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Entrevista: Jacob Gorender

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Capital estrangeiro na mídia brasileira. Jair Borin

Comunicação sindical e disputa de hegemonia.Vito Giannotti

O lugar da política na sociabilidade contemporânea.Antônio Albino Canelas Rubim

A política externa do Brasil em matéria de comunicação.César Ricardo Siqueira Bolaño

Vozes múltiplas comunitárias recriam cidades e metrópoles.Jonicael Cedraz de Oliveira

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Mídia e Poder

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Sumário55

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Política e Cidadania

Gramsci e a política Hoje.Edmundo Fernandes Dias

Gramsci e a formação humanística. Dileno Dustan Lucas de Souza

Educação e Trabalho Docente

Precarização do trabalho docente: a educação como espaço de acomodação do capital.Marina Barbosa Pinto

A seguridade social e a esfera dos serviços.Cleusa Santos

A universidade no processo de reprodução da sociedade brasileira.Wolfgang Leo Maar

O financiamento público às escolas privadas. Nicholas Davies

Estratégias de democratização da universidade no Brasil e na Itália.Regina Maria Michelotto

Práticas educacionais protestantes no século XIX: o caso de Sergipe.Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento

Exame Nacional de Cursos (provão): isto é avaliação?Vera Lúcia Jacob Chaves

Novas tecnologias e impacto sobre a mulher.Maria Helena Santana Cruz

Ensaio Fotográfico: Hospitais públicos 161

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ComentárioDieese lança livro: A situação do trabalho no BrasilLilian Arruda Marques

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Desta vez é para valer. Depois dequase duzentos anos de domínioabsoluto, as grandes famílias quedetinham o controle da imprensa bra-sileira buscam parceriasinternacionais para engordar os seuslucros e conseguir sair da crise queenvolve quase todo o setor midiáticonacional. A Câmara dos Deputados,primeiro, e o Senado Federal,recentemente, acabaram de aprovara Proposta de Emenda ao artigo 222,da Constituição Federal, que reservavaaos brasileiros natos a propriedade eo controle das empresas de comuni-cação de massa no país. O projeto

aprovado, embora limite aparticipação estrangeira até 30 porcento do capital, não impedirá quegrupos internacionais, por meio depressões sobre o quadro de diretoresda empresa, venham a impor a sualinha editorial. Como medida paliativapara assoprar a ferida, o Congressotambém aprovou a instalação doConselho Nacional de Comunicação,com uma composição de represen-tantes não apenas da sociedade civil(como estava previsto por ocasião desua criação, há doze anos), mastambém do empresariado do setor.

Por que as empresas de comunica-

ção de massa brasileiras buscam, final-mente, o aporte de recursos externos eque conseqüências isto trará para opaís?

A imprensa nacional é considerada,pelos vários autores que escreveram asua história, como uma manifestaçãotardia e precária das forças políticasque acabaram dando configuração àsociedade e ao estado brasileiros. Elanasce apenas em 1808, cerca de 100anos depois de ter surgido nos EstadosUnidos e na maioria dos futuros paísesda América hispânica. Seja na mão deum único proprietário, seja controladapor um grupo de empresários, as em-

Jair Borin *

Mídia e Poder

Capital estrangeiro na mídia brasileira

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presas de comunicação de massasempre se alinharam com as classesdetentoras do capital ou com as prin-cipais autoridades do governo federalou dos governos estaduais. São rarosos veículos de comunicação que con-seguiram fugir à matriz imposta pelobinômio interesses oligárquicos e po-der político. Essa imprensa alternativaao poder hegemônico no país, pelasua fragilidade, ficou mais conhecidacomo imprensa nanica do que umaforça significativa no conjunto das clas-ses sociais brasileiras.

Num país escravocrata e repleto deanalfabetos, a imprensa só podia seracessada e, portanto, defender, os in-teresses da burguesia agrário-exporta-dora, atrelada aos capitais internacio-nais. E foi assim ao longo de todo o sé-culo dezenove. Só com a intensificaçãoda emigração européia, que substitui otrabalho escravo, e o advento da Re-pública, começa a surgir um públicorazoável para a imprensa nacional.Mesmo assim, na virada do século de-zenove para o vinte, os três maioresjornais brasileiros (Jornal do Brasil, Ga-zeta de Notícias e O Paiz) mal conse-guem chegar à tiragem de 20 milexemplares diários, quando a impren-sa dos Estados Unidos já contava comcerca de dez grandes diários com maisde 300 mil exemplares cada. O rádio ea televisão, as duas novas mídias quesurgem na primeira metade do séculovinte, desde o seu nascimento, foramcontroladas pelo governo federal, quesempre usou o poder das concessõesdesses veículos como arma política eeleitoreira.

Preocupado com o poder que amídia de massas já apresentava nosidos dos anos 30, a Constituição de1934, ao dar ordenamento às transfor-mações do movimento político de ba-se civil, que põe fim à hegemonia dasforças conservadoras ligadas ao setoragropecuário, instituía, em seu artigo

131, o controle das empresas de co-municação (entendidas aqui as em-presas publicadoras de jornais, revistasde informação geral e de entreteni-mento e as rádios emissoras) a brasi-leiros natos. O mesmo dispositivo foipreservado na Constituição getulistade 1937, em seu artigo 122, parágrafo15, letra g. Com mais rigor ainda, aConstituição democrática de 1946, noartigo 160, assegurava: “É vedada apropriedade de empresas jornalísticas,sejam políticas ou simplesmente noti-ciosas, assim como a de radiodifusão,a sociedades anônimas de ações aoportador e a estrangeiros.... A brasilei-ros (art. 129) caberá, exclusivamente, aresponsabilidade principal delas e asua orientação intelectual e administra-tiva”. Também a Constituição de 1967,dos militares, e a de 1988, emanadapelo Congresso Constituinte, consagra-vam os mesmos dispositivos de defesanacional do setor.

Esses artigos constitucionais refle-tiam a importância que os legislado-res, fossem eles eleitos pelo povo ouaté mesmo dos esquemas palacianos,viam na função social dos meios decomunicação de massa. Uma das maisacirradas defesas desses princípiosocorreu justamente em 1963, por ini-ciativa do então deputado João Doria,do antigo PTB, que conseguiu reunir,pela primeira vez, o número regimen-tal de assinaturas de parlamentarespara a instalação da primeira CPI con-tra o capital estrangeiro na mídia brasi-leira. Seu principal alvo então era arevista Seleções do Rider Diggest, im-portada por um grupo editorial, tradu-

zida para o português e vendida comopublicação independente e o grupoAbril. Também as agências de publici-dade estrangeiras, que praticamentecontrolavam as verbas da propagandaveiculada no Brasil, foram incluídas naCPI. Esta, infelizmente, acabou nãochegando a conclusões, por força epressão dos militares que desfecha-ram o golpe em 1964. O deputado foiincluído na lista de parlamentares cas-sados e acabou tendo que curtir umlongo exílio na França. Outra CPI ruido-sa foi a acionada pelo deputado Euricode Oliveira, conhecida como a CPI dogrupo O Globo-Time-Life. Em duas oca-siões, foram conseguidas as adesõessuficientes para a sua instalação. Mas,pressões de todos os tipos levaram aque alguns dos apoiadores retirassemsuas assinaturas. Quando, finalmente,ela foi instalada, já não havia clima parase chegar a grandes resultados, embo-ra ela servisse para um alerta contra aforça esmagadora que a Globo viria ater posteriormente.

Atualmente, ganha cada vez maisdefensores, entre as grandes famíliasque detêm o controle dos meios decomunicação no país, a decisão de seassociarem aos grandes grupos de mí-dia internacional. Esta crença não re-sulta apenas dos processos de globali-zação do capital, mas, sim, da possívelincorporação de novas tecnologias pa-ra a produção e oferta de novos pro-dutos midiáticos, que só se tornamacessíveis com a mundialização do ca-pital. Também a queda da receita pu-blicitária está pressionando na buscade novos parceiros. Assim, os grupos

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Mídia e Poder

Atualmente, ganha cada vez mais defensores, entre as grandes famílias que detêm o controle dos meios de comunicação no país, a decisão de se associaremaos grandes grupos de mídia internacional.

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Mídia e Poder

tradicionais detentores da mídia im-pressa, que hoje enfrentam um fortedesaquecimento da demanda de seusprodutos, são os mais entusiastas nadefesa da reforma do artigo 222 daatual constituição.

Não há, no país, nenhum diário he-gemônico. A partilha desse mercadose dá regionalmente. No eixo Rio-SãoPaulo, onde se concentram pratica-mente 60 por cento dos consumidoresde jornais, três grandes grupos divi-dem o mercado: Folha da Manhã S/A,O Globo e a Sociedade Anônima O Es-tado de São Paulo. Existem grupos lo-cais em cada uma das regiões metro-politanas ou das capitais estaduais,disputando as demais sobras do mer-cado. Estes grupos menores são maisfrágeis e correrão sérios riscos de desa-parecimento com a internacionaliza-ção do capital da mídia impressa, poispoderão perder totalmente suas pe-quenas fatias do mercado local, diantede novas mídias mais atraentes para opúblico consumidor.

Na área de revistas, dois grupos(Abril e Globo) com origens no aportede capital estrangeiro e alvo das CPIsdos anos 60 dominam o mercado.Além de disputarem o mesmo públicosegmentado das classes de renda A eB, que somam menos de 20 por centodas famílias brasileiras, eles controlamas duas maiores revistas semanais deinformação, praticamente aculturadaspelo capital internacional, Veja e Épo-ca. Veja, nas questões sobre políticasinternas, tornou-se porta-voz do go-verno FHC e, nas matérias comporta-mentais, retira praticamente 50% deseu conteúdo da Internet. Época repro-duz o jornalismo descomprometido,copiado dos padrões norte-americanoe europeu.

Por sua vez, as rádio emissoras seconcentram em três conjuntos. Um deorigem religiosa, como a Igreja Católi-ca e a Universal do Reino de Deus. Ou-

tro de grupos privados, como o pode-roso LC&C e a Globo; e o terceiro, reu-nindo milhares de estações pulveriza-das por todo o território nacional. Omercado radiofônico praticamentenão está na mira atual do capital es-trangeiro. Todas as emissoras de rádiocomercial, hoje dominadas pelo siste-ma OM ou FM, e que perfazem cercade 3400 unidades no país, faturamapenas 5% do mercado publicitárionacional, algo em torno de 450 mi-lhões de reais.

A maior cobiça do capital estrangei-ro, entretanto, está no restrito carteldas empresas brasileiras de televisãoaberta. Seis grupos dominam todo osetor, que faturou em 2001 em tornode 56% do mercado publicitário doBrasil, obtendo uma receita de 4,6 bi-lhões de reais. A rede Globo, que do-mina o cartel, faturou cerca de 60%desse mercado, seguida de longe pelogrupo SBT e pela rede Record.

O poder do cartel televisivo brasileiroé incomensurável, na atualidade. Elemolda opiniões, condiciona gostosartísticos e culturais e pode desestabili-zar candidaturas presidenciais. São 50milhões de aparelhos em uso e mais de

2 horas de consumo de programas percapita, diariamente., O tempo dedicadoaos programas televisivos no Brasil ul-trapassa o de programas radiofônicos.

Desinformação e dependênciaTrês questões de fundo pesam nas

decisões de internacionalização do ca-pital desses grandes grupos de mídiano Brasil. A primeira é a desestrutura-ção da cultura nacional pelo aporte deprodutos massificados, produzidoscom o fim único de conquistar índicesde audiência, a exemplo dos famigera-dos show-realities, tipo Big Brother, oufilmes televisivos produzidos nos Es-tados Unidos, que hoje predominamnos horários menos nobres da progra-mação diária. A segunda é a desinfor-mação paradoxalmente resultante doexcesso de informação. Como as so-ciedades modernas geram crescente-mente um volume enorme de novasinformações, os meios de comunica-ção de massa cada vez mais sacrificamo espaço para o aprofundamento dasquestões cobertas e pulverizam osprogramas ou os cadernos dos jornaiscom pequenas notas sobre um núme-ro cada vez maior de fatos. Assim, ali-

mentam a ilusão de que seu públicoestá melhor informado, quando, naverdade, realizam uma operação dedifusão de fatos mas não de elucida-ção dos temas cobertos de interessepúblico.

A terceira grande questão que secoloca com a internacionalização dosconglomerados de mídia é a da de-pendência tecnológica. Com o predo-mínio do uso da linguagem digital bi-nária, na qual se fundamenta toda acomunicação gerada pela computaçãoeletrônica, Nicolas Negroponte prevêpara um futuro muito próximo a con-vergência de todas as mídias numaúnica mídia. Provavelmente isso ocor-rerá nos próximos 10 ou 20 anos, coma televisão digital de alta definição, en-globando todas as mídias e uma cen-tral de serviços computadorizados.Provavelmente no ano em curso ou nopróximo, o Brasil fará escolha do siste-ma televisivo de alta definição que viera adotar. Isto significará um mercadopotencial de cerca de 100 bilhões dedólares nos próximos vinte anos. Se aosistema previsto forem agregados ser-viços de telefonia, de operações decrédito, de pagamentos e de comprase vendas, este valor poderá facilmente

ser dobrado ou triplicado.O grupo de empresas que vier a ter

uma fatia significativa nas novas mí-dias e nos serviços gerais a elas incor-porados, terá o domínio econômico dopaís. É, portanto, nesta perspectiva,que deverá ser analisada a internacio-nalização das empresas de mídia demassas no Brasil, cujo mercado inter-no poderá explodir, caso o país consi-ga sair da estagnação econômica aque está sendo submetido por umapolítica neoliberal ditada pelo FundoMonetário Internacional.

Com a proposta aprovada na Câ-mara Federal e que só aguarda o avaldo Senado, para ir à sansão do Presi-dente da República, ocorrerá uma for-te ampliação da presença de dirigen-tes seduzidos pela visão neoliberal dosproblemas econômicos e sociais. Ape-sar de os grandes grupos internacio-nais de mídia terem, num primeiromomento, a participação de apenas30 por cento no capital das empresas

nacionais, seguramente influenciarãonas suas políticas administrativas e deprodução. Além disso, participarão dasindicações de dirigentes chaves emsuas administrações e no controle deprodutos midiáticos de sucesso mun-dial. Assim, o controle não ocorrerá sópelo aporte de capital, mas sim pelodomínio das tecnologias que irão serincorporadas aos fazeres midiáticos epelo controle de postos chaves nas fu-turas mega-organizações. Portanto, oque se pode esperar disso tudo é umamaior presença da ideologia e de valo-res neoliberais nos meios de comuni-cação e o fortalecimento das políticaseconômicas gestadas nos países hege-mônicos, além de dificuldades cres-centes para o discurso socializante, decaráter humanista e crítico à globaliza-ção.

* Jair Borin é professor-titular do Depar-tamento de Jornalismo da ECAUSP: Escolade Comunicações e Artes da Universidadede São Paulo.

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Mídia e Poder

Ocorrerá uma forte ampliação da presença de dirigentes seduzidos pela visão neoliberal dos problemas econômicos e sociais.

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Investimentos publicitários caem 5,39% em 2001

Fonte: Meio & Mensagem

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Mídia e Poder

Vito Giannotti

Já foi dito e escrito que “sem tesãonão há solução”. Já foi também escri-to, sem ser de forma tão direta, quesem comunicação não há revolução.Lênin, no seu Por onde começar, de1902, deixava isso muito claro, aoafirmar que o primeiro passo a serdado, para construir a revolução,era a “criação de um jornal paratoda a Rússia”.

Era a afirmação da centralidade eda necessidade da comunicaçãopara fazer a revolução. Óbvio que

Lênin sabia, melhor do que ninguém,que apenas com um ou mil jornaisnão se chegaria a lugar algum. Mastambém sabia que, sem um jornal, arevolução não chegaria nunca. Comoos milhões de operários, soldados ecamponeses seriam convencidos dasua necessidade? Como teriam infor-mação e formação suficiente paraabraçar a ação revolucionária, semum jornal ?

E hoje, qual comunicação é neces-sária? Um, dois, dez ou centenas de

jornais são pouco! De 1917 pra cá,vieram o rádio, a televisão, o fax, ocomputador, a internet e todo umarsenal de novos instrumentos.

Para disputar a hegemonia comseus inimigos de classe, hoje,a classe trabalhadora vai precisarusar todas as armas da comunicaçãoque seus inimigos usam.

Este artigo visa recuperar, rapida-mente, a prática dos trabalhadoresnessa disputa e dar “dicas” sobrecomo melhorar as condições para

Comunicação sindical e disputa da hegemonia

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essa guerra. Tudo isso para nossopaís, hoje. Um país que tem o quartocanal de televisão do mundo, aomesmo tempo que se situa em 68ºlugar em leitura de jornais. Um paísonde 90% dos municípios não têmuma livraria e, ao mesmo tempo, aVeja é a quarta revista de informaçãodo mundo, em tiragem.

A primeira imagem despertada pelapalavra comunicação sindical é aquelado jornal do sindicato ou de um bole-tim de greve. Logo em seguida, passa-mos a imaginar os típicos temas des-tes clássicos representantes da comu-nicação dos sindicatos com os traba-lhadores: aumento de salário, condi-ções de trabalho, horário, turnos, pla-nos de cargos e salários, férias, aciden-tes e por aí vai.

Essa imagem está associada a umadeterminada visão de sindicato. Umsindicato que está aí para resolver osproblemas concretos dos trabalhado-res. Os problemas imediatos, do dia-a-dia. Mas o horizonte da comunicaçãosindical não se esgota no imediato, nopalpável.

Nos cem anos da luta dos trabalha-dores do nosso país, essa tensão entreo imediato e o objetivo final será cons-tante. Vejamos, panoramicamente, asvárias etapas dessa história.

A comunicação no sindicalismo da época VargasNo Brasil, temos uma tradição de sin-

dicalismo oficial, o sindicalismo ministe-rialista, como era chamado logo que Ge-túlio Vargas o criou, na década de 30. Otípico sindicalismo pelego. Sindicalismode colaboração de classes que deveriavarrer a herança de trinta anos de sindi-calismo anarquista baseado no princí-pio, do começo do século XIX, do con-fronto de classe contra classe.

O novo sindicalismo, que Vargasqueria, deveria afastar-se da luta políti-ca, do confronto de classe. Portanto,deveria zelar pela paz social. Este sindi-calismo deixaria de ser livre, depen-dendo unicamente da vontade e deci-sões dos trabalhadores e passaria a sercontrolado pelo governo e pela bur-guesia que ele representava. Neste sin-dicato, não haveria espaço para a defe-sa dos interesses mais globais da clas-se trabalhadora.

Desmpenharia, quando muito, umpapel de fiscalizador do cumprimentodas leis, num ritual frio de recorrer àJustiça do Trabalho e de periódicas re-novações de acordos coletivos. Nestequadro, qual será o espaço da impren-sa, da comunicação destes sindicatoscom os trabalhadores? Não há espaço.Ou melhor, não há necessidade. Bastaum boletim a cada seis meses, ou acada ano. As únicas coisas a comunicarsão: o andamento da colônia de férias,os novos serviços médicos que o sindi-cato oferece e o índice de reajuste queo governo se digna conceder na épocacerta. Mas tem mais assuntos que es-tes sindicatos varguistas podem tratarcomo, por exemplo, a coroação da rai-nha da categoria ou a premiação damãe do ano. E podem chegar até a fa-lar de algum cursinho de leis trabalhis-tas ou da visita do ministro do trabalhoà sede do sindicato. Esse é o modelodos sindicatos pelegos que brotou nadécada de 30.

Hoje, de aproximadamente vinte milsindicatos existentes no país, a imensamaioria ainda está neste estágio. Ounão tem nenhum tipo de boletim, oupossuem um informativo qualquer quebem poderia ser produzido na décadade 30 ou 40. É o vazio absoluto. Nelenão há governo, não há sistema, nãohá classe patronal. Quanto menos, rea-lidades como o neoliberalismo ou suasconseqüências mais evidentes: o de-semprego e a perda de direitos.

Evidentemente, neste tipo de sindi-calismo, não há disputa nem hegemo-nia da classe dominante.

Sete centrais sindicais: qual comunicação?Existem hoje, no Brasil, sete centrais

sindicais. Destas, só a CUT é de oposi-ção ao governo e à classe patronal queele representa. Por sua definição a fa-vor de uma sociedade socialista, a CUTse coloca conseqüentemente em con-

Mídia e Poder

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Mídia e Poder

traposição ao projeto neoliberal destegoverno, e contra os interesses que elerepresenta, sejam eles dos banqueiros,industriais, fazendeiros, atacadistas,nacionais ou estrangeiros.

Neste quadro deixaremos de anali-sar as seis centrais que não estão preo-cupadas em fazer uma disputa de clas-ses, como é o caso típico da segundacentral brasileira: a Força Sindical. Estafoi pensada, gestada, amamentada ecriada totalmente pelos patrões e pelogoverno.

É a legítima central deles, uma realforça patronal; muito eficiente e con-seqüente no seu papel de ser o ins-trumento da burguesia no meio sindi-cal. Sua imprensa, sua comunicação,naturalmente, cumprirá este papel.Nela não há oposição e sim louvaçãoàs medidas que o governo neoliberalde FHC vem tomando. É a defesa,desde a época do Collor, do que elachamava de “reformas modernizado-ras”. Defesa da redução do chamado“Custo Brasil”, com suas conseqüên-cias práticas de flexibilização de todosos direitos e destruição de milhões deempregos.

Dessa política, vêm o apoio e, maisainda, a apresentação ao governo depropostas concretas como o contratotemporário e a demissão temporária,que nada mais são do que a retiradade direitos.

É essa política que dá ao presi-dente da tal Força Sindical, no come-ço de abril deste ano, a liberdade dedizer que “o Governo é bunda mole”,pelo fato de ter dado uma recuadi-nha temporária na sua determinaçãode acabar com toda a CLT.

Para resumir, neste tipo de sindica-lismo não há comunicação para dis-puta de hegemonia. Ou melhor, elafaz, sim, esta disputa. Só que do ladocontrário. É a disputa contra os inte-resses dos trabalhadores. Daí vêm osjornais da Força Sindical para o do 1º

de Maio, a partir de 98, com páginasinteiras recheadas de carros zero qui-lômetro, motos, liqüidificadores, bate-deiras, geladeiras e outros eletrodo-mésticos para o grande sorteio do Diado Trabalhador. A partir de 2000, afesta ficou mais incrementada. Foramacrescentados dez apartamento mobi-liados para este sorteio proletário. Sin-dicato que vira bingo e tenta, comisso, fazer esquecer a luta da classe. Adisputa de hegemonia fica muito fácil,para quem quer manter a situação dojeito que está.

Os antecedentes da atual comunicação sindical da CUTPara os sindicatos da CUT, esta dis-

puta se torna necessária e é bem maisdifícil. Esta Central tem como objetivodeclarado, nos seus estatutos, lutar pe-lo fim da exploração do homem pelohomem. Lutar para contribuir na cons-trução de uma futura sociedade socia-lista. É o que no jargão da Central sechama de classismo.

Os antecedentes do sindicalismoclassista, no Brasil, devem ser procura-dos no sindicalismo anarquista do fimdo século XIX e começo do século XX.

Durante uns cinqüenta anos, a prin-cipal influência, entre os primeiros tra-balhadores imigrantes no Brasil, era oanarquismo. Italianos, espanhóis e por-tugueses aqui chegavam aos milhões,vindos de terras onde o ideal anarquis-ta era muito difundido. Esta visão pre-dominava sobre a influência socialista.Países do sul da Europa, como a Itália,a Espanha e Portugal tinham sido oambiente propício às pregações eações do próprio Bakunin e seus se-guidores. Foi justamente através dosemigrantes daqueles paises que che-garam essas idéias para as novas terrasamericanas.

O anarquismo sempre deu umaenorme importância à formação políti-co-ideológica e à divulgação das suas

Esta Central tem como objetivo declarado, nos seus estatutos, lutar pelo fim da exploraçãodo homem pelo homem.

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Mídia e Poder

idéias entre as massas. De 1875, quan-do começaram a aparecer as primeirasfabriquetas, até 1920, época de ourodo anarquismo no Brasil, foram publi-cados, no nosso país, 343 jornais ope-rários diferentes. Seus nomes são reve-ladores da sua ideologia. Vejamos al-guns deles: O Operário (Recife, 1879),O Socialista, (Salvador, 1890), A Luta(Porto Alegre, 1894), Primo Maggio(São Paulo, 1892), A Greve (Rio de Ja-neiro, 1903), O Demolidor (Fortaleza,1908), O Proletário (Juiz de Fora,1920). O conteúdo destes jornais eraduplo. Por um lado, denunciava as in-justiças concretas, apresentava as reivin-dicações imediatas de uma seção ou deuma fábrica ou grupos de fábricas.

Mas além desses aspectos concre-tos, imediatos, toda a visão anarquistaque era transmitida. O jornal A Voz doTrabalhador, porta-voz da primeiracentral sindical brasileira, desde 1908,quando começou a ser publicado,quinzenalmente, trazia em suas pági-nas os temas centrais do anarquismo:anticapitalismo antimilitarismo, anti-clericalismo e, acima de tudo, a neces-sidade de uma revolução que acabas-se com toda opressão e exploração dohomem pelo homem. A necessidadeda luta direta sem intermediários, anecessidade da revolução social. Pode-mos dizer que todos os temas da lutasocialista e anarquista eram tratadosnesses jornais operários do começo doséculo.

A partir de 1922, com a fundação doPartido Comunista, o anarquismo perde-rá fôlego e com ele entrará em declínioaquele tipo de comunicação sindical.

O período de crescimento do Partido ComunistaNa década de 20, gradativamente,

os comunistas passam a ocupar espa-ço nos sindicatos. Seguindo o clima re-volucionário da época, sob forte in-fluência da vitoriosa Revolução Russa,o PC dará maior importância à impren-sa partidária do que à propriamentesindical. A imprensa comunista passa atratar os temas políticos que a épocaexigia. Ou seja, era uma comunicaçãoque tratava, o tempo todo, das condi-ções presentes, mas se apontava cons-tantemente a perspectiva futura: o so-cialismo.

Chega a época Vargas, o Estado No-vo e a Segunda Guerra. Poucos diasantes da rendição nazista, em 18 deabril de 45, que acabará com a guerra,Vargas decreta a anistia aos presos po-líticos e o PC poderá, enfim, se legali-zar. Menos de um ano depois, os co-munistas já tinham oito jornais diários

publicados no país. Jornal diário seriapleonasmo, mas não nesse caso. Seeram jornais, seriam diários. Pareceóbvio, mas não é bem assim. É co-mum você perguntar se tal sindicatoou tal partido tem jornal, e receber res-posta afirmativa: “Sim, temos jornalque sai todo mês”.

Para os comunistas, em 46, jornalera jornal. Para fazer disputa da hege-monia, eles sabiam que um jornal diá-rio era essencial. É por isso que, semxerox, sem computador nem internet,eles teimavam em publicar seus oitodiários. Diariamente.

No Rio de Janeiro, o jornal comunis-ta Tribuna Popular tinha uma tiragemdiária de 20 mil exemplares. Exata-mente igual à do jornal Correio da Ma-nhã, da mesma cidade.

De 45 até 64, os sindicatos, hege-monizados pelo PC, continuaram a darmais importância à imprensa partidá-ria do que à sindical.

Após o golpe de 64, a imprensaoperária entrou em profundo recesso.A imprensa partidária foi toda silencia-da na noite do golpe. A sindical se re-colheu, silenciada pelos golpes das in-tervenções militares. Dentro das fábri-cas, circulavam inúmeros pequenosjornais clandestinos, com tiragem re-

É comum você perguntar se tal sindicato ou tal partido tem jornal, e receber resposta afirmativa: “Sim, temos jornal que sai todo mês”.

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duzida e distribuídos, às escondidas,de mão em mão, tentando segurar aresistência à exploração patronal e àditadura.

Quase todos os sindicatos, decapi-tados de suas lideranças e debaixo dabota dos interventores colocados pe-los militares, se limitavam a fazer seusjornais bem comportados. O peleguis-mo e o medo imperavam absolutos. Aimprensa de quase todos os sindicatosfalava de bailes de debutantes, coroa-ção de rainhas, pescarias, futebol e,quando muito, comentavam uma leiou outra. Só alguns sindicatos, comdireções combativas, de esquerda, tei-mavam em ter seu jornalzinho comum conteúdo político contestatório.Mas esses sindicatos não passavam dealgumas dezenas.

Quem desempenhou um papel deconfronto com a ditadura e com asclasses que ela representava foi a queficou conhecida como “imprensa alter-nativa”. Alternativa ao silêncio impostopelos militares e ponto de referênciapara quem queria construir uma alter-nativa política, num espectro que ia dademocracia ao socialismo.

Semanários como O Pasquim, Opi-nião, Movimento, EX, Coojornal, Ver-sus, Em Tempo e tantos outros passa-vam a ser o único alimento políticopermitido ou tolerado pelos militares.

Trinta milhões de jornais/boletinsA partir da década de 90, a impren-

sa sindical cresceu muito. Em 1994,nos meios da CUT, havia um númeroaproximado, mas aceito globalmente,que reflete esse crescimento quantita-tivo da comunicação dos sindicatos li-gados a essa Central. Eram sete mi-lhões de boletins ou jornais por sema-na. Um total de trinta milhões por mês.Neste número estavam desde os centoe vinte mil jornais diários dos Me-talúrgicos de São Bernardo até os trêsou quatro mil boletins/jornais publica-

dos semanalmente em centenas desindicatos. Não se incluíam, nesta esta-tística, publicações quizenais, mensaisou vezenquandárias, isto é, que saiamvez por outra.

É um volume enorme, se conside-rarmos que nesta data a Gazeta deSergipe, maior jornal daquele Estado,tinha uma tiragem estimada em doismil exemplares/dia.

Ou seja, os sindicatos da Centralque querem fazer a disputa da hege-monia com a outra classe, tinham etêm um grande poder de fogo a suadisposição.

E essas armas clássicas, jornal e bo-letins, não são as únicas que o exérci-to da CUT possui. Há uma enormevariedade de outros instrumentos que,juntos, compõe um mosaico comple-to. São cartilhas, livretos, folders, bo-nés, camisetas, faixas, bandeiras. Emais, encontramos centenas de carrosde som, rádios comunitárias e horárioscomprados em rádios comerciais.

E isso tudo sem levar em conta alíngua de milhões de dirigentes sindi-cais, liberados a tempo integral, paradifundir sua política. Além disso, inú-meros instrumentos que servem ativa-mente para comunicar uma política eque muitos sindicatos usam, conformesua criatividade: de uma simples xeroxde uma notícia de jornal a uma peque-na peça de teatro na porta de umafábrica ou de um banco.

Não entramos aqui na facilidade,muito pouco aproveitada, da comuni-cação imediata e riquíssima via inter-net, ou a ocupação de espaço na TVComunitária.

Não dá, frente a esse quadro, paracontinuar com a atitude do derrotado,que acha que é inútil disputar, pois ooutro lado é todo poderoso e nossolado não tem nada. “Eles têm tudo enós nada”. Aí a disputa da hegemoniajá se foi. Não há como fazê-la.

O primeiro passo para vencer qual-

quer disputa é acreditar que vai seruma disputa. É possível ganhar. Depoisdisso é analisar atentamente as condi-ções necessárias para vencer a batalha.

Comunicação para vencer a batalha da hegemoniaAntes de tudo, é preciso uma cons-

tatação incômoda e provocante. Ondeestão os jornais de esquerda do Brasil?Há, em geral, respostas patéticas. Cadamilitante de esquerda aponta a publi-cação de seu partido e mostra: “táaqui! “Boa essa”! Um jornal que sai ca-da semana ou quinze dias ou, às ve-zes, cada dois ou três meses... se Deusquiser. Isso não pode ser chamado de

O primeiro passo para vencer qualquer disputa éacreditar que vai ser umadisputa. É possível ganhar.Depois disso é analisar atentamente as condiçõesnecessárias para vencera batalha.

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jornal e, sim, de publicação, oxalá re-gular. Além do mais, suas tiragens sãoirrisórias, frente a um país continentalde 170 milhões de habitantes.

Jornal-jornal, aquele diário, cadê? Averdade é trágica. O jornal de toda aesquerda é nada menos que a Folhade São Paulo. De Manaus a Porto Ale-gre, todos os militantes de esquerda,sindicalistas ou não, vão procurar seinformar neste jornal neoliberal de SãoPaulo. É esta Folha que defende, semtitubear, o projeto total de FHC, comsuas reformas neoliberais, que vai ser-vir como única informação diária paratoda a esquerda. Essa Folha que, noano 2000, seguindo a ideologia doPlanalto, escolheu como seu inimigoprincipal o Movimento dos Sem Terra.Folha que, junto com a Veja, topouusar todos os meios para derrubar oMST e barrar o avanço da esquerda.

O jornal lido por toda a esquerda éesta Folha que, no dia do encerramen-to do Fórum Social Mundial de PortoAlegre, em 5/2/2002, sai com a man-chete; “Saramago azeda a festa e a es-querda dança”. Seu desejo de afirmarque a esquerda, até que enfim, dan-çou, foi um ato instintivo, incontrolá-vel, que não deu para disfarçar.

Essa é a tragédia. Desde 1980, as lu-tas dos trabalhadores cresceram ano aano. Greves, ocupações, disputas elei-torias locais, administrações de es-querda, quase chegamos lá... à Presi-dência da República. Nasceu a CentralÚnica dos Trabalhadores, centenas dedeputados, vários governadores e se-nadores. E cadê nosso jornal? Conti-nua sendo a Folha de São Paulo: ojornal da fina flor do neoliberalismoglobalizado.

Como fazer a disputa de hegemoniacom nossos inimigos de classe? Semjornal, sem rádio, sem televisão, real-mente fica difícil.

Seria impossível, se não houvessealguma alternativa. Nestas duas últi-

mas décadas, a imprensa sindical temtido o desafio de cobrir a falta de umacomunicação político-partidária inexis-tente. É um desafio enorme, compre-endido por uns e desconhecido pormuitos sindicatos.

A imprensa sindical acaba tendoum papel muito maior do que se po-de imaginar, exatamente pela ausên-cia de uma outra imprensa contra-he-gemônica. Hoje existem algumas re-vistas de esquerda, muito boas e rela-tivamente bem feitas, que servem pa-ra esta disputa da qual falamos, massuas tiragens, seu alcance é muito li-mitado. Ainda salta aos olhos o enor-me poder de fogo que possui a im-prensa sindical.

Mas para que a comunicação dossindicatos cumpra esse papel, há vá-rias condições, sem as quais não adi-anta ter tamanho.

1 - Antes de tudo é preciso ter clareza desta disputaNão se trata de substituir o papel

dos vários partidos de esquerda. Mas,cada sindicato pode apontar, em cadaação, cada jornal ou boletim, a pers-pectiva de confronto global de classe.E apontar a perspectiva de outra socie-dade. De outra hegemonia.

Para isto é preciso que a pauta dosboletins, jornais ou programas de rá-dio saia do umbigo. Ou melhor, quesaiba combinar os interesses imedia-tos dos trabalhadores com seus inte-resses históricos.

Combinar a negociação impostapela empresa, sobre o horário, com adenúncia da flexibilização dos direitosimposta pelo projeto neoliberal. Ligarcada demissão com o combate a todoesse modelo econômico que gera mi-lhões de desempregados. Denúnciadesse modelo a ser derrubado nasruas, nas praças, nas greves e nas pró-ximas eleições.

Ou seja, não se restringir a umapauta corporativa, limitada. Para isso ésó lembrar os estatutos de Central Úni-ca dos Trabalhadores, que repetemduas vezes a necessidade da Central“lutar pelos interesses imediatos ehistóricos dos trabalhadores, tendocomo perspectiva a construção deuma sociedade socialista .”

2 - É necessário uma preocupação obsessiva com a linguagemEm geral, a linguagem usada em

boletins/jornais sindicais é uma lingua-gem incompreensível para o públicoao qual se destina.

Tanto quanto o juridiquês, economês,psicologuês, informatiquês, há outrapraga típica do meio sindical. É o sindi-calês, irmão de sangue do politiquês.

O sindicalês é uma síntese de todasas linguagens específicas com as quaiso sindicalista entra em contato. O sin-

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dicalista, por necessidade de ofício, serelaciona com advogados, economis-tas e com uma variedade grande de in-telectuais: do psicólogo ao sociólogo.Nada de errado nisso. Só que sua lin-guagem acaba incorporando centenasde palavras próprias de todos estesmeios com os quais entra em contato.A essas influências acrescenta-se umanatural do meio sindical: o politiquês.Esta é a linguagem típica falada nosmeios de esquerda que boa parte dosativistas sindicais freqüentam regular-mente.

O resultado é que a linguagem dodirigente sindical muda de acordo comtodas essas influências.

Não haveria nada demais, se a lin-guagem do público-alvo da sua comu-nicação também tivesse mudado. Masisso não ocorre.

Com isso temos a maioria dos bole-tins/jornais sindicais que são escritosnuma linguagem absolutamente estra-nha para seus leitores. O mesmo valepara o discurso, feito num programade rádio, num palanque ou num carrode som.

E aí fica impossível fazer a disputada hegemonia. Não porque não hajaidéias claras. Não porque não haja von-tade, mas simplesmente porque a lin-guagem usada para se comunicar éinteligível para quem a escuta ou lê.

3 - A terceira condição é fazer uma comunicação atrativa Se um boletim/jornal ou programa

de rádio for de péssima qualidade, es-te será rejeitado automaticamente.

Não é suficiente ter um bom con-teúdo e nem uma linguagem adequa-da. Se a cara de um boletim / jornal forfeia, este será jogado ao chão automa-ticamente.

Este é todo um item que mereceriaum tratamento à parte. Impossível fa-lar dele em poucas linhas. Só vamosdar uma olhada numa das tantas ino-

vações às quais a burguesia recorreu.Todos os jornais do país, de alguns

anos pra cá, se modernizaram. A intro-dução mais visível é a introdução da cortotal em todas páginas. Mas esta é ape-nas uma das mudanças, filhas da edito-ração eletrônica. Há inúmeras transfor-mações que precisam ser analisadas eintroduzidas na imprensa sindical. Semisso ficaremos a ver navios.

Hoje o leitor exige uma série deportas de entrada para se aventurarnuma página ou num artigo. São gráfi-cos, infográficos, chamadas, fotos, le-gendas e outros recursos visuais, pró-prios da linguagem televisiva.Uma lin-guagem visual. Essa é a linguagem quetodo mundo gosta, especialmente, nonosso país. Gostam dela os 83% quenão terminaram o segundo grau. Etambém é apreciada pelos 17% quepassaram esta etapa e até chegaramao pós-doutorado.

A comunicação sindical é uma ar-ma poderosa para a batalha da hege-monia. Mas para isso a primeira defini-ção é decidir fazer esta batalha. Umadisputa pela conquista de corações ementes de milhões.

Uma comunicação de todos os di-as, com todas as forças e com a maiorvariedade de meios possíveis. Uma ba-talha pela construção de aparelhos dehegemonia capazes de garantir a con-quista do poder e a constante constru-ção político-ideológica dessa nova or-dem.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE18 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Mídia e Poder

A política parece estar em um lugarproblemático na sociabilidadecontemporânea. Insistentemente,ela tem sido instalada no registro dacrise, quase em situação de não-lugar.O colapso das energias utópicas, aderrocada das grandes narrativas, adepressão dos sujeitos políticos, ainsatisfação com as práticas derepresentação, as repetidas denúnciasde corrupção, o desencanto com os

políticos profissionais aparecemapenas como algumas das inúmerasinterpelações endereçadas à políticapela contemporaneidade.

A circunstância atual apresenta as-sim visível contraste com a emergên-cia, a conformação e mesmo a exalta-ção da política acontecida na moderni-dade. O contraponto entre a situaçãocontemporânea e a era moderna indi-ca, mais uma vez, o estatuto proble-

mático da política hoje e, em seqüên-cia, coloca em cena uma das questõesmais agudas a ser trabalhada: a criseda política aparece como um questio-namento da política moldada namodernidade ou como um impasse dapolítica “tout court” ?

A hipótese assumida e desenvolvidaneste texto opta pela primeira alterna-tiva, pois propõe que o registro dacrise indica esgotamentos na atividade

Antônio Albino Canelas Rubim *

O lugar da política na sociabilidade contemporânea

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Mídia e Poder

política, especialmente em sua moda-lidade conformada na modernidade,cuja herança marca ainda hoje a políti-ca que realizamos. A hipótese formula-da tenta reter exatamente esse mal-estar derivado da inadequação entreuma atividade política, com formata-ção oriunda da modernidade, e umacontemporaneidade, conformada poroutras espacialidades e campos deforça.

Em tempo simultâneo, as novas con-figurações societárias - neomodernasou pós-modernas - põem novos desa-fios em cena e possibilitam dar sentidoàs mutações em profundidade que ho-je perpassam o campo político.

Este texto privilegia como alternativainterpretativa para a compreensão damutações da política na atualidade,dentre outras possíveis, aquela que secentra na conexão contemporânea en-tre política, sociabilidade e comunica-ção, com destaque para a sua versãomidiática, e nas ressonâncias societá-rias decorrentes dessa interação. Issonão significa que outras abordagensnão possam ser significativas para aelucidação das transmutações políticasem processo. Trata-se apenas da esco-lha do enfoque privilegiado e possívelde ser trabalhado neste texto.

A relação atual entre comunicação epolítica, reivindicada de modo reitera-do nos estudos recentes, tem, quasesempre, se pautado por um tom som-brio, pois a política submerge como di-lacerada pela mídia. A política espeta-cularizada de Schawzenberg1, a video-política de Sartori2, a transpolítica deMafesolli3 e o fim da política de Bau-drillardi4, para citar apenas algumas vo-zes importantes e diferenciadas, pare-cem convergir em seu diagnósticoquase terminal para a atividade políti-ca. De um anterior estatuto instrumen-tal - quando a comunicação está con-cebida como meramente determinadapela política, como acontece, por

exemplo, na redução da comunicaçãoao âmbito da ideologia5 - a comunica-ção passa, sem mais, a reter um podertal, que inverte a relação, subjugandoe mesmo quase aniquilando a política.

Essas apressadas e unilaterais solu-ções para complexas questões (im)-postas pela contemporaneidade pare-cem não se sustentar. Antes, este textoreivindica a densidade dos problemas,afirma a multiplicidade das modalida-des de interação e acredita na existên-cia de diversas possibilidades de reso-lução da relação entre política e comu-nicação, em uma situação, por vezes,complementar, por vezes conflitiva,mas sempre tensa e em processo depersistente disputa. Uma remissão darelação entre comunicação e políticaao ambiente da contemporaneidadetorna-se essencial para a elucidaçãodo tema.

Mídia e contemporaneidade:idade mídiaA rápida incursão deve se iniciar por

uma afirmação forte: o estatuto nãoinstrumental, nem meramente supe-restrutural da comunicação na atuali-dade. Afinal diversos movimentos con-fluem para indicar o caráter estruturan-

te assumido pela comunicação, em es-pecial pela mídia, na contemporanei-dade. Como esquecer, por exemplo, aformidável convergência tecnológicahoje existente entre comunicação, te-lecomunicações e informática, anota-da por inúmeros autores; a expansãogigantesca das indústrias de comuni-cação e cultura e a atividade viabiliza-dora da globalização, ensejada, emdimensões diversas, pelas mídias.

Aliás, há algum tempo, tem-se suge-rido que a comunicação tornou-secomponente essencial na dinâmica defuncionamento do capitalismo. A pre-dominância da concorrência de mar-cas, em detrimento da concorrência depreços, característica do capitalismoavançado detectada por Sweezy e Ba-ran6, afirma essa conexão imanente,pois a comunicação aparece comomomento imprescindível para a reali-zação da concorrência de marcas. Naera da exaltação ao mercado, ele jánão se mostra capaz de transformarprodutos em mercadorias sem recor-rer às campanhas de comunicação.

Mas este caráter estruturante podeser captado também para além deuma atenção com as marcas e osconstrangimentos capitalistas da so-ciedade. Mc Luhan7, apesar de seudeslumbramento e determinismo tec-nológicos, já havia percebido como acomunicação estrutura o social, fixadocomo Galáxia Gutenberg ou como Al-deia Global. A sua fórmula “o meio é amensagem” insiste nisso, antes dequalquer outra coisa. Anterior a ele,Walter Benjamin8, em seu iluminado

Como Colombo, ainda não chegamos à América, apenas aportamos nas Índias. Esse novo mundo, possibilitado pelas navegações (virtuais), não pode ser descoberto nesse registro esquemático de verdades e falsidades fixadas.

ensaio, sem submergir ao determinis-mo tecnológico, também afirmou acapacidade da comunicação, reprodu-zida tecnicamente, estruturar sensibili-dades, produzindo socialmente umanova estética.

A percepção do estatuto estruturan-te e das novas dimensões sociais en-gendradas pela comunicação, em suaetapa midiática, também permeia, emmodalidades muito diferenciadas, ou-tros autores9. Guy Debord10, com suasociedade do espetáculo, e Jean Bau-drillard11, com suas teses sobre o simu-lacro e a simulação, devem ser aquilembrados, ainda que em ambos essanova dimensão de sociabilidade en-gendrada pelas mídias esteja sempreno âmbito do reprovável que se con-trapõe a um “real”, que assegura (De-bord) ou assegurava anteriormente(Baudrillard) o mundo, apesar daspossíveis negativas dos autores a esserespeito.

O descobrimento desse novo mun-do propiciado pela comunicação tor-na-se encoberto. Como Colombo, ain-da não chegamos à América, apenasaportamos nas Índias. Esse novo mun-do, possibilitado pelas navegações(virtuais), não pode ser descobertonesse registro esquemático de verda-des e falsidades fixadas, nem no âmbi-to de uma circunstância societária apri-sionada em sua configuração moder-na, mas supõe o risco de uma apreen-são aberta e problemática do novo. Sócom essa atitude, o novo mundo podeser descoberto.

O mapeamento desse novo mundovem sendo tentado por inúmeros au-tores que, apesar das divergênciasexistentes entre as diversas formula-ções, parecem convergir na visualiza-ção do contemporâneo como estrutu-rado pelas redes comunicacionais.Não por acaso, a atualidade tem sidoreiteradamente nomeada por expres-sões com afinidade com o campo da

comunicação. “Aldeia Global” (McLu-han, 1974), “Sociedade da Informa-ção” (Lyon, 1988; Kumar, 1997, dentreoutros), “Sociedade Conquistada pelaComunicação” (Miège, 1989), “Capita-lismo de Informação” (Jameson,1991), “Sociedade Informática” (Schaff,1991), “Sociedade da Comunicação”ou “Sociedade dos Mass Media” (Vat-timo, 1991), “Era da Informação” ou“Sociedade Rede” (Castells, 1996),“Sociedade da Informação ou da Co-municação” (Soares, 1996), “Planetamídia” (Moraes, 1998) e “Idade Mídia”(Rubim, 2000)12. Todas estas denomi-nações, entre muitas outras possíveis,têm sido insistentemente evocadaspara dizer o contemporâneo.

Não cabe, nos limites deste texto,uma discussão das convergências edivergências do pensamento dos auto-res acima citados. Aparece com maispertinência o registro de alguns traçosque caracterizam a contemporaneida-de como modo singular de ser e estarno mundo. A sociabilidade atual apre-senta-se como tensa e complexa con-junção de: 1. espaços geográficos eeletrônicos; 2. convivências (vivênciasem presença) e televivências (vivên-cias à distância); 3. tempo real e espa-ço planetário; 4. local e global, enlace,nesse caso, tão bem apreendido e sin-tetizado na expressão glocalidade e,enfim, de 5. realidade contígua e teler-realidade.

Além da recorrente nomeação, aenumeração dos traços conformado-

res da singular sociabilidade contem-porânea coloca em evidência a ativida-de estruturante da comunicação. Di-mensões inerentes à atualidade comoos espaços eletrônicos, as televivên-ciais, o tempo real, o espaço planetá-rio, o globalismo e a telerrealidade nãopodem ser concebidos, viabilizados eimaginados sem uma relação de ima-nência com a comunicação, em suaversão midiatizada.

A comunicação não só figura comoum dos momentos de estruturação daatualidade. Ela configura-se como ex-pressivo ambiente que envolve omundo, tecendo e atravessando todoo social. Sua manifestação, notável etentacular, torna-se visível através: 1.da expansão quantitativa da comuni-cação, observada pelo número de me-ios disponíveis, pelas tiragens e au-diências, pela dimensão de redes emoperação etc; 2. da diversidade das mí-dias existentes; 3. da mediação querealiza, tornando-se o modo dominan-te de experienciar e conhecer a vida, arealidade e o mundo; 4. da presença eabrangência das culturas midiáticascomo circuito cultural dominante, queorganiza e difunde socialmente com-

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Mídia e Poder

Assim como a era da navegações marítimo-geográficasinaugurou um novo mundo, também agora, por volta de 500 anos depois, vive-se, para o mal e para obem, o limiar de um outro novo mundo, de espaço planetário e em tempo real, possibilitado pelasredes eletrônicas e televivenciais de comunicação.

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portamentos, percepções, sentimen-tos, ideários e valores; 5. da ressonân-cia social da comunicação midiatizadasobre a produção da significação (inte-lectiva) e da sensibilidade (afetiva), so-cial e individual; 6. da prevalência damídia como esfera de publicização(hegemônica) na sociabilidade, dentreos diferenciados “espaços públicos”socialmente existentes, articulados econcorrentes; 7. da ampliação vertigi-nosa dos setores voltados para a pro-dução, circulação, difusão e consumode bens simbólicos; 8. do crescimento(percentual) dos trabalhadores dainformação e da produção simbólicano conjunto da população economica-mente ativa e 9. do alargamento doconsumo e dos gastos, públicos e pri-vados, com as comunicações.

A mídia, por conseguinte, estrutura eambienta a contemporaneidade, faz amediação, possibilitando o comparti-lhamento simbólico entre indivíduosem territórios distantes, e também criauma nova dimensão da realidade: atelerrealidade. Esse novo mundo nas-ce com as redes midiáticas permanen-tes e se caracteriza por sua conforma-ção quase imaterial, altamente simbó-lica. Instituições e indivíduos o habi-tam sob a modalidade de imagens so-ciais ou públicas. O novo mundo, ape-sar dessas marcas contrastantes com asubstancialidade anteriormente reque-rida à realidade (contígua), deve serassumido como tendo um estatuto derealidade. Em verdade, como já anota-do, a realidade contemporânea resultada complexa composição que envolvetelerrealidade e realidade contígua. Talestado de mesclagem, quase indistin-ção, apresenta-se como atualidade,em especial, nas cidades-metrópoles,lugares, por excelência, de viver o con-temporâneo.

Assim como a era da navegaçõesmarítimo-geográficas inaugurou umnovo mundo, também agora, por volta

de 500 anos depois, vive-se, para omal e para o bem, o limiar de um ou-tro novo mundo, de espaço planetárioe em tempo real, possibilitado pelasredes eletrônicas e televivenciais decomunicação. Esse novo mundo - des-coberto através de navegações deoutro tipo, as virtuais - aparece aindahoje como zona quase inexplorada,nova fronteira do capitalismo, comodemonstra a expansão acelerada daeconomia na Internet, e como lugarprivilegiado das novas lutas políticas eemancipatórias da humanidade.

Mídia e contemporaneidade: globalizaçõesA navegação na sociabilidade estru-

turada e ambientada pela mídia permi-te descobrir e aportar nas fronteiras deexpansão do mundo contemporâneo.Uma das facetas mais significativasdessa expansão acelerada do mundonormalmente atende pelo nome deglobalização. Desnecessário se alongarna afirmação do imanente enlace exis-tente entre globalização e a explosãodas comunicações na atualidade. Ho-bsbawm, por exemplo, considera queas revoluções dos transportes e dascomunicações como essenciais para omovimento de globalização13.

Para iniciar essa outra viagem, cabe,de imediato, distinguir globalização dotermo internacionalização. Por óbvio,toda globalização implica internacio-nalização, mas não se reduz a isso.Manoel Castells, percebendo a novida-de da noção, sugere um outro compo-nente vital:

“O novo não é tanto que a econo-mia tenha uma dimensão mundial(pois isto ocorre desde o século XVII),mas que o sistema econômico fun-cione cotidianamente nesses termos.Neste sentido, assistimos não somen-te à internacionalização da econo-mia, mas a sua globalização, isto é, auma interpenetração das atividadesprodutivas e das economias nacio-nais em um âmbito mundial” 14.

Desse modo, soma-se à internacio-nalidade, própria do espaço planetário,um acontecer cotidiano e, mais do queisso, uma cotidianidade marcada pelapossibilidade de simultaneidade e deinstantaneidade, de se realizar emtempo real. A mistura desses ingredi-entes conforma o caráter singular econtemporâneo do processo de globa-lização.

Apesar de sua utilização generalizan-te, o termo, em um uso mais rigoroso,deveria acionar sempre um plural: glo-balizações. Como diversos autores têmobservado, o processo de globalização,desigual e combinado, afeta de mododistinto as diferentes regiões do plane-ta e os diversos campos da sociedadecontemporânea. José María Gómez15,por exemplo, assinala a capacidade de

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Quando as comunicações estão intimamente imbricadas com a cultura, o ritmo do movimento tende a se desacelerar ou a ser dificultado por uma série de obstáculos.

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fragmentação e de exclusão inerenteao processo de globalização, o qual,de modo simultâneo e tenso, integra eexclui, totaliza e fragmenta16. A globali-zação nessa perspectiva gera situaçõesde intensa desigualdade entre regiõese mesmo no interior de um determi-nado território. Renato Ortiz17, por ou-tro lado, preocupado com os descom-passos existentes nos movimentosdiferenciados de globalização presen-tes nos variados campos sociais, assi-nala que tais ritmos discrepantes de-correm da natureza dos campos envol-vidos, e propõe somente aplicar a no-ção de globalização às dimensões eco-nômica e técnica do processo, reser-vando o termo mundialização para acultura, devido ao significado ocupadopelo lugar nesse horizonte.

As globalizações, no entanto, proce-dem de modo desigual também quan-do referidas a um mesmo campo so-cial. Evidentemente, funcionam comdinâmicas diferenciadas o processo deglobalização do capital financeiro, alta-mente volátil e fluido, e aquele realiza-do pelo setor industrial, certamente emritmo mais lento. Isso para não lembrar,ainda no campo econômico, as subs-tantivas barreiras impostas à migraçãoda mão-de-obra, que buscam bloquearou minorar a globalização da força detrabalho18. O sólido muro existente en-tre os Estados Unidos e o México mere-ce destaque neste aspecto.

As comunicações, enquanto confor-madas como conjunto convergente demídias, instalam-se como instrumentosócio-tecnológico viabilizador de par-cela significativa das globalizações emcurso19. As redes informáticas de infor-mação aparecem como imprescindí-veis para as movimentações financei-ras de capitais nas bolsas de todo omundo. Nessa perspectiva, elas estãoinseridas no cerne dos processos deglobalização mais acelerados.

O mesmo não acontece analisando-

se outras angulações possíveis para oprocesso. Em um recorte mais cultural,quando as comunicações estão inti-mamente imbricadas com a cultura, oritmo do movimento tende a se desa-celerar ou a ser dificultado por uma sé-rie de obstáculos. As culturas das mí-dias, circuito cultural dominante nacontemporaneidade, apesar de suamarca internacional-popular20, quepropicia fluxos simbólicos comparti-lhados por amplos segmentos sociaisna sociedade contemporânea, não re-sultam sempre em uma mera homo-geneização, como chegou a se pensarinicialmente, mas podem apresentarcomo resultado também a emergênciade fluxos culturais locais. Mike Fea-therstone, idealizando essa percepção,chegou a escrever:

“Assim, uma conseqüência parado-xal do processo de globalização, apercepção da finitude e da ausênciado planeta e da humanidade, não éproduzir homogeneidade, e sim fa-miliarizar-nos com a maior diversida-de, com a grande amplitude das cul-turas locais”21.

A idealização apontada no autorpode ser detectada na assertiva queafirma o caráter de obrigatoriedade daemergência da diversidade das cultu-

ras locais, olvidando que ela se apre-senta como possibilidade, que podeou não se realizar em circunstânciasdadas. A afirmação também desconhe-ce a desigualdade de potência, quasesempre presente, entre os fluxos inter-nacionais-populares, ancorados em ro-bustas indústrias transnacionais decultura, e os fluxos locais, muitas vezesdestituídos de suportes de tal magni-tude.

Mas pode-se aceitar que a dinâmicapropriamente cultural, quando não to-talmente abandonada, em geral interdi-ta uma homogeneização, sem mais, efaz emergir fluxos locais expressivosque marcam a cultura e a comunicação.

A força do lugar, como insiste MiltonSantos22, impregna a cultura e transfor-ma o processo de globalização emmundialização, como sugere RenatoOrtiz, ou em movimento de glocaliza-ção, conforme reivindicam inúmerosautores, pois aos fluxos e estoques in-ternacionais-populares ou globais mes-clam-se, em menor ou maior grau,com fluxos e estoques locais, ocasio-nando a possibilidade de rejeições, as-similações e hibridações23. A glocaliza-ção deve ser retida, enfim, como ten-são em permanente movimento.

A noção de glocal tenta dar contadesse caráter complexo e tenso. Mas-simo Canevacci, por exemplo, assimcomenta a noção:

“Essa palavra nova, fruto de recí-procas contaminações entre global elocal, foi forjada justamente na ten-tativa de captar a complexidade dosprocessos atuais. Nela foi incorpora-do o sentido irrequieto do sincretis-

Mídia e Poder

Os enlaces entre política e comunicação, (re)adequando-se nesta circunstância de ambiente formatado pelas mídias, possibilitam a emergência de novas configurações da política.

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 23

mo. O sincretismo é glocal. É um ter-ritório marcado pelas travessias en-tre correntes opostas e freqüente-mente mescladas, com diversas tem-peraturas, salinidades, cores e sabo-res. Um território extraterritorial” 24.

A trajetória desenvolvida até aquipermite intitular mais rigorosamenteo processo em estudo, utilizando-se otermo glocalizações. Parece sugestivorecorrer a ele também para com-preender a dinâmica e as novas fron-teiras da política no mundo contem-porâneo. Antes disso, no entanto, tor-na-se necessário um retorno à políti-ca com seus impasses e desafios no-vos provenientes da idade mídia con-temporânea.

Política e idade mídiaO equacionamento privilegiado das

novas configurações do campo políti-

co, nesta circunstância histórica e mi-diática peculiar, deve acompanhar edar ênfase às suas inovadoras espacia-lizações sociais (instituições), aos re-gistros de funcionamento acionados eaos formatos adquiridos pela política.A Idade Mídia redimensiona a política,resignificando-a: como uma políticarealizada em redes eletrônicas (telepo-lítica), através do aparecimento de no-vos ingredientes políticos e pela rede-finição do funcionamento e dos forma-tos da política realizada em territórios,espaços geográficos determinados(aqui representados pela metáfora darua), pela virtualidade da sua possívelabsorção em redes midiáticas (defini-das pela noção metafórica de tela).Uma discussão mais aprofundada detodos esses tópicos pode ser encontra-da em meu livro recentemente publica-do sobre comunicação e política25.

Tomando em consideração o quadroanalítico esboçado, pode-se detalhar ahipótese que inspira este texto. Tal hi-pótese especificada pode ser formula-da do seguinte modo: os enlaces entrepolítica e comunicação, (re)adequan-do-se nesta circunstância de ambienteformatado pelas mídias, possibilitam aemergência de novas configurações dapolítica, pois ela se vê afetada pelapresença de novos espaços e ingre-

dientes, e pela redefinição de algunsde seus antigos componentes, desen-volvidos desde os primórdios da mo-dernidade, criando assim um descon-forto para política formatada para osespaços modernos e simultaneamenteimpondo novos desafios à atividadepolítica.

No mundo glocalizado, a dimensãopública do espaço eletrônico, consti-tuído pela comunicação midiatizada,quaisquer que sejam seus suportes so-ciotecnológicos, torna-se lugar essen-cial de luta política por poderes, asso-ciando-se aos espaços geográficos -ruas, praças, parlamentos, palácios degoverno, etc. - tradicionais locais deembate da política. A recente escolhada mídia, equipamento sociotecnoló-gico que dá alguma materialidade aoespaço eletrônico, como alvo prioritá-rio de incursões de lutas pelo poderpolítico, apenas confirma essa percep-ção atualizada.

A existência desse outro espaço derealização da política, sem dúvida, in-troduz inúmeros problemas hoje es-senciais ao rigoroso entendimento datransmutação da política e da emer-gência de uma midiatização da políti-ca, ou melhor, de uma política midiati-zada.

Um dos debates fundamentais a es-ta política à distância - ou telepolítica -localiza-se na questão dos procedi-mentos de tradução da política nas lin-guagens e culturas, de intenso teoraudiovisual, da comunicação midiáti-ca. Essa adequação pode ser entendi-da em tons radicalmente distintos, quevariam desde a suposição de uma me-ra transposição, sem alterações, da po-lítica ao espaço eletrônico, até, empólo oposto, a crença de uma inevitá-vel subordinação da política às gramá-ticas (tele)midiáticas, as quais termina-riam por “despolitizá-la”, isto é, desti-tuir a política de sua lógica e eficáciaintrínsecas. Entre esses dois extremos,

Mídia e Poder

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE24 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

emerge uma infinidade de alternativasoutras.

Nesse pólo limite, no qual pareceacontecer presumivelmente a des-construção da política pela comunica-ção midiática, muitas vezes instala-se arecorrente tese acerca da espetaculari-zação da política pela atuação das mí-dias. Em geral, a espetacularizaçãoaparece como identificada, sem mais,com a absorção midiatizada da políti-ca. Em outros momentos e textos, talidentificação já foi rechaçada, afirman-do-se, pelo contrário, a realização dapolítica midiática através do aciona-mento de inúmeros dispositivos, inclu-sive, mais apenas por vezes, o espeta-cular.

Analiticamente se requer a impor-tante distinção entre as linguagens eculturas midiáticas, inerentes indispen-sáveis ao trânsito na mídia, e à lógicamercantil dominante na comunicaçãomidiatizada, hoje subsumida ao capi-tal. A pleiteada distinção, apesar de es-sencial, não pode ser realizada comtranqüilidade, pois a lógica mercantiltende no capitalismo a impregnar for-temente as culturas, principalmente, emesmo as linguagens das comunica-ções midiatizadas, tornando a distin-ção um esforço analítico árduo.

A tradução da política para a dimen-são pública dos espaços eletrônicosconformados e operados pela mídia,aqui designada como telepolítica, nãoesgota, nem contempla todas as muta-ções da política ocasionadas por suarealização em ambiente tecido pelasredes comunicacionais.

A telepolítica e esse ambiente fazememergir, simultaneamente, um con-junto de novos ingredientes que seagregam e passam a compor o campopolítico atual, por mais relutância quealguns de seus representantes tenhama esse respeito. Esse campo da políti-ca, agora tensa conjunção de compo-nentes oriundos da modernidade e dacontemporaneidade, incorpora, porexemplo, em listagem não exaustiva:as sondagens de opinião, o marketingpolítico, o marketing eleitoral etc.

Os novos ingredientes, antes de se-rem desqualificados como intrusos eportadores de lógicas estrangeiras àpolítica, devem ser compreendidos emsua novidade e pensados em sua loca-lização, ainda não bem delineada, nocampo da política, bem como em suaarticulação e tensão com os antigoselementos que davam substância aesse campo. Por certo, estas instala-ções não podem acontecer sem o en-frentamento dos dilemas, que, por ve-zes, devem reconfigurar momentos emovimentos da política, tradicional-mente bem equacionados e aceitos.

O envolvimento por esse ambiente,a quase onipresença da mídia, a tele-política, estes novos componentes po-líticos, para além deles mesmos, afe-

tam em profundidade a política que serealiza em seus tradicionais lugares:nas ruas, praças, parlamentos, etc.

Primeiro porque a existência dessacomplexa constelação redefine os ni-chos ocupados por cada um dos ele-mentos na “ecologia” da política atual.Tal reorganização, no entanto, não sig-nifica, sem mais, que a política das ru-as seja eclipsada ou meramente subs-tituída pela tela e por suas formata-ções políticas afins. Em vez disso, po-dem ocorrer redefinições, nas quais oreposicionamento dos elementos de-pende sempre de campos de forçassingulares existentes.

Rua e tela ou “plaza y platea”, comodiz María Cristina Mata 26, não se elimi-nam ou se sobrepõem com o aniquila-mento do outro. Antes realizam tensasinterações políticas, através das quaisremanejam hierarquicamente suas es-pacializações, adquirindo posições depoder, continuamente movimentadaspelas mutações dos campos de força,expressos em acontecimentos singula-res. Rua e tela redefinem mutuamenteseus poderes, conteúdos, formatos emmovimento. Néstor García Canclini,por exemplo, assinala:

“Quiero aclarar, por último, queanalizar sólo la política como ‘video-política’ llevaría a sobrestimar la ca-pacidad manipuladora de los me-dios. La política también ocurre enotros espacios, en las instituicionesclásicas y en microescenas cotidia-nas. Pero no podemos desconocerque ocurre mucho más en los me-dios que en el pasado, y que esta ac-ción de los medios ha relativizado laacción de partidos y sindicatos. Esmuy difícil que forme parte de la polí-tica nacional algo que además deocurrir en la calle no pase en las fá-bricas, en organizaciones de base yno pase también por los medios, silos medios no se hacen eco de estoshechos. Aunque se reconozcan otras

Mídia e Poder

Buscar e produzir “efeitos de mídia” nos acontecimentos de rua, praça, parlamento, etc. aparece como dispositivo fundante da produção de sentidos políticos na atualidade.

instancias, creo que el problema estáen cómo esas instancias se relacio-nan con los medios” 27.

Além deste jogo permanente dereposicionamentos, as políticas da ruae da tela podem, em circunstânciasdeterminadas, ao ser colocadas emsintonia, tornarem-se afinadas e assimpotencializar seu desempenho, nãomais eivado de contradições, mas emprocesso dialógico com um horizontede complementariedade. Aqui poder-se-ia sugerir um movimento de poten-cialização da realização da política 28.

As ressonâncias políticas da tela so-bre a rua transcendem este jogo de“ecologias” e, em segundo andamen-to, perpassam o próprio movimentarda rua e dos outros lugares afins dapolítica moderna. Em sintonia finacom a contemporaneidade, percebe-se que o sentido produzido pela mobi-lização na rua em sociedades globali-zadas, na maioria das vezes, não serealiza em plenitude, se apenas seretém o significado advindo e circuns-crito à rua. Extrapolando estas frontei-ras, tal sentido hoje produz-se na in-terlocução entre rua e suas adjacên-cias eletrônicas.

Buscar e produzir “efeitos de mídia”nos acontecimentos de rua, praça, par-lamento, etc. aparece como dispositivofundante da produção de sentidospolíticos na atualidade. Um ato valepoliticamente não só - ou mesmo pri-mordialmente - pelo efeito induzidonas suas circunstâncias convivencia-das, mas (também) pelas repercus-sões que produz à distância na realida-de-mundo, através da mediação ope-rada pela comunicação midiática. Emoutras palavras, pelo “efeito de mídia”que se consegue “introduzir” no ato.

Desse modo, as críticas arremessa-das aos acontecimentos políticos quebuscam se produzir também - ou prin-cipalmente - para a dimensão pública

midiatizada, além de serem considera-das impertinentes, desnudam uma in-compreensão profunda da naturezacompósita da sociabilidade contempo-rânea e do novo ambiente da política.

Os “efeitos de mídia” podem serconstruídos pelo acionamento de umadiversidade de dispositivos de produ-ção de sentidos. Dentre eles, desta-cam-se recorrências à espetaculariza-ção, adequações às gramáticas teleco-municacionais, aproximações às lógi-cas midiáticas de representação da rea-lidade/mundo, investimentos em crité-rios de noticiabilidade, radicalização decontrastes inscritos na realidade etc.

Assim, o impacto desse ambiente decomunicação, dessa Idade Mídia, con-forme esse sistema de hipóteses, fazemergir novas e polissêmicas configu-rações da política que, para o mal oupara o bem, ocupam espaços eletrôni-cos (telepolítica), trazem à cena novosingredientes e redefinem os antigoscomponentes da política moderna,condensados metaforicamente naexpressão “rua”.

Política e glocalizações A política como modo de resolver a

questão do poder político, no dizer deCastoriadis, apesar de inventada naGrécia, adquire seus contornos signifi-cativos na modernidade. Dentre suasinúmeras características, duas devemser agora destacadas: a adequação desuas modalidades e formatos de de-senvolvimento aos espaços geográfi-cos propícios às convivências e à pre-ponderância de uma dinâmica nacio-nal para a sua realização.

Essa circunscrição marcadamente

nacional das conformações da políticafica evidente quando se rememoramas principais instituições do campo dapolítica nascidas na modernidade: oEstado-nação, os parlamentos, os par-tidos, os sindicatos, as entidades asso-ciativistas etc. Também os ritos - elei-ções, por exemplo - , os espaços públi-cos e a opinião pública privilegiam niti-damente os horizontes nacionais. Au-tores como Octávio Ianni, Renato Ortize José María Gómez, para lembrar ape-nas alguns, já anotaram as fronteirasnacionais adquiridas pela política mo-derna.

A globalização do mundo e especifi-camente da política redefine tambémo lugar da política. Ela desatualiza e re-lativiza locais de atuação, cria novasinstâncias passíveis de atuação políti-ca, reorganiza a ecologia do sistemade poder político existente e, enfim,obriga a política a enfrentar uma com-plexa gama de novos desafios. Assim,a crise atual da política também derivada glocalização em curso. Ianni, a esterespeito, escreve: “A globalização desa-fia radicalmente os quadros de refe-rência da política, como prática e teo-ria”29.

O Estado-nação, instituição centralda política moderna, tem seu poder esoberania deprimidos pela crescente

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 25UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

Com as políticas públicas nacionais constrangidas, perdem força os parlamentos, os partidos e as instituiçõesinstaladas e atuantes no espaço-nação.

interdependência dos países, pelo nas-cimento de pactos macro-regionais,pela emergência de legislações globaise pelo surgimento de instituições trans-nacionais, políticas ou não. Com as po-líticas públicas nacionais constrangidas,perdem força os parlamentos, os parti-dos e as instituições instaladas e atuan-tes no espaço-nação. Mas longe se estádo esgotamento destas instituiçõespolíticas nacionais. Renato Ortiz reco-nhece que: “Preferencialmente, a polí-tica continua a ser uma prática demar-cada pelas imposições nacionais”30.José María Gómez, mais enfático, afir-ma:

“Como já se disse, embora cresçaa importância e o papel das organi-zações internacionais regionais eglobais, corporações transnacionais,movimentos subnacionais, movimen-tos sociais e organizações não-gover-namentais, o Estado e o sistema deestados permanecem no coração dapolítica mundial e no centro dos de-bates sobre a natureza, alcance eorientação - dominante ou alternati-va - das mudanças, de todos os tipos,que operam hoje em escala planetá-ria”31.

Desse modo o Estado-nação conti-nua a reter significativa parcela de po-der no jogo político nas sociedades

contemporâneas, apesar de ter seu lu-gar vivamente redefinido e deprimidono contexto da política atual32.

A perda de poder do Estado-nação,em uma circunstância de globalização,atinge inclusive um dos seus mais rele-vantes potenciais: sua dominância nacapacidade de constituir identidades,componente vital de uma era políticaplena de nacionalismos. A respeitodessa temática, Renato Ortiz observa:“A modernidade-mundo multiplica osreferentes identitários, retirando, po-rém, do Estado-nação a primazia dedefini-los”33.

A questão do lugar da política surgecomo essencial nesse novo mundo.Renato Ortiz, por exemplo, depois devoltar a afirmar as fronteiras nacionaisda política moderna, escreve:

“A rigor, um dos dilemas do mundocontemporâneo consiste em respon-der corretamente à pergunta: qual olugar da política? Já não é mais sufi-ciente confiná-la no contorno do Es-tado-nação. A globalização colocapois um desafio: imaginar a políticadentro de parâmetros universais emundializados” 34.

Ianni, nessa mesma sintonia, chamaa atenção para a alteração significativado lugar da política em uma circuns-tância globalizada. Em suas palavras:

“...desloca-se radicalmente o lugarda política. Ainda que se continue apensar e agir em termos de sobera-nia e hegemonia, ou democracia ecidadania, tanto quanto de naciona-lismo e Estado-nação, modificaram-se radicalmente as condições ‘clás-

sicas’ dessas categorias, no que serefere às suas significações práticase teóricas” 35.

A política deve ocupar então umnovo lugar, mas sua delimitação apa-rece como problemática, pois está emjogo a singularidade do impacto e doprocesso de globalização no campopolítico.

Hobsbawm, em sua longa entrevista,chama a atenção para essa peculiari-dade:

“Ainda que se possa dizer que háuma tendência histórica natural paraa globalização nas áreas de tecnolo-gias, comunicações e economia, istocertamente não vale para a política.Estamos comparando aspecto dife-rentes do mundo, aspectos que nãose desenrolam de maneira similar’36.

Páginas adiante, ele volta ao assuntopara assinalar que a existência de or-ganismos e autoridades internacionaisdecorre de decisões políticas delibera-das e não de um desenvolvimento au-tomático da economia ou da tecnolo-gia. Pouco depois, Hobsbawm afirma:“Este é um problema que irá dominaro século XXI”37.

A singularidade da globalização dapolítica deve reter, por conseguinte,essa persistência do papel do Estado-nação e de uma dinâmica nacionaliza-da. A política, diferente do que aconte-cia na modernidade, já não pode tersua localização primordial no espaçonacional e no Estado-nação, mas nãodeve subestimá-los, pois esses semantêm vigentes, ainda que relativiza-dos. Em verdade, o lugar da políticacontemporânea deve ser pensado co-mo perpassado por contrastes e ten-sões advindos de um momento histó-rico de transição, no qual fluxos, inte-resses, demandas globais e nacionaisse entrecruzam em disputa. José MaríaGómez anota dois destes contrastes: a

26 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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O lugar da política contemporânea deve ser pensado como perpassado por contrastes e tensões advindos de um momento histórico de transição

coexistência de uma economia cadavez mais desterritorializada e uma polí-tica territorializada e a persistência dasoberania nacional em uma situaçãode crescentes decisões políticas glo-bais38. Mas esses contrastes observa-dos não o impedem de assumir que:

“os processos de globalização mu-dam radicalmente o contexto da po-lítica contemporânea, transformamsuas condições, conseqüências e ato-res, expandem os horizontes da ação(sentidos, valores, constituição de su-jeitos e identidades, alianças, anta-gonismos, etc.) e interpelam as cate-gorias com que habitualmente sãopensados seus principais problemas,dilemas e desafios”39.

Em resumo, diferentemente da eco-nomia e da técnica que aparecem co-mo mais rapidamente globalizáveis,ou da cultura, que retendo a força dolugar, torna-se híbrida, glocalizando-se,a política tende a associar o global e olocal com o nacional, em decorrênciado significado adquirido por ele na tra-dição política moderna.

A afirmação da defasagem históricaentre a criação de instituições políticase o novo mundo, a constatação dadecadência da política (representativa)tradicional e a insistente reivindicaçãoda necessidade de uma nova política,expressas por Tarso Genro40, nessecontexto, parecem ganhar plenamentesentido. Almejar e, inclusive, construiruma política que se conforme em sin-tonia com a nova era, com a sociabili-dade estruturada e ambientada pelamídia e pelos processos de globaliza-ções (ou melhor, glocalizações) torna-se uma possibilidade de atualizaçãoda política e de, por conseguinte, en-contrar um lugar mais pertinente paraessa atividade essencial para a socie-dade e seu governo.

Após essa rápida incursão na singu-laridade do movimento de globaliza-

ção da política, cabe tentar descrever,em linhas gerais, alguns dos novoscomponentes que conformam o jogopolítico. Em primeiro lugar, assinale-sea emergência de temas reconhecidospoliticamente como globais. José Ma-ría Gómez elenca alguns deles: o meioambiente, os direitos humanos e a de-mocracia política41. Outros poderiamser facilmente aqui incluídos, a exem-plo do narcotráfico. Em segundo lugar,anote-se que esses temas e outros,políticos ou não, transitam e tornam-se compartilhados através da existên-cia de uma dimensão pública instituí-da globalmente pelas redes midiáticas.Tal dimensão pública global tem im-portante incidência na política con-temporânea e aparece como institui-ção vital ao jogo político na atualidade.

Winfried Scharlau, dentre os muitosexemplos que poderiam ser rememo-rados, observa como a presença mi-diática atuou como catalisadora dasmanifestações estudantis da Praça daPaz Celestial42. Por fim, em terceiro lu-gar, deve-se elencar os numerosos enovos atores políticos conformadospela nova circunstância societária.

Octávio Ianni, no seu já clássico livroA sociedade global, lista os novosagentes dos poderes globais43. Dentreeles comparecem: a Organização dasNações Unidas - ONU e instituiçõescongêneres; o Fundo Monetário Inter-nacional - FMI, o Banco Mundial, oBanco Internacional de Reconstrução eDesenvolvimento - BIRD e instituiçõesfinanceiras afins; as empresas transna-cionais; as indústrias da comunicaçãoe da cultura, como suas redes mundia-lizadas, e a sociedade civil global.

Podem ser acrescidos a esta lista ospactos macro-regionais, que algumasvezes apenas expressam acordos entrenações, mas que outras vezes adqui-rem importantes dimensões suprana-cionais, como acontece com a Co-munidade Européia. Também os cha-mados “regimes internacionais”44 po-dem ser somados a listagem dos po-deres globais, pois transformam-se emparâmetros e constrangimentos signifi-cativos para a intervenção política.Através desses acordos, nos quais con-vergem expectativas, instituem-se nor-mas e valores que podem ser conside-rados “politicamente corretos” e ten-dencialmente universais, tais como:democracia, direitos humanos, liberda-de, direitos da mulher e das minorias,individualismo, preservação do meioambiente, etc45. A conotação ocidentalde tais valores e relevantes contraten-dências, entretanto, (ainda?) limitam avigência global de alguns desses “regi-mes internacionais”. Enfim, um últimoator político reivindicado por diversosautores: a cidadania planetária46.

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 27

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Movimentos sociais localizados, como o MSTbrasileiro e os neo-zapatis-tas mexicanos48, sabiamentenão só utilizam a proteção possibilitada pela dimensãopública e pelos valores globais para empreendersuas lutas reivindicatórias,como vêm atuando em finasintonia com o contemporâneo, ao articularem eficazmente olocal, o nacional e o global.

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Para se ter uma idéia, ainda queapenas numérica, certamente aproxi-mada e um pouco defasada, do cresci-mento desses novos atores políticospodem ser citados os dados extraídosdo livro Democracy and global order:as entidades intergovernamentais pas-saram de 37, em 1909, para 300, em1989, e as organizações não-governa-mentais subiram de 176, em 1909, pa-ra 4624, em 198947.

Outras mutações devem ser lembra-das, além daquelas analisadas no planonacional ou as pertinentes aos atores,temas e dimensão pública, que configu-ram dimensões globalizadas. Tambémo local, na nova circunstância societária,encontra-se transformado, inclusive emsua atividade política. Na contempora-neidade, o local encontra-se perpassa-do cotidianamente e em tempo real,especialmente nas cidades-metrópole,por fluxos nacionais e globais, passandoa conter e considerar no dia-a-dia da-dos provenientes desses estoques.Movimentos sociais localizados, como oMST brasileiro e os neo-zapatistas mexi-canos48, sabiamente não só utilizam aproteção possibilitada pela dimensãopública e pelos valores globais para em-preender suas lutas reivindicatórias,como vêm atuando em fina sintoniacom o contemporâneo, ao articularemeficazmente o local, o nacional e o glo-bal. Com isso, potencializam sua inter-venção política, pois ampliam sua zonade atuação, suas modalidades de ativi-dade, seu leque de alianças e apoios esuas fontes de legitimidade. Assim, aslutas políticas locais adquirem outrossentidos, dado que se inscrevem emlinhas de força nacionais e globais, sen-do reterritorializadas, através de fluxos,sendo a maioria deles de natureza sim-bólica e midiática.

A quase onipresença desses fluxospermitem e, muitas vezes, legitimamtambém descolamentos entre o locale o nacional. Forças locais, que antes

se encontravam subjugadas à dinâmi-ca do Estado-nação, podem forjar no-vas identidades, ganhar expressão eemergir no cenário global, apoiadasjustamente na existência desse novopanorama político, no qual se desta-cam dimensões supra-nacionais.

O novo cenário possibilita, portanto,o nascimento de uma gama de novasestratégias políticas. Algumas comgrande capacidade de articular inter-venções locais, nacionais e globais,como as anteriormente citadas, outrasplenamente instaladas em horizonteglobalizado, como acontece com aatuação de entidades da sociedade ci-vil global, como o Greenpeace e aAnistia Internacional, que, apesar dis-so, realizam tonalidades diferenciadasde atividade política49. Entretanto, to-das essas estratégias retêm um com-ponente comum: a intrínseca conexãoda intervenção política com os recur-sos de comunicação, que as tornamsintonizadas com as demandas e cir-cunstâncias contemporâneas, comovimos, estruturadas e envolvidas porum intenso ambiente midiático. A ri-gor, poderíamos melhor denominar

essas estratégias de político-midiáti-cas. Nessa conformação, elas conse-guem assimilar o espaço eletrônicopleno de televivências, no qual ocor-rem parte significativa das disputaspolíticas hoje; a dimensão glocalizadaque marca esses embates; e estarematentas às mídias, esses novos e nadadesprezíveis atores políticos contem-porâneos. Aqui parecem se reencon-trar, não sem tensões, a política, a mí-dia e o glocal.

Desafios contemporâneosOs deslocamentos acontecidos no

lugar da política na sociabilidade con-temporânea, como foi insistentementelembrado, colocam novas desafios àpolítica. De início, o desafio pode serexpresso como busca de lugar ade-quado e sintonizado com circunstân-cias societárias contemporâneas, en-volvidas por um ambiente marcada-mente midiático e glocalizado. Em se-qüência, o desafio aparece como in-vestimento necessário à política paraocupar o(s) novo(s) lugar(es) e se rea-lizar enquanto atividade essencial parao governo da sociedade. Esses desa-fios estão umbilicalmente associados aoutro, fundamental para a política epara a sociedade atuais: a democracia.

Hobsbawm fala da possibilidade decontrolar o mercado, aparentemente,todo poderoso nos tempos (neolibe-rais) recentes, recorrendo-se à políti-ca50. Jacques Levy observa que, diantedas dificuldades de auto-regulação domercado, fica evidente a necessidadede apelar ao político, apesar de reco-nhecer a ausência de uma dimensãopropriamente política constituída nomundo atual51. O imperativo da regula-ção da sociedade (e do mercado) co-loca a política em cena e, mais queisto, aponta o lugar essencial da de-mocracia na constelação que estásendo inaugurada.

A democracia na atualidade se vê

28 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

O imperativo da regulação da sociedade (e do mercado) coloca apolítica em cena e, mais que isto, aponta olugar essencial da

democracia na constelaçãoque está sendo inaugurada.

traspassada por um intenso paradoxo,como perspicazmente percebeu TulloVigevani: “No momento mesmo que ovalor democracia parecia universalizar-se, ele tende a ver drasticamente redu-zida sua importância”. O autor, aliás,considera esta “talvez a questão centralda política nas próximas décadas” 52.

A instalação e o desenvolvimento dademocracia nos espaços eletrônicos,com a democratização das mídias esuas redes, e nos espaços geográficos,para além das fronteiras nacionais 53,passam a ser requisitos fundantes dapossibilidade de ser falar em democra-cia na contemporaneidade. Sem estasdemocratizações, não existe efetiva-mente democracia hoje.

Ainda que possa se acreditar, semmais, que a informação globalizadasem fronteiras, característica marcantede uma sociedade midiatizada, possater um poder democratizante e corro-sivo para os regimes autoritários fecha-dos54, certamente isso não basta paraequacionar de modo satisfatório o te-ma da democracia dos espaços eletrô-nicos. A exigência da pluralidade políti-ca e ideológica torna-se aqui impres-cindível. O controle da sociedade so-bre as mídias também. Portanto, novasmodalidades democráticas de gover-no do espaço eletrônico e dos espaçosgeográficos globalizadas tornam-se es-senciais para conformar uma nova si-tuação radicalmente democrática.

Mas algumas possibilidades estãodadas como assinalam alguns autores.Thesing fala de novas modalidades departicipação política permitidas inclusi-ve pelas mídias55. Tarso Genro, seguin-do Pietro Ingrao, diz da possibilidadede conjunção da democracia represen-tativa com momentos de democraciadireta, viabilizados pelas mídias56. Vige-vani, citando outros autores, chega afalar em uma democracia cosmopoli-ta57. Finalmente José María Gómez rei-vindica uma globalização “por baixo”58.

Todos eles, para não lembrar aqui ou-tros autores, põem em cena a necessi-dade e a possibilidade de aprofunda-mento da democracia nos espaçoseletrônicos e geográficos, para alémdo Estado-nação. Isto requer um go-verno planetário democrático e um es-paço eletrônico glocalizado democrati-zado, como também novos formatos,novas instituições, novos temas e no-vos atores políticos.

Em resumo, este texto buscou tema-tizar as profundas mutações em cursona política contemporânea. A dissocia-ção entre a política, formatada princi-palmente na modernidade, e as condi-ções societárias transformadas pelatransição da modernidade para umacontemporaneidade, marcada poruma ambiente midiatizado e glocaliza-do, originou, conjuntamente com ou-tros fatores, uma crise na política. A su-peração dessa crise depende da capa-cidade da política de compreender ede se instalar nos novos lugares, espe-cialmente nos espaços eletrônicos eglobais, moradas contemporâneas deintenso poder político. A invenção denovas instituições, novos rituais, novosformatos, novos atores, novas temáti-cas, novas estratégias político-midiáti-cas-glocais, novas modalidades de rea-lização da democracia passa assim aser fundamental para a inauguraçãode uma nova política, sintonizada como tempo e o espaço contemporâneos.

NOTAS 1. SCHAWZENBERG, Roger-Gérard. O esta-

do espetáculo. Rio de Janeiro, Difel, 1978.2. SARTORI, Giovanni. Homo videns. Roma-

Bari, Gius.Laterza & Figli Spa, 1997.3. MAFESOLLI, Michel. A transfiguração do

político. Porto Alegre, Sulina, 1997.4. BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fa-

tais. Rio de Janeiro, Rocco, 1996. 5. Alguns autores podem ser aqui evoca-

dos. Ver ALTHUSSER, Louis. Os aparelhos ide-ológicos de estado. Rio de Janeiro, Graal,1985 e GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas.Lisboa, Estampa, 1974.

6. SWEEZY, Paul e BARAN, Paul. O capitalis-mo monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.

7. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comu-nicação como extensões do homem. São Pau-lo, Cultrix, 1974.

8. BENJAMIN, Walter. A obra de arte naépoca de sua reprodutibilidade técnica. In:LIMA, Luiz Costa (org.). Teorias da cultura demassa. Rio de Janeiro, Saga, 1969.

9. Renato Ortiz, por exemplo, afirma o ca-ráter constitutivo desempenhado pelos meiosde comunicação na formação da modernida-de-mundo. Ver: ORTIZ, Renato. Mundialização,cultura e política. In: DOWBOR, Landislau;IANNI, Octávio e RESENDE, Paulo-Edgar(orgs.) Desafios da globalização. Petrópolis,Vozes, 1999, p.273.

10. DEBORD, Guy. A sociedade do espetá-culo. Comentários sobre a sociedade do espe-táculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

11. BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et si-mulation. Paris, Éditions Galilée, 1981.

12. Ver: LYON, David. The information so-ciety: issues and illusions. Cambridge, PolityPress, 1988; KUMAR, Krishan. Da sociedadepós-industrial à pós-moderna: novas teoriassobre o mundo contemporâneo. Rio de Janei-ro, Jorge Zahar, 1997; MIÈGE, Bernard. Lasociété conquise par la communication. Gre-noble, PUG, 1989; JAMESON, Fredric. Postmo-dernism, or, the cultural logic of late capita-lism. Durham, Duke University Press, 1991;SCHAFF, Adam. A sociedade informática. SãoPaulo, UNESP-Brasiliense, 1991; VATTIMO,Gianni. A sociedade transparente. Lisboa, Edi-ções 70, 1991; CASTELLS, Manuel. The infor-mation age: economy, society and culture.Cambridge, Blackwell Publishers Inc, 1996-1998 (três volumes); SOARES, Ismar de Oli-veira. Sociedade da informação ou da comu-nicação? São Paulo, Editora Cidade Nova,1996; MORAES, Dênis de. Planete mídia.Campo Grande, Letra Livre, 1998 e RUBIM,

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 29

Mídia e Poder

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

30 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Antonio Albino Canelas Rubim. A contempo-raneidade como idade mídia. Trabalho apre-sentado no V Congresso da Associação La-tino-americana de Investigadores da Comuni-cação - ALAIC. Santiago do Chile, 26-29 deabril de 2000.

13. HOBSBAWM, ERIC. O novo século (en-trevista a Antonio Polito). São Paulo, Com-panhia das Letras, 2000, p.71.

14. CASTELLS, Manoel. A economia infor-macional, a nova divisão internacional do tra-balho e o projeto socialista . In: Caderno CRH.Salvador, (17):5-34, julho- dezembro de 1992.A citação está na página 8.

15. GÓMEZ, José María. Globalização da po-lítica - mitos, realidades e dilemas. In: GENTI-LI, Pablo (org.) Globalização excludente. De-sigualdade, exclusão e democracia na novaordem mundial. Petrópolis, Vozes, 1999,p.128-179. Ver também: GÓMEZ, José María.Política e democracia em tempos de globali-zação. Petrópolis - Buenos Aires, Vozes -Clacso, 2000.

16. Ver também: BAUMAN, Zygmunt. Glo-balização. As conseqüências humanas. Rio deJaneiro, Jorge Zahar, 1999.

17. ORTIZ, Renato. A mundialização da cul-tura. São Paulo, Brasiliense, 1994.

18. Hobsbawm assinala a atual coexistênciaentre gloabalização e controle dos fluxos mi-gratórios. Ver: HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.73.

19. GÓMEZ, José María. Globalização da po-lítica - mitos, realidades e dilemas...p.137, porexemplo.

20. ORTIZ, Renato. Ob. cit. p. 105-145.21. FEATHERTONE, Mike. O desmanche da

cultura. Globalização, pós-modernismo eidentidade. São Paulo, Nobel, 1997, p.124.

22. SANTOS, Milton. A natureza do espaço:técnica e tempo: razão e emoção. São Paulo,Hucitec, 1996.

23. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas hibri-das. São Paulo, Edusp, 1998.

24. CANEVACCI, Massimo. Sincretismos.Uma exploração das hibridações culturais.São Paulo, Nobel, 1996, p.25.

25. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Comu-nicação & política. São Paulo, Hacher, 2000.

26. Para uma perspectiva interpretativa si-milar a esta, ver o interessante texto de MATA,María Cristina. “Entre plaza y la platea”. In:SCHMUCLER, Héctor e MATA, María Cristina

(orgs.) Política y comunicación. Córdoba, Ca-tálogos, 1992, p.63-75.

27. CANCLINI, Néstor García. Cultura y co-municación: entre lo global y lo local. La Plata,Universidad Nacional de la Plata, 1997, p.59.

28. Acredito que isto possa ter acontecidodurante as eleições presidenciais brasileirasde 1989, particularmente na campanha docandidato Luiz Inácio Lula da Silva. Ver: RU-BIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e políticano Brasil. João Pessoa, Editora da UFPb, 1999.

29. IANNI, Octávio. A política mudou delugar. In: DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octávio eRESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) Desafios daglobalização. Petrópolis, Vozes, 1997, p.17.

30. ORTIZ, Renato. Digressão: cultura, cida-dania e política. In: ___. Um outro território.Ensaios sobre a mundialização. São Paulo,Olho d’água, s/d, p.126.

31. GÓMEZ, José María. Globalização dapolítica - mitos, realidades e dilemas...p.171-172.

32. A bibliografia sobre as redefinições con-temporâneas do Estado-nação hoje já apare-ce como vasta. Ver, por exemplo: CORSI, Fran-cisco Luiz. A globalização e a crise dos estadosnacionais. In: DOWBOR, Landislau; IANNI, Oc-távio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit.p.102-108; ALMEIDA, Lúcio Flávio de. Entre olocal e o global: poder e política na atual fasede transnacionalização do capitalismo. In:DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octávio e RESEN-DE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit. p.175-186.

33. ORTIZ, Renato. Mundialização, cultura epolítica. In: DOWBOR, Landislau; IANNI, Octá-vio e RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.) ob. cit.p.274.

34. ORTIZ, Renato. Mundialização, cultura epolítica...p.275.

35. IANNI, Octávio. ob. cit. p.20.36. HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.70.37. HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.88.38. GÓMEZ, José María. Globalização da

política - mitos, realidades e dilemas...p.155 e159, respectivamente.

39. GÓMEZ, José María. Globalização dapolítica - mitos, realidades e dilemas...p.140.

40. GENRO, Tarso. O futuro por armar. De-mocracia e socialismo na era globalitária. Pe-trópolis, Vozes, 1999.

41. GÓMEZ, José María. Globalização dapolítica - mitos, realidades e dilemas...p.162.

42. SCHARLAU, Winfried. Medios de comu-nicación, globalización y democracia. In: THE-SING, Josef e PRIESS, Frank (orgs.) Globaliza-ción, democracia y medios de comunicación.Buenos Aires, Centro Interdisciplinario de Es-tudos sobre el Desarollo Latinoamericano -CIEDLA, 1999, p.414.

43. IANNI, Octávio. A sociedade global. Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 1993, espe-cialmente nas páginas 125-146 e 35-52.

44. KRASNER, Stephen. Transforming inter-national regimes. In: OLSON, William (org.)The theory and practice of international rela-tions. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1991.

45. VIGEVANI, Tullo. Globalização e política:ampliação e crise da democracia? In: DOW-DOR, Landislau; IANNI, Octávio e RESENDE,Paulo-Edgard (orgs.) ob. cit. p.289.

46. Ver, por exemplo: VIEIRA, Liszt. Cidada-nia e globalização. Rio de Janeiro, Record,1998.

47. HELD, D. Democracy and the globalorder. Cambridge, Polity Press, 1995.

48. Sobre os neo-zapatismos, ver: RUBIM,Antonio Albino Canelas. Neozapatismo: guer-ra de imágenes. In: Etcétera. Semanario depolítica e cultura. México, (199):18-28, 21 dedezembro de 1996 e RUBIM, Antonio AlbinoCanelas. Neozapatismo: política na Idade Mí-dia. In: Contexto Internacional. Rio de Janeiro,19(1):151-173, janeiro-junho de 1997.

49. Para uma discussão das estratégias di-ferenciadas destas entidades, consultar: RU-BIM, Antonio Albino Canelas. Política midiati-zada: entre o global e o local. In: Comunica-ção e Sociedade (no prelo)

50. HOBSBAWM, Eric. ob. cit. p.87.51. LEVY, Jacques. Entre sociedade civil e

sociedade política. In: SANTOS, Milton; SOU-ZA, Maria Adélia ª de e SILVEIRA, Maria Laura(orgs.) Território. Globalização e fragmenta-ção. São Paulo, Hucitec, 1994, p.221-232.

52. VIGEVANI, Tullo. ob. cit. p.293.53. Ver sobre isso: THESIN, Josef. ob. cit. p.22.54. SCHARLAU, Winfried. ob. cit. p.42.55. THESING, Josef. ob. cit. p.23.56. GENRO, Tarso. ob. cit. p.44.57. VIGEVANI, Tullo. ob. cit. p.295.58 GÓMEZ, José María. ob. cit. p.173.

* Antonio Albino Canelas Rubim - FA-COM-UFBA- [email protected]

Mídia e Poder

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 31

Mídia e Poder

César Ricardo Siqueira Bolaño *

A política externa do Brasil em matéria de comunicação

A aprovação da emenda constitucio-nal que abre a possibilidade de parti-cipação do capital estrangeiro emempresas de comunicação no Brasil éum marco histórico na evolução domodelo brasileiro de regulação dascomunicações, promovendo umamudança dramática em relação adécadas de exclusividade para o capi-tal nacional no setor de radiodifusão,fruto do movimento mais recente deglobalização das indústrias culturais,

que levou a uma derrota inédita deum setor tradicionalmente protegidoda burguesia nacional, obrigado agoraa associar-se, por pressão do merca-do, com as grandes empresas oligo-plistas internacionais.

É verdade que uma brecha nessesentido já havia sido aberta na própriaLei do Cabo de 1995, que permitia aparticipação do capital estrangeiro napropriedade das empresas, em até49%, e principalmente na regulamen-

tação por portaria das tecnologias pos-teriores de TV segmentada, que nãorespeitou aquela determinação legal,permitindo que a propriedade estran-geira de emissoras de DTH ou MMDSfosse de até 100%, fato que acaboumuniciando o recente projeto do sena-dor Ney Suassuna, sob o argumentoda duplicidade de normas, de exten-são da regra dos 100% para toda a TVpaga.

Mas os jornais e as emissoras de ra-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE32 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Mídia e Poder

dio e televisão abertas, assim como osistema financeiro e o setor de cons-trução civil, sempre foram área privile-giada de uma certa burguesia nacio-nal. A aprovação da PEC 5/2002, alte-rando o artigo 222 da Constituição Fe-deral, aprovada com o apoio de todosos partidos, exceto o PDT, foi fruto deum acordo que pôs fim, em poucosmeses, a um debate de sete anos, gra-ças a uma mudança radical de posiçãopor parte da Globo, para quem o apor-te de recursos externos passou a sermais importante que a defesa que aregra anterior representava para a suaposição hegemônica frente a concor-rentes financeiramente mais frágeis.

Em última análise, a mudança expli-cita a atual situação de crise abertapela expansão da televisão segmenta-da e de outras mídias, como a internet- que têm a capacidade de atrair umaparcela crescente da população de in-teresse do mercado publicitário - e pe-lo avanço da concorrência internacio-nal trazido por esses novos setores e,sobretudo, pela implantação generali-zada do paradigma da digitalização eos elevados investimentos que ela su-põe. Mais uma vez, a produção legisla-tiva referenda os compromissos pre-viamente pactuados entre os atoreshegemônicos.

Mas nada disso afetará de formafundamental os conteúdos que sãooferecidos para a população brasileiranos canais da TV aberta ou paga, jáextremamente internacionalizados, so-bretudo estes últimos. No caso da TVaberta, mesmo desconsiderando o im-portante problema da internacionali-zação da programação infantil, o eleva-do índice de nacionalização da progra-mação brasileira mascara o fenômenoda importação de formatos, que temse acentuado recentemente, quando onegócio dos direitos de autor passa aser cada vez mais importante quandocomparado com o da importação de

programas, dadas as próprias caracte-rísticas do meio e da expansão da TVpaga e do paradigma da segmentação,consoante as atuais tendências de de-senvolvimento do capitalismo.

O fato é que, ao contrário do queocorre com a propriedade, nunca hou-ve no Brasil uma política nacionalistaem relação aos conteúdos, como, ali-ás, nunca houve concretamente nopaís uma preocupação com a regula-ção dos conteúdos em geral. Aindaque em alguns dos mais avançadosdos nossos instrumentos legais aquestão da produção regional e inde-pendente ou da programação culturale educativa estivessem presentes, oseu resultado prático pode ser consi-derado praticamente nulo em termoshistóricos.

O próprio debate sobre o assuntopraticamente deixou de existir no paísa partir dos anos 80, sem nunca tersido seriamente retomado, em con-traste com o que ocorre em nível inter-nacional, em que o liberalismo dosEUA, que pretendem incluir a culturanos acordos da OMC, se opõe à teseeuropéia, amplamente aceita no restodo mundo, da “exceção cultural”. O di-reito dos povos a não apenas preservara sua cultura local e nacional, mastambém apresentá-la e divulgá-la atra-vés dos canais e mecanismos maisamplos, aparece, para estes últimos,como um direito fundamental e condi-ção básica de sobrevivência na chama-da Sociedade da Informação que seconstrói globalmente pela ação decidi-

da dos diferentes estados nacionais,sendo a defesa da diversidade culturaltão importante e vital como a da bio-diversidade para o futuro humano.

É nesse sentido que devemos inter-pretar, por exemplo, como parte dosacordos do Mercosul, a ação dos go-vernos dos quatro países membros,que firmaram, a 3/2/96, na cidade deCanela, um Protocolo de IntegraçãoCultural que propõe a elaboração deprogramas e projetos regionais no âm-bito da cultura, estimulando a co-pro-dução e o intercâmbio; ações conjun-tas na área do patrimônio cultural; in-tercâmbio e capacitação de recursoshumanos; circulação de pessoas ebens culturais; promoção de eventosregionais; formação de bancos de da-dos e articulação dos sistemas de su-porte informático aos organismos cul-turais; pesquisas sobre temas históri-cos e culturais comuns e harmoniza-ção das legislações.

Para execução desses objetivos, quetêm como premissas a importância daintegração cultural para a integraçãoeconômica e a consolidação da demo-cracia, a necessidade de se garantir li-berdade de circulação de pessoas ebens culturais no interior do mercadocomum e de “preservar y difundir elpatrimonio cultural de la región con elobjeto de afianzar su identidad, respe-tando asimismo las diversidades sub-regionales”, foi definida uma sistemá-tica de programas executivos semes-trais, aprovados nas reuniões de Mi-nistros da Cultura,1 para ações concre-tas a serem coordenadas pelas máxi-mas autoridades competentes emcada um dos países membros, emconsulta com os organismos compe-tentes das suas chancelarias.2

Anita Simis avalia da seguinte formaos resultados alcançados até o mo-mento:

“en la perspectiva de agrandarel mercado para los filmes brasile-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 33

ños, se han discutido mucho lasposibilidades del Mercosur en elplano de las indústrias culturales,pero nada se ha concretado aún.Para los libros y las artes plásticasya no hay tanta burocracia u obstá-culos tributarios. Pero para el cineno hay protección ni incentivos a laproducción; entre los países miem-bros del Mercosur hay diferenteslegislaciones laborales y barrerasaduaneras que impidem, porejemplo, que se importen equipospor un corto tiempo, para la reali-zación de una película, sin que sepaguen tasas aduanales” (Simis,1998, p. 13).3

Não se deve esperar muito no curtoprazo, portanto, dos acordos do Mer-cosul, visto pelos autores do Livro Ver-de da Sociedade da Informação noBrasil, por sua vez, como “uma impor-tante iniciativa de países latino-ameri-canos”, diante da tendência mundialde formação de blocos e mega-merca-dos regionais, objetivando

“contribuir para um ambientede integração e cooperação entreos países membros, permitindo-lhes maior intercâmbio e dinamis-mo econômico e tecnológico, bemcomo promover a solidariedadeentre os povos da região e o de-senvolvimento social e cultural. Asnovas tecnologias de informação ecomunicação são estratégicas nes-se esforço, pois constituem um doselos básicos na quebra das barrei-ras espaço-temporais, facilitando acomunicação e o intercâmbio re-gional em todas as áreas de ativi-dades e contribuindo para a inten-sificação do comércio na região”(MCT, 2000, p. 8).

Na página anterior, a questão dacooperação internacional é posta nobojo de uma discussão sobre pesquisa

e desenvolvimento:“A capacitação para orientar es-

colhas tecnológicas e para o efeti-vo domínio de algumas tecnolo-gias-chave requer uma cadeia deinvestimento e de conhecimentoque se traduz numa matriz decompetência ampla e diversifica-da. Para estar apto a acompanhara rapidez do desenvolvimento dabase técnico-produtiva mundial, opaís deve ainda manter uma polí-tica consistente de investimentoem recursos humanos, de moder-nização da infra-estrutura científi-co-tecnológica de apoio à integra-ção universidade-empresa e deativa cooperação internacional”(MCT, 2000, p. 7).

Esses dois trechos localizam bem oproblema da necessidade de definiçãode uma estratégia internacional doBrasil em matéria de comunicação,dando a devida ênfase para a colabo-ração latino-americana e no interior doMercosul, em particular. Infelizmente,o Livro não retoma essa importantequestão no capítulo sobre conteúdos,apesar da clareza com que coloca, aoapresentar justamente a questão domarco regulatório, por exemplo, o pro-blema das relações internacionais e anecessidade de uma estratégia nacio-nal:

“Com a lentidão das negociaçõesdos acordos internacionais, estarão seformando novas barreiras entre ospaíses, em função de regulamenta-ções adotadas unilateralmente e doestabelecimento de padrões de fato.Compatibilização de padrões tecnoló-gicos, leis de proteção aos consumi-dores e autores, regimes de tributa-ção de bens e serviços são alguns dospontos em negociação que ganhamcomplexidade em função do carátertransterritorial das transações nainternet. Nesse contexto, é importante

ampliar o debate interno no Brasil,para definir estratégias e interessespróprios e respaldar o encaminha-mento dessas questões nos fóruns in-ternacionais” (MCT, 2000, p. 7).

O trecho é particularmente feliz por-que aponta, ainda que implicitamente,para a complexidade da questão regu-lamentar, que envolve, com sabemos,temas próprios das leis da informáticae do debate sobre as políticas indus-trial e de desenvolvimento, das leis deincentivo à cultura, dos direitos auto-rais etc., tudo isso numa situação emque a expansão da internet e do proje-to global de Sociedade da Informaçãofavorece os países de maior peso nocenário internacional. Ademais, osautores reconhecem a importância dodebate interno para criar um consensoem relação aos interesses nacionais,visando à negociação internacional emtorno da regulamentação do setor.

A própria existência do Livro Verdeseguia essa lógica, abrindo a possibili-dade de ação da sociedade civil e dosdiferentes atores interessados empressionar por avanços efetivos nomodelo brasileiro de regulação das co-

Mídia e Poder

O governo brasileiro, além

de paralisar o processo

que deveria levar à redação

do Livro Branco da

Sociedade da Informação,

de acordo com a boa

tradição européia,

engajou-se, em matéria de

políticas de comunicação,

numa operação de

salvamento das empresas

do setor de televisão

municações, o que, lamentavelmente,nunca chegou a ocorrer. Ao contrário,o governo brasileiro, além de paralisaro processo que deveria levar à redaçãodo Livro Branco da Sociedade da Infor-mação, de acordo com a boa tradiçãoeuropéia, engajou-se, em matéria depolíticas de comunicação, numa ope-ração de salvamento das empresas dosetor de televisão que inclui não ape-nas a aprovação, no legislativo, da PECdo capital estrangeiro, mas tambémum vultoso empréstimo do BNDES àGlobocabo, recebido como um escân-dalo nos meios jornalísticos e empre-sariais.4

Assim, sem o prometido debate in-terno, sem uma desejável política in-dustrial do audiovisual que privilegias-se a desconcentração do sistema, aprodução regional e independente, adiversidade cultural e, com ela, a disse-minação do conhecimento e, portanto,o incremento da competitividade sistê-mica do país na área, sem repensaradequadamente a política de regula-ção do audiovisual e das comunica-ções, o Brasil concentrou seus esforçosno salvamento de empresas oligopo-listas em dificuldades e, no plano in-ternacional, propôs, em 9 de junho de2001, uma comunicação sobre o au-diovisual na OMC, com uma tripla fina-lidade:

“a) promover la liberalizaciónprogresiva de este importante sec-tor y asegurar al mismo tiempo laautonomía de los gobiernos parapreservar y promover la identidadcultural y la diversidad cultural; b)contribuir a los debates sobre losmejores medios para lograr esteobjetivo, incluso mediante la consi-deración de sistemas de subven-ción y mecanismos de defensa co-mercial; y c) contribuir al aumentode la participación de los países endesarrollo en el comercio de servi-cios” (OMC, 2001, p. 1).

A posição brasileira parte de umacrítica às duas perspectivas acimacitadas (liberal e defesa da exceçãocultural):

“A nuestro parecer, ninguna deesas dos posiciones es acertada.Por un lado, el argumento de la ‘ex-cepción cultural’, aparte de carecerde base en las disciplinas del AGCS,no parece tener en cuenta el hechode que los productos y servicios cul-turales forman parte de una indus-tria de clara importancia económi-ca y comercial de la que el sectoraudiovisual es el segmento más di-námico, de interés por otra partepara las exportaciones de algunospaíses en desarrollo. Por otro lado,no puede negarse que los serviciosaudiovisuales desempeñan unaimportante función en la transmi-sión y difusión de ideas y valoresculturales, que es un objetivo fun-damental de las políticas naciona-les de muchos países” (OMC,2001, p. 2).

A posição brasileira, ao contrário, éde “promover la liberalización progre-siva del sector de manera que secreen en él oportunidades de accesoefectivo a los mercados para las ex-portaciones de los países en desarrol-lo sin afectar al margen de flexibilidadde los gobiernos para realizar susobjetivos de política cultural como loestimen apropiado” (idem, p. 3). Se-gundo o documento, a AGCS (Acordo

Geral sobre o Comércio de Serviços)teria os meios para garantir essa libe-ralização “sin perder la autonomía pa-ra reglamentar con el fin de promoverobjetivos de política cultural” (ibi-dem).5 Mesmo assim, o documentodefende a adoção de instrumentosadicionais, especialmente para a pro-dução e distribuição cinematográfica,como a possibilidade de aceitação desubvenções, enfatizando que “a esterespecto, deberán tenerse debidamen-te en cuenta las necesidades especia-les de los paises en desarrollo” (ibi-dem).6 E mais:

“Ahora bien, además de las con-sideraciones económicas, tal vez lassubvenciones no basten para pro-mover y proteger determinados ti-pos de producción nacional en laesfera de la producción y distribu-ción de películas cinematográficas.En este caso el mercado mundial secaracteriza por lo general por unaestructura oligopolística, dominadapor unas cuantas empresas impor-tantes. Se plantea también la cues-tión de la fijación de precios detransferencia resultante de la co-mercialización en el mercado do-minante. Los productos audiovisu-ales se colocan muchas veces aprecios de ‘dumping’ en los merca-dos extranjeros, ya que la mayorparte del costo de producción seha recuperado ya en el mercadointerno del país de producción. Ellocrea una situación de competenciadesleal que tiene por efecto el des-plazamiento de la producción in-terna de los teatros y otros mediosde suministro (televisión de red,televisión por cable, vídeo domés-tico, medios electrónicos). Esta si-tuación parecería requerir el esta-blecimiento de mecanismos de de-fensa comercial apropiados (porejemplo, disciplinas antidumpingespecíficas) para el sector audiovi-

34 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

Quanto mais o tempo urge,maiores serão as pressõesamericanas para que osdiferentes países se comprometam com metasespecíficas de liberalização.

sual” (OMC, 2001, p. 2).A proposta, então, encaminhada ao

Conselho de Comércio de Serviços(CCS) é assim formulada:

“El Brasil propone: (1) Que losMiembros contraigan compromisosespecíficos en el sector de los servi-cios audiovisuales teniendo en cu-enta los objetivos enunciados en elartículo IV del AGCS (Participacióncreciente de los países en desarrol-lo). A este respecto, deberá prestar-se especial atención a los serviciosaudiovisuales en los que tenganmayores posibilidades los países endesarrollo, por ejemplo (pero no ex-clusivamente) los servicios de tele-visión (...) (2) Que, en su serie dereuniones extraordinarias, el CCSinicie un debate sobre sistemas desubvención encaminados a lograrobjetivos de las políticas nacionalesen materia de promoción y preser-vación de la identidad cultural y ladiversidad cultural (...) (3) Que, ensu serie de reuniones extraordina-rias, el CCS inicie un debate sobrelas disposiciones en materia de de-fensa comercial y/o competencia(...) necesarias para abordar lasprácticas comerciales desleales y/olas prácticas comerciales restricti-vas en el sector” (OMC, 2001, p. 4).

Sem entrar na análise do conteúdoespecífico, bastante simples, da pro-posta, vale notar que a sua própriaexistência acabou gerando especula-ções sobre os verdadeiros interessesdo Brasil na área, visto que, de um to-tal de 144 membros da OMC, apenasoutros dois (a Suíça e, evidentemente,os EUA, que têm um interesse declara-do na liberalização do setor) propuse-ram uma comunicação sobre o audio-visual. A crítica que se faz à estratégiabrasileira é que ela vem, de fato, aoencontro dos interesses dos EUA, namedida em que, ao reconhecer a legi-

timidade da OMC no trato da questãocultural, abre um precedente quepoderá levar, mesmo aceitando a pro-posta de manutenção de formas desubsídios e de políticas nacionais, auma liberalização ainda maior no futu-ro, constituindo-se, portanto, em ame-aça efetiva para as políticas de defesadas indústrias culturais nacionais e dadiversidade cultural.

Até hoje, o Brasil, como a metadedos membros da OMC, não assumiunenhum compromisso de liberalizaçãono setor cultural no quadro da AGCS,ainda que o recente processo de aber-tura das empresas de comunicação aocapital estrangeiro, acima citado,aponte para uma possibilidade efetiva

de oferta brasileira nesse sentido. Ocronograma da OMC para a liberaliza-ção do comércio de serviços prevê aapresentação de demandas iniciais deengajamento específico até o dia 30de junho de 2002 e ofertas iniciais até31 de março de 2003. Quanto mais otempo urge, maiores serão as pressõesamericanas para que os diferentes paí-ses se comprometam com metas es-pecíficas de liberalização. O Brasil, aoaceitar explicitamente e propor (à suamaneira) a liberalização, será certa-mente um dos alvos privilegiados des-sas pressões, inclusive pelo peso quetem na OMC e pela liderança que po-de exercer em relação a outros paises

da América Latina.Além do fato de que a proposta bra-

sileira pode fazer parte de uma estraté-gia mais ampla, visando vantagens emoutras áreas, ao demarcar uma posiçãodiferenciada para o país no processoglobal de negociação sobre a liberaliza-ção dos serviços, cabe perguntar queatores internos poderiam beneficiar-seda liberalização proposta pelo Brasilpara o setor áudio-visual. Sabemos quea competitividade do país na área équestionável, na medida em que seresume hoje basicamente ao domínio,compartido com outras importantesempresas latino-americanas, de umsegmento do mercado de exportaçãode produtos de ficção televisiva - comoé o das telenovelas - por uma únicaempresa nacional, que controla de for-ma extremamente centralizada a capa-cidade interna de criação. Todo o longoperíodo de predomínio da Globo nopaís, iniciado já na segunda metadedos anos 60, tem-se caracterizado poruma política de centralização da produ-ção que tem impedido o desenvolvi-mento de uma efetiva competitividadesistêmica para o país na área.

A solução desse problema passalonge das políticas de salvamento aci-ma mencionadas e, mais ainda, deuma política de liberalização como aque se presume o país virá a adotarem futuro próximo. Muito mais impor-tante seria a adoção de uma políticaindustrial para o audiovisual, capaz dedisseminar a capacidade (econômica,financeira e de conhecimento) de pro-dução e difusão de conteúdos locais,regionais e independentes, aliada auma política de inclusão digital e deuniversalização do acesso aos novosmeios por parte das mais amplas ca-madas da população, reforçando omercado interno na área e contribuin-do para o enriquecimento e a diversi-dade cultural do país, fontes primáriasda competitividade, que tão poucos

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 35UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

têm tido a capacidade de explorar, da-das as características centralizadorasdo sistema comercial brasileiro de te-levisão e a promiscuidade que o mo-delo de regulação atual enseja nas re-lações entre interesses políticos e eco-nômicos nacionais e regionais no se-tor, ainda que alguns instrumentos in-teressantes no sentido da democrati-zação das comunicações estejam pre-sentes em elementos específicos des-se modelo, como é o caso da Lei doCabo ou da própria Constituição Fe-deral de 1988.

NOTAS1. Ficou estabelecido também que as Co-

missões Técnicas criadas pelo Memorando deEntendimento firmado em Buenos Aires, a15/3/95, no marco da primeira reunião técni-ca especializada de cultura, reunir-se-iam 30dias depois e 45 dias antes das reuniões dosministros, a fim de garantir o funcionamentodo acordo.

2. Na décima reunião de ministros da cul-tura, por exemplo, realizada em Buenos Aires,no dia 22 de junho de 2000, com a participa-ção do Chile como país associado, foi decidi-do, entre outras coisas, implementar o proje-to “Las industrias culturales: incidencia econô-mica y sociocultural, intercambios y políticasde integración regional”. Os antecedentes,principais resultados e desdibramentos, até omomento (maio de 2002) desse projeto damaior importância, inclusive sua articulaçãocom o projeto do Convênio Andrés Bello, quereúne paises do grupo andino com objetivossemelhantes de quantificação das atividadesculturais, vide Getino (s/d).

3. Segundo a autora, “los cineastas hanpropuesto la creación de un fondo para el de-sarrollo de proyectos audovisuales, una carte-ra de coproducción de proyectos y la celebra-ción de acuerdos entre los ministérios de rela-ciones exteriores de los países miembros, convistas a facilitar la importación, exportación,distribución y exhibición de películas en salasde cine y canales de televisión, en una integra-ción de mercados que significaría un potencialde 200 millones de espectadores al año”(Simis, 1998, p. 13). No concernente ao trata-mento aduaneiro para circulação de bens cul-turais, o Brasil baixou, em 5/3/98 e em6/3/98, respectivamente, a Portaria Intermi-nisterial 43 e a Instrução Normativa 29, da Se-

cretaria da Receita Federal. Provavelmente, aautora não chegou a considerar esses instru-mentos no artigo citado, publicado no Méxicoem maio do mesmo ano. De qualquer forma,parece que a sua avaliação acima citada per-manece ainda válida.

4. Segundo a revista Carta Capital, a opera-ção de socorro à Globo, cuja dívida total atin-giria os US$ 1,3 bilhão, “pode custar ao BNDESR$ 284 milhões. Disso, R$ 125 milhões em de-bêntures de 1999 o banco troca por ações (...)Há três anos o BNDES já entrara com outrosR$ 284 milhões. No total, sem ser feita a contareal-dólar de 1999, e incluindo um financia-mento de outros R$ 220 milhões em 1997,desde então a parceria com o BNDES rendeuà Globo R$ 639 milhões. Fora penduricalhos:R$ 58 milhões para o parque gráfico em 1998,outros R$ 12 milhões para o Projac em 2001”(Revista Carta Capital, ano 8, ed. 181, 20/3/-2002). A operação mais recente foi vista comoum escândalo pelos concorrentes da Globo epela imprensa pelo fato de ter ocorrido às vés-peras da votação da emenda ao artigo 222 daConstituição Federal (dando à empresa deRoberto Marinho condições consideradas pri-vilegiadas num futuro processo de negociaçãopara a entrada de sócios estrangeiros) e pou-cos meses antes das eleições presidenciais,no momento exato em que ocorriam os acon-tecimentos que levaram ao rompimento daaliança PMDB/PFL.

5. “Además de reconocer el derecho de losMiembros, especialmente de los países endesarrollo, de reglamentar y establecer nuevasreglamentaciones con el fin de realizar losobjetivos de sus políticas nacionales, el AGCSpermite exenciones de la obligación de tratoNMF5 y prevé una gran flexibilidad para laconsignación en listas de los compromisospor parte de los países, dado su sistema deconsignación ‘por indicación expresa’, de listapositiva, y su disciplina en materia de trato na-cional ‘negociable’” (OMC, 2001, p. 3).

6. Sobre a legislação brasileira de apoio àprodução cinematográfica, vide Simis (1998,1999; 2000). Vide também Bolaño (2002).

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leiro de Televisão. Segunda Edição Revista eAmpliada. Aracaju, UFS, mimeo.

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SIMIS, A. (1998). Situación del audiovisualbrasileño en la década de los noventa. RevistaComunicación y Sociedad, 33, Un. de Gua-dalajara, mai-ago.

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del Brasil. Servicios Audiovisuales, 9/7/2001.Portaria Interministerial 43. DOU, 5/3/98.Secretaria da Receita Federal. Instrução

Normativa 29, 6/3/98.

* César Ricardo Siqueira Bolaño é pro-fessor na UFS

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Mídia e Poder

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 37

Mídia e Poder

Considerações iniciaisOfereço aos estudiosos e militantes

da democratização da comunicação eda sociedade relatos, consideraçõesteóricas e reflexões críticas iniciaisacerca das cidades e metrópolescomo lugares do desejo e, nestas, asvozes da radiodifusão comunitáriacomo espaço estratégico de uma pro-dução da subjetividade humana opo-nente à capitalista. Esse rádio, aí, nãoé mídia. É a possibilidade de umacomunicação oral à distância. Discuto,então, o rádio comunitário comoespaço da produção comunicativa,

livre, dialógica, horizontal, gerida pelamaioria da sociedade, representada,então, na cidade ou metrópole, pelossegmentos sociais excluídos em lutapela cidadania; Partindo das possibili-dades deste, os excluídos, na formaexistencial de identidades sociais emmovimento, intervêm no espaçopúblico, hoje ocupado pela mídia dopoder e do mercado, para nele, eminteração social e, ou, mediação comas pessoas e instituições na totalidadedesse espaço urbano, construir, nageração de idéias, afetos e valores,uma perspectiva comum, possível na

diversidade dos olhares e experiên-cias subjetivas das pessoas sobre acidade e seu devir. Deste modo, osseres citadinos, socialmente modela-dos, isto é, modelizados em sua sub-jetividade [Guattari,1992], em oposi-ção, transformam-se em sujeitos pro-dutores do espaço urbano, tendentesa hegemonizar, na diversidade, umaparte considerável de suas experiên-cias subjetivas que compartilhadasnessa esfera, não significam perdas,em essência, das individualidades; é,pois, aí, em alteridade, que essesseres se hominizam (Muniz, 1996).

Jonicael Cedraz de Oliveira *

No desejo de sermos felizes sem ter medo de sê-los.

Vozes múltiplas comunitáriasrecriam cidades e metrópoles

Talvez o maior desafio do homemcontemporâneo vivente do espaço ur-bano, sobretudo das metrópoles, sejao de relacionar-se, de modo crítico,com o estranho, o heterogêneo, o não-familiar. Esses seres urbanos, aos quaisnos incluímos, modelados em proces-so pelas heranças históricas, pelas tra-dicionais redes midiáticas globalizan-tes e pelas imposições advindas sobre-tudo do processo de desenvolvimentocapitalista, bem como, modernamen-te, pelo aparente clima de liberdadeno contato influente com as redesmundiais de computadores, podem,por outro lado, no estar e devir citadi-no, produzir novas e significativas ex-periências subjetivas, alterar o percur-so ou rota de suas experiências racio-nais e descobrir na relação com o ou-tro novos modos de interações sociais,novas parcerias na geração da subjeti-vidade, e novas práticas necessárias decidadania, sob novos olhares sobre acidade, sobre seus modos de vida e odestino da humanidade. E, nesse con-texto, inserindo-se, entretanto, nasmúltiplas vozes, portadoras da possívelconsciência do pertencimento comuni-tário, em prática nas emissoras livresdas comunidades, capazes, afinal, detransformá-lo de mudo em falante e,ao mesmo tempo, de subalterno emsujeito social transformador [Guatta-ri,1992; Oliveira,1998; Caiafa, 2000].

O rádio comunitário, e futuramentea tv, com o uso da tecnologia digital deprodução e de emissão de sons, brevede imagens, nas ondas livres de radio-difusão de baixa potência, em conexãocom o telefone, câmaras digitais, gra-vadores e editores digitais e a trans-missão ao vivo, também digital, emtempo real, nas redes mundiais decomputadores, hoje, disponíveis aindaa poucos citadinos, permitem, de mo-do variável, em várias direções, que ossegmentos sociais, constitutivos damaioria da sociedade, excluídos da

produção material e imaterial, inclusi-ve dos benefícios dos avanços tecnoló-gicos, se apropriem, coletivamente,em dimensão comunitária, desses dis-positivos, em especial da radiodifusão,de baixa potência, enquanto espaçode produção comunicativa; espaço li-vre, dialógico, horizontal, projetadode/para dentro e fora do espaço urba-no, de modo a que esses citadinos seproduzam, permanentemente, comoseres humanos, e venham a se religa-rem, no que há de comum e diverso,no processo de geração, em singulari-dade, das experiências subjetivas, pro-dutoras de olhares diversos e de senti-dos, exatamente nessas interações so-ciais próprias do estar e devir das pes-soas nas cidades, sobretudo, nas me-trópoles.

Nesse estar das pessoas que habi-tam as médias e grandes cidades, so-bretudo as metrópoles, não somenteas brasileiras, mas as espalhadas emescala planetária, os seres humanos,no seu cotidiano de vida, vistos situa-dos nos espaços de moradia, de traba-lho, de estudo, de lazer, etc, ou, porinstantes, em circulação entre pontosdo espaço urbano, por mais diversoque seja o motivo desse estar, se sen-

tem em parte solitários, desenraizadosculturalmente, fisicamente juntos, to-davia, socialmente isolados, mesmoque, por vezes, de modo restrito, emseus contatos, integrem grupos ou tri-bos urbanas, nas suas desconexas me-diações sociais, ou, em instantes, obte-nham momentos prazerosos em inte-rações familiares ou duais. Isto posto,encontram-se perdidos, em situaçãode baixa interação social, resultante deum certo estranhamento nas relaçõescom as pessoas e o espaço urbano nasua totalidade; este último contraditó-rio, paradoxal em relação às realiza-ções da subjetividade humana, deidéias, valores, afetos, múltiplas intera-ções socioculturais, relações de podere ao devir no processo mesmo daprodução comunicativa, possível naperspectiva de um outro mundo ondeo homem resgate sua condição desujeito histórico.

Os cenários urbanos se modelam sob a lógica perversa do capitalNesse contexto marcado pelas con-

tradições entre os desejos dos indiví-duos (sujeitos que somos) e as cida-des historicamente modeladas, nosdeparamos, então, com os processos,ora simultâneos, de construção e des-construção dos cenários urbanos, quese modelam sob a lógica perversa docapital, onde os seres humanos quehabitam cidades e metrópoles sãotambém modelados e se reproduzemsob essa lógica perversa da subjetivi-dade capitalística [Guattari,1986]. Des-

Mídia e Poder

Talvez o maior desafio do homem contemporâneo vivente do espaço urbano, sobretudo das metrópoles, seja o de relacionar-se, de modo crítico, com o estranho, o heterogêneo, o não-familiar.

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te modo, socialmente agenciada se-gundo as necessidades e interesses docapital, nas suas formas da hipermer-cantilização e a maximização do lucro,resultando, portanto, num modo velozde expropriação da mais valia socialdos citadinos, as cidades e metrópolesbrasileiras, de um modo geral, vivemmomentos caóticos, de sucessivas cri-ses urbanas, com as cenas singularesde modernização tecnológica, que semisturam, numa hierarquização dosespaços e funções, aos processos as-cendentes de segregação, degradação,privatização e redução do acesso aosserviços e aos espaços públicos. Nestarota, ancorado pelo poder prefeiturale de outras instâncias do Estado, o ca-pital põe em risco o mínimo de quali-dade de vida das pessoas que nelashabitam, já excluídas do trabalho, dacasa própria, em parte da educação,da saúde, do lazer, do transporte, daprodução estética, ao final, frustradosem seus desejos e esperança de auto-realização nesse seu estar na cidade,enquanto lugar de vivência. Uma vi-vência, ora, por permanência na condi-ção de nascido aí; ora, por escolha,preferencial entre outras; ora, circuns-

tancial, por emprego, educação, etc ;ou, por migração ou acolhimento for-çado, devido aos êxodos rurais que,por sua vez, alteraram o quadro da dis-tribuição e localização populacionalbrasileira, elevando no ano 2000, parauma predominância de 81,23% urba-na sobre a rural. Desta, 76% são po-bres, moradores em favelas ou áreasinformais da cidade.

Em última análise, pode-se afirmarque as elaborações e mutações doscenários urbanos, em geral, longe deser obra da subjetividade de arquitetose urbanistas, são socialmente agencia-dos (Guattari,1992) na cidade pelo po-der do capital e não, em exclusividade,pelo poder prefeitural, tampouco, pelacidade, esta representada, de formaautônoma e democrática, pelas enti-dades das sociedade civil, isto é, dasrepresentações políticas dos segmen-tos sociais constitutivos do espaçourbano e, de modo ampliado, geo-po-lítico do município. Evidente que olegislativo e o executivo prefeitural,bem como as instituições do Estado eda União, decidem. Mas, essas deci-sões expressam sempre os vínculos doEstado com as classes sociais, segmen-tos de classe, etnia e gênero e outrossegmentos, inclusos os religiosos. Ape-sar das mediações sociais diversas, naprática, os vínculos do Estado têm sidocom o capital. Por outro lado, surgi-ram, nos últimos anos, as experiênciasdemocráticas de administrações públi-cas municipais e estaduais, onde osvínculos do Estado estão centrados

nos trabalhadores e segmentos queintegram a maioria social excluída.Nestas, opera-se uma redução da esfe-ra econômica do capital no desenvol-vimento das políticas públicas, sem,contudo, provocar, na esfera da produ-ção subjetiva, (Guattari,1992) umaruptura qualitativa com os referenciaisdos desejos, idéias, afetos e valoresque povoam a subjetividade capitalis-ta. Do ponto de vista hegemônico, to-davia, em detrimento dos desejos dasmaiorias das comunidades, os apare-lhos do Estado, compromissados como capital, partícipes ou cúmplicesdeste, operam, em parte, diretamenteencadeados, os mecanismos da domi-nação e da exploração, a lógica damercadoria, o sistema de concessão aterceiros e as parcerias com empresas,ONGs e outros organismos estatais,toda vez que se trate da prestação doserviço público, hoje, visto como políti-ca compensatória para amenizar insa-tisfações e conflitos sociais pontuais,sempre referenciado no ideário e mo-delagem social da subjetividade capi-talística (Guattari (1992).

Deste modo, em escala planetária,estes cenários urbanos projetados,modelados, heterogêneos, mas porta-dores de uma certa homogeneização,singulares das cidades e metrópoles,operados em efeito sob a lógica per-versa da tirania do dinheiro e da infor-mação, midiatizada, tecnologizada, ni-veladora e globalizante (Santos, 2001),vão mudando, em parte, sempre con-trolados por um sistema sutil de ondu-lações (Deleuze,1990). Ondulações,onde a cidade, figura-fundo de múlti-plas e simultâneas cenas de eventossociais codificados enquanto mercado-ria, e seus habitantes, coadjuvantes oufigurantes, nestas cenas efêmeras outornadas rituais, marcam, do ponto devista da subjetividade humana, suasujeição social e, por vezes, rejeição aestes, mesmo que tênues, veladas,

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Os aparelhos do Estado, compromissados com o capital,partícipes ou cúmplices deste, operam, em parte, diretamente encadeados, os mecanismos da dominação eda exploração, a lógica da mercadoria, o sistema de concessão a terceiros e as parcerias com empresas.

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desconexas, nas quais o sistema dedominação e exploração, de origempredominante externa à cidade, se es-pelha sobre o cotidiano do real- socialurbano. Nestes cenários, de umaforma ou de outra, o citadino, tambémtornado mercadoria, ao relacionar-secom os produtos postos ao consumo,inclusa a paisagem urbana, expressa,em certo sentido, um grau de estra-nhamento, isto é, de não familiarida-de, não pertencimento a esse territóriourbano, da cidade ou metrópole,social, ecológico, geopolítico, cultural,material e subjetivo, apesar de, noconsumo efêmero deste ou daqueleproduto em particular, vir a sentir-se,em instante, um elevado grau de satis-fação de algum desejo, mesmo queseja ilusório. Pois, nesta relação confli-tiva, contraditória, coisificado e expro-priado do domínio sobre a espacialida-de urbana e, em parte, do processo deprodução dos modos de subjetivação(Deleuze,1990;Guattari,1992) termina,sem conhecimento de causa e efeito,incorporando, socialmente, em suasinterações e relações com as pessoas,os objetos e a cidade, nos territóriosexistenciais coletivos (Guattari,1992),idéias, valores, afetos, expressões,modos de ser e relacionar-se, inclusive,de alienar-se face aos desafios domundo vivido e coletivos da cidade.Torna-se, assim, cúmplice desses cená-rios e reprodutor dos modos de mode-lização social próprios da subjetividadecapitalística (Guattari,1992). Essa ex-pressão de Félix Guattari, com o usodo sufixo “ística”, indica, em escala pla-netária, a presença material do capita-

lismo e seus modos de subjetivação,para além dos territórios dos principaispaíses capitalistas e dos que estão sobseus domínios, incluindo, pois, as na-ções ex ou ainda consideradas socia-listas, como a China e Cuba, por exem-plo, que, em seus territórios, desenvol-vem, contraditoriamente, as práticastransnacionais ou multinacionais domercado capitalista. Ele as denomina,no geral, como capitalística, essas prá-ticas, sejam materiais e imateriais, pró-prias do mercado, da esfera ampliadado capital, portadoras da ideologia edos modos da produção subjetivadeste.

Podemos afirmar, então, que estarelação conflitiva homem-cidade, visí-vel na configuração dos cenários urba-nos, espelha, na verdade, a contradi-ção entre o homem e capital, isto é,entre as necessidades e os desejoshumanos em oposição aos interesses,a lógica de produção e de mercado, eos modos de subjetivação, do modelode produção material e imaterial docapitalismo, do qual, hoje, decorre, emgrande parte, o processo de domina-ção e exploração do homem pelo ho-mem. Isso, apesar de, nos modos desubjetivação, esses desejos aparece-rem contraditórios nesta relação, em

virtude dos mecanismos sutis de atra-ção, ilusão e mascaramento do real-social. Os fundamentalistas religiososrespondem, pois, pela outra parte, emsuas ações referenciadas nas formasarcaicas de relação social, tal como oconfinamento etc (Foucault-Deleu-ze,1990), sob as quais processam mo-dos subjetivos de dominação e explo-ração dos seres humanos, neste mo-mento conjuntural histórico. Tanto aonível da macropolítica do social (poderinstituído) como de uma micropolíticado desejo, periférica, que se expandeno microtecido social indo até ao cor-po do indivíduo, a que se refere MichelFoucault, a produção maquínica dasubjetividade capitalística (Guattari,1992), enquanto relação social, seexerce como poder, definindo os ru-mos da sociedade bem como os pe-quenos gestos do nosso cotidiano. Se-gundo Guattari (1992), os fatores sub-jetivos desempenham hoje um papelpredominante a partir do momentoem que foram assumidos pelos massmedia de alcance mundial.

Paul Virílio observa que, nos anos60, uma reorganização urbana atingeas cidades, independente de sua tipo-logia, como resultado dos primeirosefeitos de uma economia multinacio-nal. E, em 70, quando inicia uma novacrise econômica mundial, a expansãodas tecnologias, dos transportes aé-reos e das comunicações, com osaeroportos, o uso de satélites na co-municação, a microeletrônica, as te-leestradas, a implantação de sistemasde controle e de segurança regulandoo acesso do estranho aos espaçosurbanos e às residências, ao mesmotempo, disponibilizando aos consumi-dores o acesso aos serviços e produ-tos, em especial da indústria cultural,via tecnologias de ponta na relaçãohomem versus máquina. Deste modo,uma nova arquitetura, onde o homemdispensa cada vez mais a circulação

Mídia e Poder

Os fatores subjetivos desempenham hoje um papel predominante a partir do momento em que foram assumidos pelos mass media de alcance mundial.

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entre pontos do espaço urbano, pois,dominado pelo medo, confinado (Fou-cault-Deleuze,1993) na residência, ho-je, também, local de produção mate-rial e imaterial, pode, via janela eletrô-nica, informar, ser informado, realizarseu lazer, controlar seus negócios ourealizar tarefas sob o controle dos sis-temas de agenciamentos das empre-sas do capital globalizado. Faz crer que,com a presença e a possível disponibi-lidade (Caiafa,2000) generalizada datecnologia, a relação do homem como espaço físico da cidade é, por esta,contaminada e deslocada do real parao virtual e do físico para o tecnológico,onde aí, o homem refunda seus conta-tos, rever suas relações e vínculossociais, numa nova arquitetura, numnovo cenário, de uma cidade e mundotecnologizados, que, em efeito, termi-na tecnologizando, no seu modo devida, na subjetividade real-social, ohomem já modelado, coisificado peloexistente modo de produção capitalís-tico (Guattari, 1986).

Octávio Iani (2002) nos diz que,neste século XXI está em curso o de-senvolvimento de um novo ciclo deprofundas transformações sociais,compreendendo as forças produtivas,isto é, o capital, a tecnologia, a força detrabalho e a divisão do trabalho social,o mercado, o planejamento e o mono-pólio da violência. Aos poucos ou derepente, abalam-se os quadros sociaise mentais de referência de uns e ou-tros em todo o mundo. Multiplicam-seos espaços e aceleram-se os tempos,em todas as direções, em todas asesferas de atividade e imaginação, gra-ças às tecnologias eletrônicas com asquais se globalizam ainda mais intensae generalizadamente. Mas, explica Mil-ton Santos (2001) que, pelas mãos domercado global, coisas, relações, di-nheiro, gostos, largamente se difun-dem sobre continentes, raças, línguas,religiões, como se as particularidades

tecidas ao longo dos séculos houves-sem sido extintas. Indaga se não seriaum mito a idéia do mercado reguladorglobal, pois,

em apenas três praças, Nova Yor-que, Londres e Tóquio, concentrammais da metade de todas as transa-ções e ações; as empresas transna-cionais são responsáveis pela maiorparte do comércio dito mundial; os47 países menos avançados repre-sentam juntos apenas 0,3% do co-mércio mundial, em lugar dos 2,3%em 1960. (Santos,2001:41)

Se a globalização é antes de tudoum mito justificador, há um caso emque ela é real: o dos mercados finan-ceiros. Graças à diminuição dos custosde comunicação, caminha-se para ummercado financeiro unificado, o quenão quer dizer homogêneo. Em suma,a globalização não é uma homogenei-zação; mas, ao contrário, é a extensãodo domínio de um pequeno númerode nações dominantes sobre o conjun-to das praças financeiras nacionais -assinala Pierre Bourdieu (1998:53-54).Sob essa lógica perversa, o capitalis-mo hoje se ocupa cada vez mais de

captar o desejo e colocá-lo a serviçoda economia do lucro (Guattari,1986).O global é, portanto, um componentedestacado, dentre outros, da presençaincisiva da subjetividade capitalista noespaço urbano, sobretudo, nas metró-poles. Basta observar, além dos veícu-los e produtos midiáticos multimídia eaudiovisuais, os demais e os serviços,por sua origem, propriedade e disponi-bilidade (Caiafa,2000:25) em sistemade rede, postos no mercado local parao consumo, apesar de restrito às pes-soas que, portadoras de um poder decompra, assumem o papel social deconsumidores. Ao lado da rede debancos, de lojas, supermercados, res-taurantes, lanchonetes, shopping cen-ter, jogos eletrônicos, cinema multi-plex, bingos, hotéis, estacionamentos,estão, então, os serviços públicos pri-vatizados da água, do gás, da energiaelétrica, de transporte urbano, de tele-fonia e de transmissão digital de da-dos, sons e imagens, bem como ospedágios (Virílio,1993) privados restri-tivos ao acesso à circulação no e entreespaços urbanos, todos nivelados nosquadros referenciais da economia polí-tica e da economia subjetiva. Temos,aí, consumidores, sim, cidadãos, não!Por outro lado, na esfera da cidade, in-clusa a vertente globalizante, essa sub-jetividade se reproduz tanto ao níveldos opressores quanto ao nível dosoprimidos, não permanecendo apenasno plano da consciência, mas tambémem planos semióticos heterogêneos,circunscritos nos territórios existenciaiscoletivos (Caiafa,2000; Deleuze,1990;Guattari,1992).

Pelas mãos do mercado global, coisas, relações, dinheiro,gostos, largamente se difundem sobre continentes, raças,línguas, religiões, como se as particularidades tecidas aolongo dos séculos houvessem sido extintas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Hoje, tanto no Brasil como em todoo mundo, evidencia-se o fenômeno daurbanização como espaço social, porexcelência, ecológico, geopolítico, cul-tural e da subjetividade, até então cir-cunscrito na noção de territorialidadeque limita a cidade, redimensiona ametrópole e, num primeiro momento,o distingue do que se tem denomina-do como rural. Mas esse conceito deurbano tende a dissolver os limites tra-dicionais entre o urbano e o rural, re-pensar as relações entre a cidade e ocampo, à medida em que o modo devida urbano (Louis Wilrth,1967; emparte por George Simmel,1967) se es-tende para além da metrópole que,sob sua atração sobre as pequenascidades, sobretudo no seu entorno, edestas sobre as áreas rurais, mediadosbasicamente pelas máquinas moder-nas de transporte (veículos motrizes) ede informação e comunicação unidire-cionais (jornais, radio, tv, sites diver-sos) envolve os que habitam as vilas,povoados, até mesmo aldeias, e casasisoladas no campo, incluindo-as, decerto modo, à esta dimensão amplia-da do território subjetivo da urbaniza-ção. O planeta habita, hoje, 69,2% dapopulação em áreas consideradas ur-banas. Para Louis Wilrth,:

“As influências que as cidadesexercem sobre a vida social dohomem são maiores do que po-deria indicar a proporção da po-pulação urbana, pois a cidade nãosomente é, em graus sempre cres-centes, a moradia e o local de tra-balho do homem moderno, comoé o centro iniciador e controladorda vida econômica, política e cul-tural que atraiu as localidadesmais remotas do mundo paradentro de sua órbita e interligouas diversas áreas, os diversos pon-tos e as diversas atividades numuniverso.” [ Wirth,1967 :98]

O espaço urbano, em sentido restri-

to, a cidade ou a metrópole, é o terri-tório utilizado por uma dada popula-ção, e mais que isso, um dado senti-mento, como define Milton Santos:

o chão e mais a população, istoé, uma identidade, o fato e o senti-mento de pertencer àquilo que nospertence. O território é a base dotrabalho, da residência, das trocasmateriais e espirituais e da vida,sobre os quais ele influi. Quando sefala em território deve-se, pois, delogo, entender que está se falandoem território usado, utilizado poruma dada população [Milton San-tos,2001: 96-97].

Um espaço social, denso e hetero-gêneo, constituído, talvez, de pessoasvindas de pontos diversos do planeta,mas, predominantemente, das áreasrurais ou de aglomerações menoresregionais, também, possivelmenteportadoras de diferenças etárias, degênero, de classe social e de misturade raças, etnias, povos, culturas e reli-gião, no qual habitam, em grandesnúmeros, uma área de ocupação res-trita ou de alta densidade. Quantomais densamente habitada e mais he-terogênea a comunidade, tanto maisacentuadas serão as características as-

sociadas ao urbanismo. É possível no-vos híbridos culturais. Na visão deLouis Wilrth (1967:106), são esses osfatores seletivos e diferenciadores queatuam na composição da população.Janice Caiafa (2000) mostra, entre osfatores, o fenômeno local das formassegregadas da população urbana bra-sileira, não característico da cultura,diferente da segregação cultural ame-ricana, não obstante, uma sociedadedesigual, gerando hierarquia, mas mis-turando, fazendo desaparecer frontei-ras nítidas. Nas cidades brasileiras ésobretudo a desigualdade social eeconômica que produz os guetos. JáGeogr. Simmel (1967) aborda a ques-tão da vida mental do homem metro-politano, em contraste com as expe-riências de vida dos rurais e das pe-quenas cidades, onde as práticas mer-cantis, diferentes, em efeitos e veloci-dade, dos modos de subjetivação capi-talista, produzidos pela economia mo-netária na metrópole sobre o intelec-to, os relacionamentos e o modo devida, ainda mantém, em boa parte, osmodos associativos, laços familiares ede solidariedade entre as pessoas.Descreve, então, a coisificação humananas metrópoles, na qual a mente passaa operar sob as noções racionais dovalor de troca, do impessoal, do núme-ro, da cifra, da senha, numa a relaçãobancária a que se refere Paulo Freire, ede controle, visto por Foucault; no re-verso da liberdade, a solidão; E, nestasrelações, uma atitude de reserva.

De certo modo, o conflito entre ohomem e a cidade, no contexto doscenários produzidos pela lógica per-

42 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

Quanto mais densamente habitada e mais heterogênea acomunidade, tanto mais acentuadas serão as característicasassociadas ao urbanismo. É possível novos híbridos culturais.

versa do capital, se configura nos dese-jos insatisfeitos; no modo do acolhi-mento e de inserção na paisagem ur-bana; num certo estranhamento en-tre as pessoas, independente de suasorigens, e destas numa relação sensí-vel com o território físico, existencial,social e cultural urbano, seja ele cos-mopolita, metropolitano ou simples-mente citadino; na conformação dosmodos de subjetivação dos habitantescomo multidões ou massas urbanasnão-cidadãs consumidoras de serviços,produtos e falsas visões do real-social;no sentir-se solitário(a), por vezes, ecom intensidade; na redução do aces-so ao solo urbano, à casa própria e aosespaços públicos; no direito e ir e virafetado pela privatização do transportepúblico; na tendência à segregação depessoas, de classe e etnias em áreasdemarcadas no espaço urbano ou, fo-ra desde, em áreas fronteiriças, alémdo aprisionar-se nas próprias residên-cias; na violência, que recai indistinta-mente sobre as pessoas, produzindoum medo generalizado; na diminuiçãodas possibilidades de emprego e de

renda, com o hiperdesemprego globale a pobreza estrutural; nos estímulosmidiáticos aos serviços e produtos tor-nados desejos insatisfeitos; na rarapresença cidadã em oposição às práti-cas mercantis no espaço da produçãocomunicativa; nos discursos sufocadosdas identidades emergentes e subal-ternas; nos ruídos provocados nos flu-xos de informação marcados pelo vo-lume, velocidade, saturação de mensa-gem, dispersão e deslocamento dosfocos de interesse para eventos glo-bais, ocultando os conteúdos queemergem das mediações, relações,vínculos e interações sociais diversas edos desafios cotidianos da relação ho-mem-cidade; nas tramas sutis que en-volvem vivências e narrativas, com en-traves às relações e interações sociaisfacilitadoras de uma linguagem trans-

versal, transubjetiva e social que signi-fique e experimente outras relações deprodução, outros modos de valoração,outros olhares sobre o real-social, nu-ma ruptura com a existente produçãode subjetividades sobrecodificadas ehomogeneizadas (Rolnik, 1989). É pre-ciso, pois, deter, se não, reduzir, a forçamotriz do capital sobre os cenáriosmodelizadores das paisagens urbanas.

Transformando a naturezae a rota das experiências subjetivasA afirmação cidadã da presença hu-

mana no espaço urbano, seja metro-politano ou cosmopolita, como poten-cial força produtiva dos territórios sub-jetivos coletivos, vai além das diferen-ças, do outro, da prática alternativa,quase sempre opondo-se às investidasvisíveis (pois, escapam às sutis) dasubjetividade capitalística, através dasformas espontâneas de resistências(Caiafa,2000) e, também, nas lutas ge-rais urbanas ou específicas, de identi-dades sociais em movimento, geral-mente contextualizadas nas esferas daprodução comunicativa, da cultura eda política, marcando, deste modo,olhares novos, múltiplos, plurais, toda-via, transformadores das concepçõese práticas urbanas. Existentes concep-

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 43UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

De certo modo, o conflito entre o homem e a cidade, nocontexto dos cenários produzidos pela lógica perversa docapital, se configura nos desejos insatisfeitos.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE44 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Mídia e Poder

ções e práticas que têm legitimado ereproduzido no espaço urbano, tantono Brasil como em escala planetária, adesigualdade social em todas as suasdimensões e implicações, as contradi-ções sociais historicamente constituí-das e o sistema de dominação e explo-ração, vistos na base da produção ma-terial e, sobretudo, da subjetividadesocial, instâncias inseparáveis dos uni-versos da subjetividade; uma subjetivi-dade que, sob o ângulo da sua produ-ção não implica - segundo afirma FélixGuattari - em nenhuma instância do-minante de determinação que guie asoutras instâncias segundo uma causa-lidade unívoca, pois, não mantém re-lações hierárquicas obrigatórias, fixa-das definitivamente. Trata-se, pois, navisão do autor, de uma subjetividade,de fato, plural, polifônica, para reto-mar uma expressão de Mikhail Ba-khtine. Nesse sentido, exemplifica avariação dos índices da bolsa de valo-res em relação às flutuações das opi-niões; as manifestações dos estudan-tes chineses que, apesar das palavrasde ordem, as cargas afetivas deram apalavra final; bem como, a queda domuro de Berlim já cristalizada por umimenso desejo coletivo. E, no Brasil, in-clui-se o movimento das Diretas já, em

1984, e da queda do Presidente Fer-nando Collor, em 1992; resultante des-ta, a cristalização do desejo coletivo daética na política, com sucessivas mobi-lizações da sociedade e, em efeito, asações punitivas aos políticos corruptos.Félix Guattari vê, nestas manifestações,frutos de movimentos sociais, em efei-to, uma mutação existencial coletiva.Todas elas, com inúmeros eventos nasgrandes cidades e metrópoles, unidire-cionados, ressignificados e espetacula-rizados pela mídia globalizante.

A rota das experiências subjetivas,sociais, coletivas, dos que habitam as ci-dades ou as metrópoles, transforman-do, em processo, sua natureza, suaperspectiva, diferente dos modos desubjetivação da exclusão social capita-lista, sobretudo em oposição a estesmodos, na utopia de que o mundo po-de e deve ser conhecido e transforma-do para garantir uma sobrevida, emparticular, uma cidade digna de todos,passa, necessariamente, pela mutaçãodestes citadinos, enquanto sujeito-objeto do consumo generalizado e daprópria cidade como objeto do desejo,isto é, consumidor consumido, em in-divíduo-cidadão (Muniz Sodré, 1996:45), produtor da subjetividade social,num compartilhar com o outro urba-no, não mais estranho. Antes mudos,enquanto audiência das emissoras derádio e TV do mercado e do poder ins-tituído, passam a falantes, produtoreslivres, críticos do real-social, atravésdas vozes múltiplas, plurais, que revo-lucionam, na forma e conteúdo, asemissoras livres das comunidades, oestar e o devir das pessoas na cidadee, acima de tudo, as concepções e as

práticas da vida urbana, os cenáriosconstruídos e os territórios existenciaiscoletivos, em suma, a cidade ou me-trópole. Essa possibilidade da mutaçãodos mudos em falantes, com a apro-priação coletiva dos dispositivos tecno-lógicos da comunicação à distância,isto é, das rádios e televisões comuni-tárias, pelas pessoas nas cidades, e,em se dando, o direito coletivo difusoà comunicação, intransferível, em sin-tonia com as formas estéticas de ex-pressão e do face a face, individuais egrupais, em experiências subjetivasdiversas comunitárias, cria, então, a es-perança de que uma outra rota deexperiências subjetivas coletivas, emsubstituição à capitalística, é possível.Essas vozes livres, múltiplas, comunitá-rias, de natureza transformadora, sãoeducativas em relação à mutação dosconsumidores em cidadãos; dos ou-vintes em receptores críticos e produ-tores sociais da comunicação; e de re-produtores do saber modelado em lei-tores críticos e transformadores doreal-social. Elas tendem a disseminar-se, na produção e recepção, em todo otecido social urbano, incluindo, por ve-zes, áreas consideradas rurais, em vir-tude da territorialidade radiofônicapotencializada na irradiação das ondaslivres do rádio. Espera-se que a ten-dência da ampliação das vozes comu-nitárias se consolide em contraste àprodução de subjetividades conforma-das como observa Janice Caiafa:

O capitalismo depende cada vezmais dessa produção de subjetivi-dades conformadas. Observe-se queexistem outras vozes na mídia brasi-leira, que são muito diferentes detudo isso, mas sempre minoritárias,sempre em contraste com essa ten-dência situacionista (Caiafa, 2000:57).

Essas vozes comunitárias, múltiplas,plurais, constitutivas das práticas so-ciais subjetivas emancipadoras da pro-dução comunicativa dos que habitam

Essas vozes livres, múltiplas, comunitárias, de natureza transformadora, são educativas em relação à mutação dos consumidores em cidadãos.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 45

Mídia e Poder

as cidades ou metrópoles, na condiçãode indivíduo-cidadão, condição estaque somente alcançará sua plenitudequando estiverem superadas as desi-gualdades e contradições sociais ge-radas pela subjetividade capitalística,portanto, nesta condição, operam edisseminam, coletivamente, nas iden-tidades sociais em movimento, entreelas, e em todo o micro tecido social,a expressão dos olhares citadinos, nasua diversidade, pondo-se em debate,sob a mediação da emissora, de baixapotência, com 25 watts, de alcance ter-ritorial limitado a uma raio, em media,de 10 quilômetros, em sintonia comos pequenos grupos de produção es-tética, representações de identidades,etc, gerando, assim, interações sociais,vínculos diversos, manifestações es-pontâneas, elevação dos sentidos depertencimento comunitário; situaçõesem que idéias, afetos e valores, se ne-gam ou se afirmam, se solidificam, setornam comuns ou, por vezes, efême-ros e circunstanciais consensos, mu-dando, em parte, os itinerários subjeti-vos e os cenários urbanos modeladosao longo dos anos pela subjetividadecapitalística. Segundo Félix Guattari(1986), as emissoras livres coletivas, es-paço de produção dessas vozes, tomamseu sentido como componentes deagenciamentos coletivos, quando seafirmam, então, na reinvenção de no-vas formas de luta e de expressão.

Devemos, contudo, observar, na di-versidade dos olhares dos habitantes,não apenas as expressões e pequenosgestos que denotam, à primeira vista,as diferenças culturais sincretizadas,por vezes veladas, das etnias e de gê-nero, e as tentativas de ocultação dacontradição capital-trabalho, que, nosagenciamentos coletivos das subjetivi-dades conformadas (Caiafa,2000) me-diadas pelas escolas, igrejas, mídias,clubes esportivos, etc, se reproduzem,de modos sutis, conduzindo as per-

cepções destes às impressões iniciaisde que a cidade espelha nada maisque uma mera heterogeneidade cultu-ral. A noção de heterogeneidade apa-rece aí destituída de qualquer sentidoque denote adversidade ou, mesmoatenuada, a contradição que desnudaa lógica perversa da acumulação docapital. Fruto de uma contradição vela-da, as cidades brasileiras espelham,nas formas segregadas de ocupação,sobretudo de moradia, nos espaçosformal e informal, com favelas e bair-ros distantes, a exemplo dos morroscariocas e das cidades satélites de Bra-sília, uma desigualdade econômica esocial visível na composição popula-cional, em que 76% desta está na fai-xa de pobreza estrutural a que se refe-re Milton Santos e Pierre Bourdieu. Osolhares expressos nos conteúdos dasfalas das pessoas, que integram essaimensa maioria populacional pobrenas cidades, tendem, pois, a pautaremtemas que emergem dos desafios deseu cotidiano social, em particular, dosconflitos sociais que se sucedem, pre-sentes nas relações subjetivas, sociaise de poder, devendo serem problema-tizados, debatidos, socializados pelapopulação em geral, isto é, operadospelos produtores-ouvintes ou ouvin-tes-produtores, nas formas dialógicase horizontais, livres, da produção co-municativa à distância, da emissora co-munitária, sob múltiplas mediaçõessociais e modos gestionários coletivos,onde, em geral, as representações dasidentidades em movimento comparti-lham as estratégias da produção co-

municativa que se fundam, portanto,em bases coletivas de expressão e degeração do poder social. Nesse senti-do, esses olhares, essas vozes múlti-plas, desconexas ou não, heterogêne-as e, por vezes, hegemonizadas (San-tos,2001), não devem sujeitar-se aossistemas de controle de qualquer po-der instituído, de qualquer natureza,sob pena de substituir o espaço públi-co, coletivo, comunitário, livre, das for-mas democráticas de gestão e de pro-dução subjetiva, pelo espaço midiáti-co, privado, excludente, vertical, unidi-recional, pirata e da gestão autoritária,próprio da lógica perversa do capital.

O rádio comunitário, breve a TV,tende a constituir-se, de modo não ex-clusivo, no espaço, por excelência, deexpressão da produção subjetiva, deperspectiva emancipadora, da pobrezaestrutural excluída que, na cidade, noseu cotidiano de vida, reproduz, de fa-to, os efeitos perversos da contradiçãosocial capitalista. Neste, o olhar socialdos excluídos, ora ingênuo, ora crítico,vítimas da violência estrutural capita-lista (Santos,2001:72; Bourdieu,1998:56; Caiafa,2000:11; Iani,2002; Guatta-ri,1992;), segregados, sob modos di-versos, enquanto massa urbana porta-dora da pobreza, termina produzindoefeitos sociais mobilizadores, ao posi-cionar-se diante do real-social, pondo-

A noção de heterogeneidade aparece aí destituída de qualquer sentido que denote adversidade ou, mesmo atenuada, a contradição que desnuda a lógica perversa da acumulação do capital.

os em movimento, ora reivindicatóriose políticos, ora de estímulo às manifes-tações espontâneas, mobilizações plu-rais cidadãs, reuniões, encontros, deba-tes, produções estéticas, etc, onde,então, a emissora comunitária, ao pôrem contato as pessoas distantes e dis-persas, as envolve, no seu papel funda-mental de mediação para que esseolhar, essa subjetividade, se transfor-mem, exatamente, a partir dos agencia-mentos coletivos que as identidades so-ciais em movimento operam, mudandoo seu estar urbano e os cenários dacidade. Nestes olhares sobre o cotidia-no de vida, sobre a cidade e a socieda-de, expressos nas vozes plurais dos quehabitam a favela, lugar de valoração ne-gativa, e se limitam ao acesso coletivo,ao espaço público, ouvimos, em geral, odesejo de mudar de lugar ou de cená-rio, apesar da conformação social quese impõe ao hábito desse modo subje-tivo de estar na cidade.

Todavia, as práticas livres de comu-nicação, em essência, subjetivas, nasemissoras comunitárias, possíveis deserem entendidas como pós mídia navisão de Guattari (1986), devem ser re-guladas por um sistema, um agencia-mento coletivo, a cargo das represen-tações das identidades sociais em mo-vimento na cidade, de modo que, aolado das estratégias democráticas decomunicação, e em consonância comestas, sejam garantidas e estimuladasa autogestão comunitária, e, sobretu-do, a participação partilhada das enti-dades e espontânea das pessoas,numa polifonia de vozes e expressõessubjetivas emancipadoras, que se so-brepõem numa grade de programa-ção radiofônica, que se permite mutá-vel. Nesse sentido, as pautas geradassempre em pontos diversos do microtecido social, bem como as que emer-gem das representações das identida-des e redes de movimentos, se inse-rem nos formatos de programas defini-

dos segundo as estratégias democráti-cas da comunicação postas em praticapela emissora. Em última análise, essasestratégias são geradas, de modo parti-lhado, pelas representações das identi-dades e grupos de criação em movi-mento na cidade. Assim, para além danotícia, a rádio emite programas aber-tos ao debate para um olhar crítico daspessoas, num percurso entre o efême-ro e o estrutural social; entre o recado,o informe de mobilização e o debateou documentário de temas emergen-tes e contextuais, tratados sempre nasrelações com o cotidiano de vida urba-no, a exemplo da violência, da pobreza,do desemprego, da fome, que decor-rem do modo de produção capitalista.Destes, estruturais, emergem o medo eoutros funcionais e derivados, comoafirma Milton Santos:

Jamais houve na história um pe-ríodo em que o medo fosse tão ge-neralizado e alcançasse todas asáreas da nossa vida: medo de de-semprego, medo da fome, medo daviolência, medo do outro. Tal medose espalha e se aprofunda a partirde uma violência difusa, mas estru-tural, cujo entendimento é indis-pensável para compreender asquestões como a dívida social e asviolências funcionais derivadas, hojetão presentes no cotidiano de todos[Santos, 2001: 58].

Essas emissoras poderão, assim, re-criar as cidades e metrópoles brasilei-ras, desiguais, de hoje e do amanhã,ao permanecerem gerando idéias, afe-tos e valores, partilhados e solidários,sob novos cenários, possíveis de se-rem hegemonizados pela maioria so-cial excluída, na perspectiva de um ter-ritório social, urbano, subjetivo, de to-dos para todos.

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para enfrentar a invasão neoliberal. Trad. Lu-cy Magalhães - Rio de Janeiro, Jorge Zahar ED.,1998.

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_________Nosso Século XXI: notas sobrearte, técnica e poderes. Relume Dumará: Riode Janeiro, 2000

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WIRTH, Louis. O Urbanismo como modode vida. O Fenômeno Urbano. Otávio Guilher-me Velho (org.) Rio de Janeiro: Zahar editores,1967

Jonicael Cedraz de Oliveira, professor daFaculdade de Comunicação da Universi-dade Federal da Bahia. Mestrado em Co-municação e Cultura (ECO/UFRJ). Diretorde Comunicação da ABRAÇO Nacional.Associação Brasileira de Radiodifusão Co-munitária.

46 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mídia e Poder

Jacob Gorender foi membro do

Comitê Central do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) e

fundador do Partido Comunista

Brasileiro Revolucionário (PCBR),

em 1968. Autor de vários ensaios

e artigos, escreveu O escravismo

colonial e Combate nas trevas. A

primeira é uma obra considerada

clássica pela comunidade

acadêmica, ao passo que a

segunda é imprescindível para

todos aqueles que pretendem

conhecer os duros anos de

resistência à ditadura militar

(1964-1985). Em 1999, publicou,

pela Editora Ática, Marxismo

sem utopia.

Gorender atuou também como

jornalista, escrevendo em órgãos

de esquerda. Foi professor

visitante do Instituto de Estudos

Avançados e de cursos de

pós-graduação na Universidade

de São Paulo

Entrevista concedida a Waldir

José Rampinelli na residência de

Jacob Gorender, em São Paulo, no

dia 9 de abril de 2002. A

transcrição e as notas explicativas

são do entrevistador. A entrevista

foi examinada por Gorender e

sua publicação autorizada. O prof.

Rampinelli é do Departamento de

História da Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC). Correio eletrônico: [email protected]

Waldir José Rampinelli: A políticade união nacional do PCB1, nos anos50, que incluía o apoio ao desenvolvi-mento do capitalismo no Brasil não foium equívoco, já que a classe industrialburguesa buscava a associação com oimperialismo estadunidense?

Jacob Gorender: Convém aqui colo-car as coisas sob uma perspectiva histó-rica, ou seja, levar em conta as circuns-tâncias que atuavam nos anos 50 e atrajetória da própria ação política doPCB. Como o PCB fora posto na ilegali-

dade, em 1947, ele desenvolveu umapolítica cada vez mais sectária com de-clarações bombásticas de chamamentoà luta armada, a qual estava inteiramen-te fora do contexto da época. Isso levouo PCB a tomar uma atitude de absten-ção nas eleições de 1950, que foramessencialmente uma disputa entre oscandidatos Getúlio Vargas, CristianoMachado e Eduardo Gomes.

Getúlio se elegeu e ficou o tempotodo de seu governo sob o ataque in-cessante do PCB. Quando a crise che-

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 49UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Entrevista Jacob Gorender

O PCB e sua atuação nos anos 1950

JACOB GORENDER

gou ao seu auge, em agosto de 1954 eVargas estava sob fogo cerrado dadireita, o PCB não se deu conta de quea conjuntura sofrera uma mudançaradical, permanecendo no ataque aVargas. Somente alguns dias antes dosuicídio de Vargas, Prestes conclamou,pela imprensa, a apoiar Getúlio. Noentanto, isso foi inócuo pois os aconte-cimentos já estavam dados. Além dis-so, este apoio era cheio de restrições.Resultado: Getúlio cometeu o suicídio,as massas trabalhistas saíram às ruas eos militantes comunistas não tiveramalternativa senão a de juntar-se, nosmesmos protestos, aos trabalhistas.Esta questão, que deixou o PCB per-plexo, influiu na posição com relação aJuscelino Kubitschek (JK).

Com a nominata dos candidatos àseleições presidenciais de 1955, o PCB,já com a experiência traumática daabstenção na eleição anterior e de seucomportamento diante do governo deGetúlio - resolveu respaldar JK. Esteapoio se revestiu de muita importân-cia, já que JK se elegeria com uma di-ferença de meio milhão de votos e eupenso que eles vieram do PCB.

JK tomou posse com dificuldade2, jáque necessitou do apoio do ministroda Guerra, general Teixeira Lott. Come-çou seu governo com o Plano de Me-tas, visando o desenvolvimento do

país. Esta visão desenvolvimentista jávinha de Getúlio. No entanto com JKtomou uma posição mais definida.

O governo de JK se caracterizou pe-la ausência de presos políticos e pelaliberdade de imprensa. Havia, portan-to, um clima de descontração. Destemodo, as forças políticas podiam atuarsem constrangimentos. Então o PCB,considerando que o governo de JKapresentava a perspectiva de um de-senvolvimento progressista do país, re-solveu apoiá-lo condicionalmente. Deacordo com a análise da direção doPCB, atuavam no governo de JK duasalas: uma nacionalista, outra entre-guista. A ala nacionalista tinha o gene-ral Lott como seu representante, aopasso que o representante da entre-guista era o ministro Lucas Lopes. Ou-tra figura que já despontara como en-treguista, nesta época, era o RobertoCampos. Era, então, superintendentedo Banco Nacional de Desenvolvimen-to Econômico (BNDE)3 e já estava ape-lidado de Bob Fields. Dizia-se que fala-va o inglês melhor que o português.De fato, vivera muitos anos nos Esta-dos Unidos e dominava muito bemaquele idioma.

Com este esquema explicativo, o PCBenfrentou os problemas políticos que seapresentavam. Cabe lembrar que já noperíodo de JK apareceram os confrontoscom o Fundo Monetário Internacional(FMI), mais ou menos no estilo existen-te hoje. JK rompeu com FMI, apoiadopelo PCB e outras forças políticas. Oporta-voz de JK no Congresso, queanunciou a ruptura com o FMI, foi oindustrial paulista Horácio Lafer.

W. J. R. Se o relacionamento do PCBcom o governo JK era tão bom, porque o presidente se opôs à legalizaçãodo partido? Havia esperança de o PCBser legalizado ou ele foi traído por JK,já que este, de passagem por Washin-gton (janeiro de 1956), prometera aoSenado estadunidense de que não le-

galizaria o Partido?J. G. Não se pode dizer que JK tenha

traído o partido, já que ele não assu-mira um compromisso expresso com alegalização. Na verdade, a legalizaçãodo PCB foi algo muito difícil que sóveio a acontecer durante os anos 80,na esteira da anistia. Era um assuntofechado para o establishment conser-vador brasileiro. E claro, a pressãosempre presente do governo dos Esta-dos Unidos.

É preciso levar em conta que está-vamos nos tempos da Guerra Fria4 e osEstados Unidos eram governados pelogeneral Eisenhower - republicano - e osecretário de Estado era o John FosterDulles - um dos expoentes reacioná-rios mais arrogantes daquele período.Portanto, legalizar o PCB, naquelas al-turas, era algo certamente difícil para ogoverno.

W. J. R. A Declaração de Março, de1958, do PCB, não significou uma es-tratégia de conciliação de classe com aburguesia, da qual esta tirou vanta-gens, ao passo que para o partido so-braram apenas desvantagens?

J. G. Sem dúvida que vista hoje, aDeclaração de Março é um documentoem que a burguesia recebe um trata-mento que denuncia uma ilusão. Par-tindo sempre daquele esquema de quefalei: uma ala nacionalista e outra entre-guista. Segundo o PCB, a burguesiatambém teria uma parte servil ao impe-rialismo e outra que queria o desenvol-vimento e a independência do país.

W. J. R. Esta segunda parte (burgue-sia nacional) era hegemônica?

J. G. Não se dizia isso. O que se fa-lava era que ela devia ser apoiada. Ouseja, a aliança que o PCB tinha em vis-ta incluía esta parte da burguesia. Coma Declaração de Março começou a cir-cular o termo burguesia nacional. ADeclaração surgiu exatamente desta

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Entrevista Jacob Gorender

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 51

Entrevista Jacob Gorender

necessidade de formalizar, em um do-cumento oficial, a política que na prá-tica já estava sendo implementada.Isso porque os documentos oficiais doPCB ainda eram os do início dos anosde 1950, sectários e de uma retóricainteiramente fora de contexto. Por isso,surgiu a idéia de fazer uma declaraçãoprevendo os termos de uma nova polí-tica. Como se achava que a elabora-ção deste documento no Comitê Cen-tral seria inviável - isso porque deleparticipavam o Amazonas, o Grabois eoutros ligados a estes (fundadores doPC do B, mais tarde) -, então, pensou-se em fazer um documento fora do Co-mitê Central, assinado pelo Prestes eque seria jogado na mesa como fatoconsumado. Prestes concordou comisso. Embora estivesse ainda na clan-destinidade, já não se encontrava isola-do. Vários companheiros, fora da Co-missão Executiva, tiveram acesso a ele.Constituiu-se uma comissão que, àmargem do Comitê Central, elaborou adeclaração. Deste modo o Comitê nãoteve alternativa a não ser encampar aidéia. Já era um fato consumado. Logoviria o V Congresso, em 1960, que res-paldou tais teses. Este foi o encaminha-mento do PCB diante do governo de JK.

W. J. R. O PCB fez duras críticas aoGetúlio, chegando a chamar o seu go-verno de traição nacional. Na verdade,o Getúlio tinha posições mais contun-dentes contra o colonialismo e o capi-tal estrangeiro, ao passo que JK faziaexatamente o contrário. Não seria umaincongruência do PCB apoiar JK?

J. G. O governo de JK não era entre-guista, mas sim contraditório. Ele apo-iava os Estados Unidos, mas ao mes-mo tempo tinha um Plano de Metas dedesenvolvimento econômico e procu-rou implementá-lo, recorrendo a em-préstimos que gerou uma inflaçãomuito alta. Foram as construções de hi-drelétricas, como Furnas, Três Marias e

outras. Além disso, a instalação da in-dústria automobilística e a ampliaçãoda rede rodoviária. Eugênio Gudin, porexemplo, se opunha a tudo isso, consi-derando uma miragem onerosa ao país.E as empresas montadoras norteameri-canas - GM e Ford - que já tinham ins-talações no Brasil (não produziam auto-móveis, apenas montavam) também seopuseram a isso, em um primeiro mo-mento, o que obrigou JK a dar anda-mento ao seu projeto com as firmaseuropéias: a Volkswagem, a DKW, aSimca Chambord e outras. A Volkswa-gen foi decisiva porque implantou umagrande instalação e começaram a circu-lar os automóveis produzidos no Brasil,já em 1960. Isso foi um acontecimentode grande repercussão.

Na verdade, JK teve atritos com ocapital e os interesse norte-americanosque não previam um pólo industrial noBrasil. Só aceitaram quando o fato esta-va consumado. Eles queriam que nossopaís continuasse a ser exportador dematérias primas e ao mesmo tempoimportador de suas manufaturas.

A Declaração de Março, na verdade,foi um reconhecimento do erro come-tido em relação ao Getúlio que levou oPCB à impotência completa quando sedeu a crise de agosto, em 1954.

W. J. R. O senhor, no artigo Política

Exterior em Crise, na revista EstudosSociais, faz duras críticas à OperaçãoPan-americana (OPA). No entanto, aOperação não significou um relativoavanço para a política externa de en-tão, já que tentava barganhar um de-senvolvimentismo associado frenteaos Estados Unidos?

J. G. A OPA não poderia ser umplano em termos marxistas de verda-deira independência. Na verdade, JKbuscava dar um peso maior a AméricaLatina, e em particular, ao Brasil. Den-tro da política externa dos Estados Uni-dos, a América Latina não tinha peso.Com isso JK procurava dar relevo àsreivindicações brasileiras e latino-ame-ricanas.

JK não fez uma mudança radical napolítica externa do Brasil. Na verdade,ele passou a dar um peso maior à Eu-ropa., já que estava interessado na in-dústria automobilística. Para tanto fezgrandes concessões a tais indústrias. AWolksvagem, por exemplo, recebeuterrenos, créditos subsidiados, isençãode impostos e outras facilidades Issotudo foi feito por meio de entendi-mentos diplomáticos. A política exter-na de JK valorizou as relações com ocontinente europeu.

No que toca a Portugal, estava emvigor um dogma da política externabrasileira que só mudou com a Revo-lução dos Cravos, em 1975. Antes dis-so, o Brasil apoiava o colonialismo por-tuguês. Quando a Índia ocupou Goa eDiu, enclaves portugueses na região, acomunidade portuguesa do Rio fezuma grande manifestação defronte doPalácio do Catete, com o apoio de JK.5

W. J. R. Não se pode afirmar que, apartir de 1958, a política externa brasi-leira enveredou por um lado naciona-lista?

J. G. Sem dúvida. JK veio, em primeirolugar, com o Plano de Metas. Para tantose cercou de economistas que tinham

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uma perspectiva desenvolvimentista. Oseconomistas reacionários, como Gudin,se oposurem a isso publicamente.

Também com JK teve atuação o Ins-tituto Superior de Estudos Brasileiros(ISEB)6 destinado a forjar uma ideolo-gia desenvolvimentista e atuando naárea de estudos econômicos, políticos,sociológicos e outros. Os comunistasse aproximaram do ISEB. Eu me rela-cionei pessoalmente com o Vieira Pin-to, o Corbisier e outros. Já o Hélio Ja-guaribe era tido como entreguista esofreu críticas dos comunistas. Eumesmo fiz um ciclo de quatro confe-rências no ISEB sobre o marxismo e arealidade brasileira, com grande con-corrência.

W. J. R. O ISEB tinha um alcance so-bre a sociedade brasileira ou não eraalgo mais que um grupo de intelectuais?

J. G. O ISEB tinha influência sobre asociedade, pois realizava muitas confe-rências, influía na nomeação de minis-tros e dispunha de uma política editorial.Tanto que os golpistas de 1964, umadas primeiras coisas que fizeram, foi in-vadir, depredar e acabar com o ISEB.

W. J. R. FHC, várias vezes, reivindi-cou o direito de comparar o seu gover-no ao de JK. Qual é sua avaliação, emtermos comparativos, entre estes doisgovernos?

J. G. São períodos muito diferentes,obviamente. FHC não tem como serconsiderado, por uma historiografia fu-tura, um novo JK. Juscelino colocavaem primeiro lugar o desenvolvimento,não dando importância ao aspecto in-flacionário. Tanto que gastou muito pa-ra fazer as obras de infra-estrutura e,de modo particular, a construção deBrasília. Por isso, a inflação disparou.No entanto, isso não o incomodava.

Já FHC, em outro contexto, age demaneira inversa. No futuro, o governode FHC será lembrado, principalmente,

por duas coisas: a) por ter estabilizadoa moeda e, b) por ter feito a privatiza-ção das estatais.

JK criou várias estatais e desestabili-zou a moeda. Se para JK o prioritário foio desenvolvimento, já para FHC o maisimportante é a estabilidade. Por isso,ele se submete às exigências do FMI.

E a política externa de JK tinha umainserção maior na política internacio-nal que a de FHC.

W. J. R. O fato de o governo de JKser olhado com certa simpatia pelaesquerda, hoje, se deve ao fato de FHCter caminhado para a direita?

J. G. JK ficou na memória popularbrasileira como uma figura simpática. Operíodo dele é lembrado como umaépoca em que o Brasil foi prá frente7,rompeu barreiras, criando grandes coi-sas como hidrelétricas e a indústria au-tomobilística. Não havia desemprego,pelo contrário, grandes massas se des-locavam do Nordeste para trabalhar emSão Paulo e para construir Brasília. Alémdisso, o surgimento de Brasília, comsuas características monumentais, en-chia de orgulho o povo brasileiro.

Por isso, o período de JK é olhadocomo um período de auto-estima, deamor próprio e de grande potenciali-dade do povo brasileiro. Deixou lem-brança sua figura sorridente e afável.

Com certeza, JK e Getúlio serão osdois presidentes mais lembrados co-mo os estadistas na história do país,no século XX.

NOTAS1. Cabe lembrar que até 1958 chamava-se

Partido Comunista do Brasil. A partir de entãodenominou-se Partido Comunista Brasileiro,embora a sigla permanecesse a mesma.

2. Refere-se a todo um movimento golpis-ta - composto de militares, civis e do própriopresidente Café Filho -, destinado a inviabilizar,a qualquer custo, a chegada de JK à presidên-cia da República. Tornara-se célebre a frase deCarlos Lacerda, pronunciada na televisão: “Jus-celino não será candidato; se for candidato,

não será eleito; se for eleito, não tomará pos-se; se tomar posse, não governará”.

Um dos motivos apresentados pelo parti-do da União Democrática Nacional (UDN)para impugnar a vitória de JK nas eleições de1955, foi o da “ilegalidade” dos votos comu-nistas.

3. À época, o banco não tinha o S de sociale o cargo era o de superintendente superior.

4. Halliday divide as políticas do pós-guer-ra em quatro fases, levando em conta as rela-ções dos Estados Unidos com a União So-viética. São elas: fase 1: a primeira Guerra Fria,de 1946 a 1953; fase 2: o período de antago-nismo oscilatório, de 1953 à 1969; fase 3: adistensão, de 1969 à 1979; e fase 4: a segun-da Guerra Fria, de 1979 em diante [provavel-mente até 1989]. HALLIDAY, Fred. Génesis dela Segunda Guerra Fría. México: Fundo de Cul-tura Econômica, 1989, p. 23-26.

5. O apoio à política colonialista portugue-sa deu-se principalmente em votações nasNações Unidas. O Delegado indiano - R. Jaipal- depois de escutar a defesa do diplomata bra-sileiro Donatello Grieco proclamando a mis-são civilizadora de Portugal no além-mar, disseque “nunca ouvira uma exposição mais fiel aoponto de vista português do que aquela queacabara de fazer o representante do Brasil”.Diário de Lisboa, 31 de janeiro de 1957.

6. Criado em 14 de julho de 1955 pelo pre-sidente Café Filho, foi extinto em 13 de abrilde 1964 pelo então presidente interino Pas-choal Ranieri Mazzili. Costuma-se dividir o ISEBem duas fases: uma de perfil moderado, tam-bém chamada de centro-esquerda durante osanos 50 e outra mais radicalizada, nos anos 60.

7. Se entre 1945/1956 o produto nacionalbruto (PNB) cresceu 5,2% e a renda per capi-ta 2,5% por ano, já no período 1957/1961 oPNB atingiu a cifra de 7% ao ano e a rendaper capita, por sua vez, 3,8%. Já o crescimen-to da produção industrial (1955/1961) che-gou a 80% (em preços constantes), com asporcentagens mais altas registradas pelasindústrias de aço (100%), indústrias mecâni-cas (125%), indústrias elétricas e de comuni-cações (380%) e indústrias de equipamentosde transportes (600%). Para a década de1950 o crescimento per capita real do Brasilfoi cerca de três vezes maior que o restante daAmérica Latina. Veja-se BENEVIDES, Maria Vic-toria de Mesquita. O Governo Kubitschek. 3ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 204.

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Analisar as condições de exercícioprofissional dos docentes1 é um temadenso, que impõe a identificação dosdeterminantes das profundas altera-ções que têm sido experimentadaspor estes trabalhadores no cotidianode seu fazer profissional.

Esta análise se sustenta num hori-zonte mais amplo composto por trêselementos centrais: 1) o pensamentoneoliberal na configuração do Estado;2) a necessidade permanente do capi-tal, no processo de acumulação, deampliar seus mercados; 3) a supostamorte do Estado. Estes três elementoshierarquizam grandes orientações, apartir das quais perseguiremos media-ções, a fim de traduzi-las para o traba-lho na área da educação, em especialdos docentes.

Ainda que pareça lugar comum,avaliamos que é necessário uma breverecuperação histórica do ideário neo-liberal, para solidificarmos a compre-ensão sobre seus pressupostos e suaaplicabilidade no campo da educaçãoe também para que possamos cons-truir as alternativas de sua superaçãopor meio da construção de outro pro-jeto político-societário.

Em primeiro lugar, cabe ressaltarque entendemos “neoliberalismo” co-mo uma expressão da estratégia políti-ca do capitalismo para sair da sua crisee reconstruir suas margens de lucro. Oneoliberalismo é, portanto, concebido

Educação e Trabalho Docente

Marina Barbosa Pinto *

Precarização do trabalho docente: a educação como espaçode acumulação do capital

nos marcos da própria crise do sistemacapitalista, como estratégia da burgue-sia internacional para seu enfrenta-mento e superação.

Na década de 40, do século passa-do, por meio de Frederich Hayek, oneoliberalismo aparece como umaperspectiva acadêmica, seguindo umatendência marginal nos EUA e Europa,nas três décadas seguintes. Entretanto,é na década de 70 que o neoliberalis-mo encontra eco em governos de paí-ses do capitalismo avançado, comoMargareth Thatcher e Helmut Khol, naEuropa, e Ronald Reagan, nos EUA.Isso se explica pelo aprofundamentoda crise estrutural do modelo de acu-mulação de capital, iniciada no finaldos anos 60. Diante desse quadro, osprincípios programáticos desta doutri-na são assimilados por setores políti-cos, que optam por um programa dereestruturação do processo de (re)produção do capital.

Na América Latina, este projeto de-senvolveu-se pioneiramente no Chile,com o General Pinochet, constituindo-se no fenômeno que alguns autoresclassificam como “verdadeiro laborató-rio”, onde se desenvolveram receitasneoliberais que posteriormente foramaplicadas nos demais países latino-americanos.

Consideramos fundamental apre-sentar um segundo elemento para odebate: que a crise do capital e o con-seqüente movimento da burguesia nabusca por novos mercados não é ummovimento novo. Marx, no Manifestodo Partido Comunista, afirmava estemovimento da burguesia para desobs-truir seus caminhos em busca de mer-cados sempre novos. O atual processode mundialização financeira, elementobásico do neoliberalismo, realiza, por-tanto, um movimento de continuida-des e rupturas com o movimento his-tórico do capital: continuidade conce-bida no sentido de que não estamos

vivendo uma superação do capitalis-mo ou de suas leis mais gerais de acu-mulação e rupturas que se expressamem novos mecanismos que coman-dam e regulam a atual configuraçãodo capitalismo monopolista, sob o co-mando do capital financeiro.

Não nos interessa aqui fazer umaanálise detalhada da doutrina neolibe-ral, que vem se configurando comoum projeto político hegemônico emescala planetária, sob a direção políticanorte-americana. Neste sentido, desta-camos, em termos gerais, que estadoutrina parte: a) do redimensiona-mento do papel político e econômicode cada Estado Nação; b) da reestrutu-ração das relações de produção e dasalterações nas relações de trabalho eno processo de trabalho e c) da nega-ção das instâncias de organização daclasse trabalhadora.

Para elucidar este debate, conside-ramos importante problematizar umterceiro elemento presente no discur-so sobre o fim do Estado Nação, amorte do Estado. A hierarquização pla-netária que se aprofunda com a mun-dialização do capital não retira de cadaEstado Nação o papel de garantir reor-denamentos jurídicos e a infra-estrutu-ra necessária para dar sustentação aoprojeto societário do capital. As altera-ções nas políticas macroeconômicas enas políticas setoriais constituem umapolítica de Estado...a privatização éuma política de Estado!

Apreender criticamente como aque-les três elementos fundantes da análi-se estão presentes na política educa-cional brasileira na atualidade é funda-

mental para compreendermos a totali-dade deste processo, procurando elu-cidar o debate sobre as condições doexercício profissional do docente. Paratal propomos que a mediação paraeste fim seja construída a partir dedois eixos que consideramos funda-mentais e que atravessam e consti-tuem a política educacional na atuali-dade:

1) a atividade educacional comotrabalho;

2) a destruição da esfera públicacomo estratégica de expansão do capi-talismo

1) A atividade educacional como trabalhoAo entendermos a atividade educa-

cional como trabalho, entendemos osseus profissionais como trabalhadores,e estamos afirmando que desenvolve-mos uma atividade humana à qual im-primimos finalidade, a projetamosidealmente e buscamos formas deconcretizá-la no real vivido. É isso quenos confere a qualidade de humanose nos possibilita o desenvolvimento davida em sociedade. A capacidade deconceber e executar é o que perpetuanossa espécie. É necessário afirmarque a lógica geral do sistema capitalis-ta imprime os contornos da materiali-

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O atual processo de mundialização financeira, elemento básico do neoliberalismo, realiza, portanto, um movimento de continuidades e rupturascom o movimento histórico do capital.

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zação desta capacidade. Vendemosnossa força de trabalho e este é o pri-meiro limite. Ainda que esta relação,nas escolas públicas, não se paute naprodução de mais-valia e, portanto, secaracterize enquanto um trabalho im-produtivo, não podemos esquecer quetambém neste trabalho se evidencia aliberdade e a castração enquanto com-ponentes contraditórios do trabalho nasociedade capitalista.2

O desenvolvimento da humanidadeorganizou, de diferentes formas, aspossibilidades de satisfação das neces-sidades para a sobrevivência. O capita-lismo trouxe uma especificidade paraeste fim com a possibilidade de vendada força de trabalho, condição básicapara o desenvolvimento deste sistema,através da separação do trabalhadordos meios de produção, do fim do tra-balho compulsório e do estabeleci-mento de condições para esta venda.

A organização do sistema capitalis-ta, ainda que pressuponha a satisfaçãode necessidades para a sobrevivência,o faz com critério de classe, em que ointeresse maior, que subordina todosos outros, é a acumulação do capitalpelo burguês.

Assim sendo, a organização do tra-balho nas sociedades segue esta regra.E por mais distante que isso possaparecer estar de um docente, sua au-tonomia para manter a indissociabili-dade entre execução e concepção élimitada, na medida em que se verifi-ca, por exemplo, uma centralização na-cional de currículos; uma educaçãovoltada para os interesses do mercado;a desresponsabilização do Estado; ocerceamento da pesquisa; a conforma-

ção de elites do saber com os centrosde excelência; alterações nas relaçõesde trabalho, o que implica novas mo-dalidades de contratação e novas me-todologias de ensino.

Então, se é verdade que nosso tra-balho se vincula à organização do sis-tema, destacamos um aspecto destepara desvelarmos as alterações nasrelações de trabalho na área da edu-cação. O capitalismo, como saída pa-ra sua crise de acumulação e, comoparte de seu desenvolvimento, elabo-rou um modelo de organização daprodução, com o objetivo de extrairmaior produtividade do trabalhador eracionalizar a produção exercendoum maior controle.

Introduziu-se um princípio inovadorque orientou o processo de trabalhopor meio da divisão das especialidadesem diferentes operações limitadas esistemáticas, o que gera uma raciona-lização maior, com otimização dotempo de produção e possibilidademaior de controle, além da redução decustos. O objetivo era o aumento daprodução com menor custo, e para talse reordena a organização do trabalho.Há um parcelamento do trabalho quebarateia a produção e o descaracterizacomo atividade totalizante.

Agregado a esta organização produ-tiva, instituiu-se um modo de controle

desta por meio do gerenciamento, quesepara efetivamente a concepção daexecução. Os que elaboram não sãoos que executam e se desfaz, no coti-diano do trabalho, a mágica da concre-tização do produto idealizado. A pro-dução pressupunha uma quantificaçãoexpressa na produtividade de cada um,cuja atuação se autonomiza em relaçãoao produto final de seu trabalho.

Não pretendemos transpor estaanálise para o trabalho na área dosserviços, apenas retomaremos algunselementos que nos parecem reeditarvelhos conceitos e práticas sob novossignos. Da mesma forma, não estamostratando de produção em série, delarga escala e com controle gerencial3

ou da produção organizada sob aégide do toyotismo4. Tratamos de umsetor que presta um tipo particular deserviço e, portanto, com configuraçõesorganizacionais e institucionais dife-renciadas, que pode ser essencial àprodução, pois é espaço de reprodu-ção - via formação - da força de traba-lho.5

Partindo destas diferenciações, bus-camos o fio condutor que indica a to-talidade do sistema capitalista, que seutiliza, por exemplo, de uma quantifi-cação dos afazeres profissionais, esti-pulando uma metodologia de avalia-ção, atrelando-a a uma remuneração.Esta metodologia, no caso, fere a tota-lidade deste tipo de trabalho porquepossibilita e estimula uma divisão porespecialidades. Tal divisão das ativida-des viabiliza, por conseguinte, a divi-são/especialização entre profissionaisque as realizam.

Essa lógica estimula a competitivi-dade e o individualismo, contrapondo-se a toda uma concepção na qual aprodução e socialização de conheci-mentos precisam, na contemporanei-dade, ser construída em estruturas co-letivas que congreguem os produtorese permitam o estabelecimento de diá-

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Os que elaboram não são os que executam e se desfaz, no cotidiano do trabalho, a mágica da concretização do produto idealizado.

logos entre as diversas áreas do co-nhecimento e instituições diversas. Éessa lógica que atravessa a educaçãona atualidade, nos apresentando limi-tes e possibilidades, desafios cotidia-nos para nossa atuação profissional.

Por que esta lógica na educação? a) Porque este espaço se tornou um

importante lugar para a expansão docapitalismo, para operar inversões nabusca do lucro, através da produçãode conhecimento e da formação demão-de-obra especializada, a partirdos critérios do mercado (leia-se gran-de capital). Neste sentido, procura-setransformar o trabalho, nesta área, emtrabalho produtivo, que transforma osimples dinheiro em capital, através damais-valia. Tudo isso no contexto daReforma do Estado proposta peloBanco Mundial (BM) e assumida peloatual governo. Uma reforma que afir-ma propor a retirada do Estado do se-tor produtivo, mas amplia a interven-ção estatal na formulação de políticas- as educacionais são apenas umexemplo - que atendam à lógica do ca-pital.

Estas alterações forjam o caminhopara a transformação deste setor emlocal rentável para o capital e, por isso,se utiliza dos princípios assumidos pe-lo sistema capitalista, no início de suaconsolidação enquanto sistema mo-nopólico, mesmo que isso signifique,aparentemente, um atraso diante dasnovas formas de organização da pro-dução. Na verdade, o que se processaé uma adequação do setor à lógicaprodutiva do sistema.

Se voltarmos às análises já clássicas

sobre a organização do trabalho, po-demos dizer que, com isso, separa-seo produto final de sua idealização,subdivide-se a especialidade do traba-lho nesta área e barateiam-se os cus-tos, já que, além de tudo, é possívelcontratar a força de trabalho por dife-rentes formas. Se quisermos utilizarargumentos mais recentes, podemosdizer que tudo isso assegura uma oti-mização do trabalho, por acirrar acompetição interna, estimulando osprofissionais e produzindo mais quali-dade, além de flexibilizar a prestaçãodo serviço educação.

b) abre as possibilidades para que ocapital se movimente em busca da ex-ploração lucrativa de novas áreas e ser-viços. O capital invade a educação,especialmente a educação superior,em busca de lucros cada vez maiores,

tornando a educação superior um“meganegócio”6.

Neste cenário, apresentam-se asprofundas alterações nas condições detrabalho docente, no qual podemosdestacar alguns indicadores em dife-rentes campos. No campo da expan-são do mercado, expressão da lógicada educação como mercadoria: am-pliação das matrículas no nível supe-rior e relação alunos/docente. Nocampo da organização do trabalho do-cente: GED/GID e produtividade; pres-tadores de serviços e professores subs-titutos e titulação dos docentes. E nocampo do papel da universidade nasociedade: a redução da produção doconhecimento à importação de mode-los tecnológicos e sua adaptação àsexigências internas, reduzindo a edu-cação ao processo de transmissão deconhecimentos a serviço das deman-das do mercado e à formação de umtipo de trabalhador exigido pela novaordem.

2) A destruição da esfera pública como estratégica de expansão do capitalismo A destruição da esfera pública é

prioridade do projeto político neolibe-ral. O neoliberalismo, ao atacar a esfe-ra pública, o faz a partir de duas di-mensões organicamente vinculadas:

a)entendendo-a como espaço dematerialização de conquistas e direitossociais, efetivando uma crítica diretaao chamado Estado de Bem-Estar So-cial e para além deste, tem ainda co-mo interlocutor indireto o projetosocialista;

b) objetiva reintegrar, no campo deinvestimento lucrativo, as políticas so-ciais públicas, especialmente a educa-ção, transformando-a em um grande“negócio” para o capital em crise.

Na perspectiva neoliberal, o caráterlimitado e ineficiente do Estado, suavocação planificadora, seu burocratis-

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O capital invade a educação, especialmente a educaçãosuperior, em busca de lucros cada vez maiores, tornando a educação superior um “meganegócio”.

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mo, são os elementos que explicam aimpossibilidade de um caráter demo-crático e de eficiência produtiva, tãopropalados na pós-modernidade, co-mo características das práticas peda-gógicas das instituições de ensino.

Mas o Estado não morreu! A privati-zação é uma política de Estado!

Para este discurso, a intervençãoestatal na questão social é historica-mente marcada pela ineficiência e im-produtividade. Neste cenário, o merca-do aparece como a fonte da compe-tência e da qualidade. Ao afirmar isto,o projeto neoliberal questiona a pró-pria noção de direito constituída aolongo de embate de classes na confi-guração social capitalista, onde anoção de direito se apresenta comoconquista, ainda que limitada, da clas-se trabalhadora. Este debate nos re-mete à discussão da perspectiva e con-cretização da democracia nesta socie-dade. Para o neoliberalismo, a demo-cracia é tão somente um sistema polí-tico que permite aos indivíduos “de-senvolver” sua capacidade de livre elei-ção no mercado, visto ser este a únicaesfera que garante e potencializa acapacidade individual.

Neste mesmo sentido e direçãopolítica, se expressa a concepção decidadania, na qual se explicita uma crí-tica à concepção universal e universali-zante que gera, na óptica neoliberal,promessas e ações caracterizadas pelaimprodutividade e incompetência. Aideologia que prevalece é de que osdireitos sociais são a falsa promessa decondição de cidadania, que nos colocaem iguais condições de lutar e exigir, oque só poderia ser outorgado a quem,por esforço individual, fizer por mere-cer.

Neste cenário, o direito é reduzidoà propriedade. O cidadão é consumi-dor, privado, responsável e dinâmico.Para assegurar esta nova concepção, alógica neoliberal busca alterar o papel

do Estado, enquanto executor e finan-ciador das políticas sociais (concebidascomo direitos universais) e tambémtrava uma batalha contra a ação dossindicatos (como protagonistas delutas por ampliação de conquistas so-ciais). Desta forma, as instâncias dematerialização de interesses gerais ecoletivos são diretamente atacadas ehá a privatização da vida social, privati-zando-se o êxito e o fracasso, creditan-do aos indivíduos a responsabilidadepor aproveitarem ou não as oportuni-dades que estão no mercado.

A educação, concebida como direi-to, é reduzida à condição de mercado-ria a ser acessada pelos que “podem”,no mercado.

No Brasil, os últimos quatro manda-

tos presidenciais são protagonistas dacriação de condições de inserção dopaís no processo de mundialização docapital, na ordem que se estabeleceucomo resposta às necessidades deacumulação da burguesia internacio-nal. Esta inserção exige que o sistemaeducacional se adeque à sua confor-mação, formando um novo trabalha-dor, subordinando os interesses daeducação aos do mercado. O governoFHC lidera este protagonismo, usur-pando, perversamente, bandeiras his-tóricas dos trabalhadores desta área.Ao usurpá-las, as utiliza para a conse-cução de seus objetivos e gera confu-são entre os trabalhadores e os usuá-rios da educação pública. Aqui pode-mos afirmar que o governo habilmen-te se utilizou de mecanismos coerciti-vos e de construção de consenso, pon-do a educação na condição de “basepara o uso eficiente de novas tecnolo-gias e para adoção de novas formas deorganização do trabalho”7 e como“investimento estratégico para garantiro desenvolvimento econômico e aplena cidadania”8.

Alteram-se a estrutura normativa, oconteúdo curricular e o sistema degestão escolar e universitário, a fim de

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A ideologia que prevalece é de que os direitos sociais são afalsa promessa de condição de cidadania, que nos colocaem iguais condições de lutar e exigir, o que só poderia seroutorgado a quem, por esforço individual, fizer por merecer.

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fazer a educação cumprir os objetivosdesenhados por aquele projeto: au-mentar o patamar mínimo de escolari-zação com domínio de conteúdosmínimos de natureza científica-tecno-lógica e desenvolvimento de maiorprodutividade no uso do maquinário,para aqueles que serão demandados arealizar o trabalho simples e o desen-volvimento da capacidade de adaptarprodutivamente à ciência compradados países desenvolvidos, para aque-les que serão demandados a realizar otrabalho complexo. Evidentemente, aisso se soma a incorporação da lógicaneoliberal de organização societal co-mo única estratégia possível, organi-zando uma nova cultura empresarial egovernamental9.

Cabe ressaltar que, para além derequalificar a força de trabalho, as alte-rações na educação brasileira, comnovas políticas, estão a serviço de con-trolar a pressão social em função doaumento do desemprego e da desi-gualdade social, apostando todas as fi-chas na ideologia do sucesso indivi-dual, do qual o aceso à escola já écomponente.

Ao final do segundo mandato degoverno FHC, podemos afirmar que aeducação foi uma das prioridades dogoverno federal, visto que houve uminvestimento de seus quadros em es-forços administrativos para reformularas diretrizes para o ensino e adequar aeducação às exigências do mercadono mundo globalizado.

Tudo isso ganha nexo quando nosreportamos ao projeto que orientamundialmente a forma de acumulaçãode capital da burguesia, o neoliberalis-mo. O projeto para o ensino superiorhoje segue as regras do BM, que operaa organização das economias nacio-nais a favor da superação da crise deacumulação mundial e, para tal, oadestramento e formação da mão-de-obra são pontos de extrema relevân-

cia.10 Sua apresentação se dá em baseà retórica da modernização, que possi-bilitará ao país a qualificação necessá-ria para disputar seu espaço no comér-cio internacional e não se paralisarfrente à roda da história que não deixade se mover.

A materialidade deste projeto calca-se na proposta de Reforma do Estado11

que tem como eixo o envolvimentodireto do Estado apenas em atividadesque se vinculam à arrecadação, contro-le do mercado e segurança; a concep-ção de não exclusividade do Estadoem setores como saúde, educação epesquisa científica, o que significa quea execução destes serviços deverá serassumida por entidades denominadas“públicas não-estatais”; terceirizaçãode atividades de apoio da administra-ção e a descentralização, por meio de“parcerias” com a sociedade civil, con-cebida como somatório de indivíduose empresas.

Do nosso ponto de vista, da lógicados trabalhadores, revelam-se agora asalterações do mundo do trabalho12, nointerior do campo da educação e adescaracterização do trabalho que lheé peculiar. Incluindo a implantação dascondições para uma avaliação que não

considera objetivos, papel social daeducação, condições de trabalho, massomente objetivos e tarefas pré-defini-das e estabelecidos por quem não asexecuta, que somam pontos no ran-kiamento de produtividade estabeleci-dos e controlados pelos organismosinternacionais a serviço da acumula-ção do capital.

Apesar de toda a negação dos pro-jetos e possibilidades de transforma-ção, hoje disseminada com o pensa-mento pós-moderno, reafirmamosque a luta de classes se processa per-manentemente para aqueles que vi-vem do próprio trabalho. Ter clara asestratégias é traçar o caminho da vitó-ria, e o centro de nossa estratégia édefender a educação como locus deprodução de uma formação crítica eintegradora que possibilite ao indiví-duo estabelecer seus vínculos com asua realidade de trabalhador brasileiro,produzindo, desenvolvendo e sociali-zando conhecimento a favor da satisfa-ção das demandas sociais, com finan-ciamento público, gestão autônoma edemocrática, gratuidade, condições detrabalho dignas e igualitárias para to-dos os seus profissionais.

A defesa desta estratégia pressupõesuperar o pragmatismo que aponta aspolíticas que vêm sendo implementa-das pelos governos como única opçãopara a crise e entender que esta é asaída para a classe dominante, a bur-guesia. Para os trabalhadores, a saída éa resistência cotidiana e permanentede seus princípios e direitos.

Diante deste quadro, duas alternati-

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As alterações na educação brasileira, com novas políticas,estão a serviço de controlar a pressão social em função doaumento do desemprego e da desigualdade social, apostan-do todas as fichas na ideologia do sucesso individual.

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vas se apresentam de forma combina-da e indissociável: a luta pela defesado projeto de educação que construí-mos coletivamente no movimento e aluta intransigente pela organização deum novo modo de produção. São doiscaminhos que se entrecruzam: um, adefesa das conquistas e direitos daclasse nos árduos anos de luta. Umaluta para garantir a sobrevivência e adignidade dos trabalhadores e assegu-rar sua presença no cenário político, oque passa pela organização sindical oenfrentamento direto e permanentecontra os inimigos de classe e aquelesque servem à sua política. Outro, queno desenvolvimento destas lutas coti-dianas vai se fortalecendo e criandocorpo o projeto estratégico de cons-trução de uma nova ordem mundialonde o trabalho referencie-se na criati-vidade humana para a satisfação desuas necessidades e assegure a todosa liberdade de viver com dignidade,sob a égide da democracia da classetrabalhadora. O projeto de educaçãoque defendemos compartilha este re-ferencial estratégico e depende da-quela luta.

Este é um terreno árido e tortuoso,mas a possibilidade de trilhá-lo está naorganização coletiva de todos os quevivem do seu próprio trabalho.

NOTAS1. Ainda que a análise aqui apresentada

forneça elementos para desvelar o trabalhona área de educação, abrangendo os trabalha-dores deste setor, vamos destacar o trabalhodocente.

2. Para um aprofundamento desta discus-são consultar K. Marx, Capítulo VI inédito de OCapital, São Paulo, Moraes, 1985.

3. Aqui nos referimos ao período do fordis-mo/taylorismo que se caracteriza por esteselementos. Deste, destacamos que o sistemataylorista de organização do processo de tra-balho objetivava assegurar aos capitalistasmeios de se apropriar efetivamente do conhe-cimento dos operários e com isso obter ummaior controle sobre a produtividade de cada

trabalhador. “A organização social do trabalho,já agora dotada de um álibi e de uma funçãotécnica, divide-se e subdivide-se como os in-contáveis fios de uma teia de aranha gigantes-ca em que cada gesto fica cercado por estrei-tos limites e toda possibilidade de iniciativa eautonomia operária se torna reduzida.(...)Ocrescimento da produtividade (da mais-valiacotidiana extorquida) tornará possível o finan-ciamento dessas coortes de vigilância e oscapitalistas ainda terão larga margem de lu-cro, cujo valor será pago pelos operários, combase numa intensidade de trabalho elevadaao extremo limite do possível. “Não é só o tra-balho que é dividido, subdividido e repartidoentre diversos indivíduos; o indivíduo, ele pró-prio, é dilacerado, metamorfoseado em molaautomática de uma operação exclusiva, demodo que se torna realidade a absurda fábu-la de Menenius Agrippa, representando umhomem como fragmento de seu próprio cor-po.” Robert Linhart, Lenin, os camponeses,Taylor, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.pp.81-82. Classificando e codificando conhecimen-tos e atividades, Taylor apresenta uma organi-zação científica do trabalho que melhor encar-na o processo de produção capitalista e tornarealidade o que Marx já havia sinalizado comotendência do modo de produção capitalista.

4. Compreende-se por toyotismo um tipode organização da produção que inclui tecno-logia, a escala de produção, a flexibilidade dospostos, as qualificações de mão-de-obra, asestratégias de mercado, a internacionalizaçãoe a diferenciação dos produtos. Há um deba-te em torno da inovação do modelo japonêsde produção. O que se verifica em alguns es-tudos é que o centro da organização tayloris-ta da produção - divisão entre concepção eexecução e definição de meios para se obtermaior produtividade/lucratividade - se man-têm. Apesar de novos elementos como ciclosde qualidade, polivalência do trabalhador,também seria arriscado afirmar que este é omodelo que nega na totalidade o modelo tay-lorista. Este debate é desenvolvido em S.Wood, “O modelo japonês em debate: pós-

fordismo ou japonização do fordismo”, In Re-vista Brasileira de Ciências Sociais, 17, 1991,pp. 28-43.

5. Concordamos com Iamamoto, (M. V.Iamamoto, O Serviço Social na contempora-neidade: trabalho e formação profissional,São Paulo, Cortez, 1998,p.68) quando afirmaque “Os trabalhos que são desfrutados comoserviços são aqueles que não se transformamem produtos separáveis dos trabalhadoresque os executam e, portanto não tem existên-cia independente deles como mercadoriasautônomas”. O “ Capítulo Inédito” de O Capi-tal, de Marx clarifica esta discussão. Vale sa-lientar que o capitalismo na atualidade tendea industrializar os serviços, ou seja, realizá-losdentro de sua lógica de valorização, através daprivatização. Processo que exclui da interven-ção e responsabilidade estatais a execução deserviços com saúde, seguridade social e edu-cação.

6. A este respeito, ver reportagem da revis-ta Exame03/04/02: “O meganegócio da edu-cação - a educação já movimenta 90 bilhõesde reais por ano no Brasil e deve se transfor-mar numa das maiores fronteiras de oportuni-dades das próximas décadas”.

7. Gov. Fernando Henrique Cardoso - Polí-tica industrial, tecnológica e de comércio exte-rior - Reestruturação e expansão competitivasdo sistema industrial brasileiro. 1995-1999.1995, p.19.

8. Governo Federal. Ministério da Educa-ção e do Desporto - Planejamento político eestratégico. 1995-1999, 1995,p.2.

9. Esta discussão está aprofundada em:Neves. L. M. W. “ Educação: um caminhar parao mesmo lugar”, in O desmonte da nação -um balanço do governo FHC, Ivo Lesbaupin(org.), RJ, Vozes, 1999.

10. Sobre este tema, ver Roberto Leher:“Um novo senhor da educação? A políticaeducacional do Banco Mundial para a perife-ria do capitalismo”, in Outubro, 3, 1999, pp.19-30.

11. Ministério da Administração Federal eReforma do Estado, A reforma do Estado noBrasil. Brasília, 1998

12. Cf., dentre outros, Ricardo Antunes,“Para onde vai o mundo do trabalho”, in A M.C. Araújo (org.), Trabalho, cultura e cidadania.São Paulo. Scrita, 1997.

Marina Barbosa Pinto é Profa Assistenteda Escola de Serviço Social da UFF.

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O debate político-econômico con-temporâneo tem recorrido, comfreqüência, à necessidade de buscaralternativas que visem tanto àdeslegitimação do poder econômicomundial, quanto ao controledemocrático das instituições dosmercados financeiros. Sem dúvida,esse debate põe a necessidade dese considerar a complexidade daorganização estrutural do capitalismocontemporâneo e de se reconheceros vínculos entre os sistemas

institucional-organizativos do traba-lho e do capital e as mudançasoperadas no processo de trabalho.

O esgotamento do Estado Bem-Es-tar, baseado num compromisso declasses, revela que a lógica do capitalmonopolista implica necessariamenteo desmantelamento das instituiçõessociais, sejam daquelas voltadas parao atendimento de requisições sócio-políticas dos trabalhadores, sejamdaquelas outras orientadas para o con-trole do capital.

Portanto, para fazer face à crise domodelo fordista de produção, a mun-dialização do capital propôs uma alter-nativa ao Estado de Bem-Estar (o Es-tado mínimo), gerando o enfraqueci-mento dos elementos constitutivos desua dimensão política:o associativismosindical e o partido político.

A melhoria das condições de assala-riamento, em finais do século XIX, re-quisitou esforços da classe trabalhado-ra e ampliou sua participação nosresultados do produto do trabalho,

Cleusa Santos *

A Seguridade Social e a esfera dos serviços1

através da construção de um sistemade seguro social baseado na solidarie-dade e no princípio da dependênciarecíproca.

A alternativa social-democrata, coma criação do Estado de Bem-Estar, foium pacto entre capital e trabalho, atra-vés do qual os trabalhadores abririammão da revolução e a burguesia departe dos seus lucros. Esse pacto per-mitiu a universalização de uma con-cepção de seguridade assentada noprincípio fundamental de assegurar osdireitos sociais, proteger os trabalha-dores assalariados contra todas as pos-síveis perdas de seu salário. Através dojogo democrático, o Estado não ape-nas se legitimou, mas institucionalizouas demandas da classe trabalhadoraatravés de reformas.

A ruptura com o pacto social cons-truído pelos trabalhadores e empresa-riado, causada pela incompatibilidadeentre o modelo monopolista do capi-talismo e as requisições do Estado deBem-Estar, demonstra a impossibilida-de de integração entre liberalismo edemocracia, mais precisamente, evi-dencia o choque entre as exigênciasanti-democráticas da ordem do capitale as requisições democráticas radicaisdo trabalho. Os fracassos, tanto domodelo “nacionalista terceiro-mundis-ta” quanto do socialismo real após asduas guerras mundiais, fizeram comque parcelas significativas das chama-das forças progressistas passassem aaderir paulatinamente aos princípiosídeo-políticos da doutrina liberal clássi-ca. Em resposta à crise da ordem bur-guesa, retomou-se o ideário liberal,agora cognominado neoliberalismo,atacando-se frontalmente o Estado deBem-Estar, desmontando-se as políti-cas sociais outrora apresentadas comoresolução à questão social atribuindo-se aos indivíduos e ao mercado a reso-lução de suas seqüelas.

Argumentarei aqui que o processo

das inflexões produzidas pelo desen-volvimento das forças produtivas vemimpondo mudanças de função do co-mércio na esfera das políticas públicaspara a implantação de reformas eco-nômicas que possam garantir a aber-tura comercial. Mostrarei que, uma vezindustrializada a esfera da circulação, aconcentração e centralização do capi-tal expandem suas fronteiras do priva-do ao público e transformam os servi-ços sociais em fontes de lucros, como,por exemplo, a compra e venda de ser-viços de saúde, de seguros sociais, deeducação. Isto exige formulações deestratégias dos diferentes movimentossindicais e populares no contexto dainternacionalização dos serviços deseguridade social, sem prescindir daação dos Estados nacionais.

Do ponto de vista da produção, asalterações ocorridas no mundo do tra-balho e também, na relação Estado esociedade, a partir da década de 1970,revelam as mudanças estruturais dosistema capitalista que fundaram ossupostos necessários para o que seconvencionou chamar de “acumula-ção flexível”, onde se inclui a precariza-ção das relações de trabalho, compo-nentes de acumulação1. Efetivamen-te, tais inflexões alteraram significativa-mente a relação entre capital e traba-lho que, a partir da década de 80, so-freram profundas transformações,resultantes da revolução informacio-nal: a automação, a robótica e a mi-croeletrônica que introduziram modifi-cações substantivas no cotidiano dotrabalho.

O desenvolvimento das forças pro-

dutivas gerou profundas modificaçõesno conjunto das atividades econômi-cas, ampliando as funções intermediá-rias, ou seja, aquelas funções que sesituam entre a produção e o consumofinal. Tais funções põem em evidênciaque “quanto mais generalizada a pro-dução de mercadorias e quanto maisadiantada a divisão do trabalho, tantomais essas funções intermediárias pre-cisam ser sistematizadas e racionaliza-das, a fim de assegurar produção evenda contínuas. Portanto, a tendênciaà redução do tempo de giro do capital,inerente ao modo de produção capita-lista, só pode tornar-se realidade se ocapital (comercial e financeiro) seapossar cada vez mais dessas funçõesintermediárias” (Mandel, 1982 :269-270).

O efeito mais visível deste processoé a subordinação tanto do capital deserviços quanto do capital industrial,aos imperativos do capital financeiro,conforme as particularidades nacio-nais. Conforme discorre Costa (1998:272), “o capital monopolista não seopõe (... ) de forma alguma à penetra-ção de capital no chamado setor deserviços, mesmo que isso incontesta-velmente reduza a taxa média de lu-cros, porque uma massa maior de

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O contexto oferecido pela economia de mercado capitalistatem se mostrado devastador para a classe trabalhadora quetem testemunhado a apropriação privada do trabalho social.

mais-valia deve somar-se à massa decapital social investido, que aumentouainda mais do que a quantidade demais-valia”.

Sob o impacto destas transforma-ções é notável que os serviços sociaisrealizados na esfera da circulação, por-tanto, da reprodução do capital, tornemais visível a lógica do capitalismoque “consiste em converter, necessa-riamente, o capital ocioso em capitalde serviços e ao mesmo tempo, subs-tituir serviços por capital produtivo ou,em outras palavras, substituir serviçospor mercadorias” (Mandel, 1982:285).É nas estruturas de produção e repro-dução (esfera econômica) que essesserviços se transformam em capitalprodutivo, ou seja, quando reproduz otrabalhador na condição de assalaria-do para continuar consumindo onecessário para sua subsistência egerando riqueza. Isto significa que nãoé mais possível pensar que o processode acumulação e valorização do capi-tal - no âmbito dos serviços - se restrin-ja à “relação privada entre aquele quevende sua força de trabalho com qua-lificações específicas e aquele quegasta rendimentos privados” (Mandel,1982:270).

Contudo, se os avanços tecnológi-cos propiciaram o crescimento da pro-dutividade, diminuição de custos e au-mento do consumo - modificando asformas de inserção na estrutura produ-tiva, as formas de representação sindi-cal e política, fazendo emergir um con-junto de necessidades qualitativamen-te novas - o contexto oferecido pelaeconomia de mercado capitalista temse mostrado devastador para a classetrabalhadora que tem testemunhado aapropriação privada do trabalho social.Isto evidencia o fato de que a produ-tividade do trabalho aumenta por for-ça do incremento tecnológico, tendocomo conseqüência a redução do tra-balho vivo, cujo resultado é o exército

industrial de reserva. Na “quintessên-cia objetivada das antinomias ineren-tes ao modo de produção capitalista”,reside o caráter duplo da automaçãoque “por um lado, representa o desen-volvimento aperfeiçoado das forçasmateriais de produção que poderiam,em si mesmas, libertar a humanidadeda obrigação de realizar um trabalhomecânico, repetitivo, enfadonho e alie-nante. Mas por outro, representa umanova ameaça para o emprego e o ren-dimento, uma nova intensificação daansiedade, a insegurança, o retornocrônico do desemprego em massa, asperdas periódicas no consumo e narenda, o empobrecimento moral e in-telectual” (Mandel, 1982:152).

A queda no volume total de traba-lho, gerada pelo desenvolvimento ex-ponencial da informática desde o iní-cio da década de 70, poderia ter repre-sentado uma diminuição na jornadade trabalho, com a manutenção donível de emprego. Isso só não ocorreuporque a classe trabalhadora, em esca-la mundial, não teve a capacidade,desta vez, de se contrapor a essa avas-saladora investida do capital. Esse en-fraquecimento da capacidade de orga-nização dos trabalhadores tem enseja-do, num primeiro momento, umafrouxamento na aplicação das leis tra-balhistas, para depois trazer perdas de

direitos alcançados através do proces-so de organização e luta. A médioprazo, essa correlação de forças, cadavez mais potente do lado do capital,traz uma diminuição nos gastos públi-cos em áreas como previdência, habi-tação, saúde, educação. Entre os me-canismos causais do sistema capitalis-ta está a criação de valor que se operana extração da mais-valia relativa2 nomundo do trabalho hoje. Marx de-monstrou que a mais-valia relativa só épossível através dos recursos técnico-científicos que aperfeiçoam o instru-mental de trabalho e reorganizam asrelações de produção dentro daempresa. É com esse aperfeiçoamentotécnico-científico, apoiado hoje, princi-palmente, na informática, que se ace-lera a reprodução do capital constante,ou seja, reduz-se o tempo socialmentenecessário para a reprodução do capi-tal investido. Exemplos disso estão novalor agregado nos bens de capital enos bens de consumo duráveis, naaceleração do desenvolvimento tecno-lógico e na crescente exclusão do tra-balho de baixa qualificação do proces-so de produção.

A nova configuração do desenvolvi-mento das forças produtivas atingiutambém a seguridade social, seja pelaprivatização, seja pela internacionaliza-ção dos serviços. Isto só foi possívelpela criação de mecanismos de con-trole que atingem diretamente osdireitos sociais que englobam os servi-ços públicos. É sabido que, hoje, a se-guridade social, assim como as demaispolíticas sociais, se objetivam em umconjunto de programas e projetos quepõem em relevo a lógica da acumula-ção que se manifesta na mercantiliza-ção dos serviços sociais, da educação,da saúde, da previdência etc. A privati-zação desses serviços exclui aquelesque não podem pagar e põe em ques-tão o caráter coletivo desses serviços.

Como se sabe, é no processo de

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 65

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complexificação do capital monopolis-ta que as políticas sociais assumemuma função específica: embutir a lógi-ca do capital de forma consensualnesse contingente populacional prole-tarizado e escamotear as contradiçõesinerentes ao processo produtivo, namedida em que “uma das causasestruturais mais importantes da inter-venção do Estado consiste em assumiros custos provocados pela desvaloriza-ção social do capital” (Castells, 1979:91). Ao assumir estes custos, o Estadoutiliza-se das políticas sociais que pas-sam a funcionar como uma contrarres-tante da queda tendencial da taxa delucro. Por isso, “os sistemas de previ-dência social (aposentadoria e pen-sões) (...) são instrumentos para con-trarrestar a tendência ao subconsumo,para oferecer ao Estado massas derecursos que de outra forma estariampulverizadas (os fundos que o Estadoadministra e investe) e para redistri-buir pelo conjunto da sociedade oscustos da exploração capitalista-mono-polista da vida ‘útil’ dos trabalhadores,desonerando os seus únicos beneficia-dos, os monopolistas. Sob essa ótica, oEstado assume os investimentos quenão geram lucro para o capital ou quesuperam o nível do gasto disponívelaos capitalistas“ (Netto:1992:27).

Do mesmo modo, o Estado cria for-mas para tornar rentáveis os investi-mentos em políticas sociais, como é ocaso da saúde e da previdência e assis-tência social, repassando para a popu-lação esses investimentos ou acordan-do formas de atendimento pelo setorprivado. Desta intervenção na econo-mia, resulta a legitimação da produ-ção, reprodução e valorização de par-cela do capital que não pode mais serreproduzido no âmbito capitalista mas,sobretudo, nas funções que o Estadoexerce para absorver o excedente ecriar uma procura efetiva ao transferir“capacidade aquisitiva às pessoas e fir-

mas comerciais, tanto quanto pelascompras diretas de bens e serviços”(Sweezy e Baran, 1978:149).

No regime capitalista, os serviçosconstitutivos da seguridade socialsempre foram financiados “mais doque uma tributação imposta à burgue-sia, por impostos pagos pelos mesmostrabalhadores” (Mandel, 1973). O ar-gumento apresentado por Mandelmostra que, na reconfiguração da se-guridade social, evidencia-se a finalida-de dos serviços sociais - uma media-ção fundamental da ideologia, como omercado o é para a economia - queestão historicamente vinculados à polí-tica econômica e à política social doEstado. As políticas econômicas e so-ciais constituem uma unidade que, adespeito de suas especificidades, de-monstra a natureza da questão social.

Nos anos 70, o início do processode desmantelamento do Estado deBem-Estar ocorre com a generalizadaprivatização de empresas estatais,mercantilização das políticas públicas,e, de maneira especial, da previdência,da saúde e da assistência, o que seconstitui em um refluxo das reformassociais que avançavam em direção aconsolidação da cidadania. É evidenteque esse processo, conforme afirma-mos de início, é a conseqüência lógicado fortalecimento ídeo-político do li-beralismo econômico globalizado cu-jas conseqüências sociais são, na óticaconservadora, questões objetivas enão ideológicas, compatíveis, portanto,com ações que levariam à inclusão

dos excluídos. Isto, além de ter criadonovas dimensões de alienação econô-mica e de sociabilidade, tem rebatidona exacerbação do individualismo.

Sabe-se que, no interior do radicalprocesso de transformações político-econômicas, está a afirmação dos pre-ceitos do Consenso de Washington3.Tais preceitos envolvem reformas ad-ministrativas, previdenciárias e fiscais,assim como um drástico corte nos gas-tos públicos. É precisamente nas con-seqüências das reformas políticas eestruturais, conduzidas pelos governosbrasileiros na década de 1990, que sealtera a forma do conteúdo político-econômico da seguridade social ex-presso na retórica da “governabilida-de”, um discurso conservador. Aparecenos primeiros estudos efetuados porBresser Pereira em “A Reforma do Es-tado nos anos 90: Lógica e Mecanismode Controle”.

A primeira conseqüência, portanto,pode ser localizada nos objetivos deBresser: “delimitar a área de atuaçãodo Estado, desregulação, aumento dagovernança e conquista da governabi-lidade”, base da aliança conservadoraque elegeu FHC, em 1994. Esta alian-ça resultou “na precarização do traba-lho, na quebra do movimento sindical.Este é o sentido das medidas já adota-das pelo atual governo: trabalho tem-porário, trabalho parcial, demissãovoluntária, banco de horas, denúnciada Convenção de 158 da OIT, reduçãodo FGTS, implantação das comissõesde conciliação prévia, fixação do saláriomínimo em valores irrisórios, drásticaredução dos direitos previdenciários,com a instituição do tempo de contri-buição e do fator previdenciário, entreoutras medidas que reduziram os direi-tos do trabalho, impuseram limitaçõesao direito de greve e à livre organizaçãosindical” (Miranda, 2000: 22).

A segunda conseqüência está naproposta para qualificação profissional

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dos programas sociais de combate àpobreza. Para a pesquisadora Amaral,essa nova diretriz aponta para o fatode que “as entidades sindicais são umdos alvos principais das propostas deintervenção do Estado na área social.Convocados a participar de um projetotradicionalmente reivindicado pelostrabalhadores e agora transformadosem objeto de ‘política social’, os sindi-catos desenvolvem programas de qua-lificação que se submetem a critérios,acesso a recursos e condições defini-das pelo estado. Atualmente diferen-tes centrais sindicais estão comprome-tidas na formulação/execução dessesprogramas de qualificação, através decaptação de recursos do Fundo de Am-paro ao Trabalhador (recursos públicos,dos trabalhadores)” (Amaral: 2000).

A reforma da previdência tem mere-cido - por parte de diversas categoriasprofissionais4 - estudos aprofundadossobre as conseqüências dessas mu-danças para os trabalhadores dos seto-res públicos e privados5. Incluem-se aíos argumentos sobre o déficit ou supe-rávit da previdência, as formas de capi-talização e a criação de fundos de pen-são, que exigem reflexões sobre as for-mas de financiamento e o orçamentoda União. A consolidação dessa políti-ca econômica depende da efetivaçãode estratégias internacionais que têmsido elaboradas pela ALCA (Área deLivre Comércio das Américas) e OMCpara impedirem qualquer controle dosgovernos nacionais sobre o fluxo decapitais internacionais, liberalizaçãoque envolve a indústria, a agricultura,os serviços.

Entre as formas de controle do ca-pital e reforma do Estado, situam-seinstituições globais como o BancoMundial, o Fundo Monetário Interna-cional e a Organização Mundial do Co-mércio. A OMC6, criada oficialmenteem primeiro de janeiro de 1995, emsubstituição ao GATT (Acordo Geral

sobre Tarifas e Comércio), organismoregulador do comércio internacional,conta atualmente com a participaçãode 144 países-membros. Ela propõeum projeto de globalização em favordas transnacionais, sem abrir mão docontrole econômico dos serviços queé empreendido por meio do “confisco,pelas transnacionais, dos novos seto-res e a transformação programada dosserviços públicos em mercadoria entreos quais destacam-se os setores dasaúde, educação, meio-ambiente ecultura” (George, S, 2000). Ainda maisintervencionista foi a proposta derro-tada em 1999, que implementaria oAcordo Multilateral de Investimentos,que englobava os 32 países mais ricose que proibia a adoção, pelos signatá-

rios, de normas que incidissem direta-mente sobre os direitos sociais, as leistrabalhistas ou qualquer área que pre-judicassem os interesses das transna-cionais.

A implementação das diretrizes daOMC implica, necessariamente, umareforma institucional para ajustar aseconomias nacionais aos interessesdo capital e das frações de classes aele vinculadas. No Brasil, a políticaneoliberal de assalto aos direitos so-ciais tem, na universidade pública, umdos seus principais alvos adotando,como orientação básica, o documentoelaborado pelos técnicos do BancoMundial. Merece menção o avanço docapital privado sobre a educação: faci-litou-se bastante a abertura indiscrimi-nada de instituições privadas, que têmcomo objetivo primordial o lucro, oque paulatinamente tem tirado do Es-tado a obrigação com a universaliza-ção do ensino, que deve ser público,gratuito, democrático e socialmentereferenciado.

Os impactos da reforma neoliberalpodem ser visualizados no aumentovertiginoso da miséria social, expressana mendicância, na marginalidade, naprostituição infantil, nos alarmantesníveis de violência, apontando para oque Boaventura (1997) denominou defascismo social. Essa tendência à bar-bárie da vida social não é resultante doacaso, mas da direção social e da von-tade política dos homens. O neolibera-lismo e a globalização resultaram “dadecisão política e econômica dos esta-dos mais poderosos e soberanos e dosseus agentes econômicos privados, esó avançou na medida em que se en-controu com a adesão entusiástica daselites políticas e econômicas locais,que sempre lucraram, economicamen-te, com a condição de anexo geoeco-nômico e geopolítico do mundo an-glo-saxão (Fiori in: Correio Brasiliense,13/08/2000)”

No Brasil, a política neoliberal de assalto aosdireitos sociais tem, na universidade pública, um dos seus principais alvosadotando, como orientaçãobásica, o documento elaborado pelos técnicosdo Banco Mundial.

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O resultado disso é que o Estadovem se desresponsabilizando pelaspolíticas públicas, sem porém abdicarde seu controle. A perspectiva neolibe-ral aponta para o discurso da cidada-nia, pautada na ideologia da parceria(ONGs, “responsabilidade social” dasempresas), do consumo e da competi-tividade. Observa-se que é, em tornodesses três eixos ídeo-políticos, que ogoverno busca implementar - atravésda lógica privatista - os ditames doConsenso de Washington e atender àsnovas requisições do processo produ-tivo. Com efeito, para resolver o pro-blema do desemprego “a sociedadecivil é apresentada como parceira privi-legiada do Estado, na busca da qualifi-cação em massa: todos são co-respon-sáveis pela construção da propaladacidadania. Seu nome atual é TerceiroSetor. Trata-se de uma estratégia neo-liberal de identificação dos interessesdos trabalhadores, do governo e dosempresários” (Amaral, 2000:4).

Tendo em vista o quadro atual dapolítica-econômica que corrompeainda mais o tecido social, não só doBrasil, mas de todos os países perifé-ricos, urge que os setores organizadosdos trabalhadores adotem um posi-cionamento de combate ídeo-políticoque exige de suas organizações repre-sentativas, neste período tão adversopara aqueles que sobrevivem de suaprópria força de trabalho, a recusa dese constituírem em meras instânciasde reificação do capital e se propo-nham a construir alternativas capazesde incorporar e transcender os limitesinstitucionais da democracia burgue-sa. Consideramos correta a formula-ção weberiana de que “o Estado nãoé um bloco monolítico, sem fissuras,que as massas afrontariam de forapor meio de vários confrontos e quedeveriam destruir em bloco ao fim deuma luta aberta, insurrecional”(1980); ele é sim, conforme estabele-

ceu Poulantzas, “uma condensaçãomaterial de uma relação de forçasentre classes, e frações de classes”(1980). Infere-se daí que a governan-ça pode ou não acatar, modificar ouintroduzir acordos.

Ademais, o relevante papel desem-penhado por organizações internacio-nais como a Attac, o Fórum SocialMundial que, apesar de não proporemultrapassar os limites do capitalismo,tem construído uma coalizão de forçaspara se contrapor ao presente estadode coisas e têm contribuído para forta-lecer os movimentos populares (de-sempregados, sem teto etc) assim co-mo o movimento campesino (MST). Avalorização desses movimentos deresistência pela esquerda implica a de-monstração cabal de que a luta pelaradical democratização de todos os ní-veis da sociedade (político, social, cul-tural e econômico) é premissa e fun-damento inalienáveis da superação daordem do capital para a constituiçãode um novo padrão societário, alicer-çado nos princípios revolucionários. Oacúmulo e fortalecimento das forçasanticapitalistas quiçá permitirão vis-lumbrar no horizonte desta crise - e éesse o grande desafio dos legatáriosda revolução - as reais possibilidadesdas condições sócio-históricas e eco-nômicas de uma nova ordem social.

Vimos que a política social é opressuposto revelador da dinâmicado processo de reprodução social eque, tanto na dimensão públicaquanto na privada, reproduziu-se afratura entre o cidadão e o burguês.Mas, se os direitos sociais só ganhamestatuto jurídico e político na socieda-de burguesa quando fundamentamque “no Estado de direito, o indivíduotem, em face do Estado, não só direi-tos privados, mas também direitospúblicos” (Bobbio, 1992: 61), é por-que esses direitos são expressões darealidade social capazes de fazer nas-cer novas exigências e delas se servi-rem para uma “proteção efetiva”. Seconsiderarmos que “o Estado de di-reito é o Estado dos cidadãos”, vere-mos que ele exprime a transformaçãoda sociedade e que a política é a me-diação entre o indivíduo singular e oEstado. Esta relação permite que apolítica tenha como pressuposto a“vontade livre”, que possibilita a auto-transformação das necessidades so-ciais, ela se realiza no desenvolvimen-to da autoconsciência dos processossociais. Reproduzem finalidades que,quando assentadas em princípios éti-cos de igualdade e liberdade, condu-zem a ação em direção à emancipa-ção humana. No meu entendimento,esta é uma vinculação prático-críticapolíticamente revolucionária. Signi-fica dizer que é imperativo para aclasse trabalhadora lutar pela redu-ção da jornada de trabalho, por umaescala móvel de salários, pela defesado direito de greve e ampliação doslaços de solidariedade de classe(uma forma de evitar a subproletari-zação dos trabalhadores), nos diver-sos ramos de atividades, dar densi-dade às tarefas políticas nas lutaspelos direitos sociais, vinculados àluta política de classe, em confrontocom os mecanismos causais do sis-tema capitalista.

A política social é o pressuposto revelador dadinâmica do processo dereprodução social e que,tanto na dimensão públicaquanto na privada, reproduziu-se a fratura entreo cidadão e o burguês.

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NOTAS1, Este ensaio é uma versão atualizada do

trabalho apresentado nos encontros nacionale estadual de seguridade social promovidos,respectivamente, pelos Conselhos Federal eRegional de Assistentes Sociais, em Nov/2000,que deu origem ao projeto de pesquisa quevenho desenvolvendo na Escola de ServiçoSocial da UFRJ.

2. Quando contrata operários, o capitalistanão objetiva apenas reproduzir o capital in-vestido, mas aumentar o seu valor. Este acrés-cimo corresponde ao trabalho excedente, amais-valia, que significa trabalho não pago.Toda vez que essa parcela do trabalho nãopago for originada pela extensão das horas detrabalho, temos a mais-valia absoluta. Porém,como a extensão do horário de trabalho é li-mitada pelas próprias condições de reprodu-ção da força de trabalho, o capitalista encon-tra nova forma de extrair mais-valia dos traba-lhadores, através do aumento da produtivida-de. Dá-se, assim, a mais-valia relativa.

3. Segundo Fiori (1996,1997), estes precei-tos estão divididos em dois objetivos estraté-gicos: o macroeconômico, que visa garantir aestabilidade econômica através do superávitfiscal envolvendo corte de salários, demissõese flexibilização das relações trabalhistas,incluindo os funcionários públicos; corte dosserviços sociais e reforma da previdência so-cial. Trata-se, portanto, de uma revisão dasrelações fiscais intergovernamentais e da rees-truturação do sistema de previdência pública.O objetivo estratégico de ordem microeconô-mica engloba “reformas estruturais” que vi-sam à desregulamentação dos mercados,sobretudo o financeiro e o do trabalho, priva-tização das empresas estatais, abertura co-mercial e garantia do direito de propriedade.

4. “Hoje está se desenvolvendo um amploe numeroso setor de trabalhadores no ramodos serviços que, pela sua situação de traba-lho e pelo seu nível salarial, poderá integrar aclasse operária (...).Está crescendo o sindicalis-mo do novo proletariado dos serviços. Parececonsolidado, pelo menos a médio prazo, osindicalismo de classe médias, principalmente

no setor público” (Boito Jr., 2000: 51).5. É importante destacar que as controvér-

sias deste debate envolvem as centrais sindi-cais que, desde o primeiro semestre de 1995,garantiram a aposentadoria proporcional aostrabalhadores organizados do setor privado ereferendaram o fim da aposentadoria integralpara os trabalhadores do serviço público con-forme atesta o caderno de textos do 190 Con-gresso do ANDES-SN em fevereiro de 2000.

6. São três, em realidade, as funções bási-cas que a OMC busca concretizar. A primeira,fornecer um foro para negociações multilate-rais, entre os seus membros, em questõesligadas direta ou indiretamente ao comérciointernacional. A segunda busca facilitar a im-plementação dos acordos por meio de umsecretariado permanente em Genebra e, a ter-ceira é servir como um foro para solução deconflitos.

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*Cleusa Santos é doutora em Serviço So-cial. Professora Adjunta da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro.Vice -presidente(em exercício) da Adufrj-Seção Sindical doAndes Sindicato Nacional dos Docentes(Gestão 1999-2001). Autora do ensaioPráxis e Revolução: Marx (1844-1847). InServiço Social & Sociedade, São Paulo,Cortez, 1994. (e-mail: [email protected]).

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Wolfgang Leo Maar *

O papel da universidade na socie-dade brasileira vigente decorre justa-mente da função que ocupa ou podeocupar no processo de reprodução so-cial e material da formação históricaque é a nossa sociedade. Muito alémde apresentar propostas para uma“outra universidade”, cabe desenvolvera crítica da situação presente da uni-versidade. Ressalve-se, contudo, quecrítica não significa, como parece aosmais incautos, mero aporte do quenão se quer ou do que é consideradoequivocado. Essencial à crítica é queconforme seu contexto a transforma-ção será ancorada em condições ma-teriais reais - apreendidas criticamente- em vez de ser propositura ideal, dese-jável porém carente de desenvolvi-mento baseado em forças reais. A basepara desenvolver uma nova políticadeve ser própria e sustentada de modoestritamente crítico na formação vigen-te. Assim, por exemplo, os dados dogoverno acerca da universidade, comoos “índices” de produtividade etc., de-vem ser referidos à sua perspectiva dereprodução social, não bastando por-

tanto incidirmos também numa merapolítica de “contra-índices”, sem alterarcriticamente tal perspectiva. É insufi-ciente argumentar com propostas de“aumento de vagas” tais como elas sãocogitadas hoje, acrescidas de amplia-ção do quadro docente simplesmentetomado em sua face atual, em ambos

os casos com a conseqüente perda doessencial da Universidade Pública emdecorrência da aceitação passiva desua lenta mas inexorável adequação aser mera engrenagem na reproduçãosocial vigente.

A reprodução da sociedade brasilei-ra vigente não dispensa sua inserção

A diferença efetiva entre universidade como instituição pública e como instituição

privada está na incapacidade desta última em se auto-reproduzir. A auto-reprodução

é prerrogativa inalienável da Universidade Pública, por este motivo imprescindível a

uma sociedade autônoma, sendo falsos os argumentos de que a instituição

privada é menos onerosa e mais competente.

A Universidade no processo de reprodução da sociedade brasileira

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subalterna, heterônoma no processomundial de reprodução capitalista queajuda a perenizar. Conforme a políticavigente, o Brasil não desenvolve umprocesso autônomo de reprodução so-cial. Neste último, a Universidade seriaimprescindível: sua fundação institu-cional na história moderna correspon-de exatamente a esta reprodução so-cial autônoma em que ocupa papelcentral, para o que basta recordarmosa fundação das Universidades na Eu-ropa e nos Estados Unidos, bem comoa coibição de sua implantação particu-larmente nas colônias de língua portu-guesa.

Sendo assim, hoje a universidade étolhida em seu papel emancipador: auniversidade tal como presente emsuas várias conformações institucio-nais no país, é uma universidade alie-nada, a ser apreendida criticamente.Tal como ela existe, em nenhuma dassuas configurações, ela correspondeefetivamente a uma Universidade con-forme os moldes de uma reproduçãosocial autônoma, tal como ocorreu naInglaterra (onde Oxford e Cambridgeforam fundadas exatamente para pro-piciar autonomia em relação a Roma,com que aquele reino havia rompido),na França, na Alemanha, nos EUA, vi-sando à autonomia na e pela forma-ção das lideranças locais. As universi-

dades foram peças chave na competi-ção de França e Alemanha com a In-glaterra nos primórdios da RevoluçãoIndustrial. A este respeito, é exemplara inscrição que introduz ao campus daUniversidade de Harvard, registro dasua fundação e certificado do nexo en-tre autonomia social e universidade:“... após muitas boas colheitas... agoraprecisamos pensar na formação denossos próprios líderes ...”

Não basta, no entanto, enumerar-mos idealmente as deficiências da uni-versidade no país para tentarmos, pos-teriormente, reunir forças aptas aimplementar mudanças. Será preciso,para podermos desenvolver uma polí-tica universitária concreta como possi-bilidade real, apreender na própria si-tuação universitária esta deficiência es-trutural da universidade brasileira quea torna passível de crítica: localizar nascontradições da universidade o pontode apoio e o dinamismo para as trans-formações aptos a viabilizar as mudan-ças necessárias.

Como ocorre com toda a educaçãobrasileira, na universidade como par-cela integrante deste processo formati-vo, localiza-se uma flagrante contradi-ção. De um lado, no processo de re-produção vigente, cabe à educaçãoem todos os níveis oferecer um serviçoeducacional (como bem qualificou aquestão Marilena Chaui) que significaformação profissional capaz de tornaras pessoas aptas a se integrarem,adaptando-se no presente processosocial. De outro lado, porém, em suarealização concreta, a educação confli-ta com esta que é sua meta principal,desde os primórdios da Ilustração: tor-nar os sujeitos sociais - coletivos e his-tóricos - autônomos, emancipados, to-rnando a sociedade efetivamente de-mocrática. Atualmente, a educaçãobrasileira não se destina a mais do quefacultar, participar do processo de re-produção nos moldes vigentes.

Já vai longe a época em que o obje-tivo das políticas sociais educacionaisse constituía como formação universale integração plena. Este prisma huma-nista foi abandonado. Hoje parte deci-siva da educação fundamental e dosdemais níveis já não se destina a facul-tar a integração dos excluídos ou aemancipação, ainda que parciais e de-ficitárias, abandonadas como impossí-veis num país de tal exclusão, masdestina-se meramente a propiciar ocontrole social dos educandos. Istodeprende-se com toda clareza do alar-deado objetivo educacional principalde “colocar as crianças na escola”, enão formá-las nos termos de umaeducação emancipadora, efetivamentevinculada ao exercício autônomo dosconhecimentos e saberes da humani-dade como condição da cidadania ple-na (vide Maria Helena Patto, Mutaçõesdo Cativeiro, 2000: 195). Os índices depresença escolar nas escolas parecemo que não são: indicativos educacio-nais, quando apenas demonstramcontrole social.

Portanto, uma parte decisiva do sis-tema educacional fundamental - etambém universitário - não tem comoobjetivo formar ou educar, mas simcontrolar nos termos da manutençãodo processo vigente de reprodução dasociedade brasileira.

Esta contradição aparece com todanitidez na universidade. Nos níveis fun-damentais, pode até ser camuflada, namedida em que são sempre níveis in-completos no processo formativo. Nocaso da universidade, do ensino supe-rior, tal disfarce é impossível. A Uni-versidade é justamente o núcleo ondeo próprio processo formativo emanci-pador deve encontrar seu dinamismoauto-reprodutor, cujo local por exce-lência é a pós-graduação strictu sensu,a formação de mestres e doutores, porsua vez, dependente de fatores comodedicação simultânea à docência e à

Hoje a universidade é tolhida em seu papel emancipador: a universidadetal como presente em suasvárias conformações institucionais no país, é uma universidade alienada, a ser apreendidacriticamente.

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Educação e Trabalho Docente

pesquisa e uma carreira pautada nadedicação integral e não meramentepela hora-aula.

Será aqui, portanto, que “a vaca vaiao brejo”, conforme caracterizado noditado popular: para sobreviver nomercado, o ensino superior recorre àUniversidade Pública, cuja “competên-cia” continuadamente procura desqua-lificar perante o mercado, procurandogarantir um nicho de acumulação pri-vada! A contradição é entre o que, deum lado, seria Universidade apta a seauto-reproduzir como instituição socialformativa, produtora de conhecimentoe provedora de emancipação, e, dooutro lado, um sistema educacional de“terceiro grau” cuja função não é pro-mover mais do que a reprodução nostermos vigentes, alienados, heterôno-mos, dado que seu alvo principal é alucratividade. De sua inserção socialreal, resulta para a educação superiorprivada sobretudo a função de contro-lar socialmente a perenização da so-ciedade nos termos presentes, recor-rendo à semiformação, à educação es-tritamente conformista e instrumenta-dora de uma inserção social sem auto-nomia.

Esta é a verdadeira contradição quedeve servir de base a qualquer políticauniversitária conseqüente para o país.As universidades públicas - e algumaspoucas particulares confessionais,mormente católicas, que somenteconfirmam a regra - reproduzem a Uni-versidade em sua pós-graduação ecom docentes-pesquisadores em con-tratos de carreira. As outras, emborachamadas “universidades”, efetiva-mente não o são: não são universida-des, pois dependem das outras paraformar seus próprios quadros e, pois,para se reproduzir.

Nestes termos, a situação efetiva doensino superior no Brasil já é um siste-ma privado de oferta de serviços deensino de terceiro grau - em São Pau-

lo, 90% dos estudantes são de institui-ções privadas. Para atender à grandedemanda pelos formandos do ensinomédio esperada a partir de 2007, ocenário apontado - e desejado confor-me a reprodução vigente - nas reu-niões de política educacional promovi-das pela CAPES, indica um atendimen-to prioritário da graduação pelas insti-tuições privadas. A Universidade Pú-blica seria reservada à pós-graduaçãostrictu sensu, isto é, à oferta das condi-ções necessárias à reprodução do sis-tema privado mercantil. Este sistemaprivado depende para se reproduzir deorganismos públicos aptos a formar nadocência e pesquisa os professoresque o sistema privado exige para seperpetuar.

O problema do ensino superior bra-sileiro não está em ser majoritaria-mente uma educação privada. O pro-blema é que a parte decisiva desta“educação privada”, estritamente acu-muladora de capital em sua oferta deserviços - leia-se: “mercadorias” educa-cionais - (a respeito, ver a excelente re-portagem da revista Caros Amigos, 54,bem como os escândalos da falsa fi-lantropia noticiados na Folha de S.Paulo, em janeiro de 2002) não énem “educação”, nem “privada”. Não é

educação, mas apenas prestação deserviços que depende do sistema pú-blico, para o que foram criados o“Provão” e o “Enem”, procurando fazerfluir a dimensão educacional a partirdo sistema público. Nem é privada,pois depende para sua reproduçãocontinuada, com sua fabulosa lucrativi-dade, de aportes públicos continuadosde grande vulto. A educação privada sealimenta, em grande parte, de um sa-que - constantemente disfarçado - dopúblico, que é “reconstruído” como sedependesse do privado, enquanto naverdade este deve sua “sobrevivência”àquele. Rigorosamente falando, a edu-cação privada sempre se dá no interiorda educação pública, de que dependeem sua função educacional e para aqual expele seus custos reais - “demo-cratizando” as perdas - e da qual ob-tém sua lucratividade, privatizando osganhos obtidos com investimentos pú-blicos, tais como a formação dos ne-cessários docentes-pesquisadores.

Como verdadeiro fetiche, a semprepropagandeada saída para a educaçãouniversitária (O Estado de S. Paulo,10/3/2002) é a perspectiva do ensinosuperior privado, na verdade, resultan-te da extorsão do sistema público queoferece a reprodução ao sistema priva-do, por si estéril e, mais do que umapêndice, um mero parasita incapazde se sustentar sem a seiva vital daUniversidade Pública.

Grande parte do esforço oficial eoficioso, seja de instituições públicasde pesquisa educacional, seja de orga-nismos servis à perspectiva mercantilembora formados no próprio âmagode algumas instituições públicas dequalidade - na USP, por exemplo - des-tina-se a propagandear uma contabili-dade do ensino superior conforme umprisma tomado como pressuposto, emque o público é dispendioso e o priva-do é eficiente e que no mínimo é lacu-nosa, pois não inclui o preço da repro-

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dução do sistema. Apresenta-se o sis-tema público como pretensamentecomplementar, avaliado conforme o“padrão” do sistema privado que expe-le de si a conta de sua reprodução,que ocorre essencialmente no sistemapúblico. O cálculo do custo da educa-ção jamais inclui os gastos no proces-so de reprodução do próprio sistemaprivado de ensino, sempre dependen-te do sistema público e de recursospúblicos sob forma de bolsas, fomen-tos de professores públicos, verbas pú-blicas para pesquisa e produção didá-tica, incentivos públicos, isenções detaxas e impostos etc., etc.. Nunca hou-ve uma política de privatização totalpois ela mataria a universidade atémesmo em sua forma mais alienada emercantilizada, golpeando assim algoessencial, ainda que o seja apenas pa-ra manter a soberania nacional no pla-no do discurso a garantir o controlesocial e político do processo de acu-mulação dependente.

Não há reprodução da Universidadesem vinculação da formação pós-gra-duada à pesquisa. Daí deriva no con-texto social presente e como objetivooficial um sistema dual: 1. - de pesqui-sa, público e apto a reproduzir o siste-ma em sua totalidade, sobretudo em

sua dimensão privada; e 2.- privado,destinado a (semi)formar funcional-mente e controlar socialmente as mas-sas em sua participação no processode reprodução vigente.

Uma tarefa estritamente necessáriaface a este estado de coisas reside emevitar que se limite a Universidade Pú-blica ao seu papel de engrenagem noprocesso de acumulação ampliada doslucros das instituições privadas deensino; de evitar que o que na univer-sidade se situa como autonomia, istoé, auto-dinamismo social e político, sedestine apenas a reproduzir o sistemaprivado em sua esterilidade. É isto quepresentemente a CAPES com sua polí-tica de progressiva limitação de prazosda pós-graduação, está procurandoviabilizar.

À Universidade cabe uma partedecisiva na capacidade de auto-repro-dução dinâmica de uma formaçãosocial. Nestes termos, há um conflitopermanente entre a Universidade e asociedade vigente, em sua formaçãoatual, heterônoma e dependente.

Neste contexto, impõem-se algu-mas reflexões e medidas urgentíssi-mas, no plano da estrita sobrevivênciada Universidade Pública:

1. Combate permanente às conti-nuadas incursões governamentais vi-sando limitar a Universidade em suafunção social precípua, que é ser deci-siva na formulação de uma sociedadeautônoma, conforme os moldes histó-ricos por todos consagrados; incursõesque procuram convertê-la em merapeça no processo de acumulação emvigor.

2. Denúncia constante da falsa“competitividade” do sistema privado,incapaz de sobreviver sem o saque daUniversidade Pública que garante suaprópria sobrevivência e, portanto, tam-bém é o pilar da reprodução do siste-ma privado, estéril enquanto sistemauniversitário. Ao contrário do que se

apregoa, o sistema particular é menoseficiente e mais caro, porque exige acomplementaridade do público, en-quanto este não necessita daquele.

3. Para tanto, impõe-se considerar osistema universitário numa perspectivade totalidade, juntamente com o con-junto de outras áreas: MCT, CNPq, fo-mento estadual, incentivos etc., bemcomo com o sistema educacional denível médio e fundamental. A educa-ção particular só é mais barata e maiseficiente se houver a seleção de deter-minada clientela (classes médias) e sehouver a expulsão dos custos de re-produção do sistema (formação deprofessores e meios educacionais) pa-ra a Universidade Pública. Cabe proporprocedimentos pelos quais as institui-ções privadas reponham os benefíciospúblicos de que hoje se apropriamgratuitamente e que são indispensá-veis à sua própria reprodução.

4. A comunidade universitária preci-sa refletir acerca de sua própria situa-ção no âmbito do processo dinâmicoda reprodução social, evitando tomar-se como base estática, fatual. O con-junto dos professores universitários,nas universidades públicas, já foi(semi)formado na adequação ao con-texto de uma educação como peça doprocesso de reprodução e acumulaçãona formação social presente. Os pró-prios docentes das universidades pú-blicas - que têm todo o direito deassim proceder - hoje participam ativa-mente e com conhecimento de causadesta reprodução nos moldes existen-tes, na medida em que procuram sevender com altos preços, em parte co-mo aposentados, em parte como pres-tadores de serviços. Mas espera-se de-les uma auto-reflexão crítica de suainserção neste processo reprodutivoviciado, que necessariamente conduzi-rá à correção dos cálculos de competi-tividade e de custos do sistema comoum todo. Cabe-lhes estarem alertas a

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que cotidianamente acabam contri-buindo para seu próprio desapareci-mento, caso não se empenhem na de-fesa do sistema público, ampliandosua capacidade real e mantendo ascondições de sua autonomia com do-cência e pesquisa. Embora reconheci-damente cara, a Universidade Públicaé imprescindível - única garantia daauto-reprodução da Universidade e,por conseguinte, do país. Os docentesprecisam multiplicar seus esforços emgrande escala, mas mudando-os quali-tativamente, para ampliar a oferta devagas de graduação na UniversidadePública existente, evitando sua realiza-ção efetiva como aquele mero cataliza-dor da reprodução ampliada das insti-tuições privadas de ensino superior aque muito breve será reduzida, manti-da a tendência vigente.

5. É preciso repensar o nexo essen-cial à Universidade entre docência epesquisa, hoje reduzido a mera soma-tória em decorrência da própria políti-ca em vigor. Cabe evitar a degradaçãoconceitual da universidade, que, porum prisma pragmático, domestica suanatureza essencial de ser esfera públi-ca plenamente capacitada a se organi-zar criticamente perante a formaçãovigente. Unicamente a UniversidadePública tem como essência caracterís-tica ser simultaneamente produtora ereprodutora. Este é seu diferencial: aUniversidade forma formadores. Elaproduz ciência e forma cientistas; pro-duz cultura e forma intelectuais; pro-duz educação e forma educadores;produz soluções para a saúde e formamédicos etc.. Esta é uma característicaintrínseca da Universidade, que nãopode ser abordada parcialmente, co-mo mera somatória de produção e re-produção. A produção meramente adhoc produz soluções pontuais logosuperadas pela dinâmica do processohistórico; a reprodução estritamentesustentada em formação de recursos

humanos e não amparada na vidamaterial da sociedade se revela inefi-caz porque vazia.

Se no Brasil 3/4 dos cientistas estãonas Universidades, quase exclusiva-mente nas públicas, caso estas Univer-sidades forem estimuladas a abrir mãodo vínculo ensino e pesquisa, eles dei-xarão de existir e não se transferirão àiniciativa privada, que não tem deman-da para tanto. Portanto, a função re-produtora da Universidade Pública,com seus cientistas, entre nós é aindamaior do que em países onde a por-centagem do total de cientistas lota-dos nas universidades é de menos de20%, como ocorre nos EUA.

Mas esta dupla natureza da Uni-versidade está agora em processo desedimentação, convertendo-se em umsistema dualista. Por iniciativa da polí-tica governamental (vide entrevista doSecretário de Ensino Superior do MEC,Folha de S. Paulo, 24/3/2002), procu-ra-se realizar a distinção institucionalentre graduação e pós-graduação.Desta distinção derivaria um sistemade universidades públicas dispendio-sas e de elite, correspondendo ao “pa-drão” de qualidade educacional, deum lado; e um sistema de educaçãosuperior privada, ao qual caberia majo-ritariamente a educação superior degraduação, correspondendo a um “pa-drão” de qualidade de gestão, do ou-tro. Implicitamente se reconhece, por-tanto, que o padrão educacional e for-mativo é dissociado e mesmo opostoao padrão de gestão empresarial vi-gente.

Os cursos seqüenciais e de curtaduração nada mais são do que tentati-vas no âmbito da política de ensinosuperior de garantir uma educaçãosuperior privada dispensada da suafunção auto-reprodutora. Os docentesdos cursos seqüenciais serão forma-dos em cursos seqüenciais? Não, serãoformados nas Universidades! Trata-se

de um continuado esforço de expulsãodos custos de auto-reprodução do sis-tema privado, visando garantir sua lu-cratividade empresarial.

Há necessidade de reformular, am-pliando-a e intensificando-a, a práticainterativa entre graduação, de um la-do, e pós-graduação e pesquisa, deoutro, tal como ocorre em todas asUniversidades mundo afora, que nãose resumem a ‘Colleges’, mesmo nosEUA.

A universidade e a educação emgeral não são compatíveis com a estri-ta lógica contábil da acumulação priva-da, pois se situam essencialmente noâmbito da formação social nacionalem seu processo de auto-reproduçãocrítica, criativa, sem continuísmo. Nes-ta medida, o sistema educacional, eparticularmente o universitário, consti-tui parcela inalienável da formação so-cial pública, que pode até ser objetode concessão pública específica, ga-rantidos porém os custos de sua repro-dução. Neste contexto, único real-efe-tivo, feitas todas as contas, a Univer-sidade Pública cumpre uma funçãoúnica e resulta menos dispendiosa emais eficiente.

* Wolfgang Leo Maar é professor e Mem-bro do Conselho Universitário da Uni-versidade Federal de São Carlos.

A reprodução estritamentesustentada em formação de recursos humanos e não amparada na vidamaterial da sociedade serevela ineficaz porque vazia.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE74 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Educação e Trabalho Docente

Nicholas Davies *

1- IntroduçãoPretendo examinar alguns meca-

nismos de financiamento das escolasprivadas, focalizando sobretudo oemprego de recursos públicos diretose indiretos para tal fim. Para a suacompreensão, precisamos situá-los nocontexto mais amplo da estrutura eevolução do Estado brasileiro, dassuas políticas mais gerais e da organi-zação e da política educacional. OEstado brasileiro, como todo Estadocapitalista, é estruturalmente privatis-

ta, pois sua constituição e funciona-mento orientam-se principalmenteem defesa dos interesses econômi-cos, políticos e sociais mais gerais etambém freqüentemente até maisespecíficos (a fração do capital finan-ceiro, por exemplo) das classes domi-nantes. Isso não significa que oEstado capitalista brasileiro seja ape-nas isso, até porque, em função dacorrelação das lutas no interior dasclasses dominantes e/ou entre classesdominantes e dominadas, e da neces-

sidade de legitimação perante as clas-ses dominadas, ele é levado a fazerconcessões e a conciliar interesses emdisputa.

Dois outros elementos tornam esteprivatismo ainda mais nefasto. Um,também estrutural e histórico, é o pa-trimonialismo, que consiste nas atitu-des e práticas dos detentores do poderestatal tratar a coisa pública como pro-priedade pessoal, familiar, privada. Ou-tro, conjuntural, é a ofensiva neoliberalnos últimos 20 anos, sobretudo nos

O financiamento públicoàs escolas privadas**

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 75

Educação e Trabalho Docente

anos 90, que busca submeter à lógicado mercado todos os setores estataiscom potencial mercantilizável e/ouque absorvam recursos públicos que,na perspectiva neoliberal, devem sercanalizados para o pagamento das dí-vidas públicas externa e interna egarantir os interesses estratégicos docapital, atenuando suas turbulências(socorro aos bancos, por exemplo).

Exemplos desse privatismo estãonas Constituições, nas leis (nas duasLDBs, por exemplo) e nos organismosestatais, como o Conselho Federal deEducação (CFE), o atual Conselho Na-cional de Educação (CNE) e nosConselhos Estaduais de Educação, cu-jo controle privado, aliado tanto às po-líticas de não-aumento real do gastonas escolas estatais, quanto aos meca-nismos diretos e indiretos de financia-mento público às escolas privadas,possibilitou a grande expansão doensino privado, sobretudo das institui-ções de ensino superior (IES), desde ofinal dos anos 60. O descaramento dosprivatistas chegou a ponto de, no con-trole do Conselho Estadual de Educa-ção de Minas Gerais, determinar, pelaResolução 20.382, de 9/1/80, que asescolas públicas que pretendessemampliar as séries finais do 1º Grau obti-vessem “aquiescência do representan-te legal da entidade mantenedora deescolas particulares mais próximas,existentes na localidade, com ociosida-de em turnos diurnos” (CUNHA, 1991,p. 356).

Outro exemplo é o Plano Nacionalde Educação (PNE) encaminhado co-mo projeto de lei pelo MEC em 1998,assim como a Lei do PNE sancionadapelo presidente Fernando HenriqueCardoso, em janeiro de 2001 (DAVIES2001), sem nenhuma preocupaçãocom a qualidade, ao contrário do ale-gado no discurso oficial e supostamen-te materializado no Provão, entre ou-tros instrumentos de avaliação (Sis-

tema de Avaliação da Educação Básica- SAEB, por exemplo).

O peso dos privatistas no CNE e afarsa do discurso da qualidade sãoapontados inclusive por José Giannotti,conselheiro do CNE e amigo de FHC,que renunciou ao cargo em 1997, ale-gando a influência indevida dos priva-tistas no CNE (“Último conselho”, OGlobo, 29/8/97) e denunciando a“forte lealdade da crosta dos represen-tantes burocráticos e dos capitalistasda educação”. A promiscuidade entre oestatal e o privado em educação é re-velada pela presença de burocratas daalta cúpula identificados com asempresas de ensino, como o chefe degabinete do ministro Paulo Renato,Edson Machado, demitido por suspei-ta de favorecimento ao Instituto deEducação Superior de Brasília, perten-cente à sua mulher (Veja, 23/5/01).Controlava todos os despachos e pro-cessos que Paulo Renato precisava as-sinar e já tinha sido secretário de Ciên-cia e Tecnologia, secretário de Educa-ção Superior e diretor-geral da Capes.Obviamente que ele foi demitido nãopor esta suspeita, mas porque ela foidivulgada na grande imprensa, e ogoverno precisou parecer se preocuparcom questões “éticas”.

Para o estudo dos mecanismos definanciamento das escolas privadas,uma dificuldade é a escassez de biblio-grafia sobre o tema. No extenso levan-tamento bibliográfico sobre financia-mento da educação que realizamosem 1998, com cerca de 1.500 referên-cias, encontramos poucas sobre o as-sunto (DAVIES & LOBO 1998). O CDcom o catálogo de teses e dissertações

da Anped (Associação Nacional dePós-Graduação e Pesquisa em Educa-ção), de 1999, por sua vez, registra,para o período de 1982 a 1998, ape-nas uma dissertação sobre o tema es-pecífico do financiamento público aIES privadas (MONTEIRO 1997). Outroobstáculo é a falta ou inacessibilidadede documentos e dados precisos e de-talhados. Por essa razão, trabalhamoscom dados muito genéricos e agrega-dos e principalmente com os informa-tivos impressos de associações de IESprivadas (da ABMES e da ABRUC) ecom notícias de jornais (O Globo, Fo-lha de São Paulo) sobre questões queafetavam as escolas privadas, como afilantropia, a isenção fiscal, o créditoeducativo, o Fundo de Financiamentoao Estudante do Ensino Superior Pri-vado (FIES), que substituiu o créditoeducativo), e as mensalidades. Tam-bém por esta razão o nosso estudo seconcentra na legislação federal queincide sobre elas.

Neste texto, entendemos por esco-las privadas todas as que não são depropriedade do Poder Estatal (federal,estadual, municipal): tanto as privadascom objetivos declaradamente empre-sariais (lucrativos) quanto as confes-sionais, comunitárias e filantrópicas,que alegam não ter fins lucrativos. Em-bora juridicamente existam distinçõesentre elas, não formem um bloco ho-

O peso dos privatistas no CNE e a farsa do discurso da qualidade são apontados inclusive por José Giannotti, conselheiro do CNE e amigo de FHC.

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Educação e Trabalho Docente

mogêneo e se filiem a tantas associa-ções diferentes que reivindicam a suarepresentação - no caso do ensino su-perior privado, temos, por exemplo, aANUP (Associação Nacional de Univer-sidades Particulares), a ABMES (Asso-ciação Brasileira de Mantenedoras doEnsino Superior), a ABRUC (Associa-ção Brasileira de Universidades Comu-nitárias), a ANACEU (Associação Nacio-nal de Centros Universitários) - consi-deramos todas elas privadas porquenão pertencem ao Poder Estatal e ge-ram lucro, mesmo que este lucro nãoseja contabilizado como tal. Um exem-plo dessa diferença são as universida-des comunitárias, que se definemcomo públicas não-estatais e sem finslucrativos (Editorial “Comunitárias: ser-viço público, sem fins lucrativos comqualidade acadêmica”, Jornal das Co-munitárias, nº 1, set./out. 1997), dis-torcendo, assim, a idéia de lucro (omontante da receita superior à despe-sa), sem o qual tais comunitárias nãosobreviveriam, a não ser que recebes-sem doações vultosas de pessoas ouentidades filantrópicas ou caridosas, oque não acontece, pelo menos na es-cala necessária à sua manutenção.

A distinção jurídica entre as privadas

até hoje não parece suficientementeclara, embora o art. 20 da LDB (Lei9.394/96) as classifique em quatro ca-tegorias: I - particulares em sentido es-trito, entendidas como as instituídas emantidas por uma ou mais pessoasfísicas ou jurídicas de direito privadoque não apresentem as característicasdas comunitárias, confessionais e filan-trópicas; II - comunitárias, entendidascomo as instituídas por grupos de pes-soas físicas ou por uma ou mais pes-soas jurídicas, inclusive cooperativasde professores e alunos que incluamna sua entidade mantenedora repre-sentantes da comunidade; III - confes-sionais, entendidas como as instituídaspor grupos de pessoas físicas ou poruma ou mais pessoas jurídicas queatendam a orientação confessional eideológica específicas e ao disposto noinciso anterior; IV - filantrópicas, na for-ma da lei. A frouxidão desta classifica-ção parece bem óbvia. Uma está nadefinição de “comunitárias”, que se-riam aquelas com representantes da“comunidade” na entidade mantene-dora. Ora, “comunidade” é tudo e na-da ao mesmo tempo, não tendo ne-nhuma consistência social nem jurídi-ca. A categoria das confessionais, porsua vez, não tem fundamento jurídiconenhum, pois dão lucro como qual-quer empresa privada, embora ele sejamaquiado de várias formas. Esta cate-goria específica das confessionais (so-bretudo da Igreja Católica) é interessan-te porque revela a auto-imagem desantos que elas têm de si e que dese-jam projetar na sociedade. As filantrópi-

cas são as únicas com fundamento jurí-dico definido, conforme veremos maisadiante, embora sem nenhuma legiti-midade social ou moral, sendo, porisso, conhecidas como “pilantrópicas”.

As fontes públicas de financiamentodas escolas privadas sempre foram eainda são muito importantes, aindaque nem sempre visíveis e facilmentemensuráveis. Segundo Norberto Rau-ch, reitor da PUCRS, “A PUC-Rio, PUC-SP e a PUCRS [...] e outras universida-des privadas, durante as décadas de1940 a 1970, contavam com imunida-des, diversas formas de isenção esubstanciais subvenções públicas, quechegavam a representar mais de 50%dos seus orçamentos”, porém inexis-tem nos anos 80 e 90 (Jornal das Co-munitárias, n. 4, julho/agosto 98, p. 2).Essa avaliação é confirmada por Teo-doro Vahl (1980), segundo o qual,com base em estudo de Pastore(1972), os governos federal e estadu-ais, em 1961, cobriam 89% dos gastosde manutenção e funcionamento dasfaculdades particulares do Brasil (p.119), mas a importância deste finan-ciamento teria se tornado menos ex-pressiva nos anos 70 (p. 168).

A importância dos recursos públi-cos é confirmada também por Tra-montin e Braga (1988), que, em seuestudo sobre as universidades comu-nitárias, informam que “durante todaa década de 60, a maioria destas ins-tituições entrava nominalmente noorçamento da União, que costumavafinanciar mais da metade das despe-sas. Somente a partir de 1966 ... éque a inclusão nominal no orçamen-to foi substituída por ajudas financei-ras de programas globais específicos.A partir daí, essa ajuda foi decrescen-do, em termos absolutos e relativos,até tornar-se puramente simbólica,nestes últimos dez anos, não atingin-do sequer 2% do orçamento anualdestas instituições” (p. 24).

A categoria das confessionais, por sua vez, não tem fundamento jurídico nenhum, pois dão lucro como qualquer empresa privada, embora ele seja maquiado de várias formas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Essa ajuda foi inclusive respaldadaem lei assinada por João Goulart,como é o caso da Lei Federal 4.026, de20/12/61, prevendo a subvenção de10 milhões de cruzeiros a cada umadas seguintes universidades “equipara-das”: Universidade Católica de Per-nambuco, PUC-RJ, PUC-SP, Universi-dade Católica de Campinas, Univer-sidade Mackenzie, de São Paulo, PUC-RS e a Univ. Católica de MG. Tramontine Braga (1988), no entanto, se contra-dizem ao afirmar que a ajuda teria setornado simbólica na década de 1980,pois informam que o Plano de Metasdo governo federal para 1989-1989previa o financiamento público de até30% do orçamento de 20 universida-des comunitárias (p. 34).

2- As mensalidadesAntes de examinarmos tais fontes

diretas e indiretas, convém comentar-mos brevemente o mecanismo maisóbvio e que muitos pensam equivoca-damente, como Jacques SCHWART-ZAM (1999), ser a única ou principalfonte de sustentação das IES privadas,as mensalidades, cuja importânciaproporcional não temos como avaliar,embora sejam a fonte mais visível definanciamento. Dizemos isso porqueas várias fontes diretas e sobretudo in-diretas (principalmente as isenções fis-cais e previdenciárias) de recursospúblicos para as escolas privadas pro-vavelmente somam hoje bilhões dereais por ano e reduzem, indiretamen-te, as despesas delas, contribuindo sig-nificativamente para a sua manuten-ção e expansão. Sem tais fontes dire-tas e indiretas, as escolas privadas per-deriam uma fatia substancial de seumercado, pois as mensalidades teriamque ser bem maiores para cobrir oscustos e/ou manter a alta taxa de lu-cratividade do setor.

A propósito das mensalidades, asua regulamentação pelo governo fe-

deral e a inadimplência têm sido dasprincipais queixas das escolas priva-das, juntamente com o atraso do cré-dito educativo (Creduc), vários requisi-tos do FIES (que substituiu o Creduc,em 1999), as modificações dos crité-rios de classificação de entidades filan-trópicas para fins de isenção da contri-buição patronal para a Previdência.

Entretanto, os empresários de ensi-no não parecem querer se lembrar deque a inadimplência provavelmente sedeva a aumentos de mensalidadesmuito superiores à inflação. Com baseno Índice de Preços ao Consumidor daFundação Getúlio Vargas, as mensali-dades teriam subido em média 170%desde o início do Plano Real (julho de1994) até 1999, muito acima da infla-ção de 97,39% medida no mesmo pe-ríodo, tendo as mensalidades das IEScrescido mais do que a média, atingin-do 177,79% (“Escola sobe mais que ainflação”, O Globo, 3/12/99). É bemprovável que os ganhos das IES priva-das tenham sido até maiores porque aremuneração dos professores nãodeve ter acompanhado a inflação e oaumento das mensalidades, comoaconteceu em outros períodos. Se-gundo Velloso (1989, p. 91-92), “entreo segundo semestre de 1979 e o se-gundo semestre de 1985, as semestra-lidades do ensino privado crescerammais do que o dobro dos reajustes dossalários dos professores” (grifo no ori-ginal).

De qualquer maneira, se a inadim-plência fosse realmente um problematão sério, o número de vagas nas IESprivadas não teria crescido tanto neste

período. Segundo documento divulga-do pelo MEC, em sua página na Inter-net no início de 2002 (www.mec.-gov.br), as matrículas no ensino supe-rior privado teriam crescido 86% de1994 a 2000, passando de 970.584,em 1994, a 1.806.072, em 2000, en-quanto que as matrículas nas IES fede-rais subiram bem menos, 33%, au-mentando de 363.543, em 1994, para482.750, em 2000. Vale ressaltar que ocrescimento das privadas se concen-trou nas regiões mais ricas, o Sudestee o Sul.

Por último, é sabido que os empre-sários de todos os setores embutemnos preços finais de seus produtos eserviços um percentual de inadimplên-cia, e os do ensino não fogem a essaregra, e portanto as mensalidades dospagantes já estão cobrindo, se não to-talmente, pelo menos em grandeparte, as mensalidades não-pagas. As-sim, mesmo que conjunturalmente ainadimplência tenha se elevado acimada média histórica, os eventuais “pre-juízos” provavelmente foram mais doque compensados por aumentos dasmensalidades superiores à inflação doperíodo e/ou pela grande expansãodas matrículas, cujo custo adicionaltende a ser menor do que o das matrí-

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Se a inadimplência fosse realmente um problema tão sério,o número de vagas nas IES privadas não teria crescido tanto neste período.

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Educação e Trabalho Docente

culas existentes antes, sobretudo se acapacidade instalada (recursos admi-nistrativos, materiais, físicos e huma-nos) encontrava-se ociosa. Vale lem-brar que mesmo que a inadimplênciatenha sido superior à média histórica,o seu impacto não foi o mesmo sobreas escolas privadas, pois elas formamum conjunto bastante heterogêneo:umas são de grande porte, bastantecapitalizadas e gerenciadas segundotécnicas de empresas modernas, masoutras são pequenas, pouco capitaliza-das e com administração fortementefamiliar.

3- As fontes indiretas de recursos públicos para as IES privadas3.1- Isenções tributáriasComecemos pelas fontes indiretas

(isenções fiscais e previdenciárias), anosso ver mais importantes que asdiretas (subsídios, bolsas, subvenções,empréstimos, crédito educativo, FIES).Mais importantes pelo seu volume etambém porque, não sendo tão visí-veis, encobrem uma forma de privati-zação que raramente tem merecido aatenção dos educadores comprometi-dos com a defesa da exclusividade dasverbas públicas para escolas públicas.

As isenções fiscais e previdenciáriasforam e são a principal fonte indireta

há várias décadas, previstas (as de im-postos) inclusive nas Constituições Fe-derais (CF) desde 1934. Examinemosprimeiramente as isenções fiscais e,depois, as previdenciárias (concedidasapenas às filantrópicas). Sobre as isen-ções fiscais, o art. 154 da CF de 1934estipulava, por exemplo, que “Os esta-belecimentos particulares de educa-ção gratuita primária ou profissional,oficialmente considerados idôneos,serão isentos de qualquer tributo”. Oprivilégio concedido aos estabeleci-mentos de educação primária ou pro-fissional foi ampliado nas CFs de 1946,1967 e 1988 para as instituições deeducação de todos os níveis de ensino.O art. 31 (inciso V, alínea b), da CF de1946 proibia União, Estados, DistritoFederal e Municípios de lançarem im-postos sobre “templos de qualquerculto, bens e serviços de Partidos Polí-ticos, instituições de educação e de as-sistência social, desde que as suas ren-das fossem aplicados integralmenteno País para os respectivos fins”, proi-bição mantida no Art. 20 (inciso III, alí-nea c) da CF, de 1967, que vedava im-posto sobre “o patrimônio, a renda ouos serviços de Partidos Políticos e deinstituições de educação ou de assis-tência social, observados os requisitosfixados em lei.” A isenção continuou naCF, de 1988, cujo Art. 150 (inciso III,alínea c) impede a cobrança de impos-to sobre “patrimônio, renda ou servi-ços dos partidos políticos, inclusivesuas fundações, das entidades sindi-cais dos trabalhadores, das instituiçõesde educação e de assistência sem finslucrativos, atendidos os requisitos da

lei.” O único acréscimo significativo naCF, de 1988, não constante de nenhu-ma CF anterior, foi o de que as institui-ções de educação não tivessem finslucrativos. Esta exigência, no entanto,precisa ser tratada com muita cautela,pois as instituições que se autodeno-minam e são classificadas legalmentecomo sem fins lucrativos ocultavam eocultam seus lucros sob várias formas.Conforme mostra Velloso (1988), oslucros eram (e são) encobertos pelasrubricas de ‘contribuição a entidadesmantenedoras’, que, por isso mesmo,acabavam e acabam sendo entidadesmantidas, mesmo que tenham dadoorigem ao negócio. Enquanto nas es-colas confessionais, os lucros eram (esão) lançados como contribuição à or-dem provincial, nas escolas privadas enão-confessionais, os lucros eram re-passados como despesas às mantene-doras, que os utilizavam para pagar al-tíssimos salários a seus proprietários,ampliação das instalações, aquisiçãode imóveis, aviões, e em “fartos gastosem lobby junto ao Poder Público” (VEL-LOSO, 1988, p. 15). Uma segunda van-tagem adicional poderia ser obtidapelos donos de IES privadas leigasquando desejassem vendê-las, pois oseu valor de mercado teria sido au-mentado com o investimento feitocom recursos oriundos das isençõesfiscais.

É verdade que a CF de 1988 rompiacom a tradição ao permitir a existênciade escolas privadas com fins lucrativos,o que, se foi uma conquista para osdefensores da visão empresarial daeducação, não significou necessaria-mente que elas tenham assumido, emseus estatutos, esse objetivo. Até por-que se declarassem ter fins lucrativos,passariam a arcar com despesas volu-mosas que não tinham antes, como opagamento de impostos e a contribui-ção previdenciária. Como uma das rea-ções mais fortes das escolas privadas

As instituições que se autodenominam e são classificadas legalmente como sem fins lucrativos ocultavam e ocultamseus lucros sob várias formas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 79

nos anos 90 foi contra as restrições àfilantropia e a imunidades tributárias,parece pouco provável que tenhamalterado seus estatutos para assumir oque de fato são, instituições com finslucrativos, até porque sem o lucro nãotêm como se manter e se expandir oufinanciar atividades outras como asligadas às ordens religiosas.

A imunidade tributária do conjuntodas instituições educacionais começouantes da própria CF, de 1946, atravésdo Decreto-Lei 5844, de 23/9/43, quetambém permitia o abatimento decontribuições e doações a entidades fi-lantrópicas para cálculo do imposto derenda devido. Essa imunidade e a pos-sibilidade desses abatimentos continu-aram em muitas leis e decretos até ho-je, com pequenas alterações e restri-ções. Como exemplos, temos a Lei3.193, de 1957, a Lei 3.470, de 1958, aLei 4.506, de 30/11/64, o Decreto-Lei76.186, de 3/9/75. Enquanto as imu-nidades tributárias eram concedidas ainstituições educacionais, o abatimen-to das contribuições e doações só erapermitido se feitas a filantrópicas, umuniverso menor das entidades consti-tucionalmente isentas.

Além destes privilégios fiscais, asinstituições educacionais foram bene-ficiadas com isenções em vários dispo-sitivos legais, nas últimas décadas, al-guns dos quais são listados a seguir:

a) Lei 4.917, de 17/12/65 - isentouimpostos de importação e de consu-mo e de outras contribuições fiscaissobre alimentos e outras utilidades ad-quiridas no exterior, mediante doação,pelas entidades de assistência social.

b) Lei 5.127, de 29/9/66 - isentouinstituições filantrópicas da contribui-ção de 1% de que trata o art. 22 da Lei4.380, de 21/8/64, que criou o BancoNacional da Habitação.

c) Decreto-Lei 194, de 24/2/67 -dispensou entidades sociais do depó-sito bancário do FGTS.

d) Decreto-Lei 999, de 21/10/69 -dispensou instituições de caridade daTaxa Rodoviária Única. O decreto 68.296,de 26/2/71, acrescentou as exigênciasde que fossem reconhecidas como deutilidade pública e comprovassem nãoexercer atividades lucrativas.

e) Decreto-Lei 91.030, de 5/3/85 -isentou instituições educacionais e deassistência social de taxas de importa-ção.

f) Lei 8.032, de12/4/90 - isentouimpostos de importação de institui-ções de educação.

É possível também que as filantró-picas educacionais tenham sido isen-tas da Contribuição Provisória sobreMovimentação Financeira (CPMF), ins-tituída pela Lei 9.311, de 24/10/96,pois, num desvirtuamento do conceitode assistência social definido naConstituição Federal de 1988, têm sidoenglobadas na categoria de entidadesbeneficentes de assistência social, quesão isentas da CPMF.

Embora as entidades educacionaisfossem obrigadas a cumprir vários re-quisitos para usufruir a isenção, comoa de não remunerar seus dirigentes, odescumprimento parece ter sido bas-tante comum, conforme noticiadorecentemente pelos meios de comuni-cação, provocando, em 1997, uma de-vassa pela Receita Federal, que consta-tou sonegação de impostos, distribui-ção de lucros, caixas dois e distribuiçãodisfarçada de bens. Tais irregularidades(na verdade, mais provavelmente anecessidade de aumentar a receita pa-ra financiar o “ajuste fiscal”) teriam le-

vado o governo federal, em 1998, atra-vés do Ministério da Justiça, a rever ostítulos de utilidade pública que permi-tem essa isenção. A estimativa era deque 30% das 7,1 mil instituições te-riam os títulos cassados por não servi-rem “desinteressadamente à coletivi-dade”, como manda a Lei 91, de 28/-8/35, que criou o conceito de utilidadepública. (“Utilidade pública, lucro parti-cular”, O Globo, 6/12/98, p. 3) Trêsanos depois, em 2/12/2001, a FSP pu-blicou, sob o título “Filantropia pagaavião e BMW”, matéria sobre a apura-ção de irregularidades pela Receita nasfilantrópicas, que já teriam recebidoautuações de R$ 420 milhões.

A ofensiva da Receita Federal se ma-terializou também em legislação. A Lei9.532, de 10/12/97, excluiu da imuni-dade tributária das instituições filantró-picas os rendimentos e ganhos de capi-tal auferidos em aplicações financeirasde renda fixa ou de renda variável, oque permite supor que não pagavamimpostos nessas aplicações até então.Entretanto, a liminar concedida peloSupremo Tribunal Federal (STF), em17/8/98, à ADIN (Ação Direta de In-constitucionalidade) 1802 suspendeua eficácia do parágrafo desta lei que

Educação e Trabalho Docente

As instituições educacionais que declarem não ter fins lucrativos e possuam o título de utilidade públicacontinuam a gozar de isenções de todos os impostosfederais, estaduais e municipais.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE80 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

permitia tal cobrança, de modo quetais rendimentos e ganhos de capitalcontinuam gozando de isenção.

Por isso, ainda hoje as instituiçõeseducacionais que declarem não terfins lucrativos e possuam o título deutilidade pública continuam a gozarde isenções de todos os impostos fe-derais, estaduais e municipais, o queprovavelmente significa uma receitaindireta de algumas centenas de mi-lhões (talvez alguns bilhões) de reaispor ano.

Por fim, cabe ressaltar o mecanismoque permite abater gastos com instru-ção do imposto de renda devido, que,embora não contribua para o financia-mento das escolas privadas, constituium incentivo importante para o gastonelas, além de uma redução na arreca-dação dos governos. Se todos os estu-dantes das escolas superiores privadas(1,8 milhão em 2000) abaterem os R$1.700 permitidos legalmente em taisgastos, o abatimento totalizará R$3,060 bilhões, Como o abatimento re-sulta na diminuição de 15% do impos-to devido, isso significa uma perda su-perior a R$ 450 milhões para a ReceitaFederal.

3.2 A isenção da contribuiçãoprevidenciária patronal

das filantrópicasOutra fonte indireta tem sido a isen-

ção da contribuição previdenciáriaobtida pelas escolas privadas detento-ras do certificado de entidades de finsfilantrópicos, concedido pelo ConselhoNacional de Assistência Social (CNAS),órgão do Instituto Nacional de Segu-ridade Social (INSS). Com ele, elas dei-xavam (e ainda deixam, por conta daliminar concedida pelo STF, em 14/7/-99, à Ação Direta de Inconstitucionali-dade 2028-5 das restrições à isençãocontidas na Lei 9.732, de 1998) de re-colher 20% da cota patronal sobre afolha de pagamento devida ao INSS,

que, acrescida aos anexos e Cofins,totalizavam uma “economia” de até30% da folha de pagamento das IES,segundo Pedro Ferreira, vice-reitor daPUC-RJ (FERREIRA 1999). O volumebilionário envolvido nessa isenção ex-plica porque as filantrópicas se mobili-zaram tanto contra as restrições à isen-ção contidas na MP (medida provisó-ria) 1729, de 3/12/98, que se conver-teu na Lei 9.732, em 11/12/98. Foi ta-manha a mobilização que o jornal OGlobo, do Rio de Janeiro, dedicou vá-rias páginas inteiras ao assunto, emdezembro de 1998, por ocasião da dis-cussão e aprovação do projeto de con-versão em lei da MP 1729 no CongressoNacional. Vários números dos informati-vos da ABMES e da ABRUC tambémderam destaque a essa questão.

Muitas matérias publicadas em OGlobo, em anos recentes, mostram aimportância dessa isenção para o fi-nanciamento das escolas privadas. Se-gundo a matéria “O contra-ataque dasuniversidades”, publicada em 30/11/-98, o total da isenção de todas as 6324filantrópicas cadastradas no Brasil (dasquais 46,2% seriam de escolas) naépoca corresponderia a R$ 2 bilhões/-ano. Não sabemos a proporção de es-colas privadas no conjunto das filan-trópicas beneficiadas com essa isen-ção, mas é possível que o benefíciocorresponda a centenas de milhões dereais por ano e favoreça sobretudo, emtermos do montante não recolhido àprevidência, um número reduzido das2.737 filantrópicas educacionais cadas-tradas no CNAS, em abril de 2000(número informado por MESTRINER,

2001, p. 265), pois, segundo o Minis-tério da Previdência e Assistência So-cial (MPAS), as cem maiores filantrópi-cas são favorecidas com 50% da re-núncia fiscal e se concentram no Su-deste (“Seis mil filantrópicas têm isen-ção fiscal”, O Globo, 10/11/00).

Vale frisar que tais restrições impos-tas pelo governo não significaram nemsignificam oposição à participação ouavanço do setor privado no ensinosuperior ou às práticas “pilantrópicas”das escolas privadas, mas apenas àtentativa de aumentar a arrecadaçãopara fazer o “ajuste fiscal”. O líder dogoverno no Senado na época da vota-ção da MP 1729, José Roberto Arruda,por exemplo, sintetizou muito bem oobjetivo do governo ao declarar que“não há ajuste fiscal sem acabar com apilantropia” (O Globo, 30/11/98). Ob-viamente que o combate à “pilantro-pia” foi apenas pretexto para aumentara arrecadação, pois as “pilantrópicas”existem há muito tempo e têm fortesapoios dentro dos governos e do Esta-do, além de financiar muitas campa-nhas eleitorais. O combate foi justifica-do com base em argumentos e em de-núncias, fartamente divulgadas naimprensa, de que muitas filantrópicasnão praticavam nenhuma filantropia,sendo o dinheiro economizado com aisenção de impostos e contribuiçõessociais usado por muitas filantrópicaspara toda sorte de irregularidades, co-mo multiplicação de patrimônio pes-soal ou “pagar despesas pessoais deseus diretores e conceder vantagens asócios e empregados” (O Globo,“Plástica e avião às custas de isençãofiscal”, 6/12/98). Por serem tantas etão comuns as fraudes, o jornal con-servador O Globo defendeu a ação dogoverno federal contra as falsas entida-des filantrópicas, o que significava queaceitava o privilégio de isenção às “ver-dadeiras filantrópicas”. Esta distinção e,portanto, posição em relação à MP

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1.729 também eram encontradas empolíticos tanto do governo quanto daoposição. No Partido dos Trabalhado-res (PT), por exemplo, enquanto o de-putado federal José Genoíno e o Se-nador José Eduardo Dutra eram favo-ráveis à MP, com base no argumentode que existiria mais pilantropia doque filantropia, o deputado federalEduardo Jorge criticava o governo pornão separar uma “faculdade picaretade uma PUC” e via a MP apenas co-mo a tentativa do “Malan querer maisdinheiro” (O Globo, 7/12/98). O nú-cleo de educação da bancada do PTdemonstrou bastante sensibilidadecom a situação das filantrópicas, poisiria “propor modificações na legisla-ção a fim de garantir que, para efeitoda isenção da contribuição previden-ciária, fosse também considerado ovalor das bolsas de estudo concedi-das de forma parcial a estudantes ca-rentes” (Jornal das Comunitárias, nº8, abril/maio 99, p. 4).

Antes de examinarmos as altera-ções introduzidas pela Lei 9.732, de11/12/98, convém fazermos uma bre-ve retrospectiva da legislação sobre aisenção da cota patronal. Criada pelaLei 3.577, de 4/7/59, que introduziu afigura do certificado de fins filantrópi-cos, a isenção foi revogada no Governo

Geisel, pelo Decreto 1.572, de 1977, oqual, no entanto, mantinha os certifi-cados já concedidos e, portanto, o pri-vilégio da isenção. A generosidade ofi-cial com as filantrópicas se manifestoutambém através da anistia de dívidasprevidenciárias anteriores à Lei 3.577(Lei 3.933, de 4/8/61) e de sua liqui-dação mediante serviços por elas pres-tados ao INSS (Lei 7.577, de 23/12/86,e Decreto 94.180, de 3/4/87). A possi-bilidade de obtenção do privilégio sófoi reaberta pela Lei 8.212, de 24/7/91,cujo art. 55 exigia que as entidades (1)fossem reconhecidas como de utilida-de pública federal e estadual ou doDistrito Federal ou municipal, (2) fos-sem portadoras do Certificado ou doRegistro de Entidade de Fins Filan-trópicos, fornecido pelo CNAS, (3) pro-movessem a assistência social benefi-cente, inclusive educacional ou desaúde, a menores, idosos, excepcio-nais ou pessoas carentes, (4) não per-cebessem seus diretores, conselheiros,

sócios, instituidores ou benfeitores re-muneração e não usufruíssem vanta-gens ou benefícios a qualquer título,(5) aplicassem integralmente o even-tual resultado operacional na manu-tenção e desenvolvimento de seus ob-jetivos institucionais. É essa reaberturaque explica o grande crescimento doconjunto das filantrópicas (não só aseducacionais) nos anos 90, que passa-ram de cerca de 3.000, em 1993(quando o Conselho Nacional de Ser-viço Social foi extinto), para 6.555, em2000 (MESTRINER 2001, p. 263). Con-trário à inclusão de serviços educacio-nais na categoria de assistência social,contida na Lei 8.212 e, portanto, da le-galidade da concessão do certificadode filantropia a instituições educacio-nais, Celso Barroso Leite, especialistaem Previdência Social e procuradoraposentado do INSS, em vários artigosna Revista da Previdência Social e naRevista da Procuradoria Geral do INSS,argumenta que o art. 195, § 7º, da CF,de 1988 só permite isenção a entida-des beneficentes de assistência social,conceito que não inclui educação, se-gundo o Art. 203, da CF. “Antes [daConstituição] faziam jus a ela [isenção]as entidades filantrópicas em geral, ouassim consideradas, que atendessema determinados requisitos formais,nem sempre verificados com o rigornecessário. Hoje, nos expressos ter-mos do §7º do seu art. 195, só temdireito a ela as “entidades beneficen-tes de assistência social” (LEITE 1999).

Dois outros atos legislativos nosanos 90, no entanto, impuseram con-dições para a isenção. Os Decretos752, de 1993, e 2.536, de 5/4/98, exi-giam a destinação de 20% da receitabruta das filantrópicas para gratuida-des, porém o mais provável é que issofoi facilmente contornado mediante aclassificação, como gratuidades, dosdescontos concedidos nas mensalida-des, constituindo os “bolsistas parci-

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ais”. A importância dessas bolsas “par-ciais” pode ser aquilatada pelo balan-ço da Sociedade Educacional São Pau-lo Apóstolo (UniverCidade), do Rio deJaneiro, cuja receita operacional em1997 teria sido de R$ 46 milhões, dosquais R$ 14 milhões em “bolsas” (OGlobo, 24/3/98).

O governo reconhecia a própria difi-culdade de se enfrentar esse artifíciodas filantrópicas. Segundo a matéria“Preço alto e filantropia desconhecida”(O Globo, p. 3, 1/12/98), para uma es-cola receber o certificado de filantro-pia, não precisava distribuir a cota de20% da receita bruta em bolsas de es-tudo integrais para alunos pobres,pois, com o Decreto 2.536, poderia“simplesmente dar descontos parciaisna mensalidade para alguns alunos eassim se enquadrar na legislação. Co-mo o preço das mensalidades está li-berado, fica difícil ao governo avaliar ograu de filantropia praticado pela esco-la. Nenhum órgão governamental, porexemplo, pode contestar a planilha decustos apresentada por um colégio edizer se a mensalidade cobrada regu-larmente é a correta.” Em 22 de maiode 1999, na matéria intitulada “Gover-no cassa isenção de 51 entidades deensino”, O Globo noticiava que o mi-nistro da Previdência, Waldeck Orne-las, acusava as entidades de não ofere-cerem vagas gratuitas correspondentesa 20% da receita, contabilizando comogratuidade descontos parciais sobre amensalidade dados a alunos não ca-rentes, que, em muitos casos, eramfilhos de funcionários e de professores.Manobras desse tipo e outras foramdenunciadas em várias matérias da Fo-lha de São Paulo veiculadas em no-vembro e dezembro de 2001. Em 25de novembro, Josias de Souza relatouo caso da Faap (Fundação ArmandoÁlvares Penteado), da cidade de SãoPaulo, com faturamento anual de R$80 milhões e classificada como filan-

trópica, que, pelo Decreto 2.536, teriaque destinar pelo menos 20% de suareceita em gratuidades a alunos caren-tes (definidos legalmente como os deR$ 300 de renda familiar mensal), maso INSS constatou que ela tem aplicadoapenas 1,16% da receita nessas gratui-dades. Para simular o cumprimento dalei, a Faap teria concedido bolsas afuncionários e seus parentes, além deum desconto generalizado a todos osestudantes, mesmo “os mais endinhei-rados”. Mesmo assim, com superávitfinanceiro de R$ 18 milhões em 2000e aplicações em ouro e fundos de in-vestimento, a Faap conseguiu renovaro seu título de filantrópica junto aoCNAS, embora a auditoria do INSStivesse recomendado a cassação combase numa série de irregularidades,como o pagamento de remuneração aseus dirigentes.

A polêmica da Lei 9.732 - que alte-rou dispositivos da Lei 8.212 e 8.213,de 24/7/91, e da Lei 9.317, de 5/12/96- girou em torno do Art. 4°, que prevêa isenção das contribuições previden-ciárias patronais “na proporção do va-lor das vagas cedidas, integral e gratui-tamente, a carentes, e do valor doatendimento à saúde de caráter assis-tencial”, desde que as instituições filan-trópicas satisfizessem os requisitos re-feridos nos incisos I, II, IV e V do art. 55da Lei 8.212. Esta formulação suscitouinterpretações divergentes entre, deum lado, o governo, e, de outro, os de-fensores das filantrópicas. Segundo amatéria “Escolas levantam dúvidas so-bre texto da MP” (O Globo, 11/12/98),

para o governo, ela significa isençãoproporcional ao percentual de alunosatendidos com bolsas integrais. Umaescola com mil alunos e bolsas inte-grais a 100 estudantes teria descontode 10% nos 20% de contribuição devi-da sobre a folha de salários e pagaria18%. Mas os parlamentares da “ban-cada da educação” (as filantrópicas),com o aval do senador Jáder Barbalho(relator do projeto de conversão daMP 1729), consideraram que as esco-las poderão abater o valor bruto dasbolsas integrais: se um colégio conce-de R$ 200 mil em bolsas e deve R$500 mil de contribuição patronal, pa-gará R$ 300 mil. Por causa dessa diver-gência de interpretações, a “bancadada educação” iria pedir a anulação davotação, que, se foi pedida, não resul-tou em anulação.

O Decreto Federal 3.039, de 28/4-/99, que, entre outras providências,procurou regulamentar as modifica-ções introduzidas pela Lei 9.732, esta-belece dois tipos de isenção previden-ciária para filantrópicas: a total se des-tina àquelas que ofereçam exclusiva-mente vagas gratuitas a carentes (defi-nidos como aqueles com renda fami-liar mensal de até R$ 260); a propor-cional é para aquelas que, mesmo nãosendo gratuitas, ofereçam vagas inte-gralmente gratuitas a carentes (defini-dos como aqueles com renda familiarmensal de até R$ 300), o que significaque bolsas parciais não poderiam sercontabilizadas para fins de isençãoparcial da cota previdenciária. O pro-blema da isenção proporcional é que asua formulação legal não parece muitoclara, pois corresponderia ao “percen-tual resultante da relação existente en-tre o valor efetivo das vagas cedidas,integral e gratuitamente, e a receitabruta mensal proveniente da venda deserviços e de bens não integrantes doativo imobilizado, acrescida da receitadecorrente de doações particulares, a

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ser aplicado sobre o total das contri-buições sociais devidas.” (Art. 30, § 1º).

As filantrópicas não tardaram a rea-gir às alterações contidas na MP e naLei 9.732, alegando que a redução daisenção previdenciária significaria o fimde bolsas de estudo e de atividadessociais oferecidas pelas filantrópicas eaumento de mensalidades. Segundo oreitor da PUC-SP e presidente da As-sociação das Universidades Comunitá-rias, Antônio Carlos Ronca, “O paga-mento de contribuições, caso a insti-tuição deixe de ser considerada entida-de filantrópica, representaria uma des-pesa extra de cerca de R$ 24 milhões.A saída para se adequar à nova realida-de seria acabar com as bolsas de estu-do e com programas sociais.” (O Glo-bo, 30/11/98). Na mesma matéria, Gil-berto Oliveira Castro, reitor da Univer-sidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro,filantrópica mas não comunitária, pre-viu também aumento de mensalida-des e diminuição do número de ofertade vagas nas universidades.

O mais provável, no entanto, é quetenha acontecido o aumento das men-salidades, porém não a diminuição dasvagas nas IES privadas, cujas matrícu-las vêm crescendo em ritmo veloz nogoverno FHC, conforme o documentodo MEC mencionado acima. A ABMES,embora reconheça que a filantropiaera um “grande guarda-chuva paramuitas faculdades e hospitais que con-seguiram o referido diploma por tráfi-co de influência ou outros métodoseticamente duvidosos”, critica o gover-no por preferir “a política da terra arra-sada, eliminando toda e qualquer isen-ção patronal para todos, santos e peca-dores” (ABMES Notícias Nº 58, maio/-junho 99) e cita artigo de LucianoMendes de Almeida, da CNBB (Confe-rência Nacional dos Bispos do Brasil),publicado na Folha de São Paulo, em22 de maio de 1999, condenando a“profunda perversão social” da Lei, ao

excluir alunos pobres das faculdades.Em novembro de 1997, a ABMES já cri-ticara o governo federal pela inconsti-tucionalidade da Medida Provisória1602, de 14/11/97, que só permitia aisenção a instituições de educação eassistência social “sem qualquer remu-neração” (ABMES Notícias 48, “Edu-cação, compromisso do governo?”,nov. 97).

Nem todas as privadas reagiram ne-gativamente à restrição das isençõesàs filantrópicas. Pedro Guimarães Fer-reira, vice-reitor da PUC-RJ, em artigopublicado em O Globo (17/5/99), re-conhece que as instituições de ensinosuperior (IES) privadas com fins lucra-tivos e sem o certificado de filantropiaestão “possivelmente até satisfeitas, namedida em que se tornam doravantemais competitivas, diante do impactonegativo sobre as outras, enquantoque as que já têm o dito certificado,mas não são de fato sem fins lucrati-vos, têm também, as mais das vezes,reservas financeiras que lhes permitemsuportar, ao menos parcialmente, anova fatura.” O prejuízo ficaria apenascom “as instituições mais identificadascom o ideal da educação” e “promo-vem uma série de atividades gratuitase que terão de deixar de fazê-lo, se éque conseguirão sobreviver.” A avalia-ção favorável à restrição vem do presi-dente do Sindicato dos Hospitais doMunicípio do Rio de Janeiro, Paulo Ro-mano, que apóia o fim das isençõesporque “a maior parte de seus filiadossofre concorrência desleal de outrasinstituições, que são consideradas fi-

lantrópicas. Elas vão ter de demonstrara caridade que fazem” (O Globo, p. 3,1/12/98). Não temos notícia de posi-ção semelhante entre as IES privadas,pois, das 240 instituições privadas filia-das ao Sindicato das Entidades Man-tenedoras de Ensino Superior (Se-mesp), de São Paulo, apenas a Univer-sidade São Judas Tadeu declara ter finslucrativos (“Receita investiga universi-dades particulares”, O Globo, 7/12/97).

No seu contra-ataque, as escolasprivadas, em particular as comunitá-rias, conseguiram sensibilizar pelo me-nos uma parte de seu estudantadopara tentar anular as modificações in-troduzidas pela Lei 9.732/98. Porexemplo, o presidente do Conselhodos Diretórios Centrais dos Estudantes(DCEs) das universidades comunitáriasdo Rio Grande do Sul, Aliam GiovaniStefanello, saiu em defesa da isençãoda cota patronal previdenciária das fi-lantrópicas alegando que “Com a per-da das isenções que gozavam as uni-versidades filantrópicas, o aluno, maisuma vez, acabou sendo prejudicado.Devido a esse acréscimo de despesas,a maioria das instituições de ensinosuperior acabaram repassando essescustos, ou parte deles, para os estu-dantes” (Jornal das Comunitárias, nº 8,

O mais provável, no entanto, é que tenha acontecido oaumento das mensalidades, porém não a diminuição das vagas nas IES privadas, cujas matrículas vêm crescendo em ritmo veloz no governo FHC.

abril/maio de 99) O nº 7 do mesmojornal (fev./mar. 99) noticia a ida decaravana de estudantes de universida-des comunitárias a Brasília para pro-testar contra as restrições impostas pe-la Lei 9.732/98.

As reações das filantrópicas surti-ram efeito, pois conseguiram sustar asrestrições contidas na Lei 9.732 atravésde liminar concedida, em 14/7/99, pe-lo Supremo Tribunal Federal à ADIN(Ação Direta de Inconstitucionalidade)2028-5 impetrada pela ConfederaçãoNacional de Saúde, Hospitais e Servi-ços, que beneficiou todas as filantrópi-cas, as quais, para continuar gozandoda isenção previdenciária, não precisa-riam conceder bolsas de estudos inte-grais no montante correspondente àisenção. A situação real atual não pare-ce muito clara, pois a concessão da li-minar significou a suspensão das res-trições à isenção, porém as filantrópi-cas, pelo menos as universidades co-munitárias reunidas na ABRUC, mes-mo após a liminar, continuavam cul-pando tais restrições pela diminuiçãodas bolsas de estudo oferecidas. Namatéria “Alterações no programa nãoencerram discussões” (Jornal das Co-munitárias, Nº. 10, set/out. 99), o pre-sidente da ABRUC, Antônio Ronca, la-mentava que o “fim da isenção da fi-lantropia resultou na drástica reduçãodas bolsas de estudo oferecidas”. Terãosido as restrições contidas na Lei 9.732mais um pretexto para a diminuiçãode tais bolsas e/ou aumento de men-salidades?

Em vista da reação das filantrópicase da sua mobilização junto aos políti-cos governistas e oposicionistas, o go-verno procurou uma solução concilia-tória através da MP 1827, de 27/5/99,criando o novo crédito educativo, oFIES, no mesmo mês em que as filan-trópicas começariam a ter de cumpriras novas restrições da Lei 9.732. Estepropósito conciliatório fica evidente no

financiamento do programa, constituí-do de títulos da dívida pública emitidospelo Tesouro Nacional que as IES priva-das utilizariam para pagar as suas dívi-das previdenciárias passadas e futuras.Em outras palavras, elas não recebe-riam dinheiro vivo mas apenas papéispara saldar tais dívidas. Outro elemen-to conciliatório da MP é o que permitia,excepcionalmente em 1999, o financia-mento a estudantes “comprovadamen-te carentes que tenham deixado debeneficiar-se de bolsas de estudos inte-grais ou parciais concedidas pelas insti-tuições referidas do art. 4º da Lei 9.732,de 11/12/98, em valor correspondenteà bolsa anteriormente recebida.” Alémdisso, em conseqüência do êxito dasfilantrópicas em suspender por ADIN asrestrições contidas na Lei 9.732, o go-verno incluiu na Lei do FIES, a 10.260,de 12/7/01, um artigo (não incluído naMP original) que obrigava as filantrópi-cas a aplicar o montante equivalente àisenção em “bolsas de estudos, no per-centual igual ou superior a 50% dosencargos educacionais cobrados pelasinstituições de ensino, a alunos com-provadamente carentes e regularmen-te matriculados”. Este artigo tambémfoi alvo de Ação de Inconstitucionalida-de, de Nº 2545-7, pela Confenen (Con-federação Nacional dos Estabelecimen-tos de Ensino) junto ao STF, que conce-deu liminar, em 1/2/02, suspendendo-o com o argumento de que ele “ao tro-car a imunidade previdenciária pelaobrigação de investir em bolsas de es-

tudo, acabou excluindo um benefícioconcedido às entidades em razão deseu caráter assistencial”, segundo a re-latora, ministra Ellen Gracie Northfleet(“STF desobriga filantrópicas a conce-derem bolsas de estudo”, O Globo,2/2/02).

Apesar dessas ações jurídicas bemsucedidas das filantrópicas, muitas ti-veram o seu certificado cassado, po-rém não sabemos se e quando passa-ram ou passarão a pagar a contribui-ção patronal integral. O Globo noticiaque “cerca de 300 entidades filantrópi-cas que tiveram seus títulos cassadospelo CNAS no ano passado [em 2000]mantêm uma isenção mensal estima-da em R$ 250 milhões. Essas entida-des recorreram ao conselho para rea-ver o título e os processos podem de-morar anos: elas têm o direito aindade recorrer ao ministro da Previdênciae, finalmente, à Justiça, onde a tramita-ção é lenta. Enquanto não sai a sen-tença final, a isenção é mantida. Comisso, o governo deixa de recolher cercade R$ 3 bilhões por ano” (“A farra dosrecursos de entidades filantrópicas”,15/4/01). O problema não se reduzapenas à morosidade deste processo,pois as filantrópicas parecem contarcom amigos poderosos dentro do Mi-nistério da Previdência e do CNAS, se-gundo denúncia de fiscais do INSS pu-blicada na Folha de São Paulo, em18/11/01, e em O Globo em 25/11/-01. “Das denúncias encaminhadas es-te ano ao Conselho Nacional de Assis-tência Social, apenas 8% foram acolhi-das. (...) Embora o CNAS tenha sidonotificado de irregularidades em 37entidades filantrópicas, só três recebe-ram algum tipo de punição.” Segundoo presidente da Federação Nacionaldos Auditores Fiscais da Previdência(Fenafisp), Flávio Pires de Campos,“Pessoas que desfrutam das vantagensoferecidas às filantrópicas têm influên-cia sobre os conselheiros. Os fiscais es-

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tão cumprindo seu papel, denuncian-do as instituições irregulares, mas osprocessos são derrubados no CNAS”(O Globo, 25/11/01). A matéria men-ciona o caso da fundação Gorceix, liga-da a uma universidade privada de Ou-ro Preto (MG), cujo certificado de filan-tropia teve sua cassação pedida pelosauditores do INSS por não aplicar 20%das receitas em gratuidades. Porém,no CNAS, a denúncia foi ignorada pelorelator Eduardo Barbosa, deputado fe-deral pelo PSDB de Minas, que man-dou arquivar o relatório e pediu a re-novação do certificado. A revolta dosfiscais cresceu com a portaria editadapelo ministro da Previdência, RobertoBrant, no começo de novembro, pre-vendo que só o presidente do INSSpoderá fazer representações ou recur-sos ao conselho. Os fiscais descobri-ram que outras entidades denuncia-das mascararam a aplicação obrigató-ria dos 20% em assistência social, con-cedendo bolsas para filhos de funcio-nários, considerando redução de men-salidade, concessão de descontos eaté empréstimos de salas para reuni-ões comunitárias como gratuidade.Apesar de todas essas irregularidades,as filantrópicas não parecem correr orisco de ser punidas, pois o ministroRoberto Brant teria elaborado decretosperdoando universidades e hospitaisfilantrópicos em situação irregular edando-lhes prazo de três anos para seacertarem, segundo a matéria de Jo-sias de Souza na FSP (2/12/01).

Apesar das cassações, em 8 de feve-reiro de 2002, a página do MPAS (Mi-nistério da Previdência e Ação Social)na Internet (www.mpas.gov.br) aindaregistrava como entidades isentas em-presas educacionais como a Socieda-de Universitária Gama Filho (cujo certi-ficado de entidade de fins filantrópicosé de 1968), a Sociedade de Ensino Su-perior Estácio de Sá (com certificadoconcedido em 1975) e a Sociedade

Educacional São Paulo Apóstolo (que,com certificado de 1975, é a “mante-nedora” de unidades de ensino funda-mental, médio e superior da UniverCi-dade), que tiveram um crescimento fa-buloso nos últimos anos, conformepode ser atestado pela freqüência etamanho dos anúncios nos jornais doRio de Janeiro, além da multiplicaçãodas matrículas.

Diante de tudo isso, parece razoávelconcluir que a mudança legislativa te-ve efeito prático limitadíssimo na su-pressão do privilégio de isenção previ-denciária e, portanto, as filantrópicascontinuam a gozar deste financiamen-to público indireto para o seu funcio-namento e expansão. Esta isenção sig-nificou e significa ainda também o fi-nanciamento público à previdência/apo-sentadoria de empregados das filantró-picas, tendo em vista que eles reco-lhem a sua contribuição (correspon-dente a 1/3) mas não as filantrópicasonde trabalham, cuja cota equivaleriaa 2/3 do financiamento devido, comoacontece nas demais empresas quecumprem a lei. Em outras palavras, oburaco deixado pelo não-recolhimen-to da cota patronal das filantrópicas

será financiado pelo conjunto dos con-tribuintes privados (empregados eempregadores - na verdade, apenaspelos empregados, uma vez que osempregadores repassam tais custospara os preços dos produtos e servi-ços) à previdência/aposentadoria dosempregados das filantrópicas. Temos,assim, mais um exemplo da clássicasocialização do prejuízo e privatizaçãodo lucro.

3.3 - Isenção do salário-educaçãoUma outra fonte indireta tem sido a

isenção do salário-educação para to-das as instituições de ensino privadasdesde 1964, quando ele foi criado pelaLei 4.440. Tal isenção continuou paratodas elas até recentemente, quandoem agosto de 1996 a MP do salário-educação, a 1518, restringiu a isençãoapenas a escolas comunitárias, confes-sionais ou filantrópicas, restrição con-firmada na lei em que veio a se trans-formar, a 9.766, de 18/12/98. Não épor acaso que as privadas que perde-ram esse privilégio com a MP 1518ameaçavam aumentar as mensalida-des com o fim dessa isenção (“Mensa-lidade pode aumentar 1,75% em 97”,O Globo, 25/9/96). Essa isenção signi-ficava (e significa hoje para as comuni-tárias, confessionais ou filantrópicas)que elas deixavam e deixam de reco-lher esta contribuição social de 2,5%sobre a folha de pagamento. Não te-mos meios de calcular o montantedesta isenção hoje, mas é possível quealcance algumas dezenas de milhões

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Parece razoável concluir que a mudança legislativa teve efeito prático limitadíssimo na supressão do privilégiode isenção previdenciária e, portanto, as filantrópicas continuam a gozar deste financiamento público indiretopara o seu funcionamento e expansão.

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de reais por ano. Como a isenção exis-tiu para todas as privadas desde 1964,representou (e representa ainda) umfinanciamento indireto às IES privadasque talvez tenha alcançado centenasde milhões (ou talvez mais de um bi-lhão) de reais em valores atualizados.

4- Fontes diretas: subsídios, bolsas, subvenções, empréstimos, crédito educativo, FIES Não contentes com as vultosas fon-

tes indiretas de recursos públicos parao seu financiamento, as privadas pro-curaram e conseguiram obter fontespúblicas diretas. Comecemos por umbreve exame das Constituições Fede-rais e leis ordinárias. A Constituição de1937, do Estado Novo, permitia subsí-dios públicos a indivíduos ou associa-ções particulares e profissionais queoferecessem o “ensino pré-vocacionale profissional destinado às classes me-nos favorecidas” (Art. 129). A de 1967(Art. 168, parágrafo 2º) prometia “am-paro técnico e financeiro dos PoderesPúblicos, inclusive bolsas de estudo” àiniciativa particular, disposição repeti-da na Emenda Constitucional 1, de1969 (Art. 176, § 2°). A CF de 1988(Art. 213), por sua vez, permite a des-tinação de recursos públicos a escolascomunitárias, confessionais ou filan-trópicas que atendam a uma série derequisitos, cujo cumprimento não étão difícil (VELLOSO 1988). No caso derecursos públicos para as IES privadas,o parágrafo 2°, do art. 213, abre umabrecha enorme ao permitir que “As ati-vidades universitárias de pesquisa eextensão poderão receber apoio finan-ceiro do Poder Público”, contando comum reforço adicional no Art. 61, do Atodas Disposições Constitucionais Tran-sitórias, segundo o qual “As entidadeseducacionais a que se refere o art. 213,bem como as fundações de ensino epesquisa cuja criação tenha sido auto-rizada por lei, que preencham os re-

quisitos dos incisos I e II do referido ar-tigo e que, nos últimos três anos, te-nham recebido recursos públicos, po-derão continuar a recebê-los, salvo dis-posição legal em contrário.”

O favorecimento à iniciativa privadatambém pode ser encontrado na legis-lação ordinária. Segundo Cury (1992,p. 53), o art. 8°, do Decreto 7.247, doImpério, permitia subvenção às esco-las particulares, desde que não hou-vesse escolas públicas por perto. Noinício do período republicano, o art.71, do Decreto 981, de 8/11/90, per-mitia a subvenção a “escolas particula-res, que receberem e derem instruçãogratuitamente a 15 alunos pobres, pe-lo menos” (CURY 1992, p. 53). A con-cessão de subvenções continuounuma série de outros dispositivos le-gais no século XX. Em 1931, foram ofe-recidas pelo Decreto-Lei 20.361 a esta-belecimentos privados de ensino téc-nico, além de instituições de caridade,sendo o universo das instituições edu-cacionais beneficiadas ampliado pelaLei 119, em 1935, de modo a abrangeras de “qualquer grau e ramo”, desdeque atendessem a uma série de requi-sitos, um deles o de prestarem “servi-ços gratuitos”, formulação vaga e, por-tanto, facilmente contornável (como jávisto na parte relativa às filantrópicas),pois não define a proporção da gratui-dade em relação ao total dos serviçosprestados ou renda auferida. O requisi-to de prestação de serviços gratuitosfoi suprimido no dispositivo legal se-guinte, o Decreto Lei 527, de 1938, fa-cilitando ainda mais a obtenção desubvenções. No entanto, essa exigên-cia voltou no dispositivo seguinte, o

Decreto-Lei 5698, de 1943, com requi-sito também facilmente contornável,como a de que tais serviços fossemoferecidos “com real utilidade ... a pes-soas ou famílias necessitadas.” Umaformulação ligeiramente diferenteconstou do Decreto-Lei 29.425, de1951, exigindo apenas a definição donúmero e natureza dos serviços gratui-tos prestados e tornando mais clara adistinção entre subvenções ordináriase extraordinárias, presente de maneiravaga nos Decretos-Lei 527 e 5698. En-quanto as ordinárias se destinavam àmanutenção de atividades permanen-tes das instituições subvencionadas, asextraordinárias tinham o propósito definanciar a sua expansão, pois se desti-navam a “construções, obras de refor-ma, aquisição, adaptação, conservaçãoe melhoria de imóveis e equipamen-tos”. A Lei 1.493, também de 1951,não exigiu serviços gratuitos, porém aconcessão da subvenção foi condicio-nada ao caráter filantrópico da institui-ção, entre outros requisitos.

O privatismo não se limitou ao pla-no legal, pois as subvenções foram fre-qüentemente alvo de intermediaçãode políticos e campo fértil para o clien-telismo e corrupção, a ponto de oCNSS (Conselho Nacional de ServiçoSocial, órgão do MEC que concedia oregistro e certificado a entidades de

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Não contentes com as vultosas fontes indiretas de recursospúblicos para o seu financiamento, as privadas procurarame conseguiram obter fontes públicas diretas.

assistência social), ter tido como con-selheiro, de 1985 a 1992, José CarlosAlves dos Santos, envolvido no escân-dalo do orçamento federal em 1993(MESTRINER 2001), conhecido comoo escândalo dos “anões do orçamen-to”. As irregularidades foram tantas(por exemplo, a não-prestação de con-tas pelas entidades subvencionadas ea existência de entidades-fantasma)que o CNSS foi extinto em 1993 esubstituído pelo CNAS. A magnitudedessas irregularidades pode ser aferidapelo número de entidades que perde-ram o registro (que dá direito a sub-venções) neste momento de transiçãopara o CNAS. Segundo a Irmã RositaMilesi, conselheira do CNAS, das 30mil entidades com registro no CNAS,mais de 15 mil tiveram o registro can-celado (MESTRINER 2001, p. 222).

Ao que parece, o CNAS não foi pur-gado dos pecados privatistas do antigoCNSS, conforme mostra Josias de Sou-za, em matéria sobre a concessão docertificado de filantropia à PUC-MG(“Asmodeu livra universidade católicado pecado filantrópico”, FSP, 17/2/02).Mesmo tendo o seu pedido de renova-ção do certificado indeferido pelaequipe técnica do CNAS, em novem-bro de 1998, por não aplicar os 20%da receita em gratuidades, a PUC-MG(com receita de R$ 34,5 milhões, em1994, R$ 66,4 milhões, em 1995, e R$103,3 milhões, em 1996) recebeuuma atenção especial do presidentedo CNAS para tentar, mais uma vez,demonstrar contabilmente que cum-prira essa exigência e merecia o certifi-cado, o que acabou conseguindo, tal-vez também pelo fato de RobertoBrandt, ministro da Previdência, ser“um declarado simpatizante da PUC”.

Além das subvenções (dinheiro afundo perdido), as escolas privadas sebeneficiaram legalmente de bolsas deestudo ou financiamento. A primeiraLDB (Lei 4.024), de 1961, autorizava a

concessão de bolsas de estudo emestabelecimentos de ensino reconhe-cido, escolhidos pelo candidato ou seurepresentante legal (Art. 94, § 1°) e ofinanciamento a estabelecimentos par-ticulares (Art. 95, alínea c). A Lei 5.691,de 1971, repetindo as disposições daConstituição de 1967, previa o amparotécnico e financeiro do Poder Públicoàs instituições de ensino particulares(Art. 45). A segunda LDB (Lei 9.394),de 1996, reproduz as mesmas permis-sões de recursos públicos para as ins-tituições privadas contidas na CF, de1988. Um exemplo recente de apoioestatal às IES privadas é a portaria 44,da Capes, de 13/7/98, que prevê o pa-gamento das taxas escolares de pós-graduandos bolsistas da Capes nelas

matriculados. Ou seja, além de ofere-cer bolsas, a Capes arca com todos osencargos educacionais (mensalidades,taxas). Embora não tenhamos infor-mações sobre o montante de bolsas após-graduandos e professores das IESprivadas, bem como dos auxílios finan-ceiros a eles concedidos para pesqui-sas e atividades outras, ele deve alcan-çar algumas dezenas ou, provavelmen-te, centenas de milhões de reais (con-siderando-se todas as instituições esta-tais de fomento à pesquisa, como Ca-pes, CNPq e fundações estaduais deamparo à pesquisa, como a Fapesp,Faperj, Fapemig e outras).

Um outro mecanismo legal privati-zante foi o salário-educação, contribui-ção social que, embora criada em1964 para financiar o então ensino pri-

mário público, serviu para sustentar asescolas privadas, ao permitir que asempresas, em vez de fazerem o seu re-colhimento aos cofres públicos, mon-tassem escolas para seus funcionáriose dependentes (o Bradesco e algumasgrandes empresas aproveitaram estabrecha legal) ou comprassem vagasnas escolas particulares para seus fun-cionários e dependentes, inicialmenteno ensino primário, depois no 1° Grau(a partir de 1971). Esta isenção foiaproveitada intensamente pelas em-presas privadas a ponto de, em 1984,cerca de 50% das matrículas no ensi-no fundamental da rede particular doBrasil serem financiadas pelos recur-sos do salário-educação (VELLOSO1987). Como previsto, esta privatiza-

ção legal dos recursos públicos (incor-porada inclusive na CF de 1988) foiacompanhada de pirataria (“a privati-zação ilegal”), com a pilhagem do di-nheiro público por meio das fraudes.Segundo MELCHIOR (1987, p. 22),com base em estudo interno do FNDE(Fundo Nacional de Desenvolvimentoda Educação), as fraudes mais comunseram: “(a) as escolas recebiam as bol-sas do salário-educação e, além disso,cobravam dos alunos a diferença que

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Um outro mecanismo legal privatizante foi o salário-educação, contribuição social que, embora criada em 1964 para financiar o então ensino primário público, serviu para sustentar as escolas privadas.

existia para integralizar as mensalida-des; (b) as escolas recebiam bolsas dosalário-educação e apresentavam umarelação de alunos bolsistas “fantasma”,isto é, eles não existiam; (c) as escolasrecebiam mais bolsas de estudo do quesua capacidade de matrícula.” Outrasfraudes foram a concessão de bolsasem escolas que só existiam no papel eo fornecimento, pelas escolas, de reci-bos de valor maior do que a quantiaefetivamente paga pelas empresas de-vedoras do salário-educação. Conformemostra Velloso: “A diferença entre o va-lor do recibo e a quantia paga ia engor-dar o lucro da firma ou a carteira deseus dirigentes” (1987, p. 5).

Embora a EC 14, de setembro de1996, tenha decretado o fim dessa pri-vatização legal, essa proibição só vale-ria para alunos ingressantes, não paraos que já eram financiados com o salá-rio-educação em escolas privadas até1996, que poderão continuar contan-do com tais recursos até a conclusãodo ensino fundamental, presumivel-mente até 2003, quando os que in-gressaram em 1996 terão concluído oensino fundamental.

Auxílios financeiros outros foram ca-nalizados para as IES privadas. SegundoTramontin e Braga (1988), o Plano deMetas do governo federal para 1986-89previa “apoiar em até 30% dos respec-tivos orçamentos 20 universidades co-munitárias”, que, a partir de 1988, “pas-sam novamente a ter em seus orça-mentos receitas substantivas e sistemá-ticas da União” (p. 34). Segundo Miran-da (1989), 8,8% dos recursos do Pro-grama Nova Universidade, de 1985/86,do governo federal, teriam sido destina-dos às IES privadas na fase zero e14,7% na primeira fase.

Empréstimos de dinheiro público ajuros bastante favoráveis (que ne-nhum cidadão comum consegue embanco comercial) têm sido outra fontedas IES privadas. Em 1997, o MEC e o

BNDEs firmaram acordo para a abertu-ra de linha de crédito para o Programade Recuperação e Ampliação dosMeios Físicos das IES públicas e priva-das (“MEC e BNDES darão crédito parauniversidades”, O Globo, 13/6/97).Com dotação inicial de R$ 500 mi-lhões, o programa já teria, em novem-bro de 2000, aprovado 63 projetos deIES privadas (no valor total de R$ 433milhões) e 22 de IES públicas (no totalde R$ 252 milhões), segundo o bole-tim eletrônico (ano I, nº 3) disponívelna página eletrônica (site) do MEC.

Outro instrumento legal de canali-zação de recursos públicos para as IESprivadas foi o crédito educativo (Cre-duc), cuja importância financeira e po-lítica pode ser avaliada pela existência,em 1997, de uma Frente Parlamentardo Crédito Educativo, conforme o arti-go “Novos horizontes para o créditoeducativo”, de Paulo Bornhausen, de-putado federal pelo PFL de SantaCatarina (O Globo, 7/5/97). Criado pe-lo governo militar em 1975, o Creducconsistiu num empréstimo para o pa-gamento de mensalidades e manuten-ção de estudantes supostamente ca-rentes matriculados em IES privadas.Financiado com recursos públicos, oprograma, embora justificado comoauxílio aos estudantes pobres, serviupara subsidiar as privadas que, sem oprograma, perderiam uma parcela desua clientela. Além de subsidiar insti-tuições particulares, o programa trouxegrandes prejuízos aos cofres públicos,pois uma grande proporção dos em-préstimos não foi paga pelos estudan-tes após a conclusão do curso(SCHWARTZMAN 1995). Consideran-

do-se os 24 anos de vigência do Cre-duc (1975 a 1999), a elevada inadim-plência e a correção dos empréstimosa uma taxa muito inferior à inflação doperíodo, é provável que este prejuízotenha alcançado centenas de milhõesou mesmo alguns bilhões de reais emvalores de hoje. Segundo matéria de OGlobo (1/9/98), o saldo devedor docrédito educativo seria de R$ 450 mi-lhões, num total de 150 mil contratos.

Em 1999, o Creduc foi substituídopelo FIES (Fundo de Financiamento aoEstudante do Ensino Superior), atravésda MP 1827, em 27/5/99, reeditada 25vezes até se transformar na Lei 10.260,em 12/7/2001. Em 1999, segundo orelatório do TCU (Tribunal de Contasda União, 2000, p. 430) sobre as con-tas do governo federal, o FIES teriacontado com dotação orçamentária deR$ 244 milhões, dos quais R$ 141 mi-lhões teriam sido utilizados para “be-neficiar” 104.736 estudantes, númeroprestes a alcançar 200.000 no segun-do semestre de 2001, segundo depoi-mento de Magno Maranhão, presiden-te da Anaceu (Associação Nacional deCentros Universitários - www.anaceu.-org.br), à Comissão de Educação daCâmara dos Deputados.

O curioso sobre o Creduc e o Fies éentidades e partidos com discurso dedefesa do ensino público defenderemtais programas com o argumento de

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Empréstimos de dinheiro público a juros bastantefavoráveis (que nenhum cidadão comum consegue embanco comercial) têm sido outra fonte das IES privadas.

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que estudantes carentes devem serajudados porque são forçados a estu-dar em escola particular pela omissãodo governo. É o que fez Ricardo Cap-pelli, presidente da UNE (União Na-cional dos Estudantes) e estudante deInformática da Universidade privadaEstácio de Sá, do Rio de Janeiro (“Cré-dito educativo já”, O Globo, 11/9/98).“Estudar numa escola privada hoje nãoé opção, mas sim imposição. De todasas vagas universitárias abertas, apenas1/3 é oferecido pela rede pública e2/3 pela particular. É uma realidadecruel, pois a imensa maioria dos jo-vens, não tendo como pagar as altasmensalidades, acaba sendo automati-camente excluída da rede privada, en-quanto 1/3 restante deles sofre paraingressar no ensino superior gratuito,disputando com 30 e até 40 estudan-tes cada uma das vagas oferecidas. Épor isso que defendemos o créditoeducativo. Não vemos nele a soluçãopara o problema, mas uma forma deatenuar a distorção existente.”

Este apoio da UNE foi manifestadoem outra ocasião, pelo secretário-geralda Executiva da UNE, Sósthenes Ma-cedo, em entrevista concedida ao Jor-nal da Abruc (p. 3, nº 11, de nov./dez.99): “Estamos também brigando pormaiores verbas para o FIES, antigoCREDUC, na tentativa de garantir aoaluno carente o acesso à educação.Para a UNE, qualquer ajuda no sentidode se preservar a filantropia para as“verdadeiras instituições filantrópicas”

e o incentivo ao aperfeiçoamento doprograma FIES é de grande valia.”

Aparentemente o FIES foi criado pa-ra compensar a perda do privilégio daisenção previdenciária das filantrópicas,segundo avaliação do deputado federalPadre Roque (PT-PR), para quem “Onovo crédito educativo foi um cala bo-ca para as escolas que perderam aisenção da filantropia” (“Oposição abreguerra contra a MP do novo créditoeducativo”, O Globo, 4/6/99), avaliaçãoconfirmada pelo próprio ministro PauloRenato, que, segundo o Jornal das Co-munitárias (“Ministro e reitores discu-tem o novo Crédito Educativo - FIES, p.3, nº 9, julho/agosto 99)”, teria declara-do, na apresentação do FIES na Câma-ra dos Deputados, que o FIES iria “su-prir a lacuna deixada pela nova Lei queacaba com a filantropia”.

A Lei do FIES prevê o financiamentode até 70% dos encargos educacionaisde estudantes em cursos de IES não-gratuitas com avaliação positiva peloMEC, recebendo as IES títulos da dívidapública utilizáveis no pagamento deobrigações previdenciárias junto aoINSS ou negociáveis com outras pes-soas jurídicas, alternativa essa que re-presentou uma concessão do governoàs pressões das IES que reclamavam depossuir títulos em montante superior àssuas obrigações previdenciárias, pois naredação da MP original, a 1827, tais títu-los só podiam ser utilizados para quitaressas obrigações. A entrevista com CleoOrtigara, reitor da Universidade Regio-nal Integrada do Alto Uruguai e das Mis-sões (URI), vice-presidente da ABRUC e

presidente do Consórcio das Universi-dades Comunitárias Gaúchas, mostra aimportância dessa concessão pelo go-verno: “A URI tem 1.160 alunos comcontratos junto ao FIES. Isso representacerca de R$ 230 mil mensais que rece-bemos em títulos da dívida pública. Es-tes títulos só podem ser utilizados parao débito mensal junto ao INSS. Acon-tece, porém, que este débito não chegaa R$ 100 mil. Logo, a universidade en-gaveta R$ 130 mil por mês, em papéissem mais nenhuma utilidade. Ora, estaé uma situação insustentável. A URI nãotem gordura para renunciar às mensali-dades de 1.160 alunos que estão noFIES, 945 que estão no CREDUC e tan-tos outros no Procred (Programa Esta-dual de Crédito Educativo)” (“Univer-sidades pedem solução urgente paraforma de pagamento do FIES”, Jornaldas Comunitárias, n. 13, abril/maio2000).

Este acúmulo de títulos de dívidapública foi uma das razões para as uni-versidades comunitárias ameaçaremsair do FIES, assim como a inclusão,numa das medidas provisórias do FIES,de artigo impedindo as IES de resgataros títulos por dinheiro se tivessem pro-cessos judiciais contra o INSS ou o FIES(“Universidades ameaçam crédito edu-cativo - Instituições comunitárias e ca-tólicas se reunirão para decidir se acei-tam novos alunos financiados pelo go-verno”, O Globo, 8/11/00). Emboraconstasse da Lei do FIES, o artigo foisuspenso por medida liminar do STF(O Globo, 2/2/02) na ADIN 2545-7,movida pela Confenen. Outra conces-são do governo foi a diminuição de10% para 5% no risco do montante fi-nanciado ao estudante, o que significaque, no caso de inadimplência, a IESarcaria com 5% da dívida. Apesar dascríticas ao FIES e ameaças das comuni-tárias de não aceitarem novos estudan-tes pelo FIES, parece-nos que ele, as-sim como o crédito educativo no pas-

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sado, é um complemento nada des-prezível às receitas das IES privadas.

5- ConclusõesOs elementos acima permitem as

seguintes conclusões. Uma é que asescolas privadas (sobretudo as IES) seexpandiram e se expandem não sóporque existe uma demanda peloensino superior, mas também e sobre-tudo porque os governos não têm pro-curado atender toda a demanda, des-viando-a para as IES privadas. O apoiooficial às IES privadas tem se concreti-zado não só por essa omissão, comotambém pelo financiamento públicodireto e indireto a elas, com a isençãode impostos, da contribuição previden-ciária e do salário-educação, e a con-cessão de subvenções, bolsas de estu-do, empréstimos subsidiados, créditoeducativo, FIES ao longo das últimasdécadas. Sem este financiamento pú-blico (que deve ter totalizado e aindatotalizar alguns bilhões de reais porano), as IES privadas certamente nãoteriam se expandido tanto, pois assuas mensalidades teriam que sermuito maiores do que são, afastandoassim a demanda de estudantes semcondições de pagar. A omissão doEstado e o financiamento público àsIES privadas têm sido, assim, duas dasmais importantes medidas de privati-zação do ensino superior.

Aparentemente, se um dos objeti-vos declarados do governo federal foio empresariamento do ensino, no sen-tido de tratar as instituições de ensinoprivadas como empresas com finslucrativos, que não merecem privilé-

gios fiscais, ele não foi bem sucedido,pois as isenções e imunidades conti-nuam até hoje, se não para todas, pelomenos para uma proporção significati-va. Essa dificuldade se deve ao fato deo próprio governo depender de umaaliança de forças com apoio nos priva-tistas da educação e também ao fatode os órgãos do Estado (STF, MPAS)estarem contaminados por tais inte-resses privatistas.

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** Este texto faz parte de um estudo sobrea privatização do ensino superior nos anos 90,realizado pelo Coletivo de Política Educacionalcoordenado pela profa. Lúcia Neves, do Pro-grama de Pós-Graduação da UniversidadeFederal Fluminense. Agradeço aos integrantesdo Coletivo pelos comentários e sugestõessobre o texto.

* Nicholas Davies é professor da Facul-dade de Educação da Universidade Fe-deral Fluminense.

Educação e Trabalho Docente

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 91

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE92 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Educação e Trabalho Docente

Um estudo sobre a democratizaçãoda universidade parte, em geral, daconstatação primeira de que ela vemsendo destinada a poucos indivíduos,considerado o conjunto da sociedade.Existe, historicamente, uma certaorganicidade, embora permeada decontradições, entre as classes sociaisque detêm poder e a universidade,que inicia com a gênese desta e lheconfere caráter não-democrático.Ampliar seu espaço, permitindo oingresso de originários de outrosestratos sociais sempre tem exigidoduras e repetidas lutas.

Como as diferenças e discrimina-ções se forjam e se explicitam no pró-prio tecido social onde a universidadeestá inserida, a relação universidade -sociedade é uma relação dinâmica econtraditória que vai produzir, em con-textos determinados, alterações maio-res ou menores no chamado elitismouniversitário. Assim, submetida a pres-sões internas e/ou externas pela suademocratização, a universidade, comoa sociedade, utiliza estratégias de res-posta, que podem significar maior oumenor grau de avanço no caminho dademocratização.

Serão examinados dois desses tiposde estratégias, referentes aos casos daItália e do Brasil, que a universidadeutilizou para responder às pressões

pela sua “abertura”. O primeiro enca-minha a questão para a liberação doacesso a estudantes e o outro toma avia da democratização do conteúdo edo método científico para os setoresda sociedade que não têm tido opor-tunidade de conhecê-los.

O objetivo do trabalho é explicitarcontradições presentes na forma comoas universidades se direcionaram paraa democratização, em ambos os casos.

De um lado, foi analisada, em1996/1997, a universidade italiana, co-

nhecida como Universidade Aberta oude Massa, na qual a liberação do aces-so ocorreu por lei, em 1969, resultanteda pressão do movimento estudantil.De outro, tomou-se como objeto a uni-versidade brasileira, que apresentouum significativo debate, a partir da dé-cada de 1980, sobre a extensão univer-sitária como veículo democratizante.

Apresentam-se, primeiramente, pres-supostos metodológicos que respal-dam o presente trabalho, iniciando pe-la afirmação de que é necessário ana-

Regina Maria Michelotto *

Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro.

Estratégias de democratizaçãoda universidade no Brasil e na Itália

lisar o objeto definido em suas deter-minações históricas, pois

Compreender as determinações enão vê-las como determinações his-tóricas de uma práxis histórica [...]significa ficar preso dentro dos limi-tes do dado, do existente, das mes-mas mistificações da sociedade capi-talista. [Ao invés, é necessário] bus-car os fundamentos de uma etapahistórica, submergir-se na empiriados fenômenos exteriores e abstrair,a partir deles, as determinações fun-damentais do todo. Nesse processo,o método não existe fora do conteú-do. É a maneira como o conteúdo vaise revelando e assumindo uma for-ma racional através de um trabalhode investigação (ROCHABRÚN, 1974:5 e 20).

Por outro lado, analisar a relaçãoentre universidade e sociedade signi-fica, já de início, enfrentar-se o fatorcomplicador derivado da não unifor-midade disso que se chama de socie-dade. Aqui ela não será entendida co-mo um todo único, contínuo, tenden-do à harmonia, como a queriam DUR-KHEIM e os positivistas em geral. Aocontrário, trata-se de uma organiza-ção extremamente heterogênea, es-tratificada, cujas desigualdades de ba-se estrutural redundam em que osinteresses de uma classe ou de umgrupo, muitas vezes, se contrapo-nham aos de outro. Assim, a afirma-ção de que a universidade deve estarvoltada à sociedade na qual se inserese torna bastante abstrata, até porquea própria universidade não se apre-senta como um todo harmônico econtínuo, mas é um dos locus espe-ciais da contradição.

Tendo-se, portanto, uma sociedadeestratificada e não sendo neutra a in-serção da universidade, cabe a pergun-ta: com que setores sociais a universi-dade tem estado articulada, ou com-prometida, no correr de sua história?

Como foi afirmado, a análise de suagênese permite inferir um comprome-timento, embora não isento de contra-dições, da universidade, desde o seunascedouro, com as classes que de-têm o poder.

O marco do surgimento da universi-dade, na Idade Média, está entre o ano1.100 e 1.200, quando a Europa oci-dental foi atingida por “(...) um grandeafluxo de novos conhecimentos, emparte através da Itália e da Sicília, massobretudo através dos estudiosos ára-bes da Espanha” (HASKINS, 1923: 32).O poder da Igreja como detentora úni-ca do conhecimento científico estavasendo abalado, mas com firmes movi-mentos de resistência.

A História deixa entrever que, em-bora muitas vezes entendidas comoisoladas da sociedade, as universida-des medievais, dentre as quais as uni-versidades de Bolonha e de Paris, sãoconsideradas as primeiras, na verdade“(...) exerceram um papel preponde-rante na edificação e consolidação dacristandade, na medida em que forne-ciam os quadros (eclesiásticos e civis)de que esta necessitava para sua sus-tentação, (naquele momento históri-co)” (FAGUNDES, 1985: 15). Assim,por exemplo, Santo Tomás de Aquino,que cumpriu um papel muito impor-tante para a resistência e rearticulaçãoda Igreja, foi professor da universidadede Paris.

Importa ratificar que as universida-des cumpriam, portanto, uma funçãovoltada para um determinado gruposocial, e não para todos, conforme apalavra universidade pode sugerir 1.

De fato, quando a revolução bur-guesa deslocou o poder para as mãosdos capitalistas, também a universida-de sofreu mudanças de configuração.O movimento da Reforma, restringin-do o poder do clero, assim como oRenascimento e sua ênfase no desen-volvimento da ciência, entre os demais

fatos do contexto, reestruturaram a so-ciedade e, como não podia deixar deser, a universidade.

A chamada universidade moderna,segundo os historiadores, tem seu mar-co na Alemanha. Instituída por Hum-boldt sobre um projeto de Schleierma-cher, no início do século XIX, foi “(...) es-truturada com objetivos bem precisos;a ênfase recai sobre as atividades cien-tíficas, com plena liberdade de investi-gação, tendo em vista o desenvolvi-mento da Alemanha e a sua unificaçãocultural” (FAGUNDES, 1985: 20).

Tais análises põem em questiona-mento a idéia de alguns de que a uni-versidade se encontra isolada do con-texto e da sociedade, de cuja concep-ção vem o famoso e antigo epíteto de“Torre de Marfim”. Existe aí, portanto, orisco de se atribuir à universidade umafalaciosa neutralidade. O que se cons-tata, muitas vezes, é o afastamento emque essa instituição se coloca frente àsnecessidades concretas daqueles quedela costumam ser excluídos, o quenão significa, como se viu, distância detodos os setores sociais. Conclui-se,assim, que embora muitas vezes, à pri-meira vista, a universidade possa me-recer o referido epíteto, na verdade,sempre esteve comprometida comrestritos setores da sociedade.

Ocorre queA universidade é uma idéia histó-

rica. Somente a partir de sua criaçãoe da identificação dos rumos que elatomou, como parte de uma realida-de concreta, historicamente condicio-nada e em íntima relação com osvalores e demais instituições da so-ciedade podemos chegar a apreen-der sua essência. (...) A universidadeconcreta sintetiza o histórico, o cultu-ral, o político, o econômico, ou seja,sintetiza a realidade humana em seuconjunto (FÁVERO, 1980: 10 e 113).

Sendo essa uma síntese contraditó-

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Educação e Trabalho Docente

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

ria, propicia em contextos determina-dos o surgimento de movimentos rei-vindicatórios, uma vez que a preocu-pação com as desigualdades sociaisnão deixa de atingi-la. Tais movimen-tos resultam em tentativas de se colo-car a universidade também a serviçodos excluídos ou dos variados setoressociais. As pressões, internas e/ou ex-ternas, daí resultantes são mais oumenos eficazes, dependendo da con-juntura.

Pressionar no sentido de que a uni-versidade se volte às demandas dosexcluídos exige a compreensão de umfator preponderante nesse movimen-to: a desigualdade social, que temmarcado as sociedades. Desde épocasremotas como a antigüidade clássica,esse tema vem desafiando filósofos asobre ele se pronunciar, seja de umponto de vista conservador do statusquo, procurando justificar a desigual-dade social, seja visando ao seu ani-quilamento.

É interessante lembrar que a teorialiberal combate a distinção entre oshomens. Porém, a desigualdade que,na sua gênese, estava em foco era aque separava os homens nobres, desangue azul, daqueles que, de possedo capital, se apoderavam do poder.Mas, na verdade, tratava-se de “(...)mudar para que tudo permanecessetal como era”, palavras com que LAM-PEDUSA exprime a situação pelo per-sonagem Tancredi, no célebre “Il Gat-topardo” (1995: 41).

Assim, o impasse ocorreu quando omesmo discurso liberal passou a serusado para a defesa dos trabalhado-res, já que

(...) a burguesia vive em guerraperpétua; primeiro, contra a aristo-cracia; depois, contra as frações daprópria burguesia cujos interesses seencontram em conflito com os pro-gressos da indústria; e sempre con-tra a burguesia dos países estrangei-

ros. Em todas essas lutas, vê-se força-da a apelar para o proletariado, re-clamar seu concurso e arrastá-lo as-sim para o movimento político, demodo que a burguesia fornece aosproletários os elementos de sua pró-pria educação política, isto é, armascontra ela própria (MARX e ENGELS,s/d: 29).

A questão da desigualdade entre oshomens representou, portanto, umgrande desafio na fase das revoluçõesburguesas. Prova disso foi o fato deque, em 1754, J.J. ROUSSEAU partici-pou de um concurso que premiariaquem melhor tratasse o tema. Na oca-sião, esse pensador escreveu e apre-sentou o seu famoso “Discurso sobre aorigem e os fundamentos da desigual-dade entre os homens” (1997: 9/10).

Para ROUSSEAU, a gênese do pro-blema encontra-se no momento emque a harmonia do convívio que ha-via entre os homens primitivos foiquebrada pelo estabelecimento dapropriedade privada. O avanço cientí-fico tenderia, daí então, a ampliar taldisparidade.

O verdadeiro fundador da socie-dade civil foi o primeiro que, tendocercado um terreno, lembrou-se dedizer: “isto é meu” e encontrou pes-soas suficientemente simples paraacreditá-lo. Quantos crimes, guerras,assassínios, misérias e horrores nãopouparia ao gênero humano aqueleque, arrancando as estacas ou en-chendo o fosso, tivesse gritado aseus semelhantes: “Defendei-vos de

ouvir esse impostor; estareis perdi-dos se esquecerdes que os frutos sãode todos e que a terra não pertencea ninguém” (Id. Ibid.: 72).

Entretanto, PRETI, tradutor para alíngua italiana da referida obra rous-seauniana, analisa, no seu prefácio, oconceito de liberdade e de igualdade,e afirma que:

a liberdade e a igualdade da de-mocracia de Rousseau são somenteformais e abstratas, e têm significadoconcreto apenas para aqueles quepossuem a soberania. Para Rousseau,“povo” é, na realidade, sinônimo de“burguesia”. Só o pensamento socia-lista mostrará que uma verdadeirademocracia não se pode atingir semigualdade social (Id. ibid.:11).

Já por DURKHEIM a desigualdade étratada como componente necessárioà harmonia social (1952: 66).

Colocam-se obviamente no seucontraponto as idéias de Karl MARX,para quem a origem da desigualdadeentre os homens está, fundamental-mente, no modo profundamente in-justo como eles se organizam paraproduzir os bens de que necessitam. Apreocupação com a pauperização degrandes setores da população, fruto dadesigualdade, perpassa toda a obra deMARX. Atacando os economistas desua época com a arma da ironia, afir-ma:

Os representantes científicos dariqueza, os economistas, difundiramnestes países um conhecimento

94 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

A teoria liberal combate a distinção entre os homens. Porém,a desigualdade que, na sua gênese, estava em foco era a queseparava os homens nobres, de sangue azul, daqueles que,de posse do capital, se apoderavam do poder.

muito detalhado do mistério físico emoral da pobreza. Em compensação,eles provaram que não se deviatocar neste mistério, porque não erapreciso tocar no estado de coisasatual. Em sua solicitude, eles chega-ram mesmo a calcular a percenta-gem de mortalidade dos pobres, apercentagem pela qual eles devemse dizimar no interesse da riqueza eem seu próprio interesse (1987: 59).

As idéias marxianas demonstramuma atualidade impressionante. Hajavista que o mundo chega aos últimosanos do século 20 apresentando osseguintes dados:

As três pessoas mais ricas do pla-neta possuem fortuna maior que asoma dos PIBs (Produto Interno Bru-to) de 48 países, os mais pobres, ouseja, um quarto de todos os países domundo. Cerca de 3 bilhões de pes-soas, a metade de toda a humanida-de, vivem com menos de dois dólarespor dia. O fosso das desigualdadesaumentou escandalosamente nos úl-timos 20 anos. Dados de Ignacio Ra-monet, em Estratégias da Fome, edi-torial do Le Monde Diplomatique,edição de novembro (In: Jornal daCiência, 06/11/1998: 3)

A situação do Brasil não foge à regrados países de péssima distribuição derenda2, que apresentam índices depobreza escandalosos. Trata-se de umpaís “(...) no qual 52,1% da PopulaçãoEconomicamente Ativa, segundo aPesquisa Nacional por Amostra de Do-micílios (PNDA) de 1996, recebe atétrês salários mínimos (...) onde até ho-je encontramos casos de trabalho es-cravo (...) e 70% dos aposentadosrecebem um salário mínimo por mês”(JAKOBSEN, 1998, 3 cad.: 1).

Há ainda a considerar que os que seservem do referencial marxista paracompreender o mundo concreto atual

são politicamente enquadrados naesquerda. Tal termo pode parecer ana-crônico, neste momento de crise dosparadigmas; “Mas, enquanto existiremhomens cujo empenho político sejamovido por um profundo sentimentode insatisfação e de sofrimento peran-te as iniqüidades das sociedades con-temporâneas (...), eles carregarão con-sigo os ideais que há mais de umséculo têm distinguido todas as es-querdas da história” (BOBBIO, 1995a:23/24).

As idéias de Antonio GRAMSCI per-mitem estabelecer premissas básicaspara um estudo sobre o tema enfoca-do no presente trabalho. Em vários deseus escritos, encontra-se a assertivade que os intelectuais, em seu traba-lho, não devem isolar-se da popula-ção, principalmente daqueles setoresformados pelos que ele chama de sim-ples:

Um movimento filosófico só mere-ce esse nome [transforma-se emvida] na medida em que, no trabalhode elaboração de um pensamentosuperior ao senso comum e cientifi-camente coerente, jamais se esquecede permanecer em contato com os‘simples’ e, melhor dizendo, encontranesse contato a fonte dos problemasque devem ser estudados e resolvi-dos (GRAMSCI, 1996: 15)

Defendendo a superioridade da ba-se filosófica do marxismo para a com-preensão da desigualdade social,GRAMSCI afirma que

a filosofia da práxis não buscamanter os ‘simples’ na sua filosofiaprimitiva, do senso comum, mas bus-ca, ao contrário, conduzi-los a umaconcepção de vida superior. Se elaafirma a exigência do contato entreos intelectuais e os simples, não épara limitar a atividade científica epara manter uma unidade no nívelinferior das massas, mas justamente

para forjar um bloco intelectual-mo-ral, que torne politicamente possívelum progresso intelectual de massa enão apenas de pequenos grupos in-telectuais (1996: 16/17).

A consciência dos problemas soci-ais, políticos e culturais gerados pelassociedades capitalistas e a imperativanecessidade de buscar compreendê-los mediante uma cuidadosa análise,para conseguir apontar soluções, émuito marcante em GRAMSCI. O hori-zonte visado torna-se explícito quandoesse autor, ao enfatizar a tendência de-mocrática que deve direcionar a ação,afirma que ela significa, intrinsecamen-te, que “cada ‘cidadão’ possa se tornar‘governante’ e que a sociedade o colo-que, ainda que ‘abstratamente’, nascondições gerais de poder tornar-setal” (GRAMSCI, 1989: 88).

O caráter revolucionário dessas afir-mações, que têm, como se vê, sentidoprofundamente educacional, está noentendimento de que as classes so-ciais excluídas devem compreender asdeterminações que compõem essasua situação, para se mostrarem capa-zes de perceber as brechas que seabrem no movimento histórico e forta-lecer sua ação na correlação de forças.O objetivo disso é a superação dessemodo de organização social, injusto edesigual, em que se vive.

Lutando no sentido oposto, os gru-pos conservadores, quando se vêmobrigados a responder a pressões pelademocratização da universidade, o fa-zem, algumas vezes, buscando conci-liações que não interfiram nos seusinteresses. Por esse motivo, suas estra-tégias se apresentam, muitas vezes,com características de falsa democrati-zação. Porém, contraditoriamente, énesse movimento que se encontramespaços realmente democratizantes,que podem ser explicitados.

Outro dado fundamental nessa aná-

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lise é que o conhecimento, eixo do tra-balho universitário, se torna cada vezmais sistematizado à medida que mer-gulha no concreto e não quando delese afasta. Esse é um campo em que auniversidade ainda apresenta mais dú-vidas do que certezas. Já que está forade questionamento que essa institui-ção tem um papel fundamental a de-sempenhar na luta pela superação doinjusto status quo, faz-se necessário,ainda, definir como a universidadepoderá se democratizar, cumprindosua função de produzir e divulgar ciên-cia e tecnologia com o rigor devido,colocando-a ao alcance de todos enão apenas de pequenos grupos privi-legiados.

SAVIANI ratifica a necessidade de seter clareza sobre o método a ser em-pregado pela universidade nessa rela-ção. “A questão fundamental pareceser a seguinte: como a população po-de ter acesso às formas do saber siste-matizado de modo a expressar, deforma elaborada, os seus interesses, osinteresses populares?” (1980: 21, semgrifo no original).

GRAMSCI, criticando as Universi-dades Populares do seu tempo, naItália, que buscavam levar aos traba-lhadores conhecimentos básicos que odia-a-dia geralmente lhes negava, tam-bém lhes aponta justamente a falta dométodo adequado:

Os dirigentes da Universidade Po-pular sabem que a instituição queguiam deve servir para uma determi-nada categoria de pessoas, a qualnão pôde seguir estudos regularesnas escolas. E basta. Não se preocu-pam com o modo mais eficaz comoesta categoria de pessoas podeaproximar-se do mundo do conheci-mento (1976: 104, sem grifo no origi-nal.)

A questão do método, portanto, re-presenta um desafio e um vasto campo

de estudo para as forças progressistasdentro e fora da universidade.

O caso italianoDentre as possibilidades de demo-

cratização da universidade, como o in-cremento da relação com os setoressociais mais pobres, a participação de-mocrática na gestão ou a ampliaçãode cursos e conteúdos, a Itália respon-deu à pressão com ênfase na liberaçãodo acesso e dos planos de estudo,criando a chamada “UniversidadeAberta ou de Massa”, ainda agora vi-gente.

Assim, o fator explicativo principalpara o fato de muitos considerarem auniversidade italiana democrática éque o acesso à maioria de seus cursosé liberado e não há limite algum paraa escolha deles. Também não há prazopara o seu término. O país exibe, por-tanto, um alto índice de ingresso deestudantes. “Para cada 100 jovenscom idade correspondente, 36 estãomatriculados em um curso universitá-rio” (DEI, 1996: 271e 233).3 Há que seconsiderar, entretanto, que um examenacional aplicado aos que se encon-tram em vias de concluir o grau esco-lar imediatamente anterior, faz umaprimeira seleção.

A estratégia utilizada pela universi-dade italiana, no embate das forçasconservadoras com as pressões pordemocratização, mostra-se contraditó-ria, como prova o intenso debate quelá ocorre, o que não poderia deixar deacontecer em um país que tambémsofre as contradições gerais da socie-dade capitalista, embora em situaçãodiversa da do Brasil. Assim mesmo,não se pode minimizar as lições forne-cidas pelas próprias contradições da-quele processo.

A análise da liberação do acessoocorrida na Itália, a partir de 1969,(fruto do contexto do período que su-cedeu a Segunda Guerra Mundial,

quando os valores democráticos seimpunham por força da circunstânciade vitória das forças aliadas e, tam-bém, quando o sistema capitalista pas-sou por uma fase de crescimento eco-nômico em vários países), mostrouque essa via representou um ganhodas forças progressistas, mas não sig-nificou a real democratização do co-nhecimento científico. Haja vista que onúmero dos que conseguem se formarno tempo devido, nesse país, gira emtorno de apenas 30%. Assim, ao mes-mo tempo em que liberou o acesso, auniversidade italiana manteve a sele-ção, refletida na alta taxa de abando-nos.

A liberação do acesso serviu, tam-bém, para fornecer argumento aosconservadores que difundem a perver-sa ideologia de culpar a própria vítima,ao afirmar que a universidade é simdemocrática, uma vez que está abertaa todos, mas só os merecedores per-manecem.

DE FRANCESCO entende que, dian-te do grande aumento de inscritos, ainstituição “reagiu” com um forte au-mento da taxa de abandono. Se isso éproposital ou não, segundo ele não fazdiferença: “a Universidade italiana semantém elitista, mais do que se acre-dita” (1977: 663). O abandono é con-siderado, até mesmo por muitos estu-dantes, como um fracasso pessoal, oque neutraliza, em alguma medida, astensões. Assim, a passagem da univer-sidade de elite para a “de massa” au-mentou “(...) o número de jovens en-tre os quais o sistema pôde escolheros poucos destinados a subir na esca-la social”. Além disso, constrangiuaqueles que se viram obrigados aabandonar os estudos, a assumir a res-ponsabilidade desse ato, “(...) interiori-zando assim, os conteúdos ideológicosa eles transmitidos (meritocracia) e sepreparando para aceitar um papelsubalterno” (DE FRANCESCO e TRIVE-

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Educação e Trabalho Docente

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 97

Educação e Trabalho Docente

LATTO, 1976: 75). Na verdade, a correlação de forças

que contribuiu para a criação da Uni-versidade Aberta não logrou garantiras mesmas condições de ingresso, porintermédio de uma escola secundáriaunitária e de qualidade. De fato, a ex-periência da Itália demonstrou que, aomanter a diversidade de preparação naescola secundária e preservar a univer-sidade organicamente articulada prin-cipalmente com os liceus, as forçasconservadoras criaram as condiçõesantecipadas para o futuro abandonodos não merecedores. Assim, a catego-ria mérito é utilizada para justificar osaltos índices de desistência.

KUENZER analisa o mérito4, apontan-do para o fato de que ele serve à repro-dução da desigualdade, uma vez queenvolve as diferenças sociais. Não há,portanto, como justificar o fracassoescolar, no capitalismo, pela falta deesforço ou compromisso, uma vez quea distribuição desigual do saber, articu-lada às diferentes formas de relaçãocom o conhecimento e com a culturaque são facultadas a cada classe social,é a categoria básica da pedagogia nestemodo de produção. A escola, em todosos níveis, mas particularmente no supe-rior, participa deste processo de contro-le por meio da distribuição desigual, daseletividade e, neste sentido, “a escolaapenas referenda a inclusão dos incluí-dos, uma vez que é a origem de classeque determina em boa parte as diferen-ças que são atribuídas ao trabalho esco-lar” (KUENZER, 1998: 42).

Pode-se concluir da análise dodebate sobre a universidade italianaque uma intensa correlação de forçasvai procedendo às mudanças, entreavanços e recuos. O fato de ter sidomantida, até agora, a possibilidade deingresso a todos os egressos da escolasecundária superior, mesmo com umagama de problemas, faz dela uma ex-periência digna de estudo5. Esse é,

sem dúvida, um fator democratizante.Porém, a seleção continua presente ea abertura de fato, ao conhecimento,não ocorreu, o que expõe as contradi-ções do modelo.

Há que se considerar, ainda, que talobjeto: “Universidade Italiana” contémem si um cunho de abstração. Define-se, apenas, como uma unidade, noâmbito do governo central. Na verda-de, a realidade concreta mostra umagrande diversidade entre os ateneus,diversidade essa que tem caráter cultu-ral, organizativo e tradicional e reflete,de alguma forma, a artificial união dasregiões que compõem a Itália, no quese refere à língua, à cultura e à história.

Buscar-se-á, em seguida, analisarcomo o mesmo tipo de pressão, quegerou o modelo de universidade atéaqui exposto, desenvolvido pela Itália,interferiu na universidade brasileira.

O caso brasileiroNo que se refere ao número de es-

tudantes que chegam à universidade,as instituições brasileiras apresentamum maior grau de elitismo do que oencontrado na Itália. Esse país, direcio-nando sua resposta à pressão pela de-mocratização universitária para a libe-ração do acesso, mesmo contraditoria-mente, conferiu um ganho às forçasprogressistas, uma vez que a possibili-dade de que um contingente cada vezmaior da população chegue aos estu-dos universitários é um fundamentalfator de democratização. No Brasil, aocontrário, esse avanço foi inviabilizado,saindo a universidade pública quaseincólume do movimento democrati-

zante generalizado das décadas de1950 e 1960.

Porém, como a situação de desi-gualdade social da população brasilei-ra era e é muito mais crítica do quenaquele país europeu, o governo dita-torial do Brasil, implantado após ogolpe de 1964, vendo-se obrigado aresponder às pressões, o fez pela viada desmobilização forçada, mas tam-bém abrindo um flanco mediante o in-centivo à extensão universitária.

Essa constatação levou à conclusãode que a permanência da universidadepública brasileira à margem do proces-so global de democratização não ocor-reu apenas no que se refere ao acessode estudantes, mas que a via escolhi-da como resposta às pressões por de-mocratização - a extensão - reforçouesse processo. De fato, as atividadesextensionistas constituíam um apêndi-ce nas universidades, pois não eramabsorvidas pela instituição. Passavamuma falsa imagem de articulação entreuniversidade e sociedade, mas poucoafetavam o cotidiano dessas institui-ções, situação essa ainda constatávelem universidades brasileiras.

A escolha da via extensionista apre-sentou-se, entretanto, contraditória,uma vez que propiciou às forças de es-querda, dentro das universidades, al-gum espaço de ação. Assim, foi emgrande parte dentro das atividades deextensão, que representavam uma viapossível para a democratização, que osprogressistas encontraram possibilida-de de resistência e desenvolveram acrítica.

A análise do debate sobre a exten-

No que se refere ao número de estudantes que chegam àuniversidade, as instituições brasileiras apresentam ummaior grau de elitismo do que o encontrado na Itália.

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Educação e Trabalho Docente

são, que se desenvolveu com maiorintensidade na década de 80, em algu-mas universidades brasileiras, tentouesclarecer em que concepções a ex-tensão é veículo de democratização dauniversidade.

Como resultado, entende-se que aextensão não é democratizante quan-do é ativista, ou seja, quando se reduza transferir para a população determi-nadas técnicas criadas dentro da uni-versidade e se desenvolve isolada dapesquisa.

Também não o é quando serve co-mo fator de escamoteamento e des-mobilização política, o que aconteceuem resposta à pressão do movimentoestudantil brasileiro. Nesse caso, a con-dição não democratizante da extensãofoi camuflada sob a aparência de açõesque promoveriam o desenvolvimentodas regiões mais pobres do país.

A extensão não é, ainda, democrati-zante quando apresenta um caráterunicamente assistencial. O termo - uni-camente - aí empregado, tem o esco-po de ressaltar que ações assistencia-listas pontuam, eventualmente, ativi-dades extensionistas e essa é umaquestão extremamente complexa. Defato, é mais definida a forma de sesuperar o ativismo do que o assisten-cialismo. No primeiro caso, que seccio-na o pensar do agir, a superação vaiocorrer quando a extensão for desen-volvida enquanto práxis: “não ativida-de prática contraposta à teoria; (a prá-xis do homem] é a determinação daexistência humana como elaboraçãoda realidade” (KOSIK, 1976: 202). Já,quanto ao assistencialismo, as múlti-plas carências apresentadas freqüente-mente pela população envolvida nosprojetos, além de causarem impactos,exigem muitas vezes respostas imedia-tas. São emergenciais. Assim, se, porum lado, acredita-se que dar tais res-postas não compete especificamente àuniversidade, por outro, ela não conse-

gue se furtar a isso, em ocasiões cir-cunstanciais. Essa é, entretanto, umaquestão controversa que continua empauta em face da situação de extremapobreza em que se encontra aindauma grande parcela da população bra-sileira.

À análise das concepções ativistas,desmobilizadoras e assistencialistas daextensão, convém acrescentar refle-xões sobre a possibilidade de as ativi-dades extensionistas poderem apre-sentar caráter populista. Tal tema en-cerra, também, grande complexidade,pois, segundo BOBBIO, “(...) o Popu-lismo não conta efetivamente com

uma elaboração teórica orgânica e sis-temática.(...) As definições do Populis-mo se ressentem da ambigüidade con-ceptual que o próprio termo envolve”(1995b: 981). Alguns aspectos, entre-tanto, ficam definidos: o populismotem como referência uma concepçãogeral de povo, “(...) considerado comoagregado social homogêneo e comoexclusivo depositário de valores positi-vos e permanentes” (Id. ibi.: 980).Sendo assim, o populismo não é revo-lucionário e se contrapõe ao socialis-mo enquanto se aproxima do fascis-mo. “O não-povo pode ser interna-mente representado, não só por umaelite cosmopolita ou imperialista, ou(...) plutocrática, mas também por se-

tores das próprias massas populares,como, por exemplo, os movimentosde classe” (Id. ibid.: 982). Assim, “(...)as expressões ‘conspiração comunista’ou ‘conspiração imperialista’ ocorremalternativamente à boca dos líderespopulistas” (Id. ibid.: 982).

Essa breve síntese permite a afirma-ção de que as atividades extensionis-tas, no caso de apresentarem caracte-rísticas populistas, também não podemser consideradas democratizantes.

Mais preocupante ainda é a exten-são ser utilizada como veículo privile-giado de captação de recursos para auniversidade, junto à sociedade civil.

Conclui-se, portanto, que não é in-trínseca às atividades extensionistas acaracterística de elemento democrati-zante da universidade, como defen-dem os que, sem reflexões mais pro-fundas, a consideram veículo de arti-culação da universidade com a socie-dade. Pelo contrário, ela pode escamo-tear o descompromisso da universida-de para com os problemas sociais, re-presentando, assim, uma atividadeconservadora.

Porém, as possibilidades de seconstituir em veículo de democratiza-ção estão presentes quando a exten-são é desenvolvida como práxis, comodeterminado tipo de pesquisa e ensi-no em interação com a população.

Constata-se, entretanto, que essaainda não é uma concepção hegemô-nica de extensão, pois não enraizousuficientemente para enfrentar os em-bates com as políticas do poder cons-tituído.

Esse tópico também não pode dei-xar de ser abordado. No atual momen-to por que passam as universidadespúblicas brasileiras, qualquer trabalhoque se pretenda democratizante es-barra nas políticas governamentais,que expõem uma grande crise finan-ceira. Constata-se que

(...) o compromisso do Estado com

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 99

Educação e Trabalho Docente

a educação pública, obrigatória egratuita mantém-se no limite do en-sino fundamental. A partir destenível, o Estado mantém financiamen-to restrito apenas para atender asdemandas de formação de quadrose de produção da ciência e tecnolo-gia nos limites do papel que o paísocupa na divisão internacional dotrabalho (KUENZER, 1998: 54).

Adequando-se a esse contexto, aproposta do atual governo brasileirocombina aligeiramento com captaçãode recursos privados; assim tem comometa ampliar em 40% as vagas nasuniversidades públicas, mas sem au-mentar o investimento; ao contrário,reduz os recursos que deveriam ser re-passados às universidades. A políticade ampliação de vagas, nesta situaçãode corte de verbas nas universidadespúblicas, faz-se pelo aumento do nú-mero de alunos em sala-de-aula como mesmo número de professores, bi-bliotecas, laboratórios e infra-estruturaem geral, além de incentivo à educa-ção à distância. Essa proposta leva auniversidade a colocar à venda suaprodução científica, cada vez com maisintensidade, comprometendo seu ca-ráter público.

Outra face do atual quadro brasilei-ro é o rápido crescimento e fortaleci-mento da iniciativa privada, na educa-ção, especialmente nos níveis superio-res. Vale recordar que o Brasil já per-correu essa rota, quando o governoditatorial implantado em 1964 viu-sepressionado a dar respostas às reivin-dicações por democratização da uni-versidade. A ampliação de vagas, ocor-rendo principalmente em instituiçõesprivadas, além de exigir pagamento detaxas, ofereceu aos estudantes mera-mente ensino; nem pesquisa, nem asatividades ditas extensionistas. Essaestratégia retorna, com alguma diversi-dade, nos dias atuais.

Conclui-se que, uma vez compreen-didas as políticas públicas para a uni-versidade como orgânicas às deman-das atuais do Capital, faz-se necessáriocompor um espaço de construção decontra-hegemonia. Porém, em se to-mando a extensão universitária comoveículo de democratização, levanta-seum grande campo de questões queainda necessitam respostas.

NOTAS1. Na ENCICLOPEDIA ITALIANA DI SCIENZE,

LETTERE ED ARTI- Istituto Treccani Presidente:Guglielmo Marconi - Roma 1937, encontra-seque esse termo significa “lugar de estudosaberto a todos, referindo-se ao público quepodia freqüentá-la e não ao âmbito dos estu-dos.”) (1937: 722).

2. No Brasil, os 10% mais ricos detêmmais da metade da renda nacional. Já os 40%mais pobres detêm apenas 7% da renda na-cional. (Jornal do Brasil, R. J., 05/07/1996).

3. No Brasil, dados de 1994, do IBGEapontam: População na faixa de 20 a 24 anos:13.564.878. Matriculados no ensino superior:1.661.034 (12,25%). Matriculados nas IFES-363.543 (2,68%).

4. Cf.: KEUNZER, Acácia Z.- Ensino Médio eProfissional: as políticas do Estado neoliberal.- As Mudanças no Mundo do Trabalho e aEducação: Novos Desafios para a Gestão. -Globalização e Universidade: Novos Desafios.

5. Cf.: MICHELOTTO, R. M. - A Liberaçãodo Acesso e a Extensão como estratégias dedemocratização da Universidade: a experiên-cia da Itália e do Brasil. - Tese de doutorado -Univ. Federal de São Carlos, março 1999 : 28.

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*Regina Maria Michelotto é professorada Universidade Federal do Paraná

Ao se debruçar sobre as práticas edu-cacionais protestantes em Sergipe, apartir da década de 80 do século XIX,este artigo vislumbra um campo depráticas e saberes que ajudam a com-preender a história da educação pro-testante no Brasil. Assim, me propo-nho a fazer uma exposição inicialacerca da organização de instituiçõeseducacionais protestantes emSergipe, tomando como referência oprojeto educacional implementadopor missionários presbiterianos norte-americanos, por terem sido os res-ponsáveis pela inserção do protestan-tismo naquele Estado.

Aquelas escolas tornam-se objetosprivilegiados de análise dos processosde circulação, apropriação e produçãodos padrões escolares norte-america-nos por terem estendido o seu raio de

ação para além de grupos imigrados ese enraizarem através de diferentesmecanismos na cultura escolar brasi-leira, considerando que, no Brasil, aeducação funcionou como pavimenta-ção, estrada, para a passagem da cul-tura norte-americana e seu enraiza-mento em solo brasileiro, fazendo cir-cular e impondo saberes pedagógicose práticas culturais (Warde, 2000: 14).

A partir de leituras feitas, pude veri-ficar que as produções referentes àprática educativa protestante na histo-riografia educacional brasileira aindasão tímidas, algumas vezes carregadasnas tintas do espírito teológico religio-so, privilegiando mais o sudeste compouquíssimas pesquisas nas demaisregiões, o que surpreende pelo fato deprotestantismo ter estado presentequase simultaneamente em grande

parte do território brasileiro. Aquelaspráticas educacionais protestantesintroduzidas no Brasil, a partir da se-gunda metade do século XIX, conti-nuam sendo quase desconhecidasquanto aos seus objetivos e resulta-dos. Autores como Fernando de Aze-vedo2 e Jorge Nagle3, apesar de teremanalisado demoradamente a educa-ção brasileira, são tímidos no que serefere à educação protestante. Umestudo mais específico sobre a temáti-ca foi desenvolvido por Jether PereiraRamalho4, onde tratou em profundida-de sobre a prática educativa e sua rela-ção com a ideologia, porém, sem sepreocupar com os problemas históri-cos que estavam por trás daquela em-presa missionária norte-americana.Destacam-se também as obras de PeriMesquida5, Osvaldo Henrique Hack6 e

100 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento1

Práticas educacionais protestantes no século XIX: o caso de Sergipe

Leda Rejane A . Sellaro7.Entretanto, este quadro tem se mo-

dificado. A partir da década de 90 doséculo passado, estudos sobre o as-sunto têm-se intensificado. Autores co-mo Marcus Levy Bencosta8, José Ne-mésio Machado9, Josiane R. de Olivei-ra10, Lourenço Stelio Rega11, Jane Al-meida Soares12, Alcides F. Gucci13, Mô-nica Hartfield14, Alice da Silva Prado15 eRobério Souza16, se detiveram a estu-dar as práticas religiosas e educacio-nais protestantes e sua influência naformação da sociedade brasileira. Ou-tros como Lucio Kreutz17 e ArmandoAraújo Silvestre desenvolveram pes-quisas sobre o material didático utiliza-do em escolas confessionais protes-tantes e a importância da imprensaevangélica presbiteriana18.

A bibliografia existente demonstraque, após algumas tentativas de im-plantação do protestantismo no Brasilcolônia, no início do século XIX, os ale-mães, após instalarem sua primeiracolônia no sul da Bahia19 e posterior-mente no sul e sudeste do Brasil, orga-nizaram igrejas e escolas para seusdescendentes, inaugurando assim ochamado protestantismo de imigra-ção, onde aqueles grupos preocupa-vam-se em preservar o seu patrimôniocultural, cultivando a religião e a línguados seus países de origem. Não só osimigrantes alemães como também osingleses

“...estavam interessados em ampliar

o mercado para seus produtos, sendo

sua prática religiosa meramente um

dos componentes de seu ethos cultural.

Por isso ficaram fechados em suas

capelas. Os imigrantes alemães, por

seu lado, estavam buscando novo

espaço de vida e se contentavam em

praticar entre si a religião que haviam

trazido de sua terra” (Mendonça e Ve-

lasquez, 1990: 73).

Após aquele primeiro momento, a

implantação e expansão do protestan-tismo no Brasil só se efetivariam nasegunda metade do século XIX com achegada de imigrantes norte-america-nos oriundos de missões das chamadasdenominações históricas - metodistas,congregacionais, presbiterianos e batis-tas. Este segundo período denominareide propaganda ou missionário pelo fatode ter sido iniciado no país por propa-gandistas vendedores de Bíblias e pelosmissionários representantes de missõesprotestantes estrangeiras.

Como esse segundo grupo não ti-nha interesse numa expansão e ocu-pação territorial, instalou-se no Brasile organizou instituições com o objeti-vo de pôr em prática um projeto maispoderoso e arrojado - o de expansãocultural e econômica, de conquista dasmentes e dos corações. O protestantis-mo de origem missionária foi do tipoconversionista ou de evangelização di-reta, produzindo “um estilo de vidanormativo, baseado e revestido deuma ética” individualista e excludente,que vai encontrar seu fundamento nadoutrina da predestinação de Calvino(Weber, 1987: 37).

Associado ao pragmatismo ético eao liberalismo teológico, o protestan-tismo norte-americano se credenciouem apresentar à sociedade brasileiraum estilo de vida, uma moral e princí-pios que se pautassem na leitura daBíblia, na abstenção do álcool e do fu-mo, na defesa da monogamia, enfim,numa ética puritana que

“...correspondía ao lento proceso de

formación de nuevos estratos sociales

indispensable a una sociedad indus-

trial en expansión, y debía reflejar-se

en la elevación del nivel de vida indivi-

dual.” (Bastian, 1994: 107).

Como na reforma religiosa ocorridana Europa no século XVI, a difusão dapalavra impressa também chegou aoBrasil nos oitocentos, através dos mis-

sionários norte-americanos, tornandoa Bíblia acessível à população atravésda literatura, da música e do proselitis-mo, influenciando na forma de pensardo povo, inclusive dos não converti-dos. Eles sabiam da importância dapalavra escrita como meio de interlo-cução com os brasileiros alfabetizados,formadores de opinião. Analisando ocotidiano do brasileiro, missionáriospresbiterianos norte-americanos, en-viados pela Junta de Missões Estran-geiras da Igreja Presbiteriana do Nortedos Estados Unidos (PCUSA), concluí-ram que a estratégia para atingir ecompreender sua mente era

“Ir à casa deles; entrar; ler a Bíblia,

explicá-la; orar com eles, e por eles, in-

clusive por sua conversão. Identificar-

se com eles, comer sua comida, dormir

em seus catres ou no chão, em couros

curtidos. Aprender a lhes querer bem;

ir-se embora com saudades. Os natu-

rais da terra eram gente emotiva.

Viajava-se muitíssimo; mas eram via-

gens lentas, pontilhadas de paradas,

hospedagens, recados, amigos, paren-

tes, conversas noite a dentro, leituras

da Bíblia, explicações, orações, e as

amizades nascendo, enleiando-se,

abrindo-se a mente - dos missionários”

(Ribeiro, 1981: 95)

Das cidades do Rio de Janeiro e deSão Paulo, missões protestantes norte-americanas, em conjunto com as So-ciedades Bíblicas, despacharam mis-sionários e vendedores de Bíblias paraos mais distantes pontos do país, indotanto para a zona rural quanto às cida-des mais desenvolvidas, que tivessemum comércio e uma vida cultural e po-lítica promissores. Utilizando-se dasestratégias da prédica e da propagan-da, através publicação de artigos elivros na imprensa, para instalar suasigrejas e escolas, vendendo e distri-buindo Bíblias, Novos Testamentos, li-vros e folhetos, aquelas instituições re-

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 101UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

ligiosas protestantes promoveramtransformações culturais que foramsentidas nas mudanças de comporta-mento, nos hábitos, enfim, no cotidia-no de parte dos brasileiros.

Aqueles impressos de destinaçãoreligiosa e pedagógica no país impu-nham o domínio de saberes e a nor-matização de práticas determinadospor aquelas instituições religiosas. Deacordo com Carvalho, “analisados co-mo produtos de estratégias determi-nadas, os materiais deixam ler asmarcas de usos prescritos e de desti-natários visados” afirmando aindaque “é a partilha de um conjunto de-terminado de códigos culturais quedistingue as práticas de apropriação,definindo comunidades distintas deusuários e configurando os usos quefazem de objetos e dos modelos cultu-rais que lhes são impostos” (Carvalho,1998: 36).

As incursões protestantes que resul-taram em sua inserção definitiva nonorte e nordeste brasileiro deram-seinicialmente através da ação de mis-sionários daquele grupo. Em 1860, Ri-chard Holden, patrocinado pelo Con-selho de Missões da Igreja Episcopalnorte-americana, instalou-se em Be-lém, iniciando um programa de propa-ganda religiosa nos dois principais jor-

nais da cidade - o Jornal do Amazonase o Diário do Grão-Pará - publicando oEvangelho de São Mateus e as Epísto-las de São Paulo, dentre outros. Fu-gindo à orientação da organização queo mandou trabalhar “quietamente”sem provocar polêmicas e sem envol-ver-se com a política da cidade, aca-bou provocando conflitos com os re-presentantes da Igreja Católica local,culminando assim com sua transferên-cia para a Bahia. Já em 1862, chegou ocolportor espanhol Thomaz Gallart pa-ra ajudá-lo. Após um ano, Pedro No-lasco de Andrade juntou-se ao grupo.Entretanto, por tumultos provocadosna imprensa entre eles e as autorida-des clericais locais, Holden foi proibidopela sua instituição de origem em con-tinuar os embates travados, abando-nando posteriormente a Bahia, deixan-do, porém, seus vendedores lá.

Sete anos depois de sua saída, em1871, chegou à Bahia o reverendoFrancis Joseph Schneider que, junta-mente com Houston e Blackford, for-maram o primeiro núcleo de missioná-rios presbiterianos no nordeste vincu-lados ao “Brazil Mission”. Esta institui-ção estava vinculada à Igreja Presbi-teriana do Norte dos Estados Unidos(PCUSA), com sede em Nova Iorque.Pela grande extensão territorial dopaís, em 1897, a “Brazil Mission” divi-diu-se em “South Brazil Mission” e“Central Brazil Mission”, esta responsá-vel pela implantação do protestantis-mo naqueles dois Estados. Coube aSchneider a organização da primeiraigreja presbiteriana na capital baiana,em 18 de abril de 1872, e a Blackford

a instalação da primeira igreja presbi-teriana em Sergipe, no ano de 1884.

Entretanto, já em 1859, com o intui-to de expandir as fronteiras protestan-tes na América do Sul, a PCUSA produ-ziu um documento onde propunhaque fosse mandado ao Brasil um re-presentante da instituição com a finali-dade de explorar o território e conhe-cer melhor a cultura brasileira. É inte-ressante observar o grau de conheci-mento que aquela instituição possuíasobre a geografia e a situação políticae cultural brasileiras e qual deveria sero plano adotado:

“Já há algum tempo que a comuni-

dade cristã tem tido sua atenção volta-

da para o Brasil como campo atraente

para o trabalho missionário, com apelo

especial às igrejas evangélicas deste

país. O território brasileiro é mais vasto

que o nosso; o clima é igualmente

variado e saudável; o solo se presta

tanto a produtos de clima temperado

como de clima tropical; a população

ainda é relativamente pequena; os

recursos, ricos e vários, ainda estão em

grande parte inexplorados. Mas há for-

ças em ação, tanto na Europa como no

Brasil, que rapidamente atraem ao últi-

mo grande número de imigrantes. (...) É

de alta importância para seu presente e

para seu bem-estar futuro, que a mente

nacional esteja imbuída de idéias e

princípios religiosos corretos, e estes

deverão proceder, em primeiro lugar,

das igrejas evangélicas de nosso país.

(...) É certo que o catolicismo romano é

a religião oficial do país, mas o governo

é liberal, e também o é grande parte

das classes mais inteligentes; ao mesmo

tempo, a tolerância religiosa é garanti-

da por textos legais. (...)sem dúvida mis-

são será um tanto experimental. Seus

primeiros objetivos serão: explorar o ter-

ritório, verificar os meios de atingir com

sucesso a mente dos naturais da terra, e

testar até que ponto a legislação favorá-

vel à tolerância religiosa será antida. Se

102 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

A percepção do “modus vivendi” do brasileiro orientou os primeiros missionários presbiterianos norte-americanos a reestruturarem seu plano de ação, no qual a educação, aliada à propaganda, funcionariamcomo estratégias de aproximação.

o resultado dessas investigações for

positivo - e temos plenas razões para

supor que sim - a missão poderá depois

ser ampliada em termos que as circuns-

tâncias justifique” (Ribeiro, 1973: 17, 18).

Com esses dados em mãos, a Juntade Nova Iorque inicialmente elaborouum plano de expansão missionáriatendo a evangelização como principalobjetivo. Entretanto, a percepção do“modus vivendi” do brasileiro orientouos primeiros missionários presbiteria-nos norte-americanos a reestrutura-rem seu plano de ação, no qual a edu-cação, aliada à propaganda, funciona-riam como estratégias de aproxima-ção, apresentando os ideais de umacivilização cristã moldada no protes-tantismo. Esses fatos vêm corroborarcom o pensamento de Warde:

“(...)os Estados Unidos desencadea-

ram, desde o século XIX, uma política

sistemática e de longo prazo de esqua-

drinhamento de todas as demais socie-

dades para 1a apropriação e difusão ‘-

seletiva’ de padrões culturais vigentes

em tais agrupamentos societários”

(Warde, 2000: 9).

À constatação do alto índice deanalfabetismo, observaram que preci-sariam oferecer à população protes-tante um sistema educacional alterna-tivo, para que o converso fosse capazde pelo menos ler a Bíblia, o livro dehinos (pois a música era um forte ele-mento conversionista) e outras litera-turas religiosas; ou escrever atas, regis-

tros de batismos ou casamentos, sen-do indispensável que ele tivesse omínimo preparo intelectual para a suaintegração no grupo. Os missionáriospresbiterianos demonstraram que erapreciso oferecer à suas comunidadeso ensino primário através das escolaschamadas “paroquiais” e organizar osgrandes colégios nas principais cida-des brasileiras, para formarem os pas-tores para as igrejas e professores parasuas escolas, como também educaremos filhos da classe dominante que,mesmo sem se converterem ao pro-testantismo, provavelmente seriam to-lerantes em relação à nova religião.

A empresa missionária presbiteriananorte-americana, através da ação edu-cativa de seus colégios, tinha como me-ta o estabelecimento de uma civilizaçãocristã, diferente da que eles encontra-ram no Brasil, na qual os ideais, o modode pensar, os costumes e hábitos so-ciais do povo e suas instituições políti-cas tinham uma relação simbiótica coma religião católica. Os princípios nortea-dores de seus estabelecimentos de en-sino seriam semelhantes aos do siste-ma educacional norte-americano:

“Escola mista, liberdade religiosa,

política e social. Educação baseada

nos princípios da moral cristã, segundo

as normas das Santas Escrituras, aten-

dendo ao conceito protestante que ex-

clui da escola a campanha religiosa,

limitando-se às questões de moralida-

de ética, contidas no ensino de Cristo”

(Hack, 1985: 72).

O projeto educacional presbiterianoproposto para o país previa a instala-ção de uma escola logo após a organi-zação da igreja e uma das estratégiasque aqueles missionários norte-ameri-canos utilizavam era a organização deuma igreja e de uma escola no centroeconômico e cultural da cidade e aprovíncia de Sergipe não fugiu à regra.Depois de fazer um reconhecimento

para ver qual cidade tinha o maior mo-vimento político, cultural e comercial,aqueles missionários escolheram La-ranjeiras.

Em 1885, o Relatório do Presidenteda Província descrevia a situação do en-sino em Sergipe, mostrando que apesardos esforços investidos, a Instrução Pri-mária não correspondia às necessida-des locais, “a despeito das inumeras re-formas porque há passado”. Para o Pre-sidente isso se devia à falta

“...de mestre habilitado, que saiba

transmitir proveitozamente o ensino e

que considere o magistério como um

sacerdocio e nunca como um simples

meio de vida. É verdade que os pode-

res provinciais teem procurado disse-

minar a instrução, estabelecendo ca-

deiras em todos os centros populares,

(...); mas esse sacrifício não é compen-

sado pelos resultados que se colhem, e

a cauza encontra-se na consideração

de que acima me ocupei”(Relatório do

Presidente da Província, 1884: 6).

Foi dentro dessa realidade que aMissão Central do Brasil, dois anos de-pois de organizar a igreja presbiterianade Sergipe, fundou a primeira institui-ção educacional protestante - a EscolaAmericana -, instalada em 1886 na ci-dade de Laranjeiras, sob a direção dobaiano e presbiteriano professor Ma-noel Nunes da Motta. Funcionava naandar térreo do Sobrado dos Protes-tantes, como ficou conhecida a casa,na rua Comandaroba, nº 131, que naépoca era a via de escoamento dos en-genhos, cortando a cidade de um ex-tremo a outro. Seguindo o padrãoeducacional da Missão, a escola, alémde oferecer os cursos primário e se-cundário para ambos os sexos, recebiatambém alunos não-crentes e possuíainternatos masculino e feminino (Mi-nutes of the Meetings of the CentralBrazil Mission, 1896-1912). Como asmensalidades eram baixas, as crianças

Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 103

Educação e Trabalho Docente

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

menos favorecidas podiam frequentá-la. As aulas eram ministradas por pro-fessoras norte-americanas e nas disci-plinas oferecidas no secundário cons-tavam de Aritmética, Geografia, Inglês,Português, Francês, Prendas e Música(Livro de Matrícula do Ensino Parti-cular, 1900: 8).

Na época, os jornais locais não sereportaram à existência da escola,dando ênfase só aos polêmicos emba-tes travados entre os católicos e osconvertidos à nova fé. No entanto, umfato curioso é que, a partir do ano de1886, começaram a aparecer notíciasde alguns colégios particulares nos jor-nais laranjeirenses e, dentre eles, doColégio Inglês. Filiado ao Colégio deNossa Senhora da Graça, na Provínciade Pernambuco, oferecia educaçãosecundária ao sexo feminino, admitin-do alunas externas e internas, sob adireção de Miss Anne Carol e de Júliade Oliveira, auxiliadas por Laura deOliveira. O ano letivo ia do dia 15 dejaneiro a 30 de novembro. Tinha noseu currículo as seguintes matérias:Primeiras Letras, Religião, Português,Francês, Inglês, Alemão, Geografia, His-tória Universal, Piano, Desenho, Pin-tura de aquarela, Pintura a óleo, Pin-tura sobre espelhos, Bordados de to-das as qualidades, flores artificiais etc.Apesar das inovações curriculares, oColégio não oferecia educação paraambos os sexos (O Horizonte, Laran-jeiras, 24/12/1886, n.28, p.04).

Vários artigos foram escritos sobre oColégio Inglês, a despeito do silencia-mento da imprensa no que se refere à

Escola Americana. O que pode ser lidonas entrelinhas foi que as investidas fei-tas pelos missionários na área educa-cional sergipana provavelmente inco-modaram a elite religiosa, cultural epolítica da cidade. Uma carta da sra. LilyFinley, esposa do missionário Wood-ward Edmund Finley, falava “do esforçodo padre para desviar os alunos da es-cola” (Ferreira, 1992, v.1: 474).

Causou-me estranheza que, apesardos jornais da época defenderem aliberdade de pensamento e a liberda-de religiosa, abrindo espaço para regis-trar as querelas religiosas, inicialmentenão publicaram uma linha sequersobre a instituição educacional protes-tante trazida para Sergipe pelos presbi-terianos norte-americanos. Já o quasesilenciamento por parte das institui-ções oficiais do Estado, talvez tenha sedado pelo fato de que geralmente osestabelecimentos particulares quasenão apresentavam a exposição desuas atividades aos inspetores literá-rios.

Exemplo disso foi a publicação, emnovembro de 1893, no jornal O Muni-cipio, de parte do Relatório referenteao Ensino Particular, de 11 de agostode 1893, em que o Dr. Vicente FerreiraPassos, Diretor Geral da Instrução Pú-blica, reportava-se ao Edital do dia 17de maio daquele ano, convocando “to-dos os professores particulares a cum-prirem o disposto no Art. 318 nº 1,2,3sob pena de ser-lhes aplicadas as pe-nas do Art. 319 e do Art. 20, na reinci-dência”; e uma Circular aos InspetoresLiterários para que aquela instituição

pudesse “organizar com a possívelpresteza a estatística do ensino minis-trado nas escolas do Estado” lem-brando-lhes a responsabilidade que ti-nham sobre o ensino particular20. Ain-da referia-se ao Artigo nº 318, do Re-gulamento da Instrução Pública quedeterminava a obrigatoriedade dos di-retores de escolas particulares em co-municar todo o movimento escolar.No entanto, na prática isso não ocorria,tornando impossível avaliar aquelasinstituições21.

Com o advento da República, Felis-belo Freire foi indicado para assumir apresidência do Estado de Sergipe e,poucos dias após a sua posse, desig-nou uma comissão para reformular osetor educacional. Para ele era neces-sária uma reforma radical na InstruçãoPública pelo “verdadeiro estado dedesorganização em que se encontravao sistema educacional sergipano acar-retando grande desproveito para oensino e portanto para as classes po-pulares.” (Nunes, 1984: 179). Dentrodaquela realidade, em 1892, a EscolaAmericana, sob a direção do reveren-do Finley, tinha um professor, provavel-mente brasileiro. No ano seguinte, jácontava com mais um, e dois anos de-pois, a Missão mandou Miss Clara E.Hough para lecionar. Em 1895, o colé-gio oferecia internato para ambos ossexos e contava com 45 alunos (Fer-reira, 1992, v.I: 474).

A estratégia de enviar convertidosao protestantismo para os EstadosUnidos com o objetivo de aprenderemnovos métodos de ensino, tornando-se veiculadores da cultura norte-ame-ricana no Brasil, também foi utilizadaem Sergipe. O primeiro caso que loca-lizei foi o de Penélope Magalhães(14/08/1886-1982), laranjeirense, fu-tura professora e pianista. Como a Es-cola Americana oferecia aulas de músi-ca, a menina Penélope logo se interes-sou a aprender piano. Convidaram-na

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Educação e Trabalho Docente

A estratégia de enviar convertidos ao protestantismo para osEstados Unidos com o objetivo de aprenderem novos métodos de ensino, tornando-se veiculadores da culturanorte-americana no Brasil, também foi utilizada em Sergipe.

em 1898 para estudar na Califórniaonde fez o curso regular pedagógicoe o de teologia, retornando em 1910para ensinar no Instituto Ponte Nova,na Bahia. Anos depois, já casada, as-sumiu a cátedra de Inglês na EscolaNormal Rui Barbosa, em Aracaju, en-sinando também em outros colégiosparticulares.

No início dos anos 30, o Jardim deInfância Augusto Maynard Gomes foi oprimeiro estabelecimento educacionala ser construído em Aracaju seguindoo modelo de educação infantil maismoderno da época e implantando ométodo de alfabetização mais atualque existia. A professora Penélope foidesignada pelo governador AugustoMaynard Gomes para ir a São Paulo eao Rio de Janeiro verificar a legislaçãoe currículos que se adequariam aoprojeto do Jardim, de acordo com ospadrões técnicos do Ministério de Edu-cação, sendo ela a fundadora e primei-ra diretora do Jardim.

Caso semelhante foi o do reverendoAntônio Almeida (11/07/1879-1969).Nascido em Frei Paulo, foi evangeliza-do pelo reverendo Bixler quando tra-balhava no povoado de Urubutinga.Numa de suas visitas, o missionárioouviu no meio do mato alguém repe-tindo o sermão que ele havia pregadono domingo anterior. A pergunta feitapelo pastor - “Você quer se prepararpara ser pastor?” - mudaria a vida da-quele jovem analfabeto. Foi aluno daEscola Americana em 1900 e 1901 e,posteriormente, a Missão mandou-opara o Colégio 15 de Novembro, emGaranhuns. Bacharelou-se no UnionTheological Seminary, em Richmond,Virgínia, nos Estados Unidos, fazendo oDoutorado em Divindade na Faculda-de de Ensino Superior King College,em Bristol, Tennesse (Hilton, 1948: 5,6). Ao regressar ao Brasil, assumiu adireção da Escola Teológica, agora emRecife e, posteriormente, foi um dos

fundadores do Seminário Presbiteria-no do Norte.

O ano de 1898 foi decisivo para aárea educacional da Missão Central.Os dados registrados davam a enten-der que suas escolas estavam passan-do por problemas financeiros, sendonecessário reestruturá-las de acordocom o modelo do Colégio Protestantede São Paulo, prevendo uma homoge-neização naquele setor. Um planoeducacional foi encaminhado e apro-vado pelo diretor daquela instituição, oreverendo Horace Lane, ficando sob aresponsabilidade do missionário Wil-liam Alfred Waddell a superintendên-cia das escolas da Missão. O plano, im-plementado a partir de 1901, propu-nha a sistematização de suas escolasda seguinte forma:

“1º - O Presidente do Colégio Pro-

testante (ou quando este estivesse au-

sente, o Decano), será o superinten-

dente das escolas da Missão Central,

com total autoridade sobre as mes-

mas;

2º - O Presidente designará os dire-

tores dessas escolas, e pessoalmente

inspecionará o trabalhos deles, para

que as escolas mantenham a qualida-

de. Se ele não puder ir, mandará um

subordinado para inspecioná-las;

3º - Ele pessoalmente, ou seu subs-

tituto, apresentará para a Missão um

relatório anual das atividades das es-

colas, demonstrando se as estimativas

propostas para o período foram alcan-

çadas;

4º - Os professores contratados pelo

escritório da Missão não terão direito a

voto nas questões referentes às esco-

las;

5º - O missionário residente será

consultado em todas as questões que

afetarem o relacionamento entre a es-

cola e o público em geral” (Minutes of

the Meetings of the Central Brazil Mis-

sion, 1897-1912 - 19/01/1898).

Durante os quatorze anos de funcio-namento em Laranjeiras, a Escola Ame-ricana foi freqüentada pelos filhos dosdonos de engenho. Entretanto, em de-corrência da seca que se abatera emSergipe naquele período, muitos delesfaliram, impedindo-os de mandaremseus filhos para a escola. Este fato mui-to contribuiu na decisão da Missão emtransferi-la para Aracaju e,a partir dodia 6 de fevereiro de 1899, a EscolaAmericana oferecia à população estu-dantil da capital um externato para am-bos os sexos, com os cursos primário(20$000 réis por trimestre - 10 sema-nas) e o intermediário (30$000 réis portrimestre - 10 semanas); e um interna-to para o sexo feminino (O Estado deSergipe, 4/12/1898, n. 123, p. 04). Aprofessora Clara Hough ainda ensinouem Aracaju aproximadamente por setemeses, seguindo para as escolas da Ba-hia, vindo a substituí-la a missionária-professora Elizabeth R. Williamson (Mi-nutes of the Meetings of the CentralBrazil Mission, 1896-1912).

No início de 1900, funcionando naRua Aurora, nº 7, sob a direção do re-verendo Finley, a escola contava com50 alunos matriculados e dois profes-sores, oferecendo internato e externa-to para ambos os sexos. Foi considera-da pelo Diretor da Instrução Pública,juntamente com o Colégio Brasil, osmelhores estabelecimentos particula-res de ensino em Sergipe. Em 1902, oreverendo Finley publicou no jornal alista dos aprovados e dentre eles esta-vam o seu próprio filho e Jackson deFigueiredo, futuro paladino do pensa-mento católico, aluno da escola até1905 (O Estado de Sergipe, Aracaju,

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 105UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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25/11/1900, n. 668, p. 01 e n. 672,30/11/1900, p. 03).

No ano letivo de 1901, a escola tinhaum corpo docente de seis professores(incluindo uma professora de Prendas eum professor de Música) e se conside-rava “pronta a dar uma educação se-gundo os últimos métodos pedagógi-cos a todos os alunos que forem confia-dos a seu cuidado” (O Estado de Sergi-pe, Aracaju, 30/11/1900, n. 672, p. 03).Os novos professores eram sergipanos,pois a direção tinha descartado a hipó-tese de contratar professores do sul dopaís, para racionalizar as despesas, poiscomo a crise financeira também se aba-tera na Missão Central desde 1900, pes-soas da própria comunidade foram pre-paradas pelos missionários para assu-mirem o ensino de suas escolas paro-quiais. Exemplo disso foi a incorporaçãode Walter Cameron Donald (06/01/-1883-06/03/1967), no quadro educa-cional da Missão a partir de 190421.

Naquele mesmo ano, a Missão trans-feriu o reverendo Finley e Elizabeth Wil-liamson para a Bahia e fechou os inter-natos da Escola Americana, designandoa professora Anne Belle Mc Phersonpara dirigi-la até 1905 (O Estado de Ser-gipe, 23/01/1904, nº 1563, p.02). Apartir daí, o colégio tornou-se uma e-scola paroquial, oferecendo somente ocurso Primário (Minutes of the Meetin-gs of the Central Brazil Mission, 1904-1938: 12-19/12/1904).

No período em que as regiões daBahia e de Sergipe ficaram sob a lide-rança do reverendo William AlfredWaddell, os missionários da Junta deNova Iorque organizaram mais de qua-renta escolas paroquiais e alguns colé-gios. Semelhante a outras escolaspresbiterianas, aqueles missionáriosinicialmente instalaram em Laranjeiras,em 1886, a Escola Americana organi-zando outras posteriormente em Ara-caju, Estância, Simão Dias, Urubutinga,Riachuelo e Frei Paulo.

Entretanto, após o ano de 1911, aEscola Americana desaparece definiti-vamente dos registros oficiais do Es-tado e dos jornais. No Livro de Atas daMissão Central do Brasil (1904-1938),existem registros sobre ela até o anode 1913. A paulatina retirada dos mis-sionários de Sergipe denota que, ape-sar da avaliação positiva do seu setoreducacional, a Missão decidiu limitar-se à evangelização e concentrar seutrabalho educacional na Bahia.

É interessante notar que o fecha-mento da escola deu-se num momen-to em que a vida cultural e a área edu-cacional em Sergipe tomavam um no-vo alento. Exemplo disso foi a inaugu-ração da Escola de Aprendizes de Ar-tífices. em 1º de maio de 1910. Outroacontecimento que marcaria a vidacultural sergipana seria a criação daDiocese de Aracaju naquele mesmoano. Na mesma época, os colégiosparticulares voltaram a proliferar, des-tacando-se, dentre outros, o GrêmioEscolar sob a direção de EvangelinoFaro, fundado em 1906, em Laranjei-ras, e transferido para Aracaju, em1909; o Colégio Tobias Barreto, funda-do em Estância, em 1909 e transferidopara Aracaju, em 1913, sob a direçãodo professor José Alencar Cardoso; oColégio Salesiano N. S. Auxiliadora,fundado em 1909, em Aracaju; o Co-légio Senhora Sant’Ana e o Colégio N.S. de Lourdes, também em Aracaju22.

Durante quase três décadas (1884-1913), a denominação presbiterianafoi a única instituição protestante pre-sente no Estado de Sergipe, desenvol-vendo um extenso trabalho de evan-

gelização e utilizando-se da educaçãocomo estratégia missionária. A MissãoCentral do Brasil, através dos seus mis-sionários-professores, evangelistas ecolportores (vendedores ambulantesde material impresso protestante), or-ganizou congregações e igrejas em ci-dades, povoados, fazendas e sítios lon-gínquos, em muitas delas funcionandouma escola ao lado.

Nagle se referindo às escolas instala-das pelos missionários presbiterianosnorte-americanos em São Paulo afirmaque elas facilitaram a penetração eaceitação daquela ‘nova pedagogia’(Nagle, 1974: 283) que facultaria a for-mação do homem ‘novo’, apto para asnovas civilizações e para as novas for-mas de produção e trabalho (Warde,2000: 13, 14). O mesmo pode-se dizerque aconteceu em Sergipe, pois aque-las instituições, na medida do possível,seguiam o mesmo modelo das escolaspúblicas norte-americanas, não só naarquitetura mas principalmente nosmétodos e nas práticas pedagógicas.Elas funcionaram com o propósito deinstitucionalizar os hábitos, a alimenta-ção, a maneira de ser, sentir e viver,procurando refletir a concepção norte-americana de educação, facultandoassim o projeto cultural norte-america-no, o qual apresentou-se como parâ-metro de progressos, felicidade, demo-cracia, civilização, bem-estar.

NOTAS1. Doutoranda em História da Educação

pela Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo. Professora da Rede Pública Estadual deSergipe.

2. AZEVEDO, Fernando de. 1996. A cultura

A denominação presbiteriana foi a única instituição protestante presente no Estado de Sergipe, desenvolvendoum extenso trabalho de evangelização e utilizando-se daeducação como estratégia missionária.

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19. De acordo com Nascimeno,”a coloni-zação alemã no Brasil começou em 1818,com a fundação da Colônia Leopoldina nomunicípio de Mucuri, sul da Bahia, pelo côn-sul alemão Peter Peycke e pelos naturalistasG. W. Freireiss e Morhardt. (...) Eram 161 pes-soas que se estabeleceram na margemesquerda do rio Cachoeira, próximo ao atualmunicípio de Ilhéus.” NASCIMENTO, Jorge C.do. A cultura ocultada. P.126.

20. Em 1900, o Diretor da Instrução Pri-mária se reportou a esse mesmo problemamostrando a dissonância de realidades dasescolas públicas para as particulares, afirman-do ser impossível “acusar um número total defreqüência nas escolas particulares; os direto-res esquivam-se a cientificar a Diretoria o mo-vimento das mesmas.” O Estado de Sergipe,Aracaju, 25/11/1900, n. 668, p. 01.

21. Walter C. Donald ensinou nas escolasparoquiais presbiterianas das cidades de Ara-caju, Laranjeiras, Riachuelo, Estância e SimãoDias. Na década de 1930, lecionou a discipli-na Inglês, no Colégio Atheneu Sergipense,onde adotava o livro “The English GymnasialGrammar, Méthod Direct-Expository by HubertC. Bethel. Como tinha dupla nacionalidade,também foi convidado para ser Vice-Cônsulda Inglaterra em Sergipe na época da Segun-da Guerra Mundial. Entrevista realizada comsua nora, a sra. Ivonete dos Santos Donald em04/05/2000.

22. Idem, ibdem, p. 203.

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Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 107UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE108 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Educação e Trabalho Docente

Vera Lúcia Jacob Chaves **

Qualquer discussão acerca de avalia-ção é difícil e complicada tanto paracompreender como para praticar. Aavaliação é um instrumento da lógicado capital que tem assumido centrali-dade em vários países, a partir dosmeados dos anos 80, e se fortaleceuno Brasil nos governos de FHC. OExame Nacional de Cursos (Provão) ea Análise das Condições de Oferta(ACO) constituem-se em mecanismosde avaliação do ensino superior,impostos pelo governo federal queintegram a política educacional ecumpre importante papel naperspectiva de legitimação do projetopolítico capitalista global. Essesmecanismos são parte de umapolítica maior de reforma do sistemaeducacional que vem sendoimplementada de forma fragmentada,através de diferentes instrumentosnormativos que, no seu conjunto,constituem a política do governo FHCpara a educação brasileira. Talreforma segue as diretrizes do BancoMundial para os países da AméricaLatina, e faz parte da estratégiamundializada de enfrentamento dacrise de acumulação do capital,através das restrições de gastos comas políticas sociais e as políticaseducacionais, em particular.

A partir dessa compreensão, orga-nizamos nosso texto em três partes.Na primeira, procuraremos fazer umareflexão mais ampla acerca daReforma da Educação Superior que

vem sendo implementada pelosgovernos de FHC e sua relação com areestruturação global do capitalismodiante da falência do Estado-provi-dência1. Em seguida, faremos umadiscussão acerca da relação dapolítica educacional do governo comas diretrizes do Banco Mundial para a

educação brasileira, destacando oExame Nacional de Cursos (Provão) ea Análise das Condições de Oferta.Finalmente, apontaremos as propos-tas alternativas de avaliação defendi-das pelo ANDES-SN e as ações quevêm sendo desenvolvidas pelo movi-mento estudantil acerca da questão.

Exame Nacional de Cursos(Provão): isto é avaliação? *

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 109

Educação e Trabalho Docente

1. A política do governo para a educação superiorA atual política para a educação su-

perior do país está intimamente rela-cionada com a estratégia de inserçãoda economia brasileira às grandestransformações que vêm ocorrendo nabase produtiva do capitalismo em âm-bito mundial. Nesse sentido, tal políti-ca faz parte de uma reforma estruturalimposta pelos novos “senhores” domundo: o Fundo Monetário Internacio-nal - FMI, o Banco Mundial e o grupodos sete países mais industrializadosdo mundo (G7+1) que passaram aexigir mudanças estruturais nos paísesque, já endividados, buscassem a suaintegração no sistema internacional docapitalismo financeiro especulativo2.

A crise mundial do capitalismo ini-ciada nos anos 70 trouxe como resul-tado a falência do Estado-providênciae a imposição de um novo modelo deacumulação flexível que exige uma re-forma no Estado capitalista em âmbitomundial. Tal reforma tem como centra-lidade a redefinição do papel do Esta-do frente às políticas sociais, transfe-rindo funções específicas de prestadorde serviços para o mercado como for-ma de reduzir custos atingindo direta-mente as políticas educacionais.

A educação é transferida da esferapública para a do mercado sendo, por-tanto, subordinada às regras mercanti-listas. Como conseqüência, o conheci-mento deixa de ser uma construção,um processo, passando a ser tambémuma mercadoria a ser negociada nomercado. Como afirma Harvey,

O próprio saber se torna umamercadoria-chave, a ser produzida evendida a quem pagar mais, sobcondições que são elas mesmas ca-da vez mais organizadas em basescompetitivas. Universidades e Institu-tos de pesquisa competem feroz-mente por pessoal, bem como pelahonra de patentear primeiro novas

descobertas científicas (...). A produ-ção organizada do conhecimentopassou por notável expansão nas úl-timas décadas, ao mesmo tempo emque assumiu cada vez mais um cu-nho comercial (1993, p. 151)

Essa competição pelo conhecimentoimpõe uma ressignificação do processoeducativo no campo das concepções edas políticas, cuja expressão maior naAmérica Latina concretiza-se nos anos90, a partir de um movimento reformis-ta, orientado pelos organismos interna-cionais como o Fundo Monetário Inter-nacional e o Banco Mundial.

A reforma educacional imposta paraos países da América Latina pressupõea construção de uma nova configura-ção jurídica institucional e faz parte daestratégia mundializada de enfrenta-mento da crise de acumulação do ca-pital, através da restrição de gastoscom as políticas sociais e com as edu-cacionais, em particular. As diretrizesdo Banco Mundial para a educação su-perior na América Latina, sistematiza-das no documento: “La enseñanza su-perior: las lecciones derivadas de laexperiência” (1995), fundamentam-seno binômio: diferenciação e diversifi-cação das fontes.

Sobre a diferenciação de institui-ções o Banco Mundial recomenda:

A introdução de uma maior dife-renciação no ensino superior, ou se-ja, a criação de instituições não uni-versitárias e o aumento de institui-ções privadas, podem contribuir parasatisfazer a demanda cada vez ma-ior de educação superior e fazer comque os sistemas de ensino melhor seadeqüem às necessidades do merca-do de trabalho (1995, p. 31).

A tese é a de que a crise da educa-ção brasileira deriva do modelo de uni-versidade de pesquisa (modelo hum-boldtiano) que seria excessivamente

unificado e caro. Nesse sentido, a defe-sa da indissociabilidade entre ensino-pesquisa e extensão é inviável teóricae financeiramente. Daí a necessidadede estabelecer a dualidade institucio-nal: Universidades de Pesquisa e Uni-versidades de Ensino.

Para implementar tal concepção, se-guindo fielmente as determinações doBanco Mundial, o governo FHC baixouo DECRETO 2.306/97 - criando a diver-sificação das Instituições de Ensino Su-perior em cinco tipos: I Universidades;II- Centros Universitários; III FaculdadesIntegradas; IV- Faculdades; e V- Institu-tos Superiores. Uma mudança na diver-sificação das Instituições de Ensino Su-perior foi instituída pelo Decreto nº3.860 baixado no dia 9 de julho de2001, que alterou as regras de organi-zação do ensino superior e da avalia-ção de cursos e instituições.

As diferenciações institucionais vêmsendo implementadas em duas fren-tes: a) uma que engloba a classificaçãodas Instituições de Ensino Superior emtrês tipos - Universidades, Centros Uni-versitários e Institutos, Faculdades Inte-gradas e faculdades, sendo que apenasnas universidades são obrigatórias asatividades de ensino, pesquisa e exten-são; b) outras cujas Instituições sãocriadas por iniciativas de empresasmultinacionais, denominadas de uni-versidades corporativas como a FIAT,FORD, IBM, o McDonald’s (Universida-de do Hambúrguer) e outras que nego-ciam suas ações nas bolsas de valores3.

Outra exigência do Banco Mundialpara a reforma na educação superiorse refere à redução dos gastos e à de-fesa da diversificação das fontes de fi-nanciamento, como se evidencia norelatório:

(...) maior autonomia institucionalé a chave para o êxito da reforma doensino público superior, especial-mente a fim de diversificar e utilizaros recursos mais eficientemente (...)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A experiência demonstra que se sequer que as instituições estatais me-lhorem sua qualidade e eficiência,os governos deverão efetuar refor-mas importantes no financiamento afim de mobilizar mais recursos pri-vados para o ensino superior em ins-tituições estatais (...) de várias ma-neiras: mediante a participação dosestudantes nos gastos; arrecadaçãode recursos de ex-alunos; utilizaçãode fontes externas; realização deoutras atividades que gerem recei-tas (grifos nossos) (BANCO MUN-DIAL, 1995, p. 44 e 69).

O argumento é o de que o conheci-mento propiciado pelo ensino superiordeve ser visto como um investimentoprodutivo (pois garante ganhos), umbem privado ou uma mercadoria de in-teresse individual negociado no merca-do de trocas. Daí a defesa de que oEstado se afaste da manutenção dessenível de ensino, decorrendo a tese deque a educação superior é um serviçopúblico não exclusivo do Estado e com-petitivo - justifica-se, assim, a transfor-mação das IES em organizações sociaisque estabeleceriam CONTRATOS DEGESTÃO.

Para implementar essa política, ogoverno tem defendido o afastamentodo Estado da manutenção plena daeducação superior pública (o que ficouexplícito nos vetos do Plano Nacionalde Educação) e incentivado a livre com-petição mercadológica entre as Insti-tuições de Ensino Superior. Com isso,as políticas para a educação superiorreduzem-se a uma política de gastos,ao mercado e ao econômico, aproxi-mando-se as universidades ao modelode empresas prestadoras de serviçosque conduzem a novas formas deorganização e gestão, acirrando omovimento de concorrência entreessas instituições.

O Estado, entretanto, afasta-se ape-

nas dos gastos, mantendo a gestão to-tal do sistema através da utilização demecanismos de controle das Ins-tituições de Ensino Superior, principal-mente através da imposição de instru-mentos normativos (leis, decretos, por-tarias,...) que definem a organizaçãogeral do sistema (diretrizes, escolhasde dirigentes, credenciamento e recre-denciamento) e da avaliação.

Eunice Durham (1998), intelectualque tem atuado em acordo com aspolíticas do governo FHC, defende deforma clara a implementação das exi-gências do Banco Mundial para a edu-cação superior brasileira quando afirmaque é impossível garantir a manutençãoe a expansão do sistema de ensinosuperior sem que seja feita uma profun-da modificação na estrutura do finan-ciamento atual. Propõe a modificaçãonas relações entre a universidade e opoder público como parte de uma polí-tica de “modernização” do ensino supe-rior. O centro dessa modificação será aconcessão, pelo Estado, de “autonomiaplena” para as universidades e da “flexi-bilidade” necessária para o enfrenta-mento da crise que essas instituições vi-venciam. Dessa forma, o Estado substi-tuiria os controles burocráticos e deta-lhistas por um sistema que associe aautonomia de execução ao estabeleci-mento de objetivos e à avaliação dedesempenho, alterando o sistema dealocação de recursos de forma a subor-diná-lo à avaliação de desempenho dasInstituições Federais de Ensino.

Assim, a avaliação torna-se um dospilares que fundamenta a reforma daeducação superior implementada pe-los governos de FHC, cujo modelo éreduzido ao estabelecimento de metase indicadores de desempenho comvistas à redução dos gastos.

2. A política “oficial” de avaliação A concepção de avaliação do gover-

no é baseada na medição quantitativa

e no sistema de hierarquização das ins-tituições. Consiste na avaliação dos re-sultados, limitada a indicadores quanti-tativos e vinculada a alocação de recur-sos orçamentários. Como afirma DIASSOBRINHO, ao analisar a política deavaliação oficial:

um dos grandes problemas des-ses procedimentos avaliativos é queeles, requerendo informações simplese rápidas, se atêm quase exclusiva-mente aos produtos ou resultados(...), limitam-se a medir aquilo que éfacilmente quantificável e observávelimediatamente deixando de lado osefeitos de médio e longo prazo (...)Outro problema é que essas avalia-ções requerem necessariamente hie-rarquização, instaurando um regimede acirrada competição entre as insti-tuições. Ao submetem-se ao regimede competitividade as IES públicas fa-vorecem a privatização de um capitalpúblico (1999, p.68)

Para implementar sua política deavaliação, o governo tem utilizadouma série de medidas legais como aaprovação da lei 9131/95 que criou oExame Nacional de Final de Curso(Provão) e o Decreto n.º 3.860 de9/7/2001 que muda as regras de orga-nização do ensino superior e da avalia-

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Educação e Trabalho Docente

A avaliação torna-se um dos pilares que fundamentaa reforma da educaçãosuperior implementada pelos governos de FHC, cujo modelo é reduzido ao estabelecimento de metas e indicadores de desempenho com vistas à redução dos gastos.

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ção de cursos e instituições. Além doProvão, o governo criou, também, aAnálise das Condições de Oferta(ACO) vinculada, também, ao creden-ciamento de cursos e instituições.

Através do Decreto nº 3.860/2001, ogoverno modifica as competências doMEC, do CNE e do INEP. Comple-mentando o decreto, no dia 12 de ju-lho, foram baixadas: a portaria denº1465 (estabelece critérios e procedi-mentos para o processo de recreden-ciamento das instituições de educaçãosuperior do sistema federal de ensino)e a portaria de nº 1466 (estabelece pro-cedimentos de autorização de cursosfora de sede por Universidade).

Entre outros pontos questionáveis, oDecreto prevê o rebaixamento, paracentros universitários das universidadesque não satisfizerem o conjunto de re-quisitos e exigências que define. Os cri-térios utilizados para credenciamento erecredenciamento das Instituições deEnsino Superior são totalmente condi-cionados aos resultados da avaliaçãodos estudantes por meio do Exame Na-cional de Cursos (o “provão”); na análi-se das condições de oferta dos cursosde graduação - agora concentradas noINEP; na avaliação dos cursos de pós-graduação pela CAPES e na avaliaçãoinstitucional, que combina os resultadosdas três. As exigências para o recreden-ciamento das IES são: a obtenção deconceitos A ou B em mais da metade deseus cursos avaliados nas três últimasedições do PROVÃO, ter obtido concei-tos CMB ou CB em mais da metade deseus cursos avaliados nas condições deoferta dos cursos de graduação e tercomprovado, no caso das universidades,a oferta de programa de pós-graduaçãostricto sensu avaliado com conceitoigual ou superior a três pela CAPES.

2.1 - Análise das Condições de Oferta (ACO)Avaliadores externos visitam os cursos

que participam do provão para verificar aqualificação do corpo docente, organi-zação didático-pedagógica e instala-ções. Ela tem o caráter de credencia-mento e descredenciamento das IES.

Os resultados obedecem a seguinteescala de conceitos: CMB (CondiçõesMuito Boas: padrão de excelência) CB(Condições Boas - padrão de qualida-de) CR (Condições Regulares- padrãomínimo adequado) e CI (CondiçõesInsuficientes - exigem mudanças emcaráter de urgência).

A relação entre os resultados doprovão e a ACO é, em alguns casos es-quizofrênica. Como exemplo dessa si-tuação, podemos citar o caso da Uni-versidade Federal do Rio Grande doSul que recebeu A no Provão de jorna-lismo em 1999 e na Análise das Con-dições de Oferta, realizada em agostono mesmo curso, recebeu insuficientenos três quesitos, sendo que dois as-pectos avaliados em CI deveriam levara um processo de descredenciamentoda escola independente do resultadodo PROVÃO.

Com resultados tão conflitantes emavaliações diferentes, aplicadas pelomesmo órgão oficial, não se pode con-cluir nada a respeito do ensino supe-rior no Brasil.

A ACO se baseia em um padrão dequalidade pré-determinado e não dareal situação da instituição. A avaliaçãose dá através de professores de outrasIES que visitam a instituição por doisou três dias e fazem análise através dopreenchimento de um questionáriofeito pelo MEC. Cerca de 30 dias antesda visita, os professores recebem umroteiro de avaliação na forma de umoutro questionário que serve para em-basar os dados objetivos da análisedos professores visitantes. Após a visi-ta, os questionários são remetidos aSESU para que esta análise os resulta-dos e encaminhe as recomendaçõesàs escolas avaliadas.

Após esse processo, nada mais éfeito para que a situação daquela insti-tuição modifique, simplesmente o re-sultado da tal análise é enviado estabe-lecendo um prazo para que a mesmamelhore o desempenho. No caso dasIES públicas, como melhorar o desem-penho sem que sejam alocados maisrecursos para a infra-estrutura e imple-mentada uma política mais efetiva dequalificação dos docentes? No fundo,a intenção do MEC é a de, através des-sa “suposta” avaliação, transformar asUniversidades Públicas em CentrosUniversitários, barateando os seus cus-tos e acabando com o modelo de

Universidade de Pesquisa, ou melhor,reduzindo para umas poucas que serãoos “Centros de Excelência” e as demaisEscolões de 3º graus.

2.2 - O Exame Nacional de Cursos (Provão)Criado em 1995, através da LEI 9331/-

95, e, posteriormente, incluído na LDB9394/96. Na ótica do governo, o pro-vão é “um dos elementos da práticaavaliativa que visa alimentar os proces-sos de decisão na formulação deações voltadas para a melhoria doscursos de graduação”. No entanto, aoanalisarmos o seu conteúdo, as formasde elaboração, aplicação e o contextono qual está inserido, veremos que setrata, na verdade, de um precário ins-trumento destinado a classificar ou“RANKEAR” as Instituições de Ensino

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Superior brasileiras, de acordo com asmetas de exclusão estabelecidas atra-vés de critérios questionáveis enquan-to norteadores de um processo deavaliação educacional.

Desde que o Provão foi criado, o go-verno vem enfrentando a resistênciaorganizada de setores do movimentoestudantil, como a da campanha peloZERO e, neste ano de 2002, o plebisci-to do Provão, em curso no país. Comoresultado desse movimento de corre-lação de forças, o governo tem reagidoatravés da utilização de diversas táticaspara legitimar o PROVÃO, todas decunho punitivas, dentre as quais desta-camos:

1. Obrigatoriedade na realização daprova mediante a retenção dos diplo-mas dos formandos;

2. Estímulo à competitividade entreas universidades. Isso faz com que osprofessores e coordenadores de cur-sos se lancem na defesa irrestrita desua instituição orientando e preparan-do os alunos p/ realizarem boas pro-vas buscando o conceito A;

3. Utilização de marketing e propa-ganda na mídia para convencer a opi-nião pública que o provão por si sótrará melhorias à qualidade do ensino;

4. Recredenciamento das IES condi-cionado pelos resultados do provão (Aou B),da ACO (CMB ou CB) e da ava-liação da CAPES (= ou +3);

5. Concessão do Fundo de Finan-ciamento ao Estudante do Ensino Su-perior - FIES, apenas aos que estejammatriculados em cursos de IES particu-lares que obtiveram avaliação positiva;

6. Concessão de bolsas de mestra-do ou doutorado pela CAPES aos alu-nos que obtiverem as maiores notasno provão.

Através dessas táticas, o governotem conseguido convencer parte daopinião pública, de professores, de di-rigentes e de alunos, transferindo paraos alunos a responsabilidade pela qua-

lidade da instituição, através da realiza-ção, no final do curso, de uma simplesprova constituída de questões genéri-cas e elaborada pela Fundação Ces-granrio4.

Destacamos, a seguir, algumas dis-torções apresentadas pelo Provão:

1. O provão é uma forma de avalia-ção falha, superficial e punitiva quevisa apenas estabelecer a competiçãosem que realmente haja a preocupa-ção com a melhoria da qualidade doensino, pois, os conceitos não esclare-cem a sociedade quais os pontos quedeveriam ser melhorados para melho-ria da qualidade.

2. Está legitimado por pressupostosde caráter inconstitucional uma vezque na prática ignora os princípios ga-rantidos pelo art. 207, da CF, que prevêa indissociabilidade entre ensino-pes-quisa e extensão.

3. A meta final do MEC é estabele-cer o recredenciamento das IES, crian-do para isso o ranqueamento (hierar-quia) entre essas que será determi-nante na alocação dos escassos recur-sos destinados a educação superior.

4. É uma lógica de competição pu-ramente econômica. Ao invés de ava-liar o PROVÃO, se propõe a classificá-las através de um mecanismo precário:uma única prova escrita para todo oBrasil, desconsiderando totalmente asdiferenças regionais e a realidade es-pecífica de cada curso ou instituição,transferindo unicamente para o aluno

a responsabilidade sobre a qualidadedo ensino superior.

5. Os critérios utilizados na defini-ção dos conceitos têm como parâme-tro a média geral de cada curso avalia-do e o desvio padrão calculado a par-tir das notas de cada curso. Atravésdessa sistemática quantitativa, sempreteremos cursos que obterão conceitosA e B, independentemente do desem-penho e das notas obtidas no provão,assim como outros obterão os C, D e E.A mudança do parâmetro utilizado até2000, curva de GAUSS para DESVIOPADRÃO, não altera a lógica do siste-ma quantitativo. Não há uma preocu-pação com os baixos índices obtidosnas provas e, sim, o centro da questãoé definir o ranqueamento das IES.

O PROVÃO e a ACO longe de seconstituírem em avaliação, configu-ram-se como mecanismos de mediçãoquantitativa de resultados, legitimado-res do controle através do qual o go-verno tenta homogeneizar as universi-dades, modificando a especificidadede sua função que é a diversidade epluralidade das atividades. De acordocom CHAUÍ, com isso o governo,

obtém apenas um catálogo de ati-vidades e publicações que passam aorientar a alocação de recursos enão o auto conhecimento; a presta-ção de contas à sociedade não secumpre porque o orçamento e a exe-cução orçamentária são apresenta-dos com os números agregados semexplicação dos critérios, prioridades,objetivos, finalidades e sem explicaros convênios privados (1999 , p.41).

O resultado combinado do ExameNacional de Cursos (o “provão”) e daAnálise das Condições de Oferta vemredesenhando a organização da edu-cação superior brasileira, no âmbito dagraduação. A correção estatística ótimados resultados do “provão” vem garan-tindo conceitos A ou B a cursos e insti-

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Educação e Trabalho Docente

O provão é uma forma deavaliação falha, superficial epunitiva que visa apenasestabelecer a competiçãosem que realmente haja apreocupação com a melho-ria da qualidade do ensino.

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tuições conhecidas por seu questioná-vel funcionamento, pelas péssimascondições salariais e de trabalho deseus docentes e pelas altíssimas men-salidades cobradas de seus alunos.Trata-se de um processo que não con-sidera as peculiaridades da formação,em face dos diferentes projetos peda-gógicos de profissionalização e dasperspectivas societárias; que homoge-neíza diferenças, unificando padrões eprocessos avaliativos. Sabemos que asdiretrizes curriculares e os mecanismosde avaliação centralizados são elemen-tos essenciais da política educacionaldo governo, e que contribuem, de for-ma perversa, para a destruição doensino superior público, gratuito e dequalidade, de um lado, e para o incen-tivo e o fortalecimento do processo demercantilização e privatização do ensi-no superior, de outro.

O modelo de avaliação implemen-tado pelo governo, nos últimos anosda década de 90, tem se limitado aconsiderar se os objetivos e metas fo-ram alcançados, desconsiderando quea educação, por ser um fenômenocomplexo e inegavelmente social, nãopode ser submetida às mesmas regrasestabelecidas na lógica empresarial.Como afirma Dias Sobrinho,

um dos grandes problemas dessesprocedimentos avaliativos é que eles,requerendo informações simples erápidas, se atêm quase exclusivamen-te aos produtos ou resultados (...), li-mitam-se a medir aquilo que é facil-

mente quantificável e observávelimediatamente deixando de lado osefeitos de médio e longo prazo (...)Outro problema é que essas avalia-ções requerem necessariamente hie-rarquização, instaurando um regimede acirrada competição entre as insti-tuições. Ao submetem-se ao regimede competitividade as IES públicas fa-vorecem a privatização de um capitalpúblico (1999, p.68)

Na mesma linha de argumentação,Marilena Chauí defende que é funda-mental que se realize a avaliação dasatividades universitárias, mas que deveestar voltada:

1) para orientar a política univer-sitária do ponto de vista de um saberda universidade sobre si mesma, deseu modo de inserção na sociedadee significado de seu trabalho, e paraa reorientação de programas e pro-jetos; 2) para orientar a análise téc-nica dos problemas operacionais efinanceiros, suprir carências, atenderdemandas, quebrar bolsões de privi-légios e de inoperância; 3) paraprestação de contas devidas aos ci-dadãos.(1999, p.40).

A contestação e reversão desse mo-delo precisam estar norteadas porprincípios democráticos que exigem aparticipação autônoma das instânciasresponsáveis pela realização da forma-ção acadêmica (professores, alunos efuncionários) bem como da sociedadeque financia essa formação. E é naconquista da garantia desses princípiosque professores, funcionários e estu-dantes vêm lutando conjuntamente,valendo-se de uma variedade de me-canismos, sem perder de vista o movi-mento conjuntural.

3. Por uma avaliação institucional com vistas ao padrão unitário de qualidade.

Na Proposta do ANDES-SN e dasAssociações de Docentes para a Uni-versidade Brasileira, elaborada de for-ma coletiva desde a sua criação e pu-blicada em sua última versão atualiza-da em 1996, é apresentada sua con-cepção de avaliação institucional. Parao ANDES-SN, a avaliação deve ser in-terna e externa e direcionar-se paraavaliar o papel da universidade na so-ciedade e a qualidade do ensino, dapesquisa e da extensão desenvolvidospela instituição, bem como da gestãofinanceira e patrimonial. Tal avaliaçãodeve ser estabelecida por critérios defi-nidos pública e democraticamente eque considere a real situação em quea instituição se encontra, em termosde condições adequadas para o de-senvolvimento do trabalho acadêmicode qualidade.

O processo de avaliação deve sepautar por um modelo que enfatize as“funções diagnóstica e formativa”, con-siderando-as como um processo abran-gente que se orienta por indicadoressociais e que considere, em sua elabo-ração, o referencial histórico-social, istoé, a cultura, a história, os valores e asfinalidades da instituição. O processode avaliação conduz a institucionaliza-ção de um padrão de desempenhocompatível com o padrão de institui-ção almejado, devendo, portanto,interpretar os significados dos objeti-vos em relação aos princípios de cadainstituição em particular.

A avaliação deve ser “emancipatóriae participativa”, o que implica, necessa-riamente, a realização de um amploprocesso de debate na instituição so-bre sua identidade e projeto acadêmi-co, com vistas à explicitação e/ou defi-nição do modelo que se quer paraaquela universidade. Dessa forma, aavaliação deve se constituir em uminstrumento de democratização e nãode punição ou premiação.

Sobre avaliação interna, o ANDES-

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SN defende que essa deve ser realiza-da nas diversas instâncias onde o tra-balho institucional e acadêmico se rea-liza, ter um caráter público e democrá-tico, considerar as condições concretasem que o trabalho é produzido e sepropor a gerar um projeto de desen-volvimento acadêmico, científico e tec-nológico, voltado para a resolução dosgraves problemas sociais, políticos eeconômicos da população.

Em relação à avaliação externa, pro-põe a constituição de “Conselhos So-ciais” compostos por representantesde diferentes segmentos da sociedadena qual a instituição se insere, deven-do ter um caráter “autônomo e consul-tivo”, com a finalidade de contribuirpara a formulação de políticas acadê-micas, administrativas e financeiras daInstituição de Ensino Superior pública,bem como acompanhar sua execução.

Compreendemos, portanto, que de-vemos lutar de forma intransigentecontra essa política excludente e auto-ritária do Governo FHC que utiliza me-canismos autoritários de avaliação pa-ra implementar as diretrizes impostaspelos organismos internacionais, como único objetivo de excluir cada vezmais a população do acesso a umaeducação superior pública, gratuita ede qualidade.

O ANDES-SN aprovou, em seu 21ºCongresso realizado no final de feve-reiro/2002, seu engajamento no “Ple-biscito do Provão”, apoiando teórica epoliticamente os estudantes, tanto nodebate sobre a política educacional dogoverno federal e seus associados nasdemais esferas da administração pú-blica, como em outras ações que inte-gram o movimento dos estudantes.

Temos, portanto, uma tarefa de fun-damental importância para realizar-mos que é a de nos unirmos aos estu-dantes participando efetivamente doplebiscito do Provão, debatendo comtoda a comunidade interna das IES e

externa (escolas, mídia, sindicatos,centros comunitários, etc.) na perspec-tiva de esclarecer as intenções reais dogoverno com a utilização desses meca-nismos punitivos e defender nossaproposta de avaliação institucional. En-fim, devemos ocupar todos os espaçospossíveis de discussão, em defesa daeducação pública, gratuita e de quali-dade para todos, pois essa é uma ne-cessidade dos dominados. É precisodefender de forma radical nosso proje-to de educação nacional inserido noPlano Nacional de Educação: Propostada Sociedade Brasileira, que dentresuas diretrizes destaca ser necessário:

Instituir mecanismos de avaliaçãointerna e externa, em todos os seg-mentos do Sistema nacional de Edu-cação, com a participação de todosos envolvidos no processo educacio-nal, através de uma dinâmica demo-crática, legítima e transparente, queparte das condições básicas para odesenvolvimento do trabalho educa-tivo até chegar a resultados social-mente significativos (1997).

NOTAS1. A expressão Estado-providência é utiliza-

da no texto, como referência às políticas doEstado de Bem Estar Social desenvolvidas nospaíses do primeiro mundo.

2. G7+1 - Expressão utilizada para designaras sete grandes potências industrializadas docapitalismo: Canadá, EUA, Japão, França, Ale-manha, Itália e Grã-bretanha e mais a adesãorecente da Rússia.

3. Trata-se da transformação da educaçãoem um “Meganegócio” uma vez que na socie-dade do conhecimento este se torna o princi-pal recurso econômico vendável no mercado,como afirma a reportagem da Revista Exame(2002, p. 35-45). Um dado relevante destaca-do na reportagem diz respeito aos “negócios”da educação superior privada no Brasil queapresentam um crescimento cada vez maior.O faturamento do setor privado no ensino su-perior brasileiro aumentou de 3,3 bilhões em1997 para 10,3 bilhões em 2001 e estima-seque no ano de 2002 o faturamento seja na or-dem de 12 bilhões de reais. Nos Estados Uni-

dos existem mais de 2000 universidades cor-porativas e a tendência é a de cada empresater seu próprio centro de educação, cujo mer-cado da educação continuada para adultosresponde por 6% do PIB americano.

4. A Fundação Cesgranrio é uma entidadeprivada, presidida por Carlos Alberto Serpa,amigo do Ministro da Educação, que ganhoua concorrência para organizar o PROVÃO e oENEM e que vem montando uma rede de ser-viços paralela dentro do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE), formada porum grupo de dirigentes e chefias desse órgão,segundo denúncias publicadas no Jornal daADUFRJ(22/04/2002, p. 5) e oriundas da Exe-cutiva Nacional da Assibge-SN que apresen-tou denúncia formal ao Ministério Público e aCorregedoria Geral do União.

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HARVEY, David. Condição Pós-Moderna.

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* Texto apresentado no IV Congresso Na-cional de Educação - IV CONED, na mesa-re-donda: “Exame Nacional de Cursos (Provão),ENEM, SAEB: isto é avaliação?, São Paulo, 25de abril de 2002.

** Professora do Centro de Educação daUFPA; Doutoranda em Educação daUFMG; Vice-Presidente Norte do ANDES-SN (2000-2002)

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 115

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Maria Helena Santana Cruz **

A partir de meados de 1970, as in-tensas modificações socioeconômicasrelacionadas ao processo de globaliza-ção das economias capitalistas (am-pliado a partir da década de 1980) ga-nham, na contemporaneidade, carac-terísticas próprias, inusitadas e um as-sombroso impulso com o enorme sal-to qualitativo ocorrido nas tecnologiasda informação. Isso porque as inova-ções introduzidas nos sistemas produ-tivos, a microeletrônica, a automação,a robótica, a telemática e a reestrutura-ção produtiva engendram alteraçõessubstantivas no que diz respeito nãoapenas à criação de grandes sistemaseconômicos em larga escala, mas tam-bém à transformação de contextos lo-cais, culturais, com repercussão no co-tidiano, nas relações sociais.

De par com as transformações docapitalismo, com a crise dos paradig-mas produtivos, com a crise dos para-digmas de explicação da realidade e aextinção do estatismo, produziu-seuma onda poderosa de expressões deidentidade coletiva. Em essência, a re-volução da tecnologia da informação ea reestruturação do capitalismo deramorigem à sociedade em rede e introdu-ziram a globalização de atividades eco-nômicas estratégicas, a flexibilidade ea instabilidade do trabalho e uma cul-tura da instabilidade real, cujos múlti-

A reflexão a respeito do impacto das novas tecnologias sobre a mulher envolve considerações em relação ao efeito dos processos que atravessam o conjunto da sociedade e originam-se no centro e não na periferia da vida social; exige uma interlocução com duas grandes tendênciasconflitantes que moldam o mundo de hoje: o processo de globalização e a identidade.

Novas tecnologias e impacto sobre a mulher*

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE116 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

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plos efeitos são ainda imprevisíveis. Asformas de organização da atividadeprodutiva foram alteradas radicalmen-te, ultrapassando a busca apenas demercados globais; ela própria passou aser global, apresentando algumas ca-racterísticas essenciais como a enormeintegração dos mercados financeirosmundiais e um crescimento singulardo mercado internacional - viabilizadopelo movimento e queda generalizadade barreiras protecionistas. Essas mu-danças permitiram a reformulação dasestratégias de produção e distribuiçãodas empresas e a formação de gran-des mercados e blocos econômicos(DUPAS, 1999).

Considerando os países latino-americanos, as rápidas mudançastransformaram o perfil das economiase sociedades, no final do século XX.Na esfera econômica, foram capita-neadas pelo incremento no volume eritmo dos fluxos de comércios e inves-timentos para além das fronteiras na-cionais, pela integração dos sistemaseconômicos em escala mundial, pelasintensas transformações na informáti-ca e nas comunicações, pelas reformaseconômicas, e, ainda, pelo estabeleci-mento e/ou fortalecimento de blocoseconômicos sub-regionais, como o

Nafta e Mercosul. Na esfera política, aqueda dos governos autoritários alte-rou a face das formas de organização eparticipação cidadã, recolocando asinstituições da chamada “economiaformal” no centro dos jogos políticos.Na esfera social, o crescimento da par-ticipação feminina na força de traba-lho, a proliferação das formas de traba-lho instável e precário, os movimentosde população e a reespacialização dasatividades econômicas constituem fe-nômenos igualmente salientes.

Para além da integração do fluxomonetário e de mercadorias, a globali-zação proporciona também a crescen-te interdependência das pessoas emnível mundial. Conforme reflete Gid-dens (1996), a introdução de novastecnologias, a automação, os sistemasinformatizados integrados, a utilizaçãodos meios de comunicação e transpor-tes de massa, favorecem a compres-são do espaço-tempo e a eliminaçãodas fronteiras. A vida das pessoas estáligada mais profundamente, mais in-tensamente e mais diretamente queno passado. Ampliam-se as oportuni-dades de enriquecimento da vida e decriação de uma comunidade globalbaseada em valores compartilhados. Anova lógica global repercute, assim, deforma marcante, nos processos de fa-zer e conviver, introduzindo as lógicasda urgência e da mudança. Intima-mente relacionadas, elas facilitam ocontato com os acontecimentos mun-diais numa velocidade talvez nuncavista antes na história da humanidade.

Todo esse processo contribui para a

emergência de uma nova ordem social- a ordem pós-tradicional, compreen-dida como aquela em que a tradiçãonão desaparece, mas muda de signifi-cado. Por isso, a noção de compressãodo espaço-tempo é considerada alta-mente instrumental para se analisarcomo a modernidade se constitui epara se entender o “encolhimento”provocado pelos sistemas de comuni-cação, transportes e informações. Se,por um alado, esses sistemas impuse-ram um novo ritmo à sociedade e àspolíticas sociais, com impactos em di-versos setores e campos do saber,por outro lado, influíram no aumentoda percepção fragmentada do mundo,expondo indivíduos e grupos a umaquantidade de estímulos e informa-ções sem precedentes, com intensida-des e impactos desiguais, a dependerde sua situação no espaço e no tempo(Harvey, 1994).

Estando o mundo todo interligado,agrado, cada vez mais se torna funda-mental estudar e compreender o lugaronde se vive e onde acontecem os fe-nômenos. Cada lugar é, a seu modo, areprodução de uma realidade que églobal, a partir da formulação de regrasgerais de movimento global, poderãoser definidas a nova estrutura e a novaorganização do espaço geográfico.

Em uma análise abrangente docapitalismo contemporâneo, Castells(2000) caracteriza o novo momentocomo a Era da Informação. Ela se ori-ginaria na coincidência histórica, des-de fins dos anos 60 e meados dosanos 70, de três processos indepen-dentes: a revolução das tecnologias deinformação, a crise econômica tantodo capitalismo quanto do estatismo esuas reestruturações subseqüente, oflorescimento dos movimentos sociaise culturais como o antiautoritarismo, adefesa dos direitos humanos, o femi-nismo e a ecologia. A interação dessesprocessos e as reações produzidas

Uma nova civilização está emergindo em nossas vidas e modificando nossa maneira de pensar. Ela traz consigo novos estilos de família, novos modos de trabalhar, de amar, de viver e de relacionar-se.

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criaram uma nova estrutura social do-minante, a sociedade em rede; umanova economia, a economia informa-cional-global, uma nova cultura, a cul-tura da virtualidade real. O computa-dor representa para nós o que a má-quina a vapor representava há três sé-culos. Depois dela, nada mais foi comoantes. No entanto, o fundamental nãoestá no computador, mas em todas assuas implicações. Uma nova civilizaçãoestá emergindo em nossas vidas e mo-dificando nossa maneira de pensar. Elatraz consigo novos estilos de família,novos modos de trabalhar, de amar, deviver e de relacionar-se.

Os modelos de identificação que,no passado, tinham oferecido sólidaslocalizações para os indivíduos, estãosendo deslocados e, concomitante-mente, deslocando estruturas e dinâ-micas centrais das sociedades do sécu-lo XXI. Com isso, gera-se um tipo dife-rente de mudança estrutural, que aba-la os quadros de referência que davamaos indivíduos uma ancoragem estávelno mundo social. O declínio dessesmodelos faz surgir a necessidade denovas identidades e conduz à frag-mentação do indivíduo moderno, atéentão visto como um sujeito unificadoe integrado. Em outras palavras, esses

processos estão mudando nossasidentidades pessoais e culturais, aba-lando a idéia que temos de nós pró-prios, questionando aspectos de nos-sas identidades que surgem de nosso“pertencimento” a culturas étnicas, lin-güísticas, religiosas e, acima de tudo,nacionais. .

Numa perspectiva política e social,pode-se dizer que o processo de glo-balização e sua inter-relação com asnovas tecnologias possibilitam focali-zar os temas da subjetividade, da iden-tidade e dos processos de fragmenta-ção de identidades (de gênero, classe,sexualidade, geração, etnia e naciona-lidade).Interessa focalizar, neste mo-mento, a questão do gênero.

A identidade de gênero vai-se cons-truindo durante toda a vida. Na etapaadulta do processo de socialização, de-fine-se por meio de distintas institui-ções e práticas sociais. O trabalho, oemprego constituem, portanto, ele-mentos socializadores, um espaço demediação em que se constroem, noambiente, as relações de gênero. Nes-se espaço, concretiza-se a divisão se-xual do trabalho, a qual põe de mani-festo que cada tarefa é dotada de gê-nero na relação que as trabalhadoras etrabalhadores têm com a tecnologia,que também tem gênero.

Nesse sentido, torna-se oportunorefletir sobre as oportunidades e expe-riências de inserção de mulheres nomercado, assim como sobre os novosproblemas e desafios surgidos nessenovo contexto marcado pelos proces-

sos de globalização e integração regio-nal, reestruturação e inovações tecno-lógicas. Como homens e mulheres es-tão mergulhados num contexto, estu-dá-los em sua historicidade parece omeio mais eficiente para compreendero processo de construção de identida-de de gênero no contexto mundial eos acontecimentos que fizeram histó-ria em nosso país no limiar do séculoXXI, indicando fatos e interpretaçõesque reforçam a análise empreendida ecertos desafios do presente. Os estu-dos sob a perspectiva de gênero anali-sam o trabalho feminino nos contextosde globalização e de modernizaçãotecnológica. Trazem para o centro dodebate a crítica dos novos paradigmasdiante das transformações no mundodo trabalho, enfatizando aqueles as-pectos mais importantes da participa-ção da mulher, particularmente em de-corrência do acelerado avanço da forçade trabalho feminina. Focalizam a si-tuação do emprego1 e qualificação,tendo em vista estabelecer conexãoentre eles e a mudança tecnológicaem diversos países, regiões e merca-dos (Mercosul, Nafta e outros).

Nesse sentido, gênero é, hoje emdia, um conceito de grande valor parao entendimento das transformaçõesda sociedade. Tem valor empírico pelasua utilidade para descrever as diferen-ças entre homens e mulheres e as re-lações que se estabelecem entre eles.Também tem valor analítico, quandousado para explicar os ordenamentosdas sociedades. Entretanto, o valorprincipal da palavra gênero2 está nofato de ser uma ferramenta para des-manchar, ou, dito mais apropriada-mente, desconstruir a ligação entremulher e natureza e, assim, possibilitaro entendimento da igualdade entremulheres e homens. Por carregar umsignificado fartamente politizado, ela éuma palavra com força para suscitardiferentes reações nos indivíduos,

Gênero é, hoje em dia, um conceito de grande valor para o entendimento das transformações da sociedade. Tem valor empírico pela sua utilidade para descrever as diferenças entre homens e mulheres e as relações que se estabelecem entre eles.

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tanto de adesão como de oposição,surgidas nos diferentes espaços dassociedades modernas. A palavra é for-te porque tem sentido, significado, naconversação, nos jogos da linguagem.Esses jogos estão presentes em todoos tipos de interação ao dar e receberordens, ao descrever alguma coisa, aoespecular sobre um evento, ao inven-tar ou contar palavras, conforme pres-supostos habermasianos da Teoria daAção Comunicativa.

Ao se considerar o contexto atual,observa-se que o contínuo avanço daeconomia global não parece garantirque as sociedades futuras possam,unicamente por mecanismos de mer-cado, gerar postos de trabalho, mesmoos flexíveis, compatíveis em qualidadee renda com as necessidades mínimasdos cidadãos. Chama a atenção a qua-se unanimidade nas preocupaçõesque envolvem a situação atual de au-mento da desigualdade e de polariza-ção no seio da sociedade. Cada pes-quisador, no entanto, qualifica esse fe-nômeno diferentemente e vê variadasdeterminações para esse processo.

As transformações em curso estãoredefinindo o modo de vida dos cida-dãos e o modo de operar das institui-ções. Verifica-se que o capital atual éalimentado pela força de suas contradi-ções. De um lado, observa-se o enor-me volume de investimentos necessá-rios à liderança de produtos e proces-sos, numa competição acirrada por re-dução de preços e por qualidade nabusca de eficiência, lucros e expansãodo mercado. Por outro lado, observa-sea dialética da exclusão/inclusão (ape-sar do desemprego estrutural crescen-te - incapacidade de geração de em-pregos formais em quantidade e quali-dade adequadas). O capitalismo atualgarante sua dinâmica também porquea queda dos preços dos produtos glo-bais incorpora continuamente merca-dos (inclusão) que estavam à margem

do consumo por falta de renda. O acirramento das desigualdades

sociais se expressa na participação damulher no mercado de trabalho, espe-cificamente no continente latino-ame-ricano, o que justifica a urgência de afi-namento dos instrumentos conceituaisque possibilitem um maior entendi-mento dessa realidade. Pesquisas deautores nacionais e internacionais queabordam a divisão social e sexual dotrabalho em grandes empresas (Hirata,1998), assim como a literatura existen-te sobre gênero e reestruturação pro-dutiva (Abramo, 1976; Wood, 1989;Roldán, 1993; Segnini, 1995; Abreu eSorj, 1995; Posthuma e Lombardi,1996; Leite 1988; Cruz, 1999; entreoutros) tendem a indicar que, entre ossetores, empresas e atividades queempregam homens e os que empre-gam mulheres, não se constroem damesma maneira o conjunto das des-continuidades ou rupturas que mar-cam os novos modelos produtivos. Osestudos alertam para o silêncio sobre adimensão de gênero que cerca a dis-cussão dos novos paradigmas e do im-pacto das inovações tecnológicas so-bre as mulheres e denunciam queesse silêncio ajuda a esconder impor-tantes problemas nas novas formas deorganização produtiva, em especial noque se refere à eqüidade social. Con-sidera-se que a inclusão da categoriade gênero nas pesquisas pode levar aduas conseqüências, no plano analíti-co. A primeira é que a introdução deuma perspectiva sexuada faz “explo-dir” a unidade categorial de “empre-

sa”; a segunda é que a dimensão degênero questiona fortemente as Ciên-cias Sociais, que partem, nas suas ela-borações teóricas, da figura do traba-lhador homem encarnando o universal.

No âmbito da Sociologia do Conhe-cimento, há mais de vinte anos, as teo-rias dominantes apresentavam a ciên-cia e a tecnologia quase sempre excluí-das de suas análises. Desde os anossetenta, os aportes da teoria construti-vista vêm ganhando remarcada impor-tância para fazer sair da superfície ocaráter social da produção científica,abrindo-se novos campos de estudocom perspectivas divergentes (Alema-ny, 1999). Os autores homens que sededicaram a investigar o processo dedesenvolvimento das tecnologias nãoperceberam a assimilação da tecnolo-gia com a masculinidade como umprocesso de construção social. Essasanálises, em geral, não atentam paraas relações de poder historicamenteconstruídas nos fenômenos estuda-dos; por isso, tendem a excluir nãosomente as relações de classe, senãotambém as relações de sexo, transver-sais na sociedade, consideradas a ba-se das análises feministas e que, por-tanto, não podem ser ignoradas. Emdefinitivo, as análises feministas nãoencontram um modelo que permita

As análises feministas não encontram um modelo que permita explicar o mal-estar das mulheres ante a tecnologia, sua indiferença, ou seu medo diante de uma máquina.

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explicar o mal-estar das mulheres antea tecnologia, sua indiferença, ou seumedo diante de uma máquina.Tampouco podem buscar apoio emuma teoria que explique o domíniodos homens no campo da tecnologia ea exclusão ou marginalização dasmulheres nesse âmbito. Contudo, aler-ta-se para o fato de que a falta de fa-miliaridade e acesso às novas tecnolo-gias, incluindo a Internet, fortalecem adivisão social e sexual do trabalho, e oprocesso de exclusão das mulheres domercado.

A relação assimétrica entre gênerosna esfera do trabalho concretiza-se emdivisão sexual do trabalho, cuja estrei-ta relação com a subordinação femini-na é revelada em dados estatísticos ecompreendida nas concepções sobrea mulher expressas por trabalhadorese trabalhadoras. Uma vez que eles to-mem conhecimento das relações hie-rárquicas que encobrem a divisão se-xual do trabalho, poderão levar a caboações tendentes a uma maior igualda-de entre os gêneros, ou seja, poderãoconstruir um mundo onde a mulhernão seja subordinada, onde a diferen-ça entre gêneros não signifiquem desi-gualdades sociais.

Sabe-se que todas as sociedadeshumanas têm algum tipo de divisãosexual do trabalho: decidem quais tra-balhos os homens realizam e quais sesituam dentro da órbita feminina. Nãoobstante, de acordo com a literaturaantropológica, há uma grande diversi-dade sobre o que pode considerar-setrabalho feminino e masculino. Comodisse Elizabeth Lobo (1991): “Nãoexistem fatores naturais, inerentes oulógicos que instituam a divisão sexualdo trabalho, senão que existe umaconstrução social e práticas e relaçõesde trabalho cuja coerência reside naexistência de muitas vozes simbólicase vários fatores”.

A complexidade do tema permite

que seja abordado de distintos ângu-los. Neste trabalho, o foco é dirigidopara as relações de gênero; questio-na-se até que ponto as potencialida-des presentes nos novos paradigmasprodutivos e a introdução das inova-ções tecnológicas, contribuem para aampliação das oportunidades de aces-so ao emprego e das condições depermanência das mulheres no traba-lho. Em outras palavras, buscam-serespostas para algumas indagações.Estariam os processos de inovaçõestecnológicas abrindo às mulheres maise melhores oportunidades no merca-do de trabalho? Seu efeito principalestaria apontando no sentido de umaelevação da distribuição da divisãosexual, segmentação horizontal e ver-tical de gênero, ou, ao contrário, esta-riam apontando na direção de sua re-produção, incluindo a configuraçãode novas formas de divisão sexual dotrabalho, aumentando a segregação?O desenvolvimento tecnológico e arelação que homens e mulheres esta-belecem com a máquina reproduzema subordinação da mulher? Estariamos novos paradigmas produtivos e aintrodução das inovações tecnológi-cas e organizacionais ampliando asoportunidades de qualificação e reva-lorização de novas competências equalificações sociais ou tácitas, con-tribuindo para a construção da cida-

dania plena das mulheres? Alguns autores consideram que a

tecnologia ocidental tem um carátereminentemente patriarcal cujo cen-tro são as questões de dominação,poder e controle. A esse respeito,preocupado em entender que a rea-lidade social é composta por ummecanismo de dominação, pela au-sência de comunicação, J. Habermas(1968) critica a dominação da razãoinstrumental (técnica) no capitalismoe explicita que o sujeito introjeta opoder de tal modo, que não se per-cebe enquanto tal. Ele propõe a su-bstituição da razão instrumental pelarazão comunicativa, mediante a dia-lética, a interação, o discurso argu-mentativo, a reflexão e o conseqüen-te desenvolvimento da consciênciacritica.

Máquinas, equipamentos e desen-volvimento tecnológico caminham demãos dadas. A tecnologia, por sua vez,relaciona-se estreitamente com a ciên-cia. C. Cockburn (1990) faz notar quea ciência tenta dar uma explicação ra-cional da natureza. O conceito de ra-zão parece marcado por conotaçõesmasculinas, enquanto natureza é umconceito com conotações femininas. Adicotomia natureza/cultura na relaçãocom o feminino/masculino é objetode múltiplas análises3, no plano dosimbólico. Da mesma maneira que acultura associa-se com a masculinida-de, a tecnologia é também expressãoda cultura e a ela se associa.

Segundo as teorias do patriarcado -que descrevem a dominação do ho-mem sobre a mulher, manifesta-se dediferentes modos, a tecnologia conver-

O conceito de razão parece marcado por conotações masculinas, enquanto natureza é um conceito com conotações femininas.

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te-se em um instrumento para manteras mulheres oprimidas na sociedade eno mercado de trabalho. Essa opres-são/dominação é explicada de diver-sas maneiras pelas atuais disciplinasque fazem uso da teoria do patriarca-do. Desde as Ciências Sociais, em es-pecial na tradição marxista, o patriarca-do é um conjunto de relações sociaisque tem uma base material. Nele, asrelações hierárquicas e de solidarieda-de entre os homens permitem o con-trole das mulheres. Porém, a opressãotambém se explica nas perspectivaspsicológica, ideológica e cultural, con-tribuindo para fortalecer a dinâmicaemocional da personalidade, profun-damente enraizada no subconscientee no inconsciente. A ciência, portanto,seria alheia à natureza mesma das mu-lheres. Sobre o controle masculino, atecnologia produzida para ser usadapelas mulheres pode ser sumamenteinapropriada para as suas necessida-des, inclusive perniciosa e, pode aindaincorpora ideologias masculinas quedeterminam como devem elas viver.Assim, consumam-se, a alienação e aexclusão das mulheres no âmbito tec-nológico.

Nessa perspectiva, de acordo comC. Cockburn4, pode-se dizer que os ho-mens apropriam-se da tecnologia co-

mo esfera da masculinidade, pois aconcepção e a fabricação dos instru-mentos de trabalho, de autos e máqui-nas em geral, estão sob o seu contro-le, simplesmente porque essa é umadas áreas das quais as mulheres estãoexcluídas, como estão das áreas dedecisões governamentais na maioriados países. A mesma socialização degênero também desenvolve e reforça aaproximação do homem a processostecnológicos (jogos de armar e desar-mar, brinquedos com carrinhos, etc.),enquanto as meninas são alijadas detais práticas. Os homens interferemainda, de maneira determinante, nadefinição dos trabalhos profissionais edomésticos das mulheres, tornando-semuito estranho que elas exerçam umpoder mecânico. No próprio local detrabalho, pode-se verificar que a “neu-tralidade” não se concretiza. A novatecnologia que chega já traz assinaladoseu gênero nas expectativas de seusplanejadores, desde o ponto de vistaergonômico, por exemplo. A especiali-zação de sexo pode ser dada por ta-manhos e medidas dos equipamentose pela força requerida para utilizá-los.Essa mesma orientação está subja-cente nas formas de organização egestão do trabalho, com vistas à ren-tabilidade e ao lucro do capital. Éuma situação em que capitalismo epatriarcado se unem como faces deuma mesma moeda (Saffioti, 1987).O capitalismo se aproveita das dife-renças de papéis de acordo com osexo do trabalhador para aumentar aprodutividade e o lucro. Esse seria um

dos tantos cruzamentos entre a lógicado sistema de classes e a lógica dosistema de gêneros.

Em síntese, a tecnologia é umafonte de poder. Nela os homens se ins-talam para exercer e garantir o seu po-der em outras áreas. Ela conforma nos-sas vidas e estrutura o que e comofazemos, como vivemos, as relaçõessociais e o significado do ser humano.

Novos modelos produtivos e relações de gênero A quase totalidade das pesquisas

sobre o pós-fordismo, a “especializa-ção flexível” (Piore & Sabel, 1984), osnovos modelos produtivos dos anos80 (Kern e Schumann, 1984; Durand,1993) e os novos conceitos de produ-ção (Beggren, 1989), ou mais recente-mente as teses macroeconômicas so-bre globalização não levam em contaas implicações sobre a divisão do tra-balho e do emprego na dimensão dosexo/gênero. Ora, as repercussõesdesses processos não são as mesmasquando se consideram os pontos devista dos homens e das mulheres.Acrescente-se também, que, no inte-rior do conjunto dos trabalhadores ho-mens, há diferenças de acordo com aqualificação e a categoria sócio-profis-sional, as quais não são consideradas.

As conseqüências desses processospodem ser eminentemente contraditó-rias. Pesquisas efetuadas em paíseseuropeus e da América Latina têm per-mitido afirmar que a introdução denovas tecnologias pode redundar emabertura de novas oportunidades e emconseqüências positivas para o traba-lho feminino (Abramo, 1996), criandonovas chances de emprego qualifica-do, sobretudo no setor de informática.Mas ela também pode reforçar a exclu-são das mulheres e constituir um riscoreal no plano do emprego sobretudo,para as trabalhadoras não qualificadas.Avesso a essa diversidade, o conceito

A tecnologia é uma fonte de poder. Nela os homens se instalam para exercer e garantir o seu poder em outras áreas. Ela conforma nossas vidas eestrutura o que e como fazemos, como vivemos.

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de “especialização flexível” é fundadosobre o arquétipo do trabalhador dosexo masculino de grandes empresas,e não sobre a grande massa de traba-lhadoras (Hirata, 1998). Na verdade, omodelo japonês - no qual apenas otrabalhador do sexo masculino desfru-ta do emprego estável (dito “vitalício”),da promoção por tempo de serviço ede carreira na empresa - parece ser oinspirador desse novo paradigma daprodução industrial alternativo ao mo-delo do fordismo, que tem pretensõesa uma validade universal.

A introdução da categoria de gêne-ro se faz necessária uma vez que ascondições de trabalho e as formas deinserção na atividade produtiva de mu-lheres e homens variam consideravel-mente de acordo com o sexo. Com-preende-se que as transformações dotrabalho e as reestruturações produti-vas geram impactos e conseqüênciasdiferenciadas para a mão-de-obra mas-culina e feminina.

Sublinha-se, então, o interesse peloaprofundamento desse debate, a fimde se ampliar o conceito de trabalho,levando-se em conta as relações degênero e as inovações tecnológicas.Também se deve questionar, ao mes-mo tempo, o lugar do trabalho na so-ciedade - ponto altamente polêmico,como atesta o debate sobre “o fim dotrabalho” ou a sua centralidade.

As transformações do trabalho no contexto da reestruturação produtivaAssiste-se, hoje, a uma dupla trans-

formação do trabalho, tanto no con-teúdo da atividade como nas formasde emprego - transformação aparente-mente paradoxal, pois esse duplo pro-cesso ocorre em sentidos opostos. Deum lado, para a realização desses no-vos modelos, há uma exigência de es-tabilização do trabalho e do envolvi-mento do sujeito no processo, medi-

ante atividades que requerem autono-mia, iniciativa, responsabilidade, co-municação ou “intercompreensão”(Zariffian, 1990). Verifica-se uma “ins-tabilização” e uma precarização doslaços empregatícios, com o aumentodo desemprego prolongado e da flexi-bilidade no uso da mão-de-obra. Essemovimento de instabilização mostra-se mundializado, enquanto o segundomovimento, “precarização”, resulta doprimeiro, no sentido de que a emer-gência do novo modelo produtivo, aespecialização flexível, funda-se sobrea flexibilidade máxima dos processos,da tecnologia, do emprego.

Novas tendências na organização sexuada do trabalho Algumas pesquisas têm demonstra-

do que, com a introdução da informá-tica nos serviços ou mesmo no setorindustrial, certas profissões e tarefasque exigem iniciativa, responsabilida-de, conhecimento técnico e criativida-de estão sendo abertas a mulheres:engenheiras, analistas de sistemas,programadoras, técnicas de nível mé-dio (em indústrias extrativas no Brasil).Mas tais postos são em número limita-do e preenchidos, majoritariamente ede preferência, por trabalhadores dosexo masculino. Por outro lado, noBrasil, apesar de os dados da OIT/-Cintefor/Senai indicarem nos cursostécnicos do Senai - (Serviço Nacionalde Aprendizagem Industrial) um au-mento expressivo de mulheres apren-dizes (em São Paulo, essa participaçãopassou de 7,9% em 1998, para 15%,em 1999), o conteúdo do ensino porele oferecido continua a referir-se ao

quadro das indústrias e postos de tra-balho tradicionalmente femininos, co-mo no ramo têxtil ou alimentício (Pos-thuma, 1966).

Nos anos que se sucederam ao mi-lagre econômico no Brasil (1969-1972), os efetivos femininos multipli-caram-se em setores como os da cons-trução civil, empresas de transportescoletivos, indústrias de equipamentosde comunicação/informação, mastambém no ramo metalúrgico, com orecrutamento de mulheres para opera-ção de fresa, torno e outras máquinase equipamentos. No entanto, para asempresas, essa abertura de postos detrabalho para as mulheres representouuma diminuição de custos, pois essafeminização implicou uma desqualifi-cação - se antes, como ocorreu numadas empresas pesquisadas, todas asmáquinas eram preparadas por con-tra-mestres, essa atividade, até entãoqualificada, passou a ser repetitiva esem exigência de elevada qualificação,justificando salários rebaixados e, con-seqüentemente, a desvalorização doemprego. O aumento das oportunida-des de emprego, em muitas situações,ocorre concomitantemente à manu-tenção de uma hierarquia social e téc-nica, com a supremacia do masculino(postos de instrumentação e manu-tenção - indústrias extrativas de trans-

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As condições de trabalho e as formas de inserção na atividade produtiva de mulheres e homens variam consideravelmente de acordo com o sexo.

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formação). A entrada de mulheres co-mo técnicas de manutenção constituiainda um fato novo e é ainda bastanteexcepcional na indústria brasileira. Asmulheres ocupam os piores serviçosna manutenção, observando-se comfreqüência o fenômeno da negação daidentidade sexual na realização do tra-balho remunerado - “Tem que ter pos-tura bem profissional, como se fosseum homem trabalhando”.

Mulheres em ocupações técnicas(engenheiras, instrumentistas, técnicasde manutenção e outras) revelaraminteresse e desejo de oportunidadepara operarem máquinas, evidencian-do-se a valorização da formação mate-mática. Elas são consideradas respon-sáveis, cuidadosas e produzem comalta qualidade. Esse fato sugere que osprogressos no campo tecnológico po-dem conduzir ao processo de qualifi-cação de mulheres, ao uso de suas ha-bilidades em novas bases, o que signi-fica mudar a visão naturalizada dos pa-péis e rever a idéia de que elas têmformação matemática deficiente. A ca-pacidade técnica lhes é exigida noexercício da atividade e a continuidadeda formação - um curso universitário,preferencialmente de engenharia - pas-sa a ser uma realidade em sua trajetó-ria profissional. Parece então confir-mar-se a tendência da “justaposição”entre taylorismo (setor feminizado) eflexibilidade (setor masculinizado),constatada em várias situações\: exis-tência de formas de empregos ‘ati-picos’ para as mulheres, tendência ob-servada na França (Hirata, 1998; e noBrasil por Leite, 1988; Posthuma,1996; Cruz, 1999), e flexibilidade, for-mação qualificada e polivalência, paraos homens; intensificação do trabalhopara as mulheres e enriquecimento dotrabalho para os homens; apelos a ti-pos opostos de multifuncionalidade,com integração de atividades maissimples para as operadoras e mais

complexas para os operadores. Assim,tanto no caso francês quanto no brasi-leiro, responsabilidade, trabalho emgrupo, competência técnica, diante deeventos e autoridade, não parecem ca-racterizar geralmente o trabalho indus-trial feminino.

Diante dessas considerações, é pos-sível afirmar que, no Brasil, a difusãodas inovações organizacionais e tecno-lógicas nos anos 80 e 90 deu-se deforma desigual, afetando principal-mente as grandes empresas do setordinâmico e, no âmbito dessas, o con-tingente de trabalhadores qualificadosdo sexo masculino. As operárias conti-nuam sendo freqüentemente controla-das segundo modalidades tayloristasda organização do trabalho, com ca-dências e ritmos impostos por linhasde montagem, máquinas e normasdisciplinares, ou pela demanda de cli-ente (sistema just-in-time). O processode precarização da força de trabalho,desde o início da década de 90, pare-ce, ao contrário, ter reforçado a polari-zação das qualificações segundo o se-xo, na qual as mulheres se encontramem postos paradoxalmente empobre-cidos pela integração de tarefas ou pe-la “combinação de duas tarefas de bai-xa qualificação” (Leite, 1988; Posthu-ma e Lombardi, 1996). A segregaçãoreforça a falta de oportunidades e deexperiência técnica das mulheres. Nes-sa situação, elas tendem a permanecerem atividades e formas periféricas.Desse modo, é possível preconizar queos movimentos complexos da mão-de-obra feminina estão ligados a trêsfatores indissociáveis: a conjuntura do

mercado de trabalho (de boom econô-mico ou de crise); as mudanças noprocesso e na organização do traba-lho; e, enfim, a subjetividade das tra-balhadoras, ao seu desejo de atuar ede se manter no mercado de trabalho(Hirata, 1996).

No caso do setor financeiro bancá-rio, onde o trabalho integrado em redesofreu forte impacto das inovaçõestecnológicas e organizacionais, as pes-quisas revelam que as tarefas monóto-nas e repetitivas (caixas) aliadas a umaintensidade elevada de trabalho sãodestinadas crescentemente às traba-lhadoras, à medida que os postosmasculinos enriquecem-se (cargos decomando, chefia e gerência). Aquelesnão são propícios ao exercício da cria-tividade e da autonomia, elementosconstitutivos dos novos modelos, aocontrário dos atribuídos aos trabalha-dores do sexo masculino (Segnini,1995; Cruz, 2000). A esse respeito, da-dos obtidos no setor financeiro na re-gião sul do país mostram convergên-cias quanto à relação capital/trabalho.Contudo, se observado o recorte degênero, a feminização do trabalhobancário não apresenta situação dehomogeneidade. Embora o setor sejao mesmo, as oportunidades abertas àsmulheres são diferenciadas nos ban-

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A segregação reforça a falta de oportunidades e de experiência técnica das mulheres. Nessa situação, elas tendem a permanecer em atividades e formas periféricas.

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cos estatais. A flexibilização do traba-lho mostra-se mais favorável a elas nosbancos estatais estaduais, enquantonos federais a rigidez da verticalizaçãodas relações sociais, a burocratização eelementos patriarcais manifestam-secom maior intensidade. Essa falta dehomogeneidade, por conseguinte difi-culta a generalização da expressão dosfenômenos.

Notam-se duas especificidades docomportamento do emprego femininono contexto atual de crise e de reestru-turação. Em primeiro lugar, a evoluçãodo emprego desmente a tese do “exér-cito industrial de reserva”, segundo aqual as mulheres são mobilizadasquando o capital necessita delas e vol-tam para a “reserva” (a esfera domés-tica) quando se instaura a concorrên-cia entre os sexos pelo emprego assa-lariado. As taxas de atividade masculi-na estagnam ou decrescem, enquantoas de atividade feminina ampliam-sedurante o período de expansão e con-tinuam a crescer durante a crise empraticamente todos os países indus-triais. Em segundo lugar, observa-se,no último período, um crescimentosimultâneo da taxa de atividade femi-nina e da precarização do emprego,seja pelo aumento do trabalho dito de

“tempos impostos”, seja pelo aumentodo trabalho informal (sem registro emcarteira) em vários países inclusive, noBrasil.

Analisando o informacionalismo,Castells (2000) lembra que, em todo omundo, há uma expansão do trabalhoremunerado por meio da incorporaçãomaciça de mulheres à população eco-nomicamente ativa e do deslocamen-to de trabalhadores agrícolas para aindústria, os serviços e a economia in-formal urbana. A melhoria da posiçãodas mulheres em relação aos homensé, portanto, um aspecto fundamentalde um desenvolvimento sustentável.Elas realizam dois terços do trabalhono mundo, recebem apenas 10% darenda global; seu trabalho assalariadoconcentra-se nos setores mais periféri-cos do mercado, com as piores condi-ções, salário líquido baixo e fracosníveis de segurança (Giddens, 1996).

A introdução das novas tecnologiasda informação desempenhou um pa-pel decisivo no surgimento desse capi-talismo flexível e dinâmico, ao propor-cionar as ferramentas para a comuni-cação à distância, por meio de redes, oarmazenamento e o processamentoda informação, a individualização coor-denada do trabalho e a concentração edescentralização simultâneas de toma-das de decisões. Castells (2000) acre-dita que o resultado específico da inte-ração entre as tecnologias da informa-ção e o emprego depende de fatoresmacroeconômicos, estratégias econô-micas e contextos sociopolíticos. Con-sidera que os postos de trabalho in-

dustriais mais tradicionais irão reduzir-se tal como aconteceu com os agríco-las. Mas, por outro lado, estarão sendocriados novos postos na indústria dealta tecnologia e nos serviços. Esse au-tor também distingue os impactos nosdiversos conjuntos de relações sociais.Isso significa reconhecer que a análisedos impactos das inovações tecnológi-cas precisa considerar as relações queos diferentes sujeitos estabelecemcom elas, o que envolve questões cul-turais, sociais, políticas e éticas. O obje-tivo deve ser melhorar a qualidade devida das pessoas, integrando-as a dife-rentes práticas cotidianas.

A principal diferença entre o atualimpacto das inovações tecnológicasno tecido social e o das décadas ante-riores é que os setores expulsos do sis-tema produtivo não são os mesmosque estão sendo incorporados pelonovo modelo. Sujeitos integrados tor-nam-se vulneráveis, particularmenteem decorrência da precarização dasrelações de trabalho, e oscilam cotidia-namente para a “exclusão”, que vemse impondo pouco a pouco. À medidaque os processos de crise e reestrutu-ração econômica se produzem e atra-vessam as sociedades contemporâ-neas, o conceito de “exclusão” ofereceuma perspectiva analítica que servepar examinar a condição da mulher nomercado de trabalho. Primeiro, enten-de-se que a concepção amplia poderanalítico de conceitos como pobreza,desigualdades, marginalização e se-gregação, não somente por descreveruma situação, mas também por anali-sar um processo dinâmico de exclu-são. Segundo, possibilita analisar aconstrução social da identidade degênero. Os estudos ressaltam que noâmbito internacional, nacional, regio-nal e local, permanecem vários tiposde exclusão, como segregação hori-zontal e vertical, trabalho em condi-ções precárias, (por exemplo, trabalho

Homem e Sociedade

Há uma expansão do trabalho remunerado por meio da incorporação maciça de mulheres à população economicamente ativa e do deslocamento de trabalhadores agrícolas para a indústria, os serviços e a economia informal urbana.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE124 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Educação e Trabalho Docente

part time) e no setor informal (Cruz,1999).

Exemplificando essa situação, da-dos apresentados por Dupas (1999),com base na OCDE, informam que 35milhões de pessoas estariam desem-pregadas, e 15 milhões estariam sub-empregadas. Qualificando esse proble-ma, observa que a maior parte dosdesempregados são jovens que estãoagora ingressando no mercado de tra-balho, 35% dos quais têm que aceitarempregos que não requerem gradua-ção. Essa situação conjuntural tem le-vando ao aumento da violência sociale, conseqüentemente, à necessidadede segurança. Em resumo, a questãosocial assume nova configuração Odesemprego, a vulnerabilidade e a pre-carização do trabalho, sua submissão àordem do mercado geram trabalhado-res excedentes, sobrantes. Emergemarmadilhas de exclusão, formas de de-sigualdade. Em especial, no continentelatino-americano, manifestam-se aagudização da situação de pobreza e oacirramento das desigualdades sociais.

A abordagem de Castel (2000) ca-racteriza a questão social a partir dadesagregação da sociedade salarial,designada pelo autor como a socieda-de que se constitui com base no traba-lho e suas proteções. Em sua ótica, édo trabalho e de sua proteção que seorganizam o direito social, a segurida-de social, a sociedade moderna, enfim.A questão social hoje põe em causaessa função integradora do trabalho edesestabiliza a vida social como umtodo; configura-se como uma dificul-dade central, a partir da qual a socie-dade se interroga sobre sua coesão esuas fraturas.

Diante dessa nova configuração daquestão social e na tentativa de con-trolar, à margem, o processo de desa-gregação da sociedade salarial, insti-tuem-se, em vários países, políticas deinserção que não parecem alcançar a

crise em sua extensão. As transforma-ções, em curso no mundo do trabalhoe no mundo da vida, fazem emergir,em conseqüência, espaços públicos,esferas públicas de gestão de obriga-ções e direitos, enraizadas em institui-ções e redes sociais que ligam antigosagentes aos novos espaços. Entre vá-rias questões, discute a relevância deum novo espaço caracterizado pelastransformações nas relações de traba-lho e, de imediato, os desafios do de-senvolvimento, aspectos chave do pro-blema da eqüidade de gênero, da ele-vação dos níveis de qualificação dostrabalhadores e trabalhadoras, do au-mento (ou, quando menos, preserva-ção) de postos de trabalho, participa-ção nas decisões sobre o curso detransformação econômica sustentável.

A Agenda Social da ONU, ao procu-rar estabelecer diretrizes de maneiranão impositiva, consensual, inter e in-fra-Estados para toda a humanidade,muito se aproxima da ação comunica-tiva com vistas ao estabelecimento de

uma ética discursiva, conforme o para-digma teórico de Habermas5 (1984), -que subscreve a crença numa razãouniversal. Oferece, assim, uma alterna-tiva racional e concreta, de escopo uni-versal e não padronizador, aos particu-larismos retrógrados e às tendênciascentrífugas da “pós-modernidade”,procurando conferir um sentido huma-nístico, mas não necessariamente indi-vidualista, às tendências globalizantesda época contemporânea. Essas, comose tem visto, deixadas por conta daeconomia, do mercado, dos fluxos docapital e da tecnologia, interligam, es-magam ou excluem, mas não unem.

Considera-se que a solidariedade -“o coração invisível do desenvolvimen-to humano” - está ameaçada porque omercado mundial competitivo dosnossos dias está pressionando o tem-po, os recursos e os incentivos direcio-nados ao trabalho de apoio social, semo qual os indivíduos não prosperam ea coesão social pode desmoronar-se. Adiversidade de expressões da questãosocial mostra que a igualdade socialpode ser obtida em culturas diferen-tes, embora exista uma discrepânciageneralizada e universal entre os se-xos. O Relatório do DesenvolvimentoHumano (RDH) propõe que se revise agovernabilidade global para o séculoXXI. As suas sugestões e recomenda-ções, que vão do nível global (reformadas Nações Unidas e da OrganizaçãoMundial do Comércio) ao nível regio-nal (abordagens coletivas para quegrupos de países participem das orga-nizações internacionais de comércio eoutras áreas), chegam ao nível nacio-nal (proteção social contra os efeitosda globalização) e mesmo ao nível lo-cal (maior equilíbrio de gênero, rela-ções sociais igualitárias na divisão dostrabalhos domésticos e serviços soci-ais). Na globalização, fica evidente anecessidade de incluir-se o desenvolvi-mento humano e a proteção social.

É do trabalho e de suaproteção que se organizam o direito social, a seguridadesocial, a sociedade moderna,enfim. A questão social hoje põe em causa essa função integradora do trabalho e desestabiliza a vida social.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 125

Homem e Sociedade

Melhor dizendo, “a globalização preci-sa de uma face humana”.

As estatísticas indicam “desigualda-de entre os sexos em todas as socieda-des” e mostram que apenas poucospaíses fizeram “progresso substancial”nessa área. Conforme dados do IDH -Indicadores do Desenvolvimento Hu-mano de 1999, os países que ofere-cem melhores condições para as mu-lheres são os seguintes: Bahamas, Re-pública Tcheca, Cingapura, Eslovênia,Noruega e Suécia. A diversidade des-ses países “mostra que pode ser obti-da uma maior igualdade entre os se-xos no desenvolvimento humano, emdiferentes níveis de renda e estágiosde desenvolvimento”. Alta renda não éfundamental para criar oportunidadespara as mulheres. A Costa Rica, porexemplo, está à frente da França, emtermos de igualdade entre os sexosnas atividades políticas, econômicas eprofissionais, e Israel tem melhor de-sempenho que o Japão. As mulheresocupam mais de 30% das cadeirasparlamentares, em somente cinco paí-ses; em 31 países ocupam menos que5% delas. O relatório registra que asmulheres dedicam-se a trabalhos so-ciais não remunerados em parcela sig-nificativamente maior que os homens,inclusive na dedicação à família. Elassão vítimas de uma indústria crescen-te: o tráfico de jovens e meninas paraa exploração sexual.

As disparidades mostram-se sufici-entemente evidentes. Mas o Relatóriodo Desenvolvimento Humano de 1999argumenta que os efeitos desiguais daglobalização conduzida pelos merca-dos e pelo lucro são muito mais vastose profundos, porque atingem todos osaspectos da vida humana. Adverte queos aspectos humanos foram deixadosde lado, omitidos, na visão estreita daglobalização baseada apenas nos as-pectos financeiros. Considera que “osmercados competitivos podem ser a

melhor garantia de produção eficien-te, mas não do desenvolvimento hu-mano”. Desse modo, enquanto a glo-balização for dominada pelos aspectoseconômicos e pela ampliação dosmercados, ela irá comprimir o desen-volvimento humano.

Defrontamo-nos hoje com um de-safio, resultado de questionamentos: épossível conciliar as demandas de go-vernança com os ideais de cidadania?Ou, dito de forma mais direta, há saídapossível para a tensão entre a busca daeficiência e a preservação dos direitos?Assim cruamente posta, acho que essaé a questão que interessa debater nes-te momento. Sob o olhar do gênero, odesafio é entender que não haverá de-senvolvimento social e econômicocom justiça, se não houver oportunida-des para homens e mulheres, direitose deveres para todos, sem discrimina-ção. Nenhuma visão de progresso po-de prescindir dessa condição de liber-dade. Nossa tarefa é aprofundar a rup-tura com padrões de comportamento

e atitudes marcados pelo patriarcalis-mo, que passou a ser duramentequestionado na segunda metade doséculo XX. Muito foi alcançado e deveser comemorado, mas resta muito porfazer.

NOTAS1. Emprego designa a realização de tarefas

geralmente remuneradas, vinculadas à gera-

ção de bens de mudança, cujo produto se in-

corpora diretamente ao circuito mercantil. Na

linguagem cotidiana, emprego e trabalho são

usados como sinônimos.

2. Gênero é uma palavra cujo significado

original - uma classe de literatura, música, ani-

mais, plantas, etc.- tornou-se político somente

depois de passar a designar uma classe de

pessoas. A partir desse acontecimento, situa-

do no início da década de 70, a diferença en-

tre homens e mulheres pode ser entendida

não apenas por suas dotações genéticas, mas

como duas classes de pessoas concebidas e

instituídas no convívio social e mantidas pela

tradição. Dizer que a palavra gênero é uma

ferramenta para desconstruir é dizer que ela

serve para produzir efeitos práticos.

3. O termo cultura é utilizado por ser mais

abrangente, englobando ciência e tecnologia.

A dicotomia natureza-cultura está na base de

muitas análises estruturalistas. Entre os traba-

lhos que relacionam a oposição binária entre

natureza e cultura com o feminino e o mascu-

lino, ressalta-se o de Sherrey Ortner, “Is it male

to female as nature to culture?”, in M. Zimba-

list Rosaldo e L. Lamphere (eds), Women, cul-

ture and society. Stanford, Princeton Press,

1974.

4. Cockburn, Cynthia, op, cit., México, 1990.

5. Embora para Habermas o discurso sirva

apenas para validar, não para criar normas, a

Agenda Social da ONU aproxima-se do mo-

delo. Até porque ela não cria normas. Procura,

sim, equilibrar e universalizar padrões de pro-

cedimentos. Ver sobre o assunto, Rouanet:

1993, pp. 214-54.

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Sob o olhar do gênero, odesafio é entender que nãohaverá desenvolvimento social e econômico com justiça, se não houver oportunidades para homense mulheres, direitos e deveres para todos, sem discriminação.

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* Trabalho apresentado na mesa-redondacom o tema: “O impacto das novas tecnologi-as sobre a mulher”, no X Encontro da Rede Fe-minista Norte-Nordeste de Estudos e Pes-quisas sobre a Mulher e Relações de Gênero(REDOR), e no I Simpósio Baiano de Pesqui-sadoras(es) sobre a Mulher e Relações de Gê-nero. Salvador, Universidade Federal da Bahia,29 a 01 de novembro de 2001.

** Professora Doutora do Departamentode Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ciências Soci-ais, vice-coordenadora do Mestrado emEducação da Universidade Federal de Ser-gipe. Coordenadora da REDOR. Ex-secre-taria da Sociedade Brasileira para o Pro-gresso da Ciência (SBPC) - Regional Sergi-pe. Autora de livros e artigos. E-mail: [email protected]

126 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação e Trabalho Docente

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 129

Política e Cidadania

Edmundo Fernandes Dias 1

A fala de Marco Polo, relatada porCalvino, marca os limites e as possibi-lidades da construção de uma teoriada política: pensá-la como esferaseparada do real ou mera determina-ção do “econômico” é interditar acompreensão da natureza própria doreal e da teoria. Assim como não há oarco sem as pedras e estas seriamimpensáveis sem a necessária articu-lação com aquele. A teoria políticaseria um discurso vazio se examinadacomo exterioridade em relação à tota-lidade social ou como mero epifenô-meno do “econômico”. Faz-se neces-sário também pensar o real a partirda reflexão das práticas e dos discur-sos dos dominados e das ideologiasdominantes buscando a superaçãodestas e a construção do campohegemônico daquelas. Sem essa dia-lética, todo esse projeto seria inútil,analítica e politicamente. Pensar apolítica significa, em ultima instância,pensar para quem e com qual proje-to. Como toda e qualquer reflexãosobre a totalidade não há neutralida-de possível2.

Os limites do modo capitalista depensar a política ficam mais clarosquando analisamos o capitalismo esuas formas de socialização da política.Analisar sua institucionalidade é cons-

truir a possibilidade de dar inteligibili-dade ao real. Pensar essa instituciona-lidade na situação brasileira é funda-mental para quem pretende se colocarno campo da superação das formas deexploração e opressão e trabalhar naperspectiva da instituição de uma nova

forma social. Vale dizer da construçãode uma sociedade classista.

A forma singular que o capitalismoassume em nossa formação socialseguramente aparece, aos teóricos li-berais, como uma excrescência lógica,um desvio da racionalidade. Se pen-

Para Moema

Marco Polo descreve uma ponte, pedra sobre pedra.

Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Kan.

A ponte não está sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas pela linha do arco que elas formam.

Kublai permanece silencioso, refletindo. Depois acrescenta: Porque me falas das pedras? É apenas o arco que me importa.

Polo responde: - Sem as pedras não existe o arco.

Italo Calvino - Le città invisibili

Gramsci e a política hoje

sarmos na aplicação, pura e simples,das formas institucionais aparente-mente vigentes nas sociedades capita-listas dos chamados países mais“avançados”, a realidade de uma histó-ria tão brutalizada como a brasileirapode parecer um enorme contra-sen-so. A cidadania assume a forma donon sense.

Gramsci, a clarificação da política e a construção da hegemonia Fino analista da política, Gramsci

constrói sua teoria e sua prática na lutacontra as ideologias e práticas do libe-ralismo, vistas como ideologia da ma-turidade da burguesia e como horizon-te contraditório no qual tem que situ-ar-se às demais visões de mundo. Elea examina como um locus do embatehegemônico que deve ser superado,jamais como horizonte intransponívelàs reflexões e às práticas das classessubalternas. Horizonte-limite no qual econtra o qual as classes subalternas,nacional e internacionalmente, têmque exercer sua cotidianeidade e, aum só tempo, lutar para superá-la. Vaimais além e analisa as formas da insti-tucionalidade construídas nas chama-das sociedades socialistas.3 Contra-riamente aos autores que critica, com-bate, ele recusa a política como puraforma institucional e a cidadania comoalgo natural e imutável. Recusar asatuais formas de fazer política é cons-truir a possibilidade da construção deuma nova civiltà. Permanecer nos seushorizontes é aceitar a subalternidadedas classes trabalhadoras como “desti-no manifesto”.

As elaborações gramscianas sobre apolítica são de uma atualidade radical.Exemplo clássico dessa radicalidade éa recusa de uma visão puramente ins-trumental do Estado que, ao reduzi-loà pura “vontade dos dominantes”, nãopermite captar o complexo jogo dascontradições. As forças antagônicas

em presença, se e quando praticamessa visão redutora, acabam por nãoperceber a natureza e as formas deintervenção estatal concreta na lutasocial4. O Estado não pode ser reduzi-do à mera vontade dos dominantescomo se as contradições classistas(entre as classes e intraclasses) nãoexistissem e não determinassem osentido das formas de fazer política. Asclasses subalternas, se assim proce-dem, ficam prisioneiras de um politi-cismo dês-historicizado, irmão gêmeodo economicismo: formas do maisacabado pensamento burguês. Aquestão da hegemonia vista do pontogramsciano significa, por um lado, acrítica prático-teórica da estruturaçãodas formas de dominação e, por outro,a condição de possibilidade de alteraras regras já dadas. Aceitar, como pos-tula Bobbio, a política como proces-sualística implica aceitar como subver-siva e antinatural qualquer postura detransformação. Vale dizer, aceitar o ca-pitalismo como único horizonte possí-vel para a vida social.

O modo pelo qual foram feitas algu-mas leituras - digamos, as leituras do-minantes - sobre a obra gramscianapermite objetivamente a deformaçãodo seu pensamento e do seu projeto5.Os desdobramentos metodológicos,que Gramsci constrói, e que lhes sãotão caros, como sociedade civil/socie-dade política, oriente/ocidente, econo-mia/política, guerra de posição/ guer-ra de movimento, etc. são, freqüente-mente, tomados como entidades eprocessos autônomos. Ao proceder-seassim, confunde-se sua perspectiva

com a liberal e esteriliza-se sua refle-xão e as práticas que ela permite.

A unidade do pensamento deGramsci é marcada pela atualidade doprocesso revolucionário, o que tornairônico ainda mais perversamente es-sas “leituras”. Atualidade determinadapela “análise concreta de situaçõesconcretas”. Reduzir esse horizonte re-volucionário ao jogo das instituiçõessignifica recusar-se a compreender oreal e a negar de forma peremptoria-mente a Tese XI, sobre Feuerbach, a danecessidade de transformação domundo.

Devemos responder, então, a umapergunta crucial: podemos pensar apolítica, hoje, para além dos mecanis-mos apresentados pela teoria liberal?Devemos construir um aparelho teóri-co-prático que permita explicitar aidentidade e o projeto das classes su-balternas? Essas perguntas colocam aquestão central da hegemonia.

A teoria liberal foi, é e será, sempre,um elemento de potenciação do de-senvolvimento da ação das classes do-minantes. É, em síntese, a racionaliza-ção das práticas capitalistas que impõeuma pseudo-universalidade, uma abs-tração determinada, da sociabilidadecapitalista. Abstração/aparência6 queatuam no sentido da subsunção das

130 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Política e Cidadania

A questão da hegemonia vista do ponto gramsciano significa, por um lado, a crítica prático-teórica da estruturação das formas de dominação e, por outro, a condição de possibilidade de alterar as regras já dadas.

classes subalternas à Ordem do Ca-pital. Essa “universalidade” exerce umenorme fascínio sobre os teóricos quese reclamam das classes subalternas.Ela se apresenta como cantos de se-reia de uma ideologia que é, necessá-ria e constitutivamente, um poderosoobstáculo para se pensar a possibilida-de de uma teoria e uma prática doponto de vista das classes subalternas.Aqui as análises de Marx sobre o com-portamento dos social-democratas7

são muito preciosas. As instituições têm a finalidade pre-

cípua de perpetuar a forma social do-minante. E para tal é necessário redu-zir a contradição ao conflito e as clas-ses aos indivíduos. O sujeito do direitoé sempre o indivíduo. Quase nunca ocoletivo. A dissolução das classes emindivíduos e das suas contradições emdiferenças permite sustentar a tese e aprática da “comunidade ideal” e locali-zar as diferenças como desvios passí-veis de normalização e de repressão. Agreve é um exemplo cada vez maisatual do que falamos. Ela é semprevista como corte na normalidade e,portanto, como causadora de prejuí-zos sobre os indivíduos. Na sociedadecapitalista, constituída por contradi-ções classistas, os antagonismos ja-mais poderão ser suprimidos. Nem po-deriam sê-lo porque eles são constitu-tivos do próprio real. E muito menosserá possível chegar a um consensocomunicativo como pretende Ha-bermas.

A abstração liberal, o chamado Es-tado democrático de direito, é a impo-sição de uma dada visão de mundo,de um projeto total classista, é a “ex-pressão dos antagonismos sociais pre-sentes na institucionalidade burguesae enquanto espaço de afirmação daigualdade formal e do domínio da cha-mada lei positiva”8. A problemática daliberdade e dos direitos sociais certa-mente indica questões que, mesmo

em uma sociedade não capitalista, te-rão que ser equacionadas. O problemareside exatamente no fato de que, nateoria liberal, todas as categorias, paraas classes subalternas, nada mais sãodo que abstrações vazias embora, doponto de vista da burguesia, ela sejauma abstração real, o resumo qualifi-cado do conjunto das suas práticas. Asnecessidades práticas da sociedadecapitalista esvaziadas da sua historici-dade ganham fóruns de conceitos uni-versais. A particularidade aparece co-mo universalidade, como naturalidade.

Confundir as visões de mundo, to-mar a voz (e as práticas) dos dominan-tes como voz (e práticas) universal-mente válidas significa anular-se comoprojeto de subjetividade histórica quepretende e pode objetivar-se em umanova sociabilidade. Gramsci, no seutempo, alertava para a necessidade denão apenas criticar essas formulaçõesmas de criar condições em que elasnão possam mais ter efetividade.Aceitá-las como moeda boa significatrabalhar no sentido da chamada inte-gração à Ordem. O perigo da seduçãoliberal só será eliminado, ou pelo me-nos minimizado, se e quando se reali-ze o processo de construção das iden-tidades das classes subalternas. É preci-so, portanto, ir além das aparências (li-mite expresso da teoria liberal) parapodermos ter a clara compreensão dasreais determinações.

O Estado, a democracia e a cidada-nia, fetiches constituidores da institu-cionalidade capitalista, são destituídosde sua marca classista e vividos comouniversais. Na fase imperialista ao Es-

tado não bastava a aparência do Esta-do guarda-noturno, do mero garanti-dor dos contratos desiguais. Para reali-zar esse processo absolutamente im-prescindível à realização do bloco his-tórico capitalista, ele transformou-se.Variou historicamente do fascismo aowelfare state, ao new deal, ele ganhounovas determinações e novos intelec-tuais (cf. as grandes instituições finan-ceiras internacionais como o FMI e oBanco Mundial, as reformas neolibe-rais do Estado, etc.) necessárias à im-plementação do sentido e da direçãodas classes dominantes a partir dasquais as classes subalternas (e suasnecessidades) são incorporadas/sub-sumidas.

Para que se possa, aqui e agora,pensar a política, em sociedades mor-fologicamente semelhantes à nossa,devemos considerar a autonomia dopensamento e da identidade das clas-ses subalternas como elemento funda-mental do processo de transformaçãorevolucionária. Vale dizer, potenciar aomáximo a tendência antagonista aocapital.

É nesse sentido que se deve colocara tarefa de construir o comunismo, co-mo modo de produção e de vida. De-ve-se romper com a imagem românti-ca e ingênua do trabalhador como umrevolucionário nato, como forma atualdo bom selvagem. Aceitar essa ima-gem é negar a totalidade da teoria eda prática marxistas, que afirma/re-quer a crítica radical da ordem capita-lista, momento necessário à constru-ção da nova sociabilidade. É esse mo-vimento crítico que permite a negaçãoda possibilidade, dolorosa e atual, deque a ideologia burguesa transforme otrabalhador em um militante da or-dem do capital9. Atuar na libertaçãoideológica do trabalhador significa ne-gar, praticamente, o capitalismo e oconjunto das formas mercantis, fetichi-zadas.

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 131UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Os limites (histórico-concretos) do pensamento das esquerdasO processo da revolução russa con-

cretizou, durante décadas, no ideário enas práticas das classes trabalhadoras,a alternativa histórico-concreta à socia-bilidade capitalista. Este processo revo-lucionário radical transformou-se emum exemplo de revolução passiva, aoser abortado10. Gramsci afirma que osblocos históricos, ao se constituírem,passam por uma fase econômico-cor-porativa. A tragédia da revolução russadeu-se no entrecruzamento da guerraimperialista, da guerra civil e das inter-venções armadas externas. Isso nãopode ser visto como justificativa dessapassivização mas é constitutivo docenário onde as tendências regressivasse realizaram: o processo de elimina-ção das diferenças internas ao PartidoBolchevique, a não vigência da sociali-zação das forças produtivas e de umademocracia socialista, a imposição deum corpus teórico11 que eliminou aimensa riqueza do debate teórico (cf.as questões nacional, agrária, etc.), atese antimarxiana do socialismo emum único país tornado possível pelaredução da história de todas as socie-dades a um evolucionismo vulgar12, oatrelamento rígido e burocrático domovimento comunista à linha estraté-gica da “pátria mãe do socialismo”. Otaylorismo e a NEP, com a restauraçãodas formas capitalistas, foram respos-tas implementadas face aos enormesdesafios. Tudo isso aliado ao dogmatis-mo economicista (cf. o debate sobre oplanejamento, etc.) acabou por fabri-car o campo da barbárie burocrática.Neutralizou-se não apenas a possibili-dade da liberdade, mas, e fundamen-talmente, inviabilizou-se a própriaconstrução de formas distintas de ma-terialidade e racionalidade. Suprimidasas liberdades e potencializada a açãoestatal, o que se produziu foi uma no-va classe operária sem tradições de

luta. Lenin e Trotsky, entre outros, fo-ram derrotados por Stalin. E com eles,as classes subalternas em escala pla-netária.

Depois de várias décadas de confu-são entre processo histórico russo esocialismo, especialmente após o esti-lhaçamento do bloco dito socialista,um sem número de direções e organi-zações de esquerda, de diversas mati-zes, procederam a um mea culpa semlevar a crítica às últimas conseqüênciase acabaram por fazer um giro de 180°,passando a afirmar, com a mesma cer-teza e dogmatismo anteriores, justo ocontrário do até então defendido, sem“dar-se” conta da operação ideológicaque “sustenta” essa mudança de “aná-lise” e de práticas. A partir daí, a maiorparte das esquerdas brasileiras, entreoutras, vem proclamando, há pelomenos uma década, a impossibilidadede uma alternativa real ao capitalismo,abandonando toda e qualquer pers-pectiva socialista e passando a cons-truir suas táticas e estratégias a partirdessa constatação.13

Como as esquerdas, em escala in-ternacional, tinham baseado suas aná-lises na identificação entre socialismoe estatismo e, ao mesmo tempo, recu-sado a colocar a questão e a prática dasocialização das forças produtivas, odiscurso majoritário por elas produzi-do - e suas práticas correlatas - tradu-ziu-se em uma análise determinista detipo economicista. Esta “análise” rebai-xou o nível da teoria e das práticas àluta pela obtenção de medidas quepermitissem às classes trabalhadoras,em especial, ao operário fabril, uma

melhor condição material de vida.Decorrente daí, ficava, sobretudo paraos social-democratas, a suposição deque era possível realizar essas conquis-tas no plano da democracia formal detipo liberal e, para os partidos comu-nistas, a de que socialismo e planifica-ção eram um único e solidário corpo.A industrialização passava a ser a solu-ção mágica.

As sociedades industriais apareci-am, assim, como um território indife-renciado (forma primeira do debatesobre a sociedade pós-industrial).Muitos teóricos chegaram a falar noindustrialismo como abrigando duaspossibilidades: a capitalista e a socia-lista. Com isso, obviamente, caminha-va-se no sentido da esterilização dorecurso explicativo das lutas de classese afirmava-se a tecnologia como exter-na às lutas sociais e como solução pa-ra todo e qualquer problema. Supri-mia-se, deste modo, a possibilidade daconstituição de uma nova forma socie-tária; reforçava-se o capitalismo comohorizonte político-ideológico a ser vivi-do pelas classes trabalhadoras. Sacri-ficava-se o necessário ao possível.

Esse processo sofreu, desde a déca-da de 30, muitas críticas: Gramsci,Trotski, Korsch, etc. Não constituiu, por-tanto, uma surpresa, a crise do chama-do bloco socialista. Ao não colocar apergunta sobre as condições reais doseu “novo” projeto, as esquerdas, ma-joritariamente, acabaram por institu-cionalizar a luta dos trabalhadoresatravés de uma postura aliancista apriori.14 Em nome de um acúmulo deforças, necessário, buscavam, em outraclasse (a burguesia nacional progres-sista), a direção real e inconteste doprocesso de “libertação” das forçasprodutivas. Elas trabalhavam com aidéia segundo a qual seria possível aconstituição de uma sociedade mo-derna, democrática, autônoma, nosmarcos do imperialismo. Confundiram

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a resolução da questão nacional com apossibilidade de um projeto de capita-lismo nacional autônomo sem rompercom a ordem do capital. Era como se aquestão nacional pudesse ser resolvi-da recalcando a perspectiva internacio-nal. Ao afirmarem tal transição, sem apresença revolucionária das classessubalternas, as esquerdas tornaram-seprisioneiras umbilicalmente do capita-lismo, atrelando a ele aquelas classese decapitando suas possibilidades re-ais de libertação. A nação passava a seruma abstração vazia onde um enteabstrato, o povo, se oporia a um “es-trangeiro opressor”. No Brasil, as análi-ses do Instituto Superior de EstudosBrasileiros, o ISEB, e dos partidos co-munistas foram e são exemplares. Asclasses são subsumidas à nação toma-da como totalidade homogênea, semcontradições.

A constituição da identidade dasclasses subalternas era impedida, limi-tavam-se seus projetos e se ajudava aperpetuar aquele, que, em teoria, eraseu “inimigo”. Procedendo assim, aca-baram por se limitar à esfera da circu-lação, questionando tão somente asformas de distribuição e consumo,deixando intocada a esfera da produ-ção, com o que não atacavam o cerneda questão. Permaneciam no campoeconômico-corporativo, impedindo-se

de colocar a destruição da ordem ca-pitalista como projeto estratégico. Naprática, vedavam a construção de pro-jetos hegemônicos. Suas ações eram,assim, pautadas, agendadas, pelo ini-migo de classe.

Após a passivização do momentorevolucionário de Outubro, essas aná-lises passaram a focar a possibilidadede regular o capitalismo como alterna-tiva principal. Pretendeu-se, com isso,impedir que as famosas contradiçõescapitalistas atingissem um nível supe-rior de deterioração da vida social. Pre-dominava, nessa conjuntura interna-cional, uma concepção “distributivista”,segundo a qual era possível, dentro docapitalismo, alterar decisivamente acorrelação de forças em favor do ope-rariado e das demais classes trabalha-doras. Confundiu-se o plano - necessá-rio mas não suficiente - das reformascom o processo de transformação alongo prazo. Abandonou-se a idéia darevolução socialista. Não se levou emconsideração a capacidade do capita-lismo de superar suas próprias crises.Isso aparecia, claramente, tanto naideologia estalinista da crise final docapitalismo, quanto nas análises so-cial-democratas da auto-superação docapitalismo pelas liberdades já realiza-das através do Estado capitalista. Ma-triz desse pensamento foram as for-mulações feitas por Kautsky sobre oEstado Moderno como solo no qualera possível constituir a nova sociabili-dade, bastando controlá-lo via maioriaparlamentar.15

Essas “análises”, estratégias e táticasnão levavam, na devida consideração,as análises elaboradas por Marx que

estudara o capitalismo como totalida-de articulada pelos processos de traba-lho e de valorização sob o comandodeste último e que o segredo de todadominação era explicado através daforma pela qual se extraía o mais-valor.A redução da totalidade social à puracontradição Capital-Trabalho - domi-nante na deformação estalinista domarxismo - como se esta, em si mes-ma, fosse capaz de desvendar o real, éuma forma mistificada/ alienante, quedesarmou, por décadas, a militância16.A análise marxiana e marxista que é acrítica mais radical da economia políti-ca capitalista e da sua institucionalida-de foi transformada em uma pura teo-ria econômica.

A identidade de classe: as práticas e os saberes A necessidade orgânica dessas clas-

ses de construírem os seus intelectuaisé cada vez mais atual e imprescindível.Esse processo se faz dentro e contra ainstitucionalidade vigente. A produção-reprodução ampliada das classes su-balternas é, assim, descentrada em re-lação a si mesma e centrada na racio-nalidade contraditória do(s) seu(s) an-tagonista(s). A construção do momen-to ético-político, da hegemonia, éimensamente obstaculizada. Para rea-lizar a ruptura constituidora de suaidentidade/projeto, é necessário queas classes subalternas se subtraiamaos discursos e práticas dominantes,lutem contra eles: devem se colocarcomo sujeito fundador da possibilida-de de um novo bloco histórico apre-sentar-se como revolucionárias.

Nesse processo, é necessário e vitalrecusar o economicismo que nega, na-turaliza e reifica os antagonismos. Oeconomicismo faz, do atual, do vigen-te, uma segunda “natureza”, uma puracontinuidade, ao subordinar tudo etodos a uma realidade já dada, recu-sando a possibilidade de intervenção

A produção-reprodução ampliada das classes subalternas é,assim, descentrada em relação a si mesma e centrada na racionalidade contraditória do(s) seu(s) antagonista(s).

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das vontades na história. Foi a partir daótica economicista, presente na quasetotalidade do pensamento da III Inter-nacional, que se tentou reduzir o mar-xismo a uma mera teologia e, assim,esterilizar a sua capacidade revolucio-nária.

Gramsci afirma, com clareza, que o“marxismo” estalinista, ao tentar tor-nar-se massa, via catequese popular,acabou por não ganhar os elementossadios da massa e, a um só tempo,perdeu a capacidade de atrair os inte-lectuais. Conseguia-se, assim, o piordos dois mundos. Ao invés da eleva-ção político-ideológico-moral das mas-sas, acabou por assumir uma posturade cisão instrumental em relação aelas. Os intelectuais passaram a ser vis-tos como elementos de prestígio parao partido mas não como elementosintegrados à sua vida íntima, partícipesdo processo de elaboração/construçãocoletiva do novo projeto.17

Um dos principais elementos de su-bordinação do pensamento e das prá-ticas das classes subalternas é precisa-mente a brutal dificuldade de elas ela-borarem a sua própria identidade. Oseu saber/pensamento é construído,errática e fragmentariamente, a partirda sua inserção subordinada na estru-tura social. As classes subalternas têmque, em um processo permanente deluta contra essa dominação/saber, darrespostas concretas e imediatas aosproblemas colocados pelos dominan-tes. É, normalmente, no interior, nopróprio cerne destas práticas e discur-sos, que aparecem diante da totalida-de do social como possibilidade única,naturalidade, horizonte, que as res-postas das classes subalternas se con-figuram como não-saberes. É exata-mente por isso que os saberes/práti-cas dos dominantes ditam os ritmos eas formas de todo saber constituído econstituível. Para as classes dominan-tes basta a reprodução, pura e simples,

de suas práticas. Estas são pensadascomo forma técnica da sua racionali-dade classista (e suas atualizações ne-cessárias).

Para a perpetuação dos saberes do-minantes, a questão é facilitada. Seusintelectuais (os únicos que eles reco-nhecem como tais) passam muitotempo afastados das tarefas imediatasda obtenção da sobrevivência. Passampor um processo que Gramsci chamade taylorização do saber e atuam nodesenvolvimento do já existente. Suaexpressão é, no fundamental, econô-mico-gerencial para dar maior raciona-lidade à prática capitalista. Para os in-telectuais das classes subalternas, oterreno é mais pedregoso. Em geralnão podem permanecer tanto tempona escolarização-taylorização do sabere, fundamentalmente, têm que res-ponder como criar o novo, como pen-sar e construir o futuro. Sua expressãose dá, principalmente, no campo dapolítica.

A não-estruturação autônoma dasclasses subalternas, o fato de elas te-rem que dar respostas aos dominan-tes, faz com que a totalidade da suaexistência (rica e contraditória) seja re-duzida à imediaticidade, à fragmenta-riedade, à cotidianeidade, atuando nolimite do campo econômico-corporati-vo, da sua reprodução subalterna. Énesse sentido que Gramsci afirma anecessidade de um profundo conheci-mento da experiência dessas classes.Não se trata de sobrepor-se ao conhe-cimento delas mas de construir comelas suas identidades. Criticar suas for-mas de conhecimento - o folclore, o

senso comum - permitirá avançar nosentido da construção dessa identida-de. Aqui ganha pleno sentido a afirma-ção gramsciana de que todos somosintelectuais, embora nem todos atuamprofissionalmente como tais.

Sociedade civil e sociedade políticaRomper com o campo ideológico

dominante significa começar a elimi-nar as condições da opressão classista.Isso passa, no âmbito teórico, pelo de-bate crítico da relação sociedade ci-vil/sociedade política. Pensá-los demodo cindido implica, desde logo, pa-ra Gramsci, desconhecer a natureza doEstado. A própria idéia de “ampliação”é a demonstração maior desse desco-nhecimento. Mais do que isso: é o re-conhecimento de que se trabalhava osaparelhos estatais como meramenteinstrumentais. Marx já acentuara, em O18 Brumário, a forma pelo qual o Es-tado atuava como organizador do con-senso e, ao mesmo tempo, da domi-nação. Os aparelhos estatais eram vis-tos como um imenso exército de fun-cionários que, via as lutas de classes ede frações de classe, organizava o po-der, desorganizando objetivamente asclasses subalternas.

Gramsci elabora sua teoria do Esta-do como uma unidade articulada deconsenso e coerção, pensa-o comoprodutor da organização/desorganiza-ção da totalidade da sociedade.18 Pen-sar a sociedade civil como separada dasociedade política significa desconhe-cer as condições reais das lutas declasse, pois implica cindir direção e co-erção, mitificando assim os projetoshegemônicos. Essa separação no cam-po do capitalismo é absolutamenteimpensável. O conceito de bloco histó-rico nos permite compreender a ne-cessária articulação entre sociedade ci-vil e sociedade política. O momentoatual demonstra à saciedade que astransformações institucionais, como acrescente desconstitucionalização da

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vida social, são condições necessáriase suficientes para a manutenção daforma capitalista e de suas práticas. Doponto de vista liberal, essa cisão é ple-na de sentido: expressa a aparenteoposição entre público e privado. Noprimeiro termo da relação, está coloca-da a liberdade; no segundo, a possibi-lidade da coerção que deve ser neces-sariamente controlada mas não elimi-nada. A sociedade política, identificadaao Estado, deve atuar como guardiã dapropriedade, dos contratos. Esta é a vi-são liberal.

Como, para Gramsci, a sociedade ci-vil é, ela própria, Estado, essa proposi-ção construída como oposição abstra-ta, legitima a palavra de ordem “orga-nizar a sociedade civil contra o Estado”.Ela dá foros de cientificidade à subor-dinação/integração das classes traba-lhadoras à Ordem do Capital. E não fazo menor sentido - antes pelo contrário- no processo de constituição de umanova forma social, de uma nova civiltà,da sociedade regulada. Nessa perspec-tiva, que reduz o pensamento grams-ciano a uma visão de esquerda do li-beralismo, o Estado passa a ter o mo-nopólio da coerção ignorando-se o pe-so da dominação ideológica.

A sociedade civil, habitat da cidada-nia, é tomada como campo homogê-neo: trata-se de uma impossibilidadeface os antagonismos classistas. A ci-dadania, vista como campo privilegia-do da guerra de posição, passa a serentão o fetiche central do nosso sécu-lo. Uma cidadania que ainda que, dealgum modo, leve em consideração osantagonismos, é uma abstração deter-minada: é uma cidadania burguesa.Jogar todas as cartas na democracia ena cidadania burguesas (tomadascomo universais)19 significa “eliminar”o antagonismo, construir os caminhosda derrota e da incorporação à ordemcapitalista. A noção de cidadania, doponto de vista das classes subalternas,

deve ser pensada como espaço decontradições, caso contrário, ela acabapor reforçar essa igualdade mistifica-da/mistificante.

Marx, ao analisar o capitalismo,mostrou como as relações de desi-gualdade estrutural entre pessoas apa-recem como meras relações entre coi-sas. O fetichismo da mercadoria de-monstra como a relação mercantiloculta, no mais simples ato produtivo,a estruturação do poder, a presençadas classes e sua organização/desi-gualdade estrutural. Tudo se passa co-mo se houvesse uma troca entre mer-cadorias. A estruturação do trabalho ea expropriação do sobretrabalho, comtodo o seu cortejo de dominações/su-balternidades, “desaparecem”, somem,na poeira da estrada.

Nunca é demasiado ressaltar que asleis de desenvolvimento capitalista seconcretizam no solo fecundo da histo-ricidade do real. Poder-se-ia argumen-tar que esse não é um processo novoe que essas mesmas esquerdas já ti-nham, na prática, abandonado a com-preensão dessa totalidade contraditó-ria, do conjunto das demais contradi-ções classistas, ao aceitar e privilegiaruma visão distributivista-aliancista. Ofato de colocar a imediaticidade dasconquistas materiais como elementoestratégico central levou necessaria-mente à desqualificação de todo esseconjunto de questões. Discursos e prá-ticas que essas análises das esquerdasnão conseguiram capturar.

A negação do antagonismo classistaé a característica essencial do pensa-mento reformista: e é a partir disto queganha significação o privilegiamento da

atuação no campo institucional20 e aconseqüente naturalização/ocultamen-to do antagonismo, no processo depolitização da luta. Politização que serealiza dentro e contra a ordem. Nãoqueremos negar que o plano da insti-tucionalidade possa e deva ser usado.Colocado sob a égide do antagonismoclassista, como campo e locus de luta,essa institucionalidade - forma políticadas relações sociais capitalistas - serevela na plenitude de suas determina-ções. A subsunção da luta dos movi-mentos sociais a essa institucionalida-de, que recalca/”anula” os antagonis-mos, levou à perda da perspectiva declasse realizando assim, ainda que con-traditoriamente, a integração ativa dasclasses subalternas à ordem do Capital.

A análise morfológica: oriente/ocidenteO peso da cidadania burguesa “pa-

rece” caracterizar a impossibilidade daconstrução de uma nova sociabilidade,a comunista. A aparência não é umailusão, nem uma falsa consciência: elaatua no sentido de tornar possível queuma determinada visão de mundomaterialize-se, que o logos se faça car-ne. Constitui-se como fundante do re-al. A crença no chamado Estado demo-crático de direito, ainda que miragemna prática cotidiana, torna possível sua

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A aparência não é uma ilusão, nem uma falsa consciência:ela atua no sentido de tornar possível que uma determinadavisão de mundo materialize-se, que o logos se faça carne.

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aceitação. A formalidade desse Estado,com suas correlatas “liberdade de im-prensa”, “alternância no governo”, “le-gitimidade da maioria”, “a separaçãodos poderes”, etc., permite que as clas-ses antagônicas vivam o processo damais inaudita concentração de poder(econômico, político, institucional) co-mo se fosse um momento de plenitu-de democrática. No Brasil, é via umaimensa subversão jurídica, a reescritu-ra da Constituição, às vezes, por sim-ples medidas provisórias, que se leva aefeito um golpe de estado institucionaltravestido de liberdades democráticas.

Ao formular o par conceitual Orien-te-Ocidente, Gramsci não o faz parapensar uma polarização fatal pela qualtodas as formações sociais tenhamque, necessariamente, passar. Nãosubstitui a famosa teoria das etapasque acabou por suprimir no interior docampo dito socialista a análise concre-ta das histórias nacionais. Antes, pelocontrário, a liquida. Essa caracteriza-ção morfológica implica, fundamen-talmente, a necessidade da com-preensão do processo histórico daconstrução das diferenças entre for-mações sociais. Decisiva nesta análiseé a forma pela qual os antagonismos,o peso e a complexidade da conden-sação das práticas sociais e institucio-nais expressam-se em cada uma des-sas formações.

Ler este par conceitual como de-marcatório de (im)possibilidades his-tóricas é negar a tese leninista segun-do a qual a alma do marxismo é “aanálise concreta de situações concre-tas”. Valeria a pena relembrar que talleitura, em grande medida, correspon-deu às necessidades estratégicas doregime burocrático russo: cf. a tese dacoexistência pacífica e a política dasáreas de influência. Desnecessário édizer que o procedimento, equivoca-do politicamente, tem um supostoteórico-epistemológico: Oriente e Oci-

dente são tomados como tipos ideaisweberianos. Ao equívoco político so-ma-se a ilegitimidade do procedimen-to epistemológico.

Marx mostrou que o processo histó-rico da luta de classes conformou omodo de dominação capitalista: o Es-tado Moderno e sua institucionalidade,entendida essa como o locus onde serealiza a dominação classista e nãocomo espaço civilizatório neutro. Asinstituições são formas da condensa-ção da luta de classes. E, obviamente,as transformações que ocorrem nocotidiano, embora criem/recriem con-tradições e conjunturas sempre reno-vadas, não alteram essencialmente anatureza de classe dessa forma socie-tária. O fato, por exemplo, de a redu-ção numérica dos trabalhadores fabrisde tipo fordista não implica o desapa-recimento do trabalho nem como prá-tica nem como categoria central para acompreensão da sociabilidade capita-lista, não suspende os efeitos da Teoriado Valor (da condensação de explora-ção/ opressão), nem muito menos eli-mina os efeitos fetichistas da ordemmercantil.

Para captar o significado pleno des-sa armadilha, é preciso compreender oque é o modo de produção capitalista.A primeira imagem que se faz dele é ade um poderoso sistema de produçãode mercadorias. Marx, no Capítulo Iné-dito de O Capital, afirma: “A funçãoverdadeira, específica do capital en-quanto capital é pois a produção demais-valor, e essa não é senão produ-ção de sobretrabalho, apropriação -no curso do processo de produção real

- de trabalho não pago, que se ofere-ce aos olhos e se objetiviza comomais-valor”21. Mostrou, ainda, que adeterminação do processo de valoriza-ção era essencial para a compreensãode como se realizava o próprio proces-so de produção. Para sua existência, ocapitalismo requer a presença/fusãodessas condições. O antagonismo éuma marca essencial dessa forma his-tórico-social.

Na prática, a reificação do par Ori-ente-Ocidente é uma forma de negar aatualidade da questão da revoluçãonas sociedades ditas ocidentais. Aqui,o peso da institucionalidade seria detal ordem que não cabe mais a “guer-ra de movimento”, apenas a de “posi-ção”. O quadro político dos países ca-pitalistas onde a luta de classes obri-gou a uma regulamentação da formaestatal ainda que dentro da ordem doCapital tornou mais complexa e resis-tente o conjunto das casamatas (apa-relhos de hegemonia) que defendemuma dada forma estatal. A diversifica-ção institucional dos países capitalistasé a forma privilegiada da subsunção/incorporação dos trabalhadores.

Afirmar-se que hoje não cabe maiso processo revolucionário dado que astransformações são lentas e molecula-res (processualidade) significa ler a re-volução como “momento catastrófico”,similar, em última análise, às antigasteses da “crise geral do capitalismo”.Pensar essa impossibilidade implica,na prática, termos estratégicos, em ris-car do mapa o grau de antagonismodas sociedades capitalistas. Significaafirmar, perversamente, a um só tem-po, o fim da história e a validade dodeterminismo como modo de ver oreal. Obviamente “guerra de movimen-to” e “guerra de posição” são movi-mentos estratégicos e táticos cuja arti-culação/privilegiamento passa neces-sariamente pela análise da correlaçãode forças. Pensar a política supõe sem-

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pre essa análise. Negá-la é negar apossibilidade de intervenção conscien-te na História.

O economicismo: da miséria crítica à impotência políticaA sociabilidade capitalista é marca-

da pela figura do homem abstrato: ocidadão. Esta aparência (necessária)implica, a um só tempo, um homo œ-conomicus e um homo politicus neces-sariamente cindidos. O indivíduo capi-talista (partícipe do mercado e da polí-tica)22 parece ser genérico. Não o é.Gramsci afirma que essas figuras cons-tituem uma unidade real, todo indiví-duo, afirma, é um bloco histórico.

O “econômico” tem que ser enten-dido como um campo23 marcado pelainstitucionalidade e pelas ideologias,na ausência das quais ele próprio serevelaria como o solo da mais brutalviolência classista. Mais ainda: todapolítica econômica é projeto políticoclassista (ver as observações gramscia-nas sobre o liberalismo e sobre o sin-dicalismo teórico) como o demons-tram o welfare state (com sua correla-ta expansão do consumo de massa ede direitos sociais) e/ou o neoliberalis-mo (eliminação dos direitos sociais eprivilegiamento de novas formas deconsumo): um e outro, formas de re-solução da crise do Capital.

Gramsci mostra que o discurso e aspráticas burguesas cindem o econômi-co do político. E necessita fazê-lo. Dis-curso e práticas que embora procla-mem a plena onisciência do indivíduorecusam-na, no cotidiano contraditóriodas classes. A análise que ele faz daexperiência dos Conselhos de Fábrica,em Turim, nos anos 19 e 20 deste sé-culo, chamava a atenção não apenaspara essa cisão mas para as formasconcretas de dominação do Capital so-bre o Trabalho no interior das fábricas.As suas primeiras análises sobre o tay-lorismo e as correlatas posturas cola-

boracionistas travestidas de formas decidadania são claras e precisas24. Afir-mam o postulado da cidadania (e dapolítica) ao mesmo tempo em queproduzem o seu oposto, apresentan-do-se sob a forma do economicismo(que permite mostrar a inevitabilidadee a preponderância do Capital, torna-do Ordem Natural). Colocado destamaneira, o capitalismo aparece comoa única sociabilidade possível. A cisãoentre o “econômico” e o “político”, vis-tos como instâncias separadas e autô-nomas do real, quando vivida e teori-zada como tal pelos socialistas, repre-senta uma grave corrupção na sua prá-tica25: é, na verdade, a subsunção/in-corporação dos trabalhadores ao Ca-pital, pois significa pensar nos quadrosda ideologia burguesa.

O economicismo é, no plano teóri-co, o elemento central dessa subsun-ção. Ele procede por reduções. O con-ceito de modo de produção apaga ode formação social e é tomado comouma abstração que tende a coincidircom o real. Este aparece reduzido àesfera do “econômico”, o conjunto deforças produtivas e relações de pro-dução. As forças produtivas são pen-sadas como tecnologia e apresenta-das como base e motor da história. Omarxismo é, assim, mutilado, trans-formado em um conjunto de dogmas.De redução em redução, cai-se nafamosa contradição Trabalho-Capital,tomada, abstrata e universalmente.Abstração vazia a partir da qual se caina mais brutal metafísica: “as forçasprodutivas são a expressão da liber-

dade dos homens em relação às for-ças da natureza”.26 Todas as demaiscontradições acabam por “desapare-cer”, apresentando-se como epifenô-menos. Reduz-se a totalidade do so-cial a “partes” autonomizadas.

O resultado é a produção de umadecomposição da unidade das classessubalternas. Unidade que tem de serconstruída permanentemente. Viven-ciando o pensamento burguês, agen-dado por ele, o antagonismo das clas-ses trabalhadoras perde sua força. Di-ante do determinismo, esses impassessão “superados”, como em um passode mágica, pelo voluntarismo politicis-ta. O pensamento da Terceira Interna-cional acabou “resolvendo-os” pelaação de um partido no mais das vezesexterior à intervenção concreta dasclasses e dos indivíduos. O partido,destituído da sua historicidade, esva-ziado das contradições sociais, aparececomo parteiro de uma liberdade exter-na. Não como “experimentador históri-co” (Gramsci), mas como demiurgoque realiza uma visão “de esquerda”da lógica do progresso. No caso dosdominantes, partidos e sindicatos sãopensados como continuidades; nocampo dos dominados, eles aparecemcomo descontinuidades. No primeiro

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Vivenciando o pensamento burguês, agendado por ele, oantagonismo das classes trabalhadoras perde sua força. Diante do determinismo, esses impasses são “superados”,como em um passo de mágica, pelo voluntarismo politicista.

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caso, economia e política são solidá-rias. Necessariamente. No segundo, háque subverter o conjunto das relaçõessociais, tem que se construir uma novasociabilidade e as relações sociais ne-cessárias para tal.

Se, contraditoriamente, pensarmoso modo de produção como o ricoimbricamento de práticas sociais estru-turadas e estruturantes, as classes so-ciais como criadoras e criaturas dessaspráticas/estruturas e, por fim, o capita-lismo como modo de produção histo-ricamente atualizável no enfrentamen-to das suas classes e projetos societá-rios diversos, perceberemos, facilmen-te, que as relações classistas, contradi-tórias, impõem práticas diferenciadas apartir das quais é possível entender oconjunto das contradições como atua-lizações de racionalidades classistas.Política e História formam assim umatotalidade ricamente articulada: o jogodas contradições não é, nem pode sê-lo, um efeito das estruturas (Althus-ser), sequer um efeito pertinente(Poulantzas).

O economicismo, típico do liberalis-mo, já fora apropriado negativamentepelo pensamento socialista. A podero-sa navalha da crítica marxista foi re-duzida a um mero conjunto de bana-lidades sobre a luta de classes. A dis-solvente análise de Marx foi substituí-da pela vulgata estalinista. O marxis-mo, de teoria da emancipação, virouprática de planificação e justificativa deuma forma estatal fazendo refluir oconjunto do movimento político, sindi-cal e popular, para o campo econômi-co-corporativo. Abandonou-se inteira-mente a perspectiva do momentoético-político, ou seja, do momento deconstrução de uma nova racionalida-de, de uma nova forma estatal - aindaque provisória - a das classes trabalha-doras. A burocracia estalinista reduziua história das sociedades à sua histó-ria. O projeto de uma nova sociabilida-

de ficou prisioneiro do economicismoe do patriotismo da Grande PátriasRussa mascarada como uma nova in-ternacional. Projeto este logo abando-nado (após a guerra) e transformadoem forma de um imenso protetoradoautodenominado socialista. A crise daforma estatal russa tornada universalpotenciou e agilizou a crise de todosos países sobre esse protetorado.

“Lendo” O Capital, de forma muitoparticular, os setores majoritários dasesquerdas reduziam o modo de pro-dução capitalista à produção de mer-cadorias. Assumiam a hipótese de que,dada a produção, a questão central sedeslocava para o campo da circulação,do consumo, procedimento similar aodos economistas vulgares, consubs-tanciando assim uma visão “distributi-vista de esquerda”. Confundiam-seconquistas materiais com a própriacentralidade da luta e do projeto. En-quadravam-se, assim, as reformas ne-cessárias para a transformação socialcom uma direção reformista da luta.Subalternizava-se a estratégia à tática,confundindo-se o possível com o ne-cessário. Respondiam a uma agendaque não era a sua, mas a dos seus an-tagonistas.

Crise do trabalho ou crise do capital?Vivemos na década dos setenta

uma crise global. E não era apenas asociedade capitalista que estava emcrise: o mesmo ocorria com o “socialis-mo realmente inexistente”, que rein-troduzira práticas capitalistas. É neces-

sário dizer que a esquerda oficial - na-cional e internacionalmente - ao redu-zir a questão da socialização das forçasprodutivas, pura e simplesmente, à te-se da estatização, abandonou nãoapenas a perspectiva da revoluçãomas acabou prisioneira das teses de-terministas do avanço da tecnologia.Esta passou a ser vista como a saídapara a crise, como a “ante sala dosocialismo”.27 Reforçava-se a elimina-ção das identidades e das lutas dasclasses trabalhadoras. A esquerda pas-sou a ser hegemonizada pelo pensa-mento liberal. O capitalismo passou a“aparecer” cada vez mais não apenascomo vitorioso, mas como a única for-ma societária possível.

O movimento real, das classes e dosseus antagonismos, é negado, trans-formado em um não-movimento. Otrabalho e o capital são apresentadoscomo elementos de uma história natu-ral sujeita à lei de ferro do mercado.Além disso, para maior eficácia, atri-buiu-se à tecnologia toda essa imensatransformação: fala-se mesmo emuma revolução tecnológica. Na realida-de, trata-se de um mercado determi-nado28, o conjunto contraditoriamentearticulado das forças e relações capita-

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A esquerda passou a ser hegemonizada pelo pensamento liberal. O capitalismo passou a “aparecer”cada vez mais não apenas como vitorioso, mas como a única forma societária possível.

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listas de produção. O mercado apare-ce, contudo, como uma racionalidadesupra-histórica, como essência do real.A história seria apenas sua forma feno-mênica.

O trabalhador e o capitalista foramvistos como funcionários (hierarquica-mente diferenciados) das necessida-des do consumo. As classes não sãomais portadoras de projetos, mas “co-letivos de compradores” ávidos da últi-ma moda transformada em necessida-de. O interesse do consumidor (que-rem nos fazer crer) passou a “determi-nar” toda a produção sendo necessá-rio, em um único movimento, eliminartoda e qualquer manifestação de anta-gonismo e de imperfeição na produ-ção da mercadoria. Trata-se de umabrutal luta ideológica, travestida demodernidade capitalista que visanegar a possibilidade de uma identida-de classista do trabalhador, suas for-mas de sociabilidade e subjetividade.

A história do capitalismo é a históriada “reestruturação produtiva”: é, so-bretudo, a resposta do Capital a suacrise, é o processo de rearticulação daunidade do governo das massas e dogoverno da economia. O Trabalho éexpulso da sociabilidade capitalista eno seu lugar é entronizada a ciênciacomo força produtiva por excelência.Hardt e Negri falam mesmo na expul-são do trabalho dos textos legais29. Ostrabalhadores parecem ser um contra-senso e seu itinerário vai da “inempre-gabilidade” ao “analfabetismo tecnoló-gico”, variantes, uma e outra, de umaideologia darwinista da exclusão/culpa.

O Capital subordinou o Trabalho, re-al e formalmente. A história sob o capi-talismo aparece como a história naturaldo Capital, das técnicas, da produção.As forças produtivas do Trabalho apare-cem como forças produtivas do Capital.O Trabalho, no interior do círculo doCapital, parece não ter vida própria.Para permitir a ampliação do processo

de subsunção real do trabalho ao capi-tal e liberar ao máximo sua capacidadeprodutiva, que no momento atual atin-ge a toda sociedade (subsumindo-acomo um todo à ordem do capital). Ocapitalismo tem que negar o direito deexistência a qualquer forma antagôni-ca. Vivemos a combinação da contra-revolução política (neoliberalismo)com a reforma da gestão e da produ-ção, maximizadas uma e outra, pelaaparente desaparição do antagonismo.O Estado parece realizar sua última enecessária mediação. Será?

A política, forma sempre atual dascontradições classistas, faz-se história.O Estado que foi sempre privatizadopotencializa e garante a expansãomáxima da classe dominante/dirigen-te. O Estado capitalista, para sua maioreficácia, tem necessariamente queaparecer como social, como articula-dor do conjunto da sociedade, comoresumo qualificado do todo social.Nesse sentido, ele buscou restringirpermanentemente as formas associati-vas das classes subalternas em todasas suas formas de organicidade.

Reestruturação produtiva ou criação do trabalhador do capitalA gestão do processo produtivo é a

forma condensada da política dos do-minantes. Condensada porque impõea desigualdade real no processo detrabalho e a impossibilidade da cida-dania na esfera do privado. Mais ainda:cria/amplia as condições da desigual-dade real no todo social. Desigualdadeque aparece como igualdade fetichiza-da. Esse processo passa pela necessi-

dade de levar o trabalhador ao máxi-mo da desqualificação produzindo,seja a limitação maior de uma subjeti-vidade classista dos trabalhadores (suahistoricidade, suas experiências) seja,ao mesmo tempo, sua total integraçãoà ordem. Busca-se eliminar a possibili-dade autônoma do trabalhador coleti-vo porque com a recusa deste ao capi-talismo, é possível a construção deuma nova sociabilidade.

Elaborando suas táticas e estraté-gias a partir dessa concepção, setoresamplos da esquerda, dos mais diferen-tes matizes, não perceberam que omecanismo de regulação era um doselementos fundamentais de saída dacrise capitalista. Isso pode ser clara-mente demonstrado pela compreen-são estalinista de que na década de30, o capitalismo estava atravessandoum momento de declínio30 exatamen-te quando este vivia o ápice de umagrande ofensiva material e ideológica:o fordismo generalizava-se nos USA eavançava sobre a Europa.

A Escola Francesa da Regulação éuma outra bela demonstração: paraela, a regulação deve ser um momen-to da superação do antagonismo31.Aqui o problema não se refere à possi-bilidade ou não da revolução. Elaavança mais na integração à ordem doCapital. A crise do Capital é transfor-mada em crise do fordismo cuja raiz évista tanto na rigidez da produçãoquanto na agudização da luta de clas-ses na produção. No que se refere aesta última, existem claras conexõescom as teses neoliberais como a dasobrevalorização do preço da merca-doria força de trabalho. E do poder dossindicatos e do seu propalado corpora-tivismo. Para tal, é preciso substituir aanálise das totalidades concretas pelossistemas e estruturas, as contradiçõese oposições de classe pelas rivalida-des, conflitos e ambivalências, as leisgerais pelas legislações, regras e nor-

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mas, a dialética sujeito/objeto pelanoção de processo sem sujeito32.

Outra possibilidade, carregada dedeterminismo tecnológico, para negara possibilidade revolucionária podeser encontrada nas teses que falamem revolução informacional33, umadas diversas formas de substituição daforça de trabalho pela “revolução” ci-entífico-tecnológica como força motrizda história. A eficácia ideológica datese está colocada com clareza nopróprio enunciado: o que é, na reali-dade, um momento da subsunção dotrabalho ao capital, como resposta àcrise deste, é vista como uma revolu-ção que altera a natureza do capitalis-mo. Em outras palavras: como possi-bilidade de “emancipação”.

A permanente “recriação” do traba-lhador é uma necessidade estratégicado Capital. Com as chamadas novastecnologias, passa a ser possível obter,de forma ampliada, a incorporação ati-va do trabalho vivo ao trabalho mortoe conseguir que o trabalhador vista acamisa da empresa. Fazê-lo desejar ocapital. Produz-se uma reterritorializa-ção do trabalho. Após tentar descons-truir os espaços fabris clássicos, produ-tores da socialização operária amplia-da, o Capital busca “reinventar” velhasformas de trabalho como o trabalho adomicílio, com qualidade artesanal e,a um só tempo, artesanal e “emanci-patório”. Em suma, um criador, um tra-balhador “autônomo”, é bom que sediga, para o Capital. Essa aparênciamaterializa/ constitui um projeto quebusca destruir não apenas o trabalha-dor coletivo, mas os coletivos dos tra-balhadores. Trata-se de produzir umoperário parcelar, descontínuo e, aci-ma de tudo, inteiramente subordinadoao Capital. Um trabalhador que, pormedo de perder o emprego, defendenão apenas a produtividade do capital(a superexploração) e, no limite, a de-missão dos seus companheiros. O ca-

so das ilhas de produção é exemplar:faz-se com que um trabalhador vigie ooutro, dispensando, assim, a vigilânciado patrão. O panopticum parece ser odestino das classes subalternas.

A tecnologia e seu fetichismo são,aqui, fundamentais. O trabalhador tor-na-se um “associado” ao capital. O tra-balhador-patrão, dono muitas vezesde pequenas empresas, aparece comoresponsável pela produção e satisfa-ção dos desejos e interesses dos clien-tes. Nessa operação, “desaparecem” ascontradições entre esses trabalhadorese seus antigos patrões, entre eles e osconsumidores. Eliminado o horizonteantagonista do Capital, a referênciaclassista internacional, desconstruídoesse horizonte, despolitizado o debate,tudo se reduz à administração.

No horizonte da quebra das identi-dades classistas e da tendência anta-gonista, pratica-se o discurso da nega-ção de qualquer racionalidade quenão seja a do mercado, identificandosocialismo à barbárie. Afirma-se o frag-mento, o detalhe, liquidando-se a tota-lidade como procedimento metodoló-gico. “Eliminadas” as contradições, co-mo dogmatismo e erro teórico, resta anoção do individualismo. O pós-mo-dernismo é a linguagem desse “bravomundo novo”. As relações de trabalho,as garantias sociais, arrancadas pelas

grandes lutas operárias, são denuncia-das como corporativismo. Pratica-se,fundamentalmente, sua flexibilização,sua precarização, ao mesmo tempoque se afirma a qualificação como ele-mento vital: se o trabalhador não équalificado, capaz, o problema e a cul-pa são dele. E não do mercado. Tudo,absolutamente tudo, deve ser subme-tido à mercantilização.

Para que tudo isso se realize, é, noentanto, necessário dar outro passo:refundar a própria cidadania capitalis-ta. É necessário cada vez mais limitaros direitos sociais e os gastos estataiscorrelatos. Transformar a previdência, asaúde e a educação em objetos mer-cantis é a síntese e o limite dos subal-ternos. A universalização dos benefí-cios é, na ordem privada, subversivo.Seus limites estão dados pelo proces-so de valorização. O welfare, de condi-ção de acumulação passa a ser obstá-culo. O Estado deve abandonar o cam-po do social transformando-o em ter-reno de caça mercantil. Realiza-se umarevolução passiva. Se, no início, a cida-dania pretendia-se expansiva, agoraela é necessariamente restritiva. A de-mocracia burguesa no momento demaior conflitividade incluía, relativa-mente, os trabalhadores. Hoje, passa-do o susto e eliminada aparentementea tendência antagônica internacional,ela pode revelar sua face real: para ossubalternos, a possibilidade de acesso,real e efetivo, ao mundo da política edo bem estar social é quase nula, re-duzindo-os, abertamente, à pura so-brevivência.

O caso das ilhas de produção é exemplar: faz-se com que um trabalhador vigie o outro,dispensando, assim, a vigilância do patrão. Opanopticum parece ser odestino das classes subalternas.

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Se anteriormente o Parlamento vigia-va e controlava o Estado considerado olocus do arbítrio, tendemos, agora, a serpouco mais que figurantes na luta declasses, e damos legitimidade a Parla-mentos que se submetem, em maiorou menor medida, aos Executivos quetendem a governar por medidas provi-sórias. O Estado que, face aos interessese às necessidades das classes subalter-nas, proclama a sua desnecessidade,revela-se o grande articulador das práti-cas capitalistas. Se os direitos sociaisdiminuem, os deveres em relação àordem do privado se maximizam. “Ci-dadãos” sem direitos, os subalternostornam-se, em grande medida, súditosde um poder que é exercido pelas múl-tiplas redes da racionalidade capitalista.De certo modo, o Estado recupera a suafunção original tal qual pensada pelosliberais: o de guardião dos contratos,das propriedades e o defensor da or-dem. O fetiche da cidadania é brutal e éexercido de múltiplas formas. Conhecero que se passa é decisivo para a análisee à construção das alternativas: aquientra em cena o controle monopólicodas informações pelos meios de comu-nicação de massa. A violência torna-senaturalidade. Os que “fracassam” sãoculpados pelo seu próprio fracasso: nãohá desemprego, por exemplo, há inem-pregáveis.

Os ensinamentos da luta de classesAs direções das esquerdas, majori-

tariamente, trabalham com a perspec-tiva da inviabilidade da revolução e dosocialismo, reduzindo, assim, o lequede suas possibilidades. Na realidade,realiza-se uma ironia perversa: os “der-rotados” social-democratas vingam-sedos “vencedores” comunistas. O proje-to hegemônico é, na prática, o da uto-pia possível, vale dizer, a perpetuaçãodo projeto capitalista ainda que “ten-dencialmente” controlado. Esse é o fe-

tiche dominante na política das es-querdas atuais. O projeto da democra-cia formal e seu componente funda-mental - a cidadania - dominam o seucampo ideológico. Vivemos em escalauniversal uma crise de direção (Cf.Gramsci e Trotsky) que dificulta enor-memente a possibilidade de compre-ensão das forças em presença e temimpedido que se dê a fusão das cha-madas condições objetivas (materiais)e subjetivas (de direção). A partir daíos projetos são como que impossibili-tados. Tudo parece caminhar para... ocapitalismo.

Pensar o projeto de transformaçãosocial no interior da institucionalidadecapitalista, negando a possibilidade re-volucionária abstratamente, implicaafirmar a neutralidade das instituições,aceitar a possibilidade de que, nelas epor elas, seja possível alterar a nature-za de classe do Estado. Fazer esta críti-ca não significa, contudo, recusar-se atravar a luta no interior do campo ins-titucional. Diferente disto está a abso-lutização do institucional e o abando-no da postura antagonista. Não se tra-ta de uma questão de quantidade(melhoria das posições diferenciais nointerior da institucionalidade), mas dequalidade (o embate hegemônico).

O reformismo que em Bernstein jáera ilusório, apesar da capacidade doEstado burguês e de suas classes do-minantes, graças à exploração colonial,de fazer concessões, é agora grosseiracontrafação. O “reformismo é a políticados bons tempos”, dizia Gramsci. Compossibilidades amplíssimas, o Estadocapitalista tratou de assimilar as clas-

ses trabalhadoras, a partir do momen-to em que partidos e sindicatos nãocolocavam o capitalismo em questão.O pensamento majoritário das esquer-das deslocou-se da esfera da produçãopara o da circulação e com isso não foipossível captar estrategicamente ascontradições, a tendência antagonista.Logo, não se podia formular as estraté-gias de superação da ordem do Ca-pital. Discutir a distribuição de benefí-cios sociais sem questionar a explora-ção capitalista é aceitá-la na prática.

Hoje, o problema está colocado,centralmente, na aceitação pelos parti-dos e sindicatos da inevitabilidade daordem vigente. Assumida essa inexora-bilidade, resta sofrer a subsunção dotrabalho ao Capital: o coletivo dos tra-balhadores e suas famílias, enfim, o to-do social. Aqui entra em jogo a formade intervenção do conjunto das es-querdas nas conjunturas. Hegemoni-zadas pelo pensamento liberal, elas sa-crificam o aqui e agora das classes tra-balhadoras à ordem do Capital. Nãoconseguem, e em muitos casos, se-quer o desejam, perceber que sob odomínio do privado não pode haverliberdade real para os dominados. Aagenda da esquerda, repetimos, é pau-tada pelo capitalismo, por seus teóri-cos e práticos.

Apesar disso, a esquerda hegemoni-zada continua a afirmar que esse é oúnico caminho, já que “revolução écoisa do passado”. Identificando estali-nismo com socialismo, joga fora acriança e a água do banho e passa aproclamar o capitalismo como a únicaforma societária possível. Ela afirma,contra toda e qualquer evidência, queos partidos na ordem parlamentar sãoenfatizados como a única forma orga-nizativa possível. Formulação feita emum momento onde os limites históri-cos e atuais dos Parlamentos são ab-solutamente visíveis. E, ao mesmotempo, busca reduzir os sindicatos à

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condição de propositivos, de resulta-dos. Propositivo significando aqui aredução da capacidade de dar respos-tas estratégicas ao capitalismo, à esfe-ra institucional: fala-se mesmo em sin-dicato-cidadão. Resultado como carac-terização gráfica da redução da açãosindical ao fetichismo mercantil. Assim,de cenário da luta de classes, explora-dor e opressor, o capitalismo é trans-formado em horizonte inexorável, in-transponível. Pior: desejável.

A atualidade do comunismoPassamos, assim, ao plano das es-

tratégias possíveis. Limita-se - ou me-lhor, se auto-limita - o horizonte daspossibilidades estratégicas. O feticheda cidadania cumpre sua função. Trata-se, aqui e agora, de reduzir partidos esindicatos à Ordem. Da mesma forma,trata-se de reduzir o alcance e a forçados movimentos sociais. Que fazer?Aceitar a incorporação ao horizontecapitalista ou articular um novo campode possibilidades estratégicas? Aqui secoloca a questão, em toda a sua radi-calidade. É cada vez mais necessário eurgente que as classes trabalhadoraslutem pela sua liberdade, assumindoradicalmente suas identidades, cons-truindo sua agenda própria, formulan-do o conjunto das perguntas estratégi-cas que permitam colocar em questãoo antagonismo e examinar a possibili-dade de sua superação. Para que sealtere a correlação de forças, no con-junto da sociedade capitalista, é abso-lutamente necessário que os trabalha-dores - nas suas diferentes formas -assumam seu protagonismo, sua auto-nomia. Sem isso, caminhamos para aaceitação do possível, isto é, do atual.Subordinar-se passivamente à institu-cionalidade capitalista, aceitar em es-pecial o campo parlamentar como es-fera privilegiada de intervenção, prati-camente única, significa aceitar a der-rota. Trata-se, portanto, de pensar e

articular socialmente uma unidade dosdiversos setores da classe organizadosem sua múltipla inserção. Aqui está,obviamente, colocada a questão dopartido enquanto intelectual coletivodessas classes.

Sabemos todos que a construçãoda hegemonia das classes trabalhado-ras passa, necessariamente, pela in-venção histórica do comunismo. Re-lembremos Marx: o comunismo é omovimento de negação da apropria-ção privada das riquezas. Recusar oeconomicismo e construir a democra-cia dos trabalhadores, construir a novasociabilidade implica a eliminação dasclasses pelo desaparecimento do hori-zonte histórico da exploração-opres-são. Não se trata de um problema teó-rico, mas, essencialmente, prático. Re-inventar as formas de organização/ ex-pressão das classes trabalhadoras im-plica fazer a crítica teórico-prática do“socialismo realmente inexistente” etirar os ensinamentos da luta de clas-ses. Significa, também, construir, aindasob a dominação capitalista, os ele-mentos da nova sociedade. Constrói-se uma hegemonia na luta contra asformas institucionais da ordem ante-rior, na crítica das suas formas de con-ceber o mundo; constrói-se, enfim, pe-la atualização das suas possibilidadesde transformação.34

Não há, evidentemente, modelosprontos e acabados para tal. Váriaspossibilidades estão hoje colocadaspara nós: desde a construção de umfórum dos companheiros da esquerdacombativa, independente da formapartidária, até mesmo a construção de

uma nova forma partidária que unifi-que esse campo. A necessária recons-trução das formas sindicais para umaefetiva perspectiva classista é uma ta-refa inadiável. Com a radicalização daconjuntura, está no horizonte a possi-bilidade de se pensar um Congressode direções sindicais combativas, doscompanheiros que se colocam nocampo partidário de forma intransi-gente em defesa do comunismo, dossem-terra, dos desempregados, dossem-teto, etc. para construir uma inter-venção orgânica dessas classes naconstituição de um projeto que colo-que a superação da Ordem do Capital:um projeto que reivindique os ele-mentos necessários à liberdade, taiscomo a questão do controle social dosmeios de comunicação de massa, aorganização livre e soberana dos traba-lhadores, a educação pública e gratui-ta e a construção de um projeto desaúde sob controle dos trabalhadores,entre outras tantas.

Torquato Neto, ícone dos anos 60,falava da necessidade de desafinar ocoro dos contentes. Devemos ir além eafinar o coro dos descontentes. Desa-finar o coro dos contentes: praticar aanálise da relação de forças e colocarem questão o projeto dos dominantes.Afinar o coro dos descontentes implicapôr em movimento o antagonismo,dando-lhe sentido e direção. Este con-junto de tarefas não pode dispensar afigura do partido que se coloque como“elaborador e experimentador coleti-vo” e não como coletivo burocráticocuja função é disputar posições naordem institucional vigente. Faz-se, ca-da vez mais necessário a construçãode instrumentos de direção para asclasses subalternas. Instrumentos quenão procedam ao tão funesto substitu-cionismo histórico mas que sejamcapazes, como dizia Gramsci, de unir a“experiência das massas” e o “saberdas direções”. Formas partidárias que

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atuem na totalidade do social, buscan-do construir com os movimentos so-ciais as alternativas de transformaçãoradical da sociedade. Partido democrá-tico que se recusa o substitucionismo,nega, também, o basismo hipócritaque, ao dar voz a quem não tem voz,dá a sua própria voz, mantendo assimas classes subalternas em uma perma-nente menoridade política. Essa dialé-tica de construção histórica dos proje-tos requer um partido radicalmentedemocrático que consiga “traduzir” osensinamentos das lutas de classe e asexperiências concretas dos indivíduossobre os quais se exerce a ditadura daexploração-opressão capitalista. E queseja capaz de pensar as questões na-cionais a partir da perspectiva interna-cional.

Terminemos por onde começamos.Criar as condições de ruptura com asubordinação das classes subalternas,romper com a fragmentação, com asegmentação impostas pelas formasmercantis é necessário, vital mesmo.Subtrair o trabalhador, a mais impor-tante força produtiva, ao domínio doCapital, significa dar o primeiro passopara um processo de liberdade, de au-tonomia. Cabe aos movimentos so-ciais - compreendidos como unidadereal das lutas das classes subalternas -avançar nessa clarificação político-ideológica e construir um projeto real-mente democrático, classista, que te-nha a marca do conjunto das classessubalternas, que traga a virtualidadedo fim do Estado e das classes. Projetode sociedade, como vemos, radical-mente distinto daquele possível noâmbito da institucionalidade vigente.Atuando nesse sentido, estaremosconstruindo ativamente a perspectivada hegemonia das classes trabalhado-ras e abandonando os vagos apelos àcidadania, à participação desqualifica-da e desqualificadora na ordem parla-mentar. Todo espaço institucional tem

que ser transformado em espaço deluta pelo comunismo.

O novo horizonte será o da luta pelasuperação do malfadado limite da uto-pia possível. Romper com esse planoimplica construir socialmente novaspossibilidades estratégicas, colocar naordem do dia a negação da ordem doCapital e afirmar os direitos da liberda-de para o conjunto dos trabalhadores.Este é o projeto que se coloca paranós: sair dos limites do aqui e do ago-ra, da limitação da imediaticidade, re-construir a política como atividade fun-dadora de uma nova ordem social pa-ra além do Capital.

Trata-se de “acelerar o futuro”, so-nhando o sonho juntos.

NOTAS1. Edmundo Fernandes Dias é professor

convidado do Departamento de Sociologia doInstituto de Filosofia e Ciências Humanas daUNICAMP e Secretário Geral do ANDES-SN.Agradecimentos especiais a Angela Santanado Amaral, a José Roberto Zan e a Ruy BragaNeto que leram, discutiram e fizeram comen-tários sobre o texto. Os possíveis erros, porventura existentes, são, contudo, da inteiraresponsabilidade do autor.

2. Na dedicatória de O Príncipe Maquiavel(1513) já assinalava que para compreender anatureza das planícies era necessário subir àsmontanhas e para considerar a natureza des-tas era preciso colocar-se na perspectiva daplanície, assim como para ser príncipe erapreciso compreender a natureza do povo epara ser povo fazia-se necessário compreen-der a natureza do príncipe.

3. Estamos trabalhando aqui essa distinçãode problemáticas entre as formas capitalistasvigentes e aquelas que deveriam ser suanegação prático-teórica. Gramsci acompanhaatentamente os desenvolvimentos da “expe-riência” russa.

4. Um belo exemplo do que falamos acima

está em Karl Marx, O Dezoito Brumário deLuis Bonaparte onde se demonstra que só re-nunciando às veleidades dinásticas e seu usoinstrumental pode a burguesia governar comoclasse. Nesse livro, Marx demonstra como seprocede a uma análise da política. Da análisedas instituições e da constituição em especial,Marx demonstra os limites e as possibilidadesda política. Não deixa escapar o nó crise polí-tica-crise econômica, a análise dos interessesa curto, médio e longo prazo, as formas dasideologias e suas transformações no processoda luta política, etc.

5. Cf. Edmundo Fernandes Dias, Sobre aleitura dos textos gramscianos, in E. F. Dias etallii, O outro Gramsci, Xamã Editora, São Pau-lo, 1996.

6. “O termo ‘aparente’, ‘aparência’, significaisto e nada mais que isto e deve justificar-secontra o dogmatismo: é a afirmação da cadu-cidade de todo sistema ideológico, próximo àafirmação de uma validade histórica de qual-quer sistema, e da necessidade dele (‘no ter-reno ideológico o homem adquire consciên-cia das relações sociais’: dizer isso não signifi-ca afirmar a necessidade e a validade das ‘-aparências’?)”, Antonio Gramsci, Quaderni delCarcere, p. 1570.

7. No já citado 18 Brumário Marx fala dosdesejos dos pequenos burgueses de suprimi-rem as desigualdades ao invés de resolvê-lasteórico e praticamente.

8. Angela Santana do Amaral, As perspecti-vas liberal e marxista sobre a sociedade civil:os termos do debate. Texto apresentado aoexame de qualificação ao Doutorado na Es-cola de Serviço Social, da UFRJ.

9. A ideologia das “transformações domundo do trabalho” e a construção do novo tra-balhador para o capital desempenham aquipapel fundamental. Na realidade, trata-se daformatação de um novo trabalhador coletivo,donde da reconstrução da classe trabalhadora.O processo capitalista cria e recria, permanente-mente, as relações sociais capitalistas e as clas-ses. (Ver o Capítulo Inédito). Ao invés de cami-nharmos na possibilidade da emancipação,como pretenderam e pretendem muitos auto-res, reforça-se mais e mais a subalternidade.

10. Cf. Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere,Einaudi, Torino, 1975. Cf. Edmundo FernandesDias, Americanismo e Revolução Russa: formasda revolução passiva. Universidade e Sociedade,ano 7, n° 13, São Paulo, junho de 1996.

11. Ver, entre outros, a crítica de Gramsci àobra de divulgação do marxismo feita porBukharin.

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12. Ver a famosa teoria das etapas: comu-nismo primitivo, escravismo, feudalismo, capi-talismo e socialismo, Stalin, Breve História doPartido Comunista (Bolchevique). A questãochinesa, por exemplo, foi, por decreto, trans-formada em “feudalismo atípico” e proibida adiscussão sobre o Modo de Produção Asiáti-co: “Mas o fracasso da revolução chinesa de1925-1927, combinado com os efeitos da rup-tura entre Stalin e a oposição produz um seve-ro golpe aos pesquisadores e às suas pesqui-sas (...) os defensores do modo de produçãoasiático foram aí (Leningrado, fevereiro de1931, efd) assimilados aos trotskistas (...). Comessa discussão, logo seguida do desapareci-mento, pura e simplesmente, de alguns parti-dários do modo de produção asiático, as pes-quisas marxistas sobre estes temas entraramem nova fase.”, Jean Chesnaux, “Le mode deproduction asiatique. Quelques perspectivesde recherches”, in Le mode de production asia-tique, Éditions Sociales, Paris, 1967, pp. 19-20.

13. Aqui muitos dos antigos estalinistaspassam a fazer profissão de fé liberal-demo-crata. Insisto: com um nível de segurança edogmatismo semelhante ao que tinham nomomento anterior.

14. Não cabe nos limites deste texto expli-citar as diferenciações deste projeto aliancista,seja na forma social-democrata, seja na formaestalinista.

15. Cf. Lucio Colletti, Stato e rivoluzione diLenin, in Ideologia e società, Editori Laterza,Roma-Bari, 1975.

16. É bom ter sempre em mente que essateoria caminhava pari passu com a do Estadocomo puro instrumento das classes domi-nantes.

17. Sobre essa questão, ver o instigante e -sobre muitos pontos de vistas “profético” - li-vro de Henri Lefebvre, La Somme et le reste,La NEF de Paris Editions, Paris, 1959, publica-do após sua expulsão do PCF: “Os ataquesdirigidos contra esse pequeno livro (Problè-mes actuels du marxisme), sua fraqueza teóri-ca e sua violência polêmica, sua mescla de má

fé e de boa consciência, sua orquestração nasnumerosas revistas francesas e estrangeirasconferem à polêmica um caráter de operaçãopolítica (...)”. p. 10. E afirma: “Aproveito a oca-sião para agradecer, do fundo do coração, aosdirigentes do Partido Comunista Francês queme excluiram após trinta anos de presençamilitante, principalmente por ter publicado olivro mencionado acima”, p. 12. Em outro sen-tido a bela introdução (Aujourd’hui) que LouisAlthusser faz ao seu famoso e polêmico PourMarx mostra bem essa utilização instrumental.

18. Já nos escritos pré-carcerários, este de-bate está claramente colocado. Ver Alcuni Te-mi sulla questione meridionale entre outros.

19. Ver a produção tanto liberal quanto desetores majoritários da “esquerda” brasileira, porexemplo, Esquerda sem projeto, José Genoíno,Teoria e Debate, nº 40, fevereiro-abril de 1999.

20. Sobre os limites da ação institucional, ésempre bom ter presente o conjunto das re-flexões de Norberto Bobbio, um dos maisdestacados liberais do nosso século.

21. Karl Marx, El Capital, libro 1, capítulo VI(inédito), México, D.F., Siglo XXI, 1978, p. 6.

22. Esta última freqüentemente identifica-da como mercado político. Cf., entre outros,Schumpeter: “Na realidade, democracia de to-dos tipos são praticamente unânimes em re-conhecer que existem situações em que é ra-cional abandonar a liderança concorrencial eadotar uma liderança monopolística.”, Capi-talismo, socialismo e Democrazia, Milano, Co-munità, 1964, pp. 281-2.

23. Cesare Luporini, Dialettica e Materia-lismo, Editori Riuniti, Roma, 1974.

24. Gramsci analisará em especial o proje-to de Agnelli da conversão dos trabalhadoresem “membros” de uma cooperativa como for-ma de resolução da crise capitalista.

25. Já na análise da Comuna de Paris,mostrara a necessária indissolubilidade do“econômico” e do “político”. A grande obra domovimento revolucionário foi, sem dúvida, al-guma trabalhar no sentido da recuperaçãoorgânica dessa unidade.

26. W. G. Marachow, Struktur und Entwi-cklung der Produktivikräfe in der Sozialisti-chen Gessselschaft, citado por Magalini, Luttede classe et dévalorisation du capital., FrançoisMaspero, Paris, 1975, p. 17.

27. Edmundo Fernandes Dias, A Liberdade(Im)possível na Ordem do Capital. Reestrutu-ração Produtiva e Passivização, Textos Didáti-cos, 29, IFCH/Unicamp, 1999.

28. Antonio Gramsci, Quaderni del Carce-re, pp. 1038-39, 1247-8, 1258, 1269, 1276-7 e1477-8.

29. Cf. Michel Hardt e Antonio Negri, Illavoro di Dioniso, per la critica dello Stato pos-moderno, Manifestolibri, Roma, 1995. Vertambém Pietro Barcellona, Diario Politico. Ilvento di destra e le ragioni della sinistra,Datanews Editrice, Roma, 1994.

30. Sobre isso ver a obra clássica do eco-nomista E. Varga: L’economie de la période dedéclin du capitalisme aprés la stabilisation,Moscou, 1938 publicado pelo Bureau d’Éditi-ons, Paris. A política da Classe contra classe foio seu ápice. E a demonstração de sua incapa-cidade de ler e transformar o real.

31. Cf Michel Aglietta, e Anton Brender, Lesmétamorphoses de la société salariale, Paris,Calmann-Lévy, 1984. “Conforme essa ideolo-gia, a regulação se produz diante da necessi-dade universal de ajustamento (segundo cer-tas regras e normas) de uma pluralidade decausas, de ações ou atos, e de seus efeitos, re-sultados ou produtos, na medida em que adiversidade, a sucessão ou o ritmo destes ostorna igualmente disjuntos, estrangeiros oucolonizadores uns dos outros.” Flávio Bezerrade Farias, O Estado capitalista contemporâ-neo, São Luís, 1998, p. 5.

32. Farias, op. cit., p. 9.33. Jean Lojkine, A Revolução Informacio-

nal, São Paulo, Cortez Ediotra, 1995.34. É preciso sempre ter em mente a fa-

mosa Tese XI, sobre Feuerbach, que afirma anecessidade de transformar o mundo e nãoapenas interpretá-lo.

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Nas palavras de Gramsci, é precisorecuperar o valor do pensamento mar-xista, que supera o de uma teoria doconhecimento, e que é antes de maisnada uma postura filosófica, uma to-mada de posição:

O marxismo não é apenas umpensamento limitado, a pequenosgrupos de intelectuais: ele é a filoso-fia da classe operária, a ideologiaque organiza esta classe para a con-quista e exercício da hegemonia. Emoutras palavras, como diz Gramsci, omarxismo é uma religião (no espe-cialíssimo sentido croceano da pala-vra), isto é, uma concepção atuantedo mundo, com uma moral que lhe éadequada. Organizar a vontade co-letiva, que concretiza esta moralatravés da subversão da práxis é atarefa política do marxismo.2

Considerando a diversidade e a pro-fundidade dos temas abordados porGramsci em seus escritos, optei poruma análise e discussão sobre a for-mação do homem, considerando osseguintes pontos: desmistificação daformação humana a partir da afirma-ção que todos os homens são “filóso-fos” e do conceito de homem paracompreender o processo de formaçãohumana.

Desmistificando a formação humanaPara propor uma nova formação hu-

mana seria preciso que Gramsci rom-pesse com alguns paradigmas estabe-lecidos anteriormente, como o de quea filosofia é algo muito difícil, e quedeve ser desenvolvida por cientistasespecializados, por filósofos profissio-nais ou sistemáticos. Gramsci entãopropõe uma completa inversão dosconceitos estabelecidos, o que nos re-mete a Marx no livro, A Ideologia Ale-mã, quando inverte o pensamentohegeliano e afirma que “não é a cons-ciência que determina a vida, mas avida que determina a consciência”3, éessa inversão que o leva a afirmar quetodo homem é “filósofo” ao mesmotempo que não se esquece de resguar-

dar a diversidade contida na peculiari-dade de cada homem, ou seja, de ca-da filósofo:

Deve-se destruir o preconceitomuito difundido, de que a filosofiaseja algo muito difícil pelo fato de sera atividade intelectual própria deuma determinada categoria de cien-tistas especializados ou de filósofosprofissionais e sistemáticos. Deve-seportanto demonstrar, preliminarmen-te que todos os homens são ‘filóso-fos’ definindo os limites e as caracte-rísticas desta filosofia espontânea’peculiar a ‘todo mundo’, isto é, da fi-losofia que está contida: 1) na pró-pria linguagem, que o conjunto de

Gramsci e a formaçãohumanística

Dileno Dustan Lucas de Souza 1

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Este texto tem o objetivo de sintetizar alguns aspectos do pensamento humanístico a partir do pensamento de Antonio Gramsci.

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noções e de conceitos determinadose não, simplesmente, de palavrasgramaticalmente vazias de conteú-do; 2) no senso comum e no bom-senso; 3) na religião popular e con-sequentemente em todos o sistemade crenças, superstições, opiniões,modos de ver e de agir que se mani-festam naquilo que se conhece ge-ralmente como ‘folclore’.4

Gramsci parte do pressuposto deque todo homem é filosofo, exata-mente por compreender, que toda ati-vidade humana corresponde a umadeterminada concepção de mundo.Porém Gramsci formula algumas hipó-teses para se chegar ao que chama de“momento da crítica e da consciência”,e indaga: é preferível “pensar” sem terconsciência crítica, ou seja, “participar”de uma concepção de mundo impostapor outros grupos sociais ou é preferí-vel elaborar a própria concepção demundo de uma maneira crítica e cons-ciente, participando da construção his-tórica do mundo? Dessa forma, Grams-ci aponta para uma construção huma-na que possa criticar sua própria con-cepção de mundo a fim de torná-launitária e coerente para iniciar umaelaboração crítica e consciente daquiloque somos. Por isso, Gramsci se apres-sa em dizer que “se é verdade que to-da linguagem contém os elementos deuma concepção de mundo e de umacultura, será igualmente verdade que,a partir da linguagem de cada um, épossível julgar da maior ou menorcomplexidade da sua concepção demundo”5, assim, insiste no fato de queé mais coerente uma multidão de ho-mens pensar de forma unitária umadeterminada realidade, do que a des-coberta de uma nova verdade por um“gênio filosófico” que deterá tal verda-de como patrimônio de pequenos gru-pos intelectuais privilegiados.

A diferente posição de classe e,

portanto, a diversa concatenação en-tre vida e responsabilidade (práticasocial) e vida de formação (escola),levam Gramsci a fazer uma avaliaçãodiferenciada dos limites e defeitos daformação escolar proletária e da doburguês. É claro que é defeito daescola suscitar nos alunos entusias-mos presunçosos, auto-convencimen-to exagerado que não corresponde auma efetiva e proporcional aprendiza-gem científica; entretanto, esse defeitoé mais perigoso para o jovem bur-guês que sai da escola sem conteúdoe pensando que sabe tudo torna-seum perigo objetivo para a hegemoniaburguesa; sua classe sabe disso e pro-videncia escolas adequadas. O traba-lhador, ao contrário, cujo conteúdo decerta maneira já lhe foram oferecidosinformalmente pela própria práticaprodutivo-política, mas que foi siste-maticamente afastado das ciênciasgerais, criou de si uma baixíssimaauto-estima. Para este caso, o defeitoda escola que eleve ‘exagerada-mente’ sua auto-estima, mesmo atra-vés dos métodos um tanto dogmáti-cos, não é tão grave como seria parao burguês: O operário acredita sem-pre ser mais ignorante e mais incapazde quanto efetivamente é; o operáriotem sempre medo de expressar suasopiniões porque acredita que elas tempouco valor uma vez que foi acostu-mado a pensar que a sua função navida não é produzir idéias, dar a dire-ção, ter opiniões, mas, ao contrário, éseguir as idéias dos outros, executar adireção estabelecida pelos outros eescutar de boca aberta as opiniõesalheias. Não devemos, por tanto, nosapavorar demais diante do perigo dosalunos da nossa escola creditarem sergrandes e sábios e terem esgotado ouniverso só porque decoraram as dis-pensas e conseguiram repetir mecani-camente as noções aprendidas.6

Aqui se estabelece a dicotomia noprocesso educativo em que Gramscidenuncia que há um tipo de educaçãopara a classe trabalhadora e um para aburguesia. “Só faltava essa. Um Estadoque sempre criou escolas de culturahumanistas para os ricos e uma outraescola pobre para os filhos dos traba-lhadores, apela agora de repente parauma renovação da escola do trabalho.Algo de podre se escondia atras dessaretórica”.7 Porém Gramsci aponta agrande diferença da escola do trabalhoproposta pelo Estado e pelo movimen-to socialista: a escola do trabalho pro-posta pelo Estado é interessada, paraque pudesse imediatamente dar contadas demandas do Estado, que eramnaquele momento, suprimentos paraa guerra8, a escola do emprego, poroutro lado, a escola do trabalho pro-posta pelo movimento socialista eradesinteressada, ou seja, uma escolaque propunha uma formação integral,considerando a parte técnica-filosófi-co-política, através da escola unitária.

Dessa forma, Gramsci, prossegue adesmistificação do que seria a filosofiapara afirmar o homem fazendo umaconexão entre: o senso comum, a reli-gião e a filosofia, afirmando que a filo-sofia é a crítica da religião e do sensocomum, o que ao seu ver se confundecom o “bom senso” e que se contra-põe ao senso comum, em seguida re-flete nas relações entre ciência-reli-gião-senso comum, onde afirma quenão existe uma filosofia geral e simdiversas filosofias, ou seja, diversasconcepções de mundo, sendo assim, aintelectualidade parte da atividade realde cada um, isso porque o homem deformação prática nem sempre temuma clara consciência teórica destasua ação, podendo em alguns mo-mentos ser contraditória a sua práticateórica e o seu agir.

Esse processo de formação humanaem Gramsci é fundamental, pois é a

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partir dessa formação que será forjadoum novo homem, ou seja, o homemsocialista, daí a importância em ressal-tar a presença do partido político quecontribuirá na elaboração e difusãodas concepções do mundo, bem comolembrar da importância da passagemde uma concepção mecanicista parauma concepção ativista, onde dar-se-áuma justa compreensão da unidadeentre teoria e prática. Por isso, Gramsciacreditava ser importante nesse pro-cesso de construção humana com-preender a igreja e a escola, já que, aseu ver:

A escola - em todos os seus níveis- e a igreja são as duas maioresorganizações culturais em todos ospaíses, graças ao número de pessoalque utilizam. Os jornais, as revistas ea atividade editorial, as instituiçõesescolares privadas tanto quanto inte-gram a escola de Estado, como en-quanto instituições de cultura do tipodas universidades populares.9

Sendo assim, Gramsci compreendeque o processo educativo é decisivo naformação humana, pois avalia que aescola é tão importante quanto a igre-ja. Isso porque as duas são as maioresorganizações culturais de seu tempo,não podendo, a seu ver, ser dicotomi-zadas10 as práticas culturais da teoria,é preciso integrá-las e lembrar que“antes do operário existe o homemque não deve ser impedido de percor-rer os mais amplos horizontes do espí-rito, subjugado às máquinas”11. Jánaquele momento, Gramsci alertavapara o divórcio entre os grupos intelec-tuais e as camadas populares, e insis-tia na necessidade de conformá-lascomo parte integrante do processoeducativo, onde o espaço escolar nãopode ser um espaço de segregação esim um local de integração:

A escola, mediante o que ensina,luta contra o folclore, contra todas as

sedimentações tradicionais de con-cepção de mundo, a fim de difundiruma concepção mais moderna, cujoselementos primitivos e fundamentaissão dados pela aprendizagem daexistência de leis naturais como algoobjetivo e rebelde, às quais é precisoadaptar-se para dominá-las, bem co-mo de leis civis e estatais que sãoproduto de uma atividade humanaestabelecida pelo homem e podemser por elas modificadas visando oseu desenvolvimento coletivo; a leicivil e estatal organiza os homens demodo historicamente mais adequa-do à dominação de leis da natureza,isto é, a tornar mais fácil o seu traba-lho, que é a forma própria através daqual o homem participa ativamenteda vida da natureza visando trans-formá-la e socializá-la cada vez maisprofunda e extensamente.12

Isso porque esses aspectos trazemnoções científicas que se apresentamcontrárias às absorvidas nos ambien-tes comunitários, o que reflete rela-ções diferenciadas daquelas em que oprocesso educativo tenta imprimir, oque demonstra um certo anacronismo,já que “não existe unidade entre esco-la e vida e, por isso, não existe unida-de entre instrução e educação”13

A violenta dicotomia em que es-barra desde seus primeiros anos devida, até os anos do cárcere, ritimiza-se dolorosamente entre a contraposi-ção do continente explorador e a suaprovíncia explorada (regionalismo);entre os ricos que podiam estudar eos pobres que não podiam; entre ocampo atrasado e estagnado e a ci-

dade moderna e em desenvolvimen-to; entre o intelectual que pensa e otrabalhador que faz; entre a mão e acabeça; entre a prática e a teoria;entre a escola e a oficina; entre o di-rigente e o dirigido; entre a cultura ‘-desinteressada’ do intelectual tradi-cional e a cultura ‘interessada’ ou es-treitamente profissionalizante dooperador, do funcionário ou do orgâ-nico; entre as direções políticas e asmassas; entre o sujeito (espírito) e oobjeto (matéria); entre a filosofia po-lítica e a economia; enfim entre oreino da liberdade e o reino da ne-cessidade.14

O que nos leva a refletir acerca doprocesso educativo diretamente:

Daí é possível dizer que, na esco-la, o nexo educação-instrução so-mente pode ser representado pelotrabalho vivo do professor, na medi-da em que o mestre é consciente doscontrastes entre o tipo de sociedadee de cultura que ele representa pelosalunos, sendo também consciente desua tarefa, que consiste em acelerare em disciplinar a formação da crian-ça conforme o tipo superior de lutacom o tipo inferior. Se o corpo docen-te é deficiente e o nexo educação-instrução é relaxado, visando resol-ver a questão do ensino de acordocom os esquemas de papel nosquais se exalta a educatividade, aobra do professor se torna aindamais deficiente: ter-se-á uma escolaretórica, sem seriedade, pois faltaráa corporeidade material do certo, e overdadeiro será verdadeiro de pala-vra, ou seja, retórica.15

A escola do trabalho proposta pelo movimento socialista era desinteressada, ou seja, uma escola que propunha uma formação integral, considerando a parte técnica-filosófico-política, através da escola unitária.

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É partindo dessa concepção de for-mação humana que Gramsci forja oaparecimento de um novo tipo de filó-sofo, ou seja, o “filósofo democrático”,que consciente de seu papel socialunifica na prática a ciência e a vida e atransforma numa unidade ativa, emque afirma ser ela a responsável pelaliberdade de pensamento, o que rela-ciona o homem dialeticamente com anatureza.

Nesse sentido, o ensino passa a serencarado como um ato de libertação,afirmando a sua eficiência no tratocom as camadas mais oprimidas dasociedade, facilitando o aparecimentoda solidariedade desinteressada, o de-sejo de buscar a verdade, porém esseensino, defende Gramsci, deve ser umpouco acima da média, para que sepossa estimular o progresso intelectu-al, para que os trabalhadores saiam dasimples reprodução de palavras pan-fletárias e consolidem uma visão críti-ca do mundo onde se vive e se luta.Dessa forma, o ambiente escolar ten-de a ser mais rico e orgânico nas suasrelações16.

O homem e sua formaçãoPara Gramsci, o homem deve ser

encarado como um processo de seusatos, como uma série de relações, e épartindo dessa compreensão que per-gunta, quem é o homem? E tenta defi-ni-lo, afirmando que a resposta se en-contra no próprio homem. Porém essapergunta representa a compreensãodo que o homem pode se tornar opróprio definidor de seu destino, porisso, na sua definição conceitual,Gramsci se preocupa com desvelar seesse homem é criador de si mesmo ouse é criatura da imposição social.

Creio que em cada um deles exis-tam todas as tendências, assim comoem todas as crianças quer para aprática quer para a teoria ou para afantasia e que seria correto guiá-las,

nesse sentido, para uma harmoniosae orgânica mistura de todas as facul-dades intelectuais e práticas que aseu tempo terão oportunidade de seespecializarem, com base numa per-sonalidade vigorosa formada, total eintegralmente. O homem modernodeveria ser a síntese dos caracteresque são tipicizados como caráter na-cionais: o engenheiro americano, ofilosofo alemão, o político francês, re-criando por assim se dizer, o homemitaliano do renascimento, o tipo mo-derno de Leonardo Da Vinci que setornou homem coletivo mesmo man-tendo a sua forte personalidade eoriginalidade individual.(..)17

O conceito de homem em Gramscivem exatamente contestar a definiçãodada pela igreja católica que o coloca-va como indivíduo bem definido e li-mitado, isto é, concebia o homem co-mo indivíduo limitado a sua individua-lidade e o espírito como sendo essaindividualidade. É nesse ponto queGramsci ressalta que o conceito de ho-mem deve ser reformulado:

Deve-se se conceber o homem co-mo uma série de relações ativas(umprocesso), no qual, se a individuali-dade tem a máxima importância,não é toda via o único elemento aser considerado, a humanidade quese reflete em cada individualidade écomposta de diversos elementos: 1)o indivíduo; 2) os outros homens; 3)a natureza. Mas o segundo e o ter-ceiro elemento não são tão simplesquanto poderiam parecer. O indiví-duo não entra em relação com osoutros homens por justa posição,mas organicamente, isto é, na medi-da em que passa a fazer parte deorganismos, dos mais simples aosmais complexos. Desta forma, o ho-mem não entra em relação com anatureza simplesmente pelo fato deser ele mesmo natureza, mas ativa-

mente, por meio do trabalho e datécnica. E mais: essas relações nãosão mecânicas. São ativas e consci-entes, ou seja, corresponde a umgrau maior ou menor de inteligibili-dade que delas tenham o homemindividual. Dai ser possível dizer quecada um transforma a si mesmo, semodifica, na medida em que trans-forma e modifica todo conjunto derelações do qual ele é o ponto cen-tral. Nesse sentido o verdadeiro filó-sofo é - e não pode deixar de ser - na-da mais que o político, isto é, o ho-mem ativo que modifica o ambiente,intendido por ambiente o conjunto derelações que o indivíduo faz parte.18

É partindo da analise desse tipo derelação social que o conhecimento éanalisado enquanto instrumento depoder, pois “na verdade, esse princípiopedagógico originário do mundo dotrabalho e que procura a escola paramelhor identificar-se, explica-se, refor-çar-se e atuar-se, nada mais é do queo próprio princípio da liberdade con-creta e da autonomia universal do ho-mem”19, o que provoca a necessidadede elaborar uma doutrina na qual es-sas relações devam estar bem claras apartir da consciência individual decada homem que conhece, que admi-ra, na medida em que desenvolve osaber, saber esse que não se constróiisoladamente mas dialeticamente atra-vés das possibilidades oferecidas pelosoutros e no contato com as coisas querefletem um conhecimento social, oque gera a perspectiva em Gramsci deafirmar, não mais que todo “homem éum filósofo” e, sim, que, nesse mo-mento, todo homem, além de ser umfilósofo, é também um cientista.

É partido dessa concepção de for-mação do homem que Gramsci afir-ma:

Essas orientações didático-peda-gógicas expressam, sem dúvida, a

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sua concepção de vida mais geralsegundo a qual o ser humano deveeducar-se científica e culturalmenteaté os níveis mais complexos, sofisti-cados e modernos, partindo (e man-tendo), porém, uma forte e vital liga-ção com sua base popular e com oseu senso comum.20 Essa base cons-titui-se na fonte perene de inspira-ção, sentimento, fantasia e solidarie-dade de todo homem culto, casocontrário teremos um técnico abstra-to, um intelectual desenraizado enão orgânico (...)21

É nesse processo de conceituaçãodo homem que entendo ser primor-dial o aspecto educativo que Gramscidesenvolve, pois ao tomar o homemcomo potencialidade de uma unidade,trabalha com uma concepção de edu-cação/escola que vise essa formaçãocompleta do homem, denominada Es-cola Unitária, que propõe abolir asescolas do tipo interessada, ou seja,instrumental que estejam preocupa-das com o imediato, partindo para aformulação de uma escola que propi-cie equanimimente a capacidade dese trabalhar a parte manual (técnica eindustrial), ao mesmo tempo que édesenvolvida a sua capacidade de tra-balho intelectual.

Eis porque, na escola unitária, aúltima fase deve ser concebida e or-ganizada como a fase decisiva, naqual se tende criar os valores funda-mentais do ‘humanismo’, a autodisci-plina intelectual e a autonomia mo-ral necessária a uma posterior espe-cialização, seja ela de caráter cientí-fico (estudos universitários), seja decaráter imediatamente prático-pro-dutivo (industria, burocracia, organi-zação das trocas, etc.). O estudo e oaprendizado dos métodos criativosna ciência e na vida deve começarnesta última fase da escola, e nãodeve ser mais um monopólio da uni-

versidade ou ser deixado ao acasoda vida prática: essa fase escolar jádeve contribuir para desenvolver oelemento da responsabilidade autô-noma nos indivíduos, deve ser umaescola criadora.22

Assim, a escola unitária dá suporte aessa concepção de homem através daconstrução de um conhecimento quepressupõe um método autônomo eespontâneo, a partir da criação coleti-va, o que não significa uma escola - co-mo ressalta Gramsci - de “inventores edescobridores”, mas, sim, que a apren-dizagem se desenvolva naturalmente apartir da postura amigável do profes-sor com o aluno, de modo que estepossa autonomamente descobrir asverdades que, mesmo sendo velhas,demonstrem a absorção do método,demonstrando uma certa maturidadeintelectual no processo de descobertade novas verdades. Com isso, a escolaunitária significa não só um novo tipode relacionamento entre o campo inte-lectual e o manual, como também umnovo tipo de relação social de produ-ção, fomentando um novo homem23.

Essa formação educativa, voltadapara uma concepção de educação di-ferenciada, é imprescindível na conso-lidação social da classe trabalhadorapara estabelecer o seu potencial noprocesso de aquisição de conhecimen-to. É preciso considerar as mudançaspelas quais o mundo vem passando,para que o homem não tenha umaformação aquém dos avanços tecnoló-gicos e sociais, tornando-se abstrato.Pois a escola regular do sistema de en-sino vigente, além de não atender às

necessidades educacionais dos traba-lhadores, é excludente e elitista, orga-nizada de acordo com os interesses deuma minoria privilegiada, promovendoa ideologia de que a escola é um espa-ço democrático de aquisição do saberhistoricamente acumulado.

A tendência democrática, intrinse-camente, não pode consistir apenasem que um operário manual se tor-ne qualificado, mas em que cada ‘ci-dadão’ possa se tornar governante eque a sociedade o coloque, aindaque ‘abstratamente’, nas condiçõesgerais de poder fazê-lo: a democra-cia política tende fazer coincidir go-vernantes e governados (no sentidode governo com o consentimentodos governados), assegurando a ca-da governado a aprendizagem gra-tuita das capacidades e da prepara-ção técnica geral necessárias ao fimde governar. Mas o tipo de escolaque se desenvolve como escola parao povo não tende mais nem sequer aconservar a ilusão, já que ela cadavez mais se organiza de modo a res-tringir a base da camada governan-te tecnicamente preparada, numambiente social político que restringeainda mais a ‘iniciativa privada’ nosentido de fornecer esta capacidadee preparação técnico-política, demodo que, na realidade, retorna-seàs divisões em ordens “juridicamen-te” fixadas e cristalizadas ao invés desuperar as divisões em grupos: amultiplicação das escolas profissio-nais, cada vez mais especializadasdesde o início da carreira escolar, éuma das mais evidentes manifesta-ções deste tendência24.

A escola unitária dá suporte a essa concepção de homem através da construção de um conhecimento que pressupõe um método autônomo e espontâneo, a partir da criação coletiva.

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Sendo assim, é preciso que se re-pense o espaço educativo, pois “o am-biente não-educado e rústico dominouo educador, o vulgar senso comum seimpôs à ciência e não vice-versa; se oambiente é o educador, ele deve serpor sua vez o educado”.25 Sendo assim,Gramsci apontava naquele momento:

A luta contra a velha escola erajusta, mas a reforma não era umacoisa tão simples como parecia, nãose tratava de esquemas programáti-cos, mas de homens, e não imediata-mente de homens que são professo-res, mas de todo o complexo socialdo qual os homens são expressão.Na verdade um professor medíocrepode conseguir que os alunos se tor-nem mais instruídos, mas não conse-guirá que sejam mais cultos(...)26

Ainda a propósito:A multiplicação de tipos de escola

profissional, portanto, tende a eterni-zar as diferenças tradicionais; mas,dado que ela tende, nestas diferen-ças, a criar estratificações internas,faz nascer a impressão de possuiruma tendência democrática. (...) Masa tendência democrática, intrinseca-mente, não pode consistir em queapenas um operário manual se tor-na qualificado, mas em que cada ‘-cidadão’ possa se tornar ‘governan-te’ e que a sociedade o coloque, ain-da que ‘abstratamente’, nas condi-ções gerais de fazê-lo: A democraciapolítica tende a fazer coincidir gover-nantes e governados (no sentido degoverno com o consentimento dosgovernados) assegurando a cadagovernado a aprendizagem gratuitadas capacidades e da preparaçãotécnica geral necessária ao fim degovernar. Mas o tipo de escola quese desenvolve como escola para opovo não tende mais nem sequer aconservar a ilusão, já que ela cadavez mais se organiza de modo a res-tringir a base da camada governan-

te tecnicamente preparada, numambiente social político que restringeainda mais a ‘iniciativa privada’ nosentido de fornecer esta capacidadede preparação técnico-político, demodo que, na realidade, retorna-seàs divisões em ordens ‘juridicamen-te’ fixadas e cristalizadas ao invés desuperar as divisões em grupo: a mul-tiplicação das escolas profissionaiscada vez mais especializadas desdeo início da carreira escolar, é umadas mais evidentes manifestaçõesdesta tendência.27

Por isso, um ponto importante aoqual deve-se estar atento na organiza-ção da prática escolar, no pensamentogramsciano, é de que uma escola uni-tária ou de formação humanista, quebusca uma formação omnilateral dohomem, que considere a práxis educa-tiva e a relação educador-educando,dê suporte a uma concepção forma-ção das novas gerações de acordocom a ótica do trabalho, isto é, deveser um dos elementos fundamentaisdo projeto social da classe trabalhado-ra. Nesse sentido, em tempos neolibe-rais, Gramsci não poderia ser maisoportuno ao afirmar:

A escola unitária deveria corres-ponder ao período representado ho-je pelas escolas primárias e médias,reorganizadas não somente no quediz respeito ao conteúdo e ao méto-do de ensino, como também no quetoca à disposição dos vários graus dacarreira escolar. O primeiro grau ele-mentar não deveria ultrapassar três-quatro anos e, ao lado do ensino das

primeiras noções ‘instrumentais’ dainstrução (ler, escrever, contar, geo-grafia e história), deveria desenvol-ver notadamente a parte relativa aos‘direitos e deveres’, atualmente negli-genciados, isto é, as primeiras no-ções do Estado e sociedade, comoelementos primordiais de uma novaconcepção do mundo que entra emluta contra as concepções determi-nadas pelos diversos ambientes so-ciais tradicionais, ou seja, contra asconcepções que poderíamos chamarde folclóricas. O problema didático aresolver é o de temperar e fecundara orientação dogmática que não po-de deixar de existir nestes primeirosanos. O resto do curso não poderiadeixar de durar por mais de seisanos, de modo que aos quinze-de-zesseis anos, dever-se-ia concluir to-dos os graus da escola unitária.28

Depois de ter desmistificado a for-mação humana definindo o homemcomo um conjunto das relações so-ciais, Gramsci revela que toda compa-ração entre os homens é impossíveldevido ao conjunto de suas condiçõesde vida e a sua relação com a naturezae com a sociedade. O homem entãopassa a ser visto como bloco histórico:

O homem deve ser concebidocomo um bloco histórico de elemen-tos puramente subjetivos e individu-ais e de elementos de massa - obje-tivos ou materiais - com os quais oindivíduo está em relação ativa.Transformar o mundo exterior, as re-lações gerais, significa fortalecer a simesmo. É uma ilusão, e um erro, su-

É preciso considerar as mudanças pelas quais o mundo vem passando, para que o homem não tenha uma formação aquém dos avanços tecnológicos e sociais, tornando-se abstrato.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 151

Política e Cidadania

por que o ‘melhoramento’ ético sejapuramente individual: a síntese doselementos constitutivos da individua-lidade é ‘individual’, mas ela não serealiza e desenvolve sem uma ativi-dade para o exterior, atividade trans-formadora das atividades externas,desde as com a natureza e com osoutros homens - em vários níveis, nosdiversos círculos em que se vive - atéa relação máxima, que abraça todo ogênero humano. Por isso, é possíveldizer que o homem é essencialmente‘político’, já que a atividade paratransformar e dirigir conscientementeos homens realiza a sua ‘humanida-de’, a sua ‘natureza humana’.29

É considerando esse processo peloqual o homem passa e o compreen-dendo enquanto bloco histórico queGramsci nos alerta para o momentocaracterizado de catarsis, no momentoda passagem do egoísmo individuali-zado (no qual o homem busca umaforma de propriedade), a um momen-to de consciência humana. “A fixaçãodo momento ‘catártico’ torna-se assim,creio, o ponto de partida de toda filo-sofia da práxis; o processo catárticocoincide com a cadeia de síntese queresulta do movimento dialético”.30

Sendo assim, não bastaria Gramscisimplesmente propor uma nova con-cepção de homem. Era preciso quehouvesse uma formulação conceben-do esse novo homem, era preciso des-fazer o fetiche imposto socialmente deque a cada homem caberiam certasatribuições, por isso, Gramsci condenae caracteriza como preconceituosa talconcepção e afirma:

A questão é sempre a mesma: oque é o homem? o que é a naturezahumana? Se divide o homem comoindivíduo, psicológica ou especulati-vamente, estes problemas do proces-so ou do devenir são insolúveis e pu-ramente verbais. Se se concebe o ho-

mem como um conjunto de relaçõessociais entretanto revela-se que todacomparação no tempo entre homemé impossível, já que se trata de coisasdiversas se não mesmo heterogê-neas. Por outro lado, dado que tam-bém o homem é o conjunto de suascondições de vida, pode-se medirquantitativamente a diferença entreo passado e o presente, já que é pos-sível medir a proporção na qual ohomem domina a natureza e oacaso.31

Deve-se considerar então que:A ‘natureza humana’ é o ‘conjunto

das relações sociais’ é a respostamais satisfatória porque inclui a idéiado devenir: o homem ‘devém’ trans-forma-se continuamente com astransformações das relações sociais;e, também, porque nega o ‘homemem geral’: de fato, as relações sociaissão expressas por diversos grupos dehomens que se pressupõe uns aosoutros, cuja unidade é dialética e nãoformal(...) Por isso, a ‘natureza hu-mana’ não pode ser encontrada emnenhum homem particular, mas emtoda história do gênero humano.32

É partindo dessa compreensão queGramsci firma a sua forma de construira consciência humana:

O fato de que uma multidão dehomens seja levada a pensar coeren-temente e de maneira unitária a rea-lidade presente é um fato ‘filosófico’bem mais importante e ‘original’ doque a descoberta, por parte de um‘gênio filosófico’, de uma nova verda-de que permaneça como patrimônio

de pequenos grupos de intelectuais.33

Assim não basta fazer grandes des-cobertas ou buscar originalidade, épreciso socializá-las para que ao tomarcontato com essa nova verdade o ho-mem possa incorporá-las e transfor-má-las a medida de suas peculiarida-des individuais e coletivas.

Considerações finaisÉ interessante ressaltar que, no pen-

samento gramsciano, os aspectos teó-ricos não são trabalhados isoladamen-te, mas articulados de forma intrínse-ca, numa relação de mútua determina-ção, sendo impossível estabelecer odeterminante e o determinado, sãopartes de um “todo” orgânico. Ao dis-cutir o processo educacional, porexemplo, são utilizados todos os con-ceitos formulados, seja de cultura, dehomem, educação, etc. E, em se tra-tando do homem, ele é visto como umconjunto de relações sociais dos maisdiversos níveis.

O homem conhece objetivamentena medida em que o conhecimento éreal para todos os gêneros humano,historicamente unificado em um sis-tema educacional unitário, mas esteprocesso de unificação históricaocorre com o desaparecimento , con-tradições internas de que dilacerama sociedade humana, contradiçõesque são condições da formação dosgrupos e do nascimento da ideologianão universal-concretas, mas queenvelhecem imediatamente, graçasà origem de prática da sua substân-cia. Trata-se, portanto, de uma luta

Toda comparação entre os homens é impossível devido ao conjunto de suas condições de vida e a sua relação com a natureza e com a sociedade. O homem então passa a ser visto como bloco histórico.

152 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Política e Cidadania

pela objetividade(para liberta-se daideologia parciais e falazes) e estáluta é própria pela luta unificaçãocultural do gênero humano, o que osidealistas chamam de ‘espírito’ não éum ponto de prática, mas na chega-da: o conjunto das superestruturasem devenis para a unificação con-creta e objetivamente universal, enão mais um pressuposto unitário,etc.(..) conhecemos a realidade ape-nas em relação ao homem, e como ohomem é um devenir histórico, tam-bém o conhecimento e a realidadesão um devenir, também a realidadeé um devenir, etc34.

Com isso, as críticas de Gramscicontinuam bastante atuais, na medidaem que levamos em consideração aformação humana e a educação ins-trumental/interessada, bem como osconceitos de escola desinteressada/in-teressada, no processo de construçãoeducacional do homem. Isso porque,quando Gramsci trabalha com o con-ceito de escola interessada/desinteres-sada, é exatamente para apontar o ti-po de educação que está sendo aplica-do para os filhos da classe trabalhado-ra, pois interessada é aquela educaçãoque tem a imediata preocupação coma formação do trabalhador e não apossibilidade de uma formação ampla,omnilateral sem vínculo imediato como mercado de trabalho.

NOTAS1. Dileno Dustan Lucas de Souza é Pro-

fessor da Universidade Federal de Viçosa eDoutorando da FACED/UFRGS.

2. Gramsci, A. Concepção dialética da his-tória. ed. Civilização brasileira, edição 2º,1978, p. 5.

3. Marx, K. e Engels, F. A ideologia alemã.ed. Hucitec, edição 9º, 1993, p.37.

4. Gramsci, A. Op. Cit. p. 11.5. Ibdem, p.13.6. Nosella, P. Op. Cit. p. 63.7. Ibidem, p.16.8. A retórica governamental é de que: os

jovens alunos que circularão, entre os operá-rios, em contato com uma vida menos artifi-ciosa, menos mole das que levam nas famí-lias, se transformarão e seguirá assim a gera-ção que se espera para se renovar a vida ita-liana tornando-a mais realista e saborosa(...) Eos professores, para não parecerem anti-práti-cos, deverão baixar a cabeça. E os pais de fa-mília, para não parecerem sabotadores daguerra, deverão permitir que seus filhos dei-xem de estudar para produzir munição, semque porém, ao mesmo tempo se especiali-zem no trabalho, sem que se exagerem tor-nar-se operários demais, porque afinal terãoque se tornar alguém pela escola e não pelaoficina. A costumeira retórica esta construindoa malha de prejuízos e oportunismos na qualserá sufocada a escola e com ela uma quanti-dade de jovens.(NOSELLA, 1992: P. 16/17)

9. Gramsci, A. Op. Cit. p. 29.10. Nesse momento na Itália a câmara

municipal de Turim discutia a formação curri-cular do instituto profissional operário, quan-do um vereador liberal defendeu que naque-la escola fosse se ministrasse um ensino pro-fissional útil e acessível aos operários, defen-dia o ensino da prática profissional e não filo-sófico como queriam os socialistas(Nosella, P.p.19)

11. Ibidem, p. 19.12. Gramsci, A. Os intelectuais e a organi-

zação da cultura. ed. Civilização brasileira,edição 7º, 1989, p. 130.

13. Ibdem, p. 131.14. Nosella, P. Op. Cit. p. 121.15. Gramsci, A. Op. Cit. p. 131-132.16. Nesse sentido, Gramsci toma como

exemplo de formação Leonardo Da Vinci, queé apresentado como um símbolo da unidadeentre tecnologia e cultura humanística, entrerigor científico e dimensão estética, entre dis-ciplina produtiva e liberdade.(Nosella, 1992:p. 94)

17. Ibidem, p. 90.18. Gramsci, A. Op. Cit. p. 39-40. 19. Nosella, P. Op. Cit. p. 38.20. Gramsci caracteriza como senso co-

mum a síntese mecânica de como pensam asmoléculas sociais, isto é, é o pensar difuso doambiente social. Ibdem, p. 79.

21. Ibdem, p. 73.22. Gramsci, A. Op. Cit. p. 124.23. Em relação ao homem Gramsci faz o

seguinte alerta após a derrota dos operáriosda FIAT, no seu artigo intitulado homens decarne e osso: “os operários da FIAT são ho-mens de carne e osso, resistiram por um mês,

completamente ilhados da nação(...) não hávergonha nessa derrota(...) não abusem de-mais da resistência e da virtude de sacrifíciodo proletariado; trata-se de homens, de ho-mens reais, submetidos às mesmas fraquezasde todos os homens comuns que passampelas ruas, que bebem nos bares, que conver-sam em grupinhos nas praças, que se can-sam, que tem fome e sentem frio, que secomovem quando ouvem o choro de suas cri-anças e o lamento de suas mulheres. Nossootimismo revolucionário foi sempre substan-ciado por essa visão cruelmente pessimistaquanto a realidade humana. Precisamos ine-xoravelmente mudar essa visão. (Gramsci,apud Nosella, 1992: p. 51.) O operário quevoltou a trabalhar porque não agüentou de fo-me, não deixou de ser revolucionário. (Ibdem,p. 52.)

24. Gramsci, A. Op. Cit. p. 137.25. Ibdem, p. 132.26. Ibdem, p. 137.27. Ibdem, p. 122.28. Ibdem, p. 122.29. Gramsci, A. Op. Cit. p. 47/48.30. Ibdem, p. 53.31. Ibdem, p. 43.32. Ibdem, p. 43.33. Gramsci, A. Op. Cit. p. 13-14.34. Ibidem, p. 170.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADAGRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a Or-

ganização da Cultura. 7ª Ed. Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 1989.

________________. Concepção Dialéticada História. 2ª Ed. Rio de janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 1978.

________________. Maquiavel, a Política eo Estado Moderno. 7ª Ed. Rio de Janeiro, Civi-lização Brasileira, 1989.

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NOSELLA, Paolo. A Escola de Gramsci.Porto Alegre, Artes Medicas Sul, 1992.

UFF. MESTRADO EM EDUCAÇÃO. TEXTOSPARA DISCUSSÃO. Pensando (com) Gramsci.Niterói, UFF, 1995.

SOUZA, José. S. A Escola Unitária deGramsci. Rio de Janeiro, Mimeo.1995.

Construir uma sociedade

justa no Brasil exige

responder a uma pergunta

fundamental: qual é a

situação dos trabalhadores

do país? O que lhes

aconteceu após uma década

de mudanças e de profundos

desequilíbrios, tal como foram

os anos 90? Esta resposta não

é simples e requer que

diferentes aspectos da

realidade brasileira sejam

levados em consideração.

Para respondê-la, a equipe técnicado DIEESE - Departamento Intersindi-cal de Estatística e Estudos Sócio-Eco-nômicos - elaborou um conjunto depublicações encabeçado pelo livro ASituação do Trabalho no Brasil, eacompanhada por três livretos com te-mas estruturantes da produção técnicada entidade: O Mercado de Trabalhono Brasil; Os Rendimentos do Trabalhono Brasil e As Negociações Coletivasno Brasil, além de um mural informa-tivo.

Estas publicações são parte de umainiciativa de solidariedade internacio-nal que reúne várias instituições depesquisa vinculadas ao movimentosindical em todo o mundo. Segue pro-posta do Economic Policy Institute

(EPI), dos EUA, que vem realizando apublicação The State of Working Ame-rica, ao longo dos anos 90. Livros se-melhantes foram produzidos tambémno México e Canadá. No Brasil, o DIEE-SE contou, na realização do trabalho,com apoio financeiro do SolidarityCenter da AFL-CIO.

O livro constata a heterogeneidadeexistente no país, ressaltando as dife-renças existentes na distribuição derenda e na situação das famílias brasi-leiras, tema tratado no capítulo 1. Osdados ratificam a conhecida situaçãode disparidade existente no Brasil eque se configura em diferenças mar-cantes entre as várias regiões brasilei-ras determinadas por um tardio pro-cesso de industrialização que se con-centrou, a princípio, na região Sudestedo país, expandindo-se posteriormen-te para o Sul e, só mais recentemente,atingindo o Norte e Nordeste.

As disparidades existentes entre asregiões do país ocorrem também in-tra-regionalmente, com grande distan-ciamento entre os ganhos de trabalha-dores - e famílias - mais bem remune-rados e aqueles auferidos pelas popu-lações de menor poder aquisitivo. ATabela 11retrata esse quadro nas seisregiões em que o DIEESE, em parceriacom instituições e governos locais, rea-liza a Pesquisa de Emprego e Desem-prego.

As disparidades na renda familiarforam, ao longo dos anos 90, agrava-das pelo crescente desemprego. Nadécada de 90, o desemprego atingiu

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 155UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Comentário

DIEESE lança livro:A situação do trabalho no Brasil

Lilian Arruda Marques

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais. PED- Pesquisa de Emprego e DesempregoElaboração: DIEESEObs.(a)Inflator utilizado: IPCA/BH/Ipead; ICV-DF/Codeplan; IPC-IEPE/RS; IPC-Descon/Fundaj/PE; IPC-SEI/BA;ICV-DIEESE/SP(b) O rendimento familiar corresponde ao total de rendimentos provenientes do trabalho, pensões, aposen-tadorias e seguro desemprego dos membros da família (chefe, cônjuge, filho, outro parente e agregado).(c) Grupo 1º Quartil = 25% das famílias com menor rendaGrupo 2º Quartil = 25% das famílias com renda familiar imediatamente superior ao Grupo 1Grupo 3º Quartil = 25% das famílias com renda familiar imediatamente superior ao Grupo 2

Grupo 4º Quartil = 25% das famílias com maior renda

patamares recordes em todas as re-giões em que a PED é realizada. Em1999, apenas nas seis regiões ondeeste levantamento é realizado,3.270.000 pessooas estavam desem-pregadas, enquanto outras 12.905.000encontravam-se ocupadas. Ou seja,cerca de um quinto da população eco-nomicamente ativa deste conjunto deregiões não tinha emprego, boa parce-la dela estava desempregada há maisde um ano.

A parcela da população que semanteve ocupada, ou que conquistounova ocupação, também viu as condi-ções de trabalho se deteriorarem noperíodo. Contratos de trabalho forados marcos legais em expansão, ex-tensas jornadas de trabalho, modifica-ções na legislação trabalhista, entreoutros fatores, aprofundaram o caráterheterogêneo do mercado de trabalhonacional. Um reflexo destas mudançasé verificado com a redução da impor-tância do emprego industrial nas seisregiões pesquisadas e o aumento, emcontrapartida, do emprego domésticoe no setor serviços, mais flexíveis e me-nos estruturados, apontados no capítu-lo 2, e que pode ser visto na Tabela 22.

A insegurança no emprego aumen-tou. O que antes era um paradigma derelações de trabalho, o emprego portempo integral, de longa duração, pro-

156 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Comentário

Fonte: DIEESE/SEADE e entidades regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego.Elaboração: DIEESENota: (1) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.

Fonte: PED - Pesquisa de Emprego e Deasemprego - Convênio DIEESE/Seade(1) Exclusive os assalariados e empregados domésticos assalariados que não tiveram remuneração no mês,os trabalhadores familiares sem remuneração salarial e os empregados que ganham exclusivamente em espé-cie ou benefício. Inflator utilizado: ICV/DIEESE(2) Base: Média de 1989 = 100(3) O cálculo da massa de rendimentos considerou o total de ocupados com rendimentos e a média dos ren-dimentos mensais dos ocupados com rendimentos.

Fonte: PED - Pesquisa de Emprego e Deasemprego - Convênio DIEESE/Seade(1) Exclusive os assalariados e empregados domésticos assalariados que não tiveram remuneração no mês(2) Os empregados incluem os assalariados, os empregados domésticos assalariados e os empregados con-tratados por tarefas.(3) Base: Média de 1989 = 100(4) O cálculo da massa de rendimentos considerou o total de empregados com rendimentos e a média dossalários mensais dos empregados com rendimentos.Obs: Inflator utilizado: ICV/DIEESE

tegido pela legislação trabalhista epelos contratos de trabalho acordadospelos sindicatos, passa na década de90 por uma implacável demolição. Osvínculos vulneráveis vão aumentandosua participação no mercado de traba-lho. Crescem o assalariamento semcarteira assinada, o trabalho de autô-nomos que operam em condiçõesprecárias, o emprego doméstico, aocupação de crianças e idosos. O nú-cleo protegido dos empregos diminuie aumenta a margem dos vulneráveis.

A renda do trabalho, assunto do ca-pítulo 3, também teve comportamentonegativo no período, e não acompa-nhou, ao longo dos anos 90, os ga-nhos de produtividade da economia.Nem mesmo se manteve o poder decompra dos que vivem de seus salá-rios. Ao contrário, apesar de algunsmomentos de recuperação, o saldo doperíodo é de diminuição do poderaquisitivo de todos os que têm no tra-balho a sua fonte de renda, comomostram as tabelas 3 e 43.

O salário mínimo, importante ins-trumento distributivo e de regulaçãodo mercado de trabalho, continuousua caminhada melancólica, sem umapolítica de valorização contínua, con-seguindo apenas pequenos aumentosesporádicos em seu valor real, contri-buindo para a manutenção de amplossegmentos da população na pobreza eexclusão social. Ao longo da década, osalário mínimo perdeu 34,52% do quevalia em 1989. A estagnação relativado salário mínimo é responsável tam-bém pelo aumento do desemprego,que sobe em função da pressão decontingentes que ou permanecem nomercado de trabalho, como é o casode trabalhadores aposentados, ou en-tram prematuramente, como é o casode jovens em idade escolar.

As desigualdades econômicas dopaís estão presentes, ainda, nos dife-rentes segmentos sociais que com-

põem a população brasileira. As mu-lheres (tema do Capítulo 4), cada vezmais presentes no mercado de traba-lho, detêm taxas de desemprego entre4 e 6 pontos percentuais superiores àsdos homens e ainda têm dificuldadesem ascender na hierarquia profissio-nal. Encontram-se predominantemen-te em atividades de execução e deapoio, com remuneração inferior àauferida pelos homens. Nem mesmo aeducação, pois hoje é proporcional-mente maior o número de mulheresque faz um curso superior em relaçãoao dos homens, lhes garante paridadesalarial e acesso a melhores postos detrabalho.

Para os negros - cuja situação é ana-lisada no capítulo 5 -, o quadro é aindamais grave. As taxas de desempregosão sempre superiores às dos brancos(conforme a região metropolitana con-siderada, chega a mais de 8 pontospercentuais) e seus salários, muito in-feriores, mesmo nas regiões onde apopulação negra é majoritária. Sua in-serção no mercado de trabalho ocorrefreqüentemente nas situações mais frá-geis e com vínculos mais precários.Numa escala de rendimentos, os ho-mens brancos, em qualquer região dopaís encontram-se no topo, seguidos,normalmente das mulheres não-ne-gras. Mas as mulheres negras encon-tram-se na situação menos privilegiada.

Os jovens com idade entre 16 e 24anos também enfrentam dificuldades,como mostra o Capítulo 6. No conjun-to das seis regiões em que a PED é

realizada, eles correspondem a 27%da população economicamente ativacom mais de 16 anos, mas são quasea metade (45,2%) dos desemprega-dos. Grande parte desse desempregoestá concentrado entre os mais novos(entre 16 e 17 anos), cuja taxa de de-semprego chega, em algumas regiõesa superar 50% da PEA da faixa etária.Para aqueles que conquistam umaocupação, esta ocorre, com freqüênciaem funções mais instáveis, sem prote-ção de leis trabalhistas e com rendi-mento extremamente baixo. Além dis-so, têm que acumular as tarefas profis-sionais com a educação, que no en-tanto, não será garantia futura de bonsempregos. As melhores oportunidadesficam reservadas para aqueles queconseguem freqüentar boas escolas eque constituem uma minoria. Os jo-vens de famílias de menor renda ten-dem a se transformar em adultos queestarão nos patamares mais baixos dadistribuição de renda.

Contrariando a legislação, muitascrianças e adolescentes entre 10 e 16anos estão também no mercado detrabalho (Capítulo 7). Na verdade,muitas começam suas atividades mui-to antes disso. Tanto que, em 1999,dados do IBGE indicavam que quase9% das crianças com idade de 5 a 14anos trabalhavam, 65% delas na árearural e, muitas vezes, sem remunera-ção. Nos grandes pólos urbanos tam-bém há parcelas variáveis de criançase adolescentes trabalhando, em suagrande maioria como assalariadosmas, invariavelmente, em condiçõesprecárias, uma vez que a situação ésempre irregular. Este trabalho infantiltem como raiz, a pobreza, pois os bai-xíssimos rendimentos das famíliaslevam mais crianças a trabalharem queo desemprego dos pais, ainda que suaremuneração seja ínfima. Para as famí-lias mais pobres e mais dependentesdo trabalho para a sobrevivência, mais

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 157UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Comentário

trabalho - e não mais salário - servepara resolver seu problema imediatode renda. Como este trabalho é, mui-tas vezes, realizado em detrimento daeducação, ou, no mínimo, prejudican-do o aprendizado, torna-se uma formade reprodução e aprofundamento dadesigualdade social existente.

A organização dos trabalhadorestambém vem sendo afetada, principal-mente pela predominância da ideolo-gia de que o sindicato é um elementodisfuncional para o mercado capitalista.Não foram poucas as ações no sentidode retirar dos sindicatos a legitimidadesocial e quebrar a coluna vertebral deseu papel regulador das relações de tra-balho, a partir dos mínimos estabeleci-dos pela Constituição Federal e pelaCLT. Mas o elemento fundamental paraesse enfraquecimento foi a longa preva-lência de uma política econômica quemantém as taxas de desemprego eleva-das. Houve uma queda significativa dasnegociações trabalhistas nos anos 90 -objeto de análise do capítulo 8 - acom-panhada por uma redução não menosimportante das greves de conquistas dedireitos. Dentre as poucas greves do pe-ríodo, predominaram as de naturezadefensiva, relacionadas a atrasos de sa-lários, 13º salário, não pagamento debenefícios, por desrespeito aos acordose convenções coletivas. E, no caso dosservidores públicos, greves relacionadasao mais longo arrocho salarial da histó-ria do país.

Não se pode olhar o trabalho so-mente de uma perspectiva das regiõesurbanas e, por isso, o Capítulo 9 é de-dicado à ocupação agrícola. O dramada terra no Brasil se desenrola cotidia-namente, palco de uma intensa luta

dos que buscam a terra para nela tra-balhar. No campo brasileiro convivemformas e relações de trabalho diversas.Encontram-se desde técnicas primiti-vas - inclusive com numerosos regis-tros de trabalho escravo - até trabalhoassalariado com alto conteúdo tecno-lógico (mecanização e automação daprodução). Ao lado da agricultura comgrandes propriedades, com ampla uti-lização de trabalhadores assalariados,há também a ocupação em pequenaspropriedades (ou posses) com base notrabalho familiar, muitas vezes em umaeconomia de subsistência. Estas dife-renças também refletem a péssima dis-tribuição de renda no país. Segundo oINCRA, em 1998 existiam mais de 59,7mil imóveis rurais não produtivos, ocu-pando uma área total de 166 milhõesde hectares, suficientes para assentarcerca de 2,6 milhões de famílias.

Não é possível, ainda, pensar o tra-balho sem considerar aqueles quedele já fizeram suas vidas e têm direi-to ao descanso e os que são ou estãoimpossibilitados de ganhar seu própriosustento. Essa é a importância dos sis-temas de seguridade social e de com-preender os desafios que se colocampara a Previdência Social brasileiraque, em janeiro de 2000, respondiapela concessão de aproximadamente18,9 milhões de benefícios, comomostra o Capítulo 10. Sobreviver comos benefícios da Previdência, porém, étarefa difícil para aposentados e pen-sionistas brasileiros, pois 63,84% delesrecebem apenas um salário mínimo.

Em um país com tamanhas dispari-dades, com taxas de desemprego ele-vadas, grande número de pessoas quepassam longos períodos sem conse-

guir uma ocupação e baixos níveis derendimento, os trabalhadores têm difi-culdades para se prevenir, através dealguma forma de poupança, para pe-ríodos mais difíceis. Por isso, seria ne-cessária a existência de políticas públi-cas de emprego e renda. No entanto, opouco que existe - e que está analisa-do no Capítulo 11 - os programas quecompõem o Sistema Público de Em-prego, entre eles o seguro desempre-go e o FGTS, estão longe de assegurargarantias mínimas ao trabalhador ouàquele que deixa o emprego, por de-missão ou aposentadoria.

Por fim, é preciso situar o país emrelação ao mundo, do ponto de vistados trabalhadores. Daí a importânciade comparar alguns indicadores de vi-da e trabalho brasileiros aos de outrospaíses, em especial da América Latina.Indicadores que não mostram umquadro muito favorável ao Brasil, co-mo evidencia o Capítulo 12.

A década de 90 é um divisor deáguas nas trajetórias dos principais in-dicadores da situação do trabalho noBrasil. Após cinqüenta anos de pro-gressivo aumento no trabalho assala-riado e formalização das relações detrabalho, houve uma drástica regres-são no mercado de trabalho, com au-mento de todas as formas de desem-prego, aumento dos vínculos vulnerá-veis, queda dos rendimentos reais econcentração da renda.

NOTAS1. Originalmente, Tabela 5, do Capítulo 1

- Renda Familiar e Trabalho 2. No livro, Tabela 9, do Capítulo 2 - Em-

prego e Desemprego.3. Tabelas 3 e 4, do Capítulo 3 - Rendimen-

tos do Trabalho.

158 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Comentário

Os direitos so-ciais no Brasil (condi-

ções de vida, trabalho,educação, saúde e assistência em situação de riscosocial) se associaram e se colaram às maiores difi-culdades e às mais intransponíveis resistências doGoverno para a sua implementação. A ConstituiçãoFederal de 1988 reconhece (o que, no Brasil, nadasignifica) o direito à saúde como universal, masesse reconhecimento se esbarrou nos voluntáriosentraves que o governo federal planta para nãoultrapassar o mero reconhecimento formal dotexto constitucional.

O estado de trauma já é conhecido como asegunda causa mais importante da mortalidadenas grandes cidades (hoje, nas médias e até mes-mo em pequenas também) acometida pela epide-mia de violência (física e simbólica) de nossostempos.

As imagens deste ensaio focalizam, com deta-lhe, o sucateamento dos serviços de saúde, o aban-dono das políticas sociais e o desmonte da redehospitalar e de assistência médica pública no país.

Ora, o temor que assalta a população, ao seimaginar plantada num corredor dos hospitais pú-blicos e exposta às formas mais aviltantes de hu-milhação, pode ser mais fatal que a doença quebusca remediar. O quadro é desolador: pacienteschegam à noite, enfrentam filas intermináveis, pa-ra marcar um exame que pode acontecer, comsorte, dois ou três dias depois, para fazer uma con-sulta que pode ser “rodada” (jogada) para um ou-tro dia, em favor de um outro paciente convenia-do, ou ainda, numa situação mais crítica, pacientes

que necessitam de cuidados urgentes e o pronto-socorro se acha lotado e desasssistido profissio-nalmente.

Na maioria dos hospitais públicos e universitá-rios quem toca os serviços são os residentes e osestudantes de medicina. Também a maioria dosusuários desses serviços conhece o “sistema dedupla porta” que esses hospitais mantêm e ali-mentam. Despedaçando a teia social, a saúde pú-blica segrega pacientes, na cisão criticável, anti-so-cial, entre pacientes do SUS versus pacientes con-veniados. Saúde pública não se vende, mas numasociedade moribunda como a brasileira, teme-setambém enfrentar o setor obscuro e tenebroso doexercício médico nos hospitais públicos, enquantoisso, a deficiência crônica e escandalosa do siste-ma público de saúde se alastra, como epidemia, ese mercantiliza como mercadoria.

As imagens que se seguem representam umapelo veemente à defesa, com afinco, ao direito àsaúde, tal como tem sido uma das bandeiras domovimento sindical dos professores. A cada dia,assiste-se ao rebaixamento do nível de assistênciamédica pública e à sua redução à mercadoria, sobos auspícios do neoliberalismo que tem arrebata-do do povo essa prerrogativa, cujos efeitos, em to-dos os âmbitos, são medonhos e inocultáveis, paraalém de constituírem num opróbrio para a socie-dade brasileira em geral. O próprio povo não podepermitir que, no Brasil, se eternize saúde comoapartheid social.

* Dr. Antônio Ponciano Bezerra é professor titular da Univer-sidade Federal de Sergipe.

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 161

Por Antônio Ponciano Bezerra *Fotos: Folha Imagem

Acesso à assistência médico-hospitalar:

CENAS DE UM CALVÁRIO

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Miséria e solidão num hospital público

Quarto de despejodos pacientes do SUS

Corredor hospitalartípico dos moribundos

e desassistidos

162 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A morte ronda os desassistidos

do corredor “brilhante”

Na fila: um dia,eu chego lá...no circo dos horrores

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 163UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A fila nossa de cada dia. Amém

Nas longas filasde espera, noite a dentro,só os cães dormem

164 - Ano XI, Nº 27, junho de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Desengano e desesperonos corredores doshospitais públicos

No corredor, a UTI dos miseráveis

Ano XI, Nº 27, junho de 2002 - 165UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

166 Ano XI, Nº 27, junho de 2002

Como enganar o cansaçoquando se esperaassistência médica

Num cubiculoimundo uma

criança aguardaos cuidados médicos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE