um grande perigo: “e se abrirem a nossa lata de biscoitos, esta em que moramos? Será que morreremos?” Saiu correndo pela casa gritando: “Ah-hhhhhhhhhhhhhhhhhh!! Vamos morrer! Vamos todos morrer!” Deu várias voltas pelos quartos, bateu portas, derrubou coisas das prateleiras e... a mãe chegou:

— Manu, o que está acontecen-do?! – perguntou com as mãos na cintu-ra e os olhos na filha.

A menina não podia contar sobre o perigo iminente, pois a mãe descobri-ria a lata de biscoitos e, por isso, as vidas de outros seres estariam em xeque. Esse era um segredo, importantíssimo. E, en-tão, respondeu:

— Nada, mãe...

Virou-se de costas, cabisbaixa. Nesse momento, os cachos sussurraram em seus ouvidos que talvez fosse impor-tante a mãe saber um pouco mais sobre as coisas, sobre a vida. Em um meio sor-riso, virou-se de volta para a mãe e disse certa de sua própria sabedoria:

— Mãe, o universo é uma lata!

Fernanda Ortega é estudante do terceiro ano e faz parte da

gestão Cirandeia.

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O conflito agrário não evidencia so-mente a busca do oligarca em massacrar des-possuí-dos na tentativa repugnante de arreba-tar o máximo de lucro e poder para si mesmo: an-tes, se apresenta como um urro da natureza humana, avisando a manada de que ainda não compreendemos exatamente essa ideia de civi-lização.

Uma arma preparada a mais de 90 metros de distância, a mesma arma há 511 anos, es-condida entre o mato selvagem e a vergonha. Como testemunha silenciosa o Sol, ocupa-do em transformar energia humana em suor, massacrando forças há muito diluídas na lavoura: na cana, no café, na cana outra vez. A vida doce, uma vida braçal. Agora é a vol-ta para casa no horário do almoço. Será a última, pois é também a volta ao pó da terra.

A passagem: um estrondo perfurando o peito.

O trabalhador engasga, leva a mão ao ferimento, cambaleia e procura: apenas o Sol. Ao cair, sangue se mistura com terra e suor, a poeira levanta e uma fuga representa a única marcação da marcha fúnebre. A humanidade se despede de mais um militante sentencia-do por contestar a lei do mais forte. Seus bolsos estão cheios de indignação e denúncia – o jornal sindical, a acusação, a carta de ameaça, as reivindicações por justiça social. Um bol-so cheio de munição – aquela cujo alvo é a doença, não o sintoma. Mas a bala de me-tal, essa atinge mais rápido, e procura o indivíduo solitário, fraco longe de seu coletivo.

Como assassino, outro usurpado da terra, miserável sem a consciência da explo-ração. Desconhece que aquela bala também atinge suas vísceras, também fere seu estôma-go vazio, drena suas forças e impede a emanci-pação do sujeito, seu pleno desenvolvimento. A maldita tocaia se destina tanto para o execu-

As Pessoas do Solpor Luiz Prado

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tado quanto para o executor.

Ele foge pela plantação, a mão que segura a arma não sabe se segurará um garfo esta noite. Possivelmente seguirá para bem longe e será pego, condenado e apodrecido no meio de muitos ou-tros irmanados pelo abandono da sociedade do capital. Com sorte tal-vez escape, mas continuará acorrentado: um capitão do mato alforriado caçan-do inces-santemente seus companheiros de senza-la. O Sol queima e as aves carniceiras saúdam o trabalhador caído. Depois os companheiros de jornada o encontram, espantam os abutres. O Sol se esconde, insensível com a dor de seu povo. Ou envergonhado por deixar a desgraça toda em suas mãos. Vem o tempo da despedida. A procisão de indignados rasga a estrada de terra com o caixão do companheiro. Entoam hinos de luta e esperança, punhos cerrados para o Sol, contra o Sol. Enxadas, foices, ins-trumen-tos de emancipação convertidos em grilhões – é a hora de voltarem a servir ao homem. A bandeira é vermelha pelo sangue de muitos: o morto de ago-ra é só outro verso da canção de refrão renitente. Mas a bala que perfura o coração e interrompe a corrente sanguínea não extermina a caminhada. Um trabalhador tomba, outros estão se levantan-do para continuar a luta. O latifúndio não é eterno quando a mobilização vence a espin-garda. A re-forma agrária é o movimento das ondas chocan-do-se contra a pedra: inevita-velmente o sólido se converterá em muitos, espalhados por toda a praia. Essas são as Pessoas do Sol. A radiação, forte demais, nos ofusca, por-que olhamos diretamente para ela. Façamos como aqueles que marcham carregando o corpo do com-panheiro: desviemos o olhar para a terra. Aí sim a luz se revelará fonte de vida e crescimento.

Luiz Prado é estudante do primeiro ano.

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Saí em busca de um método. Estava preso, e saí. O delegado me olhava com um espanto quase cômico. Quando cheguei mais perto, vi fogo em seus olhos, pois ele não con-seguiu prontamente encontrar suas algemas. Não pôde nem ao menos perguntar aonde eu ia. Por caridade (e por escárnio, é claro), lho disse. Fui buscar um método. Ah, pobre de mim, soubesse que já o possuía naquele mo-mento, quanto esforço teria poupado! Mas talvez não tivesse sido tão, bem, peculiar essa viagem que eu fiz, pois não seria viagem algu-ma. Onde estariam os humanos sem as estra-das afinal? Estariam em dois lugares. Os mais preguiçosos talvez fossem forçados, em algum momento de suas vidas, a aderir à comitiva. O problema está naqueles natimortos, que fez Deus com eles! Sadismo, sempre digo. Nosso Senhor supremo assim o é pois sabe divertir-se com suas criações, mesmo quando elas tanto se esforçam pelo contrário. Afinal, há ou não algo, num guerreiro devotado, num Eurico, re-ligioso que só, que nos faz puxar lentamente o canto da boca, prestes a gargalhar? São todos loucos esses... são humanos disciplinados. E não é pois de grande graça um prussiano de barba grandiloquente, barrigudo, tratando das cosias mais sérias do país? São grandes homens, isso é certo, mas porque a glória é reservada a eles? Estes brincalhões também podem ser grandes pensadores. Ao menos as-sim espero. Estava em busca de um método, não há muito tempo. Pois não é que Deus me presenteou (duas vezes) por ser igual a ele? Até os preguiçosos podem se libertar alguma hora. O problema está nos boêmios moribun-dos, corpos sem alma, sem vontade. Onde estariam estes, afinal? Certo que estariam lá, onde foram colocados. Sentados, quadrados, até que algum espermatozoide lhes chico-teasse as costas para que fossem domados. Natimortos. Já os grandes, os bigodudos e os de boca pintada, estariam armados, ver-dadeiros guerreiros, derrubando galhos no deserto, pois assim foram feitos, isto é, para

Ode às camas de hospital ensangüentadas

Por Erick Nascimento Vidal

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isso acham que foram feitos. Esse julgamento individual é a única fonte verdadeira daqueles espermatozoides, quero dizer, dos que fecun-dam. Os demais não são paquidermes, não sobrevivem em ambientes tão adversos. Eis que o delegado era um desses preguiçosos. Sua vida, seu fogo, era manter-me lá, até o dia em que me levantei. Ele jamais se importara, na infinidade de sua existência, com a perda de alguns. Mas eu era o último, era sua única espe-rança. Acontece que não sou escravocrata, que poderia fazer? Tão pouco sou seu deus... sou o meu, e já basta. Um por pessoa é suficien-te, creio. Talvez dois, para que o mundo não nos seja tão estranho. Quero dizer, deuses são produtores, verdadeiros espermatozoides deste planeta, e por isso são tão divinos os artistas. A natureza não é, afinal, uma grande pintora neoclássica? Ou maestra, tanto faz. A questão é que foi extremamente prazeroso olhar nos olhos daquele ser intragável. Sua íris opaca foi um grande espelho, e nele vi o Big Bang! Não sinto pena dele, nem o deveria, pois reconhe-ço que fui uma vez delegado, até que um dia acordei e me vi preso, completamente algema-do. Até que fui estuprado. Foi aí que acordei, e achei melhor me levantar. Fui violentado por uma mulher, como é possível? Perplexo, tentei entender, assustado. Como, afinal? Ela não es-tava presa, claro. Poderia estar, pensando bem. Mas não estava. Estendeu-me a mão e meu óvulo se sentiu eletrificado. Já não buscava, após ter levitado, enteder sua estada lá, mas sim sua generosidade. Agora compreendo que talvez devesse ter cotucado o delegado, pobre dele. Na verdade o fiz, quando disse a que pro-pósito me dirigia ao mundo. Queria entender a generosidade, mas não sabia como fazê-lo. Eis que fui atrás de um método. Dos olhos ígneos do policial saiu um capataz que me jogou vio-lentamente para fora daquela odiosa (mas bela) vulva. Nasci chorando.

Erick Nascimento Vidal é estudante do primeiro ano.

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delírios verbais me dominamqual doente mental

estou imposto a mim mesmoqual domínio verbalestou doente mental

de realidades díspares(qual) portas atravessodisparo dados e cores

e torturantenum mental

delírio disparo sentidos díspares:

qual eu qual sou qual fui qual doente mental num delírio verbal estou doente mental despedaçado entre concreto e abstrado significante e significado

ser ou não ser eis qual eu qual fui qual sou

de realidades díspares(qual) dados e coresestou delírio verbal

verde azul cinco seisdisparo portas mentais

qual doentes verbais

Caio Andreucci é estudante do segundo ano.

poemas

Delírios VerbaisPor Caio Andreucci

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Quadrilha, Quadrilha...

Por Drummond foi escritoEsse poema bem boladoE eu vi algo parecidoNo ano passado

Alan e Bode gostavam de CrisCris e Dana gostavam de EricEric gostava de FefêQue gostava de GutoQue gostava de HelenaQue não gostava de ninguémPelo menos é o que sei

Essa quadrilha é complicadaAté mais que a originalE ainda por cimaEssa história é real

Aconteceu ao meu redorE eu nem percebiHomens são mesmo sonsosPrincipalmente este aqui

poemas

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Quadrilha RealPor Fábio Hideki Harano

Parece série americanaParece coisa de cinemaE isso já foi temaDe mais de um poema

A vida vai indoE as coisas evoluindoOu, talvez, involuindoQuem sabe, afinal?

A ficção imita a vidaA vida imita a ficçãoE a quadrilha definidaPor ordens do coração

Essa quadrilha é realMas não tem majestadeÉ real porque é feitaDe gente de verdade

Eu não estava no meioUfa, ainda bem!Essa quadrilha já veioE amanhã, é a vez de quem?

Fábio Hideki Harano é estudante do terceiro ano.

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Pelas veredas do tempo, espaçoCaminham os homens

Guiados por um relógio sem ponteiro,Bússola sem Norte.

Percorrem o Vale da sombra da morteQue anda a estreitar e

Temem!Por que para cada um que o atravessa

Cinco são condenados,A morrer em vida.Temem a revolta,

Não do Senhor, nem da serpenteDos cinco extraviados sim.

Não tem nada a perder,Verdades em forma de rotas mentiras

Já não aceitam.Unidos em meio à desunião

Espectros que são,Guiarão os homens

Elevando seu canto do fundo do valeA multidão de fantasmas

Punhos cerradosAguarda inerte

Os próximos a cair.

Marcello Giovanni Pocai Stella é estudante do primeiro ano.

SalmoPor Marcello Giovanni Pocai Stella

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Por Fábio Hideki Harano

Fábio Hideki Harano é estudante do terceiro ano. Esta e outras tiras, assim como char-ges, podem ser encontradas em http://www.facebook.com/fabiohidekiharano.

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Por Ana Beatriz Carvalho e Silva

retratos sociais

Menina desenhando na calçada, foto tirada em Araçuaí – Vale do Jequitinhonha – MG, em julho de 2009.

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Participe do jornal: próxima reunião 09/06.

Para saber mais, acesse: ceupes2011.wordpress.com/jornal

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