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Durante pouco mais de meio ano, as segundas-feiras do JACKPOT contaram com a presença dos “Livros da Anita” - muitas histórias, divertidas umas, mais sérias, até comoventes, outras, todas elas contadas na primeira pessoa pela ANA DUARTE, que connosco partilhou momentos da sua vida e se nos deu a conhecer, a ponto de sentirmos fazer também parte da sua história. Na altura em que a ANA decidiu fazer uma pausa, o JACKPOT, de que ela é e será sempre parte, publica uma edição extra do Magazine, inteiramente dedicada às histórias com que nos encantou. Talvez este seja apenas o primeiro volume... de qualquer forma, por este para ela vai o nosso

Muito Obrigado... mesmo!

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ANITA CASA-SE Estávamos no dia 14 de Maio de 1989, a azáfama característica do dia começou como o de tantos outros dias em que tantas outras pessoas se casam. Mas aquele era o dia da Anita, o casamento da Anita, a vez dela de unir amigos e família para presenciarem o início de uma união em matrimónio entre duas pessoas que desejavam olhar juntas na mesma direcção para sempre. A semana anterior tinha sido uma loucura de afazeres, desde limpar e mobilar o cantinho que lhes tinha sido entregue apenas uma semana antes, às provas do vestido, as visitas ao restaurante, a confirmação dos convites, e por aí fora, que o tempo para pensar no dia, no momento, no passo, simplesmente não existiu. E no início deste dia, já madrugada, acabada de chegar da futura casa, para pernoitar pela ultima vez na casa dos pais, a mãe da Anita disse-lhe “deixaram-te um presente no teu quarto”… Deixou-se cair literalmente em cima da cama, exausta, e fechou os olhos, tentando encontrar-se a si própria no meio da “batalha”. Olhou para o lado e ele lá estava, o presente. Um presente como outro qualquer, embrulhado num papel de embrulho que com toda a certeza era bonito, tal como o presente, que devia ser igualmente bonito, mas do qual sinceramente não se lembra. Poisado em cima do presente, estava um envelope com um postal, que devia ser também adorável, talvez com umas alianças cruzadas e desejos de felicidades. Do que a Anita se lembra realmente é que era de uma grande amiga e começava com uma letra bonita e desenhada por “Chegou a hora…”

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Não se recorda do que dizia a seguir, porque ao ler estas simples palavras, desatou num choro de desabafo e descarga, que ao contrário do que se possa pensar lhe lavou a alma e lhe proporcionou um dia calmo e relaxado (mais ou menos). Mas ainda hoje a Anita não perdoa à amiga, Carla Barba-Rôxa, por ter adormecido naquela noite a pensar que ia acordar de manhã com umas olheiras horrorosas que nenhuma maquilhagem do mundo seria capaz de disfarçar. Mas a manhã chegou e um bom salão de beleza faz milagres e na hora H, nem olheiras nem papos ofuscavam a sua felicidade. A primeira experiência de sogra da Anita, foi nesse dia mesmo… depois de lhe ter dito 50 vezes no dia anterior que ao contrário do que manda a tradição, não se podia atrasar um minuto sequer, sob pena de o padre se ir embora por ter outro casamento, conseguiu que os seus 22 anos influenciáveis acreditassem e à hora marcada, lá estava ela a chegar no Opel vermelho do seu padrinho, com a famelga toda atrás a apitar. Pois ao chegar à igreja, a antiga capela de Santo Ovídio, nem sombra de noivo… e o padrinho da Anita que devia ser experiente nestas coisas perguntava-lhe “O que é que eu faço?” Foi nessa altura que aprendeu a tomar decisões em estado elevado de stress, o que ainda hoje lhe dá imenso jeito na sua actividade profissional. Respondeu ao padrinho “Dá umas voltas à Igreja, ele não deve demorar…” Mas ainda demorou uns 10 minutos, que pareceram 10 anos, o que deu tempo à Anita para se estrear mentalmente como realizadora de um thriller romântico, com rasgos de comédia, em que a protagonista persegue e aterroriza a vida do amado, até ao momento de o assassinar com uma catana, não esquecendo obviamente a sogra e mais alguns familiares.

Estavam ainda a passar os créditos no final do filme, quando no final na 4ª ou 5ª volta à igreja, começam a surgir os carros da família no noivo. Claro que ainda foi necessário dar mais uma volta ou duas à Igreja, até que todos entrassem, noivo incluído.

Ainda hoje ninguém conhece melhor a arquitectura pitoresca das casinhas ao redor da capela de Santo Ovídio do que a Anita… O noivo estava pálido e a transpirar, talvez fosse de medo por antecipar o filme

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realizado na cabeça da noiva até ele chegar, ou talvez fosse da noitada com os amigos na noite anterior. Ou talvez fosse por não gostar de dar nas vistas e naquele dia isso ser praticamente impossível. Também podia ser por estar a sentir-se como a ilustração da capa por dar aquele passo com uma “realizadora” como a Anita… A cerimónia começou e decorreu com relativa normalidade, excluindo talvez o facto da aliança do noivo não querer entrar no dedo, e a Anita estava cada vez mais emocionada por se aproximar o momento que a cabeça das meninas imagina desde tenra idade e que é aquele em que o padre diz “Declaro-vos marido e mulher. Pode beijar a noiva”. Chegado o momento, o padre passou a ser o protagonista e vítima de outro filme de terror, filmado num convento, em que ele é torturado, violado e chicoteado por freiras ninfomaníacas, cuja virtude que O Criador lhes deu não é nem por sombra a beleza feminina, mas antes bigodes fartos e farfalhudos. A Anita não queria acreditar! Depois de declarar os noivos marido e mulher, arrasando de forma cruel e vil com a expectativa da noiva, o clérigo cala-se. Então e o beijo? Então e a imagem do noivo a levantar o véu da Anita e a beijá-la docemente, como sua mulher?? Nada. O padre preparava-se para dar a cerimónia como terminada, e a Anita começou a lembrar-se de toda a sua vida, regrada por princípios e valores cândidos e inocentes, alguns até documentados em livro… Quem não se lembra da “Anita mamã”, ou a “Anita a cavalo” ou da “Anita dona-de-casa”?? E decidiu naquele momento atrever-se. Revoltar-se. Ter iniciativa. De maneira que ainda o padre pronunciava aquela lengalenga de final de missa, quando a Anita surpreendendo tudo e todos, levanta o véu e espeta um beijo ao noivo, que fez as imagens dos santos da igreja taparem os olhos. E no final, olhou triunfante para o padre. E ele devolveu-lhe o olhar. E as setas que se cruzaram neste olhar, não eram de cupido, pareciam mais o culminar de uma batalha medieval em que o objectivo era mesmo aniquilar o parceiro. E sabe uma coisa Sr. Padre? Este foi apenas o primeiro de muitos! E alguns até deram origem a bebés! E muitos outros deram origem a cópula sem bebés – diz

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hoje a Anita, fazendo um manguito ao padre. Lá em cima, Deus ria-se com o seu atrevimento. E como prémio, quando saiu da Igreja e olhou cá para fora, estava um sol radioso e ao mesmo tempo, chovia arroz…! P.S: No dia em que celebramos Bodas de Marfim, esta crónica é dedicada a ti Salvador Duarte, por tudo o que me aturas e seguras. Amo-te.

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ANITA NA NEVE Estávamos nos finais dos anos 90, quando a Anita se iniciou nos desportos de inverno. Inserida numa campanha da empresa onde trabalhava, foi “obrigada” a acompanhar os clientes vencedores a Andorra, numa viagem que durou 4 dias. Apetrechou-se de roupa e calçado adequado ao local de destino e num belo dia de manhã lá partiu de avião com desembarque em Barcelona, onde os esperava um autocarro que os levaria ao principado. Logo cedo se apercebeu que a empresa preparara uma série de actividades para animar a malta, entre as quais se destacavam uma viagem de helicóptero pelas montanhas de Andorra, aulas e provas de ski e uma visita à instância termal para relaxar. Em Barcelona, esperava-os uma visita guiada à Sagrada Família e à Rambla, seguida por uma visita relâmpago aos lindíssimos e originais edifícios de Gaudí. Nada poderia correr mal naquela viagem, já que tudo estava tão bem programado. Na primeira noite, Anita e os companheiros de viagem já foram dormir a Andorra, encantados com a beleza das montanhas cobertas de neve e convidativas ao espírito de aventura. Logo à chegada ao hotel, foram distribuídos uns panfletos com o programa do dia

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seguinte: aulas de ski com um monitor, seguidas de prova de descida pela montanha de dificuldade mínima e viagem de helicóptero da parte da tarde. A Anita mal conseguiu dormir essa noite, tamanha era a excitação. Imaginava-se a deslizar elegantemente de skis pela montanha, sentindo o ar fresco misturado com o conforto do sol quente no rosto, enquanto ouvia embevecida os aplausos dos colegas e clientes, maravilhados com tamanha agilidade. E assim adormeceu, sonhando acordada. No dia seguinte, a equipa foi dividida em grupos, e a cada grupo foi atribuído um monitor que se encarregaria de o iniciar nos segredos do ski. O monitor que calhou ao seu grupo, verdade seja dita, era uma verdadeira atracção turística para as visitantes femininas, de maneira que o cacarejar divertido das acompanhantes não deixava ouvir grande coisa do catalão aportuguesado com que o moço se tentava fazer entender. Mas a Anita conseguiu perceber que se quisesse acelerar a descida, virava os pés para fora, e se quisesse abrandar, virava-os para dentro e isso pareceu-lhe suficiente para descer uma montanha de dificuldade mínima. Quando deu por si, munida do seu walkman carregadinho de músicas sobre a neve que se tinha dado ao trabalho de gravar precisamente para ouvir nas aventuras desta viagem, já subia a montanha agarrada a um cabo que puxava o pessoal (que ideia simpática!) para o cimo da montanha. Chegada ao topo, bastaria virar os skis em direcção à descida e começar a deslizar. Com o Salvatore Adamo a gritar-lhe ao ouvido TOMBE LA NEIGE, e a dar um tom de novela venezuelana à coisa, nada podia correr mal. Mas os skis eram demasiado pesados para a estrutura frágil da Anita, e algo correu mal. Ao dar impulso às pernas para virar os skis em direcção à descida, a Anita apenas conseguiu colocá-los na horizontal e começou a deslizar de rectaguarda. De início, não se apoquentou… Deslizava lentamente e estava convencida que conseguiria alterar aquela rota com agilidade. Mas começou a ganhar velocidade. O seu coração bateu mais rápido. Quando deu por si, descia a montanha de costas e cada vez mais rápido. Lembrou-se das

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palavras do monitor “para travar virar os pés para dentro”! E assim fez… mas ao fazê-lo apenas conseguiu ganhar mais velocidade. Na aflição, a Anita não se lembrou que ía de costas, pelo que ao virar os pés para dentro acelerou ainda mais e quando se lembrou disso, a velocidade já era muita para inverter a situação e as pernas já lhe doíam terrivelmente. Sem mais ideias, decidiu gritar “Ai mãe que vou morrer!” sempre à espera de sentir o impacto do corpo numa árvore. Diz o povo que ao menino e ao borracho, Deus põe a mão por baixo. Não sendo nem uma coisa nem outra, a Anita procurou desesperadamente outro provérbio que lhe desse alguma esperança, e não encontrando, desistiu de chamar pela mãe e começou a chamar por Ele, sem grande esperança, já que é daquelas que só se lembra d’Ele quando precisa. Mas vá-se lá saber porquê, Ele devia estar, uma vez mais, divertidíssimo com a situação e decidido a não deixar de modo algum que o espectáculo acabasse ali. Até o próprio Adamo parecia estar a agoirar-lhe a exibição e começou a ouvi-lo cantar Tombe DANS la neige!... A Anita conseguiu olhar para trás e apercebeu-se que estava a abrandar, tendo chegado a um troço da pista plano, onde no final esperavam os colegas e os clientes estupefactos. Foi abrandando até parar, praticamente em frente a eles, quase todos de boca aberta. As pernas, já nem as sentia, tamanha era força que tinha feito para alterar a direcção na descida. E quando finalmente parou e pode relaxar as pernas, eis que as mesmas se abrem uma para cada lado, obrigando-a a uma espargata forçada, o que aos olhos dos espectadores deve ter parecido uma coisa elegantíssima de se fazer, mas que fez a Anita sentir uma dor atroz e olhar na direcção dos outros, com uma expressão de dor, como que a pedir ajuda. Mas o pessoal deve ter pensado que essa expressão de dor era um sorriso vitorioso estranho e limitava-se a bater palmas esfuziado, e a fazer uhhhh uhhhh. A Anita tentava… ela tentava levantar-se e sair daquela posição que lhe fazia sentir que a partiam a meio, mas com os skis ainda colocados, só conseguia que eles

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escorregassem na neve, aumentando a sua tortura. Não sabia se lhe doía mais o corpo ou o orgulho. Até que um dos clientes se apercebeu finalmente que a expressão na cara da Anita seria exagerada na intensidade e no tempo para ser de vitória e foi em seu auxílio, ajudando-a a levantar-se. Quando se sentiu de pé, a primeira coisa que fez foi tirar os skis, jurando que nunca mais os voltaria a pôr, enquanto recebia felicitações dos colegas pela fantástica exibição, com um sorriso amarelo que eles devem ter confundido com modéstia. Nessa noite, no jantar de gala, a Anita ganhou um prémio pela descida mais espectacular e ainda hoje se pergunta se toda aquela gente julgaria realmente que aquela descida foi propositada. Ao entregar-lhe o prémio, uma T-Shirt onde se podia ler “Ordino Arcalis”, o monitor disse-lhe qualquer coisa em catalão que a Anita não percebeu. O que percebeu foi o sorriso irónico dele, ao piscar-lhe o olho. P.S: Não perca os próximos capítulos de Anita na Neve, numa das próximas edições.

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ANITA NA PRAIA

Se uma Anita incomoda muita gente, duas Anitas incomodam muito mais. Acontece que aí por volta dos 13, 14 anos, a Anita conheceu outra Anita e logo se encantaram uma pela outra, tornando-se grandes amigas. Dividiam praticamente tudo. Eu disse praticamente… Dividiam a carteira da sala de aula, o dinheiro, as alegrias, as tristezas, o almoço, o lanche, a paixão por elementos masculinos de outra turma, as boas notas, as más notas, as preocupações da professora de moral, os ataques de fúria das professora de matemática e geografia, os copianços e tudo o que seja possível de ser dividido, sem beliscar uma amizade. Ambas eram altas e esguias, mas a Anita morria de inveja do cabelo da amiga que era liso e fininho, e odiava o seu que, ao contrário, era grosso e encaracolado. A outra Anita andava sempre acompanhada de uma escova que de quando em quando passava pelo cabelo, para que a sua pala ficasse o mais parecida possível com os famosos que apareciam na capa da Bravo. Como não podia fazer o mesmo sem ficar a parecer uma vassoura, nos dias de maior frustração, a Anita vestia umas roupas que hoje todos achariam estranhas, mas que naquela altura a tornavam também um bocadinho mais parecida com os famosos da capa da Bravo, onde se destacavam umas calças roxas justas e brilhantes e uma camisola cor-de-rosa. Num dia de muita frustação mesmo, comprou água oxigenada de 100 volumes e descolorou a pala para, além de ridícula, ficar ainda mais parecida com os famosos da capa da Bravo.

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É evidente que nas suas cabecinhas as Anitas estavam muito além das meninas da mamã que deambulavam pelos corredores da António Sérgio e basicamente ou eram amadas ou odiadas pelos demais alunos. Mas não eram indiferentes a ninguém, tal como os famosos que apareciam na capa da Bravo. Das muitas histórias que escreveram juntas, a Anita recorda-se carinhosamente do dia do passeio de estudo. Estava marcado para as 8 da manhã, mas a Anita atrasou-se na camioneta que demorou eternidades a chegar ao destino, mais ou menos na altura em que a “furança passou a ser feita pelo futurista” e não havia “furadores”, só “futuristas” que além de conduzirem tinham que “furar” os passes do pessoal, ou arrancar o bilhetinho a troco de uns escudos. Estava fora de hipótese a outra Anita ir ao passeio de estudo sem a amiga, de modo que se deixou ficar à espera, enquanto via o autocarro contratado pela escola desaparecer ali para os lados do jardim Soares dos Reis. Quando a Anita finalmente chegou, deram por si munidas de um abastado almoço-lanche preparado pelas mães e sem passeio para pararem num qualquer parque e o degustarem. Resolveram então fazer elas próprias um passeio à sua medida e após alguma discussão, lá chegaram a acordo em relação à praia da Madalena, satisfeitíssimas por anteciparem aí nuns 5 meses o período balnear. O dia não estava bonito, tinha acordado mal disposto e cheio de nuvens cinzentas, mas dentro das Anitas o sol brilhava e o calor era imenso, pelo que após uma viagem que lhes pareceu uma eternidade, onde mais uma vez a furança foi feita pelo futurista, lá chegaram à praia. Procuraram um lugar para se instalarem, enquanto olhavam para o mar e uma delas exclamou tentando convencer-se a si própria mais do que à outra “Até está fixe!” Ali, entre ondas de 2 metros, uns agradáveis 10 graus e ventos de 35 kms/hora, gozaram o seu passeio e o seu primeiro dia de praia de mil novecentos e oitenta e qualquer coisa. Ali mais uma vez trocaram confidências e desfolharam a Bravo, enquanto tentavam descortinar se o Limahl era uma gaja que parecia um gajo ou um gajo que parecia uma gaja e suspiraram com os olhos penetrantes do John Taylor enquanto contavam uma à outra como seria o dia do seu casamento com ele.

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Ali, entre sandes de panado e frango frito com pão ralado que dividiram, claro!, escreveram mais uma página na história de uma daquelas amizades que nunca se esquecem e que se relembram no momento da morte, de tão únicas serem. As Anitas foram a muleta uma da outra naquela idade do armário. Foram mãe, pai, companheiras, amigas, irmãs. Tão próximas, tão próximas, que foram sempre infrutíferas as tentativas de separação das “siamesas” levadas a cabo por alguns professores armados em cirurgiões. Mas ambas sabiam que esse momento ía chegar fisicamente. E o momento chegou. Como chegam todos os que acabam com alguma coisa que naquela idade nos parece eterna, para dar seguimento ao percurso normal da vida. Uns anos depois, a Anita mudou para o Liceu, e o contacto com a outra Anita foi-se perdendo, mas ainda hoje, 30 anos depois, no dia 25 de Março de cada ano, a Anita lembra-se da amiga e diz-lhe em silêncio “Parabéns, Ana…” E assim termina este livro da Anita. Não porque não houvesse mais nada para contar, haveria muito mais. Mas porque nenhum dos teclados da Anitas é impermeável. P.S: O moço loiro da capa, existiu, mas não foi naquele dia.

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ANITA MAMÃ

Corria o mês de Abril de 1991 quando a Anita soube a boa nova. Lá para o final do ano seria mamã. Corria o mês de Junho de 1991 quando a Anita soube a segunda boa nova. Lá para o final do ano seria mamã de dois bebés. A segunda boa nova apanhou a Anita de surpresa e a sua reacção não foi das melhores, chorou quase ininterruptamente durante 15 dias, ainda hoje não sabe explicar muito bem porquê. Medo de que alguma coisa corresse mal, talvez? Medo da responsabilidade? Convenhamos que decidir ser mãe ou pai é uma decisão importante, mesmo sendo um desejo que acomete quase todos em determinada altura da vida. Quase todos desejam a partir de certa altura, deixar de ser a pessoa mais importante das suas próprias vidas, cedendo, de uma forma natural e voluntária, esse grau de importância a um filho. E quando este desejo vem a dobrar, a responsabilidade e o trabalho também. Mas recompôs-se da notícia e assimilou-a rapidamente, passando a olhar o futuro imediato a 4 em vez de 3. Infelizmente, nem tudo correu bem. Em Setembro de 1991, três meses e meio antes do previsto, cientificamente com 24 semanas de gestação, a Anita foi mamã

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de duas Anitinhas, uma das quais não sobreviveu mais que 10 horas. Eram extremamente prematuras, pesavam apenas 700 e 850 gramas quando nasceram. A que partiu era a mais pesada, e a que ficou iniciou uma batalha pela vida, que envolveu não só a Anita e o pai, como toda a família e toda a equipa de Neonatologia do Hospital de Vila Nova de Gaia. Foram 3 meses de expectativa e de uma mistura de sensações e sentimentos impossíveis de descrever. Em 1991, em Portugal, a informação sobre prematuridade era parca e a Internet era uma miragem, pelo que a Anita, além de estar sempre a questionar os médicos, procurou por casos semelhantes em livros, bibliotecas, mas desistiu… quando leu um desses livros que considerava como aborto um feto nascido até às 25 semanas de gestação. A Anitinha chegou a pesar 425 gramas, uma semana após o nascimento. Correu risco de vida durante um mês. A partir daí, teve recuperações e recaídas consecutivas, até estabilizar e iniciar o período da engorda, no qual se pretendia basicamente que ganhasse peso para ir para casa. Todos os dias, durante os 84 dias em que a Anitinha esteve naquele hospital, a Anita visitou-a todos os dias. Falava com ela, dava-lhe banho numa espécie de saladeira de alumínio e seguia o crescimento do tamanho da mão da Anitinha, que no início era semelhante à cabeça do seu dedo mindinho. No percurso para o Hospital, o Brian Adams fazia de porta-voz da mãe para a filha e quem sabe! da filha para a mãe, com a melodia de “Everything i do, i do it for you”. Em 26 de Novembro de 1991, a Anitinha foi liberada de cuidados de saúde especializados, para passar a tê-los no conforto do lar. Neste percurso doloroso, 4 pessoas ACREDITARAM, pelo menos mais do que as outras, que a Anitinha venceria: a mãe, o pai, o médico e ela própria. Segundo o próprio médico, este era um dos passos mais importantes. Acreditar, sempre! Não abandonar! Um dos flagelos dos bebés prematuros naquela altura, era o de serem abandonados pelos próprios pais assim que os viam, pequeninos, quase que inacabados, indefesos e fracos. Cauteloso, o médico (que veio a ser seu pediatra, que praticamente a adoptou mentalmente e ainda hoje quando a vê transforma o seu ar taciturno com um

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sorriso radiante) avisou os pais da Anitinha que o futuro era incerto, que a probabilidade de sequelas era muito elevada e que só depois de iniciar o período escolar, haveria mais certezas. Muito bebés destes ficam cegos, surdos, ou com deficiências mentais graves. Felizmente, as sequelas graves da Anitinha hoje chamam-se Burzum, Xasthur, Immortal, Acceptus Noctifer e Lifelover, entre outros, que para quem não sabe são bandas de Black Metal. Veste-se de preto, toca piano e estuda Filosofia na Universidade do Minho. Mas enfim, podia ser muito pior e com isto, vive-se bem. (Estima-se que em Portugal, 11% dos bebés nascem antes do tempo, e actualmente as crianças que nascem antes das 28 semanas têm uma sobrevivência de 70%, e dos que nascem antes das 30 semanas, 80% não têm problemas de desenvolvimento. Estas percentagens estão intimamente ligadas à incidência de gravidez gemelar, que é o factor de risco principal tanto da prematuridade como do baixo peso ao nascer. As grávidas abaixo dos 19 e acima dos 40 anos, com comportamentos de risco, fumadoras, com má vigilância da gravidez têm também riscos acrescidos. O acompanhamento e proximidade, física e psicológica, dos pais é considerado um dos factores propulsionadores de sucesso, mas ainda hoje é difícil a estas unidades especializadas evitar o abandono dos bebés, que a maioria das vezes é motivado pelos sentimentos de ansiedade, confusão, angústia e desapontamento pelo aspecto físico do bebé ser bastante diferente do imaginado.)

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ANITA NA VCI

Corria o mês de Junho de 1996 e para a Anita era apenas mais um dia de trabalho, mas a maioria dos portugueses aguardava expectante. Nesse dia, Portugal jogaria contra a Turquia, na primeira fase do Euro 1996. Vinda sabe-se lá de onde, a Anita dirigia-se para a Zona Industrial do Porto, ao volante da sua Ford Atlanta de serviço, bastante castigada em quilómetros por um antigo colega. Mesmo ali por detrás do Foco, na VCI, sentido sul-norte, eis que a mulita decide começar a soluçar e desata a fumegar, ao ponto da Anita não conseguir ver um palmo à frente do nariz e ser obrigada a parar. Saiu da viatura e o panorama do lado de fora não era mais animador. Debaixo do capôt saiam nuvens e nuvens de fumo, como que a anunciar incêndio, senão explosão, iminente. Preocupada e sem saber o que fazer, a Anita ligou ao colega da Sede que trata da gestão das viaturas de serviço e tentou explicar-lhe o problema do ponto de vista feminino, tendo sido instruída a abandonar a viatura de imediato, colocar o triângulo, e esperar na berma, que ele mandaria um reboque o mais urgente possível. E frisou que em caso algum a Anita deveria voltar à viatura, devido à possibilidade de uma tragédia acontecer. É que fica muito mais barato a uma seguradora pagar uma perda total de uma viatura do que um seguro de vida de uma pessoa.

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A Anita, mocinha bem mandada, seguiu à risca as instruções do colega e ficou à espera na berma da VCI, de costas para o edifício do Foco, com a viatura literalmente estacionada na faixa do meio, e uma grande fila de trânsito a formar-se. O pessoal, irritado por ir chegar atrasado ao jogo, mandava-lhe bocas tipo “Devias era ficar em casa a lavar a loiça!....”, “Onde é que tiraste a carta?? Não te ensinaram que não se estaciona no meio da rua??” e outros não admitidos numa página séria como é o Jackpot, aos quais a Anita ía respondendo com um manguito. Então mas isto admite-se? Estava uma pessoa em apuros e ainda tinha que ouvir aquilo? A Anita nem sonhava que Portugal jogava e mesmo que sonhasse, isso não tinha importância nenhuma para ela, comparado com o compromisso a que ía faltar por causa daquele contratempo. Eis que ao longe, avista um agente da polícia que se dirigia ao seu encontro de mota, adiante designado por Agent J e já vão perceber porquê. Fisicamente imponente, o Agent J estaciona a mota e dirige-se à Anita: - Então, o que é que lhe acontexeu, menina?

A Anita lá explicou o sucedido, ao que o Agent J replicou: - Maj a menina não pode deixar o carro no meio da rua, valha-me Deuj! Então, olhe só a fila de trânjito que se está a formar… A Anita respondeu-lhe: - Sr. Agente, tenho 2 filhos para criar e o meu colega foi bem claro. Não devo entrar no carro de modo algum, porque aquilo pode explodir. Já foi chamado o reboque e tenho que aguardar. - Maj tem que tirar dali o carro, valha-me Deuj… - Olhe, Sr Agente, eu não vou. Mas se quiser tirar o Sr Agente, aqui tem a chave… O agente estava nervoso e começavam a ser visíveis umas gotas de suor na testa e na parte superior dos lábios. Respondeu:

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- Então eu é que vou tirar o carro?? Eu não poxo abandonar a moto! Além dixo, o meu comandante mandou-me para aqui para a proteger, por causa dos axaltos que tem havido nesta jona, e xó estou autorijado a deixá-la quando alguém a vier buscar e a viatura já tiver xido levada pelo reboque. A Anita estava a achar aquilo estranho e apressou-se a perguntar como é que o comandante sabia que ela estava ali, ao que o agente lhe respondeu que a polícia dispunha de uma ligação às câmaras de trânsito, para agir nestes casos.

O Agente acrescentou, cabisbaixo, olhando na direcção sul tentando avistar o desejado reboque, e estalando a língua: - Logo hoje que ía ver o jogo, caraxas. A Anita olhou para ele e levantou a sobrancelha, pressentindo que ele estava ali mesmo obrigado e mortinho para se despachar. - Mas que jogo? – perguntou ela. O agente pareceu um bocado comprometido e explicou-lhe que Portugal ia jogar contra a Turquia. De repente, consciente de estar a fazer algo que provavelmente não devia, mas a que o seu lado de adepto fervoroso não resistiu, começa a tirar o capacete da cabeça e diz à Anita: - Xegure-me aqui. E não xaia de ao pé da mota!… espere aqui por mim que vou estaxionar o carro na berma num xítio onde não estorve e volto já. E lá foi ele. E desapareceu no horizonte da VCI, à procura de um sítio onde pudesse estacionar o carro na berma sem estorvar, o que realmente deve ter sido difícil. Quando deu por si, a Anita tomou consciência que estava de saia cor-de-rosa e blusa branca, saltos altos e toda pipi, com um capacete de polícia debaixo do braço e ao lado de uma moto da polícia, o que deve ter parecido estranho e caricato à maioria dos automobilistas que ali passavam e que continuavam a mandar bocas, mas mais suaves, tipo “Sra Agente, esqueceu-se da farda!” ou “O que é que fizeste ao bófia?” etc etc.

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O Agente J nunca mais voltava e a Anita começou a estranhar e a pensar para si própria “Que raio! Mas onde é que o homem foi estacionar o carro??” Ainda lhe passou pela cabeça que ele lhe tivesse levado o carro para ir ver o jogo, ou que se calhar era um polícia disfarçado que tinha acabado de lhe roubar a carrinha, mas como ela ficou com a moto e o capacete, perdeu logo essa ideia doida, e já de si estranha. Ser assaltada por um polícia de mota havia de ser uma coisa difícil de explicar. Finalmente, lá avistou o agente a caminhar na sua direcção, custoso e cansado, provavelmente, pelo arrasto dos seus cento e alguns quilos, numa tarde de calor pela VCI. - Então o reboque? – perguntou ele, ainda a uns 10 metros de distância da Anita, tal era a ânsia. - Ainda não chegou. Com este trânsito…! – respondeu a Anita. O Agente J olhou para ela de soslaio como que a lembrá-la que o trânsito tinha sido provocado pelo facto de ela ter estacionado o carro no meio da rua, mas nada disse. Apenas olhava para o relógio de minuto a minuto. - E depois ainda tenho que esperar pelo meu marido, que me vem buscar – acrescentou a Anita – mas o Sr Agente pode ir embora se quiser que eu fico bem. - Não poxo, menina! – respondeu ele, já exasperado – Já lhe disse que xó quando o carro e a menina estiverem despachados, é que poxo sair daqui. A Anita ficou com pena dele, que estava cada vez mais vermelho e transpirado e disse-lhe: - Não se preocupe Sr Agente, o meu marido não deve demorar. – e decidida a acalmar o homem, perguntou – O Sr Agente de onde é? Ele olhou para a Anita e respondeu curto, parecendo não querer entrar em diálogo: - Rejende! - Resende, bela terra! – exclamou a Anita, que nunca lá tinha posto os pés.

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O Agente olhou para ela visivelmente mais satisfeito e perguntou-lhe: - Conhece? - Então não conheço!? A minha mãe é de Armamar – respondeu a Anita esperando que Resende e Armamar fossem pelo menos em distritos vizinhos. Por sorte, Resende pertence tal como Armamar ao distrito de Viseu e a partir dali, o Agente J pareceu esquecer-se do jogo que estava quase a perder e de tudo o mais e falou pelos cotovelos, enquanto a Anita pensava para si própria que o homem já não morria de ataque cardíaco desta vez. Quando o reboque e o marido chegaram, ele até pareceu ficar com pena de ter que se ir embora e já sorria e tudo. E despediu-se sorridente da Anita: - Vá… porte-xe bem! E não me abandone mais carros no meio da estrada. E cumprimentos à xua mãejinha que é de uma boa terra também! A Anita lembrou-se um dia destes do agente J, por causa do actual campeonato e resolveu dedicar-lhe esta crónica, com a seguinte mensagem: Agente J, se me está a ouvir ou a ler, bem haja por me ter protegido. Espero que tenha chegado a tempo de assistir pelo menos ao golaço do Fernando Couto aos 66 minutos e vê?... nem tudo na vida é futebol!

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ANITA E O GATINHO

Chamava-se Pincelado e era tal e qual o da capa. Era o gato adorado do pai da Anita, nos tempos longínquos dos anos 70, quando ainda vivia na casa da avó. Foi simultaneamente uma das maiores alegrias e vergonhas na vida da Anita. A Anita era, na altura, a filha mais nova de três irmãos, sendo os rapazes 5 e 6 anos mais velhos. As brincadeiras dos irmãos, normalmente, não incluíam a Anita, primeiro porque era “bebé” e depois porque era rapariga, e as raparigas não percebiam nada das brincadeiras dos rapazes. Apesar disso, a Anita com 4 anos, fazia metade da rua clube dos Caçadores só numa roda da sua bicicleta, tal qual uma nativa do circo, e os irmãos mesmo desdenhando, até compravam. Mas nas brincadeiras da Anita também não havia lugar para os irmãos. Brincar às casinhas, tratar da Luisinha, a sua boneca favorita, à qual fez um buraco no pipi e outro na boca, para a ver fazer xixi, lavar-lhe o cabelo encaracolado, que com tanta lavagem ficou a parecer uma mopa, etc. Nestas brincadeiras, o seu companheiro era o Pincelado. A família era composta pela Anita que era a mãe, a Luisinha que era a filha e o Pincelado que era o pai. O Pincelado, talvez atraído pelo jeito calmo e sossegado da Anita, andava sempre

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atrás dela, e a Anita, na inocência dos seus 4, 5 anos, pensava que era por querer brincar. Um dia, no jardim de cima da casa da avó, a Anita improvisou uma mesa, com pratinhos, talherzinhos e copinhos e chamou a família toda para a mesa. Até certa altura, o “pai” Pincelado ainda ficou quieto no seu lugar, mas quando se apercebeu que a Anita queria à viva força enfiar-lhe “caldo verde” (couve galega infantilmente migada misturada com água) pela goela abaixo, começou a ficar inquieto e a querer dar de frosques. A Anita, pacientemente, ía buscá-lo e voltava a sentá-lo no seu lugar, e como qualquer boa esposa, incentivava-o a comer aquela mistela. À quarta ou quinta fuga, a Anita, também como qualquer boa esposa, começou a perder a paciência e ameaçou-o “Pincelado, se não comes, mando-te da varanda abaixo!”. E meu dito, meu feito! As crianças são inocentemente terríveis e desprovidas de qualquer sentimento de misericórdia quando não conseguem o seu objectivo. A Anita ainda se recorda, hoje com imensa pena e remorso, do último olhar aterrorizado do Pincelado que, ainda por cima, quando se viu nas mãos da Anita, a 4 metros do chão, num último esforço para se salvar, decidiu esbracejar e arranhá-la. Ao sentir a dor da garra do pobre animal cravada no seu braço, a Anita largou-o e lá foi ele… a voar. A Anita ouviu um “Minhéuuuu!”, espreitou e ainda o viu a correr para o quintal da vizinha. Não lhe passou pela cabecita o que se passaria depois. E ainda proferiu mentalmente um “é para aprenderes!” No dia seguinte, acordou com o pai a chamá-lo “Pincelado, bsxxxx, bsxxxx, bsxxxx…! Pincelado!” Mas o Pincelado não apareceu. Mais tarde, o pai da Anita acabou por o encontrar morto, debaixo de um arbusto do

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quintal da vizinha, com as 4 patas partidas. Era Inverno, a noite tinha estado terrivelmente fria, e o pobre tinha morrido de frio, impossibilitado de andar para se abrigar. A Anita ainda se lembra da expressão do pai, ao enterrá-lo. Triste, mas enraivecido, sem conseguir imaginar quem teria partido as patas ao bicho e porquê, e a prometer vingança. Só há meia dúzia de anos atrás, o pai da Anita soube o que se passou. A Anita tinha que confessar este crime, e ter o perdão do pai, para não se sentir tão culpada. O pai perdoo-a, mas a culpa permanece. Apesar disso, a Anita continua a admirar-se com a sua resposta infantil aos contratempos. É certo que tirar a vida a um animal é condenável e imperdoável, mas ainda assim em muitos casos, que bom seria para algumas mulheres poderem atirar os maridos da varanda abaixo, sem sofrer consequências. Com sorte, os piores partiriam as 5 patas…

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ANITA NO HOSPITAL

Num belo dia do Verão de 1984, a Anita foi com a mãe, como habitualmente, fazer praia para Francelos, quando esta ainda tinha areia e se alugavam as barracas às riscas ao mês. O percurso era sempre o mesmo, desde Laborim até Francelos, numa camioneta da Sequeira Lucas & Venturas, a abarrotar de gente ansiosa por mar e sol, e a chegada ao destino sempre plena de expectativa de se encontrar a bendita bandeira verde, muito calor e pouco vento. Nesse dia, a Anita tinha decidido ir fazer uma visita à amiga, que habitualmente fazia praia em Miramar, e como o dia estava convidativo e o vento ameno, fê-lo caminhando pela beira mar. Chegada ao destino e depois de encontrar a amiga, face ao calor intenso, decidiram as duas tomar um refrescante banho de mar. A água estava gelada, mas o contacto com a água fresca nem foi tão custoso como habitualmente e foi praticamente imediato. Ao fim de alguns minutos, talvez pela mudança brusca de temperatura, aliada ao facto de se encontrar nos dias difíceis, a Anita começou a sentir-se indisposta dentro de água. Não deu muita importância ao facto, até começar a ver o mar rodar à sua volta e a sentir umas cólicas renais intensas, que a obrigaram a pedir ajuda à amiga para sair da água. Convencida que com o repouso na areia se restabeleceria, esticou-se ao sol para

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descansar e aquecer. Mas a indisposição acentuou-se ao ponto de quando a Anita deu por si, estavam a enfiá-la numa maca e a transportá-la para o hospital, na companhia da amiga. Lembra-se de abrir os olhos, já no hospital, e ter uma agulha nas veias a transportar um liquido milagroso cor de sangue que não era sangue mas que rapidamente a fez sentir-se como nova. Ao fim de uma meia hora, a Anita, que ainda hoje não sabe muito bem o que se passou, estava despachada com um médica simpática a dar-lhe alta e a mandá-la para casa descansar. Assim que saltou da maca, a Anita lembrou-se de uma coisa muito importante e perguntou repentinamente à médica “A minha roupa??” A médica olhou para ela e respondeu “Não trouxeste roupa, vieste assim na ambulância…” “Claro!” lembrou-se a Anita. A roupa tinha ficado em Francelos! Ora, naquela altura, telemóveis eram uma miragem, não tinha trazido nada consigo. Nem dinheiro, nem roupa, nada… Olhou para a médica com intenção de lhe perguntar como fazia para ir para casa, mas ela já se tinha afastado para se ocupar de outro doente, em muito pior estado… Meio perdida, olhou na direcção da porta, de que a separava um corredor enorme, atafulhado de doentes em macas e médicos a correr de um lado para o outro, ou parados a conversar. Olhou por si abaixo, e para o minúsculo biquíni que trazia e pensou “Como é que eu vou passar neste corredor nestes modos? E lá fora? Estará alguém à minha espera?? Olhou outra vez para a porta. Pensou. E decidiu. “Se tens que o fazer, fá-lo como deve ser!…” E carregou no PLAY daquele botãozinho imaginário que temos no cérebro, quando queremos pôr a tocar uma música ou uma letra.

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A música começou a tocar: TA TA TAN TA TA TAN ---- TA TA TAN TA TA TAN e logo a seguir ouviu a voz potente da Etta James: I DON’T WANT YOU TO BE NO SLAVE I DON’T WANT TO WORK ALL DAY E incentivada, iniciou o seu percurso passerelle, de cabeça levantada e andar bamboleante. Ao fim dos primeiros metros, sentiu as cabeças dos médicos que falavam no corredor voltarem-se na sua direcção, à medida que as palavras eram cortadas a meio… Abalada por começar a ser o centro das atenções, sentiu a sua confiança esmorecer, mas agora não podia voltar atrás. E enquanto a Etta berrava ALL I WANT TO DO IS WASH YOUR CLOTHES, recorreu mais uma vez à tecnologia cerebral para colocar aquele percurso em câmara lenta e o tornar mais parecido com um anúncio publicitário. As cabeças voltavam-se à sua passagem, os doentes (masculinos) calavam os seus gemidos, (ah pois!! Com 18 aninhos, o que queriam?) provavelmente julgando-se a alucinar. Por um momento, o hospital deixou de ser hospital para passar a ser um anúncio da Coca-Cola. A porta para a rua já estava perto, já não faltava muito, Graças a Deus… (que a ameaçava lá de cima com uma grande régua na mão, como quem diz “Isso faz-se? Vais levar…” Os gemidos dos doentes transformavam-se rapidamente de um “Aiiiiiii” para um “Ohhh” mas o silêncio… o silêncio que se fez no espaço, e que contrastava com a voz da Etta James na sua cabeça, foi o pior. Quando a sua mão tocou a maçaneta da porta e a Anita se preparava para respirar fundo, eis que a porta se abre e afinal do outro lado da porta, não era a rua, mas a sala de espera dos doentes e a zona de inscrições. Completamente a abarrotar de gente, mulheres na sua maioria, que fizeram com que a Etta James desaparecesse

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sob uma Anita, acabadinha de sair da casca. Preparava-se para desesperar quando lhe surge a amiga com um ar preocupado “Então, estás melhor?? O meu irmão foi a Francelos avisar a tua mãe. E eu vou chamar um táxi para nos levar a casa…” O olhar gozão do taxista quando a viu a sair do hospital e entrar de biquíni no seu táxi também foi memorável, mas o que a Anita lhe apeteceu mesmo dizer naquele momento foi: “Obrigada, Meu Deus, pelos amigos! Principalmente aqueles que não desaparecem no meio dos telediscos.”

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ANITA E O 1º EMPREGO

A Anita devia ter uns 17 anos, quando decidiu trabalhar. Tinha ouvido uma amiga dizer que havia um lugar de administrativa vago num escritório na Rua da Alegria e onde poderia obter mais informações. Se bem o pensou, melhor o fez. Meteu-se a caminho e lá foi ao tal lugar onde lhe poderiam dar mais informações, na Rua Passos Manuel. O escritório ficava situado no 1º andar de um prédio, mas a Anita encontrou-o fechado. Por baixo, havia um quiosque e uma senhora simpática, que lhe explicou que os donos daquele escritório só lá estavam de vez em quando, mas que também tinham um outro escritório na Rua da Alegria, que estava aberto o dia todo. Mas a senhora não sabia o número da porta, só sabia que era “lá para o meio” e num 5º andar. Sem desanimar, a Anita meteu-se a caminho e quando achou que estava “lá para o meio” da Rua da Alegria, começou a tocar nas campainhas dos prédios que lhe pareciam escritórios e a perguntar se era ali que procuravam uma administrativa. Não foi preciso procurar muito, ao fim do 3º ou 4º prédio, a senhora que atendeu, mandou-a subir. Era a Dª Luísa.

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Achou piada à coragem da miúda, a tocar nas campainhas todas e foi falar com o patrão. Logo depois, disse que o Sr Coutinho a ia receber. A conversa foi mais ou menos esta: - Então, procuras emprego? - Não, procuro trabalho – respondeu a Anita. Ele levantou a sobrancelha e olhou para ela. Pareceu a achar-lhe graça. - E o que sabes fazer? - Muitas coisas, mas nada relevante para este trabalho. Mas aprendo rápido! - E tu queres que eu acredite que andaste a tocar às campainhas à sorte até chegares aqui, só porque alguém te disse que havia um lugar vago num escritório da Rua da Alegria? - Não quero que acredite, o senhor é que sabe. Mas na verdade, foi o que aconteceu… Mais uma vez, ele sorriu, e perguntou-lhe:

- Sabes que o que precisamos é alguém que ajude a Dona Luísa nas tarefas administrativas, ir ao banco, aos correios, etc. Mas é um part-time e o ordenado são 6 contos. - É exactamente o que procuro, porque ainda estou a estudar. Não vejo dificuldade nessas tarefas, e posso aprender a ajudar a Dª Luísa noutras coisas que sejam necessárias. - Muito bem, nesse caso, deixa os teus dados com a Dª Luísa. Começas segunda feira. E a Anita, que tinha saído de casa nesse dia, dizendo à mãe que ia procurar trabalho, chegou a casa e disse à mãe que tinha arranjado trabalho e começava 2ª feira.

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Hoje, a Anita até lhe custa a acreditar as campainhas que tocou para chegar ao seu objectivo e a coragem que teve para o fazer. A idade torna-nos mais orgulhosos, perdemos a capacidade de acreditar. Na verdade, como alguém já disse, naquele dia a Anita só alcançou o seu objectivo porque estava sozinha e não havia ninguém para lhe dizer “Se não sabes o número da porta, nunca vais encontrar o tal escritório”. E provavelmente também, porque estávamos no Portugal de 1983. Hoje, na situação económica que o país atravessa, mais sentido faz procurar, ir à luta, ser proactivo, ser preserverante, ser diferente, aportar valor ou vontade de o fazer a quem tem trabalho para oferecer. A Anita percebeu a importância do que tinha feito, quando a mãe lhe confessou há pouco tempo: - “Desde aquele dia, nunca mais me preocupei contigo…”

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ANITA VAI À IGREJA

Todos os domingos de manhã, a Anita observava com alguma curiosidade a avó e os dois irmãos mais velhos saírem de casa, envergando as melhores roupas e regressarem cerca de uma hora e meia depois. Num desses domingos, enquanto a avó se vestia, perguntou-lhe: - Onde vais, vó? - Vou à missa com os teus irmãos! Quando fores mais crescida, também hei-de ir contigo… - O que é a missa? – perguntou ela, na curiosidade ávida dos seus 5 anos. - A missa é uma festa que se faz todos os domingos na Casa do Senhor – explicou a avó, de forma simples, para que ela entendesse. - E porque é que eu não posso ir a essa festa? - Porque ainda és pequena. Mas daqui a um ano, quando fores para a catequese, também hás-de ir. É naquela casa grande no fim da rua, lembras-te? Onde fomos no outro dia, ao baptizado do teu primo? A conversa ficou por ali e a Anita lá observou mais uma vez, com alguma tristeza, a avó e os irmãos a partirem para a missa. A Anita ficou um bocado desiludida com o tal Senhor. Não via razão para as

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crianças mais pequenas não poderem ir a casa dele, e achou aquilo um bocado injusto. Pois a avó contava-lhe, às vezes, histórias sobre o Senhor, e que Ele dizia “Vinde a mim as criancinhas” e que Ele as protegia sempre. Mas afinal aquilo era só conversa… Rapidamente, arranjou outra coisa para fazer, no seu local favorito: a casa das ferramentas do pai. Achou que a casota do cão estava velha e decidiu que ficaria muito mais bonita pintada de amarelo. Ela sabia que o pai tinha tinta amarela na Casa das Ferramentas. Arranjou um pincel que estava ali mesmo à mão, mas a tinta era outra coisa: estava na última prateleira do armário e a Anita não lhe chegava. Estudou as alternativas e traçou um plano: o pé esquerdo na cadeira, o direito no parapeito do armário, um impulso e já lá devia chegar. Assim fez, a quando a sua mãozita alcançou a lata da tinta amarela, faltava-lhe um Danoninho (que naquela altura não havia) para a conseguir puxar. Deu um impulso ao corpo, esticou a mão e eis que conseguiu puxar a lata… Mais um pouco… Aí vem ela! A Anita não estava preparada para o que se passou a seguir. A lata estava mal fechada e entornou-se toda em cima dela! A Anita sentiu uma coisa fria e pegajosa na cara e nas mãos, mas ficou mesmo aflita foi quando viu os seus lindos cabelos cacheados (que tanto lhe custava a pentear) cheios de tinta! Já para não falar no babeiro azul que trazia por cima da roupa, que de azul já pouco tinha… A mãe andava entretida nos afazeres domésticos e não se apercebeu de nada, mas a Anita sabia que a coisa ía ficar má para o seu lado, assim que a mãe se apercebesse. Aquilo era uma verdadeira ASNEIRA! Os adultos tinham a mania de dizer aos mais pequenos “Não faças asneiras” quando eles só estavam a brincar e às vezes até levavam umas palmadas sem saber porquê… Mas aquilo era mesmo uma asneira a sério! As palmadas estavam por isso garantidas e quem sabe o castigo que mais temia: ter que dormir depois do almoço! Ainda por cima, não estava lá a avó que a safava sempre dos castigos… Que fazer?! Pois o melhor era ir ter com a avó, antes que a mãe a visse. Além disso, estava lá o

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tal Senhor que protegia as criancinhas… Boa ideia, talvez de safasse de uma valente trepa. Deixando um rasto de tinta amarela, desde a casa das ferramentas até ao portão de saída, a Anita aventurou-se sozinha em direcção à Igreja de Santo Ovidio, que ficava perto da casa da avó, na rua Clube dos Caçadores. A rua estava praticamente deserta, e só ao chegar mais perto da Igreja, a Anita começou a ver pessoas. Nem se lembra de atravessar a rua, deve ter procedido como se estivesse no passeio e teve a imensa sorte de naquela altura os carros não serem tantos como hoje (a Anita ainda não tinha crescido para os financiar) e de no momento não ter passado nenhum. Quando chegou à porta da Igreja, já algumas pessoas olhavam para ela, incrédulas, mas sem se pronunciarem.

Hiiiii… a tal festa estava cheia até à rolha! Até havia pessoas do lado de fora da porta! Como é que ia fazer para encontrar a avó? Bom, fácil! Perguntando… Começou a furar por aquela imensidão de gente, deixando obviamente a sua marca amarela nas roupas de domingo do pessoal, e de quando em quando, com a sua mãozita amarela, puxava um ou outro casaco, ou um ou outro vestido e perguntava: - Viu a minha avó? As pessoas olhavam para ela e afastavam-se de imediato, como se ela tivesse lepra, e começavam a tentar limpar as marcas de tinta que ela lhes deixava… Algumas respondiam “Não, não sei quem é a tua avó! Tira a mão…” Não é incrível, hoje ver como aquelas pessoas tementes a Deus, praticantes da religião e bons costumes, tão bons cidadãos que até iam à Missa todos os domingos, tratavam uma criança de 5 anos perdida e à procura da avó?? Uns anos mais tarde a Anita concluiu que deviam ir todos os domingos à missa, porque pecavam muito durante a semana e era para se redimirem… As pessoas estavam todas muito caladas e só falavam de vez em quando, todas ao mesmo tempo, mas a Anita não entendia o que diziam. Achou que aquela festa não

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era nada divertida e as pessoas também não deviam estar a gostar, pois estavam todas muito chateadas, principalmente quando ela lhes tocava… Mas sem ver de onde vinha, ouvia a voz de um homem, que falava sem parar, e também dizia coisas que a Anita não entendia. Mas parecia ser o mais divertido, pois falava mesmo muito. E foi seguindo na direcção da voz… Finalmente, depois de furar e pintar de amarelo mais umas quantas pessoas, avistou o tal homem, com um vestido cor-de-rosa e que estava mais alto do que os outros e com os braços abertos, como se segurasse um bebé no colo. Pensou “olha, aquele está mais alto, dali deve ver a minha avó, vou perguntar-lhe!” E lá se dirigiu ao Padre, que parou de falar quando a viu… e lhe dirigiu o mesmo olhar cheio de lanças, que se viria a repetir 17 anos depois e já descrito no “Anita Casa-se”. A Anita aproveitou o silêncio total e naquela imensidão de gente, a sua voz de menina ecoou: - O SENHOR VIU A MINHA AVÓ??? Silêncio total. Como ninguém respondeu, a Anita subiu mais um degrau ou dois, puxou pelo “vestido” do padre, agora cor de rosa e amarelo, e perguntou novamente: - VIU A MINHA AVÓ OU NÃO?? De repente, a Anita sentiu-se pegada ao colo por alguém que não se importou de ficar amarelo, o seu primo Francisco, com 12 anos, que lhe deu um beijo e disse “Onde te meteste?? Anda tudo preocupado à tua procura…” E depois de pedir desculpa ao padre, saiu a correr pela sacristia, onde a esperavam cá fora os irmãos, a avó, e a mãe que mais parecia um búfalo furioso, que tinha seguido o rasto da tinta amarela e parecia prontinha a mostrar à Anita que ela tinha razão quando pensava que aquilo era mesmo uma asneira. Mas claro, a avó não deixou. As avós tem aquela capacidade que toda a gente devia ter de conseguirem amar os netos incondicionalmente sem nunca se

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chatearem, façam eles o que fizerem. A Anita na Igreja, além de hoje ser um conto, naquela altura foi razão de falatório durante algum tempo, mas a verdade é que naquele dia, quem estava na missa teve um domingo diferente e uma história para contar ao almoço. E naquele dia também, a Igreja teve mais cor. Pelo menos, amarela… Apesar das circunstâncias caricatas, esta foi a resposta da Anita, quando os pais lhe perguntaram porque tinha ido para a Igreja sem dizer nada a ninguém: - Porque a avó disse-me que o Senhor protege as crianças e que Ele disse “Vinde a mim as criancinhas…” E eu fui! Lá em cima, Deus, feliz, ria-se mais uma vez com as façanhas da Anita enquanto cantava e dançava o último hit de Barry Ryan “Sanctus Sanctus Halleluiah”, acabadinho de chegar ao podium naquele ano de 1971 e que aliás fica muito bem a acompanhar esta crónica. Deixo-vos o link: http://www.youtube.com/watch?v=FCHzebmziBk A Anita tem com Deus este pacto de humor. Ela vai fazendo umas patetices que o fazem rir e ele, em troca, vai-lhe amenizando as tareias, naquela altura da mãe e hoje da vida!

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ANITA E O “INTRUSO”

Uns anos depois de casar, a Anita e o seu Pedro decidiram mudar de casa e foram viver para um último andar no centro da cidade. Os filhos eram pequenitos ainda e o dia-a-dia desgastante, nessa altura. Entre trabalho, marido e filhos, o cansaço era tanto que se lhe oferecessem uma viagem com tudo pago para qualquer lugar do mundo e lhe perguntassem para onde queria ir, a Anita responderia “Para casa, dormir.” Finais dos anos 90. Filhos com banho tomado e a dormir, sem estarem doentes. Marido em jantar com amigos. Sofá convidativo. Media-luz. Televisão baixinho. Hmmm, a noite das noites! O verdadeiro oásis. O sonho de qualquer mulher. A cena e o ambiente eram convidativos demais para resistir… De pijama confortável, esticou-se no sofá e ainda deve ter visto durante uns bons 2 minutos o “Médico de Família”. Normalmente, aguentava-se uns 5 minutos antes de cair num sono profundo, mas naquela noite o cansaço venceu-a mais rapidamente. Por volta da uma da manhã, a Anita acordou sobressaltada… era inverno e as portadas que separavam a sala onde dormia do terraço estavam fechadas e trancadas. Mas a Anita ouvia o som de passos sorrateiros lá fora. Sorrateiros e apressados, que se bamboleavam de uma portada para a outra. Primeira sensação: medo. Segunda sensação: muito medo.

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Terceira sensação: proteger os filhos. Correu para os quartos, angustiada. Mas eles dormiam profundamente como anjinhos. A terceira sensação mantinha-se. A segunda aumentava exponencialmente. Olhou à sua volta, procurou qualquer coisa para se defender. Agarrou num taco de baseball que lhe tinham trazido dos Estados Unidos, para o qual nunca tinha encontrado qualquer utilidade e percebeu que nada na vida acontece por acaso. O taco estava ali por alguma razão. Correu para a sala… pôs o ouvido numa das portadas a ver se descortinava mais passos. Não ouvia nada.. Mas para seu terror, o coração quase lhe parava, soaram fortes batidas numa das portas: PUM, PUM, PUM… A Anita hesitou… mas pensou nos filhos e agarrou o taco com mais força. Aproximou-se da porta e perguntou, com a voz mais segura que conseguiu encontrar: QUEM ESTÁ AÍ?? EU ESTOU ARMADA…!” rezando para que quem ali estivesse se amedrontasse e fugisse. Soou então uma voz conhecida, mas que naquele momento lhe pareceu suspeita: - Estás armada, o (piiiiiiiiiii) !…. Abre-me a porta! Como a Anita não reagiu, a voz insistiu, parecendo à Anita soar meio desesperada:

- Sou eu. Abre-me a porta! Parecia a voz do Pedro, mas a Anita estava tão aterrorizada e desconfiada que fosse um truque, que perguntou: - Tu quem?! Afinal, estava num 8º andar, trancado por dentro, e lá fora estava um intruso num terraço a que não havia acesso pelo exterior. Como podia ser o Pedro? E se fosse o Pedro, porque não entrava pela porta?

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A uma Anita estremunhada, assustada e baralhada, a voz respondeu: - Eu. O teu marido! Esqueci-me da chave!!... Abre a porta… Era a voz do Pedro, mas a Anita ainda não estava convencida… - E o que é que estás a fazer no terraço a esta hora?? Como é que foste aí parar?? Um Pedro furioso respondeu: - Olha, (piiiiiiiiiiiiiiii)… vim de helicóptero!! A Anita a certa altura pensou que estava era a sonhar, porque tudo aquilo era demasiado irreal para ser verdade e beliscava-se a ver se doía. Mas doía. Espreitou lá para fora e conseguiu descortinar um Pedro cansaço e com um ar esgazeado e preocupado. Abriu-lhe a porta. Ele entrou bruscamente… Olhou para a Anita e perguntou: - Está tudo bem? Os meninos? Perante uma Anita desorientada, o Pedro lá explicou que se tinha esquecido da chave e que estava há 2 horas a tocar à campainha. Como ninguém acordou, nem a Anita nem os filhos, o Pedro continuou a tocar insistentemente e tinha passado a certa altura da fúria à preocupação, pensando que alguma coisa tinha acontecido à família, pois parecia-lhe impossível não acordarem com aquela campainha que parecia uma vuvuzela a tocar de seguida. Quem acordou foram os pacatos vizinhos do mesmo andar que já fartos da campainha, carregaram no botão para abrir a porta do prédio. Mas, na altura, o intercomunicador da porta do prédio, estava avariado. O que significava que lá em cima se conseguia ouvir o que dizia quem queria entrar, mas quem queria entrar não ouvia o que diziam lá em cima. Assim, o vizinho (santo vizinho) continuava a carregar no botão para abrir a porta, que estava fechada à chave. Quando isto acontecia, tinha que se descer de elevador para abrir a porta do prédio por dentro.

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Ora, como o Pedro não tinha chave, continuava a tocar e a praguejar, pensando que era a Anita que lhe estava a tentar abrir a porta. O vizinho lembrou-se de pegar no intercomunicador para tentar perceber quem estava lá em baixo, e logo ouviu um “TENS QUE VIR CÁ BAIXO ABRIR A PORTA! ESTÁ FECHADA À CHAVE, CAR… (piiiii) !” de um Pedro furioso convencido que estava a falar com a Anita. O santo vizinho, bem mandado, vestiu o robe e lá foi abrir a porta ao Pedro que ficou estarrecido quando o viu… - Oh, desculpe, era o senhor?? Pensei que fosse a minha mulher… estou a tocar há duas horas e não há maneira de ela abrir a porta. O vizinho confirmou que já ouvia a campainha há muito tempo. Ambos acharam estranho nem a Anita nem nenhuma das crianças acordar. No meio de uma preocupação crescente, o vizinho sugeriu ao Pedro que entrasse por casa dele e passasse de um terraço para o outro, pois talvez alguma das portadas estivesse aberta e ele conseguisse entrar em casa pelo terraço. E foi assim que o Pedro aterrou de “helicóptero” nos sonhos da Anita e lhe provocou um dos maiores sustos da sua vida. E foi assim que um Pedro igualmente assustado, se tranquilizou quando viu que a família estava bem. Uns dias mais tarde, a Anita e o vizinho cruzaram-se no elevador… e ele, entre alguma timidez e o receio de ser inconveniente, balbuciou, meio a sorrir: - A Menina desculpe… mas tem o sono mais pesado que eu já alguma vez vi. A Anita olhou para ele, concordou, agradeceu a ajuda, e acrescentou: - Mas sabe… pesado mesmo era o taco que eu tinha na mão… Escusado será dizer que nunca a Anita teve qualquer tipo de problema com os vizinhos, e que nunca, mas nunca mais, o Pedro se esqueceu da chave!

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P.S: Os piiiiiiiiii’s desta história foram assim traduzidos, porque a sua versão real não se coaduna com as regras de elegância e boa educação que caracterizam o Jackpot.

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ANITA NA CEE

Junho de 2000 (*), no culminar de um longo processo de seleção, a Anita foi convocada para uma entrevista com o Mr. Junot (nome fictício do tipo que ia ser seu chefe) no Conselho da União Europeia em Bruxelas. A viagem foi um terror. Não era a primeira viagem de avião da Anita, mas foi a primeira em que temeu pela vida, não só pelas vezes que o avião entrou numa espécie de hipotermia que o fazia abanar por todo lado, ou por aquelas em que parecia um autocarro a passar por cima de um enorme “polícia deitado”, mas principalmente pela passageira de trás, uma madame toda pipi e cheia de 9 horas, que foi perdendo a “pipice” e a “novehorísse” no decorrer da viagem atribulada, gritou o tempo todo histericamente e no final já parecia uma presidiária, toda desgrenhada, vociferando insultos à tripulação, apesar do marido tentar a todo custo controlá-la. Quando o avião finalmente aterrou e o piloto se dirigiu simpaticamente aos passageiros com as habituais palavras “senhoras e senhores, desejamos que tenham tido uma agradável viagem e esperamos tê-los de novo connosco brevemente”, a doidivanas simplesmente levantou-se, aproveitando-se de um momento de relax do marido, e gritou: “ O QUÊ?? A MIM NÃO ME APANHAS CÁ MAIS, SEU FILHO DA….” Quando chegou a Zaventem, a Anita percebeu que um dos seus sentidos não estava a funcionar. Por uns instantes, ainda pensou que aquele povo se comunicava entre si estranhamente através de uns extra-terrestres ziiiiiiiiiiiiis e piiiiiiiiiiss, mas rapidamente se apercebeu que eram simplesmente os seus ouvidos.

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Tinha instruções para se dirigir ao balcão de informações onde alguém teria toda a informação para lhe fornecer, desde as reservas do hotel aos mapas da cidade e as credenciais para poder entrar no edifício do Conselho. Ah pois, vida de diplomata é assim! Não pagou um tusto, nem ela nem o Pedro que a acompanhava. O problema foi fazer-se entender em francês com a mademoiselle que a recebeu, pois como não se ouvia nem ouvia, a Anita gritava literalmente quando falava e teve ganas de esbofetear a mulher por falar tão baixo, quando na realidade ela falava normalmente. Valeu-lhe o seu Pedro que lá foi arranhando o francês com a funcionária para perceber as instruções e também para saber o que fazer com a mala dos dois, que tinha sido violentada e assaltada. Após a confusão da chegada, foi instalada num quarto de hotel parecido com umas confortáveis águas furtadas, com vista para a Grand Place, a magnífica praça central de Bruxelas onde tudo acontece. Tudo mesmo. Ponto. A Anita não pode explicar melhor o que viu acontecer lá. Tinha o fim de semana para explorar a cidade e ambientar-se ao clima que supostamente seria murcho, enevoado e chuvoso, mas que se mostrava quente, seco e a rondar uns 30 graus. A cidade estava animadíssima no momento, por força de ser anfitriã, juntamente com a Holanda, do Euro 2000 e repleta de estrangeiros, cuja nacionalidade era denunciada pela cor das camisolas que vestiam. A Anita e o Pedro decidiram aderir à moda e foram comprar camisolas de Portugal. E foi vê-los sair pela porta da loja furiosos porque a funcionária primeiro olhou para a outra e, encolhendo os ombros perguntou “Pórtugale???” como quem diz “onde é que fica isso?” e logo e seguida lhes respondeu, em francês claro, “Portugal não temos, pode ser do Brasil?”

“Ainda hás-de ouvir falar muito em nós!!” responderam enquanto se afastavam da loja. E ouviu. E ouviram. Ou Portugal não tivesse chegado às meias finais… O que vale é que a animação nas ruas era tanta que não dava para ficarem aborrecidos muito tempo. Além disso, havia chocolates por todo o lado. E todos deliciosos… Foi o que valeu à Anita porque a gastronomia belga é um desastre. Desde frango

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assado sem sal acompanhado por puré de maça aos mexilhões com batatas fritas, tudo foi pretexto para prometer a si própria um suculento cozido à portuguesa assim que desembarcasse no Francisco Sá Carneiro. À noite, muita bebedeira ornamentava as ruelas do centro, que de algum modo fazem lembrar uma mistura do Porto antigo com o Bairro Alto. "Esplanava-se" e dançava-se nos passeios por causa do calor. Muito U2. Muito Vaya com Dios. Muito Bom Jovi. O menino que faz xixi, conhecido por Manneken Pis, que nas alturas festivas é trajado com as mais diversas vestes, quando a Anita o viu, exibia quase que premonitoriamente uma camisola da seleção francesa. Passado o fim de semana, com muito passeio turístico e muita fominha à mistura, chegou o dia da entrevista no imponente Conselho da União Europeia. O nervosismo não se justificava. Depois de trocar duas palavras em francês com o porteiro, ele olhou-a com aquele brilhozinho nos olhos de quem está longe do que mais ama, e perguntou “é portuguesa, não é?” para logo a abraçar efusivamente assim que a Anita respondeu afirmativamente, com votos de boa sorte e felicidades, e encarregando-se de fazer companhia ao Pedro. Foi apenas uma conversa agradável em francês com o simpático Mr. Junot, que fazia muitas perguntas tipo “o que faria se…?” A Anita tem sempre a sensação quando está no estrangeiro que os portugueses são demasiado exigentes consigo próprios, tão exigentes como nunca ninguém vai ser com eles, de forma que nestas situações safam-se sempre muito bem. E assim foi, passado sensivelmente um mês, lá estava a missiva “Temos o prazer de a informar que foi admitida como funcionária comunitária…. devendo apresentar-se ao serviço a 1 de Setembro de 2000.” E perguntam vocês: e tu não foste, Anita? Não. A Anita não foi porque apesar da lista extensa de regalias, quer para ela quer para a família, a Anita lembrou-se do olhar do porteiro e perguntou-se se valeria a pena trocar a felicidade pela comodidade, este jardim à beira mar plantado pela

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cosmopolita Bruxelas, a isenção de impostos a que teria direito pelo afago da mão da mãe e do pai. Mas principalmente e também, porque no Portugal dessa altura, o primeiro-ministro não mandava ninguém emigrar… (*) Apesar da crónica se situar em 2000, as músicas que referi eram todas das gerações permitidas. TÁ??

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ANITA NÃO É BONITA... Em 1977, um conhecido cantor e compositor do panorama musical português, lembrou-se de lançar um tema que marcaria fortemente a adolescência da Anita e lhe viria a provocar graves distúrbios psicológicos e dificuldades de relacionamento social. Falo de José Cid. Tinha a Anita 11 anos quando começaram a soar repetidamente nas rádios nacionais os acordes de “A Anita não é bonita”. Este tema além de ser uma constatação que a Anita não precisava que lhe lembrassem a toda a hora, era também um atestado de burrice à maior parte das Anitas deste mundo, graças à segunda parte do refrão “mas acredita que a noite cai”, pois punha a hipótese de haver outras Anitas que não acreditavam que a noite caísse. Empregando simultaneamente no mesmo tema o primeiro disfemismo atrás referido, logo seguido por uma verdade indiscutível, esta abécula do José Cid traumatizou milhares de Anitas por esse Portugal fora. Valeu à nossa Anita uma vizinha e amiga, tipo “Maria-rapaz” que a defendia dos ataques cruéis da rapaziada da mesma idade que se punham a cantar “a Anita não é bonita” sempre que a Anita saía à rua. A Anita recorda-se de uma ocasião em que duas irmãs, calmeironas, arruaceiras e de porte físico imponente, desataram a cantarolar o tema, quando a Anita passava com a tal amiga. A amiga “Maria-rapaz” sabia que a Anita ficava melindrada com aquilo e meteu mãos à obra. Sem que a Anita se apercebesse muito bem como, as duas irmãs ficaram a parecer ouriças, ambas a berrar em cima de uma plantação

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de “rubus fruticosus”, planta mais conhecida por silva. A verdade é que a partir deste acontecimento, a Anita recuperou algum amor-próprio e já não ouvia a cantoria com tanta frequência. De tal forma se fortaleceu que o segundo atentado, levado a cabo uns anos mais tarde, por um trio de Odemira, pago pelo José Cid, não teve o mesmo efeito devastador na sua personalidade, contribuindo até para, de alguma forma, sentir que mesmo que não fosse muito bonita, tinha arrasado o coração de um elemento do sexo masculino. Com “Maldita tu, Ana Maria”, o cabeça desta conspiração atroz e cruel contra uma menina de 11 anos, tentou provocar um sentimento de remorso na vítima, com falsas acusações de traição e tentando denegrir a imagem da nossa Anita perante a sociedade. Não conseguindo, diz-se que emigrou para Nova Iorque, onde viu nevar… A Anita teria preferido que à imagem de El-Rei D. Sebastião, tivesse desaparecido do mapa, mas contenta-se que se tenha exilado numa cabana junto à praia, onde se fizer estragos ninguém nota. À guisa de fecho, meu caro José Cid, desejo que as tuas músicas nunca cheguem sequer ao 100º lugar de um TOP de 20! E a vocês, queridos leitores do Jackpot, deixo a prova que com a Anita ninguém se mete. Agora já sabem porque é que o José Cid é cego de um olho…

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ANITA E A PIDE... Tinha a Anita aí os seus 6 anos quando, um belo dia, enquanto brincava no jardim da casa da avó, foi visitada pela “Pide”. A Anita já tinha ouvido falar na Pide e uma amiga tinha-lhe explicado que a Pide eram uns homens maus que mandavam em toda a gente. Desconhece-se se aquela visita terá sido encomendada por Salazar uns anos antes, já que diz-se, era um homem com visão de futuro, e que poderá ter antecipado a influência nociva destas crónicas na sociedade portuguesa. Corria, então, o ano de 1972, quando dois senhores engravatados surgiram no portão da avó e abordaram a Anita, mais ou menos desta forma: - Olá pequenita! A Anita estava avisada para não dar conversa a estranhos e olhou-os desconfiada, respondendo timidamente: -Olá… - Então tu vives nesta casa com quem? – perguntou o “Pidoso” tentando ser simpático. - Com os meus pais, os meus irmãos e a minha avó…

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- Ah, muito bem. E diz-nos, tu costumas ver televisão? A palavra “televisão” fez soar o alarme na cabecita da Anita. Os pais tinham avisado para responder sempre que não tinha televisão caso alguém lhe perguntasse isso, caso contrário viriam uns homens maus que levariam a televisão para sempre. Ora, depois da conversa com a amiga, a Anita deduziu que esses homens maus eram da Pide. - Não – respondeu a Anita – Não tenho televisão. - Hmm, e desenhos animados, costumas ver? Desavergonhados, exploradores de criancinhas, maquiavélicos… - Sim! – respondeu prontamente a Anita – recordando os momentos divertidos que os desenhos lhe proporcionavam. - Então, mas se não tens televisão, como é que vês os desenhos animados? A Anita percebeu naquele momento que estava na presença dos “homens maus”, o seu coraçãozito bateu acelerado perante a ideia de lhe levarem a televisão. Ficou atrapalhada, engasgada e fez o que sabia fazer melhor… Abriu a boca até trás e começou a chorar. Mas abriu tanto a boca e desatou a chorar tão alto que os dois homens olharam um para o outro, parecendo não saber o que fazer. O pai da Anita, surgiu, seguro como sempre, no cimo das escadas e dirigiu-se aos homens: - Desejam alguma coisa? Os homens responderam: - Sim, somos fiscais audiovisuais. Temos que verificar que não existe nenhuma televisão nesta casa, pois como sabe, caso exista, teremos que a levar, uma vez que não paga taxas. A Anita estava em pânico. Apetecia-lhe bater na “Pide” que se preparava para lhe levar a sua adorada televisão. O pai respondeu:

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- Já cá estiveram, mas estejam à vontade para verificar – e fez-lhes sinal para passarem à sua frente. Assim, que os homens passaram, o pai da Anita olhou para ela e fez-lhe sinal para não abrir a boca, colocando o indicador verticalmente em frente à boca. A Anita não percebeu grande coisa do que se passou a seguir, mas quando chegaram à sala, a televisão não estava lá. Em lugar dela, um paninho de renda feito pela avó, decorava a mesa, sob uma jarra de hidranjas frescas. Os homens ainda quiseram ver outras divisões, mas não avistando nenhuma televisão, acabaram por desistir, despediram-se e foram-se embora. Quando saíram, a avó e o pai explicaram à Anita que a avó tinha avistado os homens pela janela e apercebendo-se que perguntaram pela televisão, apressou-se a escondê-la e a apagar os sinais da sua existência. A Anita perguntou ao pai: - Pai, porque é que a Pide não quer que as pessoas vejam televisão? O pai olhou para ela, riu-se e respondeu: - A Pide? Onde foste buscar essa ideia…? Vá, vai lá pedir à avó que te ligue a televisão que vai dar a Pipi. A Anita foi. Mas o pai que não pensasse que a enganou. A Anita sabia muito bem que os fiscais da televisão eram da Pide. E desenganem-se aqueles que pensavam que as funções da Pide se restringiam à fiscalização de estrangeiros, da sua entrada ou permanência ilegal em território nacional, ou aos crimes de emigração clandestina, ou até aos crimes contra a segurança exterior e interior do Estado. Não! A Pide existiu em Portugal para evitar que a Anita e as outras criancinhas da mesma idade vissem a Pipi das Meias Altas. Essa é que é essa…! Pelo menos assim pensou a Anita até ao 25 de Abril de 1974, já que depois desse dia, a televisão ficou tão chata, mas tão chata, que raramente passava desenhos animados ou a Pipi, e só o que se via eram homens armados e engravatados a falar

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e a gritar “viva Portugal, viva a Liberdade!” e às vezes falava devagarinho e com voz grossa um senhor com um fato cheio de medalhinhas e que estava sempre carrancudo, que mais tarde soube tratar-se do General Ramalho Eanes. A Anita até tinha gostado daquele dia 25 de Abril. Não tinha havido aulas e vieram todos mais cedo da escola. As pessoas gostaram tanto de sair mais cedo das escolas e dos trabalhos que gritavam a bons pulmões “Viva Portugal, viva o 25 de Abril!” Mas depois disso, a televisão mudou… eram tão chatos aqueles políticos a falar, que um dia a Anita chocou o pai ao dizer-lhe: - Pai, tenho saudades da Pide…!

“Se deixássemos as crianças crescerem como são, teríamos somente génios.” (Goethe)

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ANITA E A NOITE DE NATAL As festas de família da Anita eram sempre um momento memorável. Com a família toda reunida, ou do lado do pai, ou do lado da mãe, ou dos dois lados, eram sempre ocasiões com momentos marcantes, hilariantes, e outras coisas acabadas em “antes”, até com um resquício de alegria e drama à moda italiana, mas acima de tudo com muito amor e divertimento. No primeiro Natal de que tem memória, passado na casa da avó onde vivia, o pai Natal trouxe-lhe a sua amada Luisinha, boneca que ainda hoje conserva e uma bola pinchona cheia de cores e brilhantes por dentro. Se teve direito a algo mais, não se lembra. Mas o que teve foi suficiente. Naquela altura, valorizava-se realmente os presentes de Natal precisamente por serem poucos e bem pensados. Mas do que a Anita nunca se esqueceu mesmo foi da visita do velhote de barbas brancas vestido de vermelho, que era suposto entrar pela chaminé da cozinha e colocar os presentes da pequenada, cada um na sua meia, previamente ali pendurada para o efeito. A Anita lembra-se de pendurar uma meia de lá feita pela mãe, por lhe parecer muito maior, logo com espaço para mais prendas do que a meia diária de algodão tamanho 26. Por volta da meia-noite, a porta da sala grande onde se concentrava a família fechava-se e apagavam-se as luzes da cozinha. Era-lhe explicado que se houvesse luz o pai Natal não descia e a Anita lá esperava pacientemente.

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Num momento de distracção dos adultos, conseguiu espreitar pelo buraco da fechadura da porta da sala e pasme-se! viu os olhos do pai Natal, tendo sido a primeira criança de que há registo a fazê-lo… Desatou a gritar histericamente: “Mãe! Pai!! Vi os olhos do pai Natal!... Vi os olhos do Pai Natal!!” e minutos depois ainda não cabia em si de contente e enquanto os irmãos admiravam ansiosos o tanque de guerra e o carro dos bombeiros acabadinhos de desembrulhar, ela ignorava os seus presentes e contava ao pai e à mãe que o pai Natal tinha uns olhos assim grandes, e abria os braços para demonstrar, e que era estrábico. O pai e a mãe entreolhavam-se, sem perceberem, e começaram a questioná-la. - Mas o que é que tu viste? De que tamanho era cada olho? E a Anita respondia exemplificando com as duas mãozitas um comprimento de mais ou menos 40 cms. E os pais insistiam: - E ele trocava os olhos, era?? - Sim, as bolinhas pretas estavam perto uma da outra, quase a chegar ao nariz… E a mãe, conformada, respondeu-lhe: - Olha, deves ser a primeira menina a ter visto os olhos do pai Natal… A Anita confortou-se com aquela ideia… Quanta honra! tantas meninas no mundo e o pai Natal tinha escolhido logo a ela para mostrar os seus olhos. Ora, esta ideia perseguiu-a grande parte da sua infância. Aliás, quando entrou para a 1ª classe e a professora pediu aos meninos para se apresentarem dizendo o nome e a idade, a Anita respondeu logo, cheia de orgulho: - Chamo-me Anita, tenho 6 anos e já vi os olhos do pai Natal!... o que fez com que a turma desatasse toda a rir e a professora a olhasse de soslaio e desconfiada, como quem diz “olha, temos uma engraçadinha…”

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Claro que aquilo foi motivo de chacota na turma e em poucos dias, na escola inteira. A Anita foi tão gozada que começou a duvidar de si própria. Desabafou com a avó, um dia à noite, quando esta a foi deitar: - Avó, os meninos da minha escola não acreditam que já vi os olhos do pai Natal… A avó suspirou, olhou para ela e perguntou-lhe: - E tu acreditas? - Sim, avó, tenho a certeza… eu sei que vi! - Então…se sabes que viste, continua a acreditar e deixa que te falem. Sabes porquê? Porque TU foste a menina que o pai Natal escolheu para mostrar os seus olhos! A Anita adormeceu reconfortada com aquela ideia e aos poucos deixou de se falar nesse assunto na escola e toda a gente se esqueceu. A própria Anita só se lembrava de vez em quando, até que esqueceu quase por completo. Um dia, volvidos aí uns 8 anos daquele Natal, na 5ª feira em que almoçava em casa da avó, ela tinha posto a mesa na entrada da sala de jantar para evitar o cheiro a tinta da cozinha pintada de fresco, de modo que a Anita almoçou virada para a cozinha e avó sentou-se a seu lado. As refeições com a avó eram sempre deliciosas, quer por aquele arroz com trago a louro que a avó fazia divinalmente, quer pelas conversas, pela companhia e pelos mimos constantes, apesar dos seus 13, 14 anos… A meio de uma dessas conversas, o olhar da Anita, ao passar pela cozinha, caiu literalmente “nos olhos do pai Natal”! A Anita parou de mastigar e ficou de olhos esbugalhados a olhar em frente. A avó, apercebendo-se de qualquer coisa, perguntou: - Que foi?! A Anita ainda estava embasbacada a olhar em frente. E a perceber. A entender… E de repente, caiu num riso desenfreado, deitando a cabeça para trás. Rindo-se dela

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própria. Libertando-se com algum alívio daquela fantasma de “ver coisas” que mais ninguém via e que a perseguia há demasiado tempo. Os olhos do pai Natal, mais não eram afinal… do que as pegas da gaveta da mesa da cozinha da avó, cada uma delas com um buraco do lado interior para se carregar com os polegares e abrir a gaveta. O tal estrabismo… Mas a ansiedade da noite da Natal, aliada à inocência e aos sonhos de uma menina de 5 anos, fez com que ao espreitar pelo buraco da fechadura, visse naquelas pegas… “os olhos do Pai Natal”. Wow. Que bonito é ser criança…! “Na infância, o que se ouve ou o que se vê não sobe para o cérebro. Desce para o coração e aí fica escondido.” (Humberto de Campos)

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ANITA E OS FANTASMAS Tenham medo. Tenham muito medo… 1970. Aldeia de São Martinho das Chãs, Armamar, distrito de Viseu. Tinha a Anita 4 anitos e os seus pais lá iam, uma vez por ano, passar uns dias na terra natal da mãe da Anita. Com a Anita pequenita, dois irmãos mais velhos, e a restante famelga da mãe composta por 2 irmãos e 5 irmãs, respectivos cônjuges e filhos, a avó Natércia decidiu por as meninas e as mães a dormir na casa do caseiro, já que não estava lá ninguém e na casa da família os quartos estavam lotados. A mãe da Anita não gostou muito da ideia, pelo facto da casa do caseiro ser mesmo ao ladinho do cemitério, mas… não querendo aumentar a ansiedade de sua mãe, acabou por anuir. A Anita não cabia em si de satisfação, que aventura dormir com as primas favoritas, a mãe e as tias numa casa pertinho do cemitério. Que intrigante! Que adrenalina! Que fora do comum! Que quê? Não se lembra de nada, já que passado alguns minutos dormia profundamente, cansada pela azáfama e brincadeira do dia. Era cedo quando despertou. A mãe estava sentada na cama ao pé de si, a acariciar-lhe os caracóis, com um semblante carregado e umas olheiras profundas.

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- Que foi, mãe? – perguntou. - Nada – respondeu ela, baixinho – dorme… Ensonada, recorda-se vagamente de ouvir o pai e um dos tios a entrar na casa, e a falarem baixinho uns com os outros. E voltou a adormecer. No dia seguinte, levaram a Anita e a prima mais velha a uma senhora da aldeia com aspecto estranho, que as observou. Tinha uns olhos estranhos e dizia coisas esquisitas. Fazia lembrar o tom monocórdico do padre Queirós, mas em vez de falar em Deus, fazia muitas rezas e ladainhas mencionando o Diabo e os espíritos. Quando acabou, disse à mãe da Anita, referindo-se a ela: - Ela está bem. Nesta não entra nada, tem o espírito fechado. É forte… aposto que nem se apercebeu de nada. Dirigiu-se depois à tia, falando da prima Manuela, com uma séria de conselhos sobre coisas a fazer e rezas e rituais a executar. A Anita não percebeu grande coisa, mas muitos anos mais tarde, contaram-lhe que nessa noite, na casa do caseiro, os móveis andaram pelo ar, a prima Manuela, com apenas 9 anos, falou com a voz grossa de um homem, ditando ordens e pedindo coisas. A mãe e a tia, que tinham acordado sobressaltadas com os barulhos, ficaram imobilizadas fisicamente, sem nada poderem fazer ou dizer, como se tivessem levado uma dose de curare, mas apercebendo-se de tudo ao seu redor, nomeadamente da prima Manuela a falar com uma voz semelhante à do Francisco Moreira, a título de exemplo, só para terem uma ideia. Conta a mãe da Anita que as cadeiras e tudo o que as mesas suportavam, rodava no ar. Quando começaram a rodar à volta da cama da Anita, a mãe assegura que nunca na vida teve tanto medo de nada. Diz que a Anita abriu os olhos. A prima vociferava possuída pela tal voz masculina. A Anita olhou para os objectos, e sem dizer uma palavra, levantou uma mão no ar, como que a dizerem-lhe: PAREM! E eles pararam. E aos poucos, tudo voltou ao normal. As cadeiras voltaram aos

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seus sítios, os objectos poisaram suavemente em cima das mesas e dos móveis. A mãe e a tia voltaram a ser capazes de falar e correram aflitas para as filhas. E enquanto uma ficou com as miúdas, a outra foi pedir ajuda… A Anita tinha voltado a dormir profundamente, assim que baixou a mão. Em cima de uma das mesas, abandonados dois copos que a mãe e a tia tinham utilizado para degustar dois copos de vinho do Porto. O pai da Anita desde aquela altura até hoje, afirma que o vinho do Porto era antigo e devia estar estragado. A Anita não sabe. Não se lembra. Era demasiado pequena para ter presente esse momento como certo. Mas a verdade é que anda por aí muita estrangeirada a beber “vintage” sem verem coisas a rodar à sua volta. Dizem os populares lá da aldeia que em tempos um homem se enforcou e deixou uma carta à família. A carta, por razões desconhecidas, ardeu na lareira e a família nunca lhe conheceu o teor. Desde então, o homem enterrado nesse cemitério aproveita as almas “mais fracas” e obriga-as a dizer em voz alta o que ele nunca conseguiu. Por isso, tenham medo. Tenham muito medo quando dormirem ao lado de um cemitério. A não ser que a Anita esteja lá… porque eles andam aí! “Eu não acredito em fantasmas. Mas tenho medo deles.” (Lord Byron)

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ANITA NA NEVE PARTE II Brammm, brammm…. Como prometido há uns meses atrás, aqui está a Anita na Neve Parte II – Vitória da Mulher sobre a Máquina. Consta-se até que já saíram por aí umas fotos, liberadas por um paparazzi menos vulnerável ao suborno. Pois é, a Anita nunca gostou de motos. Mas diz o senso comum que os opostos se atraem e sempre foi perseguida por elas. O primeiro grande arrufo foi aos 8 anos quando voltava da praia com o pai, no final de uma tarde de Verão, e a dita cuja, qual cavalo bravo motorizado, lembrou-se de atravessar a Alameda da República em Francelos, de um lado ao outro da via, fazendo com que a Anita e o pai se estatelassem violentamente no chão. Bem haja a quem construiu aquele passeio 20 cms mais para dentro do local onde a cabeça da Anita bateu sem capacete no chão, ou hoje estariam aqui a ler os livros da Rita, da Gracinha, da Paula, ou outra que tal, que não a Anita. Depois disto, anos e anos se passaram sem que estas bestas ousassem quebrar a ordem de afastamento de 5 metros decretada por juízo moral da nossa “heroína”. Mas a paixão tudo pode. Dizem que o amor é cego e é verdade. Quando a Anita conheceu o seu Pedro, andava ele montado numa besta amarela (e provavelmente noutras de outras cores e tipos) que exibia no guiador um “coça-gengivas” também amarelo, a que a Anita não resistiu. A curiosidade sobre o “coça-gengivas”, que mais não era do que uma protecção de peito instalada no volante, fez com que a Anita quebrasse voluntariamente a ordem de afastamento e começasse a pouco e

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pouco a dar uma segunda oportunidade ao “animal”. Um dia, tomou coragem e pediu ao Pedro para a ensinar a conduzir a coisa. A muito custo e ao fim de algum tempo, ele anuiu e sentou-se atrás, estando a Anita com a adrenalina no máximo ao volante. Assim que a ensinou a acelerar, a Anita não quis ouvir mais nada, nem sequer como é que se travava e lá foi ela pela Rua da Alemã acima, sempre a abrir, com o Pedro a gritar-lhe ao ouvido “mais devagar, mais devagar!”. Mas assim que sentiu o controlo sobre a máquina, achou que afinal não era um bicho-de-sete-cabeças conduzir aquela coisa e toca a acelerar. Ora, o Pedro que nessa altura ainda tinha mais amor à vida do que à Anita, toca a saltar fora enquanto a velocidade o permitia, e se por acaso a mãe da Anita tivesse espreitado à janela, teria certamente tido uma coisa má ao ver a sua filha mais velha, montada na motoreta amarela a abrir pela rua acima. E mal saberia ela, coitada, que a Anita não tinha aprendido sequer a travar. Quando já estava quase no cimo da rua, ocorreu-lhe que tinha que parar…. Tinha que parar, bolas!! E não tinha aprendido a travar…! Bom, tirar o pé do acelerador havia de diminuir a velocidade. E assim fez. A moto foi perdendo velocidade, já que a rua era a subir e a Anita foi parar desajeitadamente ao meio de um campo, mas sem cair e sem sequelas, além do susto. Ora, depois disto, nova ordem de afastamento, que se manteve por mais uns anos. Mas em Andorra… ah, em Andorra… preparadas para a neve, as bichinhas pareciam menos perigosas e muito mais dóceis. Até inspiravam à Anita uma certa pena, desprovidas de rodas e reduzidas à condição de “ski” motorizado. Mesmo assim, cautelosamente, a Anita observou atentamente os colegas e clientes domarem as feras, ali transformadas em gatinhas mansas, e a divertirem-se imenso com elas. Alguns até barafustavam com outros por quererem andar outra vez. Acotovelavam-se e punham-se em fila como se lá no início da fila estivessem a dar croissants de chocolate da saudosa D.Pasolini. Ok – pensou a Anita – não há duas sem três! Estas não têm rodas, ensinaram-me a travar, se cair a neve é fofa… Bora lá domar a fera! A primeira volta correu maravilhosamente bem. Completamente subjugada à destreza da Anita, a “gatinha” deixou-se conduzir. A Anita sentia-se uma

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dominadora, de chicote e tudo, e estava assoberbada pela submissão da máquina (recomenda-se nesta parte a consulta da trilogia das “50 sombras de Grey”, para melhor percepção). Sentiu-se tão poderosa, tão controladora, que quando passou na meta onde estavam os colegas que aguardavam a sua vez, sorriu para eles e acenou-lhes contentíssima. E foi aí, logo a seguir, que ao retomar o olhar para a pista, a Anita pela primeira vez na vida, é obrigada a reagir sobre stress extremo. “Eh láaaaaa…. Este muro não estava aqui há bocado!” e záaasss!!! Parecendo rebelar-se contra a ânsia de domínio da Anita, revoltar-se contra anos e anos de desprezo e maus tratos mútuos, numa luta desenfreada “mulher-máquina”, a Storm vermelha (a Anita sabia que não devia conduzir coisas vermelhas…) empina a frente e escala o muro de neve, imobilizando-se lá em cima, mantendo no entanto o motor a refilar… A Anita… com o coração em taquicardia… olha em volta, para estudar o ambiente e analisar as hipóteses de sair daquela situação ferindo o mínimo possível o seu orgulho, já de si debilitado pela aparatosa descida de marcha-atrás seguida da queda na neve do dia anterior. De um lado do muro, uns metros mais acima, os colegas novamente especados a olhar, sem reacção. Do outro, a estrada… onde passavam automóveis, provavelmente de turistas, e alguns transeuntes que abrandavam o passo e se imobilizavam, também estupefactos. A Anita avalia as duas hipóteses: ou desata a pedir ajuda e fica quietinha como um rato à espera que a tirem dali, embora isso signifique humilhação total perante a assistência, mas mais grave que tudo, perante a máquina. Ou arrisca acelerar levemente, tentando que a máquina desça como subiu, e continue o seu percurso pela pista… mas correndo o risco de a coisa correr mal e cair do muro ou até ir parar ao meio da estrada. A Anita olha para a Storm vermelha. A Storm vermelha rosna por baixo de si, ameaçadora. Silêncio absoluto nas montanhas de Andorra. O único diálogo que se ouvia era na cabeça da Anita, entre ela e a Storm. Trocavam entre si olhares de desprezo e disputa pelo pódio do controlo. - Vá – dizia a Storm – experimenta-me, ó espertinha… Mostra o que vales!

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A voz da Anita estremecia, entre a ânsia de dar uma lição à maquineta e o medo (terror!) de falhar e magoar o corpo e a alma. - Não me tentes! Tu não me tentes!… Não passas de uma máquina…Fomos nós, homens e mulheres, que te sonhamos e criamos. E como tal, seguirás apenas o caminho que EU escolher! - Porque esperas, então? – dizia ela, sibilante, desafiadora… A Anita não aguentou o convite ao desafio. O coração suplantou-se ao cérebro. Este, orgulhoso do órgão companheiro de luta, assumiu o comando! Pés, mãos, corpo todo, assumam o domínio sobre a besta – ordenava ele. E a Anita acelerou levemente. A Storm moveu-se suavemente sobre o muro. A Anita inclinou o corpo para equilibrar o impulso da descida para a pista. Acelerou novamente, mas desta vez manteve a aceleração. A Storm, derrotada, desceu do muro com uma elegância imprevista. Assim que se sentiu na pista de neve novamente, a Anita acelerou mais, mantendo a velocidade durante o resto do percurso. Quando chegou à meta, saiu da Storm com violência, desprezando-a. Ainda lhe lançou um último olhar e um semi-sorriso, como que a dizer: WHO’S GOT THE POWER?

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ANITA DEDICA A Anita, desinspirada Hoje fala-vos em verso Mas está aqui há meia hora Sem encontrar um começo. Desde o dia em que casou Sempre em tom de brincadeira Tudo ela vos contou Ao raiar de segunda-feira. E estes pedaços de vida Que com vocês quis partilhar Hoje por ser despedida Alguns deseja dedicar. A conversa com o agente J Ali para os lados da VCI A tomar conta da mota José Gonçalves, é para ti! Para a Manuela Cerqueira Vai a Anita na CEE Que ela fez uma barulheira Por eu não ter arredado pé!

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Para o Maurício, no testamento, A Anita na Igreja vai ficar Para não esquecer o mandamento De que os putos não devem brigar! Anita na Neve Parte Um É para o meu “chefe” preferido Que ele sabe como nenhum Fazer-me espalhar ao comprido. Para a Liliana Amaral Que é uma rapariga que “me assiste” Vai a Anita no Hospital Que eu sei que ela não resiste. Ao Jorge Silveira encarrego De guardar com carinho A Anita e o 1º Emprego Dentro do seu cofrinho. E antes que ele me convide Para um desafio ou canção Mando a “Anita e a Pide” Para o nosso Hélder Ferrão. A minha folha de Oliveira Outra Anita como eu Herda a “Anita na Praia” Por tudo aquilo que me deu. A todos os leitores do Jackpot Conservem este tesouro! Tirem as memórias do caixote Destas décadas de ouro. E pró meu eterno namorado Que pouco veio comentar Ficam todas as histórias Por viver ou por contar.

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P.S: José Cid, para ti vai o microondas avariado, pá…! Está muito arranjadinho por fora, como novo aliás! e já me confirmaram que explode se voltar a ser ligado. Seguiu ontem pelo correio expresso, deves receber amanhã. Como vês, não sou pessoa de guardar rancores… Assinado: ANITA!!! Lembras-te?..

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