Jan Hus as Cartas de Um Educador e Seu Legado Imortal

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0 THIAGO BORGES DE AGUIAR Jan Hus: As cartas de um educador e seu legado imortal FEUSP São Paulo 2010

Transcript of Jan Hus as Cartas de Um Educador e Seu Legado Imortal

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    THIAGO BORGES DE AGUIAR

    Jan Hus:

    As cartas de um educador e seu legado imortal

    FEUSP

    So Paulo

    2010

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    THIAGO BORGES DE AGUIAR

    Jan Hus:

    As cartas de um educador e seu legado imortal

    Tese apresentada Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de

    Doutor em Educao

    rea de Concentrao: Histria da Educao e

    Historiografia

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Lcia Spedo Hilsdorf

    FEUSP

    So Paulo

    2010

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    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    37(09) Aguiar, Thiago Borges de

    A282j Jan Hus : as cartas de um educador e seu legado imortal / Thiago Borges

    de Aguiar ; orientao Maria Lcia Spedo Hilsdorf. So Paulo : s.n., 2010.

    305 p. : il.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao : Histria da Educao e Historiografia) - - Faculdade de

    Educao da Universidade de So Paulo.

    1. Hus, Jan, 1369?-1415 2. Histria da educao 3. Cartas - Educao -

    Histria 4. Bomia - Educao - Histria - Sculo XV I. Hilsdorf, Maria

    Lcia Spedo, orient.

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    Thiago Borges de Aguiar

    Jan Hus: As cartas de um educador e seu legado imortal

    Tese apresentada Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de

    Doutor em Educao

    rea de Concentrao: Histria da Educao e

    Historiografia

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ___________________________

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    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho memria de Maria Luiza Canton Cola Francisco, essa grande mulher

    que com seu exemplo mostrou a todos os que com ela conviveram o verdadeiro sentido de

    lutar por aquilo que vale a pena, apesar de todos os obstculos, com um sorriso no rosto.

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    AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, professora Maria Lcia Spedo Hilsdorf, pela confiana, dedicao e

    presena ao longo destes cinco anos de trabalho. Voc foi uma verdadeira mestra nesta

    caminhada acadmica.

    Ao professor Waldir Cauvilla, pelo apoio, pela amizade e pelas palavras que, em nossos

    encontros, deixaram marcas indelveis.

    s professoras Ana Chrystina Venancio Mignot e Juara Luzia Leite que, em momentos

    diferentes de elaborao da pesquisa, deram recomendaes muito importantes para o

    aprimoramento do trabalho.

    Ao professor Lcio Kreutz pelas sugestes fundamentais que ofereceu na transio desta

    pesquisa do mestrado para o doutorado direto.

    Ao senhor Renato Emir Oberg, por ter enfrentado o desafio de pesquisar a figura de Jan Hus

    na dcada de 1970 e ter provocado uma mudana profunda em minha pesquisa aps um

    domingo conversa e o emprstimo de livros importantes.

    Aos queridos companheiros de pesquisa do Grupo de Estudos Histria da Educao e

    Religio, pelas oportunidades de aprendizado, estudo e trabalho coletivo banhadas por

    gostosas risadas.

    A toda a comunidade da escola Arraial das Cores, lugar onde tive a oportunidade de crescer

    pessoal e profissionalmente, vivendo uma experincia educativa nica como professor. Um

    abrao especial para a Michelle e para a Carolina pelo apoio constante nestes cinco anos de

    convvio.

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, professores e funcionrios que tanto

    contriburam para minha formao e para a realizao desta pesquisa.

    Ao Ministrio das Relaes Exteriores da Repblica Tcheca, Consulado Tcheco em So Paulo

    e Unio Cultural Tcheco Brasileira pelas oportunidades proporcionadas pelo oferecimento

    gratuito do curso de tcheco em So Paulo e pelo contato com a comunidade tcheca no Brasil.

    Petra Mocov, minha professora de tcheco, que me ensinou mais do que a conhecer a

    lngua tcheca, ajudou-me a admirar a sua cultura e me incentivou a querer conhecer cada vez

    mais da histria de seu povo. Dkuj moc.

    A meus grandes amigos Paulo Henrique de Figueiredo, Sueli Righi e lvaro Antonio de

    Paula que possuem um lugar reservado em meu corao e nem conseguem imaginar o quanto

    ajudaram para que este trabalho acontecesse.

    minha famlia, pela presena indispensvel, a comear por minha me, Suely, e por todas

    essas pessoas maravilhosas com quem compartilho a oportunidade de viver a vida: Luiza,

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    Joo, Jos Eustquio, Jos Renato, Rosa, Gernimo, Eneas, Mirele, Alan e Maria Luiza (in

    memoriam).

    Por fim, que vale como se fosse o incio de tudo, minha amada Marla, que nestes muitos

    anos de convvio, ensinou-me que compartilhar , de fato, fazer parte da vida um do outro.

    Este trabalho no existiria sem voc.

    Nestes cinco anos de trabalho, aprendi que nada se constri sozinho. Tive tantas ajudas que

    nome-las todas seria impossvel. A todos aqueles que me ajudaram a realizar este projeto,

    deixo meu forte abrao de agradecimento. Se no tive como escrever seu nome nestas

    pginas, saiba que ele est escrito em meu corao.

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    Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.

    A rosa do passado apenas um nome, simples nomes nos so legados.

    Verso de um poema do sculo II citado por J. Huizinga

    Dvno echov kali a pslov mli, e podle dobrho pna dobr jzda bv

    H muito tempo os tchecos diziam e tinham um provrbio [que afirmava] se um lder bom,

    boa ser a marcha.

    Trecho do hino hussita Kto js bo bojovnci

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    RESUMO

    AGUIAR, Thiago Borges de. Jan Hus: As cartas de um educador e seu legado imortal.

    2010. 305 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So

    Paulo, 2010.

    Esta tese um estudo da figura de Jan Hus, tradicionalmente conhecido como reformador

    religioso da Bomia do sculo XV, olhando-o sob a perspectiva da Histria da Educao.

    Inspirados nas propostas metodolgicas de Carlo Ginzburg para a construo da narrativa

    histrica a partir do estranhamento das fontes, o paradigma indicirio, analisamos as cartas

    escritas por Hus. Iniciamos com um estudo de como essas cartas, escritas h quase seiscentos

    anos, podem ser lidas levando em conta sua historicidade, estrutura retrica, edio e

    traduo. Identificamos a rede de relaes que essa correspondncia engendrou e observamos

    uma inteno educativa da parte do autor das cartas ao escrev-las. Selecionamos um

    conjunto de vinte e trs cartas que denominamos de pastorais e nelas encontramos um

    padro de escrita voltado a dar continuidade tarefa pastoral que Hus realizava na Capela de

    Belm, constituindo sua ao educativa por meio de cartas. Tambm analisamos a relao

    educador-educando que Hus estabeleceu com seu discpulo Martin de Volyn. Por fim,

    partimos do relato de Petr de Mladoovice e das edies traduzidas das cartas de Hus para

    observar a construo, rememorao e recriao do legado educativo deixado por Hus de

    mrtir e mestre defensor da verdade. Conclumos com um questionamento para a Histria da

    Educao do lugar que esse personagem ocupa atualmente e como esse lugar , e pode ser,

    construdo pelo historiador.

    Palavras-chave: Histria da educao, Jan Hus, Cartas, Bomia, Educadores medievais

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    ABSTRACT

    AGUIAR, Thiago Borges de. Jan Hus: The letters of an educator and his immortal

    legacy. 2010. 305 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo,

    So Paulo, 2010.

    This thesis is a study of the figure of Jan Hus, traditionally known as the Bohemian religious

    reformer of the fifteenth century, looking at it from the perspective of the History of

    Education. Inspired by Carlo Ginzburg's methodological proposals for the construction of

    historical narrative from the strangeness of the sources, the evidential paradigm, we analyze

    the letters written by Hus. We begin with a study of how these letters, written nearly six

    hundred years ago, can be read taking into account its historicity, rhetorical structure, editing

    and translation. We identify the network of relationships that engendered this correspondence

    and watch an educational intention of the author of the letters on writing them. We selected a

    set of twenty-three letters that we called "pastoral" and in them we find a pattern of writing

    intended to continue Hus pastoral task that was performed at the Bethlehem Chapel,

    constituting its educational activities through letters. We also analyzed the relationship

    between educator-learner that Hus established with his disciple Martin of Volyn. Eventually,

    based on the report of Petr of Mladoovice and the translated editions of the letters of Hus we

    look into construction, remembering and rebuilding the educational legacy left by Hus of

    martyr and master defender of the true. We conclude with a question for the History of

    Education concerning the place that currently occupies this character and how this place is

    and can be constructed by the historian.

    Keywords: History of Education, Jan Hus, Letters, Bohemia, Medieval educators

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    RESUM

    AGUIAR, Thiago Borges de. Jan Hus: Dopisy eduktora e jeho nesmrteln poselstv.

    2010. 305 f. Doktorandsk prce. Pedagogick fakulta, Univerzita So Paulo, So Paulo,

    2010.

    Tato doktorandsk prce je studi osobnosti Jana Husa, pedevm znmho jako eskho

    nboenskho reformtora 15. stolet, z hlu pohledu djin vchovy. Nechme se inspirovat

    metodologickmi nvrhy Carla Ginzburga k vstavb historickch vyprvn, kter vychzej

    z nejrznjch zdroj, paradigmatickch indici takto zkoumme dopisy napsan Husem. V

    vodu prce nalezneme studium toho, jak tyto dopisy, napsan tm ped esti sty lety,

    mohou bt teny a chpny z hlediska historickho, enickho, vydavatelskho a

    pedkladatelskho. Dle je mon sledovat celou adu impulz, kter daly vzniknout tto

    korespondenci a vypozorujeme autorv vchovn zmr. Je vybrno dvacet ti dopis, kter

    lze nazvat jako kazatelsk a v nich nalzme urit zpsob psan, kter vlastn pokrauje v

    jeho kazatelsk innosti, kterou Hus vykonval v Betlmsk kapli, a takto potom pokraoval

    ve sv vchovn innosti nap svmi dopisy. Tak je pedmtem tto prce vztah

    vychovatele a vychovvanho, kter Hus vytv se svm nsledovatelem Martinem z

    Volyn. Ke konci prce se oprme o sta Petra z Mladoovic a o rzn peloen vydn

    dopis Jana Husa. To nm slou k tomu, abychom vypozorovali stavbu, optovn

    pipomenut a pedvn vchovnho poselstv zanechan Husem, muednkem, Mistrem a

    obrncem pravdy. V plnm zvru se zabvme otzkou vztahujc se pmo k djinm

    vchovy. Pokoume se dospt k tomu, jak msto v souasn dob zaujm tato osobnost a

    jak stanovisko k tomuto mstu me zaujmout souasn historik.

    Klov slova: Djiny vchovy, Jan Hus, Dopisy, echy, Eduktoi stedovku

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Mapa do reino de Venceslau IV no sculo XIV

    Figura 2. Bandeira do Governo da Repblica Tcheca

    Figura 3. Principais edies das cartas de Hus linha do tempo

    Figura 4. Cartilha de Hus

    Figura 5. Reproduo em diagramao moderna da cartilha de Hus

    Figura 6. Percurso aproximado da viagem de Hus Constana

    Figura 7. Monumento a Jan Hus em Constana marcando o local onde ele foi queimado

    Figura 8. O rosto de Hus no Jesk Kodex

    Figura 9. O rosto de Jernimo de Praga no Jensk Kodex

    Figura 10. Cristo transmitindo seu sacerdcio, detalhe, Jensk Kodex

    Figura 11. Detalhe do rosto de Jan Hus num livro de oraes hussita de 1563

    Figura 12. Detalhe do rosto de Jan Hus em duas imagens da crnica de Ulrich de Richental

    (1464)

    Figura 13. Detalhe do rosto de Jan Hus em duas imagens do Cancioneiro de Litomice

    (sculo XVI)

    Figura 14. Jan Hus na gravura de Theodore de Bry, editado por J. J. Boissard

    Figura 15. Detalhe do Rosto de Jan Hus na gravura publicada pela revista Life

    Figura 16. Jan Hus, gravura de Hans Guldenmundt

    Figura 17. Jan Hus, gravura de Jacques Grandhomme

    Figura 18. Detalhe do rosto de Jan Hus nos quadros de Carl Friedrich Lessing e Vclav

    Brok (sculo XIX)

    Figura 19. Detalhe do rosto de Jan Hus na esttua da Staromstsk Nmst em Praga

    Figura 20. Mestre Jan Hus no Plpito, Cdice de Jena

    Figura 21. Imolao de Hus no Cdice de Jena

    Figura 22. Imolao de Hus no Cdice de Jena (xilogravura)

    Figura 23. Hus no Conclio de Constana, figura do Cancioneiro de Litomice

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    Figura 24. Hus no Conclio de Constana, de Carl Friedrich Lessing

    Figura 25. Hus no Conclio de Constana, de Vclav Brok

    Figura 26. Hus indo para a fogueira, Crnica de Ulrich de Richental

    Figura 27. Hus na fogueira, Cancioneiro de Litomice

    Figura 28. Jan Hus na Fogueira, num livro de oraes hussita de 1563

    Figura 29. Esttua de Jan Hus na Staromstsk Nmst em Praga

    Figura 30. Capa do fascculo 27

    Figura 31. Os pensadores da tradio protestante, gravura do sculo XVI

    Figura 32. Jan Hus, do livro de histria ilustrada tcheca para crianas

    Figura 33. Guerreiros de Deus, no livro Histria do bravo povo tcheco

    Figura 34. Detalhes da imagem anterior

    Figura 35. Jan Hus escrevendo

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    SUMRIO

    Introduo ........................................................................................... 14

    a. O problema da distncia na construo da narrativa histrica .......................................... 27

    Captulo 1. As cartas de Jan Hus ....................................................... 37

    1.1. Constituio do corpus documental ............................................................................... 37

    1.2. Como escrever cartas no sculo XV? ............................................................................ 49

    1.3. A rede de relaes .......................................................................................................... 61

    1.4. Por que Hus escreveu suas cartas? ................................................................................. 69

    Captulo 2. A construo de um educador por suas cartas .............. 92

    2.1. A construo de um padro de escrita ........................................................................... 94

    2.2. Cartas de pregao em exlio ....................................................................................... 113

    2.3. Narrativas da viagem ................................................................................................... 120

    2.4. Escrita da priso ........................................................................................................... 129

    2.5. Cartas ao discpulo ....................................................................................................... 140

    Captulo 3. A construo de um educador por seu legado ............. 158

    3.1. A construo de um legado em seus primrdios: morte e verdade ............................. 159

    3.2. A expanso da memria de Hus alm da Bomia ....................................................... 178

    3.3. A construo de um smbolo nacional ......................................................................... 197

    3.4. Um legado perenizado em imagens ............................................................................. 210

    3.4.1. Os rostos ............................................................................................................................ 212

    3.4.2. As cenas ............................................................................................................................ 221

    3.5. O alcance de um legado ............................................................................................... 234

    3.5.1. Duas pesquisas .................................................................................................................. 235

    3.5.2. Trs meios textuais de divulgao histrica ...................................................................... 244

    3.5.3. Uma cano ....................................................................................................................... 254

    Concluso: o educador pela Histria da Educao ........................ 257

    O fim o comeo ................................................................................................................ 268

    Referncias Bibliogrficas ............................................................... 276

    Apndice 1. Cartas de Hus por edio. ........................................... 291

    Apndice 2. Traduo de duas cartas de Hus ................................. 295

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    Introduo

    Quando eu era um estudante de teologia em Erfurt, aconteceu de chegar s

    minhas mos, certo dia, na biblioteca do mosteiro, um volume dos sermes

    de Jan Hus. Ao ler na capa daquele trabalho as palavras Sermes de Jan Hus,

    em mim imediatamente acendeu o desejo de apurar, por meio da leitura

    daquele livro que escapou das chamas e estava conservado numa biblioteca

    pblica, quais heresias ele havia disseminado. Eu me abatia pelo espanto ao

    ler o livro e estava preenchido por uma surpresa difcil de descrever ao

    procurar por um motivo pelo qual um homem to grandioso um doutor, to

    digno de venerao e to poderoso na exposio das Escrituras foi

    queimado at a morte. Mas o nome de Hus era, naquela poca, tal objeto de

    execrao que eu acreditava plenamente que se eu falasse qualquer elogio a

    seu respeito, os cus cairiam sobre mim e o sol ocultaria sua luz. (Martinho

    Lutero, prefcio s cartas de Hus publicadas por ele em 1537)

    Estudando a figura de Jan Hus nos ltimos anos, no encontramos melhor expresso

    da ambiguidade que sua imagem provoca nas pessoas que estas palavras do reformador

    Martinho Lutero. Muitos nunca ouviram falar nele. Para alguns, concordando com Lutero, ele

    foi um grande reformador do Cristianismo e da Igreja Catlica, digno de venerao, antes

    da Reforma Protestante. Para outros, um heresiarca a tal ponto que falar bem dele provocaria

    os cus carem sobre as cabeas e o sol se apagar.

    Para seus contemporneos, ele era um mestre da vida sem comparao que

    reavivou no clero e no povo a vida correta da igreja primitiva1 ou um pregador errneo e

    escandaloso, contrrio Madre Igreja e desviante da f2. Para a Histria da Educao ele foi

    uma das grandes figuras nacionais tchecas ao defender a figura de Wyclif3, algum que

    deu uma contribuio concreta instruo, codificando a ortografia tcheca e redigindo um

    silabrio4 ou simplesmente ningum digno de nota5.

    1 Testemunho da Universidade de Praga sobre Jan Hus, Monumenta, 1:103 apud SCHAFF, David S. John Huss:

    his life, teachings and death after five hundred years. Eugene, Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2001.

    Publicao original: Nova York: Charles Scribner & Co, 1915, p. xi.

    2 Esta foi uma das acusaes, encaminhadas ao arcebispo de Praga, feitas por clrigos contrrios s ideias

    reformistas de Hus e seus companheiros. Hus respondeu a elas numa carta (nmero 8) ao arcebispo, escrita entre

    agosto e setembro de 1408. A acusao reproduzida por Hus no incio da carta.

    3 DENIS, Marcelle. O mundo eslavo. In: MIALARET, Gaston; VIAL, Jean (dir). Histria mundial da

    educao. Volume I: das origens a 1515. Porto, Portugal: Rs Editora, s/d, p. 296.

    4 MANACORDA, Mario Alighiero. Histria da educao. So Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989, p.

    194.

    5 CAMBI, Franco. Histria da pedagogia. So Paulo: Editora Unesp, 1999, por exemplo, no cita Hus.

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    Quem estaria com a razo? Um breve esboo biogrfico parece contradizer as

    avaliaes negativas a seu respeito. Hus nasceu em data incerta, entre os anos de 1369 e 1372,

    na vila de Huscinec, na regio da Bomia, reino do Sacro Imprio Romano-Germnico, parte

    de onde se localiza hoje a Repblica Tcheca, na Europa Central (figura 1). No ano de 1402,

    Jan [Joo] de Husinec j era um clrigo, isto , um sacerdote e um homem de saber6,

    estudante de teologia e professor da Universidade Carlos de Praga quando assumiu o

    comando de uma capela de nome Belm. Essa capela fora construda com apoio de

    comerciantes e nobres na capital do reino, Praga, para a pregao da palavra de Deus na

    lngua tcheca, expresso de um movimento de valorizao do vernculo frente imposio da

    lngua alem.7

    Figura 1. Mapa do reino de Venceslau IV no sculo XIV

    (Fonte: SPINKA, John Hus: a biography)

    6 Como utiliza VERGER, Jacques. Homens e saber na idade mdia. Traduo de Carlota Botto. Bauru, SP:

    EDUSC, 1999. 7 Hus, em outra de suas cartas (nmero 2, de janeiro de 1404), escrita a um professor alemo da Universidade de

    Praga, afirma ser senso comum a ideia que os alemes so hereges e os tchecos ladres, confirmando que havia

    acusaes mtuas entre esses povos naquela poca. PORTAL, Roger. Os eslavos: povos e naes. Lisboa:

    Edies Cosmos, 1968, p. 17, trata da relao entre tchecos e alemes como um antagonismo secular entre esses povos.

  • 16

    Ao longo de sua vida, conquistou muitos amigos. Da corte real, era confessor da

    rainha Sofia e amigo do rei Venceslau [Vclav] IV. Em sua capela, chegavam nobres,

    burgueses, artesos, mestres, estudantes e servos. E l, j conhecido como Jan Hus, propunha

    em seus sermes uma vida de retido, a compreenso das escrituras e a coerncia do clero. Na

    Universidade, tornou-se lder de um movimento nacionalista que culminou, em 1409, com a

    sada dos professores e alunos alemes.8 Ocupou, ento, a reitoria daquela instituio.

    Reuniu, porm, inimigos. De alguns clrigos que se sentiam atacados por suas ideias,

    aos professores alemes que deixaram a Universidade. Mas, principalmente, de alguns

    professores tchecos e do arcebispo de Praga, Zbynk, que discordavam das posies de Hus.

    A Cria romana passou a persegui-lo, excomungando-o por duas vezes. Ops-se a uma bula

    papal e foi obrigado a se exilar. A pedido do rei Venceslau, foi Constana, cidade beirando

    o lago com o mesmo nome localizado hoje ao sul da Alemanha, prximo fronteira com a

    Sua onde ocorria um conclio. Esse conclio (1414-1418) foi convocado para acabar com

    os movimentos herticos e com a crise da Igreja, que estava com trs papas simultneos. L,

    Hus pensava poder expor suas ideias, embora soubesse dos riscos de no mais voltar. Passou

    cerca de oito meses preso e foi condenado como heresiarca, ou seja, criador e difusor de uma

    heresia. Foi morto na fogueira.

    Sua histria foi recontada de diversos modos ao longo dos sculos seguintes, num

    contnuo movimento de reescrita e rememorao. Por isso, sua imagem se modificou bastante.

    Foi considerado mrtir da Reforma Protestante, precursor de Lutero. Virou smbolo tanto da

    independncia tcheca quanto da imposio do comunismo sovitico.9 Hoje, na Repblica

    Tcheca, tem um lugar de destaque como smbolo nacional. A bandeira do presidente da

    repblica tcheca (figura 2) exibe um braso com lees, guias e a expresso pravda vtz.

    Essas palavras em tcheco significam a verdade vence e foram atribudas aos seguidores de

    8 A Universidade de Praga seguia o modelo da Universidade de Paris, tendo alunos e professores organizados em

    quatro naes, a saber, tchecos, poloneses, bavrios e saxes. Trs naes eram compostas por estrangeiros e os

    alemes acabaram por se tornar os mais numerosos. Em 1409, o rei Venceslau IV assinou o decreto de Kutn

    Hora, fazendo com que a nao tcheca tivesse mais poder sobre as decises na universidade do que as naes

    estrangeiras. Professores e alunos alemes saram da Universidade de Praga e fundaram a Universidade de

    Leipzig. Ver, por exemplo, LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mdia. Traduo de Marcos de

    Castro. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2003, pp. 102 e 178 e SPINKA, Matthew. John Hus: a biography.

    Princetown, New Jersey, EUA: Princetown University Press, 1968, pp. 25, 96-98. 9 CHODAN, Tim. The use and abuse of Jan Hus as an historical figure in czech culture or cooking your

    own goose: three czech recipes. 1999. 133 f. Dissertao (Master of Arts em Histria) - Department of History

    and Classics, Faculty of Graduate Studies and Research, University of Alberta. Edmonton, Alberta, Canad,

    1999.

  • 17

    Hus10

    . Na praa da cidade velha (Staromstsk nmst) de Praga, importante ponto turstico

    da cidade e endereo da prefeitura, encontra-se uma esttua de Jan Hus. Num concurso para

    eleger o maior tcheco da histria, promovido pela TV estatal tcheca, ele foi o stimo mais

    votado, ficando frente de nomes mundialmente famosos como os compositores Dvok e

    Smetana e os escritores Karel apek, Franz Kafka e Milan Kundera, alm de vrios reis,

    polticos, artistas, pensadores e cientistas.11

    Figura 2. Bandeira do Governo da Repblica Tcheca

    (Fonte: HISTORY OF THE FLAG OF THE CZECH. Disponvel em

    )

    Esta insero que fizemos de Jan Hus na histria, mesmo que apresentada em linhas

    gerais, recupera a complexidade e a grandeza desse sujeito. No entanto, mostra para um

    historiador da educao que h uma parcialidade, uma falta. Entendemos que ele foi, alm de

    um expoente religioso, poltico e cultural, um educador. E, nesta tese, pretendemos

    demonstrar que ele educou por meio da escrita de cartas e pelo legado vrias vezes

    reconstrudo que essas cartas deixaram.

    Como suprir essa falta? Como nos aproximarmos dessa figura de um passado to

    distante em busca de seu significado educacional? Como ler um educador na histria da

    10

    REPBLICA TCHECA. Ministrio das Relaes Exteriores. The national emblems of the czech republic.

    Disponvel em: .

    Acesso em: 02 nov. 2009.

    11 V. ESK TELEVIZE. Nejvt ech: o projektu. Disponvel em

    . Acesso em 06 jun. 2010.

  • 18

    educao? O que tem por sequncia a pergunta: como encontrar o Hus educador, que fontes

    utilizar e como interpret-las? Porm, antes de responder a estas perguntas, outra mais

    imediata tornou-se necessria: por que escrever a histria de um personagem to distante de

    nosso espao e de nosso tempo?

    A resposta a esta ltima pergunta passa por duas vertentes: a motivao pessoal para a

    realizao da pesquisa e a contribuio desta rea de Histria da Educao. Falar de uma

    motivao pessoal depois de cinco anos de estudo de um tema muito difcil, visto que

    quando estudamos algo por tanto tempo mergulhamos num universo conceitual que passa a

    ser nosso principal foco de investigao intelectual. Nossas questes passam a ser decorrentes

    desse prprio universo. Se tentarmos reconstruir nossa motivao pessoal, resgatando as

    perguntas que tnhamos quando iniciamos nossa pesquisa, no conseguiremos. Hoje, essas

    perguntas nos parecem frgeis, visto que indicavam nosso desconhecimento do objeto de

    pesquisa. No entanto, foi justamente essa ignorncia inicial que nos permitiu o

    aprofundamento da problematizao.

    H cerca de sete anos ganhei de um amigo um exemplar das cartas de Jan Hus em

    ingls. Estvamos em busca de personagens que defendiam a liberdade de conscincia e ele

    pediu que eu procurasse por esse tema naquela correspondncia, visto que eu tinha maior

    domnio naquela lngua. Comecei a traduzir as primeiras cartas, encantando-me com a de

    nmero 8, a qual Hus escreveu para o arcebispo de Praga, defendendo-se de acusaes que

    sofria. Aquela defesa parecia to bem escrita, articulando simplicidade, profundidade e um

    toque de humor... Quem estava por trs daquelas palavras? Por que ele estava se defendendo?

    Eu fiquei intrigado com aquele personagem, e imaginei que, de algum modo, suas ideias

    poderiam contribuir para o tema que me instigava naquela poca: a tolerncia religiosa. No

    entanto, levaria quase dois anos para que eu voltasse quele livro.

    Em meados de 2005, decidi participar do processo seletivo para a ps-graduao na

    FEUSP. Aquela leitura de anos antes foi marcante para que eu escolhesse o que se tornou

    tema de minha investigao. O que antes estava voltado para a questo da tolerncia religiosa

    tornou-se a possibilidade de vislumbrar a participao do autor daquelas cartas na construo

    das ideias pedaggicas. Sabendo da possvel influncia de Hus na figura do educador Jan

    Amos Comenius [Komensky], um dos grandes autores da pedagogia moderna que deixaram

    marcas na minha trajetria formativa, levantei materiais a respeito do primeiro. Passei a ter

    por objetivo traar as bases do pensamento comeniano em Hus e as mesmas cartas que eu

    tinha lido em busca de ideias de liberdade ou de tolerncia religiosa apareceram como fonte

  • 19

    para a pesquisa histrica da educao, pois vislumbrava que aquele personagem nelas se

    exprimia sobre temticas educacionais.

    Com o desenrolar da pesquisa, percebemos que, antes de tentarmos estabelecer

    relaes entre Hus e Comenius, era necessrio conhecer melhor o primeiro, visto que

    encontrvamos as poucas informaes a seu respeito. Centramos, ento, nossa investigao no

    estudo do uso de cartas como fonte para a histria da educao para subsidiar uma

    reflexo sobre a ao educativa hussita. aqui que entra a segunda vertente da resposta

    questo que formulamos sobre o porqu desta tese: de que modo um estudo sobre Jan Hus

    contribui para a rea da Histria da Educao?

    Em primeiro lugar, o estudo aprofundado sobre um personagem histrico traz

    informaes sobre o prprio personagem, permitindo maior divulgao de sua biografia e de

    suas ideias, especialmente se ele for pouco conhecido, como o caso de Hus no Brasil.

    Trazemos aqui, pela primeira vez em nossa lngua, materiais escritos por ele e a seu

    respeito. A maior parte das obras que consultamos est em lngua inglesa, havendo tambm

    materiais em tcheco e em latim. Mas, em portugus, encontramos apenas algumas referncias

    em livros histricos e uma tese12

    escrita na dcada de setenta, a qual pouco trata das cartas

    hussitas, de modo que apresent-las neste trabalho algo indito.

    Em segundo lugar, esta tese est inserida num movimento inicial, porm crescente, de

    utilizao de cartas como fonte para a histria da educao. Na apresentao da obra que

    organizaram sobre estudos de cartas, Walnice Galvo e Ndia Gotlib13

    afirmam haver uma

    disparidade entre o volume de cartas escritas por artistas, intelectuais, personalidades

    histricas e o nmero reduzido de estudos. Com essa obra que veio reunir artigos de

    diversos autores, elas ofereceram uma importante compilao para corrigir a quase

    inexistncia de estudos de epistolografia. Por outro lado, Francisca Maciel14 afirma que o

    gnero epistolar vem se consolidando como um campo investigativo na literatura,

    especialmente depois da abertura da correspondncia de Mrio de Andrade. Porm, no se

    pode dizer o mesmo com relao a outras reas, entre elas a educao.

    12

    OBERG, Renato Emir. Joo Huss, um injustiado? 1972. 2 vol. 400 p.Tese (Doutorado em Histria).

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Departamento de Histria,

    1973, com quem dialogaremos ao longo deste trabalho. Encontramos esta tese a partir de um levantamento de

    toda a produo acadmica catalogada nas bibliotecas da Universidade de So Paulo. 13

    GALVO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Ndia Batella (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos

    sobre cartas. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9.

    14 MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Cartas pedaggicas: fragmentos de um discurso. In: BASTOS, Maria

    Helena Camara; CUNHA, Maria Teresa Santos; MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (orgs.). Destinos das

    letras: histria, educao e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002, p. 206.

  • 20

    A obra de Maria Helena Bastos, Maria Teresa Cunha e Ana Chrystina Mignot, onde

    est inserido o texto de Francisca Maciel acima citado, procurou dar visibilidade s pesquisas

    na interface entre histria, educao e escrita epistolar, preenchendo essa lacuna. No livro que

    organizaram,

    Debruados sobre maos de cartas de temporalidades diversas, inditas ou

    publicadas em livros, produzidas por missivistas annimos ou escritores

    renomados, pesquisadores de diferentes pases e tradies disciplinares

    trazem importantes contribuies para a compreenso da cultura escrita.15

    Alm destes dois trabalhos coletivos, percebemos o crescimento no interesse pelo uso

    de cartas como fonte histrica, no Brasil, no encontro da Associao Nacional de

    Pesquisadores em Histria (Anpuh) realizado em 2009. Alm de nossa pesquisa sobre o

    porqu de Hus ter escrito cartas16

    , do grupo de trabalho Biografias e autobiografias: escritas,

    narrativas e invenes de si17 destacamos outras investigaes relacionadas. Carla Gastaud18

    apresentou as caractersticas das cartas de amor guardadas por um casal do incio do sculo

    XX no Rio Grande do Sul. Deise Schell19

    retratou o processo de escrita de si a partir das

    cartas de Lope de Aguirre, espanhol do sculo XVI. Fabiana Fedrigo20

    trabalhou com as

    relaes, na Gr-Colmbia do incio do sculo XIX, entre Simn Bolvar e Francisco de Paula

    Santander. Iranilson de Oliveira21

    retratou as imagens sobre o serto da Paraba e do Rio

    Grande do Norte construdas pelo mdico Belisrio Penna, no incio do sculo XX, a partir de

    sua correspondncia. Esses trabalhos confluram para a abertura de novas perspectivas para a

    escrita (auto)biogrfica ao permitir confrontar temporalidades, entrecruzando o tempo da

    escrita do missivista, o da leitura do destinatrio, o da edio de epistolrios, o da reedio e o

    da releitura do historiador. Partilhando desse movimento da rea que pretendemos construir

    15

    BASTOS; CUNHA; MIGNOT (orgs.), Destinos das letras, pp. 6-7. 16

    AGUIAR, Thiago Borges de. A necessidade de escrever para educar na correspondncia de Jan Hus. In: XXV

    Simpsio Nacional de Histria da Associao Nacional de Histria - Anpuh, 2009, Universidade Federal do

    Cear, Fortaleza. Anais do XXV Simpsio Nacional de Histria: por uma est(tica) da beleza na Histria.

    Fortaleza: Anpuh, 2009.

    17 Organizado por Juara Luzia Leite (UFES) e Iranilson Buriti de Oliveira (UFCG).

    18 GASTAUD, Carla Rodrigues. Prticas epistolares: cartas de amor no sculo XX. In: Histria e tica:

    simpsios temticos e resumos, p. 488.

    19 SHELL, Deise Cristina. Yo, rebelde hasta la muerte: as cartas de Lope de Aguirre e a escrita de si. In:

    Histria e tica: simpsios temticos e resumos, p. 488.

    20 FEDRIGO, Fabiana de Souza. Francisco de Paula Santander e a exposio de seus projetos para a Amrica

    independente: entre a memria e a autobiografia. In: Histria e tica: simpsios temticos e resumos, p. 489.

  • 21

    nossa narrativa histrica, utilizando cartas como fonte para nos aproximarmos do educador e

    seu tempo.

    Por fim, no que diz respeito insero desta tese na rea de Histria da Educao,

    analisamos o sentido do que ser um educador no sculo XV e como sua ao educativa

    teve tal impacto que reverberou ao longo dos sculos seguintes. Perguntando de que maneira

    podemos pesquisar, compreender e narrar22 a vida desse sujeito para alcanar esse

    entendimento, pensamos, inspirados em Antnio Nvoa, que impossvel separarmos a vida

    de um educador de sua prtica educativa. Esse autor afirma que

    as utopias racionalistas no conseguiram pr entre parntesis a

    especificidade irredutvel da aco de cada professor, numa bvia relao

    com as suas caractersticas pessoais e com as suas vivncias profissionais.

    Como escreve Jennifer Nias: O professor a pessoa; e uma parte

    importante da pessoa o professor. 23

    Tambm entendemos, tal qual H. Dias24

    , que possvel trabalharmos com histrias de

    vida no apenas no presente, como prope Nvoa em seu trabalho, mas tambm no passado.

    Sem o contato direto com os protagonistas, poderemos reconstruir a histria deles, como fez

    essa autora, a partir

    da compilao dos dados e informaes j produzidos por eles e/ou sobre

    eles, com o intuito de apresentar as constantes opes que a vida

    profissional imps vida pessoal desses docentes e detectar quais foram as

    opes pessoais que interferiram em suas realizaes profissionais,

    desvendando, na medida do possvel, a maneira de ser e de ensinar de cada

    um deles. (grifos da autora)

    O educador Jan Hus o clrigo, o homem de saber, o intelectual25

    , o sujeito que

    escreveu suas cartas por algum motivo que est relacionado com sua histria de vida. Mas o

    aspecto educativo de sua vida foi pouco explorado. Parte importante de sua pessoa foi,

    portanto, negligenciada. Nesta tese, ao trabalharmos com cartas inditas como fontes para a

    construo da narrativa histrica, trazemos a dimenso da relao individual/coletivo para a

    21

    OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. A pena de Belisrio: narrativas de nordeste nas correspondncias de Belisrio

    Penna. In: Histria e tica: simpsios temticos e resumos, p. 490. 22

    V. BORGES, Vavy Pacheco. Desafios da memria e da biografia: Gabrielle Brune-Sieler, uma vida (1874-

    1940) In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Mrcia. Memria e (res)sentimento: indagaes sobre uma questo

    sensvel. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. 23

    NVOA, Antnio (org.). Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, 1992, p. 7. 24

    DIAS, Marcia Hilsdorf. Professores da escola normal de So Paulo (1846-1890): a histria no escrita.

    2002. 290 f. Dissertao (Mestrado em educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2002,

    p. 10. 25

    Termo usado por LE GOFF, Os intelectuais

  • 22

    histria, porque Hus, ao escrev-las, tambm ressignificou seu contexto interpretando os

    eventos que vivenciava e que, de certa forma, impeliram-no a escrever cartas. Uma carta

    permite que vislumbremos a expresso do eu em relao ao coletivo.

    Quando pesquisamos a ao educativa de Hus aliada aos eventos de sua vida,

    implicitamente reavaliamos sua figura dentro da histria dos sujeitos educadores. Os

    estudos nessa rea permitem observar o ser humano como um universal singular, que

    individualiza a generalidade de uma histria social e coletiva.26

    Como ser que os trabalhos sobre educadores tratam desses sujeitos? Estariam eles de

    acordo com o princpio inspirador de que impossvel separar o educador e sua prtica

    educativa? Partimos em busca de trabalhos que servissem de inspirao para a realizao de

    nossa pesquisa sobre um educador.

    No exerccio cientfico caracterstico de uma pesquisa acadmica, construmos um

    instrumental terico que permite observarmos e registrarmos determinado fenmeno que, em

    nosso caso, um fato histrico. Esse exerccio rene um levantamento bibliogrfico e um

    conjunto de regras compartilhadas pelos grupos dos quais os sujeitos participam para

    selecionar um rol de ideias e concepes um lxico, como diria o historiador da cincia

    Thomas Kuhn27

    , que permitam investigar um objeto.

    Para mapearmos esse lxico, realizamos um levantamento das teses e dissertaes

    defendidas nos ltimos anos na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo que

    tratam das relaes entre histria e educao, ou, mais especificamente, filiam-se Histria

    da Educao.28

    Nesse levantamento, encontramos alguns trabalhos que tratam de sujeitos

    educadores. Essas pesquisas permitem conhecer o movimento da rea em relao a esses

    sujeitos ao mesmo tempo em que oferecem inspiraes metodolgicas para o

    desenvolvimento de nosso trabalho.

    L. Dias29

    estudou a educadora anarquista Maria Lacerda Moura, a partir de seus

    escritos do perodo de 1918 a 1935, propondo a importncia de se considerar o elemento

    26

    Franco Ferraroti, apud NVOA, Vidas de professores, p. 18. 27

    KUHN, Thomas. O caminho desde a estrutura. So Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 119.

    28 A partir da base Dedalus, base de dados bibliogrficos da USP, fizemos um levantamento das teses e

    dissertaes que partem da figura de um educador ou a analisam, defendidas na Faculdade de Educao da USP,

    num perodo de dez anos (1998-2007).

    29 DIAS, Maria Aparecida Lima. O esprito da educao: Maria Lacerda de Moura (1918-1935). 1999. 219 f.

    Dissertao (Mestrado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 1999.

  • 23

    religioso na anlise de seus escritos, fazendo um contraponto entre estes e sua vida. Morais30

    estudou o professor Theobaldo Miranda Santos e seus manuais didticos, buscando

    caracterizar os principais aspectos de sua obra de construo de uma pedagogia crist, frente

    s ideias trazidas pela Escola Nova. Silva31

    estudou o pensamento do socilogo Maurcio

    Tragtenberg e sua contribuio para a constituio de uma pedagogia libertria. O autor

    procura reconstruir as bases do pensamento de Tragtenberg a partir de sua trajetria de vida e

    de sua obra intelectual, concluindo com um exame das relaes entre seus escritos, sua prtica

    como educador e os vnculos com a pedagogia libertria e a pedagogia crtica.

    O trabalho de Gonalves32

    caracteriza-se por ser uma pesquisa histrica de cunho

    filosfico-educacional que estuda a contribuio de Joo Cruz Costa para a Filosofia no

    Brasil. Parte de pesquisas sobre o mesmo perodo e depoimentos de pessoas que conheceram

    o professor Cruz Costa para traar uma biografia do autor, fazer uma reconstruo do perodo

    de formao de seu pensamento e indicar as influncias que permeiam sua obra. Na mesma

    linha de trabalhos que tratam do pensamento de educadores brasileiros est a tese de

    Zanatta33

    , que estudou o educador catlico Jonathas Serrano. A autora parte de uma

    reconstruo do contexto histrico e das fontes de seu pensamento catlico para traar uma

    leitura dos fundamentos filosficos e pedaggicos de sua relao com o movimento da Escola

    Nova, bem como seus princpios educacionais e representaes de vida. J a tese de Lima34

    prope-se a caracterizar a contribuio do intelectual Jos Mrio Pires Azanha para a

    educao paulista, a partir da descrio e do exame das ideias do autor expressas em seus

    textos. Ao contrrio do que ocorreu em outros trabalhos, a proposta no parte da relao entre

    vida e obra, mas apenas da produo escrita do autor. A biografia de Azanha que o autor

    apresenta serve apenas para aproximar o leitor da figura estudada, caso este no o conhea.

    A maioria destes trabalhos, bem como daqueles que discutiremos a seguir, apresentam

    a preocupao de relacionar as ideias do autor com sua biografia e, guardando as

    30

    MORAIS, Maria Helena de Jesus Silva. Da pedagogia que "pegou de galho" a uma pedagogia crist nova

    e brasileira: Theobaldo Miranda Santos (1904-1971) e seus manuscritos didticos. 2004. 86 f. + anexos.

    Dissertao (Mestrado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2004.. 31

    SILVA, Antonio Oza da. Maurcio Tragtenberg e a pedagogia libertria. 2004. 226 f. Tese (Doutorado em

    Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2004. 32

    GONALVES, Tnia. Joo Cruz Costa educador: contribuies ao debate sobre a filosofia como formao

    cultural. 2004. 119 f + anexos. Dissertao (Mestrado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de

    So Paulo, 2004. 33

    ZANATTA, Regina Maria. Jonathas Serrano e a escola nova no Brasil: razes catlicas na concepo

    progressista. 2005. 201 f. Tese (Doutorado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So

    Paulo, 2005. 34

    LIMA, Raymundo de. A educao no Brasil: o pensamento e a atuao de Jos Mario Pires Azanha. 2005.

    296 f. Tese (Doutorado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2005.

  • 24

    especificidades de cada proposta, consideraram a indissociabilidade entre vida pessoal e vida

    profissional. Isso demonstra que esse princpio que encontramos formulado em Nvoa

    frutfero para a rea de Histria da Educao e um importante ponto de partida para nossa

    pesquisa. Contudo, no encontramos uma problematizao do modo como a historiografia da

    educao designa esses personagens. Todos os trabalhos que tratam desses sujeitos afirmam

    que seus personagens so educadores ou aceitam essa designao feita pela historiografia,

    sem discutir porque eles so educadores. Percebemos que a simples designao a

    caracterstica principal de parte da histria dos sujeitos educadores.

    Outros trabalhos, no entanto, permitem que avancemos na compreenso desse

    processo, pois problematizam a designao de seus personagens como educadores. Um

    primeiro exemplo a dissertao de Castro35

    sobre o orador grego Demstenes. Nele, o autor

    prope que esse sujeito seja designado educador, no por causa de sua relao estrita com a

    educao ou com a instituio escolar, mas a partir de sua preocupao com a formao do

    indivduo. Para o autor, educador no sentido estrito da palavra, tal como empregada hoje36

    envolve escrever tratados sobre formao humana e abrir escolas. Mas, no s isso. Ser um

    educador implica tambm entrever o ideal de homem que tem em vista e o modo de atingir

    esse ideal. Nesse sentido, ele [Demstenes] se torna tambm um educador. A formao do

    indivduo consiste naquilo que modernamente chamamos de ideias pedaggicas, de acordo

    com o autor da dissertao.

    Diferentemente do anterior, o trabalho de Loureiro37

    apresenta a missionria Anna

    Bagby como educadora principalmente por sua relao com a instituio escolar. A autora,

    em sua dissertao, afirma que Anna Bagby foi mais do que uma missionria, como foi

    apresentada na literatura batista. Trata-se de uma educadora que se ocupa da educao de

    outras mulheres e algum que desenvolveu uma atividade de escritora, demonstrando

    amplo interesse no campo educacional.

    Nesse levantamento que fizemos, encontramos uma tese que apresenta uma reflexo

    especfica sobre os critrios para se designar um sujeito como educador. Por ser a nica que

    encontramos que o faz, dedicaremos algumas pginas para analis-la. Defendida em 2000, a

    35

    CASTRO, Roberto Carlos Gomes de. Demstenes educador. 2003. 153 f. Dissertao (Mestrado em

    Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2003.

    36 ibidem, p. 105, tambm para a citao da frase seguinte.

    37 LOUREIRO, Noemi Paulichenco. Anna Bagby, educadora batista (1902-1919). 2006. 100 f. + anexos.

    Dissertao (Mestrado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2006.

  • 25

    tese de Cauvilla38

    , possui um captulo dedicado a responder se Alceu Amoroso Lima foi um

    educador. Na introduo, o autor questiona se Alceu pode, exatamente, ser considerado um

    educador?39. Para ele, um educador aquele que promove mudana em nosso interior. o

    que est implcito neste trecho, tambm da introduo:

    Afinal, por mais que influncias externas pesem na balana de nossas

    atitudes, em nosso interior cabea ou corao (provavelmente os

    dois juntos; e talvez sejamos aqui um tanto rousseaunianos) no nosso

    sentimento que esses processos [de alterao de postura de determinado

    intelectual] se do.

    Alceu Amoroso Lima posicionou-se diante de questes educacionais, seja em seus

    escritos, seja em seus cargos na rea de educao e, por este motivo, costuma ser citado como

    educador. Ser que essa atuao de Alceu suficiente para design-lo como educador? No,

    para o autor da tese. Em suas palavras, Cauvilla afirma:

    Mas podemos perceber que: a) um professor, mesmo sendo o melhor em

    sua disciplina, pode no ser, necessariamente, um educador, b) pode-se

    ocupar cargos na rea da educao, como os supracitados, e no se ser um

    educador; c) e h a recproca: de se ser um educador sem ocupar nenhuma

    das posies acima.

    Essa percepo, palavra que refora nossa interpretao do carter designativo do

    conceito de educador, que leva o autor da tese a afirmar que as intenes de Alceu no

    exerccio de cargos no campo da educao eram polticas e no educativas.

    As interpretaes dos escritos do intelectual catlico sugerem-lhe uma primeira

    concluso: ser professor, reitor ou conselheiro [do Conselho Nacional de Educao e do

    Conselho Federal de Educao] no torna ningum educador; se Alceu considerado

    educador s por ter ocupado aquelas posies, podemos, ento, dizer que ele no o foi.

    (grifos do autor). Para ele, ser educador promover uma educao que consista na formao

    global do indivduo, incluindo informaes e valores. Nas palavras do autor:

    38

    CAUVILLA, Waldir. Alceu Amoroso Lima e a democracia: em busca da proporo. 2000. 238 f. Tese

    (Doutorado em Educao). Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2000. Apresentamos a anlise

    desta tese e sua importncia para a compreenso do carter designativo do educador em 2009. V. AGUIAR,

    Thiago Borges de. Como se constri um educador na histria da educao. In: VII Semana da Educao - 40

    anos da Faculdade de Educao, 50 anos da Escola de Aplicao: conquistas e desafios, 2009, Faculdade de

    Educao da Universidade de So Paulo. ANAIS. No Prelo.

    39 CAUVILLA. op cit, p. 13 e pp. 17, 156-158, 160, 161, 174, 175, 183 e 184 para as citaes seguintes. Exceto

    quando indicado o contrrio, os grifos so nossos.

  • 26

    Entendemos educao como formao global (Alceu diria integral), do

    indivduo. Aquela que lhe d mais do que conhecimento cientfico,

    filosfico, literrio (o que especfico, justamente, do sistema escolar), mais

    do que costumamos chamar de informao; educao aquela que

    possibilita, alm do conhecer, vivenciar, incorporar valores, morais,

    estticos, religiosos. (grifos do autor)

    A partir dos escritos de Alceu Amoroso Lima, Cauvilla traduz essa educao na

    transformao de indivduo em pessoa, seguindo a tradio crist apresentada nas pginas

    seguintes (162 a 167). Segue-se uma breve apresentao da ideia de cultura para o intelectual

    catlico, sendo a formao do homem em sua plenitude o objeto da cultura. a partir deste

    ponto que o captulo atinge o cerne da designao de Alceu como um educador: a

    apresentao de um artigo publicado no jornal Folha de So Paulo, intitulado Na

    Encruzilhada, de 25/03/1983. Nas palavras de Cauvilla:

    Acreditamos, com a apresentao desse artigo, ilustrar de um modo bem

    significativo a noo de Educao que colocamos no incio deste captulo, a

    partir da qual, podemos realmente considerar Alceu A. Lima um educador,

    independentemente dos cargos que exerceu como professor universitrio,

    reitor e conselheiro.

    Num primeiro momento, no fica claro para quem l este trecho por que o intelectual

    catlico pode ser considerado realmente um educador. As oito pginas seguintes so

    dedicadas leitura comentada do artigo. No entanto, s pudemos realmente perceber os sinais

    que nos levaram ousadia de afirmar que um educador designado como tal e que o

    prprio autor da tese foi educado por seu objeto de estudo, com a frase final do captulo:

    Terminamos, ousando dizer: ler os artigos de jornal de Alceu A. Lima educar-se. Esses

    sinais aparecem nas palavras com as quais o autor analisa o artigo de jornal. Para citarmos

    alguns exemplos, pgina 176, Cauvilla comenta:

    Esse artigo , alis, um belo exemplo de como em trs meias-colunas de

    jornal (oito pargrafos), Alceu conseguia introduzir vrias questes

    profundas, originais e surpreendentes e, ainda, apresentando a um pblico

    de final do sculo XX as idias de Santo Toms de Aquino, um dos grandes

    filsofos do sculo XIII.

    Neste trecho, s pginas 181 e 182, o autor utiliza recursos tpicos da narrao:

    Muito bem. O artigo comeou pela reflexo sobre o evolucionismo, passou

    pelas noes de instinto, inteligncia, cultura, tirou implicaes disso na

    esfera da relao entre massas e elites, desembocou na idia de democracia

    e... terminou? No! na verdade aonde Alceu queria chegar...

  • 27

    Ou ento, neste trecho, ao final da exposio do artigo:

    Esse artigo um exemplo da educao amorosiana, ou seja, de Educao

    no seu sentido pleno. Temos a uma bela ilustrao do que chamaramos

    viso global de um problema, unindo o que, primeira vista, parecia no ter

    relao nenhuma: eleies e evolucionismo!

    Essa empolgao expressa nas palavras utilizadas pelo autor da tese trouxe-nos, nas

    entrelinhas, sua afirmao que se eu fui educado por estas leituras, Alceu um educador.

    Esta leitura nos confirmou o indcio, que as outras teses tambm apresentavam, de que a

    construo da figura de um educador e a manuteno de seu lugar pela historiografia so

    intimamente atreladas designao do historiador, pois o lugar do sujeito no existe num

    vazio, numa neutralidade, ele dado pelo historiador ao relacionar os personagens entre eles a

    partir do papel que exerceram em seu contexto.

    Se somos ns, os historiadores da educao, que designamos os educadores e seus

    lugares, pode nosso trabalho contribuir para repensar as designaes que Jan Hus recebe?

    Reconhecemos que Hus exerceu um papel de educador e nos propomos, inspirados nesse

    levantamento do tratamento dado aos educadores pelos trabalhos na rea de Histria da

    Educao, a design-lo como um educador. Propomo-nos a suprir essa ausncia

    historiogrfica a partir da anlise dos escritos hussitas40

    , mais especificamente suas cartas, e

    outras fontes, questionando que prticas teria realizado, que ideias teria defendido e quem

    teria sido educado por ambas. Antes de responder a esta questo, precisamos enfrentar o

    problema da sua possibilidade, isto , da distncia entre o historiador e as fontes na

    construo da narrativa histrica que nos propomos realizar.

    a. O problema da distncia na construo da narrativa histrica

    Das cartas que Jan Hus escreveu em sua vida, chegaram at ns cerca de uma centena,

    escritas no perodo de 1404 a 1415, com aproximadamente 80% delas escritas em latim e o

    restante em tcheco. Tivemos contato com trs edies de tradues dessa correspondncia 40

    A palavra hussita aqui utilizada pode ser interpretada de duas formas: um adjetivo referente a Hus ou um

    substantivo referente a seus seguidores, este ltimo, utilizado inicialmente de forma pejorativa. Neste trabalho,

    todas as vezes que escrevermos hussita, com letra minscula, seguimos a primeira interpretao. Para a segunda,

    escreveremos Hussitas, com letra maiscula. Para essa questo, ver SELTZER, Joel Daniel. Framing faith,

    forging a nation: czech vernacular historiography and the Bohemian Reformation, 1430-1530. 2005. 309 f. Tese

    (Doutor em Filosofia). Faculty of the Graduate School, Yale University, Yale, EUA, 2005, pp. 43-48. O autor

    defende o uso da palavra hussita no lugar de utraquista ou calixtino. A primeira refere-se comunho dupla

    (utraque), ou seja, com o po e com o vinho e a segunda, comunho com o clice (calix). A oferta do clice aos

    leigos era uma das prticas defendidas pelos reformadores tchecos. Mesmo no sendo utilizada pelos membros

    do grupo em questo, Hus no ter fundado nova doutrina (embora fora acusado de heresiarca) e ser de uso

    pejorativo poca, a palavra hussita melhor, para Seltzer, em virtude da utilizao na historiografia americana

    e da restrio da abrangncia das outras duas.

  • 28

    para o ingls, cada uma apoiada numa edio tcheca diferente. Antes de iniciarmos nossos

    estudos de lngua tcheca (no ano de 2008), toda a leitura que dispnhamos da lngua e cultura

    na Bomia dava-se por intermdio da lngua inglesa. E, mesmo durante muitos meses de

    estudo da lngua tcheca, nossas tradues das palavras tchecas foram intermediadas por

    aquela lngua. Foi somente aps quase dois anos de estudo do idioma de Hus, durante a

    traduo de alguns termos, que sentimos a necessidade de problematizar a distncia

    lingustica e temporal que nos separam de suas cartas.41

    Precisvamos de referenciais tericos

    que nos ajudassem a entender o papel dessa distncia na compreenso de nosso objeto de

    estudo.

    Encontramos na obra de Ginzburg42

    os principais elementos que subsidiam essa

    reflexo. Ele prope a construo de uma narrativa histrica que articule elementos em

    pequena escala com outros mais gerais, num movimento contnuo entre o macro e o micro.

    Mas esse movimento no tem por objetivo melhor compreender ou at mesmo validar a

    narrativa macro-histrica. Ele se faz necessrio visto que a descontinuidade da realidade

    impede sua compreenso completa. Nem uma micro-histria nem uma macro-histria do

    conta de explicar a realidade. E como estas duas narraes esto em lugares diferentes, elas

    no formam um continuum, mas uma sequncia de novas perguntas em nveis heterogneos.

    o que explica o historiador italiano, citando o terico do cinema Siegfried Kracauer:

    Segundo Kracauer, a melhor soluo a seguida por Marc Bloch em La

    societ fodale [A sociedade feudal]: um contnuo vaivm entre micro e

    41

    No j citado trabalho de OBERG, nica tese em lngua portuguesa que encontramos sobre Jan Hus, afirma-se,

    na pgina 14: Reconhecemos, constrangidos, a observao que D. Paul de Vooght nos fez numa das suas cartas, de que impossvel fazer-se um trabalho sobre Huss sem conhecer a lngua tcheca mas, estando ela

    completamente fora do nosso alcance, tivemos que louvar-nos nas referncias e tradues que encontramos

    esparsas por autores vrios. Foi a partir desta afirmao, reforada pelo prprio Sr. Renato em conversa pessoal, que fomos atrs do estudo da lngua materna de Hus.

    42 Carlo Ginzburg um historiador italiano, que nasceu na cidade de Turim em 1939. Foi professor da

    Universidade da Califrnia e hoje leciona na Scuola Normale Superiore de Pisa. De sua vasta obra, oito livros

    foram traduzidos para o portugus e editados pela Companhia das Letras. Trs deles so estudos monogrficos e

    constituem algumas das primeiras obras do autor, a saber, Os andarilhos do bem (edio italiana: 1966/edio brasileira: 1988), O queijo e os vermes (1976/1987) e Histria noturna (1989/1991). Os outros so coletneas de ensaios, gnero que caracterizou sua produo histrica nas ltimas dcadas, a saber, O fio e os rastros (2006/2007), Nenhuma ilha uma ilha (2002/2004), Olhos de Madeira (1998/2001), Relaes de Fora (2000/2002), e Mitos, emblemas e sinais (1986/1989). Fizemos uma anlise da insero da obra de Ginzburg na histria da educao. Ver LEONARDI, Paula; BALASSIANO, Ana Luiza Grillo; AGUIAR,

    Thiago Borges de. Uma leitura da insero da obra de Carlo Ginzburg em peridicos brasileiros de histria da

    educao. In: IX Congresso Iberoamericano de Histria da Educao Latino-americana, 2009, Universidade do

    Estado do Rio de Janeiro. Anais do IX Congresso Iberoamericano de Histria da Educao Latino-

    Americana: Educao, Autonomia e Identidades na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2009.

    Nessa anlise, percebemos que da obra do historiador italiano so utilizados quase que exclusivamente os livros

    O queijo e os vermes e Mitos, emblemas e sinais e, na maioria dos casos, em referncias pontuais e sem grande

    discusso terica a respeito delas.

  • 29

    macro-histria, entre close-ups e planos gerais ou grandes planos gerais

    [extreme long shots], a pr continuamente em discusso a viso conjunta do

    processo histrico por meio de excees aparentes e causas de breve

    perodo. Essa receita metodolgica desembocava numa afirmao da

    natureza decididamente ontolgica: a realidade fundamentalmente

    descontnua e heterognea. Portanto, nenhuma concluso alcanada a

    propsito de um determinado mbito pode ser transferida automaticamente

    para um mbito mais geral ( o que Kracauaer chama de law of levels).43

    Essa soluo, para Ginzburg, a base do surgimento da micro-histria, movimento ao

    qual o historiador italiano associado. Mas sua compreenso de como se constri a narrativa

    histrica no pode ser resumida a um rtulo44

    , bem como suas contribuies para a histria da

    educao e, mais especificamente, para este trabalho, precisam de maiores explicaes.

    Iniciemos com sua proposta de um paradigma indicirio.

    Marco da obra de Ginzburg, o paradigma indicirio consiste numa produo do

    conhecimento histrico que parte de elementos normalmente negligenciveis ordinariamente

    despercebidos e que no costumamos olhar com ateno. As bases esto apresentadas num

    ensaio publicado na dcada de oitenta45

    , mas s se tornaram claramente presentes em seu

    trabalho vinte anos depois:

    H vinte anos, num ensaio intitulado Sinais, lancei uma hiptese, obviamente

    indemonstrvel, sobre a origem da narrao que suscitou o interesse de alguns

    tericos da literatura (...). A prpria ideia de narrao conjecturava eu talvez

    tivesse nascido numa sociedade de caadores, a fim de se transmitir por traos

    infinitesimais um evento que no se podia testemunhar diretamente: Algum passou

    por ali. Com esse modelo venatrio (ou, se projetado no futuro, divinatrio), que

    defini como paradigma indicirio, eu tentava conferir sentido a meu modo de

    pesquisa, inserindo-a numa perspectiva histrica longussima e mesmo plurimilenar.46

    Sua investigao, a princpio, possua prticas que o autor julgava intuitivamente

    corretas e s possuam sentido pela conjectura do nascimento da narrao nas prticas dos

    caadores. E a histria busca reconstruir a verdade por meio de uma narrao. Esta, porm,

    43

    GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.

    269.

    44 V. LIMA, Henrique Espada. A micro-histria italiana: escalas, indcios e singularidades. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 2006, especialmente nas pginas 11 e 15.

    45 GINZBURG, Sinais: razes de um paradigma indicirio. In: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    46 GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha uma ilha: quatro vises da literatura inglesa. So Paulo: Companhia das

    Letras, 2004, pp. 13-14.

  • 30

    ocorre a partir de perguntas feitas s avessas, utilizando recursos para que a subjetividade do

    observador e do observado seja problematizada:

    Retorno quele ensaio, que desde ento tem continuado a alimentar

    subterraneamente o meu trabalho, porque a hiptese sobre a origem da

    narrao ali formulada tambm pode lanar luz sobre as narrativas histricas

    voltadas, ao contrrio das outras, para a busca da verdade, e contudo

    modeladas, em cada uma de suas fases, por perguntas e respostas elaboradas

    de forma narrativa. Ler a realidade s avessas, partindo de sua opacidade,

    para no permanecer prisioneiro dos esquemas da inteligncia: essa ideia,

    cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pesquisa que inspirou tambm

    estas pginas. 47

    O paradigma indicirio, que perpassa a obra de Ginzburg, tem por caracterstica que o

    observador, a partir de dados aparentemente negligenciveis, disponha-os para fazer emergir

    uma narrativa. Ao apontar para esse paradigma, que parte de rastros para reconstruir o fio da

    narrao, o historiador italiano no o toma como excludente de uma histria geral. Esse

    paradigma no serve para defender uma histria que se restrinja a contar episdios. o que

    afirma neste trecho:

    Se as pretenses de conhecimento sistemtico mostram-se cada vez mais

    como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada.

    Pelo contrrio: a existncia de uma profunda conexo que explica os

    fenmenos superficiais reforada no prprio momento em que se afirma

    que um conhecimento direto de tal conexo no possvel. Se a realidade

    opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indcios que permitem decifr-

    la. 48

    Esse deciframento requer um trabalho de rigor flexvel, que utiliza tanto a rigidez da

    tcnica quanto a fluidez da intuio. nesse sentido que sua produo de ensaios parte de

    elementos surgidos ao acaso e interpretados com a premissa da ignorncia do

    pesquisador:

    Na origem, h sempre um achado proveniente das margens de investigaes

    inteiramente diversas. (...) Em cada circunstncia, tive a sbita sensao de

    ter encontrado alguma coisa, talvez at alguma coisa de relevante; ao mesmo

    tempo, tinha conscincia aguda de minha ignorncia. s vezes, uma resposta

    47

    ibidem, p. 14.

    48 GINZBURG. Mitos, emblemas e sinais, p. 177.

  • 31

    relampejava (...). Mas no sabia qual era a pergunta. Somente a pesquisa

    permitiu formul-la. 49

    Nesta descrio, Ginzburg demonstra como o paradigma indicirio norteia sua

    produo e apresenta dois elementos que se nos destacam como metodolgicos: a ocorrncia

    de sinais que se apresentam margem da investigao principal e a ignorncia como

    ponto de partida para a pesquisa.

    Quando levamos nossas perguntas e interpretaes leitura de nossos documentos, de

    nossos objetos de investigao, corremos o risco de ver apenas aquilo que j sabamos de

    antemo. No entanto, como impossvel deixarmos de lado nossa subjetividade ao

    pesquisarmos, o historiador italiano nos prope estarmos abertos aos indcios que s

    aparecem nas margens ou na opacidade da leitura s avessas. Nas suas palavras contemplar a

    realidade de um ponto de vista inslito e fazer perguntas oblquas realidade50

    Mas esse paradigma s fez sentido para ns a partir do conceito de estranhamento,

    explicado por Ginzburg. Este processo intencional de sada da percepo automtica

    discutido pelo historiador italiano em outro livro51

    . Partindo de uma reflexo sobre a obra de

    Marco Aurlio, Tolstoi e o crtico de arte Viktor Chklovski, afirma que Para ver as coisas

    devemos, primeiramente, olh-las como se no tivessem nenhum sentido: como se fossem

    uma adivinha.52 As famosas brincadeiras de o que , o que ?, presentes em diversas

    culturas, talvez em todas requerem do inquirido uma leitura das coisas na sua mais simples

    expresso, despida de elementos culturais que interfiram em sua apreenso. A chuva apenas

    algo que cai em p e corre deitado.

    Com a expresso despida de elementos culturais no afirmamos a possibilidade de

    estarmos totalmente isentos de cultura na leitura do mundo. Seguimos, apenas, com a

    proposta de Ginzburg, de que nosso contexto cultural/simblico parte integrante de nossa

    leitura e precisamos de instrumentos que nos permitam dialogar entre nosso contexto e o

    contexto de produo do documento com o qual interagimos. O processo de estranhamento

    o de rompimento com o bvio, nossos hbitos perceptivos. No trabalho dos historiadores,

    estranhar passa por no levar um quadro terico-explicativo pronto para a leitura dos

    documentos com os quais trabalha.

    49

    GINZBURG. Nenhuma ilha uma ilha, pp. 11-12.

    50 ibidem, pp. 41-42.

    51 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexes sobre a distncia. So Paulo: Companhia das Letras,

    2001.

    52 ibidem, p. 22 e pp. 23, 38 e 41 para as citaes seguintes.

  • 32

    Citando novamente as ideias de Marcel Proust, Ginzburg afirma que o estranhamento

    proteger o frescor das coisas contra a intruso das ideias. Nas palavras do escritor francs

    em vez de nos apresentar as coisas em sua ordem lgica, isto , comeando pela causa, nos

    mostra primeiro o efeito, a iluso que nos atrai. Com o olhar para a histria, Ginzburg afirma

    Parece-me que o estranhamento o antdoto eficaz contra um risco a que todos ns estamos

    expostos: o de banalizar a realidade (inclusive ns mesmos).

    O instante do no-reconhecimento abre para o olhar de estranhamento do

    espectador o caminho da iluminao cognoscitiva. No por acaso, observa

    Kracauer, que os grandes historiadores, de Tucdides a Namier, eram

    exilados: somente nesse estado de auto-anulao, ou nesse ser sem ptria,

    que o historiador pode entrar em comunho com o material que concerne

    sua pesquisa. [...] Estrangeiro em relao ao mundo evocado pelas fontes, ele

    deve enfrentar a misso misso tpica do exilado de penetrar as suas

    aparncias exteriores, de modo a poder aprender a compreender esse mundo

    de dentro.53

    Estranhar ter conscincia que o mundo todo nossa casa, o que no quer dizer que

    sejamos iguais, mas que todos nos sentimos estrangeiros em relao a alguma coisa e a

    algum54. com essa tomada de conscincia que convidamos a ns mesmos a estranhar mais

    e a buscar elementos que no esto bvios nas cartas hussitas. agir como a criana que,

    curiosa, sempre pergunta por que ou o nome das coisas.

    Estranhamento no consiste em encontrar a diferena entre aquele que l e o

    documento lido, mas no exerccio de distanciar-se de suas ideias anteriores durante a leitura.

    A distncia discutida por Ginzburg principalmente no livro Olhos de Madeira. Ao lermos

    esta obra, questionamo-nos: por que olhos de madeira como metfora para a distncia?

    Encontramos uma resposta na epgrafe: Grandes olhos de madeira, por que olham para

    mim?, retirada das aventuras de Pinquio, do escritor italiano Carlo Collodi, publicadas

    originalmente em um jornal infantil entre os anos 1881 e 1883.

    Pinquio uma marionete de madeira feita por um carpinteiro chamado Gepeto. No

    terceiro captulo, o criador comea a dar forma criatura. O carpinteiro inicialmente escolhe o

    nome Pinocchio (que significa olhos de pinha):

    Assim que encontrou o nome para seu boneco, comeou a trabalhar com

    afinco, e logo fez os cabelos, depois a testa, depois os olhos.

    53

    GINZBURG. O fio e os rastros, p. 238.

    54 GINZBURG. Olhos de madeira, p. 11

  • 33

    Feito os olhos, imaginem a surpresa quando percebeu que eles se mexiam e

    o fitavam obstinadamente.

    Gepeto ficou quase chateado vendo aqueles dois olhos de madeira que o

    observavam, e disse num tom ressentido:

    Olhes feios de madeira, por que esto olhando para mim?

    Ningum respondeu.55

    Em seguida, Gepeto faz o nariz, que comea a crescer e no para, mesmo quando

    cortado. Fez, ento, a boca que comeou a rir e as outras partes do corpo. Quando terminou a

    primeira mo, o boneco j agarrou sua peruca. E quanto mais terminava o boneco, mais

    maroto este ficava e mais se chateava Gepeto. O boneco fugiu para a rua e, numa confuso,

    o carpinteiro foi preso e Pinquio saiu para viver aventuras. O que aconteceu depois uma

    histria que nem d para acreditar, e vou cont-la a vocs nestes outros captulos., conclui o

    autor.56

    Havia um estranhamento mtuo entre Gepeto e Pinocchio, a distncia entre o criador e

    a criatura, entre o ser humano e o boneco de madeira. No entanto, quanto mais Pinocchio se

    assemelhava a um ser humano, mais ele se movimentava como um. O boneco tornava-se

    familiar, semelhante.

    Essa histria ensina-nos o quanto estranho no o mesmo que diferente, mas o

    oposto de bvio, automtico. Gepeto no estranha o fato do boneco se movimentar. Mas

    Pinocchio estranha a si mesmo como um boneco, querendo ser um menino de verdade. Foi o

    olhar do carpinteiro que fez da marionete de madeira um menino. A cena final da histria, na

    qual Pinocchio, transformado num menino de verdade, olha para a marionete que ele foi,

    mostra-nos que sua humanidade se construiu no momento no qual se distanciou do que era

    antes. Ginzburg nos traz, com a metfora dos olhos de madeira, o exerccio de distanciamento

    e aproximao na narrativa histrica.

    A distncia que nos separa dos fatos histricos que procuramos pesquisar,

    compreender e narrar intransponvel e implica noutra importante distncia: a da verdade.

    Sem entrar na questo da existncia da verdade como instncia ou essncia, Ginzburg

    apresenta-nos uma reflexo do papel da verdade na escrita da histria. Os historiadores

    querem encontr-la. Para explicar como a buscam, o historiador italiano prope uma

    55

    COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinquio. So Paulo: Iluminuras, 1899. Disponvel parcialmente em:

    . Acesso em: 15 nov. 2009, p. 17.

    56 ibidem, p. 21

  • 34

    comparao entre duas funes: a do juiz e a do historiador. Ambos utilizam provas em seus

    trabalhos, mas o estatuto destas provas diferente em cada um:

    Para o primeiro [o juiz], a margem de incerteza tem um significado

    puramente negativo e pode desembocar num non liquet em termos

    modernos, numa absolvio por falta de provas. Para o segundo [o

    historiador], ela deflagra um aprofundamento da investigao, que liga o

    caso especfico ao contexto, entendido aqui como um lugar de possibilidades

    historicamente determinadas.57

    A distncia entre o historiador e a verdade absoluta do fato histrico justamente

    seu espao do trabalho. A interpretao verossmil aponta para sua possibilidade e oferece

    recursos para compreender a realidade estudada. por isso que, para Ginzburg, a histria e a

    narrativa voltam a fazer as pazes: h um espao para a emergncia de possibilidades, sem que

    elas deixem de ser histricas:

    Termos como fico ou possibilidade no devem induzir a erro. A

    questo da prova permanece mais do que nunca no cerne da pesquisa

    histrica, mas seu estatuto inevitavelmente modificado no momento em

    que so enfrentados temas diferentes em relao ao passado, com a ajuda da

    documentao que tambm diferente. (p. 334)

    aqui que podemos pensar na abertura para uma reflexo sobre a histria da

    educao. Que documentao e que leitura permitem compreender a figura de um educador

    que viveu no sculo XV? Estamos sempre distantes de nosso objeto de investigao

    histrica. Esse objeto est, por princpio, num tempo cronolgico diferente e anterior ao

    atual. Como ns pensamos no presente, nosso pensar sempre um processo de olhar o

    passado a partir dos olhos do presente. Essa distncia faz com que nossa leitura do fato

    histrico que estudamos seja mope: no conseguimos enxergar claramente e precisamos de

    nossos conhecimentos sobre o que observamos para completar o que vemos.

    Assim, a distncia temporal est condicionada por uma distncia que aqui

    denominaremos cultural, que engloba elementos como a lngua, as experincias e as

    concepes de quem observa e de quem observado. Nossa distncia das cartas de Hus

    muito maior do que a distncia que temos, por exemplo, da produo cultural portuguesa do

    mesmo perodo. Se lssemos um documento desconhecido produzido em Portugal no incio

    do sculo XV, teramos muito mais saberes prvios a respeito de como ler esse documento do

    que temos das cartas de Hus. Para quem l este trabalho que ora apresentamos e nunca ou

    57

    GINZBURG. O fio e os rastros, pp. 315-316.

  • 35

    pouco ouviu falar sobre esse clrigo da Bomia e sobre a cultura tcheca, com certeza est

    tentando encontrar algum elemento em sua prpria histria que lhe permita compreender o

    que escrevemos. E justamente a que est um dos maiores desafios na escrita da Histria.

    Para reconhecer, luz de Ginzburg, a figura de um educador num espao-tempo58

    to

    distante cronolgica e culturalmente situado, propomos encontrar nos documentos que

    utilizamos como fonte primria, a correspondncia hussita, indcios da sua ao como

    educador. Se Hus foi um educador e utilizou das cartas para desempenhar sua ao educativa,

    deve haver rastros de sua inteno nesses documentos. Talvez haja zonas privilegiadas que

    foram pouco ou nada destacados por seus bigrafos ou pela historiografia, que nos permitam

    observar essa inteno. Elementos como o fato de algumas cartas serem escritas em tcheco e

    outras em latim, o uso de seu nome como uma metfora e at mesmo o uso de um vocativo no

    diminutivo. O educador pelas cartas pode saltar aos olhos na medida em que reunimos um

    conjunto de sinais espalhados pelos documentos.

    Do mesmo modo, na observao dos comentrios dos editores e bigrafos de Hus, das

    falas de historiadores tchecos ou de textos de divulgao histrica ou religiosa, relacionando-

    os ao espao-tempo no qual foram produzidos, podemos encontrar algo ausente na

    historiografia da educao do perodo. Podemos reconstruir o legado educativo hussita e o

    reconhecimento dos educandos da figura educadora de seu mestre. como se a distncia,

    neste caso, tivesse se tornado o prprio objeto de estudo.

    No incio do processo, perguntvamo-nos como encontraramos o Hus educador.

    Lamos as cartas e nada nos saltava vista. Estvamos mopes sem dar conta disso. Mas

    alguns corpos estranhos incomodavam nosso olhar. Tentvamos ler cartas do sculo XV

    com o olhar do sculo XXI. Precisvamos de uma nova lente: entender o que significava

    escrever cartas naquele perodo. a partir deste ponto que iniciamos a argumentao desta

    tese, apresentando no primeiro captulo um estudo da escrita de cartas no sculo XV,

    caracterizando a constituio de nosso corpus documental, levantando questes a respeito de

    como podemos l-lo para fomentar nossa pesquisa histrica. Em seguida, apresentamos os

    58

    O conceito de espao-tempo que utilizamos neste trabalho refere-se ao de GUSDORF, Georges. De lhistoire des sciences a lhistoire de la pense. Les sciences humaines et la pense occidentale, vol. I. Paris: Payot, 1966, captulo VI. Neste captulo, o autor discute a experincia cientfica como parte da experincia humana, negando

    a objetividade do conhecimento cientfico. Este produzido dentro de uma mentalidade do perodo, a qual o

    autor apresenta como o espao-tempo cultural de uma determinada poca. pgina 200, o autor utiliza essa

    expresso nos seguintes termos: L'experience scientifique n'a pas une existence indpendante; elle se constitue comme un aspect de l'experince humaine globale, telle qu'elle existe en un moment donn. La ralit

    fondamentale est celle de l'espace-temps culturel, qui exerce sa valeur rgulatrice sur le hommes d'une poque

    donne. Cet horizon global, ou plutt englobant, apparat comme l'horizon de tous le horizon, la perspective de

    tout perspectives. Il assure en dernier lieu la correspondance des significations et la coordination des vidences.

  • 36

    destinatrios das cartas de Hus, percebendo a rede de relaes na qual esse clrigo estava

    envolvido, pensando-a como um fator de entendimento do contedo dessa epistolografia.

    Conclumos o captulo refletindo a respeito de por que Hus escreveu cartas, organizando

    essas cartas em uma classificao baseada na necessidade da escrita.

    O segundo captulo consiste num estudo sobre a correspondncia hussita, em busca da

    construo do educador pelas cartas. Partindo da classificao que elaboramos no primeiro

    captulo, selecionamos as cartas que definimos como pastorais, resgatando suas caractersticas

    e os indcios que apontam para a ao educativa de Hus. Conclumos com uma anlise

    aprofundada de duas cartas pessoais escritas para seu discpulo, Martin de Volyn. Estas

    ltimas oferecem material para outro olhar sobre o educador numa relao de maior

    proximidade e vnculo com um educando especfico.

    No terceiro captulo, propomos um estudo da histria das edies e tradues das

    cartas de Hus, em busca da construo do educador por seu legado. Partimos de como Hus

    estabeleceu as bases de seu legado nas cartas. Seguimos para uma descrio de seu legado

    educativo a partir da defesa da verdade na correspondncia hussita e de seus comentadores.

    Entramos na reconstruo da histria das edies e tradues em relao aos espaos-tempos

    nos quais elas se inserem. Conclumos dialogando com um conjunto de produes artsticas,

    literrias e histricas a respeito do clrigo, construdas ao longo dos ltimos sculos at a

    atualidade, que reiteram esse legado.

    Dos diversos olhares possveis para as cartas de Jan Hus partimos de um, aquele que

    construmos com as bases terico-metodolgicas que sustentam este trabalho. Desse olhar,

    encaminhamos duas discusses: o educador a partir da sua ao educativa, observando as

    cartas pastorais e as cartas ao discpulo Martin de Volyn, e o educador a partir do

    reconhecimento de seu legado, observando as edies das cartas e o impacto delas na cultura

    tcheca. Esses dois caminhos se encontram na reflexo sobre o carter designativo da histria

    da educao, comparando as concluses das duas discusses anteriores com a educao do

    perodo, concluindo com a figura de Hus como um educador do sculo XV. Ao final desta

    tese, teremos designado Hus como um educador e nos voltaremos para a Histria da Educao

    para entender o lugar que esse clrigo nela ocupa. Na busca por um sujeito educador do

    sculo XV encontraremos, tambm, o prprio historiador perante a rea que investiga.

  • 37

    Captulo 1. As cartas de Jan Hus

    Este captulo consiste num exerccio de compreenso das caractersticas das cartas de

    Hus escritas no sculo XV e suas potencialidades de uso como fontes para um estudo da

    figura de um educador. Responderemos pergunta quantas so as cartas de Hus e como

    esto organizadas?, iniciando com a constituio de nosso corpus documental,

    caracterizando as edies das cartas de Hus e refletindo a respeito do processo de traduo

    dessas cartas para o portugus que empreendemos.

    Conhecendo a organizao dessas cartas, precisamos saber de que maneira podemos

    l-las. o que faremos em seguida, discutindo a escrita de cartas do sculo XV e analisando

    os limites e os desafios desse tipo de documento. Partiremos, ento, para um mapeamento

    dos destinatrios das cartas hussitas, observando o modo como suas cartas exprimem a

    constituio da rede de relaes em que estava inserido. A partir dessa rede, poderemos

    levantar indcios da localizao da figura de Hus em seu espao-tempo e dos assuntos que o

    preocupavam ento.

    Feito isso, teremos informaes que nos permitem lermos e entendermos em linhas

    gerais as cartas hussitas. No entanto, no basta que possamos entend-las. Precisamos, como

    prope Ginzburg, de um olhar que parta do estranhamento do bvio. Por isso, perguntaremos

    por que Hus escreveu cartas? A resposta a esta pergunta permite que estabeleamos

    categorias de anlise que favorecem uma leitura diferente da cronolgica, como as cartas

    hussitas so normalmente apresentadas. Essas categorias so baseadas na necessidade da

    escrita pelo seu autor e com elas que concluiremos este captulo, preparando o terreno para a

    construo do educador pelas cartas.

    1.1. Constituio do corpus documental

    A correspondncia de Jan Hus que chegou at ns abrange pouco mais de uma dcada

    de sua vida, de 1404 at 1415. As primeiras dentre as cartas que dispomos foram escritas na

    poca em que Hus, com pouco mais de trinta anos de idade, j era professor da Universidade

    de Praga, onde estudava Teologia, e proco da Capela de Belm. As ltimas foram escritas s

    vsperas de sua execuo.

    Mais da metade das cartas (as ltimas 65 de um total 102) concentra-se nos dois

    ltimos anos de vida de Hus, abrangendo sua viagem at Constana, no final de 1414 e sua

    priso e morte em 1415.

  • 38

    Parte de sua correspondncia foi guardada a seu pedido por Petr de Mladoovice,

    secretrio de seu amigo nobre Jan de Chlum. Ambos estiveram prximos a Hus durante o

    perodo no qual esteve preso e so destinatrios frequentes das cartas. tambm de Petr de

    Mladoovice o documento mais utilizado para retratar o julgamento de Hus, intitulado

    Relatio59

    , no qual ele narra todos os eventos que acompanhou ao lado do clrigo, desde sua

    viagem at os momentos seguintes execuo.

    As cartas de Hus foram publicadas diversas vezes ao longo dos sculos seguintes sua

    execuo. Uma primeira edio foi feita pelo reformador Martinho Lutero, em 1536, na

    cidade de Wittemberg. 60

    Por ocasio da convocao do papa Paulo III para o Conclio de

    Trento, que ocorreu apenas em 1542, ele traduziu quatro cartas de Hus para o latim e as

    apresentou junto com outros documentos da poca do Conclio de Constana.

    No ano de 1537, Lutero pub