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Caderno de Direito Tributrio - 2006 James Marins

FUNDAMENTOS DO PROCESSO TRIBUTRIO E EXECUO FISCAL * James Marins

I. PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PROCESSUAL TRIBUTRIO 1. A DOUTRINA CLSSICA DO DIREITO TRIBUTRIO SOB A TICA DO PROCESSO

a. As diversas teorias a partir da Reichsabgabenordenung (relao concntrica, contedo complexo, esquema gianniniano etc.). A doutrina tributria sempre se empenhou em desenhar o esquema lgico da relao tributria enquanto fenmeno jurdico. Seja qual for a articulao ou a denominao proposta para a relao tributria, converge invariavelmente a doutrina para as inegveis particularidades dos mecanismos de atuao dessa relao obrigacional, buscando, sempre, compreender e explicar a estrutura lgica do fenmeno relacional tributrio diante da complexa correlao entre suas vrias facetas: obrigao principal, deveres instrumentais, fiscalizao, lanamento, controle, processo, sano administrativa, sano penal etc. O advento da Ordenao Tributria Alem (Reichsabgabenordenung), em 1919, apontado como o marco intelectual sobre o qual se assentam as lies e teorias clssicas que se apresentam como fundacionais do Direito Tributrio nos moldes como foi construdo no decurso do sculo XX.1 As caractersticas histrico-doutrinrias mais marcantes do Direito Tributrio podem ser visualizadas desde o estudo pioneiro de Blumenstein,2 que marca com vigor o trnsito da relao de poder para a relao jurdica, de Nawiasky, austraco das relaes jurdicas concntricas (Konzentrische Rechtsbeziehungen),3 de Hensel,4 na Alemanha, com sua teoria da obrigao tributria e do fato imponvel, passando-se pelo italianos, com destaque para o chamado esquema gianniniano, onde Aquille Donato5 expe sobre o contedo complexo da relao jurdica*

Texto condensado do livro, James Marins, Direito Processual Tributrio, 4 ed, So Paulo: Dialtica, 2005, pg 31-47, pg 84-91, pg

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tributria, e para a tese dinmica, fortemente influenciada e difundida por Gian Antonio Micheli.6-7

b. Avaliao das teorias clssicas sob a tica do processo tributrio: influncia negativa. Ao focarmos sob a lente do processo tributrio essas diferentes teorias clssicas produzidas com o escopo de explicar o fenmeno tributrio em sua multifacetada configurao8 poderemos constatar o seguinte: i) a doutrina clssica avanou bastante na anlise do contedo do Direito Tributrio material ou substantivo, dimenso esttica da relao, construindo slida orientao quanto aos princpios retores da incidncia (garantias materiais da relao tributria); ii) seja de modo explcito ou implcito, esta doutrina ps em alto relevo as caractersticas que diferenciam a obrigao tributria em seu contraste com as obrigaes pecunirias do Direito Privado, civis ou comerciais, sob o ngulo de sua atuao ou formalizao; iii) avanou tambm no campo do Direito Tributrio formal, dimenso dinmica da relao, dissecando-o sob diversos ngulos; iv) mostrou-se, contudo, incipiente quanto percepo da importncia da lide tributria (dimenso crtica) e de seus instrumentos de soluo administrativa e judicial; v) no raro a doutrina clssica reduziu a mero procedimento administrativo as questes relativas ao controle da atividade administrativa e da resistncia do contribuinte s pretenses fiscais; vi) conseqentemente, notvel a ausncia de percepo do valor terico da insero sistemtica do fenmeno processual (como um subsistema de garantias) na dimenso crtica da relao jurdica tributria. Essas construes - tidas como fundacionais para o Direito Tributrio repercutem profundamente, com suas virtudes e defeitos, na compreenso contempornea da disciplina e provocam, em alguns aspectos, uma perigosa deformao histrica, especialmente no plano de nosso objeto de estudos que o processo tributrio.

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Assim que, entre ns, aquelas mesmas caractersticas so encontrveis, desde Alfredo Augusto Becker,9 Geraldo Ataliba,10 Paulo de Barros Carvalho11 at Maral Justen Filho12 e tantos outros. Apenas uma parcela autorizada da doutrina, pouco difundida porm, tem o mrito de inserir o processo no contexto da relao tributria, buscando identificar os caracteres diferenciais desta disciplina em face da lide tributria. Esta parcela doutrinria est representada pelos aportes de Carnelutti em 1932 (teoria da diferenciao) e Allorio em 1942 (teoria unitarista) na Itlia, Rubens Gomes de Sousa em 1943 (teoria da harmonizao) no Brasil, Sainz de Bujanda em 1985 (teoria da substantividade), na Espanha e Valds Costa em 1992 no Uruguai (teoria da garantia jurisdicional), em alentados estudos que por apresentarem nuclear importncia para o Direito Processual Tributrio sero examinados mais adiante com maior detena.

2. A PERCEPO DO FENMENO PROCESSUAL TRIBUTRIO E A DOUTRINA CONTEMPORNEA: ASPECTOS PONTUAIS Embora se afigure inegvel que a limitada abordagem que a doutrina tributria clssica concedeu aos problemas de processo influenciou negativamente a insero das garantias processuais no plano da relao jurdica tributria, comea a surgir, sem embargo, na doutrina contempornea, a percepo da importncia do fenmeno processual e sua influncia no campo da relao jurdica tributria. Cumpre-nos destacar, de bero argentino, os aportes de Fonrouge e Navarrine, Villegas, Jarach e, mais recentemente, Beltrn, Rodolfo Spisso e Jos Osvaldo Cass.13 Ainda assim, peca esta parcela da doutrina pelo teor ora excessivamente pontual de sua abordagem, ora excessivamente pragmtico, manualizado, com raras excees. Veja-se, ilustrativamente, o realce atribudo por Hctor Villegas,14 com a inteno de por a lume os contrastes tericos que a matria suscita, observao de Carlos Palao Taboada em seu prlogo edio espanhola do vol. III dos Principios de Derecho Tributario, de Berliri: Comienza, en efecto, a difundirse la conviccin de que la justicia en este importante sector de la vida social no depende

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slo de una correcta formulacin de las leyes tributarias substantivas, sino tamben, de manera decisiva, de una regulacin de la actividad administrativa y de los recursos contra su ejercicio ilegal que armonice los derechos de la hacienda y de los contribuyentes.15 No se pretende, como adverte Villegas, conceber o Direito Tributrio reduzido a funo administrativa; procedimento realizador do poder tributrio; exerccio de poder atravs de atos arrecadadores; mecanismo tcnico de imposio; conjunto de regras tcnicas econmico-tributrias ou ainda simples normatividade processual,16 mas sim encetar o aprofundamento dessa faceta cada vez mais presente na vida do Direito Tributrio que a lide entre a Administrao e o contribuinte. facilmente verificvel que a acuidade da viso de alguns dos maiores cultores de nosso Direito, processualistas ou tributaristas, empresta ao tema a projeo que lhe devida. Com muita freqncia as preocupaes mais candentes so encontradas nos escritos de tributaristas. Veja-se por exemplo, o trabalho de Jorge Beltrn, denominado de El Principio Constitucional de Adecuada Tutela Jurisdiccional en Materia Tributaria, no qual o ilustre tributarista argentino debate-se com os inumerveis empecilhos, presentes na legislao tributria argentina, opostos plena cognio dos atos administrativos tributrios (inclusive a vetusta regra do solve et repete), barreiras estas que, se no superadas, se constituem em agresses garantia constitucional do devido controle jurisdicional que imanente ao prprio direito de defesa. Diante das gravssimas restries presentes na legislao argentina conclui o autor, asseverando: Toda la legislacin tributaria que, de alguna manera, impida un debate jurisdiccional administrativo amplio, respecto de toda classe de actos, de alcance particular o general, debe ser asimismo revisada y acomodada a una poca atual, en que los derechos humanos se han firmado contundentemente frente a un exagerado inters pblico.17 Lembra oportunamente Beltrn18 que o Direito Tributrio regula las relaciones ms rispidas que se generan entre los seres humanos, uma vez que, enquanto nas relaes contratuais e patrimoniais entre particulares registra-se, via de regra, o elemento volitivo, isto , a manifestao de vontade com relao s condies10

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avenadas, na relao tributria, diversamente, esta expresso volitiva se opera, de modo relativo, atravs de seus representantes legislativos. Tambm em tempos muito prximos, uma das mais notveis expresses do Direito Tributrio espanhol, Ferrero Lapatza oferece estimulante aporte doutrinrio ao Direito Processual Tributrio.19 Principia seu marcante estudo da anlise por ns to conhecida mas pouqussimas vezes admitida: o Direito Tributrio ainda padece, em sua construo e atuao, da tradicional presena do elemento poder poltico, influncia insuportvel nas relaes jurdicas nascidas como sucesso do Estado de Direito.20 Tais quadrantes vazios de direito21 soem localizar-se, com indesejada freqncia, nos domnios dos ingressos pblicos, de forma muito particular no setor dos ingressos tributrios que no so apenas a mais clara manifestao do poder seno que constituem conditio sine qua non para a existncia mesmo do poder, razo pela qual o poder poltico, conclui o autor, que reiteradamente busca, no seio das democracias, libertar-se das ataduras do Direito, e manifesta com especial virulncia esta tendncia no mbito do poder tributrio. Especificamente no Brasil, em que pese a preocupao processual tributria presente em alguns estudos de Arruda Alvim22 e Ataliba23, e ainda o laborioso trabalho de Gilberto Ulha Canto em seu Anteprojeto e, muito especialmente a tese de Rubens Gomes de Sousa24 ( qual j nos referimos e ser examinada mais adiante), remanescemos dominados ou por construes excessivamente episdicas, unilaterais seno (v.g.,

essencialmente

pragmticas

ainda

vislumbrando o fenmeno pelo ngulo parcial do processo civil), que no logram, dessarte, visualizar o fenmeno processual tributrio em sua complexa inteireza. Entre os trabalhos monogrficos de mais destaque esto aqueles desenvolvidos por Cleide Cais,25 dedicado ao exame do processo judicial tributrio unicamente luz dos fundamentos do processo civil, e Hugo de Brito Machado, voltado para o exame da principal ao judicial tributria, o mandado de segurana.26 Mais recentemente, veio luz a obra magistral de Eduardo Arruda Alvim, tambm destinada ao mandado de segurana enquanto instrumento de tutela judicial dos contribuintes.27 Sem embargo de no se tratar de trabalho especificamente processual

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tributrio, mas de autntico tratado sobre o lanamento, o trabalho de Alberto Xavier denominado Do Lanamento - Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributrio, revela-se obra de leitura obrigatria, no apenas pela reconhecida envergadura do Autor, como pela abrangncia na abordagem de temas processuais tributrios, tanto de carter administrativo como judicial.28 Mas infelizmente no Brasil o processo tributrio caminha vagarosamente. De fato, exceo, talvez, da renovada criao da Justia Federal, em 1946, com seu Tribunal Federal de Recursos, posteriormente transformado em Superior Tribunal de Justia e virtualmente substitudo pelos Tribunais Regionais Federais instalados em cinco regies do pas por expressa previso da Constituio de 1988, pouco evoluiu nosso sistema em termos orgnicos e fundamentais, especialmente em face da notvel falta de apetite legislativo para esses assuntos processuais, marca comum de quase todos os governos, sempre mais dedicados a realizar modificaes de ordem material. Apreciamos, sem embargo, da metade para o final deste sculo, mais especialmente nos ltimos dez anos, grande evoluo jurisprudencial em matria de tutela dos contribuintes, em particular com o sensvel alargamento das hipteses de cabimento do mandado de segurana preventivo em matria tributria. Assistimos ento, no temos dvidas, a um claro evolucionar das garantias formais dos contribuintes, mais por fora criativa jurisprudencial que legislativa.29 Ainda assim, cremos, os esforos de nossos juristas e tribunais voltam-se, historicamente, para o assecuramento de garantias materiais, buscando a cristalizao de princpios materiais condicionantes da atividade fiscal do Estado. Essa evoluo necessita ganhar constncia e robustecimento. Prope o eminente Prof. Arruda Alvim que, na anlise do tema, se lancem olhos ao passado, de modo a que se encete abordagem comparativa em face dos regimes mais antigos, como forma de conferir o necessrio realce s conquistas hodiernas.30 De fato, garantias tornadas hoje, quotidianas, prosaicas, j foram, outrora, poderosos motores de sangrentas revolues que traziam, por escopo, o anseio pelo assentamento de limites soberania interna, inicialmente monrquica e imperial e, a posteriori, soberania estatal, em busca do regime republicano - estribado no que chamamos Estado de Direito - que at hoje esforamo-nos por aperfeioar.12

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de constataes de tal natureza que emerge com cristalina clareza a importncia do Processo Judicial Tributrio, na medida em que, estando o Estado de Direito caracterizado, fundamentalmente, pela inegocivel adstrio do Estado administrador do interesse pblico - lei e fiscalizao do Poder Judicirio; e se, no poder tributrio reside historicamente a mais poderosa influncia do Estado na vida privada dos cidados; a mais elevada expresso do estgio de

desenvolvimento de nossas instituies jurdicas manifesta-se atravs da construo de aparato processual em que efetivamente o Poder Judicirio - guardio das liberdades individuais - atue como instrumento til para a proteo das garantias materiais dos cidados-contribuintes nesse seu ntimo relacionamento com o ente estatal. Reconhece Arruda Alvim a necessidade de que o Estado receba apropriado instrumental para sua atuao, de modo que, ao funcionar como aglutinador da soma dos interesses individuais, disponha, ainda que no contexto do Estado de Direito, de instrumental jurdico-material mais agressivo do que aquele que dispem os particulares. Por tal razo os atos administrativos so dotados da chamada autoexecutoriedade, atributo presente em diversas espcies de comandos

administrativos, que se presta para pr em relevo a predominncia do interesse pblico sobre o privado, assim ocorrendo, exemplifica o autor, em situaes rotineiras como o fechamento de uma casa que esteja vendendo produtos estragados, a cassao de uma licena etc., restando apenas ao administrado, caso tenha se julgado lesado, recorrer tutela judicial em busca do desfazimento do ato administrativo. O problema do processo tributrio sempre pode ser enfocado sob prismas distintos, ora sob o prisma judicial ora sob o foco administrativo, mas raramente de modo integral ou abrangente. Quanto ao processo administrativo tributrio, Geraldo Ataliba expressava sua constante preocupao, em lio vintenria que merece ser relembrada em sua integralidade:Estabelece-se conflito entre o fisco (rgo fazendrio do Estado) e o contribuinte, sempre que aquele manifesta uma pretenso resistida por este. Ao exigir o fisco um tributo, uma multa ou um dever acessrio, pode o sujeito passivo dessas exigncias a ela resistir, por entend-las infundadas ou excessivas. A divergncia - ensejadora do litgio, contenda,

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dissdio - sempre se fundar em diversa interpretao da norma jurdica aplicvel ou na diferente apreciao ou qualificao jurdica dos fatos relevantes para os efeitos de aplicao da norma. Como a Constituio protege o patrimnio e a liberdade contra a ao estatal - somente consentindo que esses bens sofram diminuio ou detrimento mediante lei -, dessa divergncia surge o direito de o contribuinte pedir ao Poder Judicirio a declarao da correta aplicao da lei ao caso concreto. Diversas razes recomendam que se crie um sistema de eliminao clere e eficaz desses conflitos, tendo em vista a harmonia fisco-contribuinte e os interesses pblicos em jogo. Se todas as divergncias forem submetidas ao Poder Judicirio, este submergir sob o peso de um acmulo insuportvel de questes para julgar. Alm disso - e tambm por isso tardaro muito as solues, em detrimento das partes envolvidas. Da a razo pela qual, em quase todos os pases, se criaram organismos e sistemas para reduzir o nmero de causas instauradas perante o Poder Judicial.31

Paulo de Barros Carvalho, em valioso exame, identificou a caracterstica primacial que implica a diferente tica com que pode ser enfrentado o procedimento administrativo tributrio no fato de que a pretenso tributria esbarra em dois primados carssimos, na estrutura do direito positivo brasileiro: o direito de liberdade e o direito de propriedade, razo pela qual, prossegue o autor, a singela ameaa a esses dois direitos substanciais motivo suficiente para que se desencadeie toda aquela sucesso de expedientes, alguns do Fisco, outros do sujeito passivo, conduzindo-se a discusso de tal arte que se promova, iterativamente, o controle de legalidade dos atos praticados no plano de gesto de tributos.32

3. SNTESE PRELIMINAR: OS PRINCIPAIS FATORES INFLUENTES NA CONSTRUO DO DPT Alguns fatores podem ser destacados como de grande influncia na tarefa de construo do Direito Processual Tributrio: i) houve na doutrina tradicional ou fundacional do Direito Tributrio fraca percepo da importncia da lide e do fenmeno processual; ii) a doutrina de direito tributrio desenvolveu-se acentuadamente mais no campo material que no campo formal e processual; iii) notvel, hodiernamente, o aperfeioamento e grande desenvolvimento

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da justia administrativa (processo administrativo) em todo o mundo; iv) torna-se, cada vez mais evidente a evoluo doutrinria no bojo do processo civil no sentido da construo do Direito Processual Pblico, como necessidade terica e prtica; v) no Brasil a nova disciplina constitucional para o processo administrativo torna imperativa a necessidade de adaptao das leis e da doutrina; vi) o inevitvel ponto de contato entre a justia civil e a justia administrativa com inevitvel conflito ou concorrncia ou sobreposio entre elas torna imperativa sua disciplina harmnica; vii) existem recorrentes ameaas ao Estado Democrtico de Direito sob a tica do procedimento e do processo tributrio que somente sero debeladas atravs de esforo jurdico coerente.

4. PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PROCESSUAL TRIBUTRIO a. A diferenciao da lide e seus desdobramentos lgicos. A partir dos aportes doutrinrios vistos acima pode-se extrair uma srie de premissas que conduzem a um mesmo fecho: se a relao jurdica tributria se afigura dotada de carter peculiar, assim tambm necessariamente se dar com a lide tributria e, portanto, com o processo destinado sua soluo; o Direito Processual Tributrio, ento, passa a ser desenhado com contornos prprios, particulares, tornando-se um processo diferenciado. A partir da noo peculiar da relao tributria para logo nos depararmos com a diferenciao da lide eclodida no percurso dinmico desta relao. Nossa principal premissa assume carter estritamente tributrio: a relao obrigacional de natureza tributria que enlaa Estado e contribuinte insuscetvel de ser subsumida a qualquer outra espcie de categoria jurdica. No se assemelha relao obrigacional civil, contratual ou extracontratual, comercial, administrativa ou qualquer outra. Tambm no penal. Nada muda, ainda que no se queira aceit-la como obrigacional, e configur-la, v.g., como sujeio do contribuinte em face do Estado. Atribua-se-lhe a colorao jurdica que se desejar e o resultado permanecer o mesmo: a relao tributria entre Estado e contribuinte, sem embargo de sua vocao prosaicamente pecuniria, relao especial inassimilvel a qualquer outra conhecida no seio da vida civil.15

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A premissa da diferenciao da relao jurdica tributria se nos afigura indiscutivelmente slida. Ficamos de qualquer modo, para as finalidades desta tese, com Carnelutti para quem pouco importou a natureza da relao tributria, se de Direito ou mesmo de Poder. Bastava ao maestro que esta relao se apresentasse, como de fato sempre se apresentou - e permanece sendo - peculiar, ou particular. Esta premissa lana-nos a uma deduo: se a relao jurdica tributria evidenciadamente peculiar, diferenciada, sui generis, assim tambm o ser a lide de natureza tributria. Contudo, no basta que se diga que a lide tributria diferenciada; preciso que se diga com relao a que se registra esta nota diferencial. Ora, para nossos propsitos importante que se diga que a lide tributria diferenciada da genericamente denominada lide civil, que objeto de estudo do Direito Processual Civil. Logo, se a lide civil diferenciada da lide tributria o processo tributrio h que ser diferenciado do processo civil. Aqui fixam-se as razes de nossos problemas processuais tributrios. Isso - a diferenciao do processo tributrio - o reconhecem, entre outros, de ontem e de hoje, juristas da estatura de Carnelutti, Allorio, Gomes de Sousa, Sainz de Bujanda, Villegas, Jarach, Valds Costa, Beltrn, Ferreiro Lapatza e Soares Martnez, cada qual, obviamente, com suas matizes tericas prprias. Esta diferenciao do processo tributrio no decorre apenas da diferenciao da lide enquanto reflexo direto da diferenciao da relao jurdica tributria. Esta diferenciao do processo tributrio d-se tambm por aspectos puramente processuais, j que a deduo formal da lide tributria tem lugar tanto na esfera administrativa como na esfera judicial. Com efeito, as diversas garantias hoje encontrveis nos regimes processuais tributrios administrativos em todo o mundo (contraditrio, produo de provas, recurso hierrquico etc.) nada mais so do que sinais endoprocessuais da existncia da lide na esfera administrativa. A lide passa a existir assim que formalizada, seja na esfera administrativa ou judicial. Se o Estado requer junto a si, em seu quadro executivo, mecanismos que lhe ensejem apreciar este inconformismo do contribuinte, no pode afastar-se do dever de oferecer ao cidado os meios necessrios para que a soluo da lide se d de modo satisfatrio sob o prisma do Direito, isto , com a observncia do devido processo legal. Se a relao jurdica tributria apresenta inequivocamente sua gama de

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peculiaridades, j que cercada de um prprio conjunto de amarras e garantias muitas vezes de foro constitucional, esta circunstncia certamente opera efeitos no momento da interpretao e aplicao da norma jurdica tributria. Com efeito, no dizer de Soares Martnez, a constituio criou um regime de especial segurana no mbito da tributao. Identificado este regime constitucional de especial segurana em matria de incidncia tributria, havero estas cautelas materiais de se projetar no campo do Direito Tributrio formal e do Direito Processual tributrio, implicando necessariamente que o procedimento e o processo tributrio se pautem pelos desdobramentos teleolgicos de tais garantias, em nova viso do mesmo princpio da diferenciao do processo tributrio. A diferenciao do processo tributrio conduz, portanto, a diversos

desdobramentos que podem ser traduzidos em premissas ou princpios que devem presidir o raciocnio de edificao do Direito Processual Tributrio enquanto disciplina jurdica, atribuindo-lhe coeso e sistematicidade e que denominamos de Princpios Fundamentais do Direito Processual Tributrio: i) princpio da diferenciao do processo tributrio; ii) princpio da dualidade de cognio; iii) princpio da harmonia processual; iv) princpio da tutela judicial efetiva em matria tributria; v) princpio da autotutela vinculada do ente tributante; vi) princpio da justia tributria.

b. Princpio da autotutela vinculada do ente tributante. A necessidade de que o Estado rena meios cleres para a atuao da norma tributria transforma-se em princpio da autotutela vinculada do ente tributante e desgua necessariamente no princpio da dualidade da cognio em matria tributria. Esta autotutela, embora no seja prestigiada com foros de definitividade (j que no est imune ao controle do Poder Judicirio), instrumento essencial ao atendimento das premncias instrumentais do Estado. Est, entrementes, a autotutela estatal, inarredavelmente amarrada a critrios exclusivamente legais, vinculantes da atuao do agente pblico, e, teleologicamente no pode prescindir o elemento axiolgico: a realizao da justia tributria. Da por que melhor denomin-la de autotutela vinculada,

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extremando-a assim da noo tradicional. Como esta autotutela comporta dois momentos distintos, quais sejam, o acertamento da obrigao tributria e o julgamento de eventual resistncia deduzida pelo contribuinte (conflito de interesses deduzido pelo cidado ante o rgo administrativo com funes julgadoras), alm da vinculao que caracteriza a atuao do agente administrativo no primeiro momento, haver ainda a processualidade a conformar a atuao do julgador administrativo no segundo momento, quando passa a incidir a clusula due process of law (procedural due process). So fenmenos muito distintos. O primeiro refere-se ao Direito Tributrio formal, o segundo concerne ao Direito Processual tributrio, onde se desenvolve atividade julgadora em sentido amplo. As implicaes decorrentes deste modo de pensar so extraordinrias.

c. Princpio da dualidade de cognio. A dualidade da cognio ou dualidade do conhecimento da lide administrativa (que no se confunde com a dualidade de jurisdies do sistema francs e menos ainda com o princpio judicial do duplo grau de jurisdio ou o princpio administrativo do duplo grau de conhecimento), em matria tributria, princpio fundamental que tem seu nascedouro na necessidade poltica dos governantes em trazer para si a soluo dos problemas tributrios. Esta necessidade poltica foi tornada jurdica em todos os sistemas europeus de inspirao romano-germnica como na Alemanha, Itlia, Espanha e Portugal. Na Amrica Latina no se deu diferente como se v da Argentina e do Brasil. Em todos estes pases a lide tributria passa, obrigatoriamente ou no, por uma etapa administrativa de julgamento e, mesmo que alguns vejam nesse sistema uma deturpao das funes do Estado, no vislumbramos outra forma terica ou prtica de funcionamento (sobre os sistemas ocidentais de soluo de lides tributrias, vide cap. 9). A proposta de Valds Costa no sentido de que toda lide tributria deveria ser apreciada somente pelo Poder Judicirio, ainda que louvvel, carece de consistncia jurdica pois implicaria o desmantelamento, provavelmente desastroso, da experincia jurdica vivenciada por dcadas em ao menos uma dzia de pases de cultura moderna. Ao contrrio do desmantelamento, pregamos a adoo de critrios que retirem estes sistemas de sua vida anacrnica e muitas vezes antagnica, tornando-os compatveis com o atual estgio de evoluo do princpio do Estado de

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Direito. E isso se obtm, entre outras providncias, atravs da processualizao dos trmites administrativos. d. Princpio da harmonizao processual. Do princpio fundamental da dualidade da cognio origina-se outro postulado de transcendental importncia: o princpio da harmonizao processual entre as duas esferas cognitivas. Este princpio destina-se a evitar e corrigir os desacertos to freqentes no confronto entre as duas etapas processuais tributrias, a administrativa e a judicial. Esta harmonizao, mais saliente em alguns regimes europeus, como o alemo e o portugus, princpio racional que busca evitar a superposio de jurisdies, ou, melhor dizendo, de esferas cognitivas, com evidente e desnecessrio desgaste do aparelho estatal. Isso j dizia Rubens Gomes de Sousa h mais de meio sculo. O fenmeno processual no se limita, hoje, por expressa injuno de sucessos evolutivos do Estado de Direito, ao processo judicial. mais amplo e espraia conseqncias nas provncias da atividade administrativa quando dotada de funes julgadoras que facultam ao cidado a deduo administrativa de seu conflito com o Estado. Precisamente nesse aspecto concernente ampliao do conceito de processo, pensamos ns, aloja-se a principal problemtica do processo tributrio e ao mesmo tempo sua maior conquista. Queremos com isso dizer: h processo sem jurisdio e em matria tributria intil combater-se esta realidade, no apenas como decorrncia da cristalizao histrica de instituies administrativas com funes especiais de julgamento, como em virtude da consagrao jurdica da noo de processo no seio da administrao, muitas vezes com gnese constitucional, como o caso do Brasil. Isso, voltamos a afirmar, ao contrrio de ser fenmeno indesejado, circunstncia evolutiva, fruto do aperfeioamento de nossas instituies jurdicas em face do aperfeioamento do prprio princpio do Estado de Direito. O processo, ao penetrar e fincar razes no stio administrativo, sem com isso afastar a ampla e efetiva cognio judicial - isto , harmonizando-se com a conotao judicial do princpio do monoplio da jurisdio - torna jurdico e por isso mais seguro o relacionamento conflituoso entre Estado e contribuinte, sujeita ao Direito a discrio e o arbtrio que com freqncia contaminam as regies vizinhas ao poder. A admisso de que se desenvolvam funes julgadoras no seio da19

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administrao decorrente da inquestionvel necessidade que o Estado tem de instrumentalizar-se adequadamente em sua ao de exigir tributos, lanando e sempre que possvel resolvendo conflitos com a celeridade que, ao menos teoricamente, peculiariza a atividade administrativa. Por outro lado, o

reconhecimento da peculiar dimenso processual do fenmeno litigioso no plano administrativo garantia que se deve assegurar ao cidado-contribuinte. Este um conceito amplo de processo, como prope Allorio, j que no encarcera o fenmeno processual ao permetro prprio da atividade judicial, isto , da atividade jurisdicional propriamente dita. Nem por isso se enquadra, porm, em noo generalizante ou generalizvel, como conviria ao unitarismo.

e. Princpio da tutela judicial efetiva em matria tributria. Caractersticas encontrveis nas legislaes processuais latino-americanas apontam para o fortalecimento dos poderes judiciais em sua funo de controle dos atos administrativos em matria tributria. Nesse aspecto situa-se a superao de boa parte dos problemas apontados, na exata medida em que atravs de procedimentos cleres (atravs de remdios constitucionais como o mandado de segurana ou medidas cautelares ou mesmo antecipatrias) logra-se obter a proteo aos eventuais desvios na atividade administrativa, seja de fiscalizao, lanamento ou mesmo de soluo de conflitos tributrios deduzidos administrativamente. Esta, quer nos parecer, - ao lado do aperfeioamento dos tribunais administrativos - a tnica evolutiva que marca as legislaes ocidentais, pois a supresso dos aparatos administrativos de aplicao da lei tributria e soluo de eventuais lides assume contornos irrealizveis. O princpio da garantia jurisdicional, posicionado com gala por Valds Costa, ao lado do princpio da legalidade e da isonomia em matria tributria, deve ser compreendido no como a ampliao da competncia do Poder Judicirio na apreciao das lides tributrias (especialmente no que concerne aplicao de penalidades) com correspectiva excluso da competncia dos rgos tributrios administrativos, mas deve ser compreendido como um princpio que assegure a efetiva tutela judicial do contribuinte, notadamente no controle dos atos da administrao tributria inclusive - e especialmente - dos seus atos destinados

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soluo do conflito fiscal deduzido administrativamente pelo cidado-contribuinte, da deduzindo-se o princpio fundamental da tutela jurisdicional efetiva em matria tributria (para maior aprofundamento vide, infra, cap. 10, especificamente dedicado a esse tema). Ao Estado tambm haver de corresponder princpio apto para que suas finalidades arrecadatrias no se vejam frustradas pelo conjunto protetivo que se confere ao contribuinte. Afinal, como disse Carnelutti o Estado um credor particularmente digno de tutela. Por isso que o Estado recebe a primazia da autotutela vinculada, como j mencionamos acima.

f. Princpio da justia tributria. Por fim e por tudo isso, assume posio no processo tributrio o princpio da justia. Como diz Allorio, Administrao Pblica no se pode afigurar estranho o objetivo de realizao de justia, ainda que este no se constitua em sua finalidade especfica (satisfao de um interesse pblico que pode assumir a mais variada natureza). Este aspecto, porm, no excludente de que a Administrao tenha na realizao de justia o fim genrico de sua atuao. Nesse caso, e aqui reala-se um aspecto de especial importncia, quando o fim administrativo especfico vem a colidir com o fim genrico de justia este ltimo deve prevalecer. Assim no fosse de pouco adiantaria reconhecer-se na Administrao o fim genrico de justia. A objeo consistente em se dizer que diante disso toda atividade administrativa passaria a ser mister de justia no pode ser sustentada por uma razo lgica, que diz respeito prpria diferenciao entre a atividade jurisdicional e a atividade de cunho administrativo, ou seja, nem toda atividade administrativa ir conter em seu bojo uma questo de justia, pois na atividade administrativa pode-se revisar uma atuao de direito sem o especfico fim de soluo de uma lide, enquanto no mister jurisdicional opera-se reviso de direito com o fim precpuo de solucionar a relao conflituosa. O princpio da justia, ainda que a muitos possa parecer impertinente, reclama constante reafirmao em ambiente de tantas equivocidades cientficas. A busca pela justia no mbito do processo tributrio elemento de aproximao e harmonizao entre a etapa administrativa e a judicial, ainda cada qual com seu mtodo prprio. Precisa ser reafirmado para que o processo tributrio que tenha

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lugar no seio da administrao se torne adequadamente jurdico, isto , atenda mais claramente aos princpios inerentes ao convvio jurdico calado no Estado de Direito e na idia de Direito. Sabemos que esta posio, de extrema relevncia, no isolada, seno que compartida, com nuances naturais, por diversos outros juristas como, dentre outros, Sainz de Bujanda, Alberto Xavier e Ferreiro Lapatza, e alm disso, est fundada em noes que se subsumem proposta nuclear elaborada pelo gigante Karl Larenz.

5. QUADRO GERAL DE PRINCPIOS Os princpios vistos acima, por seu carter geral, fundamental (da disciplina), devem informar a criao da norma processual tributria e vetorar a hermenutica e aplicao da norma positivada que venha a ser invocada onde houver processo tributrio. So cnones fundamentais deduzidos logicamente com a finalidade de, calados no princpio do Estado de Direito, conferir contextura s normas processuais, administrativas ou judiciais, que disciplinam a soluo das lides tributrias e que compem, freqentemente de modo catico, o Direito Processual Tributrio. Como a envolvente disciplinar do Direito Processual Tributrio muito ampla, especialmente por abarcar o Direito Administrativo, o Direito Processual Civil, o Direito Tributrio e, naturalmente, o Direito Constitucional, haveremos de estudar a disciplina sob uma pliade de primados que devem operar convergentemente. O quadro a seguir esquematiza uma parcela desses princpios que sero vistos em seus desdobramentos tericos e aplicativos, nos Captulos que se seguem.

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Direito Processual Tributrio Quadro Geral de Princpios Princpios Materiais da Justia Tributria Princpio da legalidade Princpio da generalidade Princpio da isonomia Princpio da capacidade contributiva Princpio da irretroatividade da lei tributria Princpio da anterioridade Princpios do Direito Processual Tributrio Princpio da diferenciao do processo tributrio Princpio da dualidade de cognio Princpio da harmonia processual Princpio da tutela jurisdicional efetiva Princpio da autotutela vinculada Princpio da justia tributria

Princpios Comuns ao Procedimento e ao Processo Administrativo Tributrio Princpio da legalidade objetiva Princpio da vinculao Princpio da verdade material Princpio da oficialidade Princpio do dever de colaborao Princpio do dever de investigao Princpios do Procedimento Administrativo Fiscal Princpio da inquisitoriedade Princpio da cientificao Princpio do formalismo moderado Princpio da fundamentao Princpio da acessibilidade Princpio da celeridade Princpio da gratuidade Princpios do Processo Administrativo Tributrio Princpio do devido processo legal Princpio do contraditrio Princpio da ampla defesa Princpio da ampla instruo probatria Princpio do duplo grau de cognio Princpio do julgador competente Princpio da ampla competncia decisria

Princpios Constitucionais do Processo Judicial Tributrio Princpio da isonomia Princpio do juiz e do promotor natural Princpio da inafastabilidade do controle jurisdicional Princpio do contraditrio Princpio da proibio da prova ilcita Princpio da publicidade dos atos processuais Princpio do duplo grau de jurisdio Princpio da motivao das decises judiciais

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Notas:1 O ponto de partida intelectual para os estudos relativos a obrigao tributria enquanto esquema lgicojurdico situa-se na elaborao e entrada em vigor, em 1919, da Ordenao Tributria Alem (Reichsabgabenordenung), texto considerado de alto grau de coeso sistemtica, clareza e preciso de conceitos. Delimitou o momento em que a relao tributria deixou de se apresentar como mera relao de submisso do cidado em face do Estado (relao de poder) para se afirmar como relao jurdica. Esse diploma legal desencadeou uma importante srie de estudos encetados com a finalidade de demonstrar os variveis esquemas intelectuais atinentes a relao jurdica tributria em face da necessidade de integrao entre seus momentos esttico e dinmico, j que, pela primeira vez, fincava-se tecnicamente dois distintos campos do fenmeno tributrio, quais sejam, o material e o formal. 2 Eminente professor da Universidade de Berna, Blumenstein demonstrou a evoluo dos regimes tributrios desde sua configurao como ato de poder puramente ftico (reintatslichen Gewaltverhltnis) at se constituir em autntica relao jurdica (Rechtvershltnis) qualificada pela reserva de lei e que cuida no apenas do estabelecimento do dever de pagar tributo como, tambm, do modo de apurao e cobrana: o indivduo deve o tributo porque est previsto na lei e o deve tal como nela est regulado. Identifica claramente o autor os momentos referentes ao Direito Tributrio material e formal e, inclusive, suas necessidades executivas e processuais judiciais, que passam a integrar os conceitos da disciplina. Desse modo, para Blumenstein, o Direito impositivo o conjunto de normas jurdicas que regulam os direitos e deveres que nascem da relao jurdica impositiva, assim como sua determinao, sua tutela jurdica e sua atuao. O Direito Tributrio (impositivo) material regula a existncia orgnica do tributo, ou seja, os direitos e deveres que emanam da relao jurdica impositiva, com relao a seus titulares, a seu objeto e a sua detalhada configurao. Cuidaria de uma relao de dvida impositiva (Steurschuldverhltnis) que compreenderia o seguinte: i) a relao jurdica entre os interessados (subjektives Moment des Steuerrechtsverhltnisses); ii) a modalidade e a quantia do objeto da prestao (Steuerrechtsverhltnisses); iii) todos os atos dos quais dependem a legalidade e integralidade da pretenso e sua execuo (konstitutives Moment des Steuerrechtsverhltnisses). O Direito Tributrio formal, conceitua Blumenstein, se ocupa do procedimento de atuao do imposto, ou seja, dos procedimentos necessrios para a determinao, a tutela jurdica e a arrecadao do imposto. Disciplinaria a chamada relao de liquidao (Veranlagungsverhltnis) e compreenderia: i) as normas necessrias ao procedimento administrativo para a determinao do tributo, isto , o direito de liquidao do tributo (Steuerveranlagungsrecht); ii) as normas de controle judicial em havendo litgio, que corresponderia ao Direito Tributrio Processual (Steuerprozesrecht); iii) o regime jurdico da execuo forada das pretenses estabelecidas (Steuerveranlagungsrecht). Cf. Ernest Blumenstein, Sistema di Diritto delle Imposte, Milano, Giuffr, 1954; Schweizeriches Steuerrecht, Tubingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1926, apud, Sainz de Bujanda, Sistema..., cit., p. 28. 3 O austraco Hans Naviasky, especialista em Direito Constitucional, procedeu a valiosa anlise da Abgabenordenung identificando no mbito do que denominou de relao jurdico-tributria obrigacional (steuerrechtliche Schuldverhltnis) a existncia de uma srie de prestaes de fazer, permitir ou deixar de fazer. O contedo da relao, ento, no se limita ao mbito da obrigao de pagar tributo, mas compe-se de uma srie de distintas obrigaes que gravitam em torno do ncleo obrigacional pecunirio, de modo a que esta obrigao de pagar no esgota por si mesmo a relao jurdica, existindo outra srie de relaes jurdicas que se estendem sobre ela, formando crculos concntricos cujos efeitos parciais possibilitam paulatinamente sua realizao (Konzentrische Rechtsbeziehungen). Estas prestaes que orbitam o ncleo pecunirio so, para o austraco, deveres financeiros (Finanzpflichten) ou deveres auxiliares (Hilfpflichten). Distingue, na esteira de Otto Mayer, entre os impostos diretos e indiretos: para os impostos diretos no basta a realizao do pressuposto de fato previsto na norma para que se d sua exigibilidade, dependente que do ato de liquidao a ser formalizado pela Administrao, enquanto que para os impostos indiretos no h a necessidade de liquidao uma vez que a obrigao de satisfazer a dvida decorre diretamente da lei. Dessa distino decorreriam trs graus de relaes jurdicas tributrias: i) obrigao tributria; ii) deveres auxiliares ao pagamento (impostos indiretos); iii) dever passivo de suportar a liquidao (impostos diretos). Cf. Hans Naviasky, Steuerrrechtliche Grundfragen, Mnchen, Dr. Franz A. Pfeiffer Verlag, 1926, vertida para o espanhol em 1982 por Ramallo Massanet. Cf. Ramalho Massanet, Cuestiones Fundamentales de Derecho Tributario, Madrid, Instituto de Estudios Fiscales, 1982, apud Sainz de Bujanda, Sistema..., cit., pp. 35 e 213. 4 O conceituado jurista alemo Albert Hensel ofereceu expressiva contribuio para a sistematizao do Direito Tributrio e mais especificamente para o Direito Tributrio formal (por ele denominado de Direito Tributrio Administrativo). Props o autor a seguinte estruturao para o sistema de Direito Tributrio: i) Direito Tri-

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butrio Constitucional, que compreende as questes relativas a competncia dos entes tributantes, as normas aptas para criar obrigaes e o modo de sua alterao por outras normas ou por acordos de vontade; ii) Teoria da Obrigao Tributria (Steuerschuldverhltnis) e do fato imponvel (Steuertatbestand), que cuidam das questes atinentes aos elementos da norma jurdica tributria apta para desencadear efeitos obrigacionais bem como os modos de nascimento, contedo e extino da obrigao tributria; iii) Direito Tributrio Formal (administrativo), compreensivo das questes concernentes ao modo de atuao do Estado para a consecuo de seus objetivos tributrios, sua estrutura jurdica idnea e sistemas preventivos para que a atividade administrativa se mantenha dentro dos limites legais, bem como o modo de ressarcimento diante da tributao ilcita; iv) Direito Tributrio Penal, que compreende as questes referentes ao direito penal material de carter fiscal e seu correspectivo procedimento (rectius: processo) de aplicao de penalidades. Em sua concepo, embora o Direito Tributrio formal guarde relao de subordinao teleolgica ao Direito Tributrio material, apresenta suas prprias caractersticas e se constitui no meio tcnico para a determinao do fato imponvel (die Aufstellung von Steuertatbestnden). Adverte Hensel que o Direito Administrativo deve estar ordenado de acordo com os princpios inerentes ao Estado de Direito o que implica a existncia disposio do contribuinte de um procedimento de remdios jurdicos como contrapeso unilateralidade da imposio. J indicando embrionariamente a idia de esttica e dinmica da tributao via na obrigao tributria stricto sensu um carter de transitoriedade, enquanto as obrigaes de carter administrativo promovem uma relao de carter duradouro entre Administrao tributria e contribuinte e encerram um sistema jurdico prprio (Albert Hensel, Diritto Tributario, traduo de Dino Jarach, Milo, Giuffr, 1956, pp. 71 e ss. e 161 e ss.). 5 Aquille Donato Giannini, Il Rapporto Giuridico dImposta, Milo, Giuffr, 1937, pp. 153 e ss. e 230 e ss. 6 A tese de G. A. Micheli inaugurou a perspectiva dinmica do conjunto de relaes que integram a relao jurdica tributria sob o aspecto da concatenao dos atos que integram essa relao em oposio, justamente, viso esttica que prevalecia nas construes anteriores, especialmente na chamada relao jurdica complexa. Seguiu-se a esse pensamento a noo de funo tributria ou tese funcional propagada por Perez de Ayala e adotada, com variaes, por diversos estudiosos da Europa como Renato Alessi e Gaetano Stammati. tambm atribuda a Micheli a noo de potestatividade de imposio, que se refere a funo de aplicar as normas fiscais e sua diferena entre a potestatividade tributria (ou poder tributrio) que designaria a faculdade normativa dos entes tributantes (Cf. Gian Antonio Micheli, Corso di Diritto Tributario, 7 ed., Torino, Utet, 1984, pp. 35 e ss. e 105 e ss. Veja-se tambm a traduo brasileira de Marco Aurelio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr., So Paulo, RT, 1978, pp. 189 e ss. de se notar que a referida traduo, publicada em 1978 no contemplou o captulo VII denominado Il Contencioso Tributrio que j aparece na stima edio italiana publicada em 1984). 7 H interessante nota curricular sobre Gian Antonio Micheli. Durante mais de 25 anos (entre 1936 e 1962) foi professor de Direito Processual Civil na Itlia (inicialmente na Universidade de Urbino e posteriormente nas Universidades de Bari e Parma). Em 1963 foi chamado a ocupar a ctedra de Direito Tributrio, disciplina ento recm- criada na Universidade de Roma. Sob essa inspirao, Gian Antonio Micheli escreveu expressivo volume de artigos cientficos sobre processo tributrio publicados em revistas jurdicas entre 1942 e 1980 e que foram colecionados no volume I de seu livro chamado Opere Minori di Diritto Tributario. Entre estes textos destaca-se o trabalho publicado justamente no ano de sua morte: La Tutela Giuridizionale Diferenziata del Contribuente nel Processo, Riv. Dir. Fin. sc. Fin, 1980, I, p. 28. O mesmo trabalho foi publicado no Brasil no bojo de obra coletiva em homenagem a Ruy Barbosa Nogueira coordenada por Brando Machado, que fez a traduo (Direito Tributrio - Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. So Paulo, Saraiva, 1984, p. 401). 8 Sainz de Bujanda produziu, no bojo de seu Sistema, a anlise mais profunda do que denominou de trajetria intelectual do conceito e da estrutura do Direito Tributrio, em torno das diferentes teorizaes produzidas a partir da Reichsabgabenordenung de 1919. Sua viso crtica, invariavelmente atilada, mostra-se de inestimvel valor para compreenso do problema. 9 Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributrio, So Paulo, Saraiva, 1972. 10 Geraldo Ataliba, Hiptese de Incidncia Tributria, So Paulo, Malheiros, 1992. 11 Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributrio, 8 ed., So Paulo, Saraiva, 1995 e Direito Tributrio: Fundamentos Jurdicos da Incidncia, So Paulo, Saraiva, 1998. Paulo de Barros Carvalho tem se destacado internacionalmente por sua contribuio para o Direito Tributrio e tambm para a teoria geral do Direito. Em seus estudos voltados para o exame do fenmeno jurdico tributrio parte sempre da premissa segundo a qual o direito um sistema de linguagem. Enfatiza a necessidade de estudar a linguagem em que ele (direito) se

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apresenta, em seus trs planos fundamentais: o sinttico, o semntico e o pragmtico. Outro ponto basilar da contribuio de Paulo de Barros Carvalho perfeita compreenso do fenmeno jurdico tributrio, e ser complementar da premissa acima disposta, diz respeito a necessidade de compreendermos a distino existente entre os conceitos de fato e evento dentro da seara tributria. Os fatos, segundo o mentor, so enunciados lingsticos que relatam coisas e acontecimentos do mundo fenomnico. J os objetos efetivos da experincia so tudo aquilo acerca do que se faz afirmaes, aquilo sobre o que se emite enunciados. Dentro dessa proposta demonstra que existe uma linguagem denominada social, constituidora da realidade que nos cerca e sobre essa camada existe uma outra camada de linguagem: a linguagem do direito positivo, como discurso prescritivo de condutas. Esse discurso prescritivo de condutas vai suscitar aquele plano que tratamos como sendo a facticidade jurdica: fatos jurdicos no so simplesmente fatos do mundo social, antes disso, os fatos jurdicos so enunciados proferidos na linguagem competente do direito positivo, articulados em consonncia com a teoria das provas; existe, ento, uma grande diferena entre realidade social e realidade jurdica, enquanto a primeira se constitui em uma linguagem natural a segunda se verte em linguagem do direito, voltada a regular as condutas intersubjetivas nas modalidades (O, P, V), realizando assim o cdigo lcito/ilcito. Somente aps o evento estar individualizado atravs da expedio de norma individual e concreta e, conseqentemente, apresentar-se em linguagem competente (fato jurdico tributrio) que dever ser verificada a exata subsuno (co-incidncia) de todos os elementos perfeitamente descritos na norma individual e concreta aos critrios previamente descritos na norma geral e abstrata. Verificada a coincidncia dos elementos da norma individual e concreta aos critrios da norma geral e abstrata - o que somente poder ser feito atravs da comparao de ambas as linguagens - que nascer para o direito a relao jurdico tributria unindo o sujeito ativo ao sujeito passivo da obrigao. Para Paulo de Barros Carvalho, de acordo com tais afirmativas podemos notar que a incidncia no se d de maneira automtica e infalvel, de acordo com o fato tributrio. Com o simples acontecimento ftico, sem expresso lingstica, transformando-se em fato, no existe o fenmeno da incidncia jurdica. O fato de incidncia efetiva, direta, da norma supe descrio em linguagem prpria: a linguagem do direito formando a realidade jurdica. 12 Maral Justen Filho, Sujeio Passiva Tributria, Belm, Cejup, 1984. Vemos como extremamente expressivas as advertncias que formula o autor sobre as constantes tentativas de adoo de estruturas lgicas de direito positivo para tratar de assuntos de Direito Pblico: O transplante do conceito de obrigao, tal como acatado no direito privado, conduziria a que todas (ou quase todas) as relaes de direito pblico passassem a ser identificveis como obrigacionais. (...) Essa natureza funcional da posio do sujeito ativo peculiariza de modo muito original a figura do direito pblico, raramente sendo encontrvel no direito privado. E se trata de figura incompatvel com a noo de obrigao, no sentido de que o conceito de obrigao nem se preocupa nem apanha esse ngulo do fenmeno jurdico. (pp. 338 e 340) 13 Hector B. Villegas, Curso de Finanzas, Derecho Financiero y Tributario, 5 ed., Buenos Aires, Depalma, 1993; Arlos M. Giuliani Fonrouge e Susana Camila Navarrine, Procedimiento Tributario, 5 ed., Buenos Aires, Depalma, 1992; Dino Jarach, Curso de Derecho Tributario, 3 ed., Liceo Profesional Cima, 1980; Rodolfo Spisso, Tutela Judicial Efectiva en Materia Tributaria, Buenos Aires, Depalma, 1996; Jos Osvaldo Cass, Presin Fiscal e Inconstitucionalidad, Buenos Aires, Depalma, 1992. 14 Contemporaneamente, Hctor Villegas conceitua o direito tributrio formal como o complemento indispensvel do direito tributrio material porquanto contm as normas que a administrao fiscal utiliza para comprovar se compete a certa pessoa o pagamento de determinado tributo e a quanto corresponder esta obrigao. Complementa o eminente tributarista argentino ressaltando que: Esta inseparabilidad es la misma de todo derecho substantivo que no puede ser aplicado a los casos concretos sin la existencia de un derecho adjetivo que proporcione las reglas de aplicacin. Segundo esta formulao doutrinria no basta a criao de normas de previses gerais abstratas, pois que estas se afiguram apenas como normas atuveis, necessitando de normas atuantes, apresentando-se o direito tributrio formal como o conjunto de regras de acordo com as quais deve a Administrao se conduzir para que o tributo legislativamente criado venha a se transformar em tributo fiscalmente recolhido. Residem ainda dentro do direito tributrio formal todas as normas que regulam deveres formais ou instrumentais, dirigidas tanto ao prprio Fisco como ao contribuinte. Embora lhe assista integral razo, no logra mencionar que outra modalidade de direito substantivo de natureza no punitiva, semelhana do tributrio, depende, para sua operatividade, de um correspondente direito adjetivo, dirigido para a funo fiscal formalizadora de certo rgo administrativo. Queremos crer que esta uma particular qualidade do Direito Tributrio, cujas normas de direito material no encontram operatividade sem a concorrncia das denominadas normas de direito tributrio formal, disso se extraindo uma srie de importantes conseqncias. Logo, conquanto seja certo que as normas que regulam a obrigao tributria permaneam inertes, imveis, enquanto no concorrerem as regras mobilizantes que so objeto do direito tributrio formal, e que, por isso conferem a necessria dinmica vida do tributo, no se pode olvidar

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que, segundo a figura engendrada pelo autor, esta dinmica pressupe um momento esttico, assim como para que o automvel ganhe movimento necessita estar previamente parado. Arrimado nesta linha de raciocnio, reconhecida a virtual inrcia da obrigao tributria materialmente considerada e evidenciada a impossibilidade de substituir a relao substancial tributria material por uma concepo meramente processual, prope a adoo dos seguintes conceitos complementares: o de normatividade dinamizvel que composta pela relao jurdica tributria substancial estudada pelo direito tributrio material; e de normatividade dinamizante integrada pelo complexo de conexas e variadas atividades que colimam lograr a arrecadao desejada e cujo estudo congloba o direito tributrio formal (Hctor B. Villegas, Curso..., cit., pp. 325 e 326). 15 Alguns estudiosos, explica Villegas, compreenderiam a relao tributria substancial sob um perfil limitado, deformante e esttico perfilhando a idia de que a vida real do tributo necessita estar refletida em sua dinmica o que s se alcana por meio de uma concepo processual do fenmeno tributrio e com a substituio da relao jurdica tributria substancial pelo procedimento em virtude do qual se realiza o poder tributrio. Para Villegas ainda que o conceito de relao jurdica tributria substancial possa sofrer to deprimentes defeitos (ser simplista, limitada ou deformante) continua sendo insubstituvel, at porque, segundo pensa, no se pode conceber a existncia de normatividade atuante sem que logicamente a preceda a normatividade atuvel (Villegas, Curso..., p. 328). 16 Diz Soares Martnez, eminente Professor da Faculdade de Direito de Lisboa e da Universidade Catlica, que perfeitamente possvel que uma relao tributria material irrompa e se extinga, ao menos por prescrio, sem que tenha havido a relao tributria formal, ressalvando, contudo, que o desenvolvimento da relao formal afigura-se indispensvel para que a Administrao tenha cincia da existncia da relao material e arrecade a respectiva prestao pecuniria (Soares Martnez, Direito Fiscal, 7 ed., Coimbra, Almedina, 1993, pp. 62 e 63). 17 Jorge R. Beltrn, El Principio Constitucional de Adecuada Tutela Jurisdiccional en Materia Tributaria, Estudios de Derecho Constitucional Tributario - en Homenaje al Prof. Dr. Juan Carlos Luqui (coordenao Horacio A. Garca Belsunce), Buenos Aires, Depalma, 1994, p. 343, esp. p. 377. 18 Beltrn, El Principio..., cit., p. 343. 19 Jos Juan Ferreiro Lapatza, Poder Tributario y Tutela Judicial Efectiva, Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba 1 - Direito Tributrio (coordenao Celso Antnio Bandeira de Mello), So Paulo, Malheiros, 1997, p. 89. 20 Para Lapatza a aceitao mesma das expresses poder tributrio ou poder financeiro espelha velada submisso a idias formuladas a partir de fins do sculo XIX e incio deste sculo, quando buscava-se justificar a preponderncia do Poder Estatal sobre o do particular impedindo que se desenvolvessem em patamar de igualdade as relaes com seus sditos, especialmente no quadrante fiscal, tradio esta j h muito superada pela necessidade de elaborao de um Direito Administrativo e posteriormente de um Direito Financeiro e Tributrio harmonizvel com as matizes elementares do Estado de Direito, colimando com isso fixar a idia nuclear de suas consideraes asseverando ser da mxima importncia insistir em que a Cincia do Direito, os juristas, havero de analisar e estudar o poder em geral e o poder tributrio em particular como o que juridicamente : uma tcnica de organizao social desprovida de qualquer conotao sobrenatural ou metajurdica. Formula, destarte, a percuciente advertncia: Pois so estas conotaes as que, conscientemente ou inconscientemente, justificam e impelem ao legislador, inspirado muitas vezes por elas, a conceder a Administrao reas de poder imunes s exigncias dos princpios fundamentais da ordem democrtica, concedendo-lhe uma proteo, uma liberdade de ao e poderes muitas vezes injustificados e incompatveis com esta ordem e para cuja utilizao, com demasiada freqncia arbitrria, para a burocracia a invocao no de concretas normas jurdicas, seno de um difuso interesse geral ou coletivo que nem sequer se pode conceituar como um conceito jurdico indeterminado, seno que, transcendendo aos prprios cidados se coloca tambm, como o poder que se exercita, em um plano ajurdico, metajurdico o se se prefere, tambm, sobrenatural. (Ibidem, pp. 92 e 93, traduo livre, grifos nossos) 21 Expresso cunhada habilmente por Lapatza que relata haver na Espanha especial perseverana do poder poltico em resistir tutela judicial efetiva em matria tributria, em absoluto desprezo aos direitos constitucionalmente assegurados aos contribuintes em verem-se protegidos atravs do Poder Judicirio a quem incumbe atuar como garantidor dos princpios constitucionais. Tal tendncia deve-se, segundo constata, em tradicin fortalecida por la influencia en Espaa del Derecho Administrativo francs (pp. 93 e 94). 22 Arruda Alvim, Direito Processual Tributrio, Novo Processo Tributrio, So Paulo, Resenha Tributria, 1975; Mandado de Segurana e sua Aplicabilidade ao Direito Tributrio, Revista do Direito Pblico 5/40;

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Processo Tributrio, Revista do Direito Pblico 16/39. 23 Geraldo Ataliba, Concesso de Liminar - Depsito (Conferncia), Revista de Direito Tributrio 58/118; Decadncia e Mandado de Segurana (Inconstitucionalidade do Preceito do art. 18 da Lei 1.533/51), Revista Trimestral de Direito Pblico 1/1993:147; Princpios Constitucionais do Processo e Procedimento em Matria Tributria (Aula), Revista de Direito Tributrio 46/118; Princpios de Procedimento Tributrio, Novo Processo Tributrio (coordenao Pricles Luiz Medeiros Prade e Clio Benevides de Carvalho), So Paulo, Resenha Tributria, 1975, p. 17; Princpios Informativos do Contencioso Administrativo Tributrio Federal, Revista Forense 271/1; Recurso em Matria Tributria, Revista de Informao Legislativa (Senado Federal) 25/111. 24 Gilberto de Ulha Canto, Processo Tributrio (Anteprojeto de Lei Orgnica), Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas/Comisso de Reforma do Ministrio da Fazenda, 1964; Rubens Gomes de Sousa, Reflexes sobre a reforma da Justia Fiscal, Estudos de Direito Tributrio, So Paulo, Saraiva, 1950, p. 189. 25 Cleide Previtalli Cais, O Processo Tributrio, So Paulo, RT, 1993; 26 Hugo de Brito Machado, Mandado de Segurana em Matria Tributria, So Paulo, RT, 1994. Alm desta obra monogrfica o autor tem se dedicado, muito expressivamente, ao exame isolado de diversos aspectos do processo tributrio, podendo ser destacados os seguintes trabalhos: Ao Anulatria de Lanamento Fiscal sem Depsito Prvio, Revista de Direito Tributrio 35/198; Ao Cautelar e Suspenso da Exigibilidade do Crdito Tributrio, Repertrio IOB de Jurisprudncia 1/9.470; As Liminares e o Direito de lanar Tributo, Revista de Direito Tributrio 68/46; Coisa Julgada em Matria Tributria, Revista de Direito Tributrio 53/99. Efeitos da Declarao de Inconstitucionalidade, Revista Trimestral de Direito Pblico 6/1994:221; Impetrao Preventiva em Matria Tributria, Cadernos de Direito Tributrio e Finanas Pblicas 8/18; Mandado de Segurana e Consulta Fiscal, Revista de Direito Tributrio 61/109; Tutela Jurisdicional Antecipada na Repetio do Indbito Tributrio, Repertrio IOB de Jurisprudncia 1/9.370. 27 Eduardo Arruda Alvim, Mandado de Segurana no Direito Tributrio, So Paulo, RT, 1998. 28 Alberto Xavier, Do Lanamento..., So Paulo, Forense, 1998. 29 Ao tratar, com inexcedvel proficincia, o tema relativo aos princpios fundamentais do processo judicial tributrio, Arruda Alvim desde logo identifica em favor do contribuinte, hodiernamente, duas grandes ordens de garantias oponveis ao poder tributante: materiais e formais. Assentando-se o primeiro grupo - garantias de ordem material - no fato de que os contribuintes somente podem ser submetidos a tributos adequadamente votados em um Parlamento livre (princpio da legalidade lato sensu) e arrimado o segundo grupo - garantias de ordem formal - na iterativa fiscalizao do Poder Judicirio, provocvel pelo contribuinte, da conformidade da atuao da Administrao Pblica, em seus misteres tributrios, em face da lei (Jos Manoel Arruda Alvim Netto, Processo Judicial Tributrio, Novo Processo Tributrio [coordenao Pricles Luiz Medeiros Prade e Clio Benevides de Carvalho], So Paulo, Resenha Tributria, 1975, p. 141, esp. p. 142). 30 Se abstrairmos do presente, e voltarmos nossos olhos para a Histria, veremos que a tributao foi um dos mais duros instrumentos de que se serviram os monarcas e reis, no exerccio ilimitado da soberania, sobre os sditos. As grandes lutas do passado, paulatinamente, foram limitando o poder real, at aboli-lo, chegando-se Repblica e logrando-se viver num Estado de Direito, onde prevalece tambm sobre os governantes o imprio da lei, inclusive no direito tributrio, o que especificamente previsto na Lei Magna (Constituio Federal [de 1969], art. 153, 29). (...) De forma que para que possamos perceber o papel do chamado Processo Judicial Tributrio, teremos que retroagir no tempo e fazermos necessariamente uma comparao contrastante entre aquilo que hoje se apresenta como bvio, quotidiano e quase que prosaico, e situao existente no passado. Se estudarmos a realidade poltica europia, constataremos que o chamado poder tributrio era talvez a mais agressiva expresso da soberania, no plano interno. A tributao foi realmente um grande, seno o mais poderoso instrumento de dominao poltica que existiu na Europa. E ns mesmos no Brasil tivemos exemplo disso, exemplo que, alis, motivou a Inconfidncia Mineira, que foi a Derrama, ocorrida em Minas Gerais. De maneira que a grande realidade histrica que se coloca, digamos no mosaico de agresses e injustias que motivaram os movimentos liberais e a prpria instaurao do Liberalismo com o Estado de Direito, encontra nesta problemtica tributria um de seus aspectos mais importantes, seno talvez o mais importante. (Jos Manoel Arruda Alvim Netto, Processo Judicial Tributrio, cit.) 31 Geraldo Ataliba, Recurso em Matria Tributria, Revista de Informao Legislativa (Senado Federal) 25/111, esp. p. 122. Cf. tambm, do mesmo autor: Princpios de Procedimento Tributrio (Aula), Novo Processo Tributrio (coordenao Pricles Luiz Medeiros Prade e Clio Benevides de Carvalho), So Paulo, Resenha Tributria, 1975, pp. 17 e ss.32 Paulo de Barros Carvalho, Processo Administrativo Tributrio (Trabalho Apresentado ao I Congresso Internacional de Estudos Tributrios), Revista de Direito Tributrio 9-10/276, esp. p. 280.

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II. TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA EM MATRIA TRIBUTRIA 1. NOES INTRODUTRIAS Nosso sistema processual no contempla regime jurdico prprio para a disciplina judicial das lides tributrias, apresentando-se carente de sistematizao legal e doutrinria.1 Serve-se analogicamente, o processo judicial tributrio, do processo civil cuja seculare priorit storica2 a disciplina da lide civil (aqui entendida como o conflito de interesses entre particulares) e cujas estruturas fundamentais nem sempre se mostram apropriadas para responder s demandas das relaes conflituosas entre Poder Pblico (Fazenda Pblica) e cidado-contribuinte, providncia indispensvel para o efetivo cumprimento dos desgnios constitucionaisadministrativos, constitucionais-processuais e constitucionais-tributrios.3 As aes tributrias, isto , as aes com referibilidade ao direito processual tributrio4 sob o ponto de vista do direito de ao expressam o ponto de passagem entre a lide tributria e o processo5 e devem ser o objeto de estudo do processo judicial tributrio cujo esforo deve consistir prioritariamente na sistematizao das questes processuais nascidas de discusses judiciais que versem obrigao tributria, ou melhor, o processo judicial tributrio realiza a anlise tcnica dos problemas de direito processual em face do fenmeno da diferenciao da lide tributria (princpio da diferenciao da lide tributria), luz dos princpios fundamentais do Direito Processual Tributrio.6 O processo judicial tributrio integra, ao lado do processo administrativo tributrio, os dois campos de profundo enraizamento constitucional e de abrangncia disciplinar do Direito Processual Tributrio, mas que no se confundem com o procedimento administrativo tributrio (procedimento de lanamento).7-8-9

2. TRIBUTAO E TUTELA JURISDICIONAL A tributao, como principal fonte de recursos do Estado na realizao de seus fins, denominada de receita derivada e caracterizada - na lio de Aliomar Baleeiro pelo constrangimento legal para sua arrecadao,10-11 se constitui em um dos

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problemas capitais das sociedades modernas, pois toda tributao constitui uma interveno econmica no patrimnio dos cidados, provocando normalmente na economia pblica e na economia privada conseqncias sociais, familiares, culturais e outras e exerce influncia sobre elas.12 Atinge de forma coativa grande parte dos cidados, interferindo concretamente em sua esfera patrimonial. , de fato, uma das atividades mais importantes e delicadas da Administrao e, por este motivo, circundada de inmeros pressupostos que lhe vinculam a atuao. O estudo do Direito Tributrio positivo13 brasileiro tem como principal balisa os princpios insculpidos na Constituio, uma vez que o sistema tributrio brasileiro tem como caracterstica o fato de estar meticulosamente desenhado na Constituio Federal de 1988, a ponto de ser concebido como autntico sistema constitucional tributrio. Assim, qualquer exame normativo tem necessariamente como nascedouro a prpria Carta Magna. Nesse particular h que se estar atento aos princpios mximos que nela encontramos. Esta caracterstica faz com que os rgos legislativos (sejam federal, estaduais ou municipais) estejam milimetricamente atados s regras constitucionais (quer aos princpios implcitos ou explcitos como s normas especficas destinadas tributao), ensejando o freqente contraste entre normas tributrias infraconstitucionais (principalmente leis complementares, leis ordinrias e medidas provisrias) com as regras constitucionais,14 contraste que se traduz em conflito de interesses de natureza tributria (em que se suscitam as condies de validade constitucional da imposio fiscal)15 e que pode ser submetido apreciao do Poder Judicirio atravs das aes, prprias ou imprprias, previstas no ordenamento processual. H dois aspectos distintos da relao tributria em sua correspondncia com o Poder Judicirio: 1) por um lado, a Fazenda Pblica necessita do Poder Judicirio na cobrana coativa das dvidas fiscais; 2) por outro, o contribuinte serve-se do Poder Judicirio para assegurar a tutela de seus direitos em relao ao Fisco. Estas duas posies tornam muito acentuada a necessidade de um eficiente aparato processual, seja para os fins arrecadadores colimados pelo Fisco, seja para a proteo aos direitos do cidado-contribuinte. Nos dizeres de Gerd W. Rothmann: A tutela jurisdicional em matria fiscal constitui, pois, em sucesso do regime do Estado de Direito (Rechtstaat) e uma30

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necessidade sociolgica. Quanto maiores as pretenses do Estado, tanto maior a necessidade do contribuinte gozar da tutela jurdica. Hoje tem vencido a idia de que o perfeito Estado de Direito exige no somente a sujeio da Administrao Lei, mas tambm a possibilidade de controle dos atos administrativos por tribunais autnomos.16 Giuliani Fonrouge, descreveu magistralmente este fenmeno da seguinte forma: El impuesto implica el cerceniamento de la libertad de disponer de la propiedad, hecho tolerado por sus beneficiosos efectos sociales, pero quando tal exigncia se torna injusta es congruente la rebelin para su pago. Tal rebelin en el Estado de derecho se ejerce a travs del proceso, que es el arma principal para la solucin prctica de los problemas jurdicos, que involucra toda exaccin injusta.17

3. PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO JUDICIAL No Brasil, se por um lado, como visto, o sistema de Direito Tributrio se encontra em sede predominantemente constitucional, autorizando que se aluda corretamente existncia de um Sistema Constitucional Tributrio,18 por outro lado tambm o Direito Processual Civil, encontra significativo prestgio na Constituio Federal de 1988, que consagrou em seu texto diversos princpios de natureza processual civil, so os denominados princpios do processo civil na constituio a maioria dos quais, inclusive, plasmados entre os direitos e garantias individuais, e tornados clusulas ptreas por fora do 4 do art. 60 da Constituio. A Constituio Federal, neste aspecto, contm regras de rara felicidade. Atribui direitos aos cidados, com especial referncia sua proteo contra a voracidade fiscal do Estado, e protege-os com as correspondentes garantias. So as denominadas aes constitucionais, ou justia constitucional, configurada como forma e instrumentos de garantia para a atuao da Constituio.19-20 Obviamente, para a proteo constitucional do contribuinte contra eventuais excessos do Fisco, o instrumento mais difundido o mandado de segurana individual, que se tem mostrado instrumento plenamente apto para assegurar ao contribuinte que o Poder Pblico no desborde dos limites constitucionais e legais quando da instituio, fiscalizao e cobrana de tributos, mas diversos princpios

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constitucionais de processo civil aplicam-se largamente nas discusses tributrias, especialmente aquele consagrado no art. 5 que assegura que ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Todo processo judicial, inclusive o tributrio, deve obedecer os princpios do processo civil plasmados na Constituio e que se afiguram como desdobramentos do due process21: Estes princpios so os seguintes, de acordo com a classificao de Nelson Nery Junior: i) Princpio da isonomia; ii) Princpio do juiz e do promotor natural; iii) Princpio da inafastabilidade do controle jurisdicional (princpio do direito de ao); iv) Princpio do contraditrio; v) Princpio da proibio da prova ilcita; vi) Princpio da publicidade dos atos processuais; vii) Princpio do duplo grau de jurisdio; viii) Princpio da motivao das decises judiciais.

4. TUTELA JUDICIAL EFETIVA EM MATRIA TRIBUTRIA

Mesmo do ponto de vista estritamente jurisdicional, entretanto, as circunstncias prprias ao fenmeno tributrio levam a que se possa vislumbrar diferenciadamente o Direito Processual Tributrio. O eminente Professor da Universidade de Roma, Gian Antonio Micheli (principal cultor da tese dinmica ou funcional da relao tributria), externou com muita propriedade suas preocupaes com o fenmeno jurdico que denominou, com vistas em estudo de Proto Pisani e Montesano, de tutela jurisdicional diferenada em matria tributria: De fato, em nossa histria recente a tutela do contribuinte em face do exerccio do poder e imposio, por parte do Estado e dos seus entes menores, constitui, a meu ver, um exemplo de tutela diferenada, quando comparada com a que se alcana atravs do processo civil normal. Diferentemente do que sucede nas controvrsias civis, no busca o contribuinte a afirmao de um direito subjetivo a certa prestao ou certo

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comportamento, mas um direito subjetivo a um dado comportamento jure da administrao financeira central ou de outra entidade tributante,22 o que quer significar que diante da absoluta vinculao lei que peculiariza a atividade exacional as lides tributrias freqentemente se resumem na suscitao de ilegalidades na atuao estatal, o que atribui contornos especiais ao pedido formulado em juzo. semelhana do raciocnio desenvolvido por Arruda Alvim, o eminente estudioso romano pugna pela necessidade de que a tutela dos contribuintes seja assegurada por adequado aparato jurisdicional, voltado para a garantia do direito subjetivo e no j ao reflexo dele atravs da tutela do interesse legtimo, protegido nos limites da tutela do bem coletivo23 demonstrando assim no ser lcito ao Estado pretender impingir derrotas ao direito subjetivo individual do cidadocontribuinte sob o plio da defesa do interesse pblico ou do bem comum. Concretamente podemos afirmar que certas garantias que assistem ao contribuinte alcanam relevo tal que no podem ser sobrepujadas pelo sofisma consistente em afirmar-se o carter de interesse pblico da arrecadao tributria.24 Suscita-se tambm, em linha semelhante, com calo em premissas de ordem processual e nos postulados de ordem constitucional, a abordagem do processo tributrio a partir de trs ordens principiolgicas que no podem deixar de ser respeitadas pela administrao tributria: direito ao processo; direito igualdade das partes no processo e direito de no declarar contra si mesmo. Direito ao processo implicaria, ento, no apenas o direito de opor-se a atos de gesto administrativa, mas de que no seja o contribuinte submetido a indevidas dilaes, tanto na esfera administrativa como judicial, nem seja compelido a prestar garantias impraticveis, para que possa obter a suspenso do ato impugnado.25 Do mesmo modo, no se mostra possvel falar-se em igualdade das partes em um processo em que o juiz v-se constantemente obrigado a aplicar fices legais e presunes iure et de iure que invertem as regras ordinrias quanto ao nus da prova.26 Acrescentam-se ainda as notrias dificuldades produzidas pela

indeterminao dos conceitos e pela margem de discricionariedade emergente dos textos de legislao tributria - cunhados luz de tcnicas estranhas ao Direito27 - a

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fortalecer a posio da administrao e dificultar a apreciao das questes fiscais que se apresentam aos juzes,28 tudo atuando de tal modo que impea a realizao do postulado da igualdade em um processo em que las cartas (...) han sido marcadas ya por el legislador, siempre a favor de la Administracin... produzindo-se dessa forma um indesejado descompasso entre a realidade dos fatos e a realidade legal.29

a. Percurso evolutivo dos instrumentos judiciais tributrios. inegvel a necessidade de aperfeioamento das instituies e dos institutos destinados ao trato de questes tributrias. Tem havido, em muitos pases, esforo legislativo, doutrinrio e jurisprudencial (no necessariamente nesta ordem). H sensveis aperfeioamentos em alguns regimes europeus, especialmente naqueles que passaram por recentes reformas processuais tributrias, como Portugal e Itlia. Tambm na doutrina e no Direito latino-americanos destas ltimas dcadas se tem registrado um notvel aperfeioamento do contencioso tributrio que, apesar das inevitveis notas diferenciadoras, apresenta caractersticas comuns em vrios pases.30 Este percurso evolutivo, pensamos ns, vem ao encontro daquilo que estamos a sustentar, merecendo destaque os seguintes aspectos revelados pela doutrina31: a) a facilitao do acesso jurisdio, atravs da supresso de barreiras inaceitveis, com a eliminao da regra do solve et repete em suas variadas modalidades; b) a suspenso dos atos executrios enquanto tramita a discusso da procedncia do dbito, sem prejuzo da adoo de medidas acautelatrias de proteo ao crdito fiscal; c) a concesso ao juiz de amplas faculdades averiguatrias dentro de procedimento simples e clere. Estas caractersticas das legislaes latino-americanas apontam para o fortalecimento dos poderes judiciais em sua funo de controle dos atos administrativos em matria tributria. Nesse aspecto situa-se a superao de boa parte dos problemas decorrentes da atuao tributria do Estado, na exata medida em que atravs de procedimentos cleres (remdios constitucionais, como o34

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mandado de segurana ou, ainda, medidas cautelares ou mesmo antecipatrias previstas no ordenamento processual) logra-se obter a proteo aos eventuais desvios na atividade administrativa, seja de fiscalizao, lanamento ou mesmo de soluo de conflitos tributrios deduzidos administrativamente. Esta, quer nos parecer, - ao lado do aperfeioamento dos tribunais administrativos - a tnica evolutiva que marca as legislaes ocidentais, pois a supresso dos aparatos administrativos de aplicao da lei tributria e soluo de eventuais lides assume contornos irrealizveis.

b. Princpio da garantia jurisdicional. Vige no Brasil o princpio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, decorrente da dico constitucional segundo a qual a lei no excluir do Poder Judicirio a apreciao de leso ou ameaa a direito (CF/88, art. 5, XXXV). Este postulado concretiza-se no campo do Direito Processual Tributrio no princpio garantia jurisdicional. No campo fiscal a insatisfao com o sistema de soluo de lides marca presente nas ltimas dcadas. A proteo ao cidado contribuinte - outrora matria desprestigiada por legisladores e aplicadores - passa a figurar entre as mais recentes conquistas da cidadania, implicando o necessrio aprimoramento do sistema de soluo dos conflitos fiscais. A proliferao de conflitos em matria tributria assume ritmo dramtico em face principalmente da contraditoriedade e ininteligibilidade do sistema tributrio,32 assoberbando os rgos administrativos e, sobretudo, judicirios. Este quadro, sucesso do Estado Constitucional e Democrtico de Direito, refora a necessidade de que se deduza a plena efetividade da tutela judicial em matria tributria, como imperativo jurdico insuscetvel de ver-se angustiado por conformismos ou resignaes. Como adverte Magin Pont Mestres33: Este estrao fenmeno que tradicionalmente se ha vivenciado con cierto conformismo, consecuencia de la deformacin generada por la impuesta y resigna-da aceptacin de la superioridad y dominio de la Administracin tributaria frente al contribuyente, se halla en trance de creciente contestacin basada en la proclamacin constitucional de los derechos fundamentales de las personas, entre los que adquiere relevancia muy especial el

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derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legtimos - art. 24.1 de la Constitucin - y el derecho a la presuncin de inocencia - art. 24.2.

c. Efetividade do processo e a batalha pelas medidas cautelares. Outra tendncia, a batalha pelas medidas cautelares (rectius, medidas urgentes), extremamente atual e de alcance mundial, atinge direta e especialmente o Processo Judicial Tributrio em seus novos regimes, principalmente na Europa, e tambm em face das dificuldades causadas na aplicao do Direito Comunitrio (tambm fenmeno absorvido mundialmente), como se v de emblemtica obra de Eduardo Garca de Enterra.34 Semelhantes aspiraes tm ensejado, a exemplo do Brasil, necessrias e expressivas modificaes legislativas, como registra Trovato35 ao comentar o novo Processo Tributrio italiano: Una novit di rilievo introdota nel nuovo processo tributario la previsione contenuta nellart. 47 e cio la possibilit di tutela cautelare data al contribuente avverso gli atti dellAmministrazione finanziaria. (...) Il legislatore delegato ha eliminato lanomalia precitata36 nellambito del nuovo processo tributario provvedendo a disciplinare il procedimento di sospensione cautelare dellatto impugnato davanti al proprio giudice naturale e cio al giudice tributario competente. (...) Per concludere, pu ben dirsi che il procedimento cautelare non altro che un giudizio autonomo finalizzato ad una pronuncia con effetti limitati che intende tutelare, con un provvedimento anticipatorio, le posizioni giuridiche soggetive del contribuente in attesa della sentena de primo grado. No Direito argentino igualmente crescente a evoluo doutrinria e legal seguida timidamente pela jurisprudncia do Tribunal Fiscal de la Nacin - no tema da suspenso judicial da executoriedade do ato administrativo. Rodolfo Spisso, em expressiva obra monogrfica denominada Tutela Judicial Efectiva en Materia Tributria, reala a realidade argentina, sob o prisma da proteo dos direitos individuais em face dos poderes tributrios, enfatizando que Finalmente, la sancin de la ley 19.549 incorpor el instituto de la suspensin del acto administrativo (art. 12), que signific un trascendente avance en la materia, que an no ha tenido en la jurisprudencia la acogida y el desarrollo que hubiera sido de36

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desear en orden a lograr una efectiva tutela de los derechos de los administrados. (...) Tanto la Administracin como el juez deben suspender la ejecutoriedad del acto administrativo si aprecian que se dan cualquiera de las causales enunciadas en el art. 12 de la ley 19.549, que tienden a asegurar el derecho a la tutela judicial efectiva.37 Em nosso pas - que talvez tenha sofrido em menor medida os nefastos influxos de regimes autoritrios como ocorreu na Alemanha de Hitler ou na Itlia de Mussolini - a efetividade do processo j h muito tem recebido da doutrina e da jurisprudncia a elevada ateno que deve ser dispensada ao tema. Esta batalha pela efetividade processual toma ascendente valor nos assuntos judiciais tributrios, territrio onde tem se robustecido a conscincia jurdica dos aplicadores do Direito, nos Tribunais de todo o Pas, a afastar a aplicao de normas restritivas da plena autonomia do Poder Judicirio em proferir decises nas lides que lhes so submetidas; normas ou interpretaes restritivas que no traduzem seno contradies ao interesse comum (Lapatza) refletido na Constituio, na medida em que buscam impedir que possa o juiz acudir com a necessria rapidez aos pleitos de seus jurisdicionados.38 Esta necessria evoluo no campo do Direito Processual Tributrio no encontrar campo frtil enquanto no forem compreendidas as peculiares condies em que se d a soluo das lides tributrias, que irrompe do embate entre as necessidades do errio e a afirmao das garantias do cidado-contribuinte cunhadas no bojo do Estado de Direito. No haver evoluo enquanto a doutrina insistir em concepes generalizantes, incompatveis com a grandeza e as particularidades do fenmeno processual tributrio.

5. CLASSIFICAO DAS AES TRIBUTRIAS Genericamente, como visto, podemos afirmar que o processo tributrio trata das aes com referibilidade ao Direito Tributrio, que podem ser denominadas de aes tributrias. As aes tributrias supem em regra uma estrutura peculiar, especial, em maior ou menor medida, que consiste no processo tributrio, que tem como objetivo

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a produo de uma norma individual que estabelea no caso concreto o exato alcance das obrigaes determinadas pelas normas gerais de direito tributrio substantivo.39 Nestas aes, teremos compondo a relao jurdica processual, como partes, de um lado a Fazenda Pblica e de outro o cidado-contribuinte, podendo figurar, qualquer deles, no plo ativo ou passivo.40 Algumas aes especiais, que tambm possam conter referibilidade ao direito tributrio, como a ao direta de inconstitucionalidade, a ao declaratria de constitucionalidade ou at mesmo a ao popular, no tero esta estrutura caracterstica, mas nem por isso, contudo, deixam de integrar o conjunto de aes que compem o processo tributrio, como veremos abaixo.41

a. Aes exacionais e aes antiexacionais. Sob este enfoque, a primeira diviso de escopo classificatrio a que nos dado referir, na seara do processo tributrio, leva em considerao a posio das partes na relao jurdica processual, ou seja, a posio ativa ou passiva dos sujeitos, Fisco ou contribuinte, nas aes tributrias. A partir de tal critrio, presente a Fazenda Pblica (Federal, Estadual, Municipal ou Distrital) como sujeito ativo da relao processual cujo mrito tenha referibilidade com obrigao tributria, temos, como primeira espcie de ao tributria, as aes exacionais destinadas a: i) Obter judicial e coativamente do contribuinte o cumprimento de determinada obrigao tributria, como no caso da: a) execuo fiscal; ii) Assegurar cautelarmente ao Fisco a reserva de bens do contribuinte descumpridor de suas obrigaes tributrias, como no caso da: a) ao cautelar fiscal. iii) Dirimir definitiva e coletivamente, buscando pronunciamento judicial com eficcia erga omnes, as controvrsias sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada norma tributria, com a finalidade de garantir a arrecadao de tributos, nas hipteses de: a) ao direta de inconstitucionalidade;42

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b) ao declaratria de constitucionalidade; c) ao popular.43

Doutra parte, estando no a Fazenda Pblica, mas o contribuinte no plo ativo da relao jurdica processual com referibilidade ao direito tributrio, encontramos, como segunda espcie de ao tributria, as aes antiexacionais, que colimam:

i) Proteger o contribuinte da possibilidade de dano iminente decorrente da atividade tributria do Fisco, como nas hipteses de: a) mandado de segurana e b) ao cautelar. ii) Obstar a execuo forada dos bens do contribuinte, desconstituir ou impedir a formalizao de relao jurdico-tributria, como: a) embargos execuo fiscal; b) ao anulatria de dbito fiscal e c) ao declaratria de inexistncia de relao jurdico-tributria. iii) Obter do Fisco a devoluo de tributo indevidamente recolhido aos cofres pblicos, como no caso da ao de repetio de indbito. iv) Dirimir definitiva e coletivamente, buscando pronunciamento judicial com eficcia erga omnes, as controvrsias sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada norma tributria, com a finalidade de retirar a eficcia de norma que veicule exao inconstitucional ou garantir a eficcia de norma veiculadora de benefcio fiscal, nas hipteses de: a) ao direta de inconstitucionalidade; b) ao declaratria de constitu-

cionalidade.44 v) Solicitar ao Poder Judicirio a emisso de norma individual45 que, suprindo omisso legislativa, possibilite ao cidado46 o exerccio de direitos, liberdades ou prerrogativas constitucionais de ordem tributria, atravs do: a) mandado de injuno.

b. Aes tributrias prprias e imprprias. Dada a classificao das aes tributrias, como incio de sistematizao do processo tributrio, primeiramente com base no critrio do sujeito ativo da relao jurdica processual, podemos, em um segundo momento da construo classificatria do processo tributrio, com base em outro critrio, subdividir as aes tributrias em prprias ou imprprias, tendo em39

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vista, respectivamente, a existncia ou no de regramento autnomo para determinada espcie de ao. Assim, v.g., a medida cautelar fiscal seria considerada uma ao tributria prpria, pois possui finalidade tributria especfica, com normatizao prpria, enquanto, doutro lado, a ao cautelar que pretenda o depsito de valor que deveria ter sido recolhido aos cofres pblicos, por no possuir conjunto de regras processuais especficas, estaria entre o que se denominaria ao tributria imprpria. Sob o prisma da existncia ou no de conjunto normativo processual especfico, teramos, ento, a seguinte ordem classificatria: i) aes tributrias prprias: a) execuo fiscal; b) medida cautelar fiscal; c) embargos execuo fiscal. ii) aes tributrias imprprias: a) mandado de segurana; b) ao cautelar; c) ao anulatria de dbito fiscal; d) ao declaratria de inexistncia de relao jurdico-tributria; e) ao de repetio de indbito; f) ao direta de inconstitucionalidade; g) ao declaratria de constitucionalidade; h) ao popular; i) mandado de injuno.

Do contedo do processo tributrio, no Brasil, resulta a peculiaridade de que quase todas as aes exacionais so prprias exceo, como visto, daquelas de eficcia erga omnes (a