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J.Sem ti, provavelmente não haveria um romance…

E certamente não haveria vinho tão bom.

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Para obter uma única garrafa de vinho, há que cultivar, cuidar e macerar cerca de 800 uvas. Se este não é um bom argumento para acabar a garrafa, não consigo pensar noutro.

— Anónimo

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Primeira Parte

As Uvas

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Sebastopol, Califórnia, Seis Meses Antes

O meu pai tem uma bela história acerca do dia em que conheceu a minha mãe; é uma história que nunca se cansa de contar. Nevava, numa manhã de dezembro, e ele estava a apressar-se para entrar

no carocha amarelo do colega, estacionado em frente ao Lincoln Center, transportando dois cafés e uma catrefada de jornais. (O seu primeiro vinho, o Bloco 14 — o único vinho da sua primeira colheita de reserva —, fora alvo de uma pequena menção no Wall Street Journal.) Entre o entu-siasmo provocado pelo artigo e o café a fumegar, Daniel Bradley Ford não reparou que havia dois carochas amarelos estacionados em frente ao Lincoln Center. Que não era o seu distribuidor da costa leste quem estava ao volante do carocha amarelo, a tentar manter-se quente. Em vez disso, era a sua futura esposa, Jenny.

Ao entrar no carro errado, deparara-se com a mulher mais bela que alguma vez vira, de luvas azuis e boina de lã a condizer. Com caracóis com-pridos e louros a escaparem-se por baixo. E um violoncelo a ocupar todo o banco de trás.

Reza a lenda — e, conhecendo os meus pais, eu quase acreditava — que a minha mãe não gritou. Não perguntou quem era o meu pai ou o que estava a fazer no seu carro. Ofereceu-lhe um dos seus sorrisos má- gicos e disse-lhe: «Já me perguntava por que razão estarias a demorar tanto.»

E depois estendeu a mão para receber o copo de café que ele tinha para lhe dar.

Sincronização, diria o meu pai. Era uma palavra muito importante para ele. Sincronização: a coordenação de acontecimentos para operarem em uníssono. Um maestro a conseguir manter a orquestra no ritmo. O en- contro impossível de reflexão de luz e tempo de exposição para produzir uma fotografia perfeita. Dois carochas amarelos estacionados em frente ao Lincoln Center ao mesmo tempo, o amor da nossa vida num deles.

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Não se tratava de destino, acrescentaria o meu pai. Era importante que não o confundíssemos com o destino. O destino sugere a ausência de inter-ferência. A sincronização tem mesmo que ver com interferência. Requer todos os sistemas a funcionarem num estado em que diferentes partes estão quase, quando não precisamente, a postos.

Para o meu pai, isso constituía a base de como abordava o seu traba- lho: primeiro como cientista, depois como viticultor. Foi um dos primei-ros viticultores biodinâmicos da América, sem dúvida o primeiro no seu pequeno nicho. Considerava não apenas as uvas propriamente ditas, mas — como ele gostava de expor — os sistemas ecológicos, sociais e econó-micos que era necessário sincronizar para as cultivar de forma adequada. O meu pai dizia que fazê-lo de qualquer outra maneira equivalia a ser pre-guiçoso.

Quanto a mim, custava-me ver o papel que a sincronização represen-tava na minha própria vida. O papel que deveria representar. Até isso ter acontecido, destruindo a minha vida abençoadamente ignorante, delibera-damente otimista, de uma forma que eu não poderia ignorar a menos que fugisse dela.

Assim, naquela sexta-feira fatídica, foi mesmo isso que fiz. Fugi dela.Apenas com as roupas que levava vestidas e uma mala feita à pressa,

fiz-me à estrada, partindo da minha Califórnia soalheira — o sítio que tinha sido o meu lar nos últimos catorze anos —, em direção à vila da Califórnia do Norte, à beira do Russian River Valley. O local que fora o meu lar durante toda a minha vida anterior.

Nove horas, cinco paragens em áreas de serviço, dois terríveis batidos (um era de baunilha, o outro de morango) e muitos bombons Rolo depois, cheguei ao condado de Sonoma. Talvez tenha sido por, ao passar pela tabu-leta familiar de Sebastopol — com as colinas sinuosas da região já bem visíveis —, eu ter tido um vislumbre de mim mesma no espelho retrovisor. Com o cabelo a soltar-se do apanhado, os olhos profundamente perturba-dos, não conseguia evitar sentir que estava prestes a entrar numa nova espécie de inferno.

Por isso, dei a volta e comecei a refazer as nove horas de volta a Los Angeles.

Mas já se fazia tarde e eu não tinha comido (à exceção dos Rolo), chovia a cântaros e eu estava tão cansada que nem conseguia pensar. Assim, saí da autoestrada 112, pela rampa de acesso à baixa de Santa Rosa, sabendo perfeitamente para onde ia antes mesmo de o admitir a mim mesma.

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Um Brinde ao Amor

A Taberna dos Irmãos era uma espécie de instituição no condado de Sonoma. Os proprietários originais — dois irmãos — tinham aberto as portas 77 anos antes, com o objetivo de o transformar num espaço em Sonoma que ficaria aberto até tarde e que serviria a melhor cerveja. Os pro- prietários seguintes tinham mantido o plano, elevando o bar e churras-queira a um outro nível, produzindo cerveja artesanal que recebia prémios e atraía gente de todo o estado.

Evidentemente que os proprietários atuais da Taberna dos Irmãos eram os meus irmãos, Finn e Bobby Ford. E perceberiam o que se passava assim que me vissem. Bastaria que olhassem para mim para perceberem aquilo por que eu tinha passado.

No entanto, quando entrei no bar, só o Finn estava lá. Não havia sinal do Bobby. O Bobby estava sempre lá aos fins de semana, pelo que isso foi a primeira coisa que me pareceu estranha.

O facto de o meu pai não estar sentado ao canto do bar a tomar um copo com eles foi a segunda.

Ele passava por lá todas as sextas — a única forma de começar o fim de semana, dizia, era tomando um copo com os seus rapazes. Senti o cora-ção a pesar-me de desapontamento, apercebendo-me então de que fora por isso que eu tinha ido até ali, apesar das ramificações. Para que o meu pai tomasse um copo com a sua menina, houvesse ou não ainda alguma esperança.

Mas só o Finn estava ao balcão, a fitar-me como se não me reconhe-cesse. E, por um instante, até me perguntei se não seria esse o caso. O meu cabelo emaranhado e mal apanhado, o meu sorriso falso e forçado. E já era tarde. Se calhar eu parecia mais alguma cliente tardia, a tentar conseguir uma bebida antes que ele fechasse o bar.

Crédito lhe seja devido, o Finn não me disse nada disto. Passou pelos outros clientes, que me observavam enquanto eu me dirigia para o lugar ao fundo do bar — o mais próximo da lareira. O do meu pai.

Sentei-me, ignorando os supostamente acidentais olhares fulminantes que o Finn emitia para que todos deixassem de me fitar. Era assim o Finn, o eterno irmão mais velho. Estava disposto a proteger-me mesmo antes de saber do quê.

Brindou-me com um grande sorriso.— O que estás aqui a fazer?— Vim dar uma volta.— Uma volta de nove horas? — perguntou ele.

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Encolhi os ombros.— Deixei-me levar. — Obviamente. — E depois de uma pausa: — Não foste multada por

excesso de velocidade?— Não, Finn — respondi, ciente de que ele achava que eu era uma

terrível condutora. É difícil perder essa reputação. Mesmo que só tenha acontecido uma vez.

— Fico contente por saber isso, pelo menos — declarou ele, num tom sincero.

Depois assentiu com a cabeça, a decidir quanto haveria de insistir, sempre de olhos fixos em mim.

O Finn era o meu bom irmão. Eram os dois bastante bons, mas a meu ver o Finn é que era realmente bom, mesmo que não o fosse aos olhos de mais ninguém. O Bobby era mais ostensivamente impressionante: capitão da equipa de futebol americano da secundária, uma lenda local, um inves-tidor de sucesso com uma vida completa em São Francisco. Uma linda casa, lindos carros, uma linda família. Era cinco minutos mais novo do que o Finn, mas, em todos os outros sentidos, parecia chegar sempre primeiro.

O Bobby comprara o bar como passatempo e para dar ao Finn algo que fazer. O Finn era menos adepto da necessidade de se ter um emprego. Mantinha o bar para poder beber de graça e continuar a tirar fotografias. Era um grande fotógrafo, mas parecia que só trabalhava — casamentos, retratos de família — quando lhe apetecia. Nesse aspeto, era um pouco como o meu pai, atendo-se a um código que só ele compreendia.

— Não apanhei o pai?— Ele hoje não veio. — Encolheu os ombros, como quem diz Eu cá

não sei. — Podemos ligar-lhe. Há de vir, se souber que estás cá.Abanei a cabeça, de olhos baixos, com receio de corresponder ao olhar

do meu irmão. O Finn parecia-se tanto com o meu pai. Tinham os dois aqueles olhos escuros, com cabeleiras a condizer. Eram tipos bem-pareci-dos, completamente americanos. A única diferença óbvia era que o Finn gostava de manter aquela juba debaixo de um boné de basebol com a pala voltada para trás. Por norma, um boné dos Chargers.

Era difícil contar-lhe o que se passava sem sentir que estava prestes a desiludir também o meu pai.

Ele pigarreou.— Então eles não sabem que estás aqui? A mãe e o pai?Abanei a cabeça.

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Um Brinde ao Amor

— Não, e preferia que não lhes contasses as circunstâncias… Isto não foi planeado, obviamente.

— Obviamente.Fez uma pausa, como se quisesse dizer algo mais, mas se tivesse arre-

pendido. E depois:— Vão ficar contentes por te verem. Por teres vindo. Qualquer que seja

o motivo. Nenhum de nós julgava que viesses a casa a tempo das vindimas, sabes?

A colheita das uvas — as cinco semanas mais importantes do ano do meu pai. Eu tinha sido forçada a ir a casa no fim de semana que ele considerava mais sagrado — o último das vindimas. Todos os anos, eu ia a casa naquela altura. Íamos todos. Regressávamos à casa da famí- lia: os rapazes dormiam nos seus antigos quartos, eu no meu. Os dife-rentes esposos, companheiros e filhos enchiam o resto da casa. E todos nos juntávamos ao meu pai para colher as últimas vinhas, para beber as primeiras gotas de vinho. Todos ficávamos para a festa das vindimas. Mas aquele ano deveria ter sido diferente. Por várias razões, eu não deve-ria estar ali.

O Finn, ao aperceber-se do seu erro ao trazer aquela questão à baila, ia passando o peso de um pé para o outro.

— Então, o que é que queres beber? — perguntou-me.Apontei para o bar atrás dele. Tudo — do bourbon ao scotch — me pare-

cia um presente de Natal.Ele sorriu. Serviu-me um copo de bourbon e outro de vinho tinto. — Isto é o que achas que queres — disse ele, a apontar para o pri-

meiro. — Mas é deste que vais beber mais de dois golinhos.— Obrigada.— Não tens de quê.Beberiquei o bourbon. E depois passei, quase de imediato, para o vinho. O Finn pousou a garrafa na mesa para que eu visse o que me tinha

servido. Era um Pinot Noir escuro e forte. Quinta A Última Gota. Um Si Menor Reserva. Era da vinha do nosso pai, aquele de que eu e o Bobby mais gostávamos. Uma coisa que tínhamos em comum.

— É uma bela garrafa — disse-lhe. — Devias guardá-la e deixar um pouco para o Bobby.

O Finn, tenso, assentiu com a cabeça. Como se houvesse alguma coisa que não quisesse dizer em voz alta.

Depois, com a mesma rapidez, a sua expressão suavizou-se.

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— Tens fome? — perguntou-me. — Posso pedir que te preparem qual-quer coisa.

— A cozinha não está fechada?O Finn encostou-se ao balcão. — Para ti, não.Era a coisa mais simpática que poderia ter-me dito e eu respondi com

um sorriso para que ele soubesse como lhe dava valor. Em seguida voltou para a cozinha, dando um trago no bourbon à medida que se afastava.

Endireitei-me mais no banco ao balcão, mais ciente dos olhares que me lançavam, já sem o Finn por perto.

Ele regressou só por um segundo.— Olha, Georgia… — chamou-me.— Sim?— Sabes que ainda estás a usar o vestido de noiva, não sabes? — per-

guntou.Olhei para baixo, para as rendas dispersas e sujas da viagem de 800 qui-

lómetros e da corrida pelo parque de estacionamento da Taberna dos Irmãos. E por causa daquilo que, tristemente, parecia um Rolo perdido.

Toquei na saia suave.— Sei — disse-lhe.Ele assentiu com a cabeça e virou-se de novo para a cozinha. — Muito bem, então — comentou. — Sai um queijo grelhado.

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A Última Gota

Sincronização. Sistemas a operarem com todos os componentes em sincronia, dos quais se diz serem síncronos, ou sincrónicos. A inter-relação de coisas que normalmente só existiriam em se-

parado.Na física: chama-se simultaneidade. Na música: ritmo.Na nossa vida: um falhanço brutal.Estacionei o carro no acesso da casa dos meus pais já depois da meia-

-noite, meio bebida e exausta. Arrependi-me logo de não ter aceitado a pro-posta do Finn para passar a noite em casa dele, em Healdsburg, e regressar de manhã para enfrentar os meus pais. Quando tivesse vestido algo mais apropriado. Se bem que, depois do dia que tinha tido, a única coisa que me apetecia era a minha cama de solteira, que me acompanhara enquanto crescia, sem lhe faltarem os lençóis de flanela e as almofadas em forma de coração.

Ao virar à esquerda para entrar no acesso, passei pela pequena tabuleta de madeira que dizia «a última gota, desde 1979», gravada à mão. A vinha espraiava-se para ambos os lados, oito hectares de vinhedos que iam pas-sando pelos dois lados do carro. As vinhas estavam carregadas de uvas e flores silvestres, envolvendo a espaçosa casa amarela dos meus pais, totalmente construída em madeira no topo da colina.

Era uma casa encantadora, reconfortante, com as suas grandes gelo-sias, flores nos parapeitos e uma porta de um vermelho-vivo. As janelas salientes acompanhavam todas as traseiras da casa, dando para os quatro hectares de vinhedo que a quinta tinha originalmente. E para uma pequena moradia de duas divisões que se encontrava ao fundo da propriedade — a casa do viticultor —, onde o meu pai trabalhava todos os dias.

Desliguei o motor e, pela janela do carro, fiquei a olhar para a casa dos meus pais. À exceção do quarto deles, todas as divisões estavam às escuras. Preocupava-me que pudessem estar ainda acordados, mas o mais

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provável era que fosse apenas a minha mãe, a ler na cama. Não me ouvi-riam a entrar. Não estariam à escuta.

Saí do carro e encaminhei-me para a porta da frente, tirando a chave extra do vaso. Entrei. Se os acordasse, se me ouvissem, seria naquele mo- mento: a porta vermelha rangia quando se abria. Era uma lição que todos os filhos da família Ford tinham aprendido a custo da primeira vez que tentavam entrar em casa depois da hora marcada.

Fechei a porta. E a casa continuou em silêncio.Sorri, no meio do átrio às escuras: uma pequena vitória. Era o primeiro

momento tranquilo do dia, e eu aproveitei-o, rodeada pelos cheiros que me eram familiares: uma mistura de junquilho e limão — que a minha mãe usava para as suas limpezas —, e o jasmim da noite, a entrar pelas janelas que a minha mãe deixava sempre abertas, para receber a brisa agradável. Não havia aquele tipo de brisa em Los Angeles. E isso fazia com que Los Angeles parecesse estar a um milhão de abençoados quilómetros de dis-tância.

Avancei para a cozinha, mantendo todas as luzes apagadas, passando a mão pela bancada de madeira e pela mesa rústica. O que restava do jantar — pratos, dois copos e uma garrafa de vinho — estava junto ao lava-louça.

Decidi tornar-me útil e comecei a arrumar a louça; foi então que a vi pela janela. Estava ao lado do jacúzi — a conquistar o pátio e o jardim. Uma grande tenda. Branca como a vela de um barco. Era a tenda em que me ia casar, dali a oito dias. Mas se já passava da meia-noite, deveria dizer sete dias? Los Angeles estava de volta, e fazia-se ouvir bem.

Literalmente. O meu telemóvel tocou, um uivo intenso na escuridão.Atendi, por reflexo, por não querer que o telemóvel acordasse os meus

pais adormecidos, assustando-os.— Não desligues — disse ele.Era o Ben. A sua voz, do outro lado da linha, abalou-me.— Então para de me ligar.— Não posso.Eu adorava a forma como ele falava. Revelava logo quem ele era:

calmo, sincero. Britânico. Sempre tive uma queda por sotaques, motivo pelo qual indicava sempre as suas outras qualidades em primeiro lugar. Era uma maneira de salvaguardar a credibilidade. Tínhamos falado por telefone durante mais de um mês antes de sequer nos vermos. O Ben, que era arquiteto, na altura vivia em Nova Iorque. Eu era advogada, espe- cializada em direito imobiliário, e a minha firma ocupava-se de um dos

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seus projetos em Los Angeles, um moderno edifício de escritórios na baixa. Foi assim que nos apaixonámos, por telefone, a falar das coisas menos sensuais do mundo. Licenças. E contas. E, depois, tudo o que importava.

— Tens de me deixar esclarecer isto, Georgia — disse ele. — Não estou a dizer que há uma boa explicação. O que digo é que não é o que pensas.

— Não, obrigada.— Isto é uma loucura. Eu amo-te. Tu sabes que te amo. Não estou

envolvido com a Michelle, desde que te conheço que não. Mas a Maddie…Desliguei o telefone.Ouvir o nome «Maddie» era demasiado real. Ela tinha nome. Dez

horas antes daquele telefonema, ela nem existia. E agora já tinha nome.Dez horas antes daquele telefonema, eu estava feliz. Estava atrasada,

mas feliz. Entrei a correr na loja de noivas da Stella, em Silver Lake, com vinte minutos de atraso em relação à hora da prova. Ia experimentar o meu vestido de noiva, que a Stella confecionara integralmente na sua loja de 150 metros quadrados: um vestido de corte em A, de renda chantilly, sedosa e branca, drapeados de tule espanhol e mangas diáfanas.

Eu adorava aquele vestido — a forma como me envolvia as ancas, conferindo-me um aspeto de sereia, a forma como me suavizava os om- bros — e dei por mim a sorrir quando a Stella (depois de me perdoar o atraso de vinte minutos) me pediu que avançasse, nos meus sapatos de cetim e de salto alto, até ao pedestal, para ela poder fazer a bainha.

Caminhei até ao pedestal que estava junto à janela e fiz uma pose. A Stella riu-se e incentivou-me a continuar. «Ponha as mãos nas ancas», disse ela, a encantar-se com os olhares divertidos que obtínhamos das pes-soas que passavam em frente à montra.

E depois vi o meu noivo a descer a rua.O Ben estava a descer a rua com uma mulher que eu não conhecia.

Mas não era uma mulher qualquer. Era a mulher mais bonita que eu alguma vez tinha visto, com cabelo comprido, ruivo e sedoso, além de um sorriso impressionante. Uma versão em miniatura da mulher — ruiva e pequena, com uns 4 ou 5 anos — estava ao seu lado. Mas foi a mulher que me chamou a atenção, em frente à montra da loja de noivas.

Reconhecia-a de algum lugar, mas demorei a perceber de onde. Na verdade, foi a Stella que me ajudou a localizá-la. O meu noivo era apenas um pormenor.

E esse não era o maior problema.

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O maior problema foi o que aconteceu quando bati na montra, sem conseguir chamar a atenção do Ben.

Eu estava desejosa de que ele se virasse. Estava desejosa de lhe ver o rosto — o seu maxilar e maçãs do rosto fortes, aquela covinha que não fazia qualquer sentido. Calculei que houvesse uma explicação razoável para o que ele estava a fazer ali com aquela mulher. Tínhamos passado a manhã na cama, na nossa casa, a comer fatias douradas com pêssegos. A rir, a despir-nos. Íamos casar dentro de oito dias. Estávamos perdida-mente apaixonados.

Mas o Ben não me ouviu. Continuou a andar, em direção a Sunset Junction. A mulher caminhava alegremente ao lado dele, com a sua minia-tura do outro lado.

Inclinou-se para ele, para o meu noivo, encostando a mão ao fundo das suas costas, como se fosse aquele o seu lugar. E isso fez-me avançar de supe- tão, sair para a rua, a usar o meu vestido de noiva com a bainha por fazer.

Agarrei na renda para o impedir de se arrastar pela rua suja. A Stella correu para a rua atrás de mim.

— Ben! — chamei-o.Ele virou-se. A mulher também. E a filha pequena.E então soube de onde tinha reconhecido a mulher que dava a mão

à filha, pois a Stella, atrás de mim, disse o nome dela: Michelle Carter. A famosa atriz britânica. Na capa de tantas revistas norte-americanas. De perto, era leve e esguia, como uma folha. Como um pickle.

O Ben olhou para mim. A mulher também. A menina olhou para o Ben.— Papá… — disse ela.Permitam-me que pare aqui.Com o que a Maddie disse.Ao Ben.Deixem-me parar aqui, antes de a Stella se ter baixado para apanhar

tanta renda quanto podia — os meus olhos fixos naquela menina, naquela menina tão linda, de olhos grudados em mim. As pessoas paravam na rua, fitavam a Michelle, apontavam.

O Ben avançava na minha direção, completamente em pânico. Duas palavras a saírem-lhe da boca, mas talvez não as que esperam. Não foram: Lamento imenso. Nem: É mentira. Nem: Posso explicar.

Apenas as seguintes. Como se ele apenas conseguisse ver isso. E, se assim fosse, contaria para alguma coisa?

— Estás linda — disse ele.

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* * *

Dez horas depois, descalcei os sapatos de cetim e comecei a subir as escadas, segurando o vestido para não tropeçar enquanto ia rapidamente para a segurança do meu quarto.

O telemóvel voltou a tocar, ecoando pela casa.— Não desligues — pediu o Ben.— Não acabámos de fazer isto?— Atendeste, não foi? Uma parte de ti quer ouvir o que tenho para

dizer. Ele não estava errado. Há formas de desligar o telemóvel e eu não o

tinha feito. Não tinha sido capaz. Parte de mim desejava que o Ben me contasse uma história que resolvesse tudo aquilo, que o aproximasse de mim outra vez.

Sentei-me nas escadas, com o vestido a formar ondas à minha volta.— Tens de perceber que até há um par de meses eu nem sabia da

Maddie… — começou ele. — Da tua filha?Ele hesitou.— Sim — confirmou. — É minha filha.Pensei um pouco.— Quantos anos é que ela tem, Ben?— A Maddie tem 4 anos e meio.Enfatizou aquele meio e eu percebia porquê. Nós estávamos juntos

havia cinco anos. Ele queria dizer-me que ela tinha sido concebida antes de mim, ou melhor, antes de nós.

— Obviamente, não ia guardar segredo acerca disto para sempre, mas com a Michelle é complicado — disse ele. — E queria resolver essa parte antes de te arrastar para isto.

— Porque é que é complicado?Ele demorou um pouco.— Isso é complicado.Tornei a levantar-me. Já estava farta — farta da não explicação do Ben,

farta de ter o coração a latejar-me na garganta.— Olha, só não quero que faças alguma coisa intempestiva. Casamos

daqui a uma semana.— Neste momento não tenho bem a certeza disso.Ele ficou calado.

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— É a isso que me refiro quanto a fazeres alguma coisa intempes- tiva — acabou por dizer.

Parecia devastado. E o problema era que isso me lembrava da primeira vez que falei com ele. O escritório de advogados em que trabalho tinha acabado de o angariar como cliente e eu liguei-lhe para me apresentar, no preciso momento em que lhe roubaram a bicicleta. Nessa altura eu não sabia, mas o Ben tinha aquela bicicleta há dez anos. Era o seu meio de transporte preferido, e não só… Era um verdadeiro apêndice. E, ainda assim, no final da conversa ele já fazia piadas, contente. A bicicleta, bem como a tristeza, era coisa do passado. Por minha causa, disse ele. E, apesar de tudo, havia uma enorme parte de mim que queria fazê-lo voltar a sen-tir-se assim tão bem.

— Onde estás? — perguntou-me. — Deixa-me ir falar contigo.Eu estava no cimo das escadas. Talvez por o Ben me perguntar onde

me encontrava, olhei em volta. O meu quarto ficava à esquerda — a porta estava escancarada. O quarto dos meus pais ficava à direita.

A sair do quarto dos meus pais vinha um homem corpulento. Com uns cem quilos. Com um cabelo e uma pele que eu não reconhecia. Embru-lhado numa toalha.

A minha mãe, numa toalha a condizer, encontrava-se perto dele.Daquele homem, que não era o meu pai.Deixei cair o telemóvel.— Oh, meu Deus! — gritei a plenos pulmões.— Oh, meu Deus! — gritou também a minha mãe.O homem afastou-se, retrocedendo para o quarto dos meus pais, que

parecia conhecer muito bem.Estendeu-me uma mão.— Henry — disse ele. — Henry Morgan. Fiquei ali, imóvel, no topo das escadas. Estendi a mão, como se isso

fizesse algum sentido, para apertar a do homem.Quanto à minha mãe, tapava a boca, com uma expressão de horror

abjeto. Julguei que fosse vergonha por ter sido apanhada. Mas depois ela alcançou-me, tocando-me no rosto com a palma da mão e depois com as costas.

— O que é que fizeste ao teu vestido de noiva? — perguntou-me.

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Em Relação ao Henry

Se eu estivesse a guardar registo — e quem é que o faria? —, diria que aquele não se estava a transformar no melhor dia da minha vida.

Eu e a minha mãe estávamos na sala de jantar, as duas com calças de ganga e camisolões, com o meu vestido pendurado nas costas da porta e, a pairar entre nós, um silêncio agressivo.

O Henry tinha-se ido embora. A minha mãe acompanhara-o aos degraus da frente enquanto eu esperava que ele se fosse. Tal como ela fazia comigo quando, no décimo segundo ano, eu andava com o Lou Emmett, que era um rebelde cheio de tatuagens. O problema era que a situação se tinha invertido de uma maneira repulsiva.

Não ia ser a primeira a falar. Por norma, estenderia a mão por cima da mesa, tentaria facilitar-lhe a conversa, mas desta vez não o podia fazer. Teria de ser ela — teria de resolver por si mesma como explicar aquilo.

Portanto, fitei a parede, num ponto acima da cabeça dela, vendo todas as fotografias que resumiam a vida dos meus pais — a começar quando eram jovens, naquela vinha, e até mesmo antes. Uma das fotografias de que eu mais gostava era da minha mãe, ainda uma violoncelista da Filarmónica de Nova Iorque, a sorrir para a câmara com o violoncelo encostado ao seu vestido preto e comprido. A mulher que estava ali sen-tada comigo parecia-se de forma impressionante com a fotografia daquela altura. Tinha os mesmos caracóis compridos, as faces largas, um nariz que não conjugava muito bem. Continuava a não usar um pingo de maquilha-gem, e continuava a não precisar disso.

Ao lado dessa fotografia havia uma em que eu estava a jogar softbol. Cresci como uma perfeita maria-rapaz (por tentar acompanhar o Bobby e o Finn) e, basicamente, vivia de t-shirt e ténis, com o cabelo num perpétuo rabo de cavalo. Mas era impossível negar as parecenças entre nós: os meus caracóis eram uma versão mais escura dos dela, o meu nariz inclinava-se

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como o dela, os meus olhos eram verdes como os do meu pai, mas com a forma dos dela.

A minha mãe costumava dizer que eu era uma fotocópia dela, mas coberta com as cores do meu pai. Isso era antes de me ter mudado para Los Angeles, transformando-me da maneira que Los Angeles parece trans-formar toda a gente: paulatinamente, até que já nem nós nos reconhece-mos. Entre as mulheres lindas que entravam tão descontraidamente nas aulas de ioga como em festas, eu dera por mim a prestar atenção a todo o género de coisas em que nunca antes tinha reparado.

Talvez tivesse resultado no mesmo se eu tivesse saído de Sonoma para ir para Nova Iorque ou para Chicago, mas, aos 18 anos, foi para Los Ange-les que parti, pelo que foi em Los Angeles que aprendi algumas lições fundamentais que, por crescer numa casa cheia de homens e agricultores, me tinham escapado, tais como parecer e sentir-me sensual.

A transformação via-se na parede. A minha mãe, a brincar, dizia que eu tinha passado da versão mais encoberta de si para uma versão glamo-rosa, à estrela de cinema — coisa que, assegurava-lhe eu, uma caminhada por Abbot Kinney, no meio das verdadeiras estrelas de cinema, a levaria a ver que não era verdade. Ainda que eu tivesse de facto um aspeto dife-rente e me orgulhasse bastante disso.

O sol da Califórnia do Sul tinha-me aclarado o cabelo, eu perdera uns cinco quilos e começara a vestir-me como se fizesse alguma ideia do que escolher. Sob a supervisão (e insistência) da minha amiga Suzannah, gas-tara mais do que o que pagava de renda num par de sapatos. Tinha tentado devolvê-los no dia seguinte — nauseada de tanta culpa —, mas a loja tinha uma política rígida quanto a não aceitar devoluções. Assim, vira-me obri-gada a ficar com eles. E adorava-os. A ser justa, na verdade, eu tinha com-prado uns sapatos mágicos: uns sapatos de salto agulha que me faziam umas pernas intermináveis e que, ainda por cima, tinham durado mais do que o apartamento em que vivia na altura, bem como todos os outros que se seguiram.

Sempre que eu voltava a Sonoma, a minha mãe dizia-me que eu estava com um ar muito elegante. Mas eu sabia que ela reprovava a minha evolução de rabos de cavalo para saias travadas. Ela achava que o estilo devia ser algo fácil, que não requeresse esforço. Ganhou o hábito de me tocar no cabelo alisado e de dizer: «Brilhante». Comentava cada nova peça de roupa com um assobio e um sorriso arredio: «Veja-se só a armadura de Los Angeles.»

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E era sempre logo de manhãzinha — quando eu, acabada de acordar, corria escada abaixo para chegar aos seus waffles de noz e cereja, tal como quando era pequena — que ela me tocava na pele e dizia: «Linda».

Essa disjunção fazia-me sentir um pouco só a navegar entre as minhas duas casas. Sonoma era calças de ganga, camisolas polares e botas prá-ticas. Los Angeles era sandálias e calças de ganga que obtinham o seu ar coçado pela módica quantia de 275 dólares. Eu vacilava entre os dois mundos, sem que nenhum parecesse assentar-me na perfeição. Sentia-me envergonhada do meu estilo de vida em Los Angeles — um estilo de vida que me parecia, na melhor das hipóteses, ser apenas remotamente o meu. E, quando voltava a casa, na minha versão composta, que parecia ser senhora de si mesma (e que, sem dúvida, tinha sapatos melhores), dava por mim a criticar, de uma forma que antes nunca fazia, como era inculta e rural a vida local. Não gostava de ser preconceituosa, mas não estava a ser fácil parar. Ainda estava a tentar encontrar o equilíbrio.

Desviei o olhar das fotografias, olhei para baixo. A minha mãe corres-pondeu-me ao olhar e não o desviou. Depois cruzou os braços.

— Não fiques aí a julgar-me — disse.Não me parecia sensato dizer-lhe que, sim, estava a julgá-la. — Saiu um homem nu do duche, mãe — respondi. — Um homem

que não era o pai.— Bem, quem é que te manda aparecer à meia-noite sem aviso? —

Abanou a cabeça. — A culpa é nossa, por não termos mudado a decoração do teu quarto. Achas que nada vai mudar por aqui.

— Acho que não te devias enrolar com alguém que não é o pai. — Bem, eu não ando enrolada com ele.Fitei-a, confusa.— O quê?Ela encolheu os ombros.— O Henry é impotente, já que tens de saber.Tapei as orelhas.— Não tenho nada de saber. O que tenho é de voltar para trás no tempo

e saber qualquer coisa que não essa.— Desculpa — pediu ela, levantando as mãos, em jeito de rendição.

— Estou só a dizer… Estou só a tentar explicar-te que as coisas são mais complicadas do que parecem.

Complicadas. O mesmo adjetivo que o Ben usara. O problema era que usavam a palavra na passiva. Quando a verdade era que tinham sido eles

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a complicar as coisas. De forma ativa. Essa era a parte importante que dei-xavam por dizer.

— Onde está o pai?— Eu e o pai estamos a passar um período separados — disse ela.

— Nas últimas semanas ele tem ficado na casa do viticultor. Não que não seja isso que faz todos os anos pela altura das vindimas.

Falava num tom que eu optei por ignorar.— Por causa do Henry?— Porque estamos a passar algum tempo separados.Olhei pelas janelas salientes para ver o vinhedo iluminado por lanter-

nas, o caminho iluminado por lanternas até à casa do viticultor. O meu pai estava a dormir num dos quartos. Quando eu era pequena, implora-va-lhe que me deixasse dormir no outro e sair com ele de manhãzinha para apanhar as primeiras uvas antes de ir para a escola. Dizia-lhe que, quando crescesse, eu e os meus irmãos íamos cuidar da terra por ele — dar continuidade ao seu legado. Dizia-o com sinceridade. Gerir o vinhedo era o que eu mais queria quando era pequena. Mas agora tinha-o deixado ali sozinho. Cada um à sua maneira, todos o tínhamos feito.

— Como é possível que não me tenham dito o que se passava? — per-guntei-lhe.

A minha mãe levou a mão à caneca de café.— Estávamos à espera que te casasses. Não queríamos estragar-te

o dia do casamento.Olhei-a diretamente nos olhos. Ao que parecia, eu e o Ben tínhamos

conseguido fazer isso sem ajuda.— Também tentei não sobrecarregar o Finn e o Bobby com isto. Tanto

um como o outro andam ocupados com outras coisas.Pensei no bar — no comportamento estranho do Finn quando falei do

Bobby. E o Bobby que não estava em parte alguma. — Com que coisas? — perguntei.Ela abanou a cabeça.— Não posso falar disso tudo agora. Eles deviam poder estar aqui para

cada um apresentar o seu lado das coisas.Como é que tínhamos chegado àquela situação em que toda a gente

da família estava em lados diferentes? Eu fora a casa nas vindimas do ano anterior e ainda tinha voltado mais uma vez desde então — todos pareciam estar bem. Mas agora? A minha vontade era chorar. E o Ben — que por norma era a primeira pessoa a quem eu ligava quando me sentia assim,

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a única capaz de me ajudar a pôr as coisas em perspetiva — era o motivo para eu não ter a menor perspetiva.

A minha mãe pigarreou, pressentindo uma oportunidade para mudar de assunto.

— Vais contar-me o que aconteceu?Abanei a cabeça.— Ele fez alguma coisa imperdoável?— Mas que pergunta é essa?— Uma pergunta má, se calhar. Qual seria uma boa? Diz-me, e eu

faço-a.Desde que tinha saído da loja de noivas que imaginava sentar-me

àquela mesa com os meus pais e desabafar. Da mesma maneira que tínha-mos conversado quando eu precisava de decidir para que universidade ir, como pagar as propinas da Faculdade de Direito, como superar as mil vezes que o coração se me partiu. Agora a minha preocupação era que nunca mais fôssemos sentar-nos os três ali.

— Georgia…Levantei a cabeça.— Mãe… — respondi.— Tu fizeste alguma coisa imperdoável?— Para de usar essa palavra. Não.— Bem, há outra pessoa?Por norma, a minha mãe era a primeira pessoa a pensar que o adulté-

rio entrava na categoria do imperdoável.— Sim, há. É linda e tem 4 anos e meio. A minha mãe ficou com um ar confuso.— Ele tem uma filha. Que me escondeu.Ela continuou calada, na calmaria que antecedia as suas tempestades.

A minha mãe não suportava desonestidade. Era cáustica, irritável e tei-mosa. Mas, além de tudo isso, era impressionantemente genuína. E exigia o mesmo daqueles que amava.

Pegou de novo na caneca de café.— Tenho a certeza de que o Ben tem uma justificação para isso —

afirmou.— Não podes estar a falar a sério — insurgi-me. — Eu acabei de te

dizer que o Ben tem uma filha de outra pessoa e que optou por não parti-lhar essa informação comigo. Descobri enquanto estava a fazer a prova do vestido de noiva e o vi passar pela rua com a mãe da criança.

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— Compreendo. É horrível. Sobretudo que ele não te tenha dito. — Fez uma pausa. — Só quero deixar no ar a ideia de que ele talvez tenha uma justificação para ter guardado a informação só para si.

Era aquilo que ela tinha para me oferecer? Antes do Henry, a minha mãe teria querido ver o Ben a sangrar. Teria começado a dar voltas à sala enquanto arengava acerca de valores, como quando a minha melhor amiga da secundária usara o restaurante dos pais para se oferecer uma festa- -surpresa de bar aberto. Mesmo depois de eu lhe explicar como isso tinha acontecido, ela disse que não havia justificação. Que uma pessoa ou era honesta, ou não era.

Onde estava agora essa mãe, que gritaria por causa da mentira por omissão do Ben? Porque não adotaria esse papel, para que eu pudesse chegar ao outro — àquele em que teria de sentir compaixão pelo Ben, face ao excesso de proteção demonstrado por ela? Essa, sim, era a mãe que eu conhecia.

Levantei-me.— Não consigo lidar com isto agora. Vou para a cama. — Então vai.Encaminhei-me para a porta, completamente exausta e desejosa de

que a noite acabasse.— O Henry é um velho amigo — disse a minha mãe, ainda à mesa.

— Conhecemo-nos em Nova Iorque. Recentemente, foi nomeado maestro da Orquestra Sinfónica de São Francisco.

Virei-me, mas mantive-me junto à porta.Ela encolheu os ombros.— Ele só está cá há uns meses, mas tem sido agradável. Só… voltar

a fazer parte desse mundo. Parte desse mundo. Parecia derrotada a dizer aquelas palavras e a recor-

dar — quem tinha sido, como tinha sido. Dava-me vontade de tentar con-vencê-la de que ainda fazia parte desse mundo: era a professora de música da região há décadas. Mas isso não era o mesmo. E de que serviria tentar convencê-la de que era, afinal? Como se alguém pudesse convencer-nos da única coisa que não queremos ver.

Em vez disso, perguntei:— O que é que isso tem que ver contigo e com o pai? Ela fitou-me. — Não estou a falar do pai. Estou a falar de ti e de mim. Sempre ten-

taste cuidar de todos desta família, de resolver todos os problemas, tal

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Um Brinde ao Amor

como eu. Em vez de decidires o que é que queres. Não o que deverias querer, mas o que queres mesmo.

Comecei a rir. Não pude evitá-lo.— Não podes realmente pensar que neste momento estás em boa

posição para me oferecer conselhos acerca da minha vida amorosa.O seu olhar procurou o meu.— Acho que estou numa ótima posição, na verdade — replicou ela.

— Ninguém melhor do que eu vê a pessoa linda e incomparável que tu és. À exceção, talvez, do Ben.

Depois de uma pausa, disse-me simplesmente:— Tem cuidado com aquilo de que abres mão. Cruzei os braços, tentando — contra vontade — ouvir aquilo que ela

não estava a dizer. — Porque não dá para o recuperar?Ela levantou-se e passou por mim à entrada. — Não. — Apertou-me o ombro. — Porque, mais tarde ou mais cedo,

se recorre a qualquer meio para o recuperar.Esperei que ela desaparecesse pelas escadas acima antes de seguir pelo

mesmo caminho. No entanto, antes de entrar no quarto, ainda disse, à laia de boas noites:

— Vale o que vale, mas estou contente por te ter em casa.Pois estava sozinha nesse contentamento.

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O Contrato

Acordei ao som de uma sonata de Bach para violoncelo, com o sol a perpassar pelas janelas e a juntar-se à música num despertar intenso. Era assim que acordava praticamente todas as manhãs

quando era pequena — com o meu pai a querer que nos levantássemos com o sol, a minha mãe a reservar a primeira meia hora de cada dia para ensaiar, para não perder a mão.

Eu costumava adorar o som do seu violoncelo, os tons cálidos que me saudavam. Depois do nosso encontro à meia-noite, porém, o seu violon-celo ganhava outra conotação, com imagens de um Henry nu a correrem--me pela cabeça, a dançarem ao som da música.

Remexi na mala de viagem, em busca de um par de calças de ganga decentes e de uma camisola, lamentando ter trazido tão pouca roupa de Los Angeles. Nada que fizesse frente ao nevoeiro matutino, nada que me protegesse do calor do final do dia. Os únicos sapatos que tinha comigo eram um par de sabrinas. Deixara as minhas botas preferidas, deixara tudo aquilo de que mais gostava.

Era tal o meu alvoroço para evitar a minha mãe, que quase não vi a nota que me deixara em cima da bancada da cozinha. «Há café. Queques de banana no frigorífico. Foram feitos ontem, mas estão deliciosos.»

Peguei numa caneca de café e num queque antes de me fazer a cami-nho pela colina abaixo, até à casa do viticultor, à procura do meu pai.

Passava pouco das nove da manhã — uma hora belíssima no vinhedo. O céu estava de um azul intenso, o nevoeiro matinal começava a espaire-cer e a deixar passar o sol e o calor da manhã. Avancei pelos jardins que serviam de cultura de proteção, com flores silvestres a serpentear entre as videiras, a terra feita de roxos e verdes, com folhas perenes emaranhadas.

Detive-me para as estudar, tocando nos rebentos, sentindo a coisa a começar a apoderar-se de mim. Era uma sensação que só experimentava quando voltava às vinhas. Uma combinação potente de felicidade, excitação

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Um Brinde ao Amor

e algo a que eu não conseguia dar nome, restando-me apenas dizer que voltar a Sebastopol, à casa dos meus pais, era como reencontrar um amor perdido.

Até aos meus 14 anos, nunca me fartava do vinhedo. Seguia o meu pai para todo o lado, desempenhando as tarefas mais mundanas: entre-laçar as videiras, estudar as uvas, preparar infusões para alimentar o solo. O meu pai cavava na compostagem e eu acompanhava-o, só para fazer parte daquilo. Antes das aulas, depois das aulas, falávamos de vinhos e colheitas. O meu pai até me levava à adega e deixava-me provar o vinho já trasfegado e o que ainda estava à espera de o ser. Nunca o disse, mas encantava-o que eu quisesse fazer parte daquilo.

E depois chegou a altura em que eu passei a não querer ter nada que ver com aquilo.

O mesmo vinhedo, os mesmos 20 hectares que me tinham proporcio-nado tanta alegria, tudo se tornava sufocante, em vez de libertador.

Isso coincidiu com duas péssimas vindimas consecutivas. A primeira tinha-se perdido por causa do tempo, da chuva que arrancara as uvas às videiras muito antes de estarem prontas. A segunda tinha sido o resultado de tremendos fogos florestais, cujo fumo secara o ar de Sonoma e abra-sara o vinhedo. Depois de anos em que tudo tinha corrido bastante bem, as duas colheitas más — as únicas que os meus pais alguma vez tiveram assim, de seguida, desde o início, precedendo a minha memória — tinham ameaçado pôr fim ao negócio.

Ainda era doloroso pensar em como tinham sido terríveis aqueles invernos. Os nossos pais tentavam proteger-nos e não mostravam como estavam assustados com a possibilidade de perderem tudo o que haviam construído. Mas, a altas horas da noite, quando já todos devíamos estar a dormir, eu ouvia-os a conversar em voz baixa na cozinha, com uma cafe-teira entre eles. Teria sido melhor se o tivessem gritado a plenos pulmões, em vez da sensação que eu não podia evitar sentir, sentada do outro lado da porta, a pensar nas formas como não poderia resolver-lhes o problema e como a vida da nossa família estava prestes a desmoronar-se.

Comecei a ir para São Francisco sempre que podia. Certa noite, con-venci o meu pai a levar-me a ver uma exposição de instalações elétricas. A carrinha avariou-se pelo caminho e fizemos o resto da viagem até à cidade de táxi. Depois, caminhámos pelas ruas da baixa, passando pelo edifício dos ferries e pelo cais, subindo as colinas chiques de Pacific Heights. Passámos por um pequeno bar de jazz, onde uma velhota de 90 anos

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cantava músicas de Gershwin. Se isto parece ridiculamente romântico, é porque foi. E eu fiquei completamente fascinada. Adorei os ruídos da cidade, de gente a discutir e a rir pela rua. A velhota a cantar Gershwin. Seria fácil dizer que foi a energia da cidade, mas não. Foram os barulhos. De repente, tive a sensação de que tudo o que conhecera até então era demasiado tranquilo. A tristeza dos meus pais, o vinhedo. Sonoma.

Passei o verão seguinte com a minha prima, que tinha um escritório de advogados na baixa. Ela era linda e elegante e acolheu-me, apresen- tando-me à vida citadina: cafés e arranha-céus, ruas e livrarias, sapatos elegantes e cigarros em festas. Até me ofereceu um estágio na sua firma.

Avisou-me de que seria enfadonho, mas, na verdade, foi um alívio. A lei era específica. Era concreta. A terra, a fruta, o vento, o sol e o céu não tinham de cooperar para que duas partes negociassem um contrato. Depois de anos a ver o meu pai a debater-se à mercê da terra, dos frutos e dos padrões climatéricos, aquele tipo de controlo fazia-me sentir poderosa.

Quando as colheitas resultavam, era lindo. Mas dois anos de colheitas perdidas eram uma desgraça. E uma desgraça ainda maior quando me dei conta de que não eram as primeiras. Depois de ter saído de casa para ir para a faculdade, fiquei a saber que os meus pais tinham escapado por pouco a desastres anteriores, em que parecia que a única opção era desistir.

O caminho que eu escolhia era bem menos imprevisível, o que me parecia algo bom, algo diferente.

Talvez isso fosse só a infância? Uma pessoa apressa-se, opta pelo cami-nho oposto, tenta pôr fim à infância. Depois, em adulto, não se faz a menor ideia daquilo de que se fugia. Do que, ao certo, era tão necessário escapar.

* * *

Quando cheguei à casa do viticultor, a porta estava aberta, mas não havia ninguém lá dentro.

— Pai? — chamei.Ninguém respondeu. Empurrei a porta e entrei, sentando-me na pequena sala de estar. Sabia

que o meu pai devia estar algures no vinhedo, mas seria melhor esperar que ele fizesse a sua pausa habitual da manhã depois de terem acabado de colher as uvas. Era assim. Apanhavam uvas das duas da madrugada às dez da manhã — quando a terra estava mais fresca, com lanternas a guia-rem-lhes o caminho. A maioria dos produtores confiava isso ao superin-tendente, mas o meu pai gostava de se ocupar por si mesmo da vindima.

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Não o queria tentar encontrar no vinhedo, ou à mesa da triagem, vendo as uvas que chegavam para selecionar as que durariam. Não o queria inter-romper. Talvez não estivesse ávida por um confronto.

O que quero deixar claro é que não tencionava bisbilhotar. A minha ideia era ficar sentada, com todas as janelas abertas, o sol do final da manhã a entrar e um queque de banana inteiro, juntamente com café a arrefecer, à espera de ser apreciado.

No entanto, pousei tudo demasiado depressa na mesa de centro e entornei o café. Pela mesa toda. Por cima de uma pilha de pastas.

Pastas com a etiqueta «catálogo de vinhos murray grant». Como não havia guardanapos, peguei nas pastas e limpei-as à t-shirt

que tinha vestida. Estava a tentar secá-las, embora duvidasse que aquilo tivesse importância. O meu pai detestava a Vinhos Murray Grant. Não estava sozinho. A maioria dos pequenos produtores de vinho de Sonoma sentia o mesmo, não apenas por causa da qualidade da produção medío-cre, mas porque a empresa tratava a viticultura como um negócio. Era um negócio, claro. Só que também devia ser algo mais.

Portanto, parti do princípio de que aqueles documentos fossem descar-táveis, apenas o meu pai a manter-se informado quanto ao que os Vinhos Murray Grant andavam a fazer. Tinha de saber o que andavam a fazer. Eram dos maiores produtores de vinho de Napa Valley, com vendas anuais de cinco milhões de caixas de vinho.

Competição direta, claro está, com as cinco mil do meu pai.No entanto, ao limpar a segunda pasta, deparei-me com uma série

de contratos. Eram contratos longos e específicos que não podiam dizer aquilo que parecia que diziam. Só que eu era advogada especializada em direito imobiliário e trabalhava em negócios bem mais complicados. Sabia que aqueles contratos diziam exatamente o que parecia.

Quinta A Última Gota. Transferência de Propriedade. Para Vinhos Murray Grant.

Eu fitava os documentos, completamente incrédula. A pulsação come-çava a latejar-me sem cessar nos ouvidos, deixando-me incapaz de abran-dar e perceber o que estava a ler.

— Não acredito!Levantei a cabeça e vi o meu irmão, o Bobby, à porta. Ali estava ele,

a usar um fato azul-escuro, com a gravata atirada por cima do ombro. Exibia um sorriso que em qualquer outro dia eu descreveria como sendo encantador; agora mais parecia um esgar trocista.

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Perguntei-me se aquela seria uma das razões para termos dificuldade em entender-nos. O Bobby tinha a tendência de aparecer na altura exata em que não havia outra pessoa a quem culpar.

— Mas que raio é que estás a fazer aqui? Não te casas daqui a, tipo, dez minutos? — perguntou-me. — Tenho dois meninos das alianças incri-velmente entusiasmados e muito giros que mal podem esperar pelo casa-mento.

Eu ainda nem dissera «olá», as pastas ainda nas mãos. Levantei-as mais.— Estás a par disto?O sorriso dele desapareceu.— Do quê, ao certo? — perguntou.Passou as mãos pelos caracóis louros, que eram idênticos aos da

nossa mãe — e que o Bobby achava que lhe davam um ar angelical. Mas o que lhe dava um ar angelical eram as unhas irregulares — ele roía-as até ao sabugo desde que éramos pequenos. Era aquilo de que eu mais gostava nele.

— Olha, Georgia…— O que é que se passa, Bobby?— A mãe e o pai vão vender a quinta — disse ele, como se se tratasse

da coisa mais óbvia do mundo. Como se estivéssemos a falar de um carro.Sentei-me e abri as pastas, a tentar verificar em que ponto do processo

estariam. Fiquei descontente ao ver a assinatura do meu pai já na última página, reconhecida por um notário.

Juntamente com a assinatura de alguém chamado Jacob McCarthy. Jacob McCarthy. CEO dos Vinhos Murray Grant.O Bobby encolheu os ombros.— O pai não te quis incomodar com isto antes do casamento. Depois aproximou-se de mim, demasiado para o meu gosto. Ocorreu-

-me enxotá-lo com qualquer coisa. O meu queque entrou no meu campo de visão.

— O que aconteceu aos contratos? — perguntou-me, a roer uma unha com um ar nervoso. Afastei-me dele. — E porque é que te estás a passar? Isto é bom. O pai não vai ter de voltar a trabalhar. A Murray Grant fez-lhe uma oferta que só aparece uma vez na vida.

— Estás a ouvir o que estás a dizer?— E tu estás a ouvir o que tu estás a dizer?Se o olhar matasse, eu poderia tê-lo matado. Ali mesmo. Era esse

o problema do Bobby. Sempre fora lógico e robótico acerca de tudo.

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Um Brinde ao Amor

Os sentimentos eram algo que praticava — devia mostrar-se emotivo em relação a um casamento, derramar uma lágrima calculada —, mas nunca assimilava. Era por isso que era tão bom naquilo que fazia, e tão mau a mostrar o que sentia fosse pelo que fosse.

— Desde quando é que é isso que eles querem, Bobby?— É o que toda a gente quer! — replicou ele, com um olhar fulminante.

— Estás a gritar com a pessoa errada. — Não estou a gritar.— Estás a GRITAR! — gritou ele.— Estão os dois a gritar.Virámo-nos para a porta, onde estava o meu pai, de calças de ganga

e t-shirt, com um ar mais jovem do que na realidade era, ostentando um espesso tufo de cabelo e a pele tisnada pelo sol. Carregava um termos e um recipiente com uvas, o cabelo suado colado à testa.

Olhou para mim enquanto eu deixava cair as pastas na mesa, de volta à pilha molhada de café.

Pressentiu a minha tensão. Não perguntou quando eu tinha chegado, nem se sabia o que estava a acontecer com a minha mãe. O meu pai sabia o que eu sabia. Já estava a pensar no que fazer para que eu me sentisse melhor.

— Papá — disse eu, coisa que não lhe chamava desde pequena. — Por favor, diz-me que isto não é verdade.

Ele passou pelo Bobby, a quem apertou o ombro à laia de cumpri-mento, e sentou-se ao meu lado, pousando as uvas.

Passou os braços à minha volta, deu-me um beijo no alto da cabeça.Esperou mais um minuto, para que eu pudesse acreditar nele.— Não é verdade — disse-me.

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As Tesouras da Poda

—É isto que eu e a tua mãe queremos fazer — disse o meu pai. — A sério.Tínhamos chegado à parte noroeste da propriedade, os últi-

mos oito hectares que o meu pai comprou. Eram os que ficavam mais longe da casa. Tinha comprado a parcela a um agente imobiliário, por um preço demasiado elevado; aquela terra linda e ligeiramente mais verde-jante onde julgava poder criar um Pinot que fosse levemente mais frutado e suave do que aquele que produzia com a luz de poente.

Ajoelhámo-nos no Bloco 8 e começámos a cortar cachos maduros de uvas das vinhas, apanhando-os a um ritmo rápido. Eram as uvas que davam o Si Menor — o vinho que eu e o Bobby adorávamos. Aqueles clo-nes também ajudavam a produzir um vinho chamado Opus 129, que me parecia demasiado intenso e encorpado — embora fosse um dos mais populares do meu pai. Que ambos saíssem das mesmas uvas poderia ser desconcertante, mas não desconcertava o meu pai. Era assim, achava ele, que acontecia com frequência. As uvas gostavam de fazer coisas diferentes dependendo da forma como eram fermentadas, como se confiava nelas para se autofermentarem.

Por norma, não colheríamos ao meio-dia. As uvas corriam o risco de fermentarem ao sol e de serem esmagadas nos contentores. Mas o meu pai servira-se da escala Brix para testar o nível de açúcar nas uvas e não queria esperar pela noite para as tirar das vinhas.

Era ali que ele estava, a testar o nível de açúcar, quando descobri que ele ia abrir mão da sua vida tal como a conhecera até então.

— Os Vinhos Murray Grant… — disse ele — apresentaram uma oferta generosa.

— Tu detesta-los.Ele sorriu-me, aquele seu sorriso cálido.— Eu não detesto ninguém.

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Depois fez-me sinal para que continuasse. As suas mãos passavam pelos cachos sem qualquer esforço, cortando numa sucessão rápida e dei-xando-os cair num balde. Eu ia a meio-gás, não a uma velocidade sufi-ciente para ele, que queria tirar aquelas uvas da vinha e deixá-las nalgum lugar mais fresco.

— Mãos ao trabalho! Podemos ter esta conversa depois.— Quero tê-la agora.— Então mantém o ritmo.Comecei a acelerar, arrancando as uvas com delicadeza, atentando ao

calor que emanavam e tendo o cuidado de não o aumentar. Na verdade, o meu pai não precisava de ajuda. Já tinha cinco homens no vinhedo a aju-dá-lo. Mas precisava de fazer qualquer coisa que o fizesse parecer ocupado. O meu pai precisava de estar atarefado para que eu não tivesse oportuni-dade de ver como estava triste.

Mas eu via. O meu pai estava tisnado pelo sol e rijo pela vida passada ao ar livre, a dedicar-se ao trabalho que adorava. E, por hábito, fazia-o com bastante alegria. Os seus olhos e o sorriso luminoso davam-lhe um ar per-petuamente jovem, como se fosse o irmão mais velho do Finn, em vez de seu pai. Por isso, naquele momento o contraste era forte. Tinha os olhos sombrios. A pele retesada e emaciada. Eu percebia a energia que despen-dia só para sorrir.

Encolheu os ombros.— Tudo se encaixou — disse ele. — Eu não o tinha procurado, mas

a tua mãe já queria uma mudança de algum género, não estar tão presa à Califórnia do Norte, e depois o Jacob apareceu…

— Quem é ele? — É o filho do Murray e da Sylvie — respondeu o Bobby.— Eu estava a perguntar ao pai — repliquei.— E eu não posso responder?O meu irmão lançou-me um olhar, perplexo por eu estar tão lixada

com ele — por, a seu ver, lhe mostrar uma versão mais semelhante à do Finn do que à dele. A versão que o Bobby tinha aceitado: a que se susten-tara para tirar um curso de Direito e tornar-se advogada, a que ia casar com um tipo à maneira.

— O Jacob é o neto do Murray e da Sylvie — corrigiu o meu pai.Eram nomes que eu reconhecia. Tínhamo-los ouvido com frequência

enquanto crescíamos. Eram os fundadores dos Vinhos Murray Grant — ou melhor, o pai do Murray é que era, mas fora o casal a dar à firma dimensão

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nacional e depois a internacionalizá-la. Tinham elevado a produção aos milhões. A filha, Melanie, era uns dez anos mais velha do que os meus pais, mas quando era nova mudara-se para Nova Iorque e casara com um tipo de Wall Street. Um grande casamento da alta-roda. O apelido do noivo, ao que parecia, era McCarthy. E o filho chamava-se Jacob.

O Bobby, indiferente a tudo isto, continuava a trabalhar, puxando cachos de uvas. Observava-os ao deixá-los cair no balde de zinco. Tal como o nosso pai nos ensinara, um gesto que já era como uma segunda natu-reza.

— O Murray queria abrandar, por isso o Jacob mudou-se para Valley no ano passado. Tem-se encarregado da maior parte da operação e anda a fazer um bom trabalho. É esperto e bom rapaz.

— Não duvido — disse eu. Mas duvidava muito. — Qual é o teu problema? — abespinhou-se o Bobby.Ignorei-o.— Só não percebo porque não falaste comigo primeiro, pai, antes de

tomares uma decisão deste calibre.— Pareceu-me a decisão certa a tomar para a minha família — disse

ele.— E nós damos valor a isso, pai — disse o Bobby. Lancei-lhe um olhar

zangado, a que ele correspondeu. — Que foi?— Então e os Vinhos Adler, pai?— O que têm? — perguntou-me, de olhos fixos nos meus, irritado.Adler era uma adega pequena de agricultura biodinâmica que ficava

perto de Alexander Valley. As proprietárias, a Beth e a Sasha, eram amigas dos meus pais. Tinha sido comprada pelas Adegas Seville, que lhes pro-meteram que manteriam a produção tal como fora até então. Com aquela devoção à biodinâmica, à exploração sustentável. Ao início, a Adler man-teve o mesmo nível de qualidade. No primeiro ano enquanto subsidiária da Seville obteve a melhor colheita. As uvas revelaram-se mais intensas e maduras do que era habitual, produzindo o género de vinho frutado, semelhante a compota, que surgia com as colheitas mais quentes de Sonoma. Porém, a procura que essa colheita originou tornou-os ganancio-sos. Expandiram a companhia demasiado depressa, sem qualquer tipo de controlo de qualidade. Depois puseram os Vinhos Adler em todas as lojas Whole Foods do país. A única coisa que tinham em comum com o original era o rótulo.

— Isso não vai acontecer aqui — disse o meu pai.

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— Como é que sabes?O Bobby fitou-me.— Que pergunta é essa, como é que sabe? Sabe e pronto!A minha vontade era despejar o balde de uvas por cima da cabeça do

meu irmão.— O Jacob não vai transformar a Quinta A Última Gota numa marca

comercial — explicou o meu pai. — Quer que A Última Gota seja uma propriedade modelo para as outras adegas, com práticas sustentáveis.

— Até ao momento em que deixe de querer — repliquei. — Calma… — disse ele.O meu pai não gostava de ser pressionado, sobretudo pelos filhos.

Mesmo sabendo que eu tinha razão. Ele sabia-o, melhor do que eu. E tal-vez tenha sido por isso que deu um passo atrás e passou o foco da atenção para mim.

— Está tudo bem com o Ben?Ri-me, sem saber como responder. Estaria ligeiramente nervosa por-

que o meu noivo era um mentiroso? Talvez. Mas teria isso algum impacto no que eu estava a dizer ao meu pai?

Olhei para as vinhas, para tudo aquilo que o meu pai passara a vida a construir. Nunca me sentia mais em paz do que quando estava ali com ele. A questão não se resumia às uvas, ao vinho. Tinha que ver com a terra que ele mantivera em segurança para fazer aquele vinho. Com a quinta, a casa e o orgulho que ele tinha no que construíra ali. E com as pessoas a quem ia dar tudo — as últimas que seriam capazes de o apreciar.

E isso nem sequer tocava na parte mais trágica daquilo de que o meu pai parecia estar a abrir mão. Aquilo de que o meu pai e a minha mãe pare-ciam estar a abdicar: um do outro.

— Pai, só me parece uma má altura para tomar uma decisão tão im- portante.

O meu pai olhou-me nos olhos. Era a primeira vez que reconhecíamos a situação da minha mãe com o Henry. Abanou a cabeça.

— Estás a passar das marcas, miúda — disse ele.O Bobby ora olhava para mim, ora para o nosso pai.— Que marcas? — perguntou. — De que é que vocês estão a falar?— Esquece, Bobby — disse o meu pai, que parecia zangado, coisa que

era rara.— Pai… — comecei. Ia pedir desculpa, mas ele já se tinha levantado

e caminhava na direção de um dos seus trabalhadores.

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— Continuem com isso. Já volto — disse-nos. Mas não ia voltar. Ia ajudá-los a carregar as últimas uvas do turno para

a mesa de triagem. Ia estudar essas uvas para ver o que lhe diziam.Vi-o afastar-se, com vontade de o chamar, pois já sabia o que dizer.

Que era: adoro-te e estou aqui para te apoiar. Quem é que não começa por aí?

— Boa! — disse o Bobby furiosamente. — Tens de aprender a distin-guir o momento de parar.

Olhei para baixo, para o balde de uvas, zangada comigo mesma. Aper-cebia-me de que tinha ido longe demais com o meu pai por não saber como o levar na direção em que ele precisava de ser levado — para junto da minha mãe.

— Isto é por ele não te ter perguntado se querias a quinta?Correspondi ao olhar do meu irmão, magoada por ele achar que eu

estava a pensar em mim e não na nossa família.— Porque tu vais mudar-te para Londres com o Ben. Não podes fazer

isto à distância. Eu não a quero. Tenho a Margaret e os miúdos. A Margaret anda a falar em voltar a trabalhar. E o Finn…

O Bobby abanou a cabeça.— O que é que se passa convosco?Ele limpou as mãos e pegou na água.— Tens de lhe perguntar.— O que é que isso quer dizer?— Quer dizer que tens de lhe perguntar. — Encolheu os ombros.

— Anda armado em parvo. E não quer falar comigo, e a culpa disso é capaz de ser minha. Tenho sido um bocado preconceituoso.

— Em relação ao quê?Ele sorveu a água.— A todas as mulheres com quem ele anda metido.— O Finn anda sempre com alguém.— Agora é diferente. Anda com toda a gente. — Pousou a água.

— E diz que se quer mudar para Nova Iorque para ir trabalhar para o amigo dele, o Sam, que tem um restaurante novo. Tem falado em me ven-der a sua parte do bar. Ora, eu só o comprei para que ele o pudesse gerir. E ele agora quer deixar-me com aquilo.

O Bobby franziu a testa. Parecia magoado por o Finn o estar a afastar — quando eles nunca se afastavam. Magoado por o Finn poder querer ir para longe de si.

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Eram realmente os melhores amigos — o meu irmão bom, o meu irmão mau. Sempre tinham sido. Eu era a irmã mais nova de quem eles cuidavam de maneiras diferentes: o Bobby dava-me explicações de álge-bra, o Finn fazia-me escapulir de casa para duas-pizzas-pelo-preço-de-uma e um filme no drive-in na noite anterior ao teste de álgebra. Mas a relação que tinham era recíproca, sempre um ao lado do outro. Ao que parecia, até àquele momento.

O telemóvel do Bobby tocou. Levou a mão ao bolso, com um sorriso a voltar-lhe ao rosto.

— Olá, companheiro!Depois mostrou-me o telemóvel para que eu visse quem era. O Ben,

sem que lhe faltasse uma fotografia sorridente. O Bobby tornou a levar o telemóvel à orelha, contente por estar a falar com ele.

O Bobby adorava o Ben, embora pelas razões erradas. Adorava-o por ser um arquiteto impressionante, um membro respeitado da sociedade e da Soho House. Todas essas coisas que o meu irmão, atualmente, prezava.

— Vens cá ter? — perguntou ele.Abanei a cabeça e sussurrei-lhe:— Diz-lhe que não estou cá.— Claro — disse ele. — Está mesmo aqui.Entregou-me o telemóvel.Eu terminei a chamada. E devolvi-lhe logo o telemóvel. Confuso, o Bobby fitou o telemóvel de novo nas suas mãos.— Mas que raio?! — espantou-se.— Não olhes para mim assim. Queria acabar a nossa conversa.— Podias ter dito isso ao Ben.Senti o rosto a começar a corar. O Bobby deu por isso.— Oh, não. — Fez uma pausa. — Andas a dar cabo de tudo com ele? — Não, mas obrigadinha pelo apoio.— Então é por isso que estás obcecada com a quinta. Para não teres de

admitir que estás a dar cabo de tudo com ele. — Abanou a cabeça. — Mas porque é que serei o único desta família com a mínima noção do que é ser adulto?

— Alguma vez te ocorreu sequer que não sabes tudo o que se passa comigo? Quanto mais com a mãe e com o pai? Porque, se soubesses, per-ceberias que vender a quinta não tem que ver com vender a quinta.

Ele fez um sorriso trocista, nada impressionado.

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— Ah, não?— Tem que ver com eles estarem a fugir da coisa de que mais gostam,

porque lhes parece demasiado difícil ficar, e eu não posso permitir que façam isso.

O telemóvel dele voltou a tocar: era o Ben outra vez. — Bem, vais ter de permitir — replicou. — Porque já está feito.E depois virou-me costas e atendeu a chamada.

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