JANETE DA SILVA LOPES - tede2.pucsp.br da Silva Lopes.pdf · Página’|’4’ ’ AGRADECIMENTOS...
Transcript of JANETE DA SILVA LOPES - tede2.pucsp.br da Silva Lopes.pdf · Página’|’4’ ’ AGRADECIMENTOS...
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – S.P
JANETE DA SILVA LOPES
Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2014
Página | 2
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – S.P
JANETE DA SILVA LOPES
Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2014
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciência Sociais sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Helena Villas Boas Concone.
Página | 3
Dedico este trabalho à vida, que refaz teu ciclo em meu ventre irradiando amor e energia.
Banca Examinadora –
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
Página | 4
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus familiares, pais, irmãos e cunhados que, mesmo sem entender minhas escolhas,
me apoiaram e partilharam meus desejos me encorajando a realizá-los. De maneira muito especial
agradeço meu marido Márcio, por todo o amor, paciência e solidariedade que a mim dispensou neste
momento.
À minha grande paixão, o pequeno Arthur, um pedido de desculpas pelos momentos não vividos em
detrimento da escassez de tempo para estarmos juntos.
Sou grata à Professora Maria Helena Villas Boas Concone pela atenção e paixão com que orientou
este estudo e pela paciência e lucidez com que sempre acolheu minhas angústias e inseguranças.
Encontrá-la foi o acontecimento mais importante desta trajetória. Outros bons encontros tive com
professores e colegas da PUC – S.P a quem registro minha gratidão.
Partilhar a vida de cada um dos colaboradores desta pesquisa e poder publicizar histórias de luta e de
resistência foi o maior presente da pesquisa. Seu Adelino (em memória); Seu Abel; Seu Antonio; Seu
Cipriano, Seu Irine e Dona Tereza, às Marias da Vila Dignidade – Maria Aparecida, Maria Rosa e
Maria Carvalho; à Dona Zélia, Dona Geni e aos demais moradores meu Muito Obrigada pela acolhida
e pela sinceridade com que compartilharam suas intimidades abrindo suas vidas e possibilitando essa
troca tão valiosa para a construção de novos saberes. Devo um agradecimento especial a Elisabeth do
Rocio Minaif Santos, coordenadora da Proteção Especial do Município de Itapeva, pela atenção e
confiança com que nos recebeu facilitando nossa inserção em campo.
Agradeço à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, lugar que primeiro me propiciou o contato
com o tema do envelhecimento. À Áurea Soares Barroso que sempre instigou meu desejo de
investigação e aprofundamento sobre as questões que envolvem o envelhecer. Não posso deixar de
agradecer aos colegas da equipe de Proteção Social Especial: Ângela, Angélica, Luciana, Nazira, Ana
Paula, pela compreensão sempre que precisei sobrecarregá-las com minhas ausências, em especial ao
meu coordenador Edson Pelagallo, e às colegas Fátima Nassif e Juliana Santos que me ajudaram na
transcrição das entrevista.
Aos Programas de Pós Graduação em Ciências Sociais e Gerontologia da PUC-SP pelos momentos de
conscientização e reflexão e às professoras Elisabeth Mercadante e Flamínia Manzano Ludovici pelas
valiosas contribuições na qualificação deste trabalho.
Aos amigos de todas as horas: Luciana Ramin e Gabriel Netto pelo amor com que sempre me
receberam todas as vezes que precisei ficar em São Paulo, pelas valiosas conversas e contribuições
para esta pesquisa.
A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) registro minha gratidão
por financiar esta pesquisa tornando possível um sonho.
Página | 5
Havia, na minha rua, uma casa pequena e branca. Durante dias, lá não vivia ninguém. Mas se a lua era cheia, a janela se abria como um livro. Um homem, com rosto de anjo, vestido de luar, debruçava na janela e pensava, em sossego sobre a cidade. Mais calado que o silêncio, o homem olhava e mais nos olhava. Todos da cidade tinham cuidado para não quebrar o seu silêncio. Ninguém soprava uma palavra.
Cochichavam que ele esperava os habitantes dormirem. Na noite alta, ele saía para visitar o sono de cada um. Entrava mansinho, mais leve que o gato, doce como o sereno, suave como o perfume, e virava um sonho diferente para cada uma das pessoas. Naquela noite, todos dormiriam com um breve sorriso na boca.
O prefeito sonhava em ser governador; o padre, em ser bispo; a professora, em ser diretora; o deputado, em ser senador; o soldado em ser tenente; a solteira, em ser casada; o padeiro, em ser engenheiro; a criança, em ser grande; o sem-teto, em ter casa. Todos queriam outra coisa. E para tudo precisava tempo. No dia seguinte, todos acordavam como eram antes e com vontade de continuar sonhando.
Bartolomeu Campos Queirós: 2011.
Página | 6
LOPES, Janete da Silva. Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos
RESUMO
A Casa carrega diversos signos e significados que permeiam nosso imaginário e sobre os
quais temos pouca consciência. Reproduzida e naturalizada em nossa cultura toda a riqueza
simbólica deste lugar é destituída dos sujeitos institucionalizados. As indagações deste
trabalho referem-se a como inventamos socialmente este espaço denominado Casa e qual a
sua importância para os sujeitos que envelhecem. A partir da política de assistência social
levantamos as questões: o que essa política pública pode ofertar às pessoas idosas como
formas de acolhimento? e, Como superar a histórica e excludente institucionalização da
velhice possibilitando formas alternativas de moradia/acolhimento para idosos? Nossa
hipótese é a de que as instituições podem ofertar melhores condições de vida se cultivarem as
características deste lugar ancestral que é a Casa. Assim, o exercício antropológico proposto
neste trabalho utilizou a História Oral como método de pesquisa. Mergulhando no conceito de
colaboração, propusemos um trabalho participante onde sujeitos ativos – entrevistados e
entrevistador – se uniram com o propósito de produzir um resultado que demanda conivência
(Meihy & Ribeiro: 2011). Nossos colaboradores são pessoas, entre 61 e 86 anos de idade, que
vivem no Programa Vila Dignidade implantado no município de Itapeva, interior de São
Paulo. Elas narraram suas histórias tendo como tema central a Casa. A pesquisa evidenciou a
necessidade de ampliarmos os conceitos e as caracterizações para a concepção de novos
modelos de acolhimento institucional considerando-os o local privilegiado das relações, do
convívio e da transmissão dos valores socioculturais, a Casa por excelência. Olhando mais
atentamente para o Programa Vila Dignidade alguns obstáculos se apresentaram à sua
consolidação como politica pública. O primeiro deles se refere à confusão e estranhamento
gerado e perpetuado pelos profissionais da assistência social que, por vezes, o reduz apenas à
política de habitação, negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social.
O segundo refere-se às amarrações entre estas politicas: foram mal tecidas, não criaram
consensos entre seus operadores, não fomentaram a consolidação de um serviço
socioassistencial para ser ofertado neste Programa, e tão pouco, previram a destinação de
recursos estaduais para o custeio das ações a serem desenvolvidas, onerando financeiramente
os municípios contemplados. Apesar das limitações apresentadas, o trabalho realizado revelou
a importância de propostas como esta na construção de novas possibilidades de morar na
velhice.
Palavras chave: Casa, Velhice, História Oral, Memória e Politicas Públicas.
Página | 7
LOPES, Janete da Silva. Place of getting older. Elder Narratives
ABSTRACT
The House (Casa) has several signs and meanings that pervade our imaginary upon which we
have little conscience.
Naturalized and reproduced in our culture, all the symbolic richness from this place is devoid
of institutionalized persons. This work’s inquiries refer to how we socially devise this place
denominated House (Casa) and which is its importance for the elderly people.
Starting from social care policies we raise the following issues: what this public policies can
offer to elder people in terms of reception? And how to overcome the historic and excluding
institutionalization of old-aging, enabling alternative ways of housing and reception for elder
people? Our hypothesis is that institutions can offer better life conditions cultivating the
characteristics of this ancient place which is the House. This way, the anthropologic exercise
proposed by this work used Oral History as its main research method. Diving into the
collaboration method, we proposed an involving concept where active subjects -interviewees
and interviewer- join together aiming to produce a result that demands connivance (Meihy &
Ribeiro: 2011). Our collaborators are people between 61 and 86 years old living on the
“Programa Vila Dignidade” (Dignity Village Program) implemented on the Itapeva
municipality, interior of São Paulo state. They reported their stories being the House the key
issue. The research highlighted the necessity of extending the concepts and characterizations
for the conception of new models of institutional reception, being these considerated as a
privileged place for relationship, companionship and transmission of sociocultural values; the
House par excellence. Looking closer to the Programa Vila Dignidade some obstacles
appeared on its consolidation as a public policy. The first one of them refers to the confusion
and strangeness generated and perpetuated by the social care professionals that sometimes
reduce it to housing policy refusing possible interfaces with social care policies. The second
one refers to closed connections made between this policies: they were badly joint without
consensus between its operators, without any foster of a consolidation for a socio-assistencial
service to be offered in this Program, neither was previewed the destination of state resources
for the financing costs of the actions to be developed, financially burdening the related
municipalities. Despite the mentioned limitations, the work carried out revealed the
importance of proposals as this one for the construction of new possibilities of old-age living.
Key words: House, old-age, oral history, memory and public policies
Página | 8
Sumário Introdução ........................................................................................................................ 11
Capitulo I: A estrada que leva à Casa: caminhos metodológicos ........................................ 16 1.1 Nas trilhas do conhecimento: o pesquisador na História dos outros ..................................... 17
1.1.1 A História Oral na Pesquisa Antropológica .......................................................................... 19 1.2 O Programa Vila Dignidade .................................................................................................. 30 1.3 O Trabalho de Campo ........................................................................................................... 34
1.3.1 Antecedentes do Trabalho de Campo .................................................................................. 34 1.3.2 Apresentando nosso campo: a Vila Dignidade de Itapeva ................................................... 36 1.3.3 Conhecendo nossos Colaboradores ..................................................................................... 39
Capitulo II: Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de idosos .................... 46 Dona Maria Aparecida Duffet .................................................................................................... 47 Seu Adelino Rocha ..................................................................................................................... 63 Seu Antonio de Paula Galvão ..................................................................................................... 80 Dona Geni de Oliveira Lima ........................................................................................................ 89 Seu Irineu Fonseca ..................................................................................................................... 96 Seu Abel Paulino dos Santos .................................................................................................... 105 Dona Zélia Aires dos Santos ..................................................................................................... 112 Dona Maria Teresa da Rosa ..................................................................................................... 116
Capitulo III: A Casa é onde quero estar: Lugar, Memória e Velhice .................................. 130 3.1 Saberes que se entrelaçam arquitetando as percepções da Casa ........................................ 130 3.2 Tecendo narrativas de idosos ............................................................................................. 136
3.2.1 Possibilidades de morar edificadas pelo Trabalho ............................................................. 136 3.2.2 As seguranças do morar: a vida após a inclusão no Programa Vila Dignidade .................. 145 3.2.3 A Casa é onde quero estar ................................................................................................. 155
3.3 Estado e Proteção Social: Breves considerações ................................................................. 161 3.3.1 A proteção à velhice na politica de assistência social ........................................................ 168
Considerações Finais ....................................................................................................... 175
Referências Bibliográficas ............................................................................................... 180
Página | 9
LISTA DE SIGLAS
ABA: Associação Brasileira de Antropologia
AVDs: Atividades de Vida Diária;
BPC: Beneficio de Prestação Continuada
CCI: Centro de Convivência para Idosos
CDHU: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano;
CRAS: Centro de Referência da Assistência Social;
CREAS: Centro de Referência Especializado da Assistência Social;
DRADS: Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social;
FEBEM: Fundação para o bem estar do menor;
FUNDAÇÃO CASA: Centro de Atendimento Socioeducativo ao adolescente;
ILPI: Instituição de Longa Permanência para Idosos;
IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;
MDS: Ministério do Desenvolvimento Social;
NOB: Norma Operacional Básica
OAB: Ordem dos Advogados do Brasil;
PNAS: Política Nacional de Assistência Social;
PNI: Politica Nacional do Idoso;
PSB: Proteção Social Básica;
PSE: Proteção Social Especial;
SEDS: Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social;
SH: Secretaria de Habitação;
SUAS: Sistema Único de Assistência Social;
SUS: Sistema Único de Saúde;
UBS: Unidade Básica de Saúde;
UPA: Unidade de Pronto Atendimento
Página | 10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Condomínio Vila Dignidade Itapeva...................................................... 37
Figura 2: Projeto Arquitetônico - Vila Dignidade – Itapeva – S.P ........................ 38
Figura 3: Entrada das Residências.......................................................................... 39
Figura 4: Moradores da Vila Dignidade – Itapeva – S.P . .................................... 40
Figura 5: Alguns de nossos colaboradores.............................................................. 46
Figura 6: Rede Socioassistencial – Proteção ao Idoso........................................... 171
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Identificação de nossos colaboradores ................................................. 41
Página | 11
Introdução
Esta dissertação surge do desejo, forte e involuntário, que corre na veia e se apodera
das pessoas que não concebem teoria sem pratica e vice-versa. Sua gestação foi intensamente
marcada por esse desejo que em mim germinava inconsciente, desde a inclusão no mercado
de trabalho (2006).
O primeiro emprego foi na pratica, ou seja, na atenção direta ao usuário da política
pública. A chamada “atuação na ponta” teve como foco os adolescentes que cumpriam
medida socioeducativa na FEBEM, hoje Fundação CASA. Na “linha de frente” sentia na pele
todas as tensões e discrepâncias entre a formulação e a efetivação da política pública, pois
atuava no penhasco que separa as idéias do fazer.
Da “ponta” migrei, no final de 2008, para o “gabinete” da Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Social– SEDS. Essa mudança de lugar representava sair da pratica para a
teoria ou, simbolicamente, da periferia para o centro – na gestão da política pública.
Este novo lugar me possibilitaria viver a coisa pública por outros ângulos e
representava não só a mudança de lado, mas a possibilidade de teorizar com os pés no chão, e
problematizar a histórica separação entre teoria e pratica. A consciência de que “na ponta”
estão profissionais ansiosos por apoio e respaldo teórico seria o mote para pensar e propor
processos mais colaborativos de construção das políticas públicas.
Chegando à nova Secretaria fui alocada no Plano Estadual para a Pessoa Idosa –
Futuridade, recém-lançado pelo governador do Estado. Seu propósito era articular as diversas
secretarias para a construção de políticas públicas direcionadas à população idosa. O
fomentador desta rede seria a SEDS onde o Plano foi constituído.
Desde o primeiro contato com o tema do envelhecimento me interessaram as questões
que se referem ao morar na velhice. Interesse que tem sua origem nas semelhanças, que
enxergo com tanta nitidez, entre uma unidade de internação (para adolescentes que praticaram
atos infracionais), hoje denominada Centro de Atendimento Socioeducativo, e uma Instituição
de Longa Permanência para Idoso, os antigos asilos de velhos que após longa reestruturação
de suas práticas são rebatizados como ILPI’s – equipamentos públicos que ofertam serviço de
Proteção Especial de Alta Complexidade1 a idosos com ruptura ou fragilidade nos vínculos
afetivos e/ou com vivência de abandono ou maus tratos. Semelhanças que atormentam, me
afetando profundamente.
1 A Proteção Social Especial de Alta Complexidade garante proteção integral – moradia, alimentação,
Página | 12
Estas inquietações me levaram a estudar, no curso de especialização (2009-2011), a
institucionalização da velhice que, em sua essência, se move pelos mesmos preceitos que o
encarceramento da juventude pobre: surgimento de novas praticas de controle social após a
instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro.
Com o breve Trabalho de Conclusão de Curso encontrei algumas respostas para as
semelhanças que tanto me atormentam: é no contexto de urbanização das cidades brasileiras
que emerge a medicina social e se desenham as primeiras instituições totais2, lugar de
abrigamento dos diversos grupos de mendigos que perambulavam pelas ruas: doentes
psiquiátricos, crianças órfãs, inválidos, vadios e idosos (Groisman: In: Lopes: 2011).
Paralelo à especialização passei a acompanhar a implantação do Programa Vila
Dignidade em alguns municípios do Estado. Trata-se de uma das ações previstas no Plano
Futuridade, formulada pela Secretaria de Habitação e Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano – CDHU em parceria com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento
Social - SEDS.
A proposta deste Programa é oferecer aos municípios uma alternativa à
institucionalização de seus idosos. Assim, ao menos na teoria, não se reduz à oferta de
moradia, pois não se encerra na política habitacional, pretende, através da parceria com a
SEDS, garantir proteção aos idosos em suas diversas vulnerabilidades3.
Para viabilizar a acessibilidade, nos espaços internos e externos, a proposta
arquitetônica foi concebida a partir do Desenho Universal4. Já o suporte social, que deve
assegurar a proteção integral dos idosos atendidos, se dá pela articulação da política de
assistência social junto às demais políticas públicas no âmbito do município.
Este conjunto de ações, quando bem operadas, possibilitaria, às pessoas idosas, outra
possibilidade de morar além das instituições de longa permanência.
2 Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos, com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo. Perspectiva. 1974; p.p 11. 3 As vulnerabilidades que devem ser consideradas não se referem apenas às sociais - decorrentes de riscos que expõem as pessoas à insegurança seja pela escassez de renda, incapacidade de prover o mínimo das necessidades humanas (alimentação, vestuário e abrigo) ou ruptura dos vínculos familiares – mas também no campo da saúde, às suscetibilidades das pessoas a problemas e danos de saúde. 4 A expressão Universal Design foi usada pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1985, pelo arquiteto Ron Mace, que influenciou a mudança de paradigma no desenvolvimento de projetos urbanos, de arquitetura e design, inclusive de produtos. Para Mace (1991), o Desenho Universal aplicado a um projeto consiste na criação de um ambientes e produtos que possam ser usados por todas as pessoas, na sua máxima extensão possível. O Desenho Universal se baseia em sete princípios, adotados mundialmente: uso equitativo; flexível; simples e intuitivo; informação de fácil percepção; tolerância ao erro (segurança); esforço físico mínimo e dimensionamento de espaços para acesso e uso abrangente (SDH: 2010).
Página | 13
Aparentemente inovador, desde o inicio, o Programa se depara com diversos
obstáculos que o impedem de consolidar-se como Política de Estado - emancipada dos vícios
de nossa cultura política que, intencionalmente, confunde Política Pública com Política
Partidária.
Um destes obstáculos se refere à confusão e estranhamento gerado e perpetuado pelos
profissionais da assistência social que, por vezes, entendem-no como política de habitação,
negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social. Um pensar
fragmentado que, observado de perto, mostra-se fruto da pouca experiência dos profissionais
em pensar intersetorialmente e em promover articulações entre as políticas sociais.
Com tal argumento, esvaziado em sua fundamentação, justifica-se o não
responsabilizar-se sobre a operacionalização do Programa. Olhado mais atentamente deflagra
a carência por formação e atualização profissional - baseada nas novas perspectivas de
construção de políticas públicas - por parte de todo o corpo funcional das repartições,
incluindo aqueles que ocupam cargos de confiança e que normalmente são os que tomam
decisões.
Diante deste posicionamento de gestores da esfera estadual, tal responsabilidade recai
inteiramente sobre os gestores municipais que, no fazer, identificam as demandas dos idosos e
buscam as articulações necessárias.
Acompanhando a implantação do Programa Vila Dignidade percebi que, do lado de
cá, na atuação junto aos formuladores das políticas públicas, os desafios são de outra
dimensão e, qual a surpresa e falta de habilidade para lidar com os inúmeros interesses que
envolvem a sua elaboração (individuais, político-partidários e, raras vezes, coletivos).
São interesses que antecedem e, muitas vezes, prevalecem sobre as necessidades
daqueles a quem se destinam as ações do poder público, resultando em práticas não menos
confusas e imprecisas que, no extremo, colocam em xeque o empenho do Estado em dar
resposta às demandas sociais e inviabilizam as alternativas que só se consolidam pela
intersetorialidade.
Estas dificuldades, ainda longe de serem superadas nos processos de planejamento e
execução das políticas públicas, me inquietam e, diante da ausência de fóruns de discussão no
ambiente de trabalho, fermentaram a elaboração desta pesquisa me inserindo nos espaços da
universidade.
Constantemente questiono a dificuldade dos administradores e gestores públicos
entenderem a habitação humana, a Casa, equipamento mais antigo de proteção do homem,
Página | 14
como conceito norteador para as políticas de Proteção Especial5, e oferta do acolhimento em
suas diversas formas.
A Casa carrega diversos signos e significados que permeiam nosso imaginário e sobre
os quais temos pouca consciência. Reproduzidos e naturalizados em nossa cultura, toda essa
riqueza simbólica é destituída dos sujeitos institucionalizados: suas vidas são regulamentas
por formas de operacionalização do cotidiano, instituídas pelos gestores das instituições, sob
as quais pouco influem seus desejos e anseios.
Tais questões, somadas à subjetividade da pesquisadora, delimitaram nosso interesse
de pesquisa: investigar o que representa para os velhos ter/não ter Casa e quais seguranças6
são garantidas pela propriedade desse lugar/espaço.
Posto em outros termos: há quais inseguranças estão sujeitos os trabalhadores que,
após uma longa vida às margens do sistema produtivo, não desfrutaram da possibilidade de
ter seu próprio imóvel?
Falamos de pessoas que experimentam uma velhice assombrada pela faltada de
moradia e que, conseqüentemente, habitam locais em péssimas condições: quartinhos no
fundo do quintal de algum parente; porões mofados; casas insalubres escondidas nas áreas
mais periféricas das cidades; barracos em áreas de risco; etc.
Pessoas que, para disporem destes lugares, se sujeitam à especulação imobiliária, que
se apossa da maior parte de seus proventos, ou experimentam a humilhação de “viver de
favor” e, ou, de ter sua aposentadoria subtraída por parentes.
Pessoas para quem às fragilidades características da velhice 7 se associam as
vulnerabilidades sociais decorrentes de toda uma vida de exclusão e, quando se torna
impossível administrar esse conjunto de inseguranças, terminam suas vidas abrigadas em
Instituições de Longa Permanência.
Pensando a partir da política de assistência social ecoa a questão: o que esta política
pode ofertar às pessoas idosas quando é chegado o momento da institucionalização? Ou; 5 A Proteção Social Especial é a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social e divide-se entre serviços de Média Complexidade (oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos - familiar e comunitário - não foram rompidos) e de Alta Complexidade (garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência, e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou, comunitário) PNAS: MDS: 2004. 6 Embasados no sociólogo francês, Robert Castel (2005), nos referimos às seguranças civis e sociais que, no estado moderno, são garantidas pela propriedade. 7 Envelhecimento é o processo natural a todo ser vivo que normalmente é confundido com doenças associadas ou decorrentes dessa faixa etária. Existem mudanças e perdas visíveis, e inevitáveis, internas e externas, o organismo fica mais vulnerável, mas esses são eventos considerados naturais ao processo, e não são nem se transformam, necessariamente, em doenças. (Mercadante, E. F &Brandão, V.M.A.T; Envelhecimento ou longevidade? 1. ed. São Paulo: Editora Paulus, 2009. v. 1. 114 p; pp: 25).
Página | 15
como superar a histórica e excludente institucionalização da velhice possibilitando formas
alternativas de moradia para as pessoas idosas que não dispõem de cuidados no âmbito de
suas famílias?
Viver num equipamento de acolhimento deve representar muito mais que o ato de
depositar um corpo velho num determinado espaço físico. O lugar de acolher deve ser um
lugar que promova a vida enquanto houver vida, que favoreça diariamente a construção de
laços afetivos e a descoberta de novas formas de se relacionar.
Então, nossa hipótese é a de que as instituições podem ofertar melhores condições de
vida às pessoas idosas se cultivarem as características deste lugar ancestral que é a Casa; se
tomarem-na como microcosmo das relações sociais, lugar real, com cenários idealizados onde
parte dos nossos sonhos são encenados e reproduzidos.
Assim, a questão que colore as indagações deste trabalho refere-se a como inventamos
socialmente este espaço denominado Casa e qual a importância dele para os sujeitos que
envelhecem.
O objetivo não é apontar a melhor forma de moradia pra idosos, longe disso, nossa
intenção é pensar sobre a importância da Casa na constituição dos sujeitos, como esse espaço
real e imaginado reproduz a sociedade e é representado na velhice.
Para tanto, nos utilizamos da História Oral, defendida pelo professor Sebe e praticada
no Núcleo de Estudos de História Oral da USP, como método desta pesquisa e, mergulhando
no conceito de colaboração, propusemos um trabalho participante onde sujeitos ativos –
entrevistados e entrevistador – se unem com o propósito de produzir um resultado que
demanda conivência (Meihy & Ribeiro: 2011).
Nossos colaboradores são pessoas entre 61 e 86 anos de idade – homens e mulheres
que vivem no Programa Vila Dignidade implantado no município de Itapeva, interior de São
Paulo - que nos narraram suas histórias tendo como tema central a Casa.
A escolha deste grupo se justifica pela própria configuração do programa que, ao criar
um lugar – físico e social – para pessoas com trajetórias de vida, por vezes, semelhantes,
dispõe de um conjunto de sujeitos que em razão de sua condição humana e de sua interação,
possui unidade argumentativa diante de uma problemática comum (ATAIDE: 2002), há uma
comunidade de destino.
Nas entrevistas realizadas utilizamos o gravador para serem arquivadas e trabalhadas
posteriormente num processo de cooperação entre o pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa.
Página | 16
Assim, a gravação foi “apenas um momento do processo de elaboração da história oral”
(Meihy & Ribeiro: 2011).
A metodologia adotada é detalhada no primeiro capítulo do trabalho – A estrada que
leva a Casa: caminhos metodológicos. Aqui apresentamos ao leitor o local escolhido para a
realização do trabalho de campo, os números e características dos entrevistados, o processo de
aproximação junto aos nossos colaboradores, o questionário semi-estruturado utilizado para
nortear a pesquisadora e algumas indagações que surgiram em todos os momentos de
realização do trabalho.
No segundo capitulo, Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de
idosos, apresentamos oito das dez entrevistas realizadas em campo. Neste capitulo, seguindo
rigorosamente o protocolo do fazer da História Oral, os textos foram decantados do estado
oral para a linguagem escrita e devidamente legitimados pelos entrevistados.
As histórias narradas por nossos colaboradores são postas no centro da pesquisa e
fundamentam a reflexão proposta no terceiro e último capítulo, A Casa é onde quero estar:
Lugar, memória e velhice.
Em conjunto e tecidas, a partir da antropologia praticada por Geertz, estas narrativas
nos possibilitaram discorrer: sobre os imaginários do ser velho numa sociedade de consumo e
de ‘coisificação’ das relações humanas; sobre o trato dispensado pelo poder público aos
velhos mais empobrecidos; sobre os cuidados disponíveis e os desejados; sobre as percepções
acerca das velhas formas de institucionalização do curso de vida e, finalmente, sobre as
possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.
Neste capítulo dedicamos espaço para o escrever do antropólogo que interpreta o
material - construído a partir do trabalho de campo - pensando o que é proteção, tema tão
recorrente em minha área de atuação profissional, a política de assistência social. Por fim,
propomos uma reflexão sobre como o Estado brasileiro, ao longo de seu processo de
formação, contempla os direitos sociais e a proteção – civil e social - de seus cidadãos.
Longe de encerrarmos qualquer discussão fica aberto o canal de debate para novas
proposições a partir de nossa incipiente reflexão.
Capitulo I: A estrada que leva à Casa: caminhos metodológicos
Pedro não sabe, mas talvez no fundo
Página | 17
Espere alguma coisa mais linda que o mundo Maior do que o mar, mas pra que pensar se dá
O desespero de esperar demais Pedro Pedreiro: Chico Buarque: 1966
Neste primeiro capitulo discutimos a metodologia que norteou a construção deste
trabalho, mas, fugindo de textos muito descritivos, buscamos um caminho alternativo para o
debate. Escolhemos abrir esta seção expondo ao leitor breve texto confeccionado a partir da
narrativa de um idoso.
Este texto foi produzido no curso A Comunidade e os Velhos, ofertado pelo Programa
de Pós Graduação em Gerontologia da PUC - S. P. Para encerrar a disciplina a professora, Drª
Elisabeth Mercadante, propôs um trabalho coletivo onde cada aluno deveria entrevistar um
idoso de sua rede de relacionamentos questionando-o sobre o lugar em que ele se sentia bem.
O painel de Integração intitulado Desafios da longevidade: moradia, comunidade e
lugar de pertencimento expôs as histórias de onze pessoas idosas, do circulo de
relacionamento dos alunos, entre elas: conhecidos, parentes próximos, vizinho de condomínio
e até pessoa em situação de rua. Uma destas histórias é a Pedro Pedreiro.
* * *
1.1 Nas trilhas do conhecimento: o pesquisador na História dos outros
Pedro - na vida real Antônio – é um dos muitos pernambucanos que sentiu na pele os
efeitos da seca do semiárido nordestino, de grandes proporções sociais e econômicas nos anos
50. A falta de perspectivas fez com que sua terra natal o abandonasse forçando-o a migrar
para o sul.
Pedro buscava “terra pra plantar, casa pra morar, mato verde pra olhar...”. Passou
pelo Mato Grosso, São Paulo e Paraná para, enfim, fincar suas raízes na metrópole paulistana.
Do campo para a cidade grande, a mudança o assustava. Na periferia da metrópole
Pedro e sua família se instalam. Ali encontra seu primeiro trabalho, muito diferente de todos
que já realizara: batia estacas para a construção de arranha-céus na cidade que crescia
desenfreada. Estático:
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando, o tempo passa e a gente vai ficando pra trás Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol, esperando o trem
Página | 18
E a mulher de Pedro, esperando um filho pra esperar também
Pedro Pedreiro: Chico Buarque: 1966
Numa casa pequena duas famílias – a de Pedro-Antônio e a de Pedro-cunhado -
juntavam forças pra suportar as dificuldades de viver na cidade grande; “foi um tempo difícil,
de muitas mudanças, casas improvisadas, impróprias, sem conforto e segurança para as
crianças, mas era o que a gente podia pagar”.
No movimento das cidades, de impelir os moradores mais pobres para as regiões mais
afastadas do centro, Pedro se juntou a outros trabalhadores sem teto, e ocupou terras, às
margens de um córrego, na zona norte da capital8.
Com a ajuda dos vizinhos, Pedro conseguiu erguer sua casa própria - um barraco, que
em tempos de arrocho salarial o livrou dos pesados aluguéis. Só assim foi possível “fazer um
pé de meia” pra comprar um terreno com escritura.
Do loteamento irregular Pedro partiu para mais longe, indo morar em um dos bairros
fronteiriços, destinado aos trabalhadores pobres. No extremo da cidade foi possível comprar
seu canto - neste bairro as terras valiam pouco, por conta de uma fábrica de cimento instalada
nos arredores.
Num lugar marcado pela ausência de políticas públicas coube ao movimento religioso
organizar e gerenciar as demandas sociais. Nos anos 80 a paróquia do bairro organizava os
trabalhadores em mutirão para a construção de casas, poços artesianos - que minimizavam a
ausência da Sabesp -, creche, e outros equipamentos públicos.
Militante nos movimentos religiosos, os domingos de Pedro eram especialmente
dedicados às obras e se transformavam em grande festa onde “as mulheres, desde a véspera,
preparavam os alimentos; os homens enchiam lajes e as crianças corriam por todo lado,
numa alegria só”.
Pedro sentia-se realizado. Conseguiu erguer sua casinha! A alegria aumentou quando
conquistou um emprego fixo e com carteira assinada - a oportunidade de trabalho veio em boa
hora, pois o terceiro filho de Pedro já estava a caminho...
Neste ritmo viveram os anos 80 “esperando o aumente; desde o ano passado para o
mês que vem...” (Chico Buarque) e quando chegam os 90 outra mudança radical... A
8 Cabe lembrarmos que, no final dos anos 70, o número de favelas era pequeno e a principal forma de irregularidade eram os loteamentos clandestinos, além de cortiços e ocupações em áreas ambientalmente frágeis ou de risco (Nelson Baltrusis: 2007).
Página | 19
metalúrgica de Pedro será transferida para o interior. Neste momento, Pedro se vê diante de
duas alternativas: mudar com a família para o desconhecido ou perder o emprego, à beira da
aposentadoria.
Sem escolha é obrigado a seguir a empresa. A família, habituada e enraizada no bairro,
resiste, mas não há outra possibilidade. Os meninos de Pedro cresceram - o mais velho já é
pai; eles decidem ficar e manter seus empregos.
Pedro, a mulher e as duas filhas menores mudam-se num domingo quente e triste. O
processo de adaptação não foi fácil: em São Paulo, mesmo na periferia, vivia-se uma
efervescência e turbilhões de acontecimentos impossíveis de se imaginar no interior, além de
que, doía deixar pra trás os vínculos afetivos construídos ao longo dos anos...
No interior Pedro relembra as dificuldades de moradia vividas no passado, quando o
alto custo dos aluguéis lhe impunha mudanças constantes e, sempre para casas menos
confortáveis.
Ao se aposentar todos já estavam familiarizados com a nova cidade e já não pensavam
em retornar para a periferia da metrópole. Depois de algum tempo aposentado Pedro consegue
comprar sua casa, num bom bairro da cidade - conquista enfim a tão sonhada tranqüilidade.
A sensação que define o velho Pedro hoje é de “sossego e paz”. Relembra o passado
com garra, para ele “a vida é assim mesmo”. Sente-se vitorioso por ter tido uma vida honesta
e por dar aos filhos coisas que não teve - como educação.
Diz não ter mais sonhos, mas, afirma ainda desejar uma casa melhor: um terreno maior
com uma casa que planeje e acompanhe a construção, do inicio ao fim; onde possa plantar e
receber a grande família com mais conforto.
A vida de Pedro, hoje, pode ser resumida às idas, quase cotidianas, ao supermercado;
às tardes na praça e às constantes reformas em sua casa - que nunca se concluem. Pedro esta
sempre inventando algo para se (re)fazer.
No manuseio da pedra, areia, cimento, cal e outros artefatos, Pedro Pedreiro segue
inventando sua velhice... Quando questionado sobre o seu lugar no mundo é enfático: “gosto
da churrasqueira, pois é aqui que reúno os filhos, netos, genros, noras e amigos”.
1.1.1 A História Oral na Pesquisa Antropológica
Página | 20
Nossa intenção, desde a formulação do projeto de pesquisa era falar com velhos acerca
do envelhecer e das formas de viver a velhice e, a partir de seus relatos, refletir, de forma
sistemática - auxiliados por teóricos das áreas de gerontologia, antropologia e sociologia-,
sobre a velhice9 vivida sem os recursos garantidores de proteção e redes de segurança.
Neste ínterim, percebemos que as armadilhas impostas aos estudos sobre o
envelhecimento são muitas. No que nos compete, duas preocupações se fizeram latentes: o
endeusamento da velhice e seu extremo o “idadeismo depreciativo” (Hillman: 2001a).
O primeiro deriva das limitações de um pesquisador ainda distante deste momento da
vida: é possível a um jovem falar do desconhecido sem cair em idealizações? O segundo
deriva do vicio que herdamos das analises fisiológicas – nos impelem a olhar o
envelhecimento exclusivamente pela perspectiva biológica, focando apenas o colapso e
esgotamento das reservas do organismo (Hillman: 2001a).
Depararmos-nos com tais armadilhas seria algo natural já que nos propomos ao
dialogo com pessoas que enfrentaram diversas limitações ao longo do curso de vida;
sobreviveram na ausência do estado, muitas vezes sem acesso à educação, saúde, alimentação
adequada, trabalho digno, moradia, previdência social (C.F: 1988); e chegaram à velhice
desprovidas de capacidades que lhes assegurem, por seus próprios recursos, proteção contra
os riscos pessoais e sociais: doença, escassez de renda, ausência de familiares, fragilidades,
circunstâncias imprevisíveis, entre tantas outras.
Nossos colaboradores são pessoas com mais de 60 anos de idade que, pelas razões
elencadas foram incluídos no Programa Vila Dignidade, um Programa Estadual que se propõe
a ofertar moradia e proteção social a idosos em situação de vulnerabilidade.
Diante de contextos tão adversos o desafio foi encontrar a linha tênue que equilibrasse
estes extremos – cremos que ela se desenrola pela busca dos significados não aparentes da
velhice e pelo questionamento freqüente, do poder da manipulação biológica da vida.
Na tentativa de alcançá-la, os processos que envolveram este trabalho nasceram
compartilhados, afinal foi preciso nos aproximar para tocar as particularidades - olhar e ouvir
de perto -, e depois, nos afastarmos para pensar e teorizar a realidade apresentada.
Assim, as três etapas de apreensão do fenômeno social - Olhar, Ouvir e Escrever –
foram tematizadas e questionadas à luz das proposições do antropólogo Roberto Cardoso de
Oliveira (2000), pois, como bem nos apresenta:
9 Velhice é a fase da vida que, pela literatura oficial, se inicia aos sessenta anos Embora alguns autores utilizem os sessenta e cinco anos para definir o velho, optamos pelo consenso impresso no Estatuto do Idoso que em seu 1º artigo define como idosa a pessoa com sessenta anos ou mais.
Página | 21
[...] os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à antropologia -, por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, de sua verdadeira interioridade.
Cardoso: 2000: 34
Parte vital deste Projeto de Pesquisa, o trabalho de campo, se faz no olhar e ouvir, e
para realizá-lo refletimos sobre as entrevista em pesquisas qualitativas na área da
antropologia.
Éramos conscientes de que o uso de entrevistas pelas diversas áreas - história,
jornalismo, sociologia, antropologia e tantas outras – sem o devido rigor metodológico
reproduzia generalizações, bem como, a banalização dessa técnica, colocando-a, por vezes,
em descrédito diante das demais técnicas de pesquisa.
Por outro lado, sabíamos que, quando conduzidas com o necessário rigor, poderiam
criar o cenário ideal onde uma verdadeira relação de co-labor-ação- ação de trabalhar junto10
- entre pesquisador e os sujeitos que irão narrar suas histórias, se desenrola.
Considerando tais questões sabíamos, desde o inicio, que alguns conceitos clássicos
das pesquisas em ciências humanas, como: objeto de estudo; informantes, depoimento,
neutralidade, racionalidade e objetividade seriam descartados deste trabalho.
Assim, em vez do pesquisador analista, que com rigor irá questionar os depoentes
(orientando-os na reconstrução de suas histórias) e controlar a veracidade das informações por
eles apresentadas, optamos por uma relação bem menos hierarquizante - a relação de
colaboração - e vimos na história oral praticada por Sebe, a liberdade e o rigor necessários
para o ver e ouvir da antropologia:
No caso da história oral, por acatar eticamente o interlocutor e colocá-lo como centro gerador de visões, por levá-lo em conta além de seu papel de “fornecedor de dados”, de “transmissor de informações. ou “testemunho”, valoriza-se o conceito de colaboração.
Sebe: 2011: 23
Assim, as entrevistas foram o meio criteriosamente escolhido para explorarmos os
temas desta pesquisa já que elas promovem o contato e a troca direta entre os sujeitos
envolvidos pois, como bem pontuou o professor, “é na entrevista que o pesquisador encontra
10 Conceito apresentado pelo professor Sebe em disciplina ofertada no Programa de Pós Graduação em História da Universidade de São Paulo, no ano de 2006.
Página | 22
o “outro”, sujeito dono de sua história retraçada com lógica própria e submetida às
circunstâncias do tempo em que é realizada” (Sebe: 2011: 22).
As narrativas produzidas por nossos colaboradores são parte desse processo
colaborativo que se inicia no trabalho de campo. Foram captadas com o uso do gravador para,
posteriormente, serem transcriadas pelo pesquisador e, finalmente, retornar aos colaboradores
que legitimaram e autorizaram seu uso. O produto final dessa interação pesquisador-
colaborador resultou no próximo capitulo deste trabalho: Tempo de Rememorar: o lugar de
estar nas narrativas de idosos.
Pensando o processo de entrevistar e ser entrevistado, a fim de amadurecer nossa
escolha por este método de pesquisa, resolvemos exercitá-lo antes de irmos a campo.
Experiência que se mostrou muito mais difícil do que imaginávamos. Tornar público a nossa
vida, ainda que indiretamente, através da história de nossos pais, e as peripécias do destino,
não acontece com naturalidade; por vezes nos constrange e provoca uma intensa reflexão
sobre o vivido, capaz de tirar o sono...
A narrativa escolhida para abrir esta seção é o resultado desse exercício. Foi
confeccionada no curso A Comunidade e os Velhos e apesar de não ter sido realizada nos
moldes propostos pela História Oral, é utilizada aqui, não como ilustração da metodologia
mas apenas para apontarmos os desconfortos que afloram no momento de sua realização.
Um exercício extraordinário, pois, ao mesmo tempo em que a exposição da narrativa
ilustra o processo de entrevistar, e a própria formatação do tema pesquisado; ao exibir a
intimidade do pesquisador coloca-o em xeque com o método que tão cuidadosamente adotou
para consolidar seu trabalho. Viver este ciclo lhe antecipou algumas das sutilezas que
irromperiam no momento em que as entrevistas da pesquisa fossem realizadas.
Assim, entrevistar Pedro Pedreiro, que é Antônio Lopes das Chagas e é também o pai
da Janete foi imprescindível para que a pesquisadora, antes mesmo de se aproximar de seus
colaboradores, conhecesse-os previamente.
Certamente entrevistaria outros Pedros Pedreiro, pessoas que enfrentaram as mais
variadas infortunas em suas trajetórias individuais e que, ao contrário de seu pai Antônio, não
viram o suor do trabalho se transformar no sonho e na segurança da Casa própria. Pessoas a
quem o suor “não vira nada/Vale Nada/Vira Vento” (Karina Buhr: 2010: Vira Pó).
Por ser tão próxima do narrador foi possível perceber o constrangimento e receio em
falar de determinados assuntos, a inquietação e a vontade de por fim à entrevista que, por
vezes, tomava conta do entrevistado.
Página | 23
Ter consciência dos incômodos causados nos fez pensar sobre o lugar, a situação e a
exposição a que iríamos submeter os sujeitos colaboradores desta pesquisa: as pessoas que
disponibilizaram suas narrativas de vida e percepções de moradia, para produzirmos o corpus
documental desta pesquisa, seriam desnudadas pelas inquietações do pesquisador.
Assim pudemos dimensionar e ter consciência da responsabilidade do pesquisador ao
pôr no centro de sua pesquisa a vida do Outro; e com isso, pensamos sobre o Respeito, pois
nos “parece tão fundamental para a nossa experiência das relações sociais e do self que
devemos definir com mais clareza o que ele é” (Sennett: 2004: 68), afinal, na vida social
“existe um enorme abismo entre esperar agir bem em relação aos outros e agir bem de fato”
(Sennett: 2004:78).
Tratar com respeito as necessidades do outro foi a preocupação central do primeiro
contato. Principalmente porque o tempo disponível para estar junto era reduzido, o que
impossibilitava a emergência de empatia e afetividade entre pesquisador e narrador.
Chamou nossa atenção o respeito dos idosos pelas nossas necessidades. Ainda que
individualmente não tivessem a dimensão do que seria o conjunto das narrativas, e como
serviriam à pesquisa, cada pessoa teve, com mais ou menos disponibilidade, paciência,
cuidado e preocupação em atender aos anseios da pesquisadora, dispondo-se integralmente ao
encontro.
Devolvemos o respeito recebido tentando uma aproximação que não fosse tão
invasiva. A privacidade de nossos colaboradores foi se expondo, ou não, de acordo com seus
desejos e vontade11. Da interação e respeito entre narrador/pesquisador emergiram as
histórias de vida - ao nos contar essas histórias, percepções e performances da realidade
nossos colaboradores nos autorizam a expor sentimentos acumulados no tempo, sofrimentos e
formas de dominação que jamais seriam expressas publicamente.
Cabe ao pesquisador a difícil tarefa de transpor para a linguagem escrita o que lhe foi
narrado, sem abrir mão da riqueza e singularidades do oral.Aqui e no momento posterior –
analise das narrativas - se encerra a terceira etapa de apreensão do fenômeno social –
Escrever. Para ilustrá-la, novamente nos reportamos à Oliveira:
Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizadas na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso
11 Assim, nossa sede por imagens - novas ou de álbuns de fotografias da família – e por qualquer objeto que pudesse desencadear a lembrança, logo sucumbiu e abrimos mão do uso de máquina fotográfica e qualquer equipamento de captura de imagens. Parte das imagens que foram utilizadas por nós foram extraídas de redes sociais – facebook – de nossos colaboradores, ou retiradas em outros momentos que não o da realização das entrevistas.
Página | 24
pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Quero chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar claro que – pelo menos no meu modo de ver – é no processo de redação de um texto que o nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática.
Oliveira: 2000: 32
Transpor para o texto escrito toda a riqueza da narrativa oral é tarefa complexa e cabe
ao pesquisador realizá-la. Acreditamos que na interpretação dessa polifonia de visões de
mundo reside forte potencial para a superação dos saberes compartimentados - quer da
biologia médica, da psicologia, da sociologia, da economia, da demografia e das outras áreas
que, em seus guetos, se dedicam ao estudo do envelhecimento.
Dai, colocarmos as histórias narradas no centro desta pesquisa: elas fundamentarão a
reflexão proposta e, em conjunto, nos possibilitarão discorrer sobre: os imaginários do ser
velho numa sociedade de consumo e ‘coisificação’ das relações humanas; o trato dispensado
pelo poder público aos velhos mais empobrecidos; os cuidados disponíveis e os desejados; as
percepções acerca das velhas formas de institucionalização do curso de vida; novas
possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.
Nossas indagações mergulhavam na idéia de Casa e na importância deste lugar para as
pessoas velhas. A hipótese levantada neste trabalho é a de que ter a Casa, necessidade humana
fundamental, como primeiro espaço de acolhimento e proteção social, pode possibilitar novas
formas de atenção aos idosos fragilizados, quer por questões de saúde; renda precária ou
abandono.
Partindo desta hipótese, as narrativas tiveram na Casa o foco e o lugar desencadeador
das recordações. Assim, optamos pela história oral temática e o produto das entrevistas nos
esclareceu sobre o tema estudado. Nossos objetivos eram:
• Pensar sobre as percepções simbólicas dos idosos acerca dos lugares onde viveram/
vivem e a complexidade das relações estabelecidas com estes lugares;
• Analisar as formas como os entrevistados criam, recriam e mantêm vínculos
identitários com o lugar de moradia refletindo sobre a importância da Casa na
constituição destes sujeitos;
• Explorar as diversas percepções sobre envelhecer e onde viver na velhice;
Neste gênero de história oral, a atuação do entrevistador é evidente e a utilização de
um questionário indispensável, pois “se torna peça fundamental para a aquisição dos detalhes
Página | 25
procurados” (Sebe: 2011: 89). Então, pensamos num questionário semi estruturado que
serviria primeiro, à pesquisadora, que o utilizou como roteiro.
Nele, as questões não poderiam ser indutivas, muito diretas ou que fechassem o
assunto. Nosso propósito era estimular o narrador, possibilitando-lhe alçar vôos a partir das
questões apresentadas.
Este questionário teve como tema central a Casa e as relações estabelecidas a partir
deste lugar: com a família, o bairro, a cidade, o trabalho, as diversas fases da vida e, em
particular, com o momento presente e com a velhice12.
Assim, num primeiro momento foram exploradas questões que se relacionavam ao
passado mais distante cronologicamente: as diversas moradias onde o narrador viveu ao longo
de sua vida13.
Em seguida exploramos a relação Trabalho - Casa, no intuito de reconhecer como as
vicissitudes do destino se impuseram, impossibilitando a esse grupo de trabalhadores ter
garantido, pelo trabalho, o acesso à moradia própria e às proteções que ela garante.
Nosso questionário teve um bloco que se referia exclusivamente à nossa hipótese, aqui
ela pode ser “testada com insistência” (Sebe: 2011: 88), diluindo-se nas questões formuladas.
Exploramos exclusivamente o presente: onde e como as pessoas viviam até serem incluídas
no Programa; as mudanças vividas depois disso; a importância do morar e a vida neste novo
lugar.
Por fim, partindo do momento presente, questionamos sobre as percepções da velhice
e as perspectivas para o futuro. Desta forma nosso roteiro teve a seguinte estruturação:
Bloco I: A casa e as histórias de vida
1 – O que o srº/srª pode dizer sobre as casas onde viveu? Pode narrar sua trajetória por
esses lugares?
2- Qual delas é a mais importante na sua história e porque?
Bloco II: Relações de trabalho
1 - Pode nos falar sobre os trabalhos que executou ao longo da vida?
2 - De qual deles sente mais saudade?
3 - Realiza algum tipo de trabalho hoje? 12 Distinguimos o tempo presente da velhice, porque, nas narrativas em análise, aparecem como distintos. A velhice quase sempre é um devir, que todos esperam que esteja distante do momento presente. 13 Comumente nossos colaboradores optaram pela descrição cronológica, iniciando sua narrativa pela infância.
Página | 26
Bloco III: Moradia e velhice: a vida depois da inclusão no Programa
1 - Depois de fazer sessenta anos onde e com quem viveu?
2 - Com eram essa casas?
3 - Como foi o processo de mudança para essa vila?
4 - O que ficou pra trás (amigos, parentes, animais de estimação, etc)
5 - Sua vida mudou muito depois de vir morar aqui?
6 - Como é viver aqui? Encontrou alguma dificuldade de adaptação?
7 - O que gostaria de ter aqui?
8 - Acha que ter vindo pra cá lhe trouxe algum beneficio? (saúde, sociabilidade,
segurança, tranqüilidade, etc)
9 - Como é o seu relacionamento com os vizinhos?
10 - Quem são seus familiares? Com quais deles se relaciona?
11 - Como era esse relacionamento antes de vir pra cá? Algo mudou?
12 - Sente falta de alguma coisa ou alguém?
Bloco IV: Percepções sobre envelhecer
1 – O srº/srª se considera velho?
2 – Como imagina(va) que vai (iria) envelhecer?
3 – Onde imagina (va) que vai (iria) morar na velhice? Como é este lugar?
4 – O que espera para o futuro?
5 – Alguma coisa lhe causa medo?
6 – Se pudesse voltar no tempo mudaria algo em sua história?
7 – O srº/ srª segue alguma religião? Sempre foi essa?
Neste roteiro o trabalho a ser realizado estava focado em três eixos centrais onde a Casa
assumia papel determinante: Casa e família; Casa e trabalho e Casa e velhice. A partir daí
exploraríamos as demais questões que permeiam a pesquisa.
Em campo percebemos que estes eixos não apresentam relações tão imbricadas como
supomos anteriormente. Com sua idealização nossa intenção era explorar as relações
familiares e os espaços de moradia, bem como, o trabalho e as casas que ele possibilitava ter.
No entanto essas analogias não apareceram de forma tão clara e relacional nas narrativas,
Página | 27
propondo que a estruturação mais adequada deva ser por eixos independentes: Trabalho,
Casa, Família e Velhice.
A história oral foi utilizada como técnica investigativa das problemáticas que envolvem o
morar na velhice e as entrevistas compõem o núcleo documental da pesquisa apresentado no
próximo capítulo.
As entrevistas realizadas foram únicas e tiveram como suporte o roteiro apresentado
acima; estimulo que propiciou às pessoas narrar e ressaltar detalhes da sua história pessoal
tendo a Casa como eixo central de sua narrativa.
Realizadas as entrevistas iniciamos o processo de transposição da linguagem oral para
o documento escrito, processo de materialização das narrativas que são traduzidas da
linguagem oral para o texto escrito - que consiste em três etapas: transcrever, textualizar e
transcriar. Meihy e Ribeiro (2011) descrevem com rigor estas três fases.
Segundo estes autores a transcrição é trabalho longo e exaustivo, de grande
importância à construção e analise da documentação escrita, “é outro momento de interação
das subjetividades dos sujeitos envolvidos na pesquisa” (Meihy&Ribeiro: 2011: 107) e deve
ser valorizada.
Ao realizarmos essa etapa nos demos conta de nossa ignorância; das gafes cometidas;
da falta de jeito no trato com o outro, mas também, da riqueza que foi o contato com cada um
de nossos colaboradores.
Este é o momento em que o pesquisador, sozinho, pode ouvir quantas vezes sentir
necessidade, a entrevista. Os sentimentos que se fizeram presentes no momento da realização
emergem com a mesma força e, agora, distante do colaborador, é possível avaliá-los
calmamente e desfazer, refazer muitas das sensações vividas.
A segunda etapa, textualização, é o momento em que as perguntas são retiradas e
fundidas às narrativas. Aqui, “o exercício é o de aproximar os temas que foram abordados e
retomados em diferentes momentos” (Idem: 109), tendo por objetivo facilitar a leitura do
texto e possibilitar uma melhor compreensão do que o narrador expôs.
Por fim, a transcriação é a elaboração de um texto recriado em sua plenitude,
momento em que os elementos extra texto são incorporados (anotações do caderno de campo
e dos aspectos da vivência junto ao grupo). Como descrevem os autores: “trata-se da
transformação final do oral em escrita, recriando-se a performance da entrevista, procurando
trazer ao leitor as sensações provocadas pelo contato (Meihy&Ribeiro: 2011: 110).
Página | 28
O documento final obedeceu a acertos combinados com cada colaborador e foi
validado após conferência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A razão de ser desta pesquisa é o conjunto das narrativas, corpus documental do
trabalho. Após exaustivo e instigante trabalho de produção destes textos – que resultaram no
próximo capítulo, cabe ao antropólogo no fazer especifico de sua área de atuação, interpretar
este material, construindo conexões e formas de cruzamentos entre si.
Este exercício materializou-se na confecção do último capitulo deste trabalho: A casa
é onde quero estar: Lugar, memória e velhice. Na idealização do Projeto de Pesquisa
pensávamos nos seguintes cruzamentos:
1. - o cruzamento entre si: as narrativas seriam alocadas, inicialmente, em três grupos:
Homens – Mulheres; Campo – Cidade; e Alfabetizados – Analfabetos onde seriam
analisados os pontos de semelhança e divergência em seu interior.
2. - relacionamento das narrativas com textos, inicialmente, da antropologia, sociologia e
gerontologia a fim de construir uma interpretação, com análises e reflexões
características de um trabalho acadêmico.
Na analise do conjunto das entrevistas nos demos conta de que não fazia sentido os três
blocos construídos à priore: Homens – Mulheres; Campo – Cidade; Alfabetizados –
Analfabetos, pois o grupo de idosos por nós pesquisado apresenta, nestes quesitos, muito mais
semelhanças que diferenças: independente de gênero a maior parte deles nasceram no campo
e, na vida adulta foram expulsos para a cidade e, com exceção de Seu Abel, todos possuem
baixa escolaridade (quando muito concluíram a 4ª série primária).
O cruzamento de gênero nos mostrou que entre os homens foi comum os deslocamentos
territoriais em busca de trabalho e a conexão com o mundo externo da rua. Enquanto que as
mulheres estiveram dedicadas aos cuidados com a família e conectadas com o mundo interno
da casa. Mesmo Dona Maria Rosa, única mulher que não se casou, e que esteve inserida no
mercado de trabalho formal – dedicou sua vida para cuidar da família de seus patrões. Este
cruzamento nos evidenciou ainda a ocorrência de divórcio entre os homens enquanto que,
entre as mulheres, o fenômeno mais marcante foi a viuvez.
Para além deste foi preciso encontrar outros pontos de intercepção das narrativas. A
identificação destes pontos se deu num processo lento e cuidadoso de analise individual de
cada uma das entrevistas.
Página | 29
Neste processo percebemos que os discursos convergiam para pontos comuns e então,
começou-se a desenhar uma teia que, como num jogo de quebra cabeça, as peças vão se
encaixando pela complementaridade. Estes pontos de encontro foram se evidenciando aos
poucos e, ao final da analise individual das entrevistas, foram elencados.
O grande tema, ou ponto de conexão do conjunto das entrevistas individuais foi o
Trabalho – é através dele que nossos colaboradores se inserem e se reconhecem no mundo.
Sua importância é tamanha que, involuntariamente, ocupou o lugar que nós, pesquisadores,
havíamos designado para a Casa – que acabou se revelando como segundo ponto de
convergência.
Ela deriva do Trabalho, embora a relação direta entre Trabalho e Casa não seja percebida
de forma tão consciente por nossos colaboradores. No conjunto, as narrativas mostraram que
os idosos não reconhecem a moradia como direito social. A impossibilidade de adquirir um
imóvel é não é associada às péssimas condições de trabalho, com baixos salários, agregada à
escassez de políticas de acesso à moradia de interesse social; individualmente estes idosos
acreditam que não conseguiram adquirir um imóvel por falta de sorte, por acaso da vida ou
por não ser a hora certa.
Outros três pontos de convergência se evidenciaram: Passado; Presente; Percepções da
velhice. Assim, ao todo identificamos cinco zonas de convergência das narrativas dos idosos:
Trabalho, Casa, Passado, Presente e Percepções da velhice.
A interpretação por nós proposta tentou conectar estes grandes temas cruzando-os com
outras fontes documentais, utilizando-se das teorias antropológica e sociológica, bem como da
musica e da literatura.
Em todo o processo do fazer desta pesquisa o computador foi intensamente utilizado e
a internet totalmente incorporada: além do uso freqüente para organização, análise estatística
dos dados e construção de diário de campo, o computador foi, para nós, valiosa fonte de
pesquisa.
Conectados todo o tempo na internet mantivemos contato virtual com nossos
colaboradores e, através da rede online, os mesmos puderam acompanhar e participar do
processo de consolidação das narrativas até a chegada ao texto final.
O acesso à rede virtual de computadores nos possibilitou navegar pelas páginas dos
idosos que utilizam o Facebook complementando e enriquecendo os textos finais com dados
que não foram expostos, ou satisfatoriamente abordados no momento das entrevistas, bem
como, com imagens das mais diversas situações cotidianas.
Página | 30
Muitas informações sobre o Programa Vila Dignidade: textos, entrevistas, eventos
realizados no condomínio, fotografias, comunicação institucional dos governos do estado e
prefeitura municipal de Itapeva, foram postadas na rede mundial de computadores e
capturadas pela pesquisadora em pesquisas rápidas nas ferramentas de busca disponíveis.
Pela internet soubemos da repercussão do Programa à época de seu lançamento, bem
como, da intensa exposição das imagens e histórias de vida dos seus moradores.
Além dessa relação direta com os colaboradores, a internet também facilitou o
desenvolvimento da pesquisa ao possibilitar o contato quase instantâneo com diversas bases
de dados que armazenam artigos e teses acadêmicas e o acesso, em poucos clicks, a uma
variedade incrível de abordagens sobre os temas que se entrelaçam em nossa pesquisa.
Com todos esses recursos fomos traçando os caminhos que nos levaram à Casa, ou
seja, a metodologia que fez nascer nossa pesquisa. Adiante podemos avançar na descrição das
demais etapas de construção deste trabalho: apresentação do local de pesquisa; aproximação
junto aos colaboradores e o trabalho de campo. Cada um desses momentos é descrito adiante.
1.2 O Programa Vila Dignidade
A necessidade de proporcionar outras formas de acolhimento, alternativas às
Instituições de Longa Permanência, ao idoso vulnerável é uma das justificativas que
fundamentam o Programa Vila Dignidade14. Ele foi pensado para atender as demandas de
municípios que acabam institucionalizando idosos independentes para a realização das
Atividades de Vida Diária - AVD.
Elaborado em 2009, pelo governo do estado de São Paulo, através de parceria
intersecretarial que envolvia principalmente as Secretarias de Habitação e de Assistência
Social, este Programa compunha as ações do Plano Estadual para a pessoa idosa, denominado
Futuridade15.
14 Este texto foi construído a partir de informações extraídas de material institucional das Secretarias de Habitação e Desenvolvimento Social e matérias disponíveis nos sites de ambas: www.habitacao.sp.gov.br e www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br. Registro meu agradecimento à Mariana de Sylos Rudge, funcionária da CDHU com quem mantive contato constante durante a produção desta pesquisa, pela disponibilidade com que sempre atendeu nossas demandas por esclarecimentos, bem como, por suas valiosas reflexões. 15 O Futuridade abarca uma das muitas tentativas do governo de emplacar uma politica para idosos no estado de São Paulo. Em 2007 é promulgada a Lei nº 12.548 que consolida as 31 legislações estaduais relativas ao idoso e instituí a Politica Estadual do Idoso – tem por objetivo garantir ao cidadão com mais de 60 anos as condições necessárias para continuar no pleno exercício da cidadania. Em 2008 foi lançado, pelo então Governador do Estado, José Serra, o Plano Futuridade – que visava promover o bem estar e a qualidade de vida das pessoas
Página | 31
Consiste na construção de equipamento público de moradia assistida projetada
especificamente para a população idosa. Agrega, à tipologia habitacional do Desenho
Universal, soluções de gestão social garantindo aos beneficiários a preservação de sua
autonomia, além de cuidados específicos, como proteção social16, saúde17 e outros.
Assim, seu público alvo são pessoas com mais de 60 anos e independentes para a
realização das atividades de vida diária. Além desta, outras condicionalidades foram
desenhadas para definir esse idoso: ter rendimento mensal de até um salário mínimo,
vivenciar situações de risco pessoal e/ou social, residir no município há pelo menos dois anos
e não possuir imóvel próprio18.
O Programa compreende a construção de uma pequena vila, no estilo de condomínio
habitacional com até 28 casas térreas, áreas de lazer, praça de exercícios e Salão de
Convivência.
O projeto arquitetônico contempla itens de segurança e acessibilidade como: barras de
apoio, pias e louças sanitárias em altura adequada, portas e corredores mais largos,
interruptores em quantidade e altura ideais, rampas e pisos antiderrapantes, entre outros.
Recursos que se estendem às áreas comuns facilitando a locomoção e garantindo segurança ao
idoso nos espaços internos e externos.
Sua execução se dá pela articulação intersetorial de diversas políticas sociais com a
finalidade de promover a independência, a autonomia e o desenvolvimento social e humano
dos idosos mais vulneráveis: seja pela falta de renda, pelo isolamento social, abandono, maus
tratos ou outras situações de risco pessoal e/ou social.
Envolve parceiros no âmbito estadual: Secretaria de Habitação - SH, Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano - CDHU e Secretaria de Desenvolvimento Social -
SEDS; municipal: órgãos gestores da assistência social que são os articuladores das demais
idosas, especialmente das que estão em situação de vulnerabilidade social, por meio da articulação e integração entre as secretarias e órgãos públicos estaduais e municipais e a sociedade civil, sensibilizando e instrumentalizando os gestores para o fortalecimento e a expansão de ações voltadas à promoção do envelhecimento ativo no Estado de São Paulo (Barroso: 2009). Em 2011, sob o comando do atual governador, Geraldo Alckmin, esse Plano foi remodelado e rebatizado de São Paulo Amigo do Idoso. 16 A proteção social deve garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar. A segurança de rendimento é a garantia de que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações para o trabalho ou o desemprego. A segurança de acolhida opera a provisão das necessidades humanas que começa com os direitos à alimentação, ao vestuário e ao abrigo, próprio à vida humana em sociedade. A segurança da vivência familiar é uma das necessidades a ser preenchidas pela politica de assistência social. Supõe a não aceitação de situações de reclusão, e de perda das relações (PNAS: 2005: 31-32) 17 Ofertada exclusivamente pela rede de saúde articulada no municipio. 18 Decreto Estadual nº 56.448 de 29 de novembro de 2010 que altera, dá nova ao Decreto Estadual nº 54.285 de 29 de abril de 2009 – que institui o Programa Vila Dignidade no âmbito do estado - e define os beneficiários do Programa.
Página | 32
políticas públicas no âmbito do município; e da sociedade civil: conselhos de direito e
organizações não governamentais, além dos atores do Sistema de Garantia de Direitos dos
Idosos: Conselhos de Idoso, Promotoria Pública Ministério Público, OAB, etc.
O município que deseja aderir ao programa se cadastra no Sistema de Gestão de
Pleitos, sistema virtual disponível na página da CDHU. Ali os gestores das políticas de
habitação e de assistência social apresentam a população idosa do município e suas demandas
especificas; os serviços disponíveis e a rede que pretendem otimizar para favorecer a
execução do Programa.
O Programa defende que a promoção da rede social de proteção ao idoso na esfera
local é fundamental, pois é ela quem garantirá que não recaia nas Instituições de Longa
Permanência a responsabilidade exclusiva pelo cuidado de idosos que são independentes e
sós. Neste sentido, o papel do governo municipal é estratégico e central, pois é ele o principal
provedor e articulador dos serviços de assistência social, saúde, educação, esporte, cultura,
etc.
Na esfera estadual Secretaria de Habitação, Companhia de Desenvolvimento
Habitacional Urbano e Secretaria de Desenvolvimento Social avaliam os pleitos, de acordo
com os critérios e condicionalidades estabelecidas em Decreto 19 e Resolução 20 que
regulamentam o Programa, considerando ainda o nível de gestão do município no Sistema
Único de Assistência Social - SUAS21, a existência de Plano Municipal de Assistência Social
aprovado pelos Conselhos Municipais de Assistência Social e a presença de Conselho
Municipal do Idoso ativo.
Após essa analise os municípios habilitados são incitados, através de seus órgãos
gestores da assistência social, a construírem um Projeto Social22, sob orientações da SEDS e
acompanhamento das Diretorias Regionais de Desenvolvimento Social - DRADS. Nele,
indicam um Gestor Social que será o responsável pela execução do Programa.
19 Decreto nº 56.448, de 29 de novembro de 2010. 20 Resolução Conjunta SH-SEADS, de 15.05.2009. 21 O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, com o objetivo de organizar a oferta de serviços socioassistenciais, classifica os Municípios para fins de gestão municipal em categorias, de acordo com seu porte populacional e rede socioassistencial disponível. Os níveis de gestão existentes são: Inicial, Básica e Plena. 22Após a implementação do Programa o Projeto Social deve integrar o Plano Municipal de Assistência Social - PMAS constituindo-se como serviço de ação continuada, devendo ser submetido anualmente ao Conselho Municipal do Idoso e de Assistência Social.
Página | 33
Além de custear o Projeto Social, os municípios devem garantir também recursos
humanos e tecnológicos para sua execução dentro do escopo, da qualidade e do prazo
estabelecidos23.
A construção da vila é responsabilidade da CDHU que a executa em terreno próprio
ou doado pelo município: elabora os projetos arquitetônicos; contrata a execução das obras e
dos serviços e doa o equipamento construído para as prefeituras municipais. No município a
vila deve compor a rede de proteção social para idosos24.
Dentre outras, são competências do município: identificar e selecionar potenciais
beneficiários dando publicidade aos critérios de elegibilidade25; assegurar a gratuidade da
moradia; articular com outros órgãos públicos e entidades da sociedade civil para a promoção
de ações integradas, dentre eles, o Programa de Saúde da Família ou rede de saúde local que
compõe o Sistema Único de Saúde – SUS - fortalecendo e ampliando a rede de proteção e
defesa dos direitos das pessoas idosas; gerenciar, monitorar e avaliar o projeto implementado;
estabelecer parceria com instituições especializadas para onde serão encaminhadas as pessoas
que vierem a se tornar dependentes e fragilizadas, de forma temporária ou permanente.
À Secretaria de Desenvolvimento Social – SEDS compete: aprovar o Projeto Social
das prefeituras prestando assessoria técnica para sua execução; articular-se com outros órgãos
públicos e entidades da sociedade civil para promoção de ações integradas; monitorar e
avaliar o Projeto Social implantado; realizar capacitação de técnicos municipais por meio de
oficinas, seminários, e/ou atividades equivalentes, com vistas à orientação quanto às normas,
funcionamento, implantação, execução e avaliação do Programa, entre outras.
23 Aqui se apresenta, no nosso entendimento, uma das fragilidades do programa, pois recai sobre o município o custeio total tanto da manutenção da infraestrutura do Programa, quanto da garantia de gratuidade de moradia e das ações socioassistenciais indispensáveis à operacionalização do Projeto Social. 24 Aqui identificamos a segunda fragilidade do Programa: apesar do potencial para se tornar uma inovação na modalidade de Serviço de Proteção Especial de Alta Complexidade, as amarrações junto à Política de Assistência Social, no âmbito do estado, foram mal tecidas: não criaram consensos entre os operadores desta política e não fomentaram a consolidação de um serviço socioassistencial para ser ofertado no equipamento. Apesar das boas intenções previstas em Decreto e Resolução, na prática o não financiamento do Projeto Social afirma o seu não reconhecimento como equipamento da rede de proteção social. Estas dificuldades não podem ser compreendidas de forma isolada, pois estão atreladas à uma situação mais ampla, fomentada e criticada, em fóruns de discussão, pela professora Aldaíza Sposati: a resistência do governo estadual em reconhecer e implantar o Sistema Único de Assistência Social no estado de São Paulo - vide a conceituação de promoção social que ainda vigora na Constituição do Estado (Arts.232 a 236) em detrimento da assistência social entendida como direito do cidadão, e dever do Estado. Todas essas questões serão abordadas e aprofundadas no terceiro capítulo deste trabalho. 25 Além da procura voluntária para seleção pública a demanda pode advir do Sistema de Garantia de Direito, em decorrência de denúncias de maus tratos e/ou abandono, dos programas de saúde, como o Saúde da Família que pode identificar situações de violação de direito nos domicílios onde presta atendimento ou de outros programas e políticas que atendem e identificam situações de irregularidade envolvendo idosos.
Página | 34
Até o momento em que este texto foi submetido ao Exame de Qualificação (setembro
de 2013) o Programa Vila Dignidade estava implantado nos municípios de Avaré, Itapeva,
Presidente Prudente, Ribeirão Preto e Caraguatatuba com um total de 102 unidades entregues.
Nesta primeira fase do Programa outros municípios estão com obras em andamento ou em
processo de licitação totalizando mais 368 unidades a serem construídas e atendendo cerca de
20 cidades paulistas.
1.3 O Trabalho de Campo
1.3.1 Antecedentes do Trabalho de Campo
O primeiro contato com o Programa Vila Dignidade, implantado no município de
Itapeva, se deu em 2 de fevereiro de 2011, data em que realizamos visita técnica –
profissionais da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, em companhia de técnicos da
Secretaria de Habitação e CDHU – ao município a fim de verificarmos as condições para a
inauguração, que aconteceria em poucos dias.
Neste momento não havia moradores no condomínio, pois o processo de seleção dos
idosos estava em fase de conclusão. A coordenadora do Programa que há época era também
coordenadora do CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência, Social
Elizabeth do Rocio Minaif Santos, nos falou de como estava conduzindo essa seleção, das
expectativas do município com a incorporação deste equipamento à rede de proteção social,
etc. Nosso primeiro contato foi estritamente técnico, naquele momento não poderíamos
imaginar retornar ao local para desenvolver pesquisa de mestrado.
Neste tempo, acabara de ser aceita no Programa de Estudos Pós Graduados em
Ciências Sociais da PUC – S.P onde apresentei pré-projeto de pesquisa que pretendia estudar
a institucionalização da velhice através da história oral de idosos, residentes em vários
modelos de moradia – pública e privada -, dentre elas o Programa Vila Dignidade.
No momento de construção do pré-projeto, o único município que já tinha inaugurado
sua Vila era Avaré. Então, a proposta era entrevistar os idosos residentes na Vila Dignidade
desta cidade – já que tínhamos participado mais ativamente do processo de concepção e
estruturação do Programa e, tínhamos mais proximidade tanto com a Diretoria Regional de
Assistência Social – DRADS, que é sediada neste município, quanto com os próprios idosos
residentes, pois já havíamos realizado algumas visitas de acompanhamento.
Página | 35
Aconteceu que, no desenrolar, naturalmente a pesquisa foi tomando outros rumos.
Primeiro porque encaminhamos o projeto à FAPESP e o relatório, que negava o
financiamento, alegava, entre outros argumentos, que o projeto era muito extenso e que não
seria praticável num programa de mestrado. A sugestão do avaliador era limitar a pesquisa a
apenas um modelo de moradia.
Depois da grande frustração, avaliamos que seria exaustivo entrevistar tantas pessoas
em lugares tão distintos e distantes - entre São Paulo e Avaré. Neste momento, a pesquisa
passou por um intenso processo de reestruturação, onde os objetivos foram revistos e um
novo foco surgiu: a questão da Casa, e do morar na velhice, permaneceu latente, mas agora
nossa hipótese seria testada num único lugar.
Entendíamos que este recorte nos possibilitaria um aprofundamento maior e mais
assertivo na questão do morar na velhice. Então, o projeto seria materializado exclusivamente
pela interação da pesquisadora com os moradores do Programa Vila Dignidade de Avaré.
Tudo estava caminhando bem, até que, nas férias de julho de 2012, período destinado
para a realização do trabalho de campo, a pesquisa sofreu outra guinada, fruto das forças
imponderáveis que nos pegam de surpresa resignificando as coisas à nossa volta.
A visita estava acertada com os profissionais de Avaré, o contato foi feito via DRADS.
No entanto, por razões diversas, havia sempre uma situação – excesso de trabalho, férias, etc-
que impedia a gestora do Programa de nos receber e freqüentemente nosso encontro era
adiado.
Com o passar dos dias, ficava claro que não seria possível realizar a pesquisa naquele
momento e, talvez, em nenhum outro, então, o que faríamos? O tempo corria acelerado, as
férias, único momento no ano disponível para a realização do trabalho de campo, poderiam
ser desperdiçadas sem que conseguíssemos realizar parte essencial da pesquisa, donde
emergiria a própria pesquisa.
Não havia mais tempo para uma nova reformulação, nem forças para isso. O projeto
adquirira vida e idéia de ter que abortá-lo prematuramente gerava muita frustração. Mil
temores assombraram nossa imaginação, até que, num momento de luz, nos atentamos para a
existência de outro Programa, semelhante em toda a sua idealização, e já inaugurado na
cidade de Itapeva.
Então, sem nenhuma cerimônia, entramos em contato com a gestora do Programa,
com algum receio, mas sem nada a perder! Tudo que poderíamos ouvir era “não será
possível” e isto não nos surpreenderia, pois já há algum tempo ouvíamos tal justificativa.
Página | 36
Na primeira tentativa conseguimos falar com a gestora que, surpreendentemente, nos
abriu todas as portas e autorizou que fizéssemos o que precisávamos fazer: nosso trabalho de
campo.
Totalmente prestativa e solidária ela me recebeu na semana seguinte, e nos dedicou
todo tempo e atenção: acompanhou-me até a vila, reuniu os moradores no Salão de
Convivência, me apresentou a cada um deles, disse o que eu pretendia fazer ali, falou da
importância da colaboração de cada um, colocou os funcionários à disposição para o que fosse
necessário, enfim, fez muito mais do que precisa e nos deixou totalmente à vontade naquele
lugar ainda desconhecido.
A consideração que os moradores dispensam a ela é algo impossível de ser descrito em
palavras, pois, muito provavelmente reduziríamos a afetividade e respeito mútuo que permeia
essa relação. Graças à ela nossa entrada em campo foi tranqüila e permeada de descobertas e
prazerosas trocas.
1.3.2 Apresentando nosso campo: a Vila Dignidade de Itapeva
A Vila Dignidade de Itapeva dista aproximadamente 9 Km do centro da cidade26, na
Rua Higino Marques s/nº - Bairro do Taquari. Partindo do Terminal Central, o ônibus que nos
leva ao condomínio é o São Camilo. Ele atravessa toda a cidade, num trajeto com duração
aproximada de 18 minutos - em horários que não são de maior trafego de veículos.
O bairro onde o condomínio esta localizado é uma região periférica da cidade, mas a
infraestrutura parece diminuir a distância do centro: há ônibus o tempo todo (cerca de 20min
de intervalo) e as avenidas de acesso se estendem até bem perto do condomínio, na entrada do
bairro.
Na avenida principal é possível encontrarmos variado comercio e prestadores de
serviços: casas lotéricas, supermercados, casa de ração, hortifrúti, escolas, postos de gasolina,
hotéis, etc. Portanto, não é necessário ir ao centro da cidade pra resolver as questões do dia a
dia.
Num bairro composto essencialmente por Núcleos Residências, destinados a
população de baixa renda, o condomínio dispõe de 18 residências distribuídas em um grande
terreno (conforme Figura 2).
26 Como os terrenos para construção são doados pelas prefeituras ou próprios da CDHU trata-se, comumente, de espaços com menor valor imobiliário e localizados em regiões mais afastadas dos centros das cidades.
Página | 37
A entrada tem portaria fechada e cercada por caminhos floridos que nos levam ao
centro do terreno onde há um Salão de Convivência. Em volta dele dois blocos: um com 12
casas e outro com 6. Em frente ao Salão de Convivência há uma área de lazer e uma pracinha
onde é comum encontrarmos os idosos em prosa. No fundo do terreno, com vista para um
verde vale, há a academia ao ar livre - onde os idosos podem se exercitar.
Cada casa possui sala e cozinha conjugada, lavanderia, uma suíte e pequeno quintal,
projetados segundo o Desenho Universal que garante a acessibilidade (interruptores em altura
ideal, pias e louças sanitárias em altura adequada, portas e corredores mais largos, pisos
antiderrapantes). Na parte externa a proposta se mantém com rampas de acesso e barras de
apoio que conduzem a todos os espaços.
Figura 1: Condomínio Vila Dignidade -‐ Itapeva -‐ S.P
Fonte: Arquivo Pessoal
Página | 38
Figura 2: Projeto Arquitetônico -‐ Vila Dignidade -‐ Itapeva -‐ S.P
Fonte: CDHU27
27 Acompanhando a numeração em azul é possível entendermos melhor a composição dos espaços na vila: 1 – Portão de Entrada; 2 – Rampa de Acesso; 3 – Pracinha; 4 – Salão de Convivência; 5 – Praça de Jogos; 6 – Praça de Exercícios; 7 – Bloco com 12 casas; 8 – Bloco com 6 casas.
Página | 39
Figura 3: Entrada das Residências
Fonte: Arquivo Pessoal
Os idosos que moram no condomínio foram selecionados pela equipe técnica do
Centro de Referência Especializado da Assistência Social – CREAS, do município de Itapeva.
Formada, prioritariamente, por profissionais das áreas de assistência social e psicologia
realizaram exaustivo trabalho considerando os critérios estabelecidos pelo Programa: cadastro
dos interessados, seleção, visitas domiciliares, entrevistas, acompanhamento e preparação dos
idosos para a inclusão no Programa, entre outras ações.
1.3.3 Conhecendo nossos Colaboradores
Numa sociedade de indivíduos, o homem moderno, “através do livre desenvolvimento
de suas atividades, constrói sua independência com seu trabalho e se torna simultaneamente
proprietário de si e de seus bens” (John Locke; In: Castel: 2005:17). Castel nos mostra que é
justamente a propriedade que garante segurança; é o suporte imprescindível no qual o
individuo pode ser reconhecido em sua independência.
Neste contexto, o individuo não proprietário - aquele que só tem seu trabalho para
viver ou sobreviver -, fica desprotegido e vulnerável aos riscos sociais e pessoais – eventos
Página | 40
que comprometem sua capacidade de assegurar, por si mesmo, sua independência social,
como: doença, acidente, desemprego, cessação da atividade em razão da idade, etc (Castel:
2005).
Nossos colaboradores sentiram na pele, ao longo da vida, os feitos de estar em
vulnerabilidade e, por esta razão foram incluídos no Programa Vila Dignidade. São pessoas
que pela própria condição (escassez de recursos financeiros, fragilidades em decorrência de
problemas de saúde, ruptura de vínculos familiares, etc) seriam potenciais usuárias das
Instituições de Longa Permanência uma vez que os municípios raramente dispõem de outras
políticas garantidoras de segurança e proteção ao idoso em situação de risco social e pessoal.
No condomínio Vila Dignidade do município de Itapeva viviam, quando realizamos o
trabalho de campo, 20 pessoas com idades entre 61 e 86 anos, sendo dois casais e dezesseis
idosos sós.
Figura4: Moradores da Vila Dignidade -‐ Itapeva -‐ S.P
Fonte: Site da Prefeitura de Itapeva28
A escolha deste grupo se justifica pela própria configuração do Programa que ao criar
um lugar – físico e social – para sujeitos com trajetórias de vida, por vezes, semelhantes,
28 Imagem extraída de matéria intitulada: Vila Dignidade realiza festa do dia do Idoso, publica no dia 08 de outubro de 2012 em: http://www.itapeva.sp.gov.br/secretaria/acao-social/noticia/vila-dignidade-tem-festa-no-dia-idoso-3264/ - último acesso 09/09/2013. Da esquerda para a direita: Dona Delci, 2ª pessoa não conhecemos; Dona Maria Aparecida Rosa; atrás dela Seu Antonio, ao lado Dona Maria Carvalho; Dona Zélia; atrás dela Beth (coordenadora do Programa); ao lado as duas pessoas seguintes não conhecemos; Dona Maria Duffet; Seu Abel; Seu Irineu e Dona Tereza.
Página | 41
dispõe de um conjunto de sujeitos que em razão de sua condição humana e de sua interação,
possui unidade argumentativa diante de uma problemática comum (Ataíde: 2002), formam
uma comunidade de destino.
Essa comunidade de destino não representa os idosos, esse conceito genérico e
pasteurizado, tão exaustivamente reproduzido, mas, apenas, uma pequena parcela de pessoas
com mais de sessenta anos que tiveram suas trajetórias individuais marcadas por fenômenos
comuns: subemprego, viuvez, abandono, doenças, acidentes, e outros imponderáveis que as
expuseram a situações de vulnerabilidade.
Não houve um número certo de entrevistados estabelecido a priori, participaram da
pesquisa aqueles que tiveram vontade e disponibilidade. Dos vinte moradores entrevistamos
dez, conforme tabela abaixo, sendo: cinco mulheres e cinco homens. Realizamos dez
encontros: nove entrevistas foram individuais e uma, em que o entrevistado seria o marido,
contou com a participação da mulher, em vários momentos.
Do total das entrevistas utilizamos oito. Duas foram descartadas após criteriosa
avaliação: uma por apresentar detalhes da intimidade da entrevistada que entendemos poder
colocá-la em risco de violência doméstica e a outra pela dificuldade do entrevistado em
construir sua narrativa – no conjunto, muito fragmentada e dispersa das questões que norteiam
a pesquisa.
Abaixo, tabela identificando os colaboradores deste trabalho:
Tabela 1: Identificação de nossos colaboradores
Nome Idade Escolaridade Profissão Cidade Natal
Geni de Oliveira Lima 73 Analfabeta Lavadeira Itapeva
Maria Aparecida Duffet 86 4ª série Costureira Itaberá
Abel Paulino dos Santos 64 2º Grau Caminhoneiro Itaberá
Adelino Rocha 84 _ Agricultor Itaberá
Zélia Aires dos Santos 64 - Bóia fria Jaguariaivá/PR
Cipriano Divino Gomes 61 4ª série Ajudante Geral Apiaí
Maria Carvalho de Lara 66 1º ano Dona de Casa Itapeva
Irineu Fonseca 64 4ª série Caminhoneiro Itapeva
Antonio de Paula Galvão 75 4ª série Pedreiro Serro Azul - PR
Maria Aparecida da Rosa 63 4ª série Doméstica Presidente
Prudente
Página | 42
Um grupo aparentemente reduzido e em nada homogêneo. Compreende 50% dos
moradores da vila e concentra pessoas em diferentes momentos da vida: algumas que
acabaram de entrar na chamada “Terceira Idade” e outras que vivem nela há quase trinta anos;
algumas totalmente independentes e outras que convivem com determinadas limitações físicas
ou cognitivas leves, pessoas de bem com a vida e outras nem tanto; otimistas e pessimistas;
algumas velhas outras “jovens de espírito”; algumas cansadas, outras com disposição para
viver mais 50 anos.
Nesta breve apresentação ficam evidentes as inúmeras singularidades e a
impossibilidade em falarmos da velhice, ou dos idosos, de forma generalista. São infinitas as
possibilidades de viver a velhice e a categorização pura e simples, “os idosos”, que considera
apenas a quantidade de anos somados com a passagem do tempo, se mostra de partida, irreal.
Ela propaga a velhice e o envelhecimento como coisas ruins, que devem ser afastadas
de nós - a qualquer preço - em prol do prolongamento de uma vida que nem sempre esta
pautada em viver bem a vida. Conduz-nos a uma viagem inevitável às fragilidades,
incapacidade, desamparo e à morte.
Essa concepção apregoa o rejuvenescimento constante e a reversão do processo de
envelhecimento através do uso de produtos cosméticos, medicina plástica (para reparar os
defeitos provocados pelos anos), alimentação adequada, viagens, atividades físicas e uma
série infinita de indicações que aquecem o mercado, nos obrigando consumir a fantasia da
juventude eterna.
Fugindo destes estereótipos buscamos as particularidades e encontramos diversas
visões sobre o envelhecer que foram construídas ao longo da vida, pela maneira com que cada
pessoa viveu e encarou a força dos acontecimentos imponderáveis deflagrados em suas
trajetórias.
As entrevistas foram pensadas para acontecer individualmente e assim foram
operacionalizadas, exceto pela vontade de um casal – Seu Irineu e Dona Tereza - que optaram
por realizá-la juntos. Na realidade, D. Tereza, inicialmente, disse que o entrevistado seria seu
Irineu – ele falaria pelo casal, mas em alguns momentos ela, que esteve presente toda a
entrevista, se manifestou e acabou que ambos participaram do processo.
Por esta razão, a narrativa de Seu Irineu foi a que demandou maior esforço no
processo de transcriação. Era preciso manter a proposta do trabalho – cada idoso ter a sua
narrativa – sem silenciar Dona Tereza. A solução encontrada foi colocar as contribuições de
Dona Tereza na fala de Seu Irineu como no trecho a seguir: “A Tereza sempre ficou em
Página | 43
Itapeva. De vez em quando ela viajava comigo quando eu trabalhava no caminhão que era do
meu pai. Quando eu trabalhava nas outras firmas, de vez em quando ela ia comigo. Foi pra
São Paulo, pra Campinas, pro Rio, pra Porto Alegre e pra Santa Catarina”.
O tempo estimado para cada entrevista foi de 1hora podendo, é claro, se prolongar, ou
não, a depender da disponibilidade de nossos colaboradores em nos expor suas vidas.
Tivemos entrevistas que se concluíram em menos de 30 minutos e outras que chegaram a
1h30 de duração.
Nossos colaboradores escolheram o local onde gostariam de ser entrevistados e, na
hora marcada, estavam a minha espera. Visitei sete residências, dois entrevistados realizaram
a entrevista no Salão de Convivência e um numa das pracinhas do condomínio.
O momento da entrevista é único e acontece regado de emoções e impressões que vão
ganhando forma ou vão se diluindo no desenvolver da conversa. O inicio é sempre tenso,
imagino que para ambos. Para o pesquisador fica a sensação de invadir a vida do Outro, um
desconhecido que, por razões pouco explicáveis, aceita abrir a sua vida e se submeter à
curiosidade alheia. Para o entrevistado uma chateação, às vezes, mas quase sempre, o
reconhecimento de que sua história tem algum valor e sua experiência é digna de ser
partilhada com os mais jovens29.
Cada entrevista se desenrola num clima de imprevisibilidade. Acontece à seu modo e
muitas vezes nos pega de surpresa com situações inusitadas - como uma piada com
conotações sexuais que é solta pelo entrevistado após emergência de empatia entre
entrevistado e entrevistador, ou alguma lembrança dolorosa, que o entrevistado não quer
mexer e o entrevistador, no entusiasmo, insiste sem se dar conta da invasão.
Dona Geni nos recebeu com desprendimento. Quando chegamos à vila – no primeiro
dia de entrevistas – foi ela que nos abriu o portão e já foi nos convidando para entrar em sua
casa e tomar um café – que acabara de coar. Como eu cheguei cedo ela, mesmo sem estar
agendada, já se dispôs a nos contar sua história.
Havia entrado no Programa há apenas 14 dias e estava extasiada com a experiência de
viver ali. Passava por uma situação muito difícil: foi despejada de sua casa, pois estava com o
aluguel atrasado - quando foi contemplada não tinha endereço.
Nossa conversa foi breve e bem objetiva. Como ela não estava agendada, eu temia
atrapalhar sua manhã e atrasá-la para as vendas de sonhos.
29 Tivemos noção da importância que representava, para a maior parte dos idosos, ser entrevistado pelo clima cerimonial que era dado a este momento. No horário marcado eles estavam à nossa espera, todos preparados para a solenidade – bem vestido, de posse de seus documentos e integralmente dedicados ao encontro.
Página | 44
Com D. Maria Aparecida Duffet o encontro se deu em ritmo de cerimônia. Antes do
horário marcado ela já estava à minha espera no Salão de Convivência - é uma mulher muito
bonita e estava linda, toda preparada para este momento.
Fomos à sua casa, que estava impecável, tudo muito limpo e organizado – parecia
uma casa de boneca. Quando falou de sua infância e juventude se emocionou muito com as
lembranças represadas e que vieram à tona. Nossa conversa foi longa e cheia de emoções, ao
final percebi que ela estava cansada e desgastada emocionalmente.
A conversa com Seu Abel foi marcada por silêncios que eu não soube como penetrar...
Sua ansiedade era tanta que me tocou e me deixou sem jeito para conduzir a entrevista.
Percebi que ele tinha selecionado o que diria – não sei se com receio do que pudesse lhe ser
questionado.
Na transcrição desta entrevista tomei consciência da importância do uso do gravador.
Ele permite ao pesquisador ouvir a conversa em outro contexto, quantas vezes desejar, recriar
o cenário e rever sua performance.
Graças a ele, parte de nossas impressões se diluíram quando ouvíamos nosso dialogo
com seu Abel – por exemplo, ficou mais claro que os silêncios tiveram sim à ver com suas
escolhas pelo que falar, mas não somente; eles também decorrem de sua fala baixa e pausada,
conseqüência do AVC. O nervosismo que tomou conta de nós no momento da entrevista não
nos permitiu perceber esse detalhe, que na escuta, se mostrou tão evidente.
Seu Adelino é um contador de histórias, com ele realizamos a entrevista mais
fantástica... Ao narrar se parece com um poeta recitando epopéias.... Várias intensidades e
tons marcam sua fala que é ritmada, típica de nossa cultura rural – marcada pelo sotaque e
pela linguagem característica da roça.
Foi difícil o processo de transcriar, transpor a linguagem oral, e seu rico vocabulário
de homem do campo, para a linguagem escrita, que não reconhece palavras com a conjugação
fora da norma culta ou que não constem em dicionários. Neste processo privamos pela
mínima intervenção possível, vez ou outra um “tá” foi substituído por um “esta” – no intuito
de não deixar o texto cansativo para o leitor.
No geral, o desafio foi não perder o ritmo e a sonoridade do texto falado quando o
transpusemos para a linguagem escrita, por isso preservamos erros gramaticais e palavras que
só existem na língua falada como: barataida (para definir o plural de baratas); maleita (doença
de Chagas), encaixador (nome dado à peça onde a cana de açúcar se encaixa para ser
triturada, nas engenhocas improvisadas por quem não dispõe de recursos para a aquisição de
Página | 45
um engenho), tremimento (tremedeira nas pernas); andada (caminhada), aluminar (iluminar
com lampeão), fumegar (borrifar veneno com bomba).
Dona Delci, que estava ótima no dia em que chegamos à vila, falante e disposta a
colaborar, foi acometida por um súbito mal estar no dia em que estava agendada a sua
entrevista. Todo o tempo que passamos na vila ela se mostrou debilitada e pouco à vontade
para recusar ser entrevistada, por isso, achamos melhor não realizar a entrevista evitando a
sua exposição – o que nos pareceu ser o seu grande temor.
Dona Zélia preferiu conversar conosco no Salão de Convivência. Nossa conversa foi
breve e bastante objetiva. Para ela nosso questionário não serviu de disparador, respondia
apenas o que lhe perguntava sem aprofundamento e sem se deixar levar por emoções. É uma
mulher muito independente e prática, nos parecia que ela queria acabar logo com aquilo, não
porque fosse difícil realizar, mas pra poder fazer outras coisas.
Seu Antonio estava à minha espera. Me recebeu em sua casa e tivemos uma conversa
longa e muito agradável. Na entrada percebi que na mesa da cozinha havia bíblias e revistas
religiosas. Ele estava de corpo e alma em nosso encontro. Cuidou para que eu compreendesse
o que ele falava e, por fim, conduziu o processo – como se estivesse me entrevistando, sua
intenção era saber de minha vida religiosa e me apresentar a sua Igreja, quem sabe me
convenceria a conhecê-la melhor. Ele é um pregador e é agradável ouvi-lo falar de Deus, sua
fé impressiona!
Por fim, Dona Maria Rosa, que nos recebeu em sua casa, nos deu uma lição de vida ao
narrar histórias de superação. Mergulhou em nosso encontro, reviu e coloriu o seu passado
com as luzes do presente. Nos encontramos em sua casa e a satisfação em poder contar sua
história me fez ter certeza de que valeu à pena desenvolver essa pesquisa.
Página | 46
Capitulo II: Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de idosos
Figura 5: Alguns de nossos colaboradores30
30 O casal - Dona Tereza e Seu Irineu; Seu Abel (canto superior); Seu Adelino (abaixo); Dona Zélia (canto inferior direito); Dona Maria Duffet (centro); Dona Maria Rosa (canto inferior esquerdo).
Página | 47
Dona Maria Aparecida Duffet31
Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”. Mas também a gente não pode se apegar às coisas toda a vida. Porque às vezes você é muito apegada a alguma pessoa da família, de repente, você perde essa pessoa e o sofrimento é muito maior não é mesmo? Agora, coisas materiais não, porque é coisa que, se a gente tiver dinheiro, compra outra, não é mesmo? Eu era muito agarrada a certas coisas, agarrada com aqueles presentes que eu ganhava.
Maria Aparecida Duffet: 86 anos: 2012
Eu nasci em 22 de maio de 1926, meu pai tinha 24 anos quando eu nasci. A gente era de uma
família pobre. Meu pai tinha os pais dele bem de vida lá em Monte Sião, Socorro, lá perto de
Bragança Paulista, Ibitinga, já é divisa. Os pais dele eram bem de vida, mas ai meu pai
resolveu vir com um tio dele pra cá, pra essa região.
Naquele tempo nem tinha estrada, era “caminhinho” assim, feito aquele “risquinho” no meio
das matas. Então, esse tio do meu pai trabalhava com tropa. Eram 200-300 que traziam as
cargas que vinham de outros países ou de outros estados pra Santos e, de lá, transportava em
lombo de burros. Os burros de carga que carregavam; coitadinhos dos burros!
Com 12 anos de idade ele saiu da casa do pai dele pra acompanhar o tio e depois não voltou
mais pra lá. Porque daí veio pra essas regiões, era muito difícil, imagina um moleque de 12
anos! E ele dizia que era uma fila muito grande de animais transportando por meio daqueles
“caminhinhos” no meio do mato.
O tio dele se estabeleceu, acho que casou ou já era casado, não tenho muita certeza. Meu pai
não era assim, de ficar contando pra gente os assuntos dele. Acho que minha mãe sabia, mas
minha mãe também trabalhava muito, coitada, aquele tempo era serviço tudo rústico.
Nós morávamos em Itaberá, numa Vila que, hoje, é pertinho da estação rodoviária. Tinha o
sitio onde a gente trabalhava, fazia coisas pra consumo da casa mesmo. Meu pai arrendava o
sitio, aquele tempo tinha o tal de arrendar. Hoje nós alugamos as casas, mas, naquele tempo o
sitio era arrendado. Minha mãe ia cedo lá pra esse lugar e eu ficava em casa com os filhos
menores.
1 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 10h30min, com Maria Aparecida Duffet; 86 anos de idade; Escolaridade: primário (até 4ª série). Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h33min24seg; Local da entrevista: casa da colaboradora.
Página | 48
Eu era a mais velha de 10 irmãos, dez irmãos na seqüência! Depois de eu casada nasceram
dois. Depois minha mãe faleceu, com 46 anos de idade, por ai, e ficou a menina de três anos –
que trabalha hoje no presídio lá em Votorantim, que pertencia a Sorocaba, agora parece que já
é independente; já faz trinta anos que ela trabalha nesse presídio. Ela ficou com três anos de
idade, ficou um irmão com cinco anos de idade e os outros... Eu era a única casada, eu casei e
nem conhecia meu marido. Foi um casamento arranjado. Coitado, ele era feio pra caramba!
Quando eu o conheci eu morava em Itaberá. Ah, esse casamento foi assim, dá pra montar uma
novela! Eu tinha completado 18 anos e ele era 24 anos mais velho que eu. Fazia poucos meses
que nos conhecemos, por intermédio de um parente do meu pai, e, logo em seguida, ele
conversou com meu pai e com minha mãe. Daí, não sei lá como é que fizeram, arrumaram um
casamento pra mim...
Naquele tempo não havia separação e até que ele era legal. Não tinha vicio, era um homem
muito bom, de família boa. Meu sogro era um italiano já de idade, ele morreu com mais de
cem anos, morreu na minha casa. Ele não acostumava com os outros filhos e ficou com a
gente depois que eu casei.
Quando me casei fui morar num sitio, 18 quilometros adiante de Itaberá, na estrada que vai
pra Avaré. Um bairro que tem o nome da nossa família até hoje, Bairro do Quarentei, às vezes
passa nas noticias. Quando falece uma pessoa conhecida do povo por aqui – depois veio muita
gente morar pra cá, em Itapeva - eles falam “fulano de tal faleceu lá, não sei o que, não sei o
que, lá do Quarentei, fulano é Quarentei”. O sobrenome daquela pessoa que faleceu como se
fosse da família da gente, é assim até hoje.
E daí é uma vida muito complicada, a minha vida foi uma vida sem infância. A gente não
tinha tempo de brincar com outros colegas. Era tudo ajudando a fazer “servicinho”.
Os meus irmãos, graças à Deus, todos deram boa pessoa, bons pais de família. Não tinha
nenhum separado, agora já tem. Tem alguns bisnetos dos meus irmãos falecidos que já
entraram nessas coisinhas por aí. Não chegaram a fazer coisas terríveis, mas eram usuários
dessas coisas. Agora já são tudo homens, casaram outros já separaram, é um balaio de gato!
Tem alguns que já são casados duas vezes!
Eu me casei em 1948 e minha mãe faleceu em 1950, dai ficou as crianças pequenas tudo pra
cuidar. Depois foi meu sogro que faleceu.
Página | 49
Quando eu casei fui morar nesse sitio que pertencia, uma parte já pertencia pro meu falecido
esposo, parte dos 50% que divide pros filhos quando falece um dos pais. A outra parte era do
meu sogro. Meu marido nunca tinha sido casado, era solteirão. Parece que eles eram também
em dez irmãos - entre homem e mulher.
Então, me casei e daí a minha mãe foi morar com a gente. Meu pai, eu não sei o que deu lá na
cabeça dele – aquele tempo eles falavam negra, mas não era negra, era uma morena, bonita,
cabelo cacheado. Ela tinha um marido que bebia demais e não sei lá o que deu que meu pai
pegou e foi embora pra Jacarezinho, lá no Paraná, com essa mulher.
Daí minha mãe ficou doente. Durou acho que uns oito meses doente. Vai pra lá, vem pra cá,
não tinha nem médico lá por perto. Era tudo estradinha de terra ainda pra vim pra cá ou pra ir
pra Itararé, que eram as cidades mais próximas. Fez tratamento, ficou internada em Avaré,
mas não adiantou. Depois de uns oito meses que ela ficou doente ela perdeu a voz. Quando
ela faleceu meu pai já estava separado dela, morava lá pra Ourinhos e Jacarezinho –
Jacarezinho é pertinho de Ourinhos.
Ficaram nove irmãos, inclusive tinha três que eram bem pequenos ainda. Você vê: a menina
com três anos o outro com cinco e depois, cada dois anos era um, seguido. Então, foi muito
difícil a vida pra gente!
Meus irmãos acabaram sendo meus filhos. Depois acabou que uns casaram, depois tiveram os
sobrinhos que eram muito apegados com a gente. E depois, passado muito tempo, meu marido
- a gente não sabia, ele tinha um pulmão só - foi indo, foi indo, ele começou a ficar com
problema. Dizem os médicos que ele estava tuberculoso. Mas ficou misturado com a gente
toda vida, e nunca, ninguém na família teve essa doença. Nem vacina não existia naquele
tempo. Então foi assim, difícil. Paro por aqui, porque, senão... Eu não gosto de ficar
lembrando, é passado, já passou. A gente tem que viver o presente, porque o futuro pertence a
Deus.
Não tivemos nenhum filho, mas era problema dele. Aquele tempo os homens nossa! Não
podia nem falar nada pra ir em médico. E depois, os dois sobrinhos dele, do lado do sangue
dele mesmo, tem o mesmo problema, até hoje. Tem um que mora em Pouso Alegre, se
formou advogado tudo. Mora em Pouso Alegre e adotou uma menina. Mas já tem neto
também, dois ou três netos.
Página | 50
Os trabalhos que eu realizei na minha vida sempre foram doméstico, esses “domesticão
grosso” que teve antes, as casas eram tudo difícil de limpar. Cuidar de criança, depois a gente
tinha que ir na escola também. Às vezes eu ia um dia e faltava dois, pra ficar cuidando da casa
e dos irmãos pequenos.
Assim foi a vida da gente! Eu estudei só até o primeiro grau, aquele tempo chamava Primário.
Depois tinha normal, tinha ginásio, tinha isso, tinha aquilo outro, pra depois se formar. Mas
como não tinha na cidade da gente tudo isso ai perto, eu só fiz o primário completo.
Antes eu bordava, mas agora não faço nada mais. As minhas irmãs sabem bordar muito bem.
Tenho duas irmãs e uma “sobrinhada” que faz tricô, faz crochê, faz um monte de coisa. Mas
eu não, como eu não tive tempo de aprender antes...
O meu hobby era costura, eu costurava, depois que os meus irmãos cresceram tudo. Eu fazia
vestido de noiva, costurava calça, camisa pra homem. Naquela época não tinha esses figurinos
que agora a gente vê na vitrine, então, eu saia, quando podia, ia nas cidades que tinham
aquelas vitrines com alguma coisa pra ver os modelos tudo. Ia pra Avaré, Sorocaba,
Itapetininga. Eu viajei bastante. Conheci esses lugares depois que casei e que fiquei livre dos
meus irmãos. Então, costurei muito, muito, muito, muito.
Não tenho mais vontade de costurar porque agora eu fiquei com uns problemas, de uns
tempos pra cá. Até vendi minha máquina pra vim pra cá. Dispus de um montão de coisa sabe,
agora só tenho o necessário. Tanta coisa que eu tinha: cristaleira, aquelas coisa de cristal, ah,
tanta coisa!
Em 1983 me casei pela segunda vez. Morava lá em São Bernardo do Campo. Antes morava
num apartamento e mudei, quando casei a segunda vez. Me casei na igreja do Pari, de Santo
Antonio do Pari. Casei na Igreja e no civil, depois a festa foi em São Bernardo do Campo num
restaurante internacional que era do meu falecido cunhado, na verdade era meu cu-cunhado,
ele era cunhado do Duffet, meu segundo marido – Matia Duffet era o seu nome. Então daí a
festa foi lá, eles deram festa pra nós no restaurante internacional! Foi muito legal.
É que está difícil, numa mala trancada, senão ia mostrar a foto dele. Quando ele tinha os seus
trinta e cinco anos de idade, ah! Era um gatão! Mas quando eu o conheci ele já era de idade.
Página | 51
Ele era treze anos mais velho que eu. Mas era iugoslavo e tinha uma pele de bebe. Tem a foto
da gente aqui, essa está mais fácil32. Mas isso foi tirada assim com maquininha dessas
simples, no jardim da nossa casa, lá na frente.
Essa aqui é a única que a gente tirou, do jeito que estava em casa, na Rua João Cavinato.
Fomos vizinhos do Lula por lá, sabe. Então, tinha um “vitrozão” que era do tamanho desta
parede aqui, mais ou menos, talvez um pouco maior, tudo de vidro e com grade. Tinha
garagem, tinha um cachorrinho. Tudo era muito bem cuidado, bem arrumado.
Ai ele já estava de idade, e, depois da sua morte, foi um tal de mudança. A gente que não tem
casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas, depois larga lá e vai ficando. A gente
também vai perdendo o gosto. É complicado! Ah, agora esta tudo “simplesinho” mas, antes,
nossa! A gente pagava faxineira pra fazer faxina na casa, limpar aqueles vidros, aquelas
“coisaradas” tudo.
Nossa casa não era tão grande: na frente tinha o jardim, tinha garagem que saia do lado, a
porta saia na garagem assim, depois saia na rua, tudo com grade também. E depois saia pela
porta da garagem, lá no fundo, saia atrás, na lavanderia, tinha um quintal bem grande Tudo
com aqueles caquinhos - antes usava muito, de três ou quatro cores. Muito legal, só que não
era a nossa casa, era do sobrinho do falecido.
Eles eram donos do Restaurante Internacional e do Motel Le Mond, que foi muito famoso uns
tempos atrás. Aqueles atores que vinham de fora, como diz o Chaves, “aquela gentalha que
vinha de fora” iam tudo se hospedar lá. Lá tinha a suíte Presidencial, tinha a Real, tinha não
sei o que mais, tudo muito bonito, maravilhoso. Até a nossa primeira noite nós passamos
numa dessas suítes.
Meu segundo casamento foi um conto de fadas, foi muito legal! Só que não foi filmado.
Naquela época nem tinha muito recurso pra fazer filmagem. Não tinha, 1983, veja bem. E no
primeiro casamento então, que não tinha nem fotógrafo nessas regiões. Era tudo difícil.
A casa que eu morava era deles. Quando eles tinham o restaurante compraram muitos
imóveis, compraram apartamento lá no centro. Lá onde eu morava também era centro, só que
eram casas baixas. Ele comprou, lá no centro da cidade, um pouquinho mais pra frente, num
apartamento de onze andares. Mas é cada apartamento, que dá uma mansão lá dentro, tanta
coisa que tem e tanto cômodo. Esse é o Toninho – o nome dele é Antonio Singer. O pai dele
32 Me mostra uma fotografia..
Página | 52
também era iugoslavo. Só que a mãe era Duffet e o pai era Singer – não tinha nada á ver com
aquela fábrica de máquina de costura.
Quando começo a construir esse prédio dois dos filhos compraram, um apartamento cada um.
E o Toninho, que era dono dessa casa onde a gente morava, ele comprou no décimo primeiro
andar – que era o último andar. Muito grande e muito bonito os apartamentos, só que Deus
me livre e guarde aquilo lá pra limpar.
Isso aconteceu quando a gente casou, aí ele falou assim: “olha tio, eu não quero alugar
aquela casa. Eu não quero vender e nem alugar aquela casa que eu morava. Vocês casando,
vão morar nela. Leva primeiro a Maria pra ver se ela vai gostar da casa, do bairro e tudo e
daí vocês vão morar lá e vocês não vão pagar nada. Vocês vão pagar só água e luz”.
Telefone, aquele tempo não tinha ainda, demorou pra conseguir uma linha de telefone. Não
tinha nem celular nem nada. E ele dizia “Daí vocês vão pagar só isso. Nem imposto predial
vocês vão pagar. Eu vou pagar tudo e as reformas, o que tiver lá pra fazer”. Naquele tempo
eles tinham setenta e dois empregados – entre o restaurante e o motel. O motel era enorme,
uma vila maravilhosa! Toda florida parecia um condomínio fechado. Muito bonito.
Depois, construíram mais dois prédios e fizeram outros motéis mais simples. Eh, tanta coisa!
Depois foi indo, acho que uns dez anos depois, meu cunhado ficou doente, deu um negócio
nele, AVC. Tava jogando carta lá no salão do restaurante com os amigos dele. Ele tinha
muitos amigos aposentados, estrangeiros também. Deu um negócio nele lá, que ele ficou
falando pouco e ficou todo deformado: as pernas, o braço, foi preciso depois, quando ele
melhorou mais, comprar um carro adaptado.
Eles também têm casa em Juqueí, lá na praia, uma mansão maravilhosa! Eu tenho foto dela ai,
um albunzinho, tirado assim... Mas era muito legal viu! Para aqueles lados vai pela Rio–
Santos. Agora está tudo desenvolvido, aquelas praias por lá, nossa... Muito bonito, eu gostava
muito. A gente ia e ficava o mês todo lá. Meu marido já era aposentado.
Então, foi isso que o sobrinho dele falou: “oh tio, olha, o dinheiro que vocês vão investir em
comprar casa vocês vão pegar e vão passear”. Mas ai, eu já conhecia muitas partes do Brasil,
do outro casamento, eu já não queria mais estar passeando, mas na praia a gente ia sempre.
Meu marido faleceu no dia 02 do mês sete de 2001. Eu ainda fiquei morando lá em São
Bernardo por dois anos e pouco, não chegou três. A minha família, que era daqui de Itapeva -
Itapeva 4, Itapeva 2, Jd. Virginia, Geraldo Alckmin, Vila Nova e por aí afora - são muita
“sobrinhada” e tinha meus irmãos, eles não queriam que eu ficasse morando lá. Lá, só tinha a
Página | 53
minha cunhada, esposa do meu cunhado que era o dono do Motel e daquelas coisas lá. Ele já
tinha falecido, fazia uns sete anos, só tinha a minha cunhada e a “sobrinhada”, e tinha uma
outra cu-cunhada também. E a “sobrinhada” do lado dele, não tinha ninguém da minha
família.
Então, eles achavam que estava ficando difícil, porque estava acontecendo coisas por lá. Essa
malandragem do povo, que aprende tão rápido. A gente morava na casa sozinha, e eles
queriam que viesse embora pra cá, porque eles tinham dificuldade de atravessar São Paulo pra
ir pra São Bernardo. Às vezes chovia, dava enchente naqueles rios, muito engavetamento -
quando dá uma batida e ficam aqueles carros tudo junto. Eles morriam de medo daquilo.
Tinham carro e sabiam dirigir até chegar lá em São Paulo, agora, pra atravessar aqueles meio
lá é que eles tinham dificuldade. Daí, nossa mãe do céu! Todo dia telefonava um ou outro, de
dia ou de noite.
Então eu fiquei pensando; “ai meu Deus sabe que eu acho que é mesmo”. E eles lá, não
queriam que eu viesse. Os sobrinhos do meu marido e a minha cunhada e a outra cu-cunhada
não queriam que eu viesse embora. Essa cu-cunhada - não sei se ela está viva agora, até esses
dias atrás estava - é espanhola, filha de espanhóis. E o meu cunhado também veio de lá da
Iugoslávia, vieram tudo criança, pequeninhos.
Aí, foi indo foi indo, até que eles me convenceram de vir embora pra cá. Eu vim pra morar
junto com uma irmã que mora em Sorocaba, no parque São Bento. Ela é mãe de doze filhos,
tem dez vivos e dois falecidos, morreram quando crianças pequenas ainda, idade de dois, três
anos. Quando fez quarenta e três dias que eu tinha ficado viúva, o marido dela estava fazendo
caminhada na rua, lá em Sorocaba, e diz que, de repente, deu um negócio nele e ele caiu, a
sorte é que caiu na calçada, antes de chegar em casa, que ficava umas três quadras dali. O
vizinho correu e chamou o resgate, levaram ele, deram entrada no hospital, mas não deu
tempo de socorrer.
Na entrada, já “puft”, teve um infarto fulminante. Ele era novo ainda! Daí essa irmã ficava
falando: “vamos embora, vamos embora lá pra Itapeva”. Eles alugavam casa em Sorocaba.
“Vamos embora pra Itapeva, agora já casaram, os meus filhos já casaram quase todos, é só
eu e mais dois rapazes solteiros. Nós vamos morar junto lá, por essa, por aquela, mas um
monte de coisa”.
Eu ficava pensando; “mas meu Deus será que vai dar certo?” Ai, até que no fim eles me
convenceram. E o pessoal lá de São Bernardo chorava, não sei se eram lagrimas de verdade
ou eram falsas, mas choravam todos eles. Eles eram muito bons.
Página | 54
E a minha cunhada falava: “ai Maria você não vai embora”. Quando ela veio da Iugoslávia
pro Brasil ela tinha 10 meses de idade. Eu sei que olha... faz tanto tempo. Irmãos são assim,
quando é tudo menor de idade brigam, daqui a pouco fazem as pazes, tudo legal. Mas, depois
que casam, já entra outras famílias no meio. Eu sei que você sabe, ela tinha três filhos homens
e uma mulher. Depois que começaram a entrar as famílias de fora na nossa família eu já sei
que não é mais aquilo. Já é outra coisa. Ela falava, “veja bem, se eu fosse você não ia, ficava
aqui”.
Então, depois disso tudo, a gente combinou e veio morar em Itapeva. De Sorocaba, veio um
caminhão bem grande, um baú, trouxe os móveis dela e trouxe os meus de lá de São
Bernardo. Lá eu dei um caminhão cheio de móveis, “coisarada” pra uma casa beneficente,
Casa de idoso, eram padres que tomavam conta.
Então, daí, a gente combinou e veio morar no Itapeva 4, que fica lá em cima, perto da torre de
transmissão, daqui dá pra ver. Eu fui morar lá com ela. Foi em 2005 que a gente veio pra cá,
dia 25 de maio, próximo do meu aniversário. Chegamos tudo junto, até chovia pra “caramba”
quando chegamos aqui. Passados oito meses ela, um dia, falou pra mim que ia voltar pra
Sorocaba, depois de oito meses!
Os filhos trabalhavam no hospital lá em Sorocaba, um trabalhava num hospital outro no outro.
Chegaram aqui e não arrumavam serviço e o pessoal de lá ligando pra eles voltarem que o
serviço estava à disposição ainda, pois não tinha ninguém ocupando a vaga.
Cheguei um dia da Igreja, a minha irmã falou: “ah Maria sabe, eu resolvi, vou voltar pra
Sorocaba de novo”. Só que lá ela alugava a casa então, teria que alugar a dela aqui pra pagar
aluguel lá. Ela interava um pouco mais e morava numa casa boa em Sorocaba, no Parque São
Bento. E ela falou: “você volta com a gente, não é?”
Eu falei, “olha, você vai me desculpar pela expressão, mas...” Quando eu era criança eu via
aquele pessoal, coitados também era todo mundo analfabeto, não sabia nem o que falavam,
mas diziam que quem se muda e volta pra trás é cachorro. Diz que os cachorros iam e não
acostumavam, voltavam pra trás, na morada velha. Ah menina, você que coisa!
Eu falei pra ela assim, “eu não vou voltar, eu já dispus de muita coisa, você sabe disso, e
agora vou voltar pra trás de novo. Eu não, eu vou ver se arrumo aqui, nem que seja um
cômodo desocupado pra colocar tudo que eu tenho e fico. Nem que eu vá dormir na pensão,
em algum lugar”. Tinha a casa dos parentes que moravam perto, é claro que eu não ia dormir
em pensão nenhuma. Mas se precisasse, pensão agora é só pra dormir, porque pra comer,
Página | 55
agora tem coisa pra comer em tudo quanto é lugar: restaurante, comida caseira, marmitex,
essas coisaradas...
Ai eu falei: “eu não vou voltar não. Vou ficar aqui mais uns dias, se tivesse tido tempo eu ia
ver se arrumava uma casa pra me mudar, mas se não dá tempo, deixo as coisas aqui mesmo,
na sua casa até eu arrumar um lugar ai, depois me mudo”. Porque a casa ainda não estava
comprometida com ninguém. Pra eu ficar na casa dela, era muito grande, eu não queria
também. Ai foi assim!
Depois de lá eu fui morar com meu irmão que morava pertinho assim, uma distancia como ali
no ponto do ônibus, pois saiu a inquilina da casa dele. Ele morava na frente e tinha a casa do
fundo com três cômodos grandes, banheiro e um quintal. Era tudo junto, as pessoas que
morassem no fundo não podiam ter criança. Mas como eu era sozinha... Naquele dia de tarde
a inquilina dele saiu, disse que o filho arrumou uma casa e levou ela pra morar junto, pra
cuidar dele. Aqui mesmo em Itapeva, lá do lado da Santa Izabel, por ai, não sei aonde.
Ai a minha cunhada ligou: “oh Maria você disse que não quer ir pra Sorocaba, então, nossa
casa aqui do fundo, a mulher vai desocupar, até uma hora da tarde ela vai sair com a
mudança. Só não vai dar tempo de pintar a casa, mas, quanto à limpeza mais baixa que
puder fazer, a gente manda limpar tudo”. Fazia pouco tempo que tinham limpado, estava tudo
limpinho. Daí eu fui pra lá. Mas, foi assim, bem pertinho, dava até pra levar as coisas nas
costas. Morei lá, acho que sete meses.
A minha sobrinha queria reformar a casa e o meu irmão concordou de fazer do jeito dela – ela
morava em São Paulo há muito tempo, casou lá e tudo, depois separou do marido e veio
embora pra cá, trabalhava com o médico aqui, um médico famoso aqui, Drº Jorge, que faz
cirurgias, ele é oftalmologista. Então, ela trabalhava lá e estava separada do marido, mas
separado assim, o casal, mas tinham amizade de conversar, eles têm uma filha única, que é
nutricionista e mora lá em São Paulo. Ela nasceu em São Paulo, eles moravam bem pertinho
do Liceu Coração de Jesus, que também tinha uma faculdade, não sei se tem ainda. Ela
freqüentou a escolinha de criança, depois estudou até fazer faculdade. É raro ela vir aqui no
interior. Ela é nutricionista.
Agora o pai dela morreu. Ela estava na faculdade, a mãe dela, que é a minha sobrinha, já
morava aqui, no Jardim Ferrari. Ela achou um espanhol, um baixinho, viúvo e cheio da grana.
Foi trabalhar de motorista com ele, mas dai ficou convivendo junto, mas ele tem oitenta e
sete, oitenta e oito anos! Vai fazer noventa anos agora, não sei que mês que é. Então, ele é
Página | 56
baixinho, feinho também pra caramba, mas é rico, rico. Tem três filhos homens, mas tudo
casado, outros separados, cada um já está estabelecido. O homem é muito rico sabe e ela foi
morar lá na casa, cuidar dele, só que outro dia ela falou pra mim que ele está tão rabugento.
Sabe como é, ele com essa idade e ela está com cinqüenta e quatro. É muito grande a
diferença de idade entre eles. Veja é só pra dormir junto, só pra esquentar o outro, porque o
resto não dá nada mais. Já aposentou...
Com a reforma eu aluguei uma casa na Geraldo Alckmin. Logo pra cima da rodoviária tem
uma igreja, Assembléia de Deus, que é filial dessa aqui, e na mesma calçada, de frente, era o
sobrado do meu sobrinho que estava nos Estados Unidos – ele estava na Flórida há seis anos e
retornou depois de um ano e pouco que eu fui morar lá.
A mulher dele com a filha moravam neste sobrado. A parte térrea, em baixo, era uma sala
grande, maior que essa aqui, mas tudo sem construir, só tinha um inquilino que tinha morado
uns três meses lá. Daí ela falou: “oh, tia se você quiser mudar lá, a minha inquilina vai
mudar lá pra vila Jardim Maringá, ou Jardim Califórnia, vai mudar pra lá e vai ficar
desocupada. Então, como você não tem casa e esta procurando casa pra alugar”.
De lá, eu fui morar na casa da Lourdes que eu digo que é quase como minha cunhada. Ela é
irmã da minha cunhada, que faleceu depois que eu vim de São Bernardo pra cá. Eram muito
boas as duas! Ela é até agora. Morava na Geraldo Alckmin também, só que é na Vila Santana,
lá na frente da Prever, pertinho da Toledo Dias.
Eu estava morando lá quando saiu esse projeto aqui. O ex governador José Serra foi para os
Estados Unidos, não sei em que estado ele foi, e viu esse projeto, viu as casas lá. Não sei se
ele já estava com seu engenheiro. Quando saiu na internet eu morava na casa do fundo da
Lourdes. Era uma casa também recém construída, eu fui a primeira inquilina a morar lá.
Agora é uma jornalista aqui da cidade que mora lá, solteira, magrinha, trabalha no Itanews.
O marido da Lourdes também já faleceu e quando ela casou com esse homem ele era pai de
dez filhos. Era viúvo e ela era solteirona. Então, casou com ele e daí, veio a Ana Paula.
Imagina já tinha dez irmãos, já tudo grande, alguns casados. Ela é diretora de escola,
solteirona, está com trinta e seis anos. Ela tem uma irmã que diz que é freira, trabalhava no
asilo, também é solteirona. O resto são todos casados.
Então, ela viu na internet, à noite. Ela trabalhava em duas escolas, chegou e estava mexendo
na internet quando viu que Itapeva tinha sido sorteada pra receber o programa e que iriam ser
construídas dezoito casas. Mostrou Avaré, onde seria construído primeiro e, em seguida, aqui.
Página | 57
Ela viu que sairia logo naqueles dias as inscrições para as pessoas que ganhavam até dois
salários mínimos, que tinham 60 anos em diante. Ela saiu cedo pra escola e deixou escrito, lá
perto do computador, que eu fosse na Prefeitura, depois do almoço, pra me informar.
Chego lá, coitados estavam tudo neutro, ninguém sabia nada, foi aquela confusão: procura
numa sala e em outra, pergunta pra um, pergunta pra outro. Ai disseram que era pra ir na
assistência social. Eu fui andando, sem tomar taxi, sem nada, andei bastante.
Chego lá, tem um velhinho, não sei se está trabalhando lá ainda, o Seu Antonio, um
carequinha, muito legal. Ele me recebeu, eu fiz as perguntas e ele começou a rir. Ninguém
sabia nada, aquelas moças lá, tudo de bracinho cruzado dentro daquela sala. Ai me disse “está
bem Dona Maria, a srª vai nessa sala aqui e fala com uma dessas moças bonitas”. Eu falei,
“todas elas são bonitas”. Eu fui a primeira que fez inscrição, sem nada, sem ter escolhido
nem o lugar ainda. Não sabia se ia ser aqui ou outro lugar. Não estava definido ainda em que
bairro iria ser. Mas ai eu fui a primeira a fazer inscrição.
Parece que se inscreveram cinqüenta e duas pessoas, foi o que a Beth falou. E eu fui uma
delas a ser sorteada.
Até eles localizarem o bairro, construir, ter estrutura pronta, água, luz elétrica, documentação
tudo, até que não demorou muito não. Eu fiquei lá esperando, logo já saiu. Na semana
seguinte já saiu onde ia ser. Logo o pessoal que passava nesta estradinha aqui, inclusive a Ana
Paula passou algumas vezes, e viu que já estavam fazendo a terraplenagem. Daí que ela falou
que seria aqui. E todo mundo ficou aguardando. Depois começarem a fazer as pesquisas nas
casas das pessoas, pegar os documentos, fazer as perguntas. Já fazia cinco anos que eu estava
morando aqui.
Deu tudo certo. Mas eu não gostei muito no começo porque eu achei errado, da parte deles,
algumas coisas. Mas nem tudo é muito perfeito não é mesmo? Quando inaugurou aqui não
estava terminado ainda - tinha coisa pra terminar. Tinha chovido, estava aquele barro, só tinha
a casa quinze, que montaram pra exposição. Eu achei que eles deviam ter trazido alguns, nem
que não fosse todos, trazer ou dar autorização pra vim conhecer a casa, pra ver qual o tipo de
móvel que podia trazer.
Eu não precisava dispor de tanta coisa, dispus da minha máquina porque aqui é pequeno. Até
agora não comprei outra. Vou comprar, esse mês ou o mês que vem eu vou comprar uma, só
Página | 58
que com capacidade menor, uns seis quilos, por ai, tá bom. Eu tinha a centrifuga, mas não
adianta nada, compra tanquinho, compra centrifuga.
Eu dispus da minha máquina, dispus de um monte de coisa, um balcão grande, que essa
fábrica só tinha em São Bernardo do Campo, sabe, muito perfeita aquelas coisas, armário de
parede, o meu tinha nove portas, que fazia conjunto com esse aqui. Até o dia que eu fui mudar
ele daqui ele caiu, eu soldei que ia cair em cima de mim. Ele rachou dai eu pus virado pra lá,
mas ele é muito legal sabe, é forrado, é tudo móvel bom.
Dispus de toda aquela “coisarada” que eu tinha, dispus de tudo pra poder vim. Esse joguinho
de sofá eu já tinha comprado quando a minha irmã voltou pra Sorocaba. Eu não sabia onde
iria morar, se era sala grande, com porta grande, como seria a entrada. Lá em São Bernardo
era tudo de couro, grande, tudo estofado, aquela “coisarada” grande. Dispus de tudo e tive que
comprar tudo. Só fiquei com uma loucinha! Eu tinha tanta coisa, aparelhos completos, tudo eu
tive que dar embora.
Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”. Mas também a gente
não pode se apegar às coisas toda a vida. Porque às vezes você é muito apegada a alguma
pessoa da família, de repente, você perde essa pessoa e o sofrimento é muito maior não é
mesmo? Agora, coisas materiais não, porque é coisa que, se a gente tiver dinheiro, compra
outra, não é mesmo? Eu era muito agarrada a certas coisas, agarrada com aqueles presentes
que eu ganhava.
Lá em São Bernardo a família era muito grande e eu ganhava muitos presentes. Mas aqui em
Itapeva são tudo paupérrimo, não dão presentes. Não que eles não tenham condições, todo
mundo tem seu carro, sua casa, mas não tem o coração assim, de dar as coisas para os outros e
tal. A maioria só quer receber. Mas quanto a isso deixe pra lá que são coisas passageiras, não?
A gente estando com saúde está bom, o principal é isso. Pior é quando a gente está doente e
dependendo dos outros, ai é difícil... Mas graças a Deus até aqui, por enquanto, eu estou me
virando. Não tenho esse problema de depender dos outros.
Eu detestava fazer mudança e depois que eu vim pra Itapeva parecia formiga, aquela
formiguinha saúva. Eu falava “que coisa terrível”, eu lamentava por causa, de ter o dinheiro e
não poder ter a casa própria. Eu tenho um dinheiro, está no Fórum, na Justiça Federal, lá em
Sorocaba, é daquele tempo do Plano Bresser – Collor, aquela turma. A gente tinha um
Página | 59
dinheiro bom, dava pra comprar uma casa muito boa aqui em Itapeva, mas daí o Collor pegou
nossa poupança.
Agora está no Fórum lá de Sorocaba e só poderei rever a minha parte, porque o meu marido já
tinha falecido quando entrei na Justiça contra eles. Está lá porque o Fórum daqui não tinha
Justiça Federal, olha que coisa chata não? Só porque era poupança, na Caixa Econômica
Federal, tinha que ser na Justiça Federal. Agora está lá, na primeira vara, na Justiça Federal, lá
em Sorocaba, já vai pra três anos que está lá.
Deus que me perdoe, a quantia de coisa que tem naquele lugar não está escrito. Uma hora,
Deus me perdoe, aparece um incêndio lá e queima tudo. É tanta demora, tanta demora que eu
não entendo.
Antes de surgir essa casa aqui eu queria comprar uma casa com esse dinheiro. Mas agora,
gosto muito daqui e, depois de tantas mudanças eu não penso em me mudar novamente.
Essa casa era pra ter sido comprada quando meu marido estava vivo, mas quando viemos ver
uma, aqui no Parque São Jorge, em frente à delegacia e perto da minha irmã, o pessoal dele
não quis que nós comprássemos. Eles questionavam porque que íamos comprar se lá a gente
tava bem. Começaram chorar e tudo, eles eram muito legais pra gente, eram anjos!
Eu sei que quando foi dali uns dias veio o tal plano que caçou tudo. Depois eu fiquei viúva e,
fiquei feito boba lá dormindo no ponto, não fui procurar recurso nada. Depois que a gente já
estava aqui em Itapeva é que veio aquele negócio de as pessoas poderem recorrer. Dai, peguei
uma advogada sossegada, que não fazia muito tempo que tinha se formado. Eu tava fora
quantos anos, os advogados mais velhos que a gente confiava não existiam mais, já tinham
falecido. E, pra ajudar as secretarias de lá uma hora perdiam o documento, outra hora,
atrasavam pra entrar com o processo.
Foi preciso pedir na Caixa Econômica estrato micro filmado e, como a minha poupança era
em São Bernardo do Campo, então tinha que apelar pra lá. Eu fui na Caixa, o gerente deu as
informações e fez o pedido. Passados uns trinta e cinco dias veio, e dai que pudemos arrumar
os documentos pra entrar com o processo. A advogada ficava lá do lado do litoral, do lado de
Iguape, Registro, aqueles meio por lá. Ah, Deus que me perdoe viu! Agora estamos assim,
aguardando.
Página | 60
Mas como eu disse, não tenho intenção de mudar daqui. Não sei se eu vou receber ou não esse
dinheiro de volta, porque a vida da gente Deus é que sabe. Você está conversando aqui, daqui
a pouco a gente não sabe mais. O futuro da gente só Deus é que sabe.
Mas se eu chegar a pegar esse dinheiro pretendo ajudar alguma obra de caridade. Tirar o
suficiente pra viver, pagar uma faxineira boa, de confiança, pra vir toda semana fazer uma
faxina, mudar alguma coisa aqui dentro, pra conforto da gente e o resto...
Mas mudar daqui não penso não. Estou muito bem, graças à Deus. Daqui é pertinho pra ir na
cidade, são quinze minutos. Eu venho de lá de frente do Cofesa, que já é um ponto bem pra cá
do centro, dá vinte minutos, eu desço ali. Eu freqüento a Igreja Universal, depois que meu
marido faleceu eu passei a freqüentar ainda em São Bernardo. Conheci pela televisão e gostei,
tinha uns problemas de saúde fui lá e lá eu fui curada, então... Aos domingos vou à igreja,
meio dia tomo o ônibus de volta, ele passa em frente esse ponto do Cofesa, que é um mercado
grande que tem aqui. Chego aqui meio dia e vinte e cinco, meio dia e meio eu já estou dentro
de casa.
Às vezes eu fico lá, almoço com a minha sobrinha que mora bem pertinho do mercado. Me
dou bem aqui, temos assistência médica, temos enfermeiros, tem o pessoal que vem de fora e
faz amizade com a gente. Nossa já veio tanta gente. Agora mesmo teve aqui o projeto
Rondon, tinha gente de São Paulo, Santo André, Mauá, Poá, Sorocaba, Campinas.
Eles se hospedavam em escola geminiana, vinham aqui uma parte do dia, às vezes na parte da
tarde, e de manhã iam pra outros bairros, já retirados da cidade. Já vieram muitas vezes. E tem
muita gente visitante que vem. Às vezes vem turma de escola, fazer piquenique ai com a
criançada. Vem turma de caminhada, políticos, bastante gente. Então, a gente nunca tá
sozinho.
Eu cozinho todo dia. Só domingo ou feriadão, que vem meu pessoal lá de São Paulo,
Campinas. Nesse feriado de nove de julho veio o meu sobrinho de São Paulo. Ah, reuni a
turma de Sorocaba, a turma, lá de São Paulo. Eles vêm lá na cidade, porque o regulamento
aqui não pode dormir, a pessoa tem que ter sessenta anos completos e tem que ser parente ou
pode ser amiga também.
Eu tenho uma amiga de São Bernardo do Campo, ela tá com sessenta e sete anos, todo ano ela
vem e fica quatro, cinco dias aqui com a gente. Esse ano mesmo ela veio em maio. No feriado
de primeiro de maio deu um feriadão, foi quando começou aquele frio forte.
Página | 61
Deus me livre e guarde, é tanta gente, tem em São José do Rio Preto, outro casal de sobrinhos,
estão todos esparramados. Então quando eles vêm é assim: reúne em três casas das irmãs, lá
no centro da cidade, perto da praça. Vai uma turma dormir numa casa, outra noutra casa e, pra
almoçar, vai todo mundo numa casa só. Aí, tem churrasco, fazem paçoca de amendoim,
aquela socada no pilão.
Eles chegam já ligam, “oh tia onde é que você tá? Você não faça nada ai, que nós vamos te
buscar pra vim participar”. Dai tem duas que fazem as coisas na cozinha. Junto todo mundo,
dessa última vez deu dezessete pessoas. Dois dias vieram me buscar aqui. Eu ia pra lá e, de
noite, eles me traziam aqui, ou, se eu quisesse dormir lá, também podia, mas é muita gente.
Então, eu tenho contato com todo mundo da minha família, que é muito grande. Oh, só do
lado dessa minha irmã que mora em Sorocaba acho que eu tenho uns vinte e poucos
sobrinhos. Em tem os outros sobrinhos também, a que tem menos é essa irmã que mora lá em
Votorantim e que trabalha no presídio, ela só tem um casal de filhos.
Mas meus familiares não vêm muito aqui, porque todo mundo trabalha, outros estudam. É
assim: quem tem os carros e vai trabalhar, conforme o lugar, usa o carro durante o dia e, às
vezes, vai pra escola à noite; então, aqui vêm quando da certo. Mas a gente tem noticia todo
dia um do outro.
Quando era mais nova não pensava que iria envelhecer, até alguns anos atrás era tudo normal
pra mim; antes de eu ir ao médico e tomar remédio pra pressão, diabetes e não sei o que.
Antes disso eu não achava que era nem nova nem velha. Eu nem pensava na velhice, achava
que eu era conservada e podia fazer tudo sem precisar dos outros. E quando precisava de
alguma coisa a gente pagava tudo numa boa. Hoje ainda não me acho velha.
Eu sempre soube que, se não morresse logo, um dia envelheceria. O meu falecido esposo, o
segundo, dizia assim: “quem achar que não tá bem de vida e tal, quem não quer morrer velho
então, morra antes de envelhecer, morra antes”. Mas não de tirar a vida, essas coisas nunca,
nunca veio na minha cabeça, nem de ficar perdendo meus familiares. Então, eu não me
considero velha, eu sei que eu não sou nova, mas, vem cá, tem bastante gente com cento e
poucos anos.
Bom, agora a gente não chega mais lá. A minha cunhada já fez cento e seis anos. Ela mora lá
na Praça Anchieta, onde tem a lanchonete Rezende, na esquina assim da praça. Aquele prédio
é tudo deles. São sobrinhos, por parte do primeiro casamento, e a minha cunhada, que é a mãe
Página | 62
deles, teve oito filhos. Ela esta com cento e seis anos e agora que está na cadeira de rodas. Lá
dentro do quarto dela, que é apartamento, não tem tapete, não tem carpete, não tem nada, é
tudo liso, os quartos são bem grandes, os guarda-roupas embutidos tudo grandão. Não se sabe
como é que ela caiu lá e quebrou o fêmur, já está com dois anos e agora não quer sair da
cadeira de rodas E lá ela fica na janela da frente, vendo todo o movimento da praça, em frente
os bancos, vê tudo lá. Ela é magrinha coitada, mas é um anjo de pessoa.
Graças a Deus eu não tenho medo de nada. Morei acompanhada dos meus irmãos, todo
aquele tempo que eu contei e depois fiquei sozinha. Casei fui pra São Bernardo, morava nós
dois em casa e a gente se dava muito bem. Tanto no primeiro quanto no segundo casamento
nenhum dos maridos tinha problema de beber, de qualquer coisa mais, era só trabalhar, graças
à Deus.
Eu acho que a gente morar sozinho é muito solitário, não tem com quem conversar, discutir
qualquer uma coisa, comentar alguma coisa que a gente vê na televisão, ouve, mas, eu vivo no
meio de muita gente.
Me desculpe se falei coisas errada. Não vai precisar mexer em nada do que eu disse porque
não tem nada que possa comprometer. Pode ser meio antiquado, porque muita gente não
conhece essas coisas que não existem mais.
Página | 63
Seu Adelino Rocha33
[...] Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm mais vigor; entretanto, são anos difíceis e cheios de sofrimento, pois a vida passa depressa, e nós voamos! [...]
Salmo 90
Eu nasci e me criei no bairro Monjolinho, município de Itaberá, comarca de Itapeva. Bairro
Monjolinho é o lugar da pobreza. Que fomos tudo pobre. Em outro tempo, passado, nós
passamos escravidão, que nem o povo no Egito34. Passemos escravidão!
O pai ganhava no jornal um mil réis por dia, um mil réis antigo pra tratar do bando de família
em casa! Vinha doença pra ele, aquelas gripe muito forte, “maleite” - eu nunca tive “maleite”,
estou com oitenta e quatro e nunca tive “maleite” na minha vida, o pai teve. “Maleite” é um
frio, que nem uma gripe forte: dá tremedeira, fraqueza, tudo que não presta. “Maleita” é como
dizem, acho que é um bicho, um micróbio que dá um negócio, não sei como é. Eu nunca tive,
o pai teve. O pai sofreu gripe35.
O pai foi jornaleiro: cortou cana no canavial. Ali tinha geada e ele não tinha calçado, ia
descalço o falecido meu pai. O pé trincou! Fazia aquelas trinca no calcanhar, trinca funda, de
frio. Cortar cana pra ponha no cilindro, no engenho, pra moer.
Trabalhou de carpi cafezal. João Porrete, que era o dono da fazenda, pagava mil réis por dia.
Ele tratava bem os jornaleiros, bóia tinha pra valer, bem tratado, mas, era sofrimento. Enxada
grande, grande a enxadona pra carpir. Eu nunca carpi cafezal, eu estou nessa idade, oitenta e
quatro, e nunca carpi café. Nunca deu certo de carpi cafezal. Nunca, nunca na minha vida.
Não conheço nada.
O pai chegou a se arrebentar aqui no peito. Chegou a dar nó, ficou de cama não sei quantos
meses se tratando. Ele queria ser bom na enxada e tinha gente melhor, mais forte e ele queria
agüentar o baque.
Ele teve bastante filho, não sei quantos, não me “alembro”. Nós “tinha” bastante irmandade,
mas já morreram. Morreu bastante irmandade, bastante mulher. O pai criou o bando inteiro.
Tratou ganhando um mil réis por dia. Um mil réis por dia!
33 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 15h30min, com Adelino Rocha; 84 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h19min23seg; Local da entrevista: casa do colaborador. 34 Na época em que a entrevista foi realizada os jornais ainda noticiavam a Revolução Egípcia, a crise política e as eleições presidências após o fim da Ditadura de Hosni Mubarak. 35 Seu Abel, que ouve a conversa do lado de fora, me esclarece que maleita é a Doença de Chagas.
Página | 64
Agora, na nossa vida em casa era uma pobreza triste. Você não viu falar em pobreza. Pobreza
é piolho na cabeça. Olha, criava lêndea de ficar fervendo o cabelo. Piolho caia... Fora o piolho
tinha o bicho de pé, moranga, embaixo da unha. Morangueira, moranga!
A minha tia criou moranga de bicho do pé, forrou tudo, veio, aquele bolão inchado. Dai
ensinaram vim na farmácia do Zé Pinel, tinha uma pomada pra comprar pra passar. Eu
comprei, passava no pé da minha tia, passava tudo com a minha mão, saia tudo aquela
morangueira, limpava.
O pai pegava as cobertas dela - a tia era muda, não falava – levava no fogo. Fazia aquele baita
fogaréu, embolava, caia que nem açúcar a moranga da tia. Solta aquele mundo de ovo! O
pessoal estava sentado e quando via estava branco assim, de ovo no chão. Aquela “pulguinha”
pica, a pulga arruína, às vezes, inflama, dá até “preteira” na pessoa. Você é doido!
Então nós sofremos tudo isso ai: piolho na cabeça, bicho no pé, barata na casa. Barata é uma
coisa que vai em fruta, come as coisas, lambe a gente. “Barataiada”, “chupança”, barbeiro.
Aquilo chupa, dá chaga no coração da pessoa. Ficava na parede. Isso que eu estou contando é
a pobreza.
A nossa casa era de sapé, sapezal. Fazia a casa “barrotiada” - ponhava barro e “barriava”. A
casa era de barro e fervia de “chupança”, o tal de barbeiro, você olhava pra parede “tava”
fervendo - vinha lá do mato; a cultura muito boa cria muito “chupança”.
Meu Deus do céu eu não dormia de noite! Não sei como é que eu estou vivo até agora. Não
sei onde é que foi o meu corpo, a “chupança” crivava tudo o meu corpo, ficava tudo furado,
ficava bala vermelha, tudo pintado, o corpo inteiro. Não dava nem pra dormir – “tava”
deitado, quando via a “chupança” aparecia. Você percebe quando chupa a gente, mexe na
coberta e “timmm” - aquela ferrada na gente. Eu pegava a chupança e quebrava a nuca dela,
soltava aquela catinga que fedia na mão. Do nada, outra mordia, outra mordia, outra mordia.
Era a noite inteira matando; às vezes eu “alumiava”, eu ia lá com a bombinha, “fumegava”
pras paredes, pras trincas.
Elas botam aquela “ovaradia” branca, fica aquelas miudinha, tudo morde a gente. A
“chupança” é um tipo de percevejo. O nome dele, o povo diz, é barbeiro. Mas outros fala
chupança. Acaba com o sangue da pessoa por que chupa e pra alguns dá doença no coração -
doença de Chaga é do barbeiro.
Página | 65
Cama nós não, tinha era “tarrimo” de pau - uma mesinha de pau amarradinha assim com cipó,
colchãozinho com uma palhinha só pra cobrir o inverno.
Nós não “podia” comprar o açúcar branco, o açúcar cristal, o açúcar redondo, açúcar
pernambucano pra adoçar o café - às vezes nós “comprava”, mas era muito caro. O pai
plantava canavial - cana de fazer açúcar, faz pinga, faz álcool, faz tudo.
Lá não tinha engenho, nada. O pai fazia dois “telhão” assim: partia, cortava, ponhava barriga -
um pra lá outro pra cá –, “nhoc, nhoc, nhec, nhec”- esse é o berro do “encaixador” 36 –,
“nhec, nhec, nhoc, nhoc”; pra tirar garapa e fazer o café. Fervia e fazia o café. Punha o pó,
açúcar, nós bebia o café - a garapa que era o açúcar, porque a garapa dá o açúcar, dá o açúcar
cristal, mascavo, dá rapadura, dá de tudo!
Esse é o sinal da pobreza. O “encaixador” gritava, eu não posso levantar o gripo, mas faz
“nheco, nheco”. Um puxava pra cá outro pra lá. A minha mãe virava aqui, o pai virava pra lá
e eu pegava a cana. Eu era guri, tinha uns dez anos. Punha lá, moía, passava, pegava pra cá;
“ponhava” de novo, torcia até sair o ultimo, ficava aquele bagaço seco, dai jogava lá. E vai
outra cana, e mais outra, enchia uma chaleira de garapa. Fervia e daí não carecia “ponha”
açúcar porque a garapa era o açúcar.
Ponhava o pó no coador, coava e bebia o café. Ficava bom o café, gostoso!
A rapadura é feita no forno. Tem o açúcar mascavo, tem o açúcar pernambucano, tem vários
tipos de açúcar. Tem o açúcar cristal e o filtrado, o açúcar branco refinado - ele refina daí faz
o álcool, faz a pinga, tudo da cana. Você vê quanta coisa a cana dá produção!
Tem o engenho, esse é o rico que pode usar. Ele vira com animal, com boi, faz “rhuuuuuu”,
vai roncando; ali põe a cana e mói. Esse é engenho, tem o cilindro - é um “coisão” assim de
“dentaiada” de ferro -, também é barriga com barriga, pau no meio, pra trás é caldo que dança.
Essa é uma pergunta que faz, é uma pergunta pra pessoa decifrar: “o que é, o que é?”. Aquela
pergunta: barriga com barriga, pau no meio, pra trás é caldo que dança. É a cana que vai
barriga com barriga, põe a cana aqui, pra trás caldo que dança - é a garapa que cai. Quem vê
diz que é outra coisa, mas não é. É a cana.
Essa é a vida do engenho, você vê que a vida de quem trabalha lá é bem vivida. Bem vivida!
Quem já tem dinheiro pra comprar o cilindro - aquilo é caro e o engenho também é caro -, põe
36 Encaixador era o nome popularmente dado para o cilindro onde a cana era espremida para extração da garapa.
Página | 66
o boi pra puxar. Agora o “encaixador” é vida de pobre. Como nós é pobrezinho plantava o
“canavialzinho” pra moer.
Plantava algodão. Algodão de colher assim: carpia, plantava, depois plantava, repartia, carpia.
O algodão é bem branco, ele fazia roupa. Ficava bem branco. “Panhava” que enchia aqueles
fardão. Vendia o algodão, tinha o homem que fornecia pro pai trocar o algodão. O pai
plantava algodão e nós “passava” melhor.
Nós “passava” a vida muito ruim. Teve tempo que não havia feijão, acabou o feijão, não tinha
mais feijão. Existia um homem que tinha um feijão velho, “carunchado” – “caruncho” é um
bichinho que fervia no feijão que ficava preto, preto – deu pro pai e disse:“leve lá, vocês
estão passando fome de feijão”. A mãe cozinhava aquele feijão, meu Deus do céu! Nós
“comia” que se afogava de fome - aquela fome, fome mesmo que prejudicava a nossa vida,
aquela fraqueza de fome. Comia que parecia que tinha açúcar no feijão de tão gostoso - o
feijão carunchado não tem gosto de nada, é amargo, é ruim, aquele pó, e nós “comia” de se
matar.
Nós “comia” carne quando a mãe matava um frango - o pai criava galinha. Aquilo era uma
festa! O pai engordava um porco, lá no chiqueiro - tinha um chiqueirinho lá e ponhava o
porco pra engorda. Quando matava um porco, uma vez ou outra, era uma festa pra nós. Comia
carne de porco. Também tinha a verdurinha que nós “tinha” em casa: banana maçã,
“cachozão” de banana maçã, laranja, uns par de pé, tudo doce, doce. Era a fartura de lá, aquilo
era a fartura que nós “tinha”.
Tinha uma mina d´água, que é uma mina muito bonita. A minha irmã quase que morre na
mina, faltou um pouquinho. Ela era cega dos olhos, nasceu de nascença. Depois ela começou
a enxergar, fizeram cura pra ela, mas era muito ruim da vista. Ela até foi na escola, aprendeu a
ler, mas deu trabalho.
Ela foi brincar lá na mina d´água, caiu e chupou aquele monte de água. A outra irmã viu ela
caída e gritou pra outra irmã que “tava” pra cima. Vieram e tiraram ela. Ela começou soltar
aquele mundo de água, quase que morre.
Página | 67
Daí, nós passemos aquela luta. Plantava algodão melhorava a nossa vida. Quando a gente
“tava” fornecendo vinha o oferecimento nós comia melhor, passava mais bem. E carpia
lavoura, o pai plantando um pouquinho de roça de arroz dava uma farturinha. É a nossa vida
pobre!
Nós “quebrava” milho com a mão, não era com aquelas máquinas. Fazia “bandeirão” pra
ganhar dinheiro. Queimava roça, cortava arroz com ferro, cortava arroz pra malhar. Era assim
a vida na lavoura!
Muitos anos fazendo lavoura, roçando mato. Derrubava mato com meu pai. O pai ensinou a
roçar. Derrubava mato, cortava no machado e queimava e fazia a lavoura e plantava cana
verde; plantava milho - plantava três, quatro sementes, eu pegava a base, já sabia a base de
“ponha”. O feijão plantava duas sementes, três - não pode planta um montão de feijão, “é”
duas sementes.
E fui caçador - inclinado a caçar com bodoque. Tinha um bodoque de arcada, puxava assim,
soltava a pelota; tinha cerda, soltava pelota e matava juruti, matava a passarinhada pra comer.
Armava a espingarda num carreiro achava um tatu, matava e comia a carne. Matava uma
capivara e comia a carne.
Eu tinha um cachorro - pro caso de correr o bicho. Também matava com tiro, matava com
qualquer coisa. Matava passarinho com cetra, com pelota, com bodoque. Fazia armadilha pra
caçar tatu. Ia pescar no rio, ia no bote - às vezes, ia com canoa. Às vezes ia com cachorro lá
no mato.
Um dia o cachorro correu a onça; achou a onça, nós fomos ver, anoiteceu e não pudemos
entrar no mato, tivemos que voltar pra trás porque era mato feio. O cachorro corria a onça,
latia, ela corria, “trepava” no pau. Daí, quando voltava encontramos um bando de capivara,
tudo miudinha. Eu tava com a espingarda e ao invés de atirar, banquei bobo, fui falar pro
Alcides: “olhe, Alcides, atira, atira, atira”, eu mandava ele atirar e eu não atirava na
capivara. Ele atirou, matou umas duas capivaras pequenas - leitão que tava chupando ainda.
Eu levei pra ele, ele não quis. Mais uma carne boa, eu gosto de carne de capivara. É boa a
carne, muito gostosa.
Página | 68
Carne da onça, me deram um pedaço, é boa, gostosa, a carne não é dura. A carne de tamanduá
bandeira também é boa, é que nem carne de boi de gostosa, forte a carne. Então, que eu fui
desse tipo.
A mãe faleceu muito primeiro que meu pai; vou contar da vida dela. Minha mãe era raça de
índia, falava meio “ilhada”, tinha que ser numa altura senão você não compreendia. Ela era
muito nervosa; brava.
Minha mãe não ficou certa do juízo, tinha um tempo que ela “tava” regulando outro tempo
não. Ela sofreu, sofreu, horrível! Nós, pra comer a farinha...
O pai tinha o monjolo de socar. Tinha uma bica assim que vai água na bica e de lá cai no
monjolo. Uma aste assim; “nho-co-tó, nho-co-tó, nho-co-tó”; põe o milho pra soca, esfarela,
aventa, tira o farelo, põe de molho - pra ficar mole, “alumia”, sobe de novo pra coar e vai
coando. Sai aquele monte de fubá pra torrar no forno.
Aquilo era uma riqueza. Quanto nós tava naquele monjolo, nós tava rico. Tinha farinha de
comer pra casa. Mas antes disso não tinha o tal do monjolo, era um pilãozinho. O pai tinha
um pilão e a mãe socava o milho duro: “dibuiava”, socava, tirava o farelo, peneirava, ponhava
de molho de novo, depois socava de novo, coava, pra tirar o “fubazinho” pra torrar na panela.
Aquele fubá que nós comia.
A mãe ficou doente, sofreu de uma doença chamada hemorróida - é uma doença que dá no
intestino - é bicha, verme, essas coisa que a pessoa não trata e fica com aquela doença feia. A
mãe morreu daquilo. Ela morreu nova, não morreu velha. Sofreu aquela doença horrível,
doença feia e sofrida.
E ela ainda ia no rio “baldear” potinho d’água, trazia sofrendo aquele potinho d’agua. Ela
chegou soltar tudo as tripas pra fora e depois foi sofrendo. Depois veio o inchaço na boca
dela, não podia comer. Ficou de cama não sei quantos dias e não morria, daquela fraqueza
enorme que “tava” o corpo dela. Aquela fraqueza enorme! Sofremos, horrivelmente!
Quando minha mãe morreu eu fiquei com o pai, meu irmãozinho, Zé, e a Maria, minha irmã.
Nós ficamos na casa.
Minha irmã ficou ruim do juízo - aquela loucura pra casar, queria arrumar namorado. Aquela
loucura e a falta da mãe. Foi internada porque ficou ruim do juízo, fraqueza. No asilo lá em
São Paulo ela morreu.
Página | 69
O Zé também foi internado, ficou ruim do juízo e morreu. Ele ficava falando na mãe, aquela
loucura, a idéia não ajudava. Os dois era idéia fraca, só eu tinha a idéia melhor.
Não me casei, eu sou virgem, falo a verdade, não minto. Nunca casei, sou virgem. Não quis
me casar porque eu vivia no mundo. Vivia no mundão, perdido no mundo. E então, eu achava
que se casasse ia ficar comprometido. Eu tinha que dar resposta do casamento, tinha que ser
sincero e eu não queria compromisso.
Eu tinha parente que queria casar comigo, mas não deu idéia. Teve uma fulana, família de
rico, mas não topei de jeito nenhum. O homem queria que eu casasse com ela, família de
gente rica, não deu idéia; a gente quando é pra sofrer, sofre, não quer regalo na vida. Eu tinha
que casar quando era novo, mas eu não queria, queria viver a vida.
Olha o que aconteceu pra mim: fiquei desprezado. Hoje estou aqui desprezado. Se eu tivesse
me casado, eu teria uma mulher pra me ajudar, ajudar na minha vida. Quando eu morresse ia
deixar a herança pra mulher e agora vai ficar pro governo - tem a herança da casa que Deus
me deu. Deus me deu aqui, a casa pra morar, deu o dinheiro da aposentadoria é herança.
A minha vida toda foi lá no sitio. Depois do sitio eu vim pra cidade, quando faltou meu pai.
Meu pai fez a aposentadoria dele e veio a fraqueza do derrame - derrame de soltar sangue,
enfraqueceu a mente; dá delírio na vida da pessoa - o delírio não é louco e não é certo da
cabeça, meu pai era assim.
Ele ficou ruim lá no asilo, deu câncer na boca - aquela chaga seca assim. De lá internaram pra
fora e logo morreu. Coitado do meu pai foi internado e lá ele morreu. Ele foi pra Franco da
Rocha - aquele lugar lá longe, lá onde opera câncer. Lá mesmo ele morreu. Três que foi
internado em Franco da Rocha morreram.
Eu vim do sitio tem vinte anos, mais ou menos. Fiquei sem o pai, a mãe, sem ninguém, paguei
pensão pra minha irmã. Quando eu vim morar na cidade, pagava pensão pra ela.
Eu “garrei” emprego de trabalhar de servente de pedreiro, daí passei pra aposentadoria,
quando peguei idade. Aposentei, não foi por idade, foi por invalidez, a aposentadoria não veio
pela idade certa. Foi invalidez que eu aposentei. É esse o salário que eu estou com ele.
Página | 70
A riqueza maior foi a saúde, que Deus deu pra comer, e agora deu a casa aqui, porque foi feito
o papel.
Eu tava no galinheiro na casa da minha irmã, na Vila Nova. É um “predinho” em baixo, um
porão, tinha um portãozinho em baixo. Eu era assaltado naquele portão. Eu morava sozinho e
era assaltado pelos meus sobrinhos que moravam de par de mim, a família do meu sobrinho,
assaltava, roubava. O último roubo me levaram um milhão e duzentos. Perdi dinheiro, muito
dinheiro. Eu andei perdendo uns cinco milhão– um tanto roubado, um tanto perdi no bolso.
Morei muitos anos no porão e volta e meia “tavam” me roupando. A minha sobrinha achou eu
tava condenado ali. Tudo parente dela, gente dela. Não tinha como fazer nada porque a lei, a
lei não pode prejudicar uma criança de menor, quando rouba. Não pode, de jeito nenhum, não
tem lei que pode prejudicar. Não, tem. Uma pessoa rouba, mas se não tiver testemunha que
prove, não pode nem fazer parte. É uma coisa que a gente que é roubado fica no prejuízo.
Essa era a minha vida lá.
A minha sobrinha - que agora esta morando em Sorocaba, ela tem umas irmãs que falaram
que lá tinha emprego bom, ela foi e deu certo, agora esta trabalhando lá – então, ela que falo
“tio, agora lá no São Camilo, tão fazendo os predinhos se quiser eu falo com a Beth”. Ela até
levou o papel, “se quiser assinar, assina que eu levo lá. Quem sabe, se Deus ajuda, sai uma
casa lá pra você”. Eu assinei, ela já conhecia a Beth. Daí foi feito os papéis e deu certo pegar
a casinha aqui. Peguei os documentos da casa - os documentos eu tenho tudo guardado aqui.
E agora eu estou aqui contanto esses causos que passou na minha vida.
Agora eu estou nessa vida de regalo. De olhar aqui os outros que tá passando na rua, outro tá
lá na cidade, outro tá noutro lugar e prosear com os velhos murcho que nem eu mesmo. É essa
vida! Hoje não tenho necessidade de trabalha. É pescar, fiz um covo37 feio que nem eu
mesmo. Mas o feio tem direito de ir no rio pescar.
Eu pesco lá no forno Maringá, onde passa o trem de ferro - o trem de ferro é cheio de vagão e
corre por cima da linha, passa lá no Maringá. Eu pesco pra baixo, no rio que passa no
Maringá. A fábrica Maringá fazia cimento: queima, põe no forno, faz aquela “pedraiada”. O
37 Covo: armadilha rígida (não desmontável), de formato cônico. Esta armadilha consiste numa espécie de cesto comprido de verga, vime ou cana, com duas entradas e um endiche que orienta o peixe ao entrar e impede a sua saída. É fechado como uma rolha de cortiça com dois paus atravessados ou com uma tampa de vime. O peixe, atraído pela isca para o interior do covo, é incapaz de sair, sendo assim capturado. Fonte: http://www.geralforum.com/board/641/137701/artes.html (último acesso em 03/07/2013).
Página | 71
forno é uma chaminé grande, ali vai não sei quanto de pedra - queima pra fazer o cimento, o
cal, tudo no Maringá.
Fala com franqueza, eu tinha amigo lá na Vila Nova, mas não era de tá chegando na casa
deles, de jeito nenhum. Não senti muita falta de lá porque, lá só alguma pessoa que eu ia
sempre visitar, gente velha que nem eu mesmo, casal velho, que sempre ia na minha igreja,
então eu visitava.
Eu vou mostrar a igreja. Olha aqui38, esse é o pessoal da igreja Triangular. Esse é o dia do
batismo da Santa Ceia. Agora vou na Assembléia porque é longe pra ir lá.
Minha irmã que mora lá em Sorocaba, é mais velha que eu, quase três anos. Tem um
retratinho dela aqui, “tá” com oitenta e sete anos - ela é mais velha que eu três anos. Essa aqui
é uma moça que limpava a minha casa - ela é faxineira e esse aqui é o amigo dela, casou com
ela.
Essa aqui é a minha irmã, ela já morreu também. Morreu mais velha do que a outra irmã. Esse
é o filho dela - que “tá” detrás. Ela é da Igreja Cristã, é filha da igreja cristã. Olha o jeitinho
dela, esta com uma banda preta nos olhos aqui. Ela ficou doente, “tava” na cama, levantou da
cama caiu, bateu a cabeça e “pretiou” os olhos. Foi na Santa Casa, fizeram tratamento, mas
em pouco tempo ela morreu. Faz anos que ela morreu.
Minha vida mudou bastante depois que eu vim viver aqui, porque eu estou na casa de Deus.
Agora eu tenho a casa, já estou mais sossegado, mais aliviado.
O povo tudo bom aqui. Não tenho “mau querência” com ninguém, não tenho desconfiança
com ninguém. Nada aqui, não tenho.
Só aconteceu o roubo aqui dentro da casa, por descuido meu. A gente quer ser sincero e tem
hora que esquece que tem que dizer:“não, eu não quero, não aceito”. Tava acabado o roubo,
mas eu concordei.
Veio três mulheres lá de Marília, vendendo colchão: “o senhor tem algum problema? Dor
nas pernas? esse colchão aqui é preparado pra curar as suas doenças tudo”. Me levaram na
conversa: “nós vende aqui, o senhor vai pagando a prestação”. Fez o preço de R$ 60,00 por
38 Me mostra algumas fotografias que carrega na carteira e outras em porta retrato.
Página | 72
mês, que ia cobrar de mim. Mandaram eu assinar, eu assinei, pegaram o documento, RG,
assinei e levaram no banco.
Quando foi outro dia eu resolvi: “pô, caramba, onde é que eu tava com a cabeça, não era pra
tá cobrando isso. Eu devia no banco, o banco fez eu pagar juros três anos. E eu vou, de novo,
ficar num juros filho da puta no banco por três anos, eu não vou querer”.
Eu resolvi, daí falei pra Beth, contei pra ela: “eu resolvi, eu não vou querer aquele negócio
porque eu fiz errado, sem ordem da senhora, nem pedi ordem, chegou a mulher, quando eu
vi, me pegaram no pulo, eu fiz negócio, mas eu arrependi, eu não quero. Vai ficar muito
caro”.
A Beth disse: “Então, eu vou ligar lá, eles cancelam lá em Marília”. Cancelou, mas dai as
mulheres vieram aqui. Passou uns dias vieram aqui: “como é que é, o senhor vai ficar ou não
com o colchão?”. E eu: “ah, eu não vou ficar”. Trouxeram a amostra do colchão pra mim vê
e insistindo: “como é, nós fizemos essa viajem pra agora o senhor não querer o negócio? Pra
nós vai ficar caro. Como é que é isso então, o senhor não vai quer o colchão? Eu continuei
recusando: “Eu não vou querer”. E elas continuaram insistindo:“Diga, mas o que
aconteceu?”
Dai eu falei, “a Beth, que manda aqui, falou pra mim que eu fiz esse negócio errado, não era
pra ter comprado, vocês vieram por conta, entraram aqui por conta, fizeram negócio comigo,
e eu não prestei atenção no que ia fazer, eu fiz errado, eu errei de assinar, errei”. Então
disseram: “Então vamos lá na Beth, eu não sei onde tá essa Beth, vamos comigo lá prosear
com a Beth”.
Quando fomos lá na Beth elas disseram: “nós temos que ir lá no Banco, acertar lá no Banco
do Brasil.”. Ela falou: “você fica ai com essa mulher aqui eu vou lá falar com ele. Depois, se
ele chamar, você vai lá pra assinar que dai tá cortado, dai acabou, cancelou o negócio. O
senhor não quer o negócio, então, acabou”.
Mentiram pra mim e eu cai na mentira. Foi assim que aconteceu pra mim: assinei e quando
vou receber o pagamento “tava” descontado - estou com cinco pagamentos descontados. Cada
pagamento desconta R$ 122,00 - o salário sumiu, ganhava quinhentos. Fizeram um
empréstimo que pra eles não perde. Essa ai é a sacanagem e a gente caiu nessa “maiada”.
Então, isso ai eu falei pra Beth e ela disse: “agora o senhor tem que ir no PROCON”. Fui lá e
disseram ”já é tarde, era pra vim naquele dia, veio tarde já passou o prazo, não podemos
fazer nada mais aqui, nada, nada. Somente dá uma ordem: vai lá no advogado, lá na AOB, lá
Página | 73
eles vão colocar um advogado pra você”. Fui lá acertei o negócio, nomearam um advogado e
já foi feito tudo os papel. O advogado disse “eu vou trabalhar nessa parte, vai demorar,
porque isso ai não é rápido, demora, mais vou ver se devolvem o dinheiro”. Ainda estou
pagando, do mesmo jeito, não cortaram nada. Se for três anos - o dinheiro que empresta no
banco vai mais de três anos pra pagar.
Ficou d’eles fazer o cancelamento, mas está parado. Não sei se é o advogado, o juiz - o
maioral compra, quem tem dinheiro compra. Em vez de dar dinheiro pra um pobre, vai dar
dinheiro pra um rico - se é pra dar um milhão pro pobre, vai dar três pro rico e não dá pro
pobre, é assim que eles fazem. E eu fiquei nessa mão, que situação!
Depois que vim viver aqui eu tenho mais amigos e ganhei a aposentadoria - há muito tempo
eu sou aposentado, mas pra mim não há dinheiro, com tanto roubo. Aqui eu estou segurando
mais dinheiro, dou ajuda lá na igreja, mas estou segurando dinheiro.
Tenho mais companheiros, aqui todos olham por mim. Muita gente que era estranho agora é
conhecido meu e esta me protegendo.
Está vindo uns médicos preparar a minha vida: um exame, uma coisa ou outra. Já veio uma
dentista examinar se eu queria uma dentadura - escreveram, pegaram o RG e o cartãozinho do
SUS, pra pedir uma dentadura. Tão fazendo tudo isso ai.
Não recebo visita da família é difícil. Gente que mora aqui na cidade é difícil de visitar,
porque ficaram diferentes comigo. O meu sobrinho que mora aqui no São Camilo podia, volta
e meia, vim me visitar porque mora pertinho, mas ele afastou de mim - esta na amizade, mas
afastou de mim e não vem me visita.
Ele ficou diferente comigo por que eu levei ele na autoridade - fiz queixa dele, porque ele
precisou de um dinheiro e eu emprestei. Ele tirou do banco o dinheiro emprestado, daí ele ia
pagando, o ordenado que ele ganhava ele ia pagando, todo mês dava R$ 100,00. O dinheiro
ficava lá no banco, eu recebia o pagamento com desconto de R$ 100,00 porque eles cobram
juros. Ele pagou o capital e começou pagar os juros, mas começou pagar e pagou só três
meses de juros e o resto ficou - R$ 900,00 e não pagava. Varou tempo e não ia pagar, dai
chamei a autoridade pra acertar o negócio com o juiz, pra não haver briga. Ele foi chamado e
pagou, foi pagando por mês, pagou tudo o que devia, mas não ficou com amizade comigo,
afastou de mim - não gostou.
Página | 74
Ele pagou tudo certo e me falou “Eu também chamei o meu patrão lá na autoridade”. Ele
recebeu e não contou nada pra mim, ficava quietinho, queria dar um “tombo” em mim. Eu
precisava do dinheiro, porque eu paguei o banco e agora ele não queria me pagar. Ele não
ficou gostando. Então ele ficou diferente comigo. Eu vou na casa dele, vou lá passear, nas
festas, mas não tenho prazer de ir passear lá, nada...
Tem outros sobrinhos que também queria emprestar dinheiro. Eu já estava escaldado e disse
“Ah, eu não vou lhe arrumar João”, ele é irmão do Dalto: “não vou lhe arrumar porque eu
já sou escaldado com o seu irmão, deu sofrimento duro e eu vou arrumar pra cair na nota
boa?”. E ele insistindo: “mas eu vou pagar você certo. Pago certo, porque saiu um emprego
pra mim e eu tô devendo, tô rebocado de divida. E falaram que se eu pagar tudo as coisas,
limpar as contas, eu vou entrar no emprego e vou ter uma cesta básica grande”. Eu só
repetindo: “mas eu já tô escaldado disso ai, eu vou dar nota boa de novo, mais outros três
anos?”. Eu não arrumei e ele não gostou. Daí, passa uns dias, foi o roubo: um milhão e
duzentos - foi o próprio filho dele.
O filho dele usava crack - aquela droga. Arrebentou as fechaduras e pegou o dinheiro, dentro
da casa. Eu fui deitar, de dia, deite e dormi com a porta aberta. Passaram a mão na carteira,
levaram os documentos e tudo, tudo careceu tirar outro.
Esse foi um milhão e duzentos que saiu com tudo os documentos, mas, antes já tinham
roubado muitas vezes; a criança - filha do meu sobrinho - pegou e ele tolerou o roubo.
Outra vez eu tinha um milhão e duzentos - fui pagar um talão de luz. Quando sai de lá, que
paguei o talão de luz, eu estava com o bolso da calça um tanto descosturado, “ponhei” o
dinheiro e vazou. Não vi, foi bem na calçada, do lado de dentro assim. Nós “tava” proseando
com os colegas e uma mulher que vinha atrás de mim gritou “oh, não foi você que derrubou
aqui?”. Eu tava proseando, nem dei bola. Fiquei quieto e ela proseou, proseou. Veio a
mocinha, proseou com ela e sumiram. Dai o rapaz disse: “mas você não atendeu aquela
mulher, ela falou se o senhor não perdeu alguma coisa”. Eu enfiei a mão: “perdi o dinheiro,
um milhão e duzentos, uh caramba derrubei, o bolso da calça tava descosturado, eu ponhei o
dinheiro vazou tudo”.
Na hora que eu paguei ela estava lá pagando o talão dela também. Ela percebeu que eu
derrubei, mas a mocinha tirou ela e sumiu. Esse ai é um roubo.
Página | 75
Mas não é roubo porque eu que derrubei, como é que eu vou processar ela? Dizer fui roubado.
Não fui roubado, eu que derrubei do bolso e ela achou. Eu ia ter jeito de processar? Chama a
autoridade pra chamar ela? Não tinha jeito. Não tem...
A única falta que eu sinto é da minha irmã que foi pra Sorocaba, eu me dou com ela. Com
tudo que ela dá de desprezo na minha vida, por causa que sou muito relaxado, sujo, não tenho
asseio - ela fala na minha cara isso tudo.
Não é que eu esteja falando mal dela, é que ela quer ser muito “asseadinha” e quer ver todo
mundo no caminho do limpo. Eu fumava, era fumeiro, bebia, tudo isso eu larguei mão, mas
ela não gosta de ver...
Não uso mais as drogas que eu usava. Não droga daqueles traficantes, não, mas de fumar e
beber. Não bebo e não fumo há muitos anos, tudo aquilo eu deixei.
Mas ela fala, d’eu pescar. A pessoa que vai no mato pescar, às vezes, soa, fica com mau
cheiro na roupa, então ela quer que eu tome banho, sabão, limpeza, capricho. Se a pessoa vai
na igreja, Deus quer limpeza, não quer que seja suja.
Ela vai na Igreja também, então ela compreende. Ela é uma pessoa excelente, me fala: “Se
limpe; limpar um pouco da sujeira, que é imundice”. E tem a imundice do pecado que é outro
tipo de sujeira.
Com tudo isso eu sinto saudade, tenho amor por ela. Eu não sinto bem se eu for pra Sorocaba
ficar junto com ela, não sinto bem, porque ela quer distância d’eu.
Ela diz que se dá comigo, quando ela vinha pra cá eu emprestava um dinheiro pra ela pagar
um talão de luz, de água. Tudo essas coisas eu fazia pra ela e faço até agora. Agora mesmo
deixou um talão pra pagar pra ela.
Ela veio só duas vezes me visita. Dá trabalho pra ela vim, por que ela foi operada dos ossos.
Às vezes ela vem pra Itapeva, se instala na casinha dela, e eu vou visitar. Ela tem casa aqui,
não puderam vender, então, tem que alugar.
Então é assim, eu me dou com ela. Com tudo ela ser ruim pra mim, mas eu me dou. Eu sinto.
A gente se dá com a pessoa, tem amizade, nem que seja maltratado, a gente quer bem.
Eu me considero velho porque já sou de idade. Como vê a palavra está no registro, no
documento e na idade da gente. A gente sente, não tendo aquela energia que eu tinha de
moço. Eu já tenho canseira no corpo, tenho cansaço na perna.
Página | 76
Tenho canseira, “tremimento” na perna - passo gelo, às vezes, faço “andada” - como fiz
andada ontem, mas sinto canseira. Subir uma subida ataca o cansaço no colo. Tomo remédio
pra bronquite. Acho que prejudica, é isso que eu acho.
Não imaginava que ia viver tanto tempo. A gente não sabe o dia que morre. Porque nós não
temos o dom de saber o dia que morre. Algumas pessoas me dizem: “O que você vai fazer
com o seu dinheiro quando você morrer? Você deixa de comprar um móvel, uma coisa que
você pudia ter na casa, pudia ter mais coisa pra aparecer na casa”.
Mas eu pergunto: “o que eu vou fazer com esse móvel? Eu não sei o dia que Deus vai me
levar, eu compro hoje, amanhã pode Deus me levar, o que eu vou fazer com o móvel? Não faz
mais nada.Então tanto faz ter um móvel na casa como o seu dinheiro, a pessoa não leva, não
leva nada.
Eu não tinha esse armário, o armário de cá é usado, o outro eu comprei lá na casa que vende
roupa usada. Comprei pra ter, porque não tinha armário. O armário que eu mandei fazer é esse
armarinho velho, era pequeno pra ponha as coisas. Agora vasilha, uns deu vasilha pra mim.
Cadeira, essas cadeiras não são minhas. A minha sobrinha que deu. Não é meu, eu não
comprei ela que me deu. O sofá a mulher de baixo comprou do homem e me deu de presente.
Esse outro foi a mulher do João, minha sobrinha, que me deu, porque fizeram o roubo de
mim, se favoreceram do meu dinheiro. Eu sei que é errado, sei que está lá o roubo, mas me
deram de presente. É velho mas serve, tá bom. É presente que eu peguei.
Lá no quarto, o guarda roupa foi a minha sobrinha que me deu, agora esses dois armários eu
comprei.
Eu imaginava que ia morar no asilo, pros outros cuidar na minha vida. Porque parente, às
vezes, não tem jeito da gente se enquadrar com parente, “fugenta”, às vezes, tudo por causa
do parente. Acho melhor “ponhar” no asilo, eu não quero esse sofrimento. Ninguém quer
sofrer.
Hoje eu não estou sofrendo, eu sofro de solidão. A gente sozinho é solidão. Porque, repare
bem, se você mora sozinho você não tem com quem prosear. Não é solidão?
Se você esta acostumado num lugar, lá tem a vossa vida, e vem morar aqui, ficar sozinho,
você não vai ficar abatido? Vai ficar atacado de nervo, aborrecido, não tem quem prosear,
Página | 77
nada. Não fica triste? Nem que tenha dinheiro no bolso, que tenha tudo o que comer, não fica
nervoso? Quando eu tô nervoso vou pescar.
Quando se sente só, vai pescar.
Quando sente fome tem que fazer comida e comer.
Se sentir sede vai beber água.
Se sentir frio vai dormi, pega a coberta.
É isso ai, dê o remédio!
Eu vou no rio pescar, se eu quiser pousar lá eu pouso.Se eu quiser deitar e ficar lá pescando,
eu pesco. Fico lá, já fiquei várias vezes no rio, não tenho medo!
Teve noite d’eu ir pescar sozinho, não ter um companheiro junto comigo - lugar feio lá do rio.
Deitava, mas não dormia porque é uma friagem, você pode fazer fogo na beira do rio, mas
não pegava nada. Tinha vez que eu armava a rede, o anzol, tinha um plano: “eu vou pousar
quem sabe eu pego o peixe”, mas o plano não dava certo, só sofria.
Se eu pudesse mudar, eu mudaria que dai ficava novo. Acabava o velho e ficava nova
criatura. Mas não tem esse remédio. Não existe porque tá no Salmo 90: depois dos 60 anos, só
ruga, franja, cai os dentes , “abranca” o cabelo, vem ruga, vem tudo. Vem doença, vem
cansaço, só Deus sabe!
Se eu voltasse a minha vida, a mocidade, a nova vida, podia ver uma mulher, de aparência, ai
mudava a minha vida. Já vinha alegria, prazer, tudo normal. Mas, depois de velho, já não
pode mais pensar neste ponto.
A vida mudou, não é mais aquela vida antiga. De primeiro, o causo antigo que eu vou contar,
é o causo do tempo dos antigos: Uma moça, pra namorar um rapaz, não era estar se beijando,
se abraçando, como na televisão. Tudo que passa na televisão as mocinhas de agora já esta
aprendendo, já estão com os olhinhos em cima. Nasce uma criancinha nova e já sabe tudo que
quer. Quando esta maior a moça fica grande já sabida de todas as coisas. Namora agarradinho
- de primeiro não era assim.
O rapaz chegava na casa pra namorar, aqui tava a moça, ele sentava no banco e outra mulher
olhava a moça pelo buraco, fazia um buraquinho pra olhar. Se achasse que estava bom falava
Página | 78
pro pai: “aquele moço serve”, dai já arrumava o casamento. O rapaz casava sem conhecer a
mulher. Era assim, casava.
Casava e faziam vida. Mas agora já diferenciou. Agora, as mulheres maduras pegaram o
mesmo fogo das meninas novas, a mesma sabedoria.
Eu vou contar um causo você não se aborreça, eu “to” aqui na minha casa, o que vem na
minha boca eu vou falar. Então, tinha um rapaz que tava namorando uma moça e sei que
aqueles tempos usava levar presente pra moça.
Fica até feio contar, mas é verdade, é um acontecido. O rapaz levava o presente pra moça, pra
agradar, e ela pregou a boca nele, xingou, destratou. O pai da moça atropelou o rapaz,
atropelou atropelado.
Ele foi na padaria, comprou um pão, aqueles tempos usava um pão cumprido assim, grosso.
Embrulharam o pão e a calça do homem era de bolsão cumprido. Ele pegou o pão, enfiou no
bolso da calça e sentou. Aquele pão ficou levantado assim e a moça olhou nele, com aquele
pão, correu dele.
Ele disse: “vem aqui, você tá correndo de mim, porque isso? Eu vim aqui pra nós namorar,
prosear, você sai correndo de mim. Aqui tudo é vosso”. Bateu no pão perto do pai da moça.
Esse caso aconteceu, aconteceu mesmo, não foi comigo. A moça não quis nem saber, dai o
pai atropelou: “pode sumir daqui. Suma, suma, eu não quero nem saber de você”. Perdeu o
casamento por causa de um pão. Era simples o coitado, ele apanhou por ser simples. Gente
simples vai fazer qualquer coisa de beneficio, uma alegria, perdeu a moça.
E outro também aconteceu quase igual: o rapaz estava namorando a moça - mas aquela
vergonha - e foi comer na mesa. O chão era liso, que nem aqui, muito liso, e foi pisando aqui,
pisando ali. Ele foi correr da moça, foi desviar da moça porque tinha vergonha, medo, e nisso
escorrega o pé dele. Soltou na mesa, caiu tudo as coisas. Passou outra vergonha, derrubou
tudo a comida. Não casou também, atropelaram ele.
São três caso que eu vou contar.
O último foi o rapaz que o pai não deu educação pra ele. Cresceu deseducado desde novo,
desde criança. O cipó, corte enquanto é verde, se tiver seco não corta, ele quebra. O guri falou
pro pai: “pai você devia cortar eu quando eu era verde, agora quer cortar eu depois de velho,
já tô grande, tô seco”.
Página | 79
O pai aconselhar o filho que fez muito mau feito na casa: ele tava almoçando pegou o osso
derrubou no chão. Não era pra derrubar o osso. Era pra “ponhar” em cima, por causa do
cachorro. Os cachorros brigaram, brigaram por causa do osso, derrubou a mesa que tava as
comidas, o pai deu um...
Mas ele não aconselhou. O pai era pra aconselhar o filho antes de acontecer isso: “Quando
vai comer na mesa, o osso você não põe no chão, põe em cima, lá numa vasilha. Cachorro
briga, faz sujeira na casa”. Então, ele não aconselhou, mas ele ficou triste com o pai,
aconselhar depois de velho. Passou vergonha. E aconteceu isso. Bom, esse ai já é o fim do
caso.
Página | 80
Seu Antonio de Paula Galvão39
Eu sinto saudade do sitio, de estar no sitio, o que eu queria mesmo era estar no sitio. Aqui esta mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e criando alguma coisa.
Antonio de Paula Galvão: 75 anos: julho 2012.
A gente nasceu no sítio, mas depois quando tinha 17 anos, fomos morar no sertão, lá no
Paraná. Lá tinha tigre, anta, tudo quanto era bicho, até virei caçador, matava porco do mato. O
lugar era chamado de Sertão do Portunã, antes de chegar lá tinha uma cidadezinha, Coronel
Marquês de Abrante, onde a gente fazia compra.
Fomos fazer lavoura, meu pai tinha vontade de fazer roça, cultivar uma área. Como lá era
sertão, as terras não tinham dono, era tudo terra devoluta. Então fomos para lá com esse
interesse. Éramos tudo gurizada pequena, pra derrubar um pau, da grossura de uma geladeira,
levava quase meio dia. Não conseguimos fazer a lavoura, não pudemos cultivar, paramos.
Saímos de novo de lá para cá, eu vim pro comercio.
Somos em oito irmãos, duas já são mortas. Tem uma que morreu, mais ou menos com três /
quarto anos de idade e a mais nova deu derrame, ficou 10 anos na cadeira de roda e morreu. A
gente saiu para o comercio aqui em Puma no Paraná, na divisão de São Paulo, é uma empresa
de mineração - prata, ouro. Entrei lá em 1964.
Me casei lá no sitio, em 1963, minha ex mulher é do Paraná também. Nos casamos eu tinha
vinte e pouco anos. Temos 8 filhos: cinco homens e três mulheres. Moramos em
acampamento e, depois que sai dessa firma, viemos para cá. Morei um ano em Apiaí, depois
me mudei pra Itapeva em 1981. Meus filhos já eram grandes, já me ajudavam a fazer
construção: eu marcava obra e os dois mais velhos levantavam a casa.
Minha família é grande, na hora que junta tudo dá uma festa. Tenho umas irmãs que moram
aqui na Vila Nova e os outros irmãos também estão tudo aqui em Itapeva
Tenho dois filhos que moram em Curitiba e outro no Amazonas, eles estavam na Inglaterra e
vieram embora para o Brasil. Um deles lida com esse negócio de exótica, couro de peixe.
Abriu uma empresinha e manda o couro de tilápia, couro de peixe curtido, manda bolsa,
carteira – são a coisa mais linda – de couro de peixe, manda tudo pra Inglaterra.
39 Entrevista realizada em 25.07.2012 às 14h, com Antonio de Paula Galvão; 75 anos de idade; Escolaridade: primário (até 4ª série). Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h01min20seg; Local da entrevista: casa do colaborador.
Página | 81
Os outros moram aqui - três filhas e dois filhos. O mais velho, Aildo Magrão, se candidatou a
vereador. Tem outro, coitado, que ficou doente do rim e perdeu os dois rins. Tem que fazer
hemodiálise três vezes por semana, tenho dó dele, mora na Vila Nova também. Eu sou
divorciado e a mãe deles também mora na Vila Nova. Volta e meia estamos juntos, nos
aniversários da criançada.
Eu morava no Sítio, no Pilão D’água, pertinho daqui – são 20 minutos de pé pra vir aqui no
Centro. Morava no sitio de um japonês, fiz uma casinha pra mim. Lá eu fazia plantação no
quintal: verdura, feijão, mandioca, milho, era um terreno grande de 200 metros. Todo
fechado.
O dono do terreno morava aqui na cidade. Lá só tinha o barraquinho de madeira que construí.
Agora ele vendeu, na verdade, desde que entrei lá, a intenção dele era vender. Eu não pagava
aluguel porque fui eu mesmo que fiz o quarto - o barraquinho. Ele também não pagava nada
pra eu olhar o terreno, ficava elas por elas. Lá a gente tinha água de mina, não precisava pagar
água. A energia eu puxava da casa de uma sobrinha minha que morava do outro lado. Pagava
quinze reais por mês.
Eu cuidava do terreno e tinha um rapaz que eu sempre pagava para fazer o serviço mais
difícil. Agora até o coitado morreu. E era assim, o serviço que não podia fazer pagava para ele
fazer. Lá fiquei dois anos até que o dono me falou que iria construir, e então iria fazer uma
casa pra colocar o pedreiro. Eu então pensei: “está pedindo a casa para colocar o pedreiro”.
Eu vim na cidade, na casa da minha filha, e falei “eu tenho que arrumar uma casa aqui na
cidade porque o japonês parece que vai usar a casinha”. Daí ela falou sobre esse projeto, ela
trabalha na prefeitura há 23 anos e sabia do projeto. Ela me disse: “Porque o senhor não vai
na assistência social, eles estão fazendo umas casas, a Vila Dignidade, da CDHU, não sei
como é mas estão dando casa para os idosos”.
Na mesma hora eu fui lá, era pertinho. Cheguei e uma moça chamada Milena me atendeu. Eu
falei que queria fazer inscrição para ganhar a casa que eles iam construir. Já tinha essas 18
casas, já estavam no jeito pras pessoas entrarem – eu achei que iam construir mais.
Aconteceu o seguinte: ela pego papel e caneta para fazer a minha inscrição, olhou no
computador, pensou um pouco, não me falou nada, levantou e disse: “o senhor aguarde um
pouquinho”. Saiu da sala e foi falar com a gerente, a Beth. Quando ela veio de lá, me disse:
“O senhor estará na sua casa agora de tarde?”. Eu disse que sim e ela: “Então nós vamos lá
tirar fotos da sua casa”. Neste momento ela não me contou que eu tinha ganhado a casa.
Tinha uma pessoa que tinha desistido, por causa de um gato, tinha muito amor no gato e aqui
Página | 82
não pode ter animal. A pessoa desistiu e então uma casa estava vazia. Nem tinha inaugurado
ainda.
Eu fui embora e, de repente, o celular tocou, já era ela me ligando. Perguntou: “onde o senhor
está?”. Eu falei: “Eu estou aqui na esquina da rua da CCE, descendo”. Ela disse: “o senhor
espera aí que nós vamos agora na sua casa tirar foto”. Esperei ali, me pegaram e fomos tirar
foto do “barraquinho” de madeira. Ela tirou as fotos e disse: “O senhor foi contemplado”.
Nossa aquilo me arrepiou!
Em um dia, na hora, resolveu a minha vida! Ela disse: “Tem uma pessoa que desistiu da casa
porque tem gato e tem muito amor. Como lá não pode ter animal ela desistiu da casa e vou
passar por senhor”. Poxa vida eu quase desmaie. Nossa! Foi uma beleza.
Ela já marcou reunião para eu freqüentar. No dia da inauguração veio o governador e mais um
bando de autoridade, das cidades vizinhas, para ver o projeto. Daí foi se caminhando e eu dei
uma passeada, fui pra Curitiba, estava demorando um pouco para avisar para a gente vir. De
lá liguei para a Milena e ela falou, “pois é seu Antonio, nós fomos ontem buscar sua
mudança”. Eu estava em Curitiba e disse: “então vou embora amanhã”. Cheguei aqui na
quarta feira, foi na quinta ou sexta, não lembro, fizeram a mudança
Não tinha muita coisa pra trazer. Eu só tinha fogão, geladeira - uma geladeira branca, que
estragou, ai comprei essa. Eu não tinha cama, guarda roupa, sofá - o sofá eu comprei aqui -,
não tinha guarda louça, mesa, não tinha nada. Fui comprando aos poucos. Essa mesa
grandona eu comprei por causa da criançada, quando eles vêm enchem a casa.
Quando aposentei trabalhava na construção. Eu estava trabalhando em Santa Catarina,
fazendo três casas lá. Estava meio doente e vim embora pra me tratar aqui. Acabou me dando
derrame, ainda bem que eu tava na Santa Casa - já me pegaram na maca e me internaram.
Deu começo de derrame, eu até manco de uma perna, mas o problema não foi o derrame, foi
um erro médico. O médico mandou pôr uma injeção muito grande, me aplicou uma dosagem
maior. De certo, subiu o nervo e acabou me dando começo de derrame. A injeção era pra
baixar a pressão e nem precisava ter tomado porque a pressão estava 18 por 10, qualquer
comprimido já resolvia.
Cinco muitos depois que eu tomei a injeção foi amortecendo tudo. Não pude retornar
andando, tive que ir de maca, apareceu um monte de médico, foi um susto. Daí parei de
trabalhar porque me tirou a força do quadril e o braço ficou com seqüela.
Por causa disso me aposentei, mas não aposentei na construção civil porque eu “avacalhei”
um pouco na contribuição do INSS e não deu para completar, no momento da aposentadoria,
Página | 83
o tempo de serviço. Pra aposentar eu fui pra Curitiba, por que o médico daqui negou quatro
vezes a assinatura da minha aposentadoria. Fui pra Curitiba porque lá é mais fácil, o médico
aprovou na hora que viu a pericia.
Na construção civil eu trabalhei uns vinte e poucos anos, mas era uma época que a construção
civil não tinha valor, pedreiro não tinha valor. Trabalhava um monte, fazia um monte de
serviço e não tinha preço, poxa vida! Andei pelo Rio Grande do Sul, por Santa Catarina,
andei para Minas Gerais. Eu trabalhava por conta, até trabalhei em muitas empresas, em
Curitiba, São Paulo, Sorocaba, trabalhei em firma também, mas por fim eu estava trabalhando
por minha conta.
É um trabalho que desgasta e a gente se machuca naquele sobe e desce de andaime, nossa!
Chegou um ponto que não agüentei, por isso vim de Santa Catarina, larguei o serviço lá
porque não pude fazer, muita dor na coluna, muita pressão alta.
Eu e minha mulher ficamos uns vinte anos separados “bocalmente” - separados sem divórcio.
O divorcio mesmo eu fiz o ano retrasado, dia 18 de março, do ano retrasado [2010]. Tinha
esperança de ela voltar atrás, mas não deu mais. Ela tinha costume diferente do jeito que eu
queria e a gente não se resolvia. Eu tinha vontade de arrumar outra. Ela não arrumou
ninguém, disse que não queria homem, não arrumou até agora. Ficamos uns 30 anos juntos,
talvez não dê bem 30 anos.
Minha mudança de lá da casa para cá foi tranqüila, senti um pouco de falta do sitio, porque eu
gosto de sítio, gosto de lidar com terra, plantar verdura. Aqui tem uns pezinhos de planta, no
jardim de trás.
Estou lutando para ver se consigo alguma coisa da herança do meu avô. Ele tinha bastante
terra, acho que são 60 alqueires. Parece que custa cento e cinqüenta mil o alqueire de terra
reflorestada, do jeito que está. Sessenta alqueires vai dar um bom dinheiro, mas não é tudo pra
gente, tem mais herdeiro. Tem bastante gente pra dividir.
Se for para vender no preço que o advogado de Curitiba falou dá muito dinheiro. Acho que
pro meu pai vai ficar uns 10 alqueires, mais ou menos. Meu avô teve seis filhos, então são 10
alqueires para cada um, vai dividir em seis pedaços - quem tem filho vai dividir entre seus
filhos. Meu pai teve oito, então, a parte dele seria dividida entre os irmãos, mas eles me
falaram que não querem.
Penso que o dinheiro vai dar pra comprar um “sitiozinho” pra ter uma plantação. É muito
bom mexer com as plantas, é uma terapia a gente ficar respirando o oxigênio da mata, nossa é
uma beleza! Semear aqueles canteiros, ver nascer e ver crescer, é uma beleza! E quando chega
Página | 84
a fartura, a gente lava a cara de comer mandioca, tudo quanto é coisa. O que a gente planta é
muito mais sadio e tem mais sabor, porque a gente não coloca nada de agrotóxico.
Estou morando aqui desde o dia 22 de abril de 2011, tem pouco mais de um ano. Foi
tranqüilo me adaptar aqui, apesar de sentir muita saudade do sitio. Eu estava acostumado,
tinha um monte de galinha, cento e poucas cabeças. Nossa, tinha ovo caipira que era uma
beleza! Pra vim pra cá tive que vender, matar e algumas eu dei pro pessoal. Eu tinha um
galinheiro no cumprimento dessa casa.
Eu sinto saudade do sitio, de estar no sitio, o que eu queria mesmo era estar no sitio. Aqui está
mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e criando alguma coisa.
Eu mesmo limpo minha casa, só paguei um dia para minha filha vim limpar e lavar, mas
agora esses dias vou ter que arrumar uma pessoa. Eu gosto da coisa bem caprichada, eu gosto
mesmo. As pessoas que vem aqui falam que parece que tem uma mulher morando aqui. Fui
para Curitiba, fiquei 10 dias estava muito frio, dei graças quando cheguei aqui, abri a porta e
entrei pra dentro, quando recebi o calor da minha casa.
Me fez muito bem ter vindo pra cá, porque, tirando a saudade, aqui, no começo, eles tinham
proposta de nós não pagar água e luz, então era sem pagar nada. Depois passaram a cobrar a
luz, passaram o talão no nosso nome. Só que eu fiz baixa renda da luz que eu estou pagando e
vem zerado. Agora, esse talão que veio anteontem veio 23 reais, é de diferença que eles vão
reunindo, mas estava vindo zerada. Tenho certeza que pagando esse, vem zerada de novo.
Então, eu não pago nada aqui, vou pagar agora 23 reais que é mixaria. Mas no começo nós
estavamos pagando até caro, chegava até mais de 50 reais. Essa é uma coisa boa de morar
aqui.
Eu estou muito feliz, nossa, eu fico sozinho, mas a gente se conforma. Às vezes dá uma
olhada em alguma namorada, mais não é definitivo. Eu to querendo ver se arrumou uma, até a
Maristela, que é a nossa enfermeira padrão do postinho, ela falou assim: “o Sr precisa
arrumar uma companheira”, a Milena também fala.
Eu sempre penso em ter uma namorada. Eu vou passear sempre na casa dos parentes, tenho
bastante parente. Inclusive tem uma prima, uma sobrinha minha, que nós já tivemos um
namoro, mas agora ela está com outro. Volta e meia eu ligo para ela e ela liga para mim. Eu
tenho um papo com ela, vamos ver o que vai dar. E ela é bonita, eu nem mereço.
Meu relacionamento com os vizinhos daqui é tranqüilo, eu quase não me misturo com eles,
porque, não é que eu queira ser mais do que os outros, mas é que a gente tem um principio,
Página | 85
um fundamento de religião, a gente lê a bíblia e acha escrito que não deve se misturar com
pessoal assim... mas não que eu queira ser mais que os outros, é pra se preservar.
Sigo a Igreja Adventista do Sétimo Dia e tem umas passagens, eu li umas passagens que não
pode se associar com beberrão, comedor de carne. A gente come carne, mas lá de vez em
quando, um pedacinho, mas não assim de fazer festa, churrascada. Até tem uns da família que
fazem essas festas assim. Mas minhas filhas quase não comem carne, comem muita pouca
carne. Minhas três filhas e minha ex mulher freqüentam essa igreja.
Então é isso aí, a gente tem uma vida assim, eu não quero mal de ninguém e também não faço
jeito de querer as coisas mal para mim. E eu entrei muito bem aqui. A gente ora tanto,
pedindo para Deus que controle nossa vida, a gente tem uma vida de cristão.
Eu tinha vontade de ter um cachorrinho aqui, mas não dá. Outra coisa que falaram é que a
pessoa que quiser casar vai ter que casar com uma mulher de mais de 60 anos, se casar com
pessoa nova é perigoso perder a casa.
Essa casa não é minha, mas até a gente apitar na curva, como diz o ditado do pessoal, posso
viver aqui, a gente fica tranqüilo.
Eu até admito que sou velho, mas não muito, porque eu tenho espírito de mais novo, embora
agora eu esteja mancando. Saio por ai mancando, mas eu vou para toda parte. Aqui tem um
problema: o pessoal passa lá na rua, às vezes, gente que vem visitar aqui diz: “vamos lá
visitar os velhinhos”, é muito diminuído, sendo que a gente está com um pouco de gás ainda.
Eu acho essa parte ruim. Até falei pra uma que eu estava meio de olho nela, é da igreja
também, ela vinha aqui fazer culto comigo, eu falei para ela, ela estava meio investigando eu.
Nós estavamos ali nos aparelhos, eu falei pra ela que esse ponto de vista fica ruim pra nós que
ela fala: “Ah, nós vamos lá visitar os coitadinhos dos velhinhos”.
Quando converso com as pessoas conto com muito orgulho que moro aqui, todo mundo acha
que aqui é uma maravilha. E aqui é muito adequado para os idosos.
Todo dia, a cada minuto estou envelhecendo. Aqui eles falaram que depois que a pessoa ficar
velho que não possa fazer mais nada eles levam para o asilo, se a família concordar. Esses
dias estava pensando que, de repente, é melhor ir para o asilo do que ficar perturbando a
família. Eles trabalham e tem a cabeça deles, o mundo deles é outro, então, a gente velho já é
um trem fora da linha pra eles. Se for preciso, não acho ruim morar num asilo, só se os filhos
não quiserem que eu vá e arrumem um jeito de me cuidar.
Página | 86
O futuro, é difícil pensar, é o que eu falei, arrumar uma companheira. O difícil é arrumar uma
de 60, a gente está precisando de uma para cuidar da gente, uma de 60, às vezes, está pior que
gente.
Tinha uma aqui que queira casar comigo, só que essa pessoa tem dor aqui outra lá. Nós até
tinha uma amizade, ela estava aqui ou eu estava na casa dela, mas ela só fala mal dos outros.
Tudo quanto é coisa ela acha defeito nos outros e pra mim não serve pessoa assim. Eu não
quero falar mal de ninguém. E ela fala que é de outra igreja. Agora, ela não dá um
testemunho, o testemunho dela é péssimo.
Eu sempre tenho medo de fraquejar na fé, tem alto e baixo na vida e, às vezes, com uma
tentação qualquer. Então sou muito cuidadoso nisso aí. Não é que eu tenha medo, porque sei
que Deus não vai me deixar fazer isso e, se acontecer, a gente tem volta depois. A Bíblia fala
assim: “não pequeis”, mas, se pecar tem advogado do justo lá no céu, então, ele é nosso
advogado, nosso criador que vive no comando. Tenho muita fé que isso não vai acontecer.
Deve ter uns vinte e poucos anos que freqüento essa Igreja. Eu era católico, depois me
converti na Assembléia, quando morava no Paraná, mas não gostei, por causa de muitas
coisas que eles não observam nos Dez Mandamentos da lei de Deus. Por esse motivo eu saí e
fiz estudo com adventistas, creio numa verdade. Eu já li a bíblia toda, de cabo a rabo,
inteirinha. Nós fizemos o ano bíblico, passamos o ano inteiro lendo a bíblia. Comecei no livro
de João e fui até o fim. Voltei no livro de Gêneses, que é o primeiro livro, e cheguei até os
Salmos, e voltei de novo, estou começando outra vez.
Toda vez que começo aprendo coisas novas. Aprendo como Deus quer reger o povo aqui na
terra, o fundamento que a gente tem que acatar para ter a salvação. Por que existe a salvação
para cada um de nós, se crermos no sacrifício de Cristo e obedecermos aos Dez
Mandamentos, esse é um ensinamento para nós.
Os Dez Mandamentos já falam como tem que ser nossa convivência no mundo. O Primeiro
Mandamento diz: “Não terás outros Deuses diante de mim”. Não ter o dinheiro, não ter uma
imagem, não ter qualquer coisa no lugar de Deus, por isso Deus diz: “Não terás outros
Deuses diante de mim”.
O Segundo diz: “Não farás para ti imagem de escultura”. O povo vive fazendo imagem,
adorando imagem, isso é pecado. Fazem imagem de cimento, de madeira e dizem que é santo,
mas não é, e é pecado chamar aquilo de santo.
O Terceiro Mandamento diz: “Não tomaras o nome do Senhor teu Deus em vão”. As pessoas,
por qualquer coisinha dizem “Meu Deus do Céu, Deus me livre”. Estão tomando o nome de
Página | 87
Deus em vão; às vezes não é preciso e a pessoa chama o nome de Deus em vão. Não pode, é
pecado.
Aí vem o Quarto Mandamento: “Lembra do dia de sobra para te santificar”. Seis dias
trabalhado, mas o dia de sobra é o teu dia. Deus diz que não é pra fazermos obra nenhuma no
sábado porque ele fez o mundo em seis dias, no sétimo dia ele não tinha canseira, mas
descansou, abençoou e santificou. O único dia santo que existe na bíblia é o dia de sábado.
Aos sábados vou na igreja. Começa às 9hs a escola sabatina, 10 e pouco começa o culto
divino - o pastor falando e explicando -, termina 15 para meio dia, é quando a gente vem
embora. Tem culto às 8 horas da noite nos domingos e quartas, mas eu não vou, antigamente
eu ia, mas agora estou meio “cansadão”. E quando acaba já é tarde pra gente vim embora.
O Quinto Mandamento diz: “Honra teu pai e tua mãe para que você prolongue os seus dias
na terra”; o Sexto: “ Não matarás”; o Sétimo: “Não adulterarás” - se você tem a sua mulher
não pode cobiçar outra. Ai vem o Oitavo Mandamento que diz “Não furtarás” - não roubar.
Nono Mandamento diz para gente “Não dirás falso testemunho contra teu próximo”, às
vezes, a gente recrimina uma pessoa por fazer uma mentira: “fulano fez isso, aquilo”, não
dirás falso testemunho contra teu próximo
E tem um mandamento que Jesus falou, “Amar o próximo com a ti mesmo”, mas amar à Deus
sobre todas as coisas. Esse não está nos Dez Mandamentos, está em outra parte, foi Jesus que
falou isso. Encerra os Dez Mandamentos dizendo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo,
nem a mulher do teu próximo, nem teu servo, sua serva, nem coisa alguma que pertence ao
seu próximo”, esses são os Dez Mandamentos.
Agora, tem o pessoal que está com a bíblia na mão e não sabe discernir, por isso que é bom
estudar, as pessoas lêem e não compreendem. Leia a bíblia e os Dez mandamentos e pesquise,
a única igreja a guarda o sábado, como está escrito - e Deus não mandou ninguém escrever,
ele mesmo escreveu com o seu próprio dedo nas taboas de pedra, escreveu em pedra para
nunca se acabar.
O povo fala que foi abolida a lei de Deus e não foi, porque tem duas leis: a lei cerimonial e a
lei moral, que é essa dos Dez Mandamentos. A cerimonial é aquela: Jesus não tinha morrido,
e o preço da salvação do ser humano ia custar preço de sangue e era o sangue dele, então,
cada dia 10 do sétimo mês do ano, era o dia da expiação dos pecados. Cada um levava um
cordeirinho, um pombinho, um cabrito, um carneirinho, para o sacerdote imolar e espargir o
sangue na beira do altar. Essa era a expiação do pecado de cada pessoa naquele ano. Jesus não
tinha morrido ainda, e a lei era sacrificar os cordeirinhos, essa é a lei do Sacrifício. Crucificar
Página | 88
Jesus, ele morreu na cruz do calvário, foi o último cordeiro a ser morto, então rasgou-se o fel
de ata acima e essa lei cessou. Ele aboliu essa lei.
O sangue de Jesus selou, e é isso que o povo não sabe discernir. Ficam pregando que Jesus
salva, e nós sabemos que Jesus salva, mas é preciso enaltecer o sacrifício dele, porque ele fez
o sacrifício por cada um de nós.
Na bíblia diz isso. Por isso o cristão não pode rejeitar as pessoas, não pode abusar das
pessoas, deve respeitar com base no ensinamento bíblico, no entendimento e na sabedoria de
Deus e é muito difícil agir assim. Geralmente o mandamento mais difícil que tem é a
aobservancia do salmo, é o que o povo vive transgredindo.
A obediência à guarda do sábado, o sétimo dia, é a memória da criação. Deus fez o mundo em
seis dias e no sétimo dia descansou, abençoou e santificou. Nos outros dias só fala assim:
“Deus fez isso, mais aquilo, mais aquilo; Deus que era bom e assim se fez”; agora, quando
chegou no sábado diz: “Fez o mundo em seis dias, descansou no sétimo dia, abençoou e
santificou”.
Nossa mãe do céu, eu adoro falar da minha religião!
Se pudesse voltar no tempo, acho que não saia do que sou agora, porque lá trás a gente vê que
as coisas mudaram muito. Eu me lembro o tempo que a gente era guri - eu com o meu irmão -
, a gente imitava o Tonico e Tinoco, nós cantava, fazia baile. Tinha um primo nosso que
tocava violão e nós cantava. Lá no Serro Azul éramos taxados como uma dupla caipira. Até
pouco tempo fui lá, tem um tal de Olivio e Favo Ravino, que era tocador de violão, nós
cantava com ele, quando me viu já perguntou: “como é que é, vocês são uma dupla ainda?”
Agora a gente pertence ao Evangelho. Essas músicas do mundo a gente não participa.
Podemos ouvir, mas não podemos idolatrar, a gente tem que se resguardar porque são coisas
do mundo e o cristão não pode se idolatrar por coisas do mundo. Não pode perder a
espiritualidade. Deus é Deus, e merece todo nosso respeito, nosso louvor, ele é nosso Pai.
Tem hora que me arrepia, até choro. A gente começa ler o salmo, vê quanta obra, tudo que
tem aqui foi Deus que fez: nós, a formiga, tudo tem a mão de Deus! Então tenho muito
respeito com Deus, oro muito para que Deus me conserve nessa fé.
Eu não prego mais, principalmente agora que eu fiquei com pouco de dificuldade na voz. O
dia que deu começo de derrame amorteceu tudo a língua, a boca ficou torta, mas eu pregava,
quando morava em Curitiba. Até convertemos uma Igreja Pentecostal. Além da bíblia, tem
muitos livros de profecia, que a gente estuda, O Conflito dos Séculos, entre outros, Nossa, o
pastor foi para nossa igreja, muito bom nosso trabalho de evangelização!
Página | 89
Dona Geni de Oliveira Lima40
Eu trabalhei muito, eu roçava, carpia, quebrava milho. Chegava na roça, limpava o lugar da bandeira, quebrava e jogava milho. Era gostoso! Eu jogava o milho, quando reunia dez bandeiras de milho grandona, “montuava” tudo ali e ia lá pegar o cargueiro, o cavalo. “Ponhava” a cangalha, “ponhava” o cesto e ia buscar.
Geni de Oliveira Lima: 73 anos: julho de 2012.
Ah, eu ainda “alembro” da minha mãe, ela morreu mocinha, deu uma febre amarela que levou
embora. Acho que ela tinha 25 anos quando morreu e eu tinha sete. Fui sua única filha. Tenho
saudades dela, mas já foi. Deus quis, está bom, deixe em paz!
Quando a minha mãe morreu fiquei com sete anos, dali três anos meu pai casou. Tenho
irmãos por parte de pai, que eu respeito como meus irmãos, mas eles nunca vieram na minha
casa. Vieram só no dia do velório do meu marido, dia 15 de janeiro fez 25 anos! Só vieram na
minha casa neste dia.
Me criei na lavoura. Serviço de lavoura eu conheço tudo. Eu roçava, carpia, quebrava milho.
Vim do sitio com 55 anos. Meu marido morreu eu tinha 45 anos. Viemos pra cidade, só que
depois que ele morreu eu voltei pro sitio. Quando retornei pra cidade eu já tava com 55 anos.
Eu gostava da lavoura, criava porco, galinha, tinha bastante fartura. Quando vim morar pra cá
eu senti muito. Mas o trabalho lá é cansativo, nossa... Mesmo que eu pudesse agora não
voltava mais pra lavoura, porque não agüento mais nada: roçar, carpir.
O nome do meu pai era Antonio Jacinto dos Santos, uma vez ele disse assim pra mim: “Geni
eu hoje vou pra cidade e quero aquele alqueire pronto”. Eu disse: “até sábado eu termino,
“apronto” aquele alqueire pro senhor”.
Alqueire é bastante, nossa, é bem maior que esse pedaço de terra aqui. Acredita que em dois
dias eu dei pronto o alqueire pro meu pai? Roçado, em dois dias! Dei roçado e limpo, já pra
ele “carcar” o arado.
Nós plantava roça de milho, feijão, arroz. Plantava pra família e pra vender também. Eu
trabalhei muito, eu roçava, carpia, quebrava milho. Chegava na roça, limpava o lugar da
bandeira, quebrava e jogava milho. Era gostoso! Eu jogava o milho, quando reunia dez 40 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 09h30min, com Geni de Oliveira Lima; 73 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 31min23seg; Local da entrevista: casa da colaboradora.
Página | 90
bandeiras de milho grandona, “montuava” tudo ali e ia lá pegar o cargueiro, o cavalo.
“Ponhava” a cangalha, “ponhava” o cesto e ia buscar.
Toda vida eu trabalhei. Quando vim pra cidade eu lavei roupa pra cinco casas, cinco casas!
Tem uma casa que eu lavei roupa dois anos a fio: roupa de açougue, “roupaiada” suja, roupa
de fazenda. Lavava pra cinco casas. Meu marido ainda era vivo nessa época. Toda vida ele foi
pobre, foi pobre, mas era um homem muito trabalhador, certo pra negócio, muito honesto.
Casa de família eu nunca trabalhei. Levava a roupa e lavava na minha casa.
Agora faz uns sete anos que vendo sonhos. Eu conheço a cidade inteira, tenho muitas
amizades. Quando eu estava bem nervosa eu desabafava com as pessoas que comprava de
mim. Nossa, não deu derrame em mim porque eu desabafava. Eu desabafava com
“devogado”, com policia.
Outro dia eu tava nervosa e na rua mesmo eu desabafei com o policial daquela companhia que
tem ali na avenida. Eu chego ali e vendo pra eles. Nossa eles tratam a gente super bem.
Chamam a gente de tia, vovozinha. É legal, muito bom!
Meu marido morreu de repente, com 46 anos. Quando ele era vivo ele tinha casa, mas antes
de morrer passou a casa. Eu tentei segurar e não consegui, ele era brabo. Ele “breganhou” a
casa, fez uma “breganha”, uma troca. Ele era louco por terra e trocou a casa por um
terreninho, um sitio. Só que ele morreu e ficou sem documento nenhum. Daí tomaram tudo...
Fiquei sem nada... Como não tinha documento, quem era o dono ali tomou de novo.
Fiquei só com os filhos pra cuidar. Tenho seis filhos por tudo. Todos vivos. Meninas são duas
e homens são quatro. O caçula meu ficou com dez anos. O Gilson, que hoje é padeiro, e me dá
os sonhos pra vender, ficou com doze. O Laércio ficou com dezesseis, esse era o mais
“veinho”. Depois que o pai morreu entrou na bebida... A minha vida é uma comédia viu! Sofri
muito... Mas graças a Deus agora estou em paz.
Quando fiquei viúva foi muito difícil. Com dez anos eu coloquei o filho caçula na farmácia,
entrou em farmácia e esta até hoje, ele é casado e pai de três filhos. O outro, com doze anos,
entrou em padaria, não tem tipo de doce que peça pra ele que ele não faça. Agora ele fala
assim: “mãe, se o meu pai fosse vivo eu só ia aprender a cortar lenha” - o meu marido
cortava lenha -, “a senhora deu ensino pra nós e, por respeito à senhora, eu agora sou
Página | 91
padeiro”. Quando os filhos começaram a trabalhar eles ajudavam, ai a situação foi
melhorando. O aluguel, o Gilson pagava, depois que ele casou, sobrou pra mim, continuei eu
pagando.
Depois de viúva, nunca pensei em me casar de novo. Nem pensar em casamento! Eu não sei
se eu to falando certo ou to falando errado, mais eu vou falar uma coisa: casamento é uma vez
só. Não sei se eu to certa ou se eu to errada, mas pra mim é assim. Porque não dá mais certo,
já pensou, casar com um marido porco, pôr dentro de casa um homem porco, não dá certo.
Tenho seis filhos, os netos tem que contar porque são bastante: a Naide tem dois; a Nice tem
quatro; o Cesar tem três; o Zacarias tem um; o Laércio tem quatro. São catorze netos. E tem
os bisnetos. Já tenho bisneto moço, mora em São Paulo, é filho do Fabiano. Tenho dois
bisnetos que são filhos do Carlos, tem dois da Carina e o menino da Tatiana. Seis bisnetos,
bastante! Quando junta todo mundo dá uma festa. Enche a casa. Gostoso!
Tenho contato com todos eles, vou mostrar41. Esse aqui é o João, ele fez micagem pra tirar
foto.
Esse aqui é o bisneto filho do Carlos e a bisneta. São uma graça essas crianças. Se eu
continuar nesse pique eu vou conhecer o tataraneto. E nem vou precisar esperar muito, porque
o menino do Fabiano já é moço.
Meus filhos moram aqui em Itapeva, vejo sempre todos eles. Me ajudam como podem, mas
não com dinheiro. Com dinheiro não podem ajudar a gente, são apurados e a crise esta difícil.
A gente que tem que se virar. Mas graças a Deus já me ajudaram bastante e hoje eu não
preciso mais da ajuda deles.
O Gilson não pode me ajudar com dinheiro, essas coisa, mas o serviço ele dá, pra ter os troco
da gente. Ele prepara os sonhos que eu vendo. Também tenho pensão do meu marido, já é
uma boa ajuda. Eu dei entrada na minha aposentadoria, mas por enquanto nada ainda. Nunca
trabalhei registrada, é difícil. Apesar da pensão do meu marido ando um pouco apurada por
causa do empréstimo. A gente tem que levar certo as coisas e é difícil pra pagar.
41 Me mostra várias fotos que são imãs de geladeira.
Página | 92
Tem bastante tempo já que eu moro sozinha. O último que ficou comigo foi o filho do meio,
faz doze anos que ele é casado, então, já tem doze anos que moro sozinha. Já paguei muito
aluguel nessa vida. Dava pra comprar uma casa, mas Deus comprou pra mim. Aqui eu sei que
é do governo, é emprestado e quando eu morrer passa pra outra pessoa idosa, mas mesmo
assim estou no céu!
Esses dias eu questionei uma mulher, lá no CDHU, onde eu vou pegar as coisas pra vender.
Me queimo à toa, sou muito “bocuda”. A mulher disse assim pra mim: “Viu Dona Geni, a
senhora mudou? A Tereza estava falando que lá é o asilo”. Aí eu falei: “nossa, não sabia que
asilo era bom igual lá. Porque lá é um condomínio fechado, lá tem tudo. Lá até a água pra
senhora lavar o rosto na pia do banheiro é água quente. Tem água quente na pia pra lavar o
rosto, não sei se no asilo existe isso”. Ela baixou a cabeça, foi a Tereza que contou pra ela,
mas, quem contou pra Tereza? As pessoas são muito fofoqueiras, eu nem quero que venham
aqui. Essas pessoas assim eu não quero.
Falar de onde eu morei é complicado. Eu morei no CDHU, lá no apartamento 31A. De lá eu
fui morar no Itapeva 3, morei dois anos e três meses lá. Meu filho veio morar comigo, ele
bebia e a mulher largou dele. A minha vida é uma comédia! A dona da casa não aceitou ele
bêbado lá, atropelou ele. De lá aluguei um apartamento e morei 5 meses no apartamento de
cima.
Depois eu morei no Parque Longa Vida, ainda com esse filho. Do Parque Longa Vida eu vim
pro Cecap, essa vila aqui de cima. Daqui eu voltei pra lá e morei dois anos em outro
apartamento. Mudei bastante, nossa!
Nem estranhei quando vim pra cá, porque lá era muito sofrimento, eu não gostava de lá. Era
sofrido pela situação que a gente passava. Tinha muitos vizinhos e convivia bem com todos
eles, não tenho queixa de ninguém lá. São muito bom, só essa mulher que falou pra mim
aquelas coisas. Só que ela é bem velha, tem 86 anos.
Aqui é um presente que Deus me deu, nossa uma bênção. Aqui não acho falta de nada, graças
à Deus. Dá fome eu como, dá sono eu durmo, tomo banho bem certinho. Eu gosto de tudo
bem limpinho, toda vida eu gostei. Tô “desgrenhada” agora, mas é porque acabei de acordar e
ainda não me arrumei, mas já vou tomar banho e lavar a cabeça.
Página | 93
Ter vindo pra cá me trouxe muitos benefícios: tenho mais saúde, tranqüilidade, trouxe paz pra
minha vida. É uma benção, nossa! Os vizinhos aqui são tudo bom, só que eu vou falar bem a
verdade, eu não conheço tudo ainda. As vizinhas aqui são muito boas: aquela Dona Maria,
tem uma mulher ali também muito boa, tem a senhorinha ali, também muito boazinha. Nossa,
são tudo bom, um amor de pessoa.
Até com a minha família ficou melhor, ficou bem melhor, porque agora eles vêm mais na
minha casa. Principalmente a filha que ficava um ano sem ir na minha casa. Pensar bem uma
coisa, o Natal e o Ano Novo eu passava sozinha. Só o que morava em cima de mim, esse
Gilson morava em cima e eu morava em baixo, que ia na minha casa, porque tava do lado. Ele
que me dá serviço hoje.
Como estou aqui há pouco tempo quem vem aqui é os filhos, outro dia veio a nora, veio os
filhos, genro, neto. Domingo veio a neta, Carina, com a menininha dela. Também já veio a
nora e a Zenaide.
Eu pensava que não ia ficar “veia”, pensava que ia morrer logo. Nunca passou pela minha
cabeça que eu ia ficar velhinha pra morrer. Por causa do sofrimento eu achava que ia morrer
logo. Eu pensava: “uma hora eu deito pra dormir e amanheço morta”, por causa do meu
sofrimento eu nunca achei que eu ia ficar nessa idade.
E agora não me considero “veia”. Tô “veia”, mas eu tenho minhas forças pra andar, tenho
aquela disposição de conversar com as pessoas, andar, fazer serviço, limpar as coisas - limpo
uma coisa, limpo outra.
Então eu não me considero “veia”, porque, “veio” mesmo, que vai se entregando, não tem
coragem de fazer serviço. Não tem coragem, se acostuma com a sujeira. Não é mesmo? Eu
não sei se eu “to” falando certo ou errado. Eu não quero ficar muito “veia” não, mais do que
eu to. Não quero chegar nos 80. Não é fácil, só Deus sabe a nossa vida!
Sabe, eu andava se batendo que nem barata no açúcar. Fiz inscrição num lugar, fiz inscrição
noutro. Fiz inscrição lá naquelas casas que estão fazendo agora. Fiz inscrição lá naquela vila
que tá construído umas casas ali do lado da estação. Fiz inscrição lá, fiz inscrição aqui.
Alguns nem ficaram prontos, não saíram da terra. Só ficou na gaveta o papel mesmo. Fiz a
inscrição ficou na gaveta...
Sempre falei “Deus vai preparar uma casa pra mim” e Deus preparou aqui.
Página | 94
O que eu espero pro meu futuro? O dinheirinho que sobrar eu comer bem, andar bem
limpinha. Futuro a gente não tem mais porque já é velho, como é que a pessoa vai ter futuro?
O que tiver que fazer é pra comer, pra beber, se vestir, ir pra uma igreja, fazer uma visita. Isso
é que eu espero!
Vou bastante na Igreja, vou na Cristã do Brasil, desde 1981.
Deus protege muito a gente, nossa Senhora! Deus é muito bom na nossa vida. Não era pra eu
tá por aqui, foi Deus que preparou essa casa pra mim! Não tem palavra pra agradecer a Deus.
Eu tava deitada na cama ali e pensando, “o que que eu tenho que fazer pra agradecer à Deus
não?”, penso sozinha.
A gente agradece a Deus de dar glória, não falar mau dos outros, não brigar com ninguém.
Isso é uma benção, não é mesmo? Olha, eu morei na Lavrinha, em acampamento de firma. Ali
tem um monte de gente: tem o bom e tem ruim. Morei três anos lá, nesse tempo meu marido
era vivo, e nunca tive problemas com ninguém.
Graças a Deus eu não tenho medo de nada. Só tem vez que eu fico pensando, que não tenho
medo do morto, tenho medo do vivo. O morto não faz mal a ninguém e o vivo faz.
Valeu viver tudo que vivi. Valeu a pena! Eu não mudaria nada na minha história. Que nem o
Gilson disse pra mim: “mãe a senhora tá na glória, mãe agradeça à Deus que a senhora tá
na glória”. Ele se preocupa, se preocupa bem comigo...
Não tenho saudade de nenhuma das casas por onde passei, nenhuma delas. Nem lembro. De
casada eu sofri muito também. Trabalhava né, porque meu marido era pobre. Morava na
lavoura, na palhoça de sapé. Tinha fartura, tinha bastante porco, tinha galinha, estoque de
mantimento, mas, era sofrido. Não lembro e não tenho saudade. Graças a Deus, tô em paz!
Trabalhei muito na minha vida viu... E trabalho ainda, mas se eu parar enferruja, daí fica na
cama, Deus o livre! Eu não quero ficar na cama, quero morrer de repente porque eu não quero
dar trabalho pra ninguém.
Nem quero pensar em ter que morar em asilo, Deus o livre! Nem quero pensar nisso. Eu não
penso em ir no asilo... Acho que não dá. Lá é muito misturado e eu sou assim: gosto das
Página | 95
coisas quietinho, gosto de fazer meu serviço quietinho, eu gosto de ficar quieta. Lá tem muito
“veio”, eu só “veia” também, mas lá tem muito “veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo...
Nunca fui visitar um asilo, mas penso que é assim porque, a gente passa de ônibus lá ta
aqueles “veio” sentado pra fora. Eu penso assim comigo.
Página | 96
Seu Irineu Fonseca42
Meu pai era motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do quarto ano, ele me chamou e perguntou: “Você quer continuar estudando? Eu pago o seu estudo, ou você prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo”. Quando ele falou “quer ir viajar comigo”, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de andar de caminhão e aprender a guiar
Irineu Fonseca: 64 anos: julho de 2012.
Toda vida morei aqui em Itapeva. Só no lugar aonde eu nasci, que é na vila do lado de lá da
cidade, eu fiquei 55 anos. Quando o meu pai construiu a nossa casa eu tinha sete anos e sai de
lá agora com 64, faz um ano e três meses que eu estou morando aqui. Nunca tinha me mudado
antes.
Meu pai era motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do
quarto ano, ele me chamou e perguntou: “Você quer continuar estudando? Eu pago o seu
estudo, ou você prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo”.
Quando ele falou “quer ir viajar comigo”, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de
andar de caminhão e aprender a guiar. Trabalhei um pouco em padaria e com quinze anos
comecei a viajar com meu pai. Quando completei dezoito tirei a carta de motorista e ele já me
pôs pra viajar sozinho, em outro caminhão, ele viajava em um e eu em outro.
Eu tinha um irmão que era mais velho, ele já é falecido, quando falei pro meu pai que preferia
trabalhar com ele no caminhão, então, ele nos pegou e nos levou numa estrada, que vai pro
sitio. Falou pro meu irmão “você que vai tocar o caminhão agora” e eu estava “ansiado”,
porque era a primeira vez que ia pegar o caminhão. O meu irmão pegou o caminhão e, não sei
se ele tava com tanta vontade também, quando foi sair com o caminho, deu um “tranquinho”,
morreu o motor. Meu pai falou “pode descer que você já foi reprovado na primeira prova,
pode descer”. Na seqüência ele falou: “Agora é o Chaminé”, que era eu.
Eu via sempre como é que ele fazia quando ia sair cedo com o caminhão. Sentei, funcionei o
caminhão, regulei o espelho pro lado de fora e saí bem assim, na marcha lenta, devagarzinho e
andei lá onde o meu pai mandou. Andei um trechinho e ele mandou parar. Fiquei com dó do
42 Entrevista realizada em 26.07.2012 às 10h, com Irineu Fonseca; 64 anos de idade; 4º ano primário. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 50min23seg; Local da entrevista: casa do colaborador.
Página | 97
meu irmão porque o meu pai ainda falou assim pra ele: “tá vendo, o que tem que ser nasce
feito”. Devolvi o caminhão na mão do meu pai e seguimos.
Ele repetiu esse teste outras vezes e meu irmão já firmou também e, por sinal, ele foi um
ótimo motorista. Carreteiro, trabalhou com carreta e tudo, com caminhão tanque. Nunca teve
coisa grave, acidente grave com ele. E eu também, graças a Deus, toda essa caminhada minha
de motorista, viajei por vinte e cinco anos, e nunca aconteceu nada comigo.
Eu viajei nove anos na estrada que liga São Paulo à Curitiba, Regis Bittencourt, conhecida
como rodovia da morte. Fazia o trecho de São Paulo a Porto Alegre, as viagens tinham
horário e eu viajava a noite inteira. Graças a Deus eu nunca sofri um acidente e vi tanto
acidente ali que, se não tivesse um pouco de coragem, largava mão até de trabalhar. Tinha vez
que eu pensava: “Deus o livre, eu não vou mais trabalhar com caminhão porque já pensou se
acontece comigo uma coisa dessas?”.
Mas, graças a Deus e ao São Cristovão, que sempre me acompanhou, eu nunca tive problema,
assim de bater caminhão, comigo não.
A última firma que eu trabalhei foi a Rápido Paulista, fica lá na Vila Guilherme. O meu
patrão, quando eu entrei pra trabalhar, ele só tinha um caminhão, daí depois foi comprando
mais, comprou mais um e chegou a ter onze. Um dia ele me chamou, bateu no meu ombro, e
falou assim, às vezes falava Chaminé, às vezes falava Negão: “Oh, Negão, você já tem o seu
santo protetor e tudo, continue firme com ele e rezando, sempre rezando e pedindo, porque
você sabe, nós estamos com onze caminhões, dez já bateram, só você que nunca bateu, nunca
aconteceu acidente”. Eu falei: “continuarei rezando”, e, graças a Deus, trabalhei com ele um
tempão e nunca aconteceu nada.
Eu viajava de São Paulo pra Porto Alegre, dava uma viagem e meia. Era assim: quando eu
carregava no fim da semana, por exemplo, na quinta-feira que eu estava em Porto Alegre, eu
carregava pra Ponta Grossa, chegava a Ponta Grossa no sábado, descarregava o caminhão e
dali vinha pra Itapeva. Passava na minha casa, ficava o domingo, e na segunda de madrugada
eu já ia pra São Paulo de novo.
A Tereza sempre ficou em Itapeva. De vez em quando ela viajava comigo quando eu
trabalhava no caminhão que era do meu pai. Quando eu trabalhava nas outras firmas, de vez
em quando ela ia comigo. Foi pra São Paulo, pra Campinas, pro Rio, pra Porto Alegre e pra
Página | 98
Santa Catarina. Eu achava engraçado, quando eu estava dirigindo, ela sentada do meu lado, de
vez em quando ela cochilava e eu dava um “soquinho” no caminhão só pra assustá-la. Eu
falava assim: “não se assuste não”, eu gostava de fazer minhas “malvadezinhas” também.
Eu sei que foi gostosa a minha vida de caminhoneiro, pra mim foi muito bom! Faz muitos
anos que estou com noventa e dois quilos, não saio disso, mas já cheguei a pesar cento e
dezoito e sabe por quê? Quando eu passava Curitiba, e entrava em Santa Catarina, tinha os
pontos certos de parar só pra comer rodízio. Eu só comia churrasco e era bom de garfo!
Nossa Senhora! Lá em Itajaí, perto de Blumenau, tinha uma churrascaria que eu parava que, o
churrasqueiro já tinha amizade comigo, servia um cupim que não tinha jeito de por no espeto
de tão macio que ficava. Vinha numa taboa, ele “ponhava” a tábua em cima da mesa onde eu
estava sentado e mandava escolher a parte que quisesse. Eu sempre gostava da parte mais
gordinha, então eu falava: “pode por misturado aqui, um pedaço gordo e um magro”. A
minha comida na churrascaria era maionese e arroz, o resto era tudo carne. Feijão, macarrão,
essas coisa assim, lá de vez em quando eu comia, quando estava com presa. Era muito bom!
Por incrível que pareça eu trabalhei vinte e cinco anos com caminhão. Na carteira profissional
tenho quase vinte e um anos registrados como caminhoneiro, só que quando deu o problema
de saúde fiquei encostado e não aposentei. Eu fiquei encostado e parei de recolher INPS.
Motorista se aposenta com, acho que qualquer pessoa que tem problema de saúde, já tem
direito à aposentadoria tendo quinze anos de registro.
Eu estou recebendo um salário mínimo, é um salário que o governo me dá, até completar 65
anos e poder aposentar por idade e invalidez, porque sem visão não tem jeito de dirigir mais.
Estou nesta espera, vai vencer agora dia 23 de março de 2013, quando eu completo 65 anos.
Já fui me informar lá no INSS, dia 23 eu faço 65 anos, dia 24 já posso ir que estará tudo
pronto. É só chegar, pegar os papéis e ir na caixa. Ai, passo a receber o piso de motorista. Não
sei se em todo lugar é assim, mas aqui em Itapeva, é difícil pra pessoa se aposentar. Eles
esperam estar quase morta, dai vai aposentar.
Antes de trabalhar com caminhão eu fui de tudo, comecei a trabalhar quando tinha sete pra
oito anos. Eu saia da escola passava na padaria e pegava uma “cestada” de pão. Ia vender pão
e quando terminava de revender o pão guardava a cesta e já pegava a caixa de engraxar,
“ponhava” nas costas e ia pra praça engraxar sapatos. E ficava até oito, oito e pouco da noite,
Página | 99
pra não ir muito tarde pra casa. Fazia tudo isso, ninguém pode dizer que eu fui vagabundo,
porque toda vida, desde os sete anos eu trabalhei. Depois que eu terminei a escola, como eu já
contei, fui trabalhar com meu pai.
Quando eu estava com meus dezenove anos conheci a Tereza. Começamos a namorar e
namoramos quase três anos. Com vinte e três nos casamos e estamos até hoje, ela esta me
agüentando! Estamos com 41 anos de casados e torcendo pra chegar nas bodas de ouro. A
Tereza também é de Itapeva, só que ela é mais da zona rural.
Quando eu namorava pegava o caminhão do meu pai e ia lá na frente da casa dela. Abria a
porta do caminhão, ligava a sonatinha dentro do caminhão, “ponhava” aquelas musicas que
ela sempre gostava. Ligava e ficava curtindo música, ela escutava e saia pra conversar
comigo. Ela ainda lembra, uma das primeiras que eu toquei pra ela, e às vezes cantava na
orelha dela, era aquela: “Tereza, quando te dei aquela rosa...”
Outra que ela gostava muito é Ciúmes de Você, do Roberto Carlos, essa diz assim: “mas é
ciúme, ciúme de você, ciúme de você. Este telefone que não para de tocar, esta sempre
ocupado quando eu quero lhe falar”. Nessa época os cantores eram Jerry Adriani, Antonio
Marcos, a turminha do Erasmo Carlos.
Nós éramos em quatro irmãos. O mais novo morreu num acidente e o mais velho morreu de
aneurisma. Agora, atualmente vivo é só eu e uma irmã, que mora lá onde eu morava. Ela
também nasceu e foi criada lá. Nosso terreno era grande e todo mundo foi construindo a sua
casa. A casa da frente é onde o meu pai morava. Fomos criados ali e quando a turma começou
querer casar, foi feito a casa pra ter onde morar; “Quem casa quer casa”, diz o ditado aqui no
interior. Foi assim que foi construído e moramos 41 anos.
Eu nunca pensei em sair de lá. A Tereza sim, sempre teve vontade, tanto que fizemos a
inscrição, uma época, no CDHU, mas nunca tivemos sorte de ser sorteado. Aqui tem um lugar
que é CDHU, que tem bastante casa e quem foi premiado tem sua casa lá. Mas muita gente já
enfiou a casa no nariz, ganha e vende baratinho.
Francamente, o dia que eu me mudei, eu não sei, parece que eu saí do ar. Falar a verdade eu
até chorei. Um amigo, um colega meu que nos trouxe, no dia em que foi carregada a
mudança, ele falou: “vamos Chaminé”, e eu falei: “vamos aonde?”. “Vamos pra sua casa
nova, porque a mudança já foi, estão descarregando a mudança lá”, daí eu falei: “então
Página | 100
vamos”. Falar tchau pra um, tchau pra outro, tchau pro vizinho, foi doido. A Tereza, em
compensação só disse: “tchau, qualquer hora eu volta aqui”.
Tenho uma vizinha lá, a dona Nilda, que já completou 80 anos, mas, nossa, quando vou na
casa do meu filho passear, ela mora do ladinho, é a primeira que me vê chegar, já vem
encontrar comigo, perguntar como é que tá tudo.
A gente acostuma num lugar, eu acostumei porque, quando trabalhava com caminhão, sabia
que toda semana, pelo menos um dia na semana, passava lá. E eu com a Tereza aproveitemos
bem, passeamos bastante. Além das viagens de caminhão nós, todo sábado ou domingo, ia
passear no sitio, porque os parentes dela tudo tem sitio.
Só tivemos um filho, que fez 35 anos. Ele é mais alto que eu, pra conversar com ele tenho que
levantar a cabeça. Ele é motorista de tudo, de qualquer tipo de carro: grande, caminhão,
caminhãozinho. Ele viajou vários tempos comigo, mas, o serviço dele mesmo é na área
agrícola. A firma que ele trabalha vende máquinas agrícolas: trator, arado, tudo que é da
lavoura. Ele é, como diz, um dos mais “chegadão” na firma. Também, ele faz tudo: trabalha
tanto no balcão, vendendo peças, como, às vezes, algum cliente pede pra ele fazer uma
visitinha, quando dá problema em algum trator, alguma coisa, tudo é ele que vai. Se
chamarem o mecânico pra arrumar alguma coisa, o mecânico já fala: “Ah, o Junior vai
comigo”, e leva o Júnior atrás. É bom porque ele aprende muita coisa e não é perdido.
Ele é casado e tem um casal de filhos. Deve ter foto deles ai no quadro. A minha neta Tainá
tem 15 anos e o Tiago fez nove. Deve ter foto do filho e da nora também. Eles moram lá na
casa que nós morávamos, nós morávamos juntos. Tinha três cômodos que era nosso e quatro
que era dele. Ai, quando eu e a Tereza viemos pra cá ele deu uma reformada e emendou tudo,
agora a casa ficou grande, tem sete cômodos. A minha irmã mora lá também, na casa da
frente, a casa que era do meu pai.
Quando foi pra vim pra cá a Tereza ficou com a mudança arrumada acho que uns vinte dias.
Quando o CREAS ligou avisando que a gente tinha conseguido a casa, nossa! Ela não sabia o
que fazer, pulou de alegria. A minha nora falou assim pra ela: “Tereza você quer se livrar de
mim?”, e ela: “não, é que agora vocês vão poder ficar sozinhos, cuidar da vida de vocês e eu
vou cuidar da minha, com meu velho”.
Eu pensava que não ia sair pra nós essa casa. Eu torcia escondido pra não sair, porque a
Tereza queria muito. Sei que foi difícil pra mim no começo, mas depois eu fui pegando o
Página | 101
jeito, agora acostumei. Quando eu sai de lá eu pensei uma coisa, mas não é do jeito que eu
pensei. Eu pensava: “poxa vida agora quero ver eu sair daqui, ficar longe dos meus netos,
da minha família, do filho, da nora, ficar longe deles vai ser difícil”. Eu não esperava que
seria assim, que eles viriam me visitar sempre. Toda semana, pelo menos duas vezes, ele vem.
Ele vem, minha nora vem, os netos, todos estão sempre por aqui.
Então, eu acostumei, e analisando bem, eu pensei comigo: “é uma coisa que, eu sei que tá
garantido aqui pra mim até o dia que morrer, porque depois que morrer, o caminho certo é o
cemitério”. O pessoal que mora aqui, muitos deles não tinham bem dizer nada, então, a
assistência deu fogão, geladeira, cama, todos os móveis que precisa na casa. Nós, graças a
Deus, tudo que tem dentro aqui é nosso mesmo. Nós trouxemos de lá, então, o dia que a gente
faltar, o meu filho com a minha nora, podem tirar toda a mudança, tudo o que tiver aqui
dentro, só deixar a casa vazia.
Dai entra outra pessoa que está aguardando. Nesse ponto eu estou sossegado porque eu penso
que aqui tem tudo que eu quero, a minha mulher sabe fazer tudo, ela, como cozinheira, nossa!
Tudo que eu gosto ela faz. Cama pra dormir tem, eu posso dormir o dia inteiro, se eu quiser
descansar. O que mais eu vou querer? E mesmo eu tendo o problema de visão eu vou na
cidade todo dia, ontem mesmo eu fui pra lá.
A Tereza sempre me acompanha, mas, de vez em quando, eu vou sozinho. Daqui de casa até
ali no ponto de ônibus eu vou sozinho. Pego o ônibus, desço lá no centro da cidade, vou no
mercado, na igreja, vou visitar a turma lá da Vila onde eu morava e pra mim está bom. A
única coisa é não poder enxergar, mas, Deus às vezes tira uma coisa da gente e dá duas.
Perdi a visão por causa do diabetes. Descobri que tinha diabetes em 1984, e perdi a visão há
nove anos. Eu fui percebendo porque, quando eu estava viajando, aquelas placas, que eu via
de longe, começaram a ficar embaçadas. De longe eu não via direito e a sinalização
embaralhava. Eu tinha que chegar bem perto pra ver a placa nos carros que iam na minha
frente. Com o tempo, tinha que encostar no carro pra poder enxergar de onde era e ver o nome
da cidade.
Depois que eu parei com caminhão eu viajei com vã e com carros particulares. Tem bastante
gente que só dirige aqui, se falar de ir pra São Paulo, nossa senhora. Eu fiz muitas viagens e,
até a última viagem que eu fiz foi pra Poços de Caldas, eu fui levar duas senhoras. O médico
daqui me perguntou “você tem alguma viagem programa?”. Eu disse: “tenho uma, lá pra
Página | 102
Poços de Caldas”. Daí ele falou “acho que não vai dar pra você ir, é melhor você não ir”, e
eu falei, “mas nossa, eu já combinei, as pessoas já me deram até o dinheiro da viagem, já
está tudo pronto”. E ele novamente: “Então, você vai com cuidado, mas essa é sua última
viagem. Do jeito que você está não dá mais pra viajar, Deus o livre, vai acontecer um
acidente com você, aí vai ser pior”.
Quando a gente está bem não pensa nessas coisas. Um dia ele me falou “olhe, se você fizesse
um exame de vista, uma vez por ano, não estava deste jeito, descobririam o descolamento da
retina antes”.
Descolou a retina do lado direito, só que a outra ficou prejudicada. Eu sei que falei “agora eu
vou ter que parar de viajar, fazer o que?”. E assim mesmo, por aqui eu sempre andava
dirigindo. Às vezes enxergava 30 ou 40 metros e via os outros carros, o movimento de gente,
mas, agora não dá mais. Do jeito que estou não enxergo nada, estou conversando com você,
mas nem te vejo.
Foi isso que aconteceu. Tem muita gente que tem diabetes e não sabe. Por que não procura
um médico pelo menos uma vez por ano. Como o médico me falou no dia que me examinou e
descobriu que tinha descolado a retina e estourado umas veias do olho: “olha, se você tivesse
vindo aqui uns três ou quatro meses antes, dava tempo de cuidar disso daí”. Mas não deu vou
fazer o que? Bem que foi tentado, em Sorocaba fizeram três cirurgias, colaram a retina, mas
não voltei a enxergar.
Eu acho que as mudanças que tiveram depois de virmos pra cá foi tudo pra melhor, tudo coisa
boa. Falar a verdade, a única coisa que eu penso, a hora que tiver uma reunião eu vou falar, é
que era bom se pusesse um orelhão aqui na frente. O povo aqui, não são todos que tem
telefone fixo. A maior parte tem celular, mas tem muitos ai que não sabe nem ligar o celular.
A saúde minha graças a Deus está controlada: o diabetes, a pressão, o coração está tudo
controlado. Temos o posto de saúde aqui pertinho, dois ou três quarteirão, o médico é muito
bom. Ele vem aqui a cada dois meses e o que a gente precisa vai no postinho e eles atendem.
Tem a enfermeira padrão que é uma pessoa muito boa, atende muito bem a gente, dá muita
atenção. Então, aqui é bom por causa disso. E o resto é a mesma coisa se eu tivesse lá na
cidade, porque aqui perto tem padaria, tem açougue, tem farmácia, tem mercadinho, tem
ônibus pertinho. O ônibus, o dia que não para muito em todos os pontos, em quinze minutos
deixa a gente na cidade.
Página | 103
Falar a verdade, eu não me considero muito velho. Porque a pessoa quando é muito, uns fala
velho outros fala idoso, quando é muito velho anda mais debilitado. Não pode fazer as
coisinhas dele sozinho. A gente aqui faz as coisas da gente sozinho.
Domingo veio um senhor fazer um visita, ele tem 90 anos, mas só tem um probleminha no
ouvido, não escuta muito bem, mais enxerga bem, anda tudo. Ele falou pra Tereza: “nossa,
mas como a senhora é bonita!”.
A Tereza deve ter ficado como um pimentão. O pior que ele repetiu umas cinqüenta vezes,
não parava de falar “vocês estão no céu, aqui é um paraíso. Que casa bonita, bem arrumada,
lugarzinho que, nossa, dá pra viver tranqüilo, só o casalzinho. Só que você não é velha”. Eu
falei: “e eu?”. Ele respondeu “o senhor também tá bem conservadão”. Dai eu falei pra ele:
“é, mas eu não chego na idade do senhor, eu tô com 64 será que vivo mais 26 anos?”
Esta por sete meses pra eu passar pra aposentado, o meu sonho é, depois que aposentar, viver
mais oito ou dez anos pra desfrutar um pouco da aposentadoria. Eu acho que chego nisso. Na
minha família o que viveu mais foi a minha mãe, que morreu com 69 anos, o meu pai não
chegou nos 60, morreu com 59. Eu tenho um irmão que morreu com 23 anos, num acidente; o
outro, o mais velho morreu com 50, ele ia fazer 51, estava com tudo programado, ele falava
pra todos os amigos: “esse ano é o ano da boa idéia, 51. Vamos fazer uma festa, um
churrasco, não sei o que”. No fim, no meio do ano ele pifou. Então, eu acredito que,
controlando o diabetes e tomando meus remédios certo, é capaz que eu dure mais um
tempinho, mas não dá pra calcular porque o corpo é que nem uma máquina. Você vai indo prá
rua e, de repente, “puf”.
Medo, no sentido de morrer, eu não tenho. O único medo que eu tenho, pra dizer a verdade, é
quando eu estou andando sozinho e tem um buraco meio grande na minha frente assim, que
eu não percebo. Às vezes a bengala também logra a gente. Então eu tenho esse medo, mas,
graças a Deus, nesses nove anos sem visão, eu nunca cai e sei de muita gente deficiente que já
caiu.
Na nossa cidade falta muita coisa pra ser adaptada pras pessoas deficientes. Eu ando, mas eu
ando bem devagar, porque às vezes acontece alguma coisa que se tivesse depressa me
machucava. Às vezes, você vai indo na calçada e daqui a pouco “pah”, aquelas lixeiras que
Página | 104
eles fazem e ficam assim, no meio da calçada, parece que é pra quem não enxerga bater
mesmo.
Um dia eu ia passando numa calçada meio estreita e o poste, em invés de ser na beirada da
guia, é no meio da calçada. Eu fui e encostei no poste, não cheguei a bater. Atrás de mim
vinha um homem, depois que eu bati, parei e voltei um passo pra trás e bati a mão assim pra
desviar, ele falou “tem um poste ai”, eu falei, “ah, você me avisou tarde, se avisasse antes eu
não tinha batido”. Depois que eu bati avisa que tem um poste!
Eu não sei, acho que não tem muita coisa pra mudar na minha história, porque o que eu mais
gostava toda vida eu fiz: andar de caminhão. Eu trabalhei em padaria, em doceria. Todos
esses doces que você vê na vitrina da padaria eu fazia: bolo, cocada, fazia pudim, quindim,
queijadinha. Sonho não fazia muito porque naquele tempo tinha outras coisas, mas eu sei
preparar uma massa de sonho. Mas o meu negócio era viajar. Eu preferia caminhão e trabalhei
com quase todo tipo de caminhão. Nunca cheguei numa firma que o cara falasse “Amanhã
você já vem pra fazer uma viagem, você já vai pegar aquele caminhão que tá ali”. Eu só
olhava de longe assim, não sabia nem quantas marchas tinha o caminhão, sabia só dos os
outros contar. Eu entrava no caminhão, funcionava, saia e ia embora. Eu mesmo ia me
ensinando.
Toda vida sou católico e a Tereza também. Onde nós morávamos freqüentávamos a Igreja do
Bom Jesus, depois da mudança, eu ainda ia lá e também na Catedral, no centro. Agora, uma
semana sim uma semana não, eu vou na missa da catedral. E sempre assisto a novena do Pai
Eterno na televisão.
Página | 105
Seu Abel Paulino dos Santos43
Então, se voltasse naquele tempo... Só parei de beber quando eu cai. Quando tive o AVC. E os médicos disseram que o AVC foi por conta da bebida. Então, se fosse voltar era só isso ai. E voltar no meu caminhão. Andar pro mundo de novo!
Abel Paulino dos Santos: 64 anos: julho de 2012.
Até os dezesseis anos eu morei no sitio depois eu vim pra cidade. Meu pai faleceu nessa
época, quando eu tinha dezesseis anos. Quando nós viemos pra cá ele morreu. Ai ficou só eu e
a minha mãe. Na verdade eu tinha mais quatro irmãos, mas eu era o mais velho, na época
“né”. Tinha que dar os pulos.
Eu e minha mãe, nós trabalhávamos... coitada da minha mãe, ela ficou viúva cedo. Nós
viemos pra cidade pra trabalhar. Trabalhava pro dr Latim no sitio também. Nós morava na
cidade e continuava trabalhando no sitio. Ia toda segunda feira e voltava no sábado. Passava
toda a semana no sitio e vinha pra cidade no final de semana. Trabalhei lá até os dezoito anos,
quando comecei a trabalhar empregado, numa fábrica, em Serviços Gerais, a Laminação
Nacional de Metais - LNM. Ela tem sede em Utinga, aqui perto de São Paulo, em Santo
André. O refino era feito lá... é uma siderúrgica. Ela fundia cobre. Agente fazia o bruto aqui e
ia pra Utinga pra refino.
Trabalhei nesta empresa de 69 a 74. Ela faliu! Dai que fui pra São Paulo. Já estava casado
nesta época, me casei com 23 anos44.
Fui morar no Jabaquara e trabalhar como Ajudante, a mesma coisa, lá na montagem do metro.
Acompanhei um pouco a história do metro de São Paulo. Trabalhei pouco tempo no metro;
dois anos só. Na época, inaugurou primeiro Jabaquara e Vila Mariana, depois inaugurou Praça
da Sé, ficou a Liberdade no meio. Depois que... foi inaugurada.
43 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 14h20min, com Abel Paulino dos Santos; 64 anos de idade; Escolaridade: 2º Grau Completo. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 43min26seg; Local da entrevista: casa do colaborador. 44 Neste momento somos interrompidos por D. Maria Duffet que esta dando uma voltinha, “fazendo a caminhada”. Pergunta se encontrei o seu Cipriano, conversamos rapidamente e ela parte.
Página | 106
Quando eu saí do metro eu tirei minha carta de motorista e fui trabalhar com caminhão. Eu
me aposentei como caminhoneiro. Trabalhei a maior parte da minha vida como caminhoneiro.
Trabalhei trinta e dois anos! Com insalubridade deu os trinta e cinco, pra aposentar. Só contou
o trabalho de caminhão pra me aposentar.
Por isso que eu falei que conheço tudo. Eu gostava muito de ser caminhoneiro, é bom! A
gente sofre mais é divertido. Só que a mulher cansou! Eu só vivia na estrada. Porque o
empregado... por exemplo, se eu saio, o caminhão é de São Paulo, eu carrego em São Paulo,
tenho a carga para Porto Alegre, uma hipótese, descarrego em Porto Alegre, ai já tem outra
carga esperando, vai pra outro lugar, pra Minas. Chega lá, vai pra Bahia. Assim, passava um
mês fora de casa.
Difícil ser mulher de caminhoneiro... Eu sou divorciado e minha ex mulher mora aqui em
Itapeva também. Temos um casal de filhos que moram em São Paulo, mas faz uns dez anos
que eu não vejo eles. Já devo ter netos!
Em 1997 eu voltei pra Itapeva, vim trabalhar pra cá. Morei vinte anos em São Paulo e voltei
pra Itapeva. Ai, agora em 2009 deu AVC em mim, daí que eu fui pro asilo. Tinha 60 anos
quando aconteceu. Eu morava com a minha mãe, que tem noventa e um anos - e “tá” mais
forte que eu, anda melhor que eu. Eu morava com a minha mãe e eu fiquei dependente de
tudo, tudo, tudo, tudo! Então é lógico que...
Eu estava consciente, o AVC não atingiu a mente, graças à Deus. Ai, fui pro asilo, passei um
ano e dez meses lá, daí, estava recuperado quando eu vim viver pra cá.
Lá é ótimo! No asilo, pelo menos esse daqui de Itapeva, os outros eu não sei, é muito bem
cuidado. Eu devo muito obrigação pra todo mundo lá. Os funcionários treinados te respeitam,
porque o importante é o respeito. Porque, se você me respeita eu tenho que te respeitar.
Lá tem horário pra tudo e a gente acostuma. Tem que acostumar de qualquer maneira. Por
exemplo, a gente que esta andando, tem que levantar quatro horas da manhã pra tomar banho.
Os que andam acordam as quatro e os que estão acamados - que dependem de uma cadeira de
rodas aí levanta às 5hs.
A rotina é assim porque o asilo funciona em dois turnos: das 7hs às 19hs e das 19hs às 7hs.
Então, se você esta à noite, entra às 19h e vai até às 7h da manhã, quando entrar o pessoal da
Página | 107
manhã, já deve ter cuidado do banho de todos. Daí o pessoal que entra às 7h da manhã vai
cuidar dos acamados. É um negócio bem bolado.
Quando eu cheguei lá, fiquei seis meses na cadeira de rodas. O meu processo de recuperação
foi tranqüilo. Eu fazia tudo que precisa lá, tudo lá dentro do asilo mesmo. Esse asilo aqui você
é muito bem cuidado. Tem fisioterapeuta, muito bom lá. Excelente mesmo!
Nesta época eu dividia o quarto com mais três pessoas. Depois, quando eu saí da cadeira de
rodas me passaram pra um apartamento, dai. Os apartamentos eram pras pessoas que tinham
independência. As pessoas acamadas, mesmo os que andam mas não tem a consciência certa,
então divide o quarto em três, em cada quarto são três camas.
Mas, veja bem, lá não é ruim de ficar, só que o que é seu fica tudo lá. Por exemplo, eu já
estava aposentado, o cartão já ficava lá com a presidente, então, você não vê dinheiro e não
ter dinheiro é uma situação ruim, pra qualquer pessoa.
Agora, aqui já é o contrário. Saí de lá já me devolveram o cartão. Eu não gasto um salário
mínimo pra passar um mês aqui. Agora sobra um pouco. Então, pra mim “tá” ótimo!
Lá eu fiz muita amizade, tenho muita amizade com os funcionários, lógico. Interno não...
Interno é tudo... É difícil o interno que conversa direito lá. É tudo dependente, mesmo aqueles
que andam não falam coisa com coisa.
Então, eu fiz muita amizade com os funcionários e com a presidente do asilo. Inclusive eu
agradeço a ela por ter me dado força pra eu pegar essa casinha aqui. Eu agradeço à ela.
Eu estava no asilo e, a gente é comunicativo “né”. Ai saiu inscrição pra esse Programa. A
presidente falou pra mim assim - eu já estava andando, estava igual eu estou agora, eu tinha
me recuperado. Ela perguntou se interessava pra mim a casinha aqui, falei: “interessa”. Ela
falou: “só que tem que se virar por conta, tem que dar os pulos”. Eu falei: “não tem
problema”, ai ela me levou lá pra fazer a inscrição. Em todas as reuniões ela me levava, ai,
quando entregaram aqui eles me chamaram. Eu fiz a inscrição e chamaram e aqui está ótimo.
Não tem lugar melhor no mundo do que aqui viu!
Tenho contato com ela e sempre conversamos. Ela foi muito legal comigo. Então, quando eu
já estava andando; cada quinze dias eu ia na casa da minha mãe ai, eu pedia dinheiro pra ela,
lógico e ela dava um trocadinho pra eu ir.
Página | 108
Eu podia sair. Eu tinha liberdade, porque eu fiz amizade e mantive... Mas era só eu também.
O resto lá, ninguém... Ninguém. Então, eles confiavam em mim né?
Aqui é muito tranqüilo, graças à Deus! Graças à Deus! Eu me relaciono bem com todos os
vizinhos, com todos eles. É muito bom demais. Foi tranqüilo me mudar pra cá.
Eu não tinha nada, porque no asilo não precisava, fui comprando tudo. Tudo fiado! O que tem
aqui é tudo fiado. E agora já está tudo pago. Agora é tudo meu.
Aqui sempre vêm estagiários. Semana passada estiveram aqui uns de Santo André, vieram
com o Projeto Rondon, uma molecada jovem e animada, vieram fazer exercícios com a gente.
Isso aqui foi tudo eles que fizeram pra mim45. Aquele ali é feito de areia. Faço todos os
exercícios recomendados. Esse aqui é embaixo da perna, pra fazer isso aqui46. Faço tudo aqui
em casa mesmo47. Esse ai é muito bom!
Acho que não existe velho. Acredito que não! Porque, uma hipótese, você tem trinta anos, eu
tenho trinta e dois. Eu sou mais velho, você já me chama de velho, mas outro que vem 29, 28,
vai te chamar de velho. E assim por diante, vamos que vamos...
Lógico que a gente pensa que vai ficar velho. A minha velhice vai ser dentro do asilo. Quando
eu não agüentar mais me cuidar aqui, volto pro asilo. Isso pra mim é sossegado. Eu já
conheço. Quem não conhece é que fica assustado.
Eu nunca tinha pensado que iria pro asilo. Nunca! Nunca! Porque a gente... só trabalhando,
trabalhando, trabalhando. Nós nunca... Você não pensa que vai ficar doente amanhã. Você
não pensa que vai ficar numa cadeira de rodas dependendo de todo mundo.
Agora, quando você cai, daí, você vê o quanto é difícil pra levantar. Porque a pessoa enquanto
não cai, ela não sabe o quanto demora pra levantar.
Eu até que me recuperei rápido, com seis meses já estava andando na rua. Agora, a mente da
pessoa também ajuda muito, porque você não pode pensar que vai ficar a vida toda numa
cadeira de rodas.
45Me mostra alguns pequenos equipamentos desenvolvidos artesanalmente para que possa trabalhar diferentes partes do corpo afetadas pelo AVC. 46 Me mostra como realiza o exercício. 47Me mostra outro equipamento.
Página | 109
O que acontece? Eu, quando cheguei no asilo dependia de tudo! Aí, achei umas revistas
velhas: pegava uma cadeira encostava lá no canto e começava ler. Pra ocupar a mente porque
você não pode deixar a mente parada. Eu gosto de ler, adoro ler! Eu gosto de contos e de
literatura. Agora mesmo eu comecei um aqui48. Mas eu só iniciei.
Quando eu tava no asilo as visitas sempre me levavam livro. Lia lá no canto, encostado.
Sempre levavam livros pra eu ler. Ler é bom que ocupa a mente, você não fica pensando...
Porque a pessoa fica sozinha aqui, não faz nada, não tem o que fazer, se não ocupa a mente
em nada, daí só pensa bobagem. Eu passei esse tempo de recuperação só lendo, o que aparecia
era lucro.
Meu futuro? Só se acertar na mega sena, porque de aposentadoria não vai passar disso aqui. É
isso aqui o resto da vida, é ou não é?
De vez em quando eu saio. Eu tenho o problema das pernas, mas, eu uso bengala ainda, pra
sair na rua. Pegar ônibus é tranqüilo, vou com a bengala sem a bengala eu não faço nada.
Ando sem bengala por aqui que tem corrimão e é tudo plano.
Em casa eu não faço nada. Pago pensão pra mulher do Chaminé, d. Tereza. Daí, ela cozinha
pra mim e trás aqui. Ela também lava a minha roupa, faz tudo. Só que eu pago.
A amizade é bom por causa disso aí. A amizade e o respeito. Porque a gente tem que saber o
que fala, saber onde está. Isso é muito importante. Saber com quem conversa. Com você eu
posso conversar de um jeito e com outra pessoa muda o esquema. É como diz aquele ditado
antigo: “é conforme toque a dança”.
A gente tem que aprender a lidar com as pessoas porque... o mundo, dá muitas voltas, dá
muitas voltas, e numa dessas voltas, pra você cair é fácil, fácil. Depois que você cai, pra
levantar é difícil. E as pessoas podem te ajudar.
Não tenho medo de nada, graças à Deus. Nem de ficar sozinho. Pra mim é tranqüilo,
sossegado. Mas, se eu pudesse voltar no tempo, escreveria minha história diferente... O
mundo dá muitas voltas e o caminhoneiro, é muito raro você achar um motorista de caminhão
que não bebe uma cachaça, e eu bebia. Hoje não bebo nada, de maneira nenhuma. Nada, nada,
nada, só cigarro.
48 Me mostra o livro que começou a ler, “Os cem melhores contos brasileiros do século”.
Página | 110
Aquele tempo não tinha bafômetro. Bebia e dirigia a noite toda. Agora a única coisa que
nunca fiz e eu vejo hoje é o tal de arrebite. Isso acaba com o caminhoneiro. Você dirige
dormindo. Você dorme com o olho aberto. Coloca em risco a própria vida. Então, se voltasse
naquele tempo...
Só parei de beber quando eu cai. Quando tive o AVC. E os médicos disseram que o AVC foi
por conta da bebida Então, se fosse voltar era só isso ai. E voltar no meu caminhão. Andar pro
mundo de novo!
A gente nunca deixa de ser caminhoneiro. É gostoso, você conhece... quer dizer, não conhece,
mas passa em muitos lugares bonitos: Norte, sul, leste e oeste. E também viajei pra fora do
país: Paraguai, Argentina... Então, eu andei por todo canto do mundo!
O maior contato que eu tenho é com a minha mãe, minha sobrinha e a minha irmã. Minha
mãe sempre vem aqui. Ela adora aqui. Passa o dia aqui, uh adora!
Ela faz tudo: cozinha e lava roupa. Aqui em casa não faz porque eu não deixo “né”. Quando
quero comer a comida dela eu como lá, domingo eu estive lá. Ela mora ali em cima, no Dom
Bosco, Parque São Jorge.
Aqui, eu tenho foto dela49. Meus irmãos moram aqui em Itapeva. Aqui é minha mãe e minha
irmã, que mora bem pertinho dela.
Amanhã pedi pra Maura50 mostrar fotos nossas que estão lá no computador. Tem fotos de
festa, muitas51.
Eu não tenho namorada, só umas brincadeira. Aqui a gente não pode trazer namoradas. Só pra
passear que pode, pra morar não. Esse aqui é o meu face52, pode me adicionar. Eu, às vezes
acesso pra me distrair, quem criou a minha página foi a guarda que mostrei nas fotos. Nunca
tinha mexido em computador. Aqui nos deram acesso e de vez em quando, eu acesso, só pra
passar o tempo.
49 Ele procura fotos no celular. 50 Monitora do Posto do Acessa Saúde existente na Vila. 51Me mostra as cerca de 80 fotos que estão armazenadas na memória do seu celular: festas de aniversário, baile de carnaval, mascaras de carnaval, crianças do bairro, vizinhos dançando, flores da Vila, e da casa do vizinhos do bairro, a árvore da entrada do condomínio- que quando chegaram era pequena e hoje esta enorme -, a mãe, a irmã, a guarda – que agora arrumou marido -, o pessoa de Santo André que vieram com o Projeto Rondon, o pé de mandioca braba, todos foram registrados pelos clicks de seu Abel. 52Me passa seu endereço de facebook.
Página | 111
Fiz todo o meu estudo no sitio, em Itaberá, eu morava perto de Itaberá. A casa de que tenho
mais saudade é de quando eu tinha sete anos, que eu entrei no primeiro ano. Ah, era pau à
pique. Itaberá esta distante 32 Km daqui - lá é mais quente que aqui. A gente morava no sitio,
então era escola rural.
A professora descia na encruzilhada. Aquele tempo era estrada de terra, não tinha asfalto, não
tinha nada. Ela descia lá e tinha um aluno que tinha uma “éguinha” e uma charretinha. Ela
pagava pra ele levar ela até a escola. Quando ela chegava no ponto que descia do ônibus
passava na casa, pegava ele e iam de charrete.
Aquela procissão acompanhava até a escola. Era gostoso aquele tempo. Essa casa não existe
mais. Ah, não, agora é tudo eucalipto. Cinqüenta e tantos anos atrás...
Tudo era diferente, Eu nunca mais voltei lá, mas lá era gostoso.
Página | 112
Dona Zélia Aires dos Santos53
Desde que o meu menino mais novo se casou eu moro sozinha, já tem quase três anos. Já acostumei morar só, até gosto de ficar sozinha. É tranqüilo. Eu durmo a hora que eu quiser.
Zélia Aires: 64 anos: julho de 2012
Eu fui casada vinte e três anos. Tenho três filhos – dois homens e uma mulher. Estão todos já
criados. Dois moram aqui e um lá em Itararé, que fica a quarenta minutos daqui. Tenho sete
netos - três netas e quatro netos - fora os netos de enteados, ai, já tenho neto e bisneto.
Nasci em Jaguariaíva, é um município do Paraná. É município beira de linha. Meu pai era
ferroviário, trabalhou trinta e dois anos na rede ferroviária. Até os meus doze anos a gente
morou em beira de linha. Meu pai fazia permuta com outro trabalhador e a gente mudava pra
outra cidade; aquele trabalhador vinha pro nosso lugar. Crescemos assim. Daí viemos embora
pra Sengés, perto de Itararé e depois pra Itararé. Em Itararé ele se aposentou, ali moramos
mais uns tempos e foi ali que eu me casei.
Quando me casei fui morar em Sorocaba, morei um ano e meio lá. Voltei embora de novo.
Daí, fiquei em Itararé. Quando meu menino menor ia fazer cinco anos, viemos embora pra
Itapeva. Já faz dezoito anos que eu moro aqui. Viemos embora pra cá porque estava ruim de
serviço lá.
Meu marido trabalhou, a maior parte da vida, como vigia. Ele morreu com cinquenta e cinco
anos. Teve infarto fulminante. Isso já faz dezesseis anos. Meu menino menor tinha sete anos,
agora ele já está com vinte e três anos. Segurei a família sozinha, tinha dois filhos menores de
idade. O que vai fazer 31 anos tinha 15 na época
Sempre trabalhei; a vida toda! Em Itararé eu trabalhei muito de bóia fria. Ia pra roça plantar
feijão, quebrar milho, carpir, tudo isso. Quando eu vim pra cá, eu não fiz serviço de roça, fui
trabalhar nas casas e trabalhei na rodoviária. Agora eu faço bico lá de vez em quando. Quando
falta gente eu vou atender no guarda volume.
Logo que meu marido faleceu eu dei entrada nos papéis e já fiquei recebendo pensão, então,
não precisei batalhar tanto. Eu trabalho porque eu gosto de trabalhar.
53 Entrevista realizada em 25.07.2012 às 10h; com Zélia Aires dos Santos; 64 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 22min49seg; Local da entrevista: Salão de Convivência do Condomínio.
Página | 113
Desde que o meu menino mais novo se casou eu moro sozinha, já tem quase três anos. Já
acostumei morar só, até gosto de ficar sozinha. É tranqüilo. Eu durmo a hora que eu quiser.
Antes de morar aqui eu morava na Vila Nova numa casinha feinha. Essa aqui dá de cem à
zero. Mas eu gostava da Vila, porque era próxima do centro, próxima de tudo. E também já
tinha conhecimento de todos os vizinhos, tanto de frente quanto de lado. Mas a casinha era
muito, muito mal arrumada, mal feita mesmo. Eu morava a par da minha filha quando surgiu
essa daqui.
Minha ex nora pegou um jornalzinho e, por acaso, passou lá em casa e falou “olha dona
Zélia, vai fazer inscrição pra umas casinhas”, eu falei, “aonde?” e ela me disse “é lá na
assistência”. E fui lá. Eu perguntei pra mocinha que fez a inscrição “tem muita gente?” e ela
falou “não, só uns quinze”, na época só uns quinze tinham feito inscrição. Dai iam avaliaram
as pessoas.
Bem no dia que eles foram lá tirar foto a casa estava horrível. Eu morava de frente com outra
casa. Era uma entrada bem menor que aqui. De um lado uma casa do outro lado outra casa e,
no fundo tinha mais dois cômodos pegados com a minha casa.
Na frente morava a filha da mulher que era a dona da minha casa, eles são de cor. Eu sei que
um dia de noite o sobrinho brigou com o tio e daí, a mulher comprou pedra, areia, tijolo e
mandou cortar o terreno pela metade. Fizeram uma “valetona” deste tamanho, de frente da
minha casa, Iam fazer muro ali, pra um não ver a cara do outro. Dai ficou aquela coisa
horrível, tudo que era sujeira parava ali. Quando chovia enchia aquela valeta de água, estava
feio mesmo. Tudo isso na porta da minha casa.
Eu não dava nem bola pras brigas deles. Quando eles começavam a brigar eu ficava quietinha
dentro de casa. Eles foram tirar foto bem nesse dia e dai deu certo. Eles avaliaram eu e fui
sorteada. Ah, fiquei muito feliz quando soube que tinha dado certo, nossa! Ainda não sabia
onde era exatamente, porque a gente conhecia o centro do São Camilo, ali pra cima.
No começo eu não podia sair e ver ônibus pro centro que queria ir embora. Demorou pra
acostumar. A sorte é que eu ia trabalhar, dia sim, dia não, então ajudou. A gente não acostuma
assim de repente.
Minha vida mudou em todos os sentidos, principalmente no ambiente. Aqui é mais arejado,
você já não precisa estar correndo pondo pano pra não derramar água, e, a vizinhança também
Página | 114
é melhor. Lá o rapaz, meu vizinho, era meio doidão. Ele tinha um” tchaco”, que é uma
corrente com dois bastões de madeira nas pontas. Esses loucos, bandidos que andam com ele.
Ele batia aquele “tchaco” o dia inteiro e à noite. Dava loucura nele, ele estava doido mesmo.
Um dia jogou uma pedra enorme, caiu bem em cima do meu quarto. Minha casa tinha dois
quartos e a cozinha, fez um “rombo” deste tamanho. Por loucura!
A minha filha morava na divisa de muro com ele. Um dia ele invocou com o meu netinho, o
menino ficou com trauma, tinha medo de sair na rua por causa dele. Ele ficava só andando de
um lado pro outro e o meu sobrinho via pela janela do quarto. Nem abria mais a janela do
quarto de medo. E daí levaram pra internar. Depois disso eu vejo sempre ele lá, mas nunca foi
de conversar com a gente.
Por essa e por outras, aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura. Me relaciono bem com os
vizinhos, não vou na casa de ninguém, mas tenho um bom relacionamento. O tempo que eu
tenho pra ir em vizinho venho pra cá pro Centro de Convivência e fico no computador, entro
na internet, vejo meu facebook.
Também me relaciono bem com todos os meus filhos. Eles não vem me visitar, na verdade,
pra eles é muito longe. Minha filha trabalha, meus netos vão pra escola cedo, tem um que vai
de tarde, e daí, não dá pra eles virem sempre. Minha filha e meus netos vieram uma vez só
aqui. Já tem um ano que moro aqui e eles só conseguiram vir uma vez. Eu vou lá mais do que
eles vem aqui.
No fim de semana minha filha arruma a casa e ela não deixa os filhos saírem sozinhos. Pra vir
pra cá tem que usar ônibus ou usar moto ou tomar um taxi, então fica difícil, porque todo
mundo precisa de dinheiro. O pouquinho que sobra é pra investir em alguma coisa.
Eu não me considero velha. Velho não anda, ou anda caindo os pedaços. Aqui não é um
condomínio de velho é um condomínio de idoso. Idosa eu sou. Tem pessoa que fala que aqui
é a vila dos velhos, são pessoas cínicas, aqui ninguém se considera velho.
Eu nem sei dizer como é ser velho. Não sei dizer porque eu não sou velha e acho que não vou
envelhecer. A gente tem o pensamento bom e enquanto não tiver gaga mesmo, enquanto não
esquecer de tudo, eu serei jovem. Quando começar a esquecer, ai já não poderei mais andar
sozinha, não poderei mais lembrar das coisas, já estarei velha.
Página | 115
Eu nunca pensei na velhice. Antes do casamento, a gente sempre andava: bailinho, praça.
Aquele tempo você podia passear numa praça que ninguém falava mal. Agora não, agora se
for na praça fica falada. Isso foi lá em mil novecentos e bolinha, quando era solteira.
Depois que fiquei viúva não saiu em lugar nenhum. Gosto de viajar, viajo sozinha mesmo. Eu
fui pra Santos, tenho uma irmã lá em São Sebastião, tenho irmã em Curitiba, tem uma enteada
minha que mora em Castro, no Paraná. Na casa dela eu vou todo mês, vendo catálogo pra ela.
Ai eu levo, fico dois, três dias lá e depois venho embora. Em fevereiro fui em São Sebastião
na casa da minha irmã, passei vinte dias lá com ela.
Meus filhos vivem me falando “mãe, a hora que nós tiver uma casa a srª vai morar
comigo”. Um deles falou assim pra mim “mãe, a hora que eu casar eu vou levar a srª pra
morar comigo”, e eu sempre dou essa frase pra eles: “olha, eu prefiro asilo a ter que morar
com um filho” . Deus me livre de morar com filhos!
Ah não, você fica ali pra ser inútil, se senti inútil. Ontem mesmo eu estava comentando com a
Maria que quando você precisa dos outros você fica assim, nem tem explicação. Parece que
está faltando um pedaço da gente. Imagina: você fazendo serviço e eu olhando. Eu fico
desesperada só de pensar. Você chacoalhando a criança que está chorando e eu do lado
olhando...
Prefiro ir pra um asilo, não tenho medo. Aliás, não tenho medo de nada. Só tenho medo de
Deus me castigar de alguma coisa. Medo de pecar, falar alguma coisa por acaso, às vezes a
gente fala besteira. Tenho medo de castigo de Deus.
Eu não mudaria nada na minha vida. Viveria tudo do mesmo jeito, porque faz parte da vida da
gente tudo isso que a gente viveu. Trabalhar todo mundo tem que trabalhar, porque se todo
mundo fosse rico não teria muita graça, se as pessoas não precisassem uns dos outros...
Eu sou católica, não sou freqüente, mas vou à igreja católica. Agora tem no radio, tem na
televisão, você assiste ali não é mesmo. Eu até vou na igreja, eu entro na igreja eu sento, eu
rezo, eu faço minha oração mas, sozinha. Entro lá na igreja, às vezes tá um calorão lá fora, lá
do lado de dentro tá fresquinho, uma paz. Então eu sento lá e rezo...
Página | 116
Dona Maria Teresa da Rosa54
Eu adoro minha casa, adoro o lugar que moro... Ah, eu gosto da minha cozinha. Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...
Maria Tereza Rosa: 63 anos: julho de 2012
Eu nasci em 1949 em Presidente Prudente, vim pra Itapeva muito pequenininha. Minha mãe
morava lá, meu pai nasceu lá. Daí, minha mãe já tinha minhas duas irmãs. As três irmãs que
se dão bem até agora.
A minha mãe veio embora morar no vale do Ribeira. Lá, minha mãe morou bastante tempo e
quando eu tinha uns dois anos o meu pai morreu. Eu nem conheci o meu pai! Quando ele
morreu minha mãe tinha eu e meus três irmãos, que era um homem e as três meninas.
Minha mãe tinha muita dificuldade pra criar a gente, então ela foi dando os filhos. Só ficou
com uma. Ela deu o meu irmão e me deu pra uma senhora. Eu fui morar com uma mulher
muito ruim, nossa, me criei assim... Ela me deu com dois anos de idade - quando o meu pai
morreu.
Meu pai morreu por que ele gostava muito da gente - a minha contava que ele foi pescar
porque eu queria comer peixe... Queria peixe, ele foi pescar... Daí, ele pegou febre tifóide.
Durou uma semana e morreu. Minha mãe deu a gente por causa disso, porque ela não podia
criar as crianças.
Nossa, a mulher que me pegou era muito ruim! Ela morava no Vale do Ribeira, é lá de Apiaí.
Lá eu apanhava demais, demais, demais... Me criou como filha mas, judiava mais que tudo.
Ela tinha outros filhos, nascidos dela mesmo.
Ai, eu pequenininha tinha que fazer o serviço. Com cinco anos já tinha que trabalhar na roça.
Comecei a cuidar da casa, eu não tinha nem tamanho pra ficar no fogão fazendo comida e já
fazia, com sete anos.
Com dez anos já lavava tudo a roupa, cuidava da casa.
54 Entrevista realizada em 26.07.2012 às 10h30min; com Maria Aparecida Rosa; 63 anos de idade; Escolaridade: 4ª série. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h00min33seg; Local da entrevista: Casa da Colaboradora.
Página | 117
Mas só que daí, acho que eu tinha uns dez anos...
A minha mãe... essa mulher, acho que percebeu...porque o meu pai, inclusive a minha família
nem sabe disso, e...
Meu pai, eu acho que ele queria assim... abusar de mim, por causa que ele convidava eu pra
ir... ele ia deitar cedo e chamava eu pra ir deitar com ele. Acho que ela percebeu, ai ela
chegou brava assim comigo, e falou pra mim: “você vai embora com a sua mãe que mora em
Itapeva, que eu não sou a sua mãe”. Assim. Eu não sabia que era adotiva. Pra mim aquilo,
nossa, foi uma morte!
Meu pai não chegou a abusar de mim. Eu chorava dia e noite, porque eu queria vim conhecer
a minha mãe que morava em Itapeva...
Ai ela escreveu pro meu vô e tudo. Meu vô foi me buscar e eu vim, mas, eu vim achando que
eu tinha a minha mãe só pra mim...
Minha mãe morava num sitio e meu vô levou eu pra ela.
Quando eu cheguei lá, minha mãe tinha mais cinco filhos já. Pra mim foi uma decepção né.
Meu padrasto muito bravo... Ai eu comecei a trabalhar na roça de novo. Cinco horas da
manhã ia praquele orvalho carpir roça. Nossa, a gente não descansava.
Eu sempre ouvia meu padrasto falar: “eu não sou obrigado a tratar de filho dos outros”.
Aquilo, nossa, pra mim era... - só eu voltei pra morar com ela, meus outros irmãos
trabalhavam aqui em Itapeva, na cidade. Já estavam tudo moços.
Ai foi aquela coisa. Como eu sofria muito na roça, eu falei pra minha mãe: “ah, eu quero vir
trabalhar na cidade”. Daí que eu vim morar aqui em Itapeva com o meu vô, pai da minha
mãe. Cheguei aqui meu vô era tão ruim, tão ruim... sofri tudo de novo.
Eu lembro que eu meu vô era muito ruim.
Ele não fazia nada, acho que ele já era aposentado, essas coisas.
Com o meu vô era assim: você tinha que sair de um serviço e arrumar outro já, pra ir no outro
dia. Se você ficasse na casa dele, você não podia comer. Você tinha que ficar sem comer.
Então eu era aquela menina que, eu saia de um serviço e, já arrumava outro pra trabalhar no
outro dia. Eu trabalhava de doméstica.
Então, eu trabalhei olha, sem quase descanso, o tempo todo. Nem final de semana podia ficar
na casa.
Página | 118
Antigamente a gente trabalhava no domingo, então eu trabalhava a semana inteira. Eu não
tinha descanso. Eu vim descansar mesmo, agora que sou aposentada.
Quando meu vô morreu eu fui embora, eu falei: “aí, eu vou embora pra São Paulo”.
Eu já tinha dezessete anos. Trabalhei em São Paulo três anos. Trabalhei em Pinheiros.
Eu arrumava um serviço, eu não tinha juízo. Procurava o emprego aqui mesmo, eu ia na casa
de alguém e já falava: “viu, tá precisando de uma empregada pra levar pra São Paulo?”.
Eu já ia. Fui trabalhar em São Paulo, mas, lá também era sofrido. Trabalhei com gente ruim.
Trabalhei três anos, depois trabalhei dois anos em Sorocaba. De Sorocaba eu arrumei um
serviço e vim embora pra Piracicaba. Em Piracicaba eu trabalhei dezenove anos.
Um dia, eu vim passear aqui na casa da minha mãe - ela mãe não “tava” boa, “tava” doente.
Dai ela falou assim: “oh, eu só vou morrer em paz na hora que meus filhos estiverem tudo
perto de mim”. Dai, eu fui lá em Piracicaba pedi a conta e vim embora. Cheguei aqui no dia
dezenove de junho, quando foi no dia nove de setembro minha mãe morreu.
Já “tava” todo mundo aqui: três irmãos já tinham casado.
Os irmãos que foram dados sabiam, todas elas sabiam quem era sua mãe. Elas sempre
viveram aqui em Itapeva, uma ficava com o meu vô.
Eu vim embora e, quando minha mãe morreu, começou tudo de novo. Essa minha irmã, que
agora se preocupa muito comigo, que... se eu falar um A... ontem mesmo ela já ligou de noite:
“venha pra cá pra casa se você não tiver boa”.
Mas, ela era muito ruim, nossa... Na casa dela, ela fazia coisas e a gente não podia nem
mexer. Eu trabalhava fora e morava na casa dela. Acho que morei um ano na casa dessa irmã
e eu não podia comer na casa dela.
Eles comiam as coisas e a gente não comia. O tempo inteiro da minha vida foi assim. Eu
passei um tempo que eu enjoei de miojo porque eu só comia miojo.
Nossa ela não dava as coisas pra gente, meu Deus! O tempo inteiro eu chorava pra minha
sobrinha, mas eu chorava, chorava... Daí, minha sobrinha falou assim, “Ah, mais porque que a
senhora não vai morar sozinha?”
Então que eu arrumei uma casa, aluguei casa e dai fui morar sozinha.
Página | 119
Quando saiu a inscrição pra essas casas aqui, nossa, eu dei graças à Deus. Eu pedia todo dia
pra Deus que eu queria ter essa casa.
Quando eu fui chamada pra pegar a casa, pra mim parecia que eu tava no céu e eu também já
estava aposentada - vai fazer três anos que estou aposentada.
Desde setenta e três, quando saiu o registro pra empregada, eu já tava registrada. Mas eu
podia ter aposentado há mais tempo. Eu trabalhava, as patroas descontava o INSS de mim e
não pagavam, por isso que eu demorei a me aposentar.
Eu não me casei. Eu não quis casar. Eu namorei uns três moços, mas até dei graça que não
casei. Todos que eu namorei até hoje só deram problema também, Tem um moço que eu
namorei até matar gente ele matou...
Agora também não vou querer arrumar ninguém. Porque agora eu tenho uma vida mais...
Nossa, a vida que eu levo agora...
Antes de vir pra cá eu morava no Jardim Maringá. Morava sozinha numa casa alugada.
Ah, a casa era assim....Muito, muito embolorada. Não batia sol. E então, eu comecei a ter
problema de muita tosse por causa da umidade.
Morei lá uns três anos. Uns três ou quatro anos. Pagava R$ 240,00 de aluguel. Caro!
Lá, tinha dia que eu passava sem comer o meu viradinho de farinha com café. Porque não
dava pra pagar o aluguel.
Minha aposentadoria é um salário mínimo, mas naquele tempo ainda não estava ganhando o
que a gente ganha agora, R$ 600. Agora dá pra gente viver. E aqui a gente não paga aluguel,
só paga a luz - eu passei a viver bemmmm mesmo depois que eu mudei aqui.
Da minha vida inteira aqui é o lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem
comparação, com os outros lugares.
Ah, não tenho muita saudade de nenhum dos lugares onde vivi. Ah, só sofrimento! Só de
Piracicaba. Ah, lá em Piracicaba, se eu pudesse, nossa, eu morava lá. É o que eu falo: “eu
moro em Itapeva, mas o meu coração é piracicabano” (riso). Aí, eu adoro Piracicaba, nossa!
Foi muito bom viver lá. Morei dezenove anos.
Trabalhei em várias casas, mas, sempre com gente boa. Tinha lugar que eu morava no
trabalho e tinha lugar que não. Quando não dava pra morar eu arrumei uma senhora viúva que
precisava de gente pra morar junto, de companhia. Morei bastante tempo lá.
Página | 120
Nossa, em Piracicaba eu trabalhei sempre com gente boa. E eu fui assim, muito dedicada ao
serviço. Então, todas as patroas falavam que eu tinha uma excelente qualidade. Eu cuidava
bem dos filhos delas, fazia o serviço tudo direito.
Eu trabalhei todo esse tempo, nunca cheguei um dia atrasada no serviço. Nunca faltei no
serviço, porque eu achava que eu tinha aquela responsabilidade no meu serviço, então, todo
mundo admirava isso de mim.
E tem um monte de filhos dos outros que eu criei55. Tem aqui, essas criançadinhas são todos
que eu cuidei. Essa aqui é minha irmã. Essa foto é de quando eu tinha uns catorze anos. Essa
era a casa de uma amiga minha. Aqui mesmo, no jardim Maringá. Essa daqui já é médica em
São Paulo. Essa outra é a irmã dela, também é médica ginecologista, em Piracicaba.
O menininho de cima ali também eu cuidei. A menininha de lá também cuidei dela Toda essa
criançadinha. Essa aqui é a minha sobrinha, meus amigos, minha irmã. Minha sobrinha e meu
irmão ali em baixo. Ele mora ali em cima, perto da padaria. Aqui no bairro. Essa ai é uma
amiga minha, mora lá em Sorocaba, era enfermeira do Regional.
Aquele menino ali também, no convite de casamento dele. Ele é engenheiro, da madeireira.
Ele mora aqui, naquele bairro novo ali em cima. Nasceu o filhinho dele esses dias. Trabalhei
treze anos na casa dele. Eu criei ele! Ele tinha seis anos. Tem a irmã dele que é médica lá em
Alphaville, e tem a outra irmã dele que esta se formando em enfermeira padrão.
Ah, mas ela onde eu vejo... eu só escuto o grito: “Má, vai lá em casa”. Eles sempre vêm aqui,
a mãe deles sempre vem e a tia também.
Eu trabalhei na vó deles muito tempo. A vó dele me adora, nossa! Tem ali na família
Rezende, nossa senhora, tem uma coisa por causa de mim. Eu vou sempre lá também.
Esse de vermelhinho também eu cuidei. A minha sobrinha – que trabalhava junto comigo - e
as meninas, também cuidei delas. Essas meninas também gostam muito de mim, nossa. São
todas aqui de Itapeva, moram lá no Jardim América. Tão tudo mocinha já.
Essa do lado...Essa ai é minha mãe e minha sobrinha.
Essa de cá então, ela é uma belezinha. Eu fazia almoço ela falava: “ai, D. Maria, mais eu
gosto tanto dessa comida que a senhora faz”. É uma belezinha ela. São muito educados. A
mãe dela trabalha no Banco do Brasil.
Nossa, eu gosto muito delas. Vou nas casas visitar. Todos os lugares onde eu trabalhei eu vou
passear, Sorocaba, nossa também eu vou.
55 Mostra, no canto da sala, uma mesinha repleta de porta retratos.
Página | 121
Foi tranquilo vim pra cá. Eu já conhecia o bairro São Camilo. Não teve problema de vir morar
aqui. Aqui é bem localizado, porque a gente vai pro centro a hora que a gente quer. Tem
ônibus na porta.
Lá no centro também é muito agitado, lá onde a minha irmã mora é bem agitado e aqui não,
aqui é tranquilinho, gostoso, eu me dou com todo mundo, gosto de todo mundo. Eu não tenho
nada contra aqui, nada.
Eu não sinto saudade de nada. Eu acho que não.
Adoro minha casa, adoro morar aqui. Eu vou, saio, assim, mas quando chego aqui é um alivio
parece... É que aqui eu sei que só vou sair daqui pra últimas moradas. E, se ficar dependente,
vou pra um asilo ou, na casa de familiar.
A minha irmã ontem mesmo estava falando, essa irmã que não deixava eu jantar, ela não
deixa pôr no asilo. Hoje ela me adora.
Ela me liga todo santo dia. Ontem eu estava no hospital e ela ligou umas três vezes. Ah, então
agora ela mudou bastante. Da outra eu também gosto muito. Ela é muito boa pra mim.
Não tenho só três irmãos, tem mais. Do meu pai, vivos, só tem eu e minhas duas irmãs. A
gente sempre esta juntas. Os outros irmãos – filhos do meu padrasto - alguns andam meio
assim...
Eu sempre fui assim: eu queria ter uma família. Eu queria assim, ter minha casa. Eu sempre
falava: “o dia que eu tiver a minha casa eu junto a minha família pra almoçar na minha
casa”. E essas coisas não acontecem. Os meus parentes quase não vêm aqui. O pessoal ai
mesmo fala “credo Maria os seus parentes não vem na sua casa”. Eu falo, “eles não vêm
mesmo”. Só essas legítimas. Elas vêm sempre aqui, mas os outros não.
Eu tenho uma irmã que eu encontrei com ela anteontem e até falei pra ela: “nossa, você não
ligou nem pra saber como que eu tava”. Ela sabia que eu tinha caído. Não veio nem saber
como que eu tava. Moram tudo aqui em Itapeva e eu, nossa, qualquer coisa que acontece com
elas eu já ligo pra saber se querem que eu vá ajudar.
Ontem, eu no hospital, a enfermeira falou: “escuta, você não tem parente?” Eu falei:
“tenho”. Ela falou: “mas você tá sozinha aqui”.Eu falei: “tô né, infelizmente eu tô”. Dai a
moça que organiza as coisas lá do CREAS, eu encontrei com ela ontem no “postão” e ela
Página | 122
falou: “você sozinha aqui?”. Eu falei “tô”. Ela falou: “nossa, mas você corre tanto pelas
pessoas e quando chega a sua vez ninguém corre por você?”. Eu falei “ah, infelizmente né”.
Mas, quem sou eu pra julgar? Quem vai julgar isso é Deus.
Ontem eu encontrei com a minha sobrinha no “postão”. Ela nem sabia que eu tinha caído.
Quando ela me viu fez uma cara tão ruim pra mim, mas nem conversou comigo, não disse um
“A”. A amiga dela, que estava com ela, é que falou: “nossa, o que aconteceu?” Eu falei que
tinha caído. Ela não disse nada! Então, a gente sente, mas deixa pra lá. Porque agora eu estou
bem, tenho bastante amigos.
Hoje cedo eu saí e a moça disse assim: “engraçado, você nem parece que tem 63 anos,
porque você é divertida”. Eu falei: “mas eu gosto de ser assim”. Eu falei: “eu tenho que ser
assim senão não tem qualidade de vida”. Eu converso com criança, converso com gente de
idade, converso com moço, converso com todo mundo.
E essa irmã que liga pra mim também. Se você ver ela, é pior do que eu. Outro dia ela falou
pra mim: “você já pensou Maria, se eu morasse na sua vila eu ia animar o pessoal lá”. Mas
ela é terrível. Tem 67. Mas você não diz que ela tem 67. As velhinhas falam: “ai velha”, ela
fala “não existe velho, velho é um trapo velho que a gente joga no lixo”.
Eu não me acho velha porque eu tenho o espírito jovem - não vou também ficar usando uma
coisa de jovenzinha, eu sei me colocar. Ah, mais assim de... se tem que ir num lugar assim...
eu agito também. As turmas aqui que fala: “ai Maria, você não tem jeito né”. Eu falo: “ah,
preciso animar”. Os idosos já tão... coitados, tudo triste, eu também vou ficar triste? Eu não.
Ah, eu não tenho nem idéia de como seja envelhecer. Não tem gente velha né? Velho é assim:
aquela pessoa que está em cima de uma cama, que não pode mais se locomover,...
Eu não, eu ando, vou ao supermercado. A turma pede pra ir comprar as coisas eu vou, pedi
pra ir à padaria eu vou, e ando por ai, e faço amizade com todo mundo.
Se eu passo perto de um já falo: “ai, mas hoje tá frio não?” O fulano já fala: “ah é” e já faço
amizade. Se eu vou passear também eu me divirto no passeio, eu... nossa!
Ah, eu acho que não vai dá tempo de envelhecer. E se der, eu me cuido, tento manter a
qualidade de vida. Eu não faço extravagância, como o que é pra comer, não fico que nem...
Eu tenho uma irmã que não se cuida, ela come gordura, ela agora está fazendo regime com o
médico, porque ela tem o colesterol – triglicério muito alto.
Página | 123
Então, ela é assim, eu já não, eu escolho o que comer, o médico “tá” sempre me orientando.
Agora mesmo eu estou com a nutricionista e a endócrino - a nutricionista eu vou na APAI, ela
é médica lá, e a endócrino, Drª Valéria, é legal pra cuidar também. Pra mim não tem erro.
Passo com o drº Leonardo, que ele também cuida das pessoas de idade. Ele vem aqui. Dia 14
ele esta ai. Então, eu tô sempre procurando ter orientação.
Porque se vem um e fala assim, ou o médico fala: “tal coisa é assim”, eu já falo: “o senhor
me explica melhor? Porque eu quero ter qualidade de vida boa”. Então eu como o que é pra
comer, não fico comendo gordura, não como nada embutido, o que o médico manda.
Na minha casa eu não como nada de assado, nada de sazon, caldo knorr, nada destas coisas,
refrigerante, nada, suco em pozinho. Eu tento me cuidar.
Às vezes eu falo ai pra turma: “ai gente, vocês vão comer isso? mas você tem que ter
qualidade de vida pra vocês viverem mais”.Se depender disso então eu vou ficar pros 100
anos.
Ah, mas eu não quero chegar lá, porque daí a cabeça da gente começa a ficar muito...
Apesar que a dona Maria Duffet tem 85 anos e todo mundo fala que ela vai passar dos 100!
Aquela é demais. Você vê ela seguindo sozinha, ela vai passeando. Vai pra cidade todo dia,
pra ela não tem tempo quente. Um dia nós demos tanta risada que a psicóloga veio ai, a
Vanessa – ela vem toda segunda – daí, ela falou assim: “ai, Dona Maria às vezes a senhora
quer falar do passado...” Ela falou assim: “eu não vou falar do passado sabe porque? Quem
vive do passado é museu e eu não sou museu”. Nós demos tanta risada.
Nossa, eu adoro ela! Ela já levanta cedo, passa aqui gritando de lá: “tudo bom Dona Maria”.
Ela vai pro centro pergunta se eu quero alguma coisa pra ela comprar, se ela tem coisa ela
divide comigo eu divido com ela. Nos damos muito bem! No outro bairro eu não tinha
amigos, assim não. É que lá, no Jardim Maringá, onde eu morava era mais assim: “oi fulano,
oi cicrano”. Agora, a dona Maria não. Eu vou na casa dela, ela vem aqui.
Acho que aqui a turma cuida muito de mim.
Porque se eu levantar aqui e ninguém vê eu ir pra lá, o povo já vem tudo aqui. Saber se eu
estou bem, o que esta acontecendo. E também não pode ter inimizade aqui dentro. Pra mim é
muito bom assim, eu gosto.
Página | 124
O que eu quero da vida é passear bastante. Eu já falei que a partir do ano que vem eu vou
economizar um pouco pra passear mais. Minha vida financeira melhorou, bem mais, depois
que eu vim pra cá. E também eu como melhor - o que eu não comia antes eu como de tudo
que eu quero. Como muita fruta, verdura, não deixo faltar essas coisas.
Que eu sou assim; se falar que a verdura verde escuro não deixa dar muito Alzheimer, eu já
procuro comer as verduras verde escuro.
Aqui tem a casa do Mais Sabor, então lá vende muito tipo de coisas diet, castanha - também
procuro comer tudo essas coisas, só que tem coisas também que não pode comer.
No Mais Sabor é bom porque lá é o verdadeiro, se você comprar no mercado já vem
misturado.
A nutricionista deu agora pra eu tomar farinha de berinjela, mas tenho que comprar lá. Eu já
achei a farinha de berinjela, eu só não comprei no mercado porque eu fiquei com medo de não
ser a pura, e lá no Mais Sabor é puro.
Eu era católica, agora sou da cristã do Brasil. Não sou batizada, eu só sigo a Igreja, por
enquanto. Não pode assim também ir se batizando...
Faz uns cinco anos já que freqüento essa igreja. Ela fica lá no Jardim Maringá, é pertinho, eu
vou a pé, ando muito a pé.
Medo de ficar velha? Ah, eu tenho medo assim, de ficar com cem anos e perder a memória.
Eu tenho muito medo. Eu tenho medo do mal de Alzheimer por causo disso. Eu leio bastante
e também a gente faz atividade aqui pra cabeça, de jogar, de pintar alguma coisa.
Se depender de usar a cabeça, então, isso aí [Alzheimer] eu não vou ter nunca. Eu sou muito
ativa.
Ah, não sei não se mudaria alguma coisa da minha história. Filhos, ah, seria só um problema.
Eu não me arrependo de não ter filhos. Agradeço à Deus todos os dias. Porque eu acho assim,
se Deus não me deu um filho é porque ele não queria.
Eu podia ter um filho que fosse cuidar de mim, mas podia ter um filho que me desse trabalho
com droga, um filho ruim.
Página | 125
Eu tenho uma irmã, do segundo pai, a vida dela é um martírio - hoje mesmo eu tava falando
dela. A minha irmã é uma pessoa que não vive. Eu não gosto nem de conversar com ela. Eu
falo pra ela: “mas saia, conversar”. Ela é assim: “eu vou sair alguém vai dizer alguma coisa
pra mim, eu vou ficar triste, aborrecida, é melhor eu ficar dentro da minha casa”.
Eu digo: “não, você vai encontrar quem vai falar coisa pra você que vai te deixar triste, mas
você não pode se deixar levar, ficar triste, tem que deixar pra lá, a vida que continua. Você
não pode querer fazer justiça, porque a justiça é Deus que faz, não a gente”.
Ai, você chega lá ela fala assim: “eu tô desgostosa da minha vida, eu tenho vontade de pegar
e dar um tiro na cabeça”. Um dia eu fiquei brava com ela... Porque ela tem um...
Agora a filha dela casou, vai fazer um mês. Ela tem ainda uma filha solteira, com 32 anos, e
uma menina de treze. Se as crianças fazem alguma coisa ela fala: “que não pode pegar e por
um veneno na panela de comida e dar pra essas crianças”.
Você vê! Ela é da igreja cristã. Não perde um dia de missa. Se você faz alguma coisa pra ela,
ela não é capaz de perdoar você. Ela já fala: “eu não gosto daquele fulano porque não sei o
que...” Se ela passa perto de uma casa bonita lá ela fala: “não é assim, eu faço tudo da vida,
todo domingo...”.
Depois que eu comecei a estudar a bíblia eu mudei completamente. Minha vida é outra coisa.
Eu alcanço muita graça de Deus! Quando eu fui morar sozinha eu não tinha nada. Minha irmã
deu uma xícara, minha sobrinha me deu um garfo, uma colher e um prato.
A outra minha sobrinha me deu uma panela. Eu cozinhava alguma coisa na panela, virava
num prato, pra poder cozinha outra, e nem por isso eu ia maldizer a Deus.
Daí eu andava na rua minha irmã falava bem assim: “você não vai comprar um fogão?”
A minha irmã só tinha me dado um fogão de duas bocas, minha prima me deu o gás. Eu
falava: “eu vou, o dia que Deus achar que eu tenho que ter um fogão. O dia que eu tiver um
fogão é porque Deus achou que eu merecia”.
Ai, um dia eu vinha vindo na rua, falei: “Ah, Senhor, o dia que o Senhor acha que eu devo ter
um fogão me dê a oportunidade de ter”. Cheguei de noite na minha casa, chegou uma mulher
e falou assim: “viu, eu tô com um fogão na minha casa”. Aquele dia eu fiquei com o fogão.
Então é assim!
Página | 126
Agora, minha irmã não, se ela passar lá e ver uma casa bonita ela fala assim: “ai credo, ai
como Deus é injusto não? Dá uma casa bonita, tanto pros outros e não dá nada pra mim”.
Mas ela tem a casa dela. A casa dela não é ruim.
A gente viu um casarão: “Deus é injusto que deu um casarão pro fulano e não deu uma casa
assim pra mim. Por que será? Acho que Deus é tão injusto”. Mas não é assim.
Eu falo pra ela: “mas não é assim, se Deus ainda não te deu é porque ele acha que você
ainda não mereceu e que não é hora. Tem que ter hora pra tudo”.
Eu, se vou comprar um coisa, eu falo assim: “se Deus achar que é pra eu ter aquela coisa,
Deus vai permitir que eu vou poder comprar”.
Tudo que eu tenho eu comprei depois que vim morar aqui. Tudo que eu tenho aqui eu
comprei. Agora só falta comprar a mesa, o fogão. A semana que vem eu vou comprar uma
cama de casal, porque a minha é pequenininha. Falei: “eu vou comprar se Deus permitir”.
Estou terminando de pagar essas coisas e, acabando, compro a cama. Então, eu não posso
dizer assim: “eu vou comprar, vou fazer aquela coisa”.
Não, eu falo: “Não, você vai fazer se Deus quiser que você faça”.
E a minha irmã é assim. Se ela vai lá numa festa, você esta lá, que ela não topa muito, ela não
fala assim: “vou na festa, vou ficar em tão canto lá e...”
Ela fala: “eu não vou, porque tem gente lá que eu não gosto, porque não sei o que...” Se ela
chegar e você tiver lá ela fala assim: “ai, não deveria nem ter vindo porque fulano tá lá”.
Então, ela é uma pessoa muito assim.
Eu falo pra ela: “mas não é assim fulana, deixa os outros, quem vai fazer justiça é Deus, não
é você. Deixe os outros viver a vida deles. Não interessa”. Ela fala “ah, não, porque não sei o
que...”. Ai, meu Deus, eu não gosto nem de conversar com a minha irmã.
Eu já sou diferente, agradeço à Deus todo santo dia por ter conseguido essa casa. Eu nem sei
como agradecer tanto Deus. Todo dia que eu faço a oração eu falo: “eu e minha casa
servimos ao Senhor”. Todo santo dia!
Eu nem sei o que é solidão. Essa minha irmã vive falando: “ai Maria, você mora sozinha,
porque não sei o que... aí, a gente sente uma solidão, você não sente solidão?”.
Página | 127
Eu falei: “eu? Nem sei o que é isso, nem tenho tempo de pensar na solidão. Não tenho
mesmo!” Todo dia eu arrumo uma coisa pra fazer, e todo dia eu sou a mesma coisa.
Não sei quem falou pra mim: “ai, tô brava”. Eu falei: “Olha, que vantagem tem você ficar
brava? Tem dois tempos, um de ficar brava e outro de ficar boa. Então porque já não anda
boa o tempo inteiro?” Mas não é mais fácil? Vai ter que ficar brava? Você vai sofrer. Você
não vai ter que ficar boa depois? Então porque já não andar o tempo inteiro bem com a vida?
Eu adoro viver aqui, que delicia!
Aí, acho que não quero arrumar um namorado, eu não, credo. Vou ter que ter tanto
compromisso... Ah não, traz muito problema pra gente. Eu vivo tão bem! Adoro viver!
Tudo que eu falava antigamente, que eu não queria mais viver, hoje eu falo, “eu amo viver,
que coisa mais gostosa”.
Sim, já fiquei cansada da vida - no tempo que eu sofria. Mas hoje, eu adoro viver, nossa, eu
amo viver.
Sempre agradeço à Deus, porque viver é muito bom.
Deus só te da uma perna boa, não tem deficiência, você não está doente - pense em várias
pessoas que estão lá em cima de uma cama querendo andar, querendo viver, coitadas.
E a gente reclamando, Af, eu nem reclamo. Não reclamo56.
Eu adoro, adoro minha casa, adoro o lugar que moro... Ah, eu gosto da minha cozinha.
Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...
Olha o tanto de livro de receita57. Quando eu quero fazer uma coisa assim, que eu não posso
comer muito, eu faço e divido com o pessoal - levo um potinho na casa de um e fico só com
um pouquinho pra mim. Eu já divido com os outros.
Eu cuidei da senhora ali da Casa 1 - fiquei três dias com ela lá na Santa Casa.
O dia que ela saiu pra ir pro asilo, eu fui com ela até na porta - fui muito bem, mas cheguei
aqui à zero, todo mundo percebeu.
56 Se oferece para me prepara um chazinho com torradinhas, pra que eu fique com fome nas próximas entrevistas. Aproveita pra me perguntar: “essa entrevista é pra mostrar pras pessoas que também neste núcleo de Vila, as pessoas vivem bem e que devia o governo então fazer mais? Explico à ela que a proposta do projeto é pensar formas de moradia alternativas aos asilos (Instituições de Longa Permanência). 57 Mostra, no rack da T.V, a parte destinada aos livros de receita.
Página | 128
Na hora que aquela mulher chegou no asilo eu chorei tanto, de ver que ela tem tanto filho,
neto e a mulher ter que ficar no asilo. Eu não me conformava. Foi difícil convencer ela que
tinha que ir pro asilo - no dia que falaram eu já, pronto, pra mim...
Eu acho assim, que devia ter um lugar, por exemplo: em Piracicaba tem uma coisa muito boa
no asilo, eu achei o asilo de lá excelente. É assim: tem aqueles que não podem se locomover -
eu fui lá há anos, mas não me esqueço - então, eles ficam num lugar que ficam só as pessoas
cuidando no quarto.
Mas, dentro do asilo, é como se fosse aqui, cada um tem sua casa - uma belezinha, as casas
tudo com seu jardinzinho, eles cuidam. Ai que coisa mais linda! Muito lindo! Eu lembro que
quando eu fui visitar eu falei: “ah, quando eu ficar velha eu quero morar aqui”.
Então eu acho que devia ter um lugar assim pra pôr as pessoas. Não deixar jogado. Passa tanta
entrevista, as pessoas falam: “jogaram eu aqui, não vem nem me ver”. Deve ser uma mágoa
pra pessoa. Deus me livre de acabar a vida de um jeito tão triste.
Aqui todo mundo tem mais de 60 anos, mas todo mundo fala que aqui não tem idoso, que
aqui todo mundo se vira. E é um lugar pra morar até o fim da vida.
E todo mundo que vem aqui fala: “mas que lugar que inventaram, o governo teve uma
excelente idéia”. Eles acham aqui maravilhoso.
O governo devia fazer mais esse projeto. Inclusive já comentaram: porque que não compra ali
pra fazer mais casas?
As pessoas nunca viram esse projeto58. Tem em Avaré, mas a melhor é aqui. Aqui, quando o
médico não vem, a enfermeira vem e ele vai vir agora dia 1, em seguida. Já consulta todo
mundo, dá os remédios. Aqui não tem muito problema, tem problema com o CREAS - porque
o CREAS não dá conta, às vezes a gente pede eles não vem atender59 - e tem o problema das
lâmpadas, que não ascendem todas.
Então são esses pequenos probleminhas, só. Mas, no mais não. E, coitada da Beth, ela
também tem muita coisa pra fazer. Ela adora aqui e fala que aqui é a Vila dela - o que ela
pode fazer ela faz.
58 Pergunta se eu terei, aqui em São Paulo, como mostrar pras pessoas, pela internet, como é o Condomínio. 59 Me diz que a água da sua caixa esta vazando e eles não vem. Um ano e cinco meses que esta vazando a caixa, e ela esta enjoada de pedir – e tem medo de infiltrações.
Página | 129
Sabe que veio um senhor, a irmã dele mora aqui, mora lá naquela vila nova, e ele veio de
Marília. Ele falou: “eu não conhecia esse projeto e eu vou levar daqui pra ver se esse projeto
sai em Marília”. Sempre vem gente pra levar o projeto pra outras cidades.
A construção desse projeto é um dos mais baratos né? Eles são caros, mas eles são mais
baratos do que fazer uma CDHU que dá muito problema.
Vem gente aqui e fala assim: “será que vai sair mais?”Tem gente que, olha a minha sobrinha,
ela é nova ainda, ela fala assim: “eu acho que eu já vou começar me inscrever”.
Esse programa do Centro Dia, aqui em cima, nossa, vai ser muito bom: os filhos têm que
trabalhar, traz o idoso o dia inteiro ai. É um projeto muito bom também.
Itapeva, pra idoso, esta bom e diz que a área da saúde aqui esta muito boa, uma das melhores.
A Santa Casa daqui atende muito bem. Agora vai inaugurar a UPA. E tem a clinica do Dia
que é aonde a gente vai.
E estão fazendo mais, vão fazer o hospital do câncer aqui.
Página | 130
Capitulo III: A Casa é onde quero estar: Lugar, Memória e Velhice
Neste capítulo intentamos mergulhar nos significados da Casa. Num primeiro
momento nossa exploração esta ancorada nos saberes da antropologia ampliados pelas
percepções impressas em letras de musicas.
Em seguida, as histórias narradas por nossos colaboradores são postas no centro do
debate como fundamento da reflexão proposta. Tecendo as narrativas construímos uma
interpretação do discurso social, que ilustra como se apresentam, para o grupo de idosos
entrevistados, as questões do morar, as possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.
A aprendiz de antropóloga interpreta o discurso social pensando como se apresenta a
idéia de proteção, tema tão recorrente em sua área de atuação – a política de assistência social.
Por fim, investigamos como o Estado brasileiro, ao longo de seu processo de
formação, contempla os direitos sociais e a proteção – civil e social - de seus cidadãos.
* * *
3.1 Saberes que se entrelaçam arquitetando as percepções da Casa
A Casa é tema de investigação recorrente nas Ciências Humanas e Sociais e nas Artes.
Primeiro lugar em que nos situamos no espaço, lócus da existência humana e parte
constituinte de nossa identidade e subjetividade. São freqüentes estudos que a abordam, sobre
as mais diversas perspectivas: na Literatura, na Arquitetura e na Psicologia.
Na Antropologia, trabalhos significativos foram desenvolvidos por Gilberto Freyre60 e,
mais recentemente, por Roberto DaMatta abordando a Casa como alegoria para compreensão
da sociedade brasileira e sua formação cultural. No entanto, nas Ciências Sociais, constatamos
limitada bibliografia sobre este tema.
Esta escassez nos fez trilhar novos caminhos na busca pela compreensão do
imaginário social que paira sobre a idéia de Casa. Para investigarmos as sensações do morar,
recorremos a outras fontes e nos aproximamos da musica.
60 Principalmente os clássicos Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 25ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1987 e Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
Página | 131
Como é característica das artes anteciparem questões debatidas por teóricos das
Ciências Humanas e Sociais as letras de musica que têm a Casa como inspiração se
apresentaram como alternativa valiosa à analise antropológica pois acrescentaram poesia e
sutilezas de uma realidade própria deste gênero artístico ampliando nossas possibilidades de
percepção deste lugar.
DaMatta, preocupado com as relações em nossa sociedade, explorou a Casa em
contraposição à Rua. Em sua obra A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no
Brasil61, o autor nos mostra que, além de espaços físicos, tais metáforas são conceitos repletos
de significados; importantes para a compreensão das contradições, ambigüidades e
complementaridades das relações sociais no Brasil.
Este autor nos diz que “o espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar
morremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida”
(DaMatta: 1997), portanto, é preciso nos situarmos para vermos e sentirmos os distintos
espaços e as temporalidades que neles se desenvolvem; afinal, na sociedade brasileira:
[...] o espaço não existe como uma dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou ‘embebido’ como diria Karl Polany - em outros valores que servem para a orientação geral.
DaMatta: 1997: 20
De acordo com esses valores, DaMatta nos mostra que o espaço da Casa é o universo
privado da família, parentes, compadres e amigos; lugar privilegiado do aconchego, do
repouso e da hospitalidade; espaço das ações que podem ser condenadas na rua e do tempo
dos finais de semana – tempo interno, de lazer e para ser vivido em família. Em
contraposição, a rua é o lugar da individualização, de sujeitos anônimos submetidos à frieza
da lei, às relações impessoais e ao tempo externo, marcado pelo ritmo do trabalho.
Ampliando a perspectiva de DaMatta algumas canções, que fazem parte de nosso
repertório musical62, nos ajudaram a pensar esse lugar denominado Casa. Iniciamos nossa
incursão pela Casa de Arnaldo Antunes (A casa é sua: Iê, iê, iê: 2009) que tem quintal, sala de
estar, sala de jantar, cozinha, quartos e banheiro.
61 DaMatta, R; A Casa & a Rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; Rocco; Rio de Janeiro; 1997. 62A escolha destas canções se deu de forma aleatória. Ao ouvi-las, durante o processo de produção desta dissertação, percebemos que poderiam ser exploradas em nossa analise.
Página | 132
Os espaços desta morada, como evidencia DaMatta, misturam-se aos sentidos que
regem as relações pessoais e intimas de seus habitantes; dependem deles para superar a
impessoalidade e a condição de objetos inanimados e dar vida ao lar.
O antropólogo sugere que “de casa vêm também casamento, casadouro e casal,
expressões que denotam um ato relacional, plenamente coerente com o espaço da moradia e
da residência” (DaMatta: 1997: 54). O musico, em sua composição, relaciona plenamente
Casa e casamento e, abrindo mão da racionalidade, descreve os espaços de sua Casa
utilizando unidades de medida puramente emocionais.
Para dimensionar sua solidão, decorrente da ausência do companheiro, Antunes
mergulha nos espaços da casa, transformando-os em instrumentos catalisadores de seus
sentimentos. Nada de material lhe falta: tapetes, relógio, abajur, se integram aos espaços,
caracterizando e compondo-os para seus distintos usos. No entanto, a solidão, e a ausência de
quem se ama, torna insuficientes os objetos e incompletos os espaços da Casa. A sala nada diz
sem “você sentada... sem você estar”. Não falta tapete, mas “falta o seu pé descalço pra
pisar”. Não falta cama, mas “falta você deitar”.
Os objetos, vivos por testemunharem e partilharem a intimidade do casal, estão à beira
da loucura e a desordem, decorrente da ruptura da relação e ausência da parceira, é tamanha
que “até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora” e é sentida também pelo cachorro que
pede socorro com seus uivos incessantes.
Antunes tem Casa, mas “falta ela ser um lar”. Lar que, como bem demonstra o
Dicionário Houaiss, em sua origem, se relaciona com lareira, local da cozinha onde se
ascende o fogo que com suas chamas iluminam, aquecem e transformam os alimentos (apud
Fellipe: 2010). O fogo, que tem como combustível a presença da amada, faz com que os
pássaros voltem a cantar, a nuvem desenhe um coração flechado, o chão volte a se deitar e a
chuva batuque no telhado.
A presença – amor - aquece a vida da Casa e a eleva à condição de Lar; a ausência –
solidão - torna os objetos impessoais e desencadeia intenso processo de desumanização da
Casa - o fogo latente do lar se apaga. Quando extraída da Casa a carga emocional, que
frutifica do acolhimento e promoção de trocas afetivas entre as pessoas que habitam esse
lugar, ela deixa de ser a concha protetora e perde sua função de habitar – estar presente,
permanecer (Houaiss).
Lugar de estar bem. Os sentimentos que lhes são suscitados se associam naturalmente
a elementos da natureza: estar possibilita abundancia de sol da manhã para acordar; permite
Página | 133
que as janelas se abram e o vento brinque no quintal - embalando as flores do jardim,
balançado as cores no varal; permite que os pássaros cantem e as nuvens desenhem um
coração no céu.
A dosagem destes elementos naturais com a companhia de alguém que se ama,
transformam a Casa em Lar: Casa idealizada e projetada a partir de relações afetivas - do
amor de quem se quer bem. Fortaleza que protege as relações afetivas, Casa sem amor não é
lar! A casa é automaticamente associada ao mundo material enquanto que o Lar relaciona-se
com o mundo afetivo denotando lugar de proteção.
Entre os romanos e os etruscos Lares eram os deuses familiares e protetores do lar
doméstico (Dicionário Houaiss). O artista parece utilizar-se do mito para distinguir e
contrapor Casa e Lar. Casa que não é lar, pois cadeira, sofá e cama, na ausência de quem se
quer ter, perdem a vida, e se reduzem a objetos que servem apenas à composição e otimização
dos espaços. Casa que é Lar traz a segurança que tem como pilar as relações afetivas.
Nesta casa sem vida o tempo é árduo e difícil de ser suportado: nem o prego agüenta o
peso do relógio - que marca um tempo pesado e lento; sem calor, sem afeto, tempo morto.
Outra canção, do grupo Biquíni Cavadão (Meu Reino: 1989), apresenta uma Casa
aparentemente menor e mais modesta em sua composição que a Casa de Arnaldo Antunes:
sala, cozinha e quarto; mas imensa em sua função: Casa guardiã de bens, sensações e
impressões que alimentam corpo e alma e formam as idéias sobre o mundo.
Atrás da porta, o morador guarda seus sapatos, no armário suas roupas, na sala os
livros e na geladeira o sabor das refeições. O significado dado a Casa está à altura de sua
função: “minha Casa é o meu reino” cantam os compositores. Reino que não se reduz ao seu
interior, ganha sentido e se amplia com a conexão com o mundo externo, com as relações que
tece com as diversas temporalidades e processos externos ao lar e em tudo que vem de fora,
junto com seus habitantes.
Enquanto a Casa de Antunes adquire/ perde significado na relação estabelecida entre o
casal que habita o Lar, o morador de Biquíni Cavadão dá sentido à sua Casa na relação que
estabelece com o mundo. Mais uma vez, é DaMatta quem nos ajuda a entender a relação do
espaço interno da Casa com o mundo externo, este autor nos diz que a Casa é:
[...] espaço que somente se define e deixa apanhar ideologicamente com precisão quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Assim, se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo exterior: ao universo da rua. Ou seja: o
Página | 134
que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes, complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste.
DaMatta: 1997: 15-16.
Os sujeitos se constroem e se constituem socialmente na relação com o mundo
externo. Assim, a Casa Reino é também, espelho do mundo, onde idéias e sentimentos se
refletem. Seu habitante se define como a soma de tudo que vê, daí precisar de outros sapatos,
roupas e temperos para formar suas idéias e sentimentos.
A Casa Reino é o lugar de estar em paz. Lugar seguro para os devaneios: à noite, na
intimidade de seu quarto, o morador sonha com as coisas mais loucas. Os sonhos são a fuga
ou o lugar de ser - nos sonhos lembranças perdidas e sem sentido se juntam, para além da
razão, e soam como música.
É também nos sonhos que o mundo externo - violência, dúvida, dinheiro e fé - invade
a Casa habitando os devaneios de seu morador. Os sonhos carregam a imagem das ruas por
onde passou e de alguém que não sabe quem é: “E que provavelmente eu não vou mais ver”;
mas que pela empatia entrou em seu Reino: “Mas mesmo assim ela sorriu pra mim. Ela sorriu
e ficou na minha casa que é meu reino”.
A Casa de Biquíni Cavadão é lugar de ser: lugar privilegiado para construir a si
mesmo e a relação com o mundo.
Elis Regina também cantou a Casa (Casa no Campo: 1971) ou seu desejo de Casa. Em
contraposição à agitada vida urbana, a intérprete idealiza uma Casa no Campo, que lhe dê
apenas a certeza dos amigos do peito, dos limites do corpo e nada mais.
A Casa de Elis Regina é modesta, confeccionada com os elementos mais rudimentares
e simbólicos de nossa cultura rural: pau à pique e sapé. Sua dimensão é ideal para plantar
amigos, livros, discos e lhe permitir ficar do tamanho da paz.
As esperanças em relação à Casa são imensas. Que ela seja o lugar de provimento das
necessidades do corpo e conhecimento de seus limites: “eu quero carneiros e cabras pastando
solenes no meu jardim [...] eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal”. Espera,
ainda, que esta Casa seja lugar de criação: “onde eu poça compor muitos rocks rurais”. E que
seja o lugar seguro para viver a velhice: “eu quero a esperança de óculos”.
A Casa de Elis é a fortaleza em que ela pretende proteger seus bens mais valiosos: os
amigos, os livros e os discos e encontrar a paz, a tranqüilidade do Lar.
Página | 135
Nas três canções escolhidas para subsidiar nossa discussão percebemos que a noção de
Casa se vincula à segurança dos afetos. Ela é a grande guardiã das emoções, da
individualidade e da subjetividade de seus moradores. Lugar da intimidade protegida, a partir
do qual as pessoas se projetam no mundo e o apreendem.
Bachelard se dedicou ao estudo da poética do espaço, tendo como instrumento a
literatura, e nos alertou de que “há um sentido em tomar a casa como instrumento de analise
para a alma humana” (Bachelard: 2008). Acreditamos que assim procedendo ampliaríamos
seu valor de proteção e, desde o inicio desta pesquisa, inspirado neste autor, tomamos a Casa,
conforme sua concepção:
[...] a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? Os escritores da ‘casinha humilde’ evocam com freqüência este elemento da poética do espaço. Mas essa evocação é excessivamente sucinta. Como há pouco a descrever na casinha pobre, eles quase não se detêm nela.
Bachelard: 2008: 24
Estamos investigando como velhos trabalhadores pobres percebem a Casa. Suas
residências são simples, pequenas e modestas. Não foram por eles projetadas, mas concedidas
pelo poder público. Apesar disso, materializam o sonho de toda uma vida de trabalho.
Nosso interesse diante da percepção de espaços tão modestos é tocar na segurança que
eles podem garantir aos seus habitantes. Segurança que tem sua importância ampliada quando
nos direcionamos para pessoas que enfrentaram as mais diversas situações de risco, incerteza
e vulnerabilidade e que chegaram à velhice sem condições de prever o amanhã.
Diferentemente de Bachelard, que tem sua investigação ancorada principalmente nos
campos da filosofia e da psicanálise, nossa preocupação, como cientistas sociais, perpassa
pela importância que a conquista da Casa tem para o sujeito – enquanto reconhecimento e
fortalecimento de sua identidade -, mas esta centrada na importância social de garantir às
pessoas o direito à moradia e, na incompletude deste direito, a necessidade do poder público
criar formas de acolhimento para as pessoas idosas, para além da velha e histórica
institucionalização dos sujeitos nos asilos de velhos, hoje denominados Instituições de Longa
Permanência.
Como microcosmo reprodutor das relações sociais a Casa é lócus do debate sobre
estar seguro. Na arte, as musicas nos mostraram que a segurança expressa no ideário de Casa
Página | 136
refere-se à proteção dos afetos. Com os idosos questionamos quais os sentidos de ter ou não
ter Casa e quais proteções a propriedade desse lugar/espaço pode lhes assegurar? Junto com
os idosos exploramos os modos com que as pessoas inventam socialmente este espaço e qual
a importância dele para os sujeitos que envelhecem.
3.2 Tecendo narrativas de idosos
[...] os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão [...] Trata-se portanto, de ficções no sentido de que são “algo construido”, “algo modelado” – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento. Geertz: 1973: 25 - 26
Aqui tem inicio o exercício interpretativo do antropólogo que parte da costura das
narrativas de nossos colaboradores. Como num jogo de quebra cabeças, fragmentos das
histórias individuais vão se encaixando e dão forma a um discurso social, que o antropólogo
constrói a partir das construções de outras pessoas (Geertz: 1973), representativo de um grupo
com características muito comuns e que, por essa razão, formam uma comunidade de destino
- conjunto de sujeitos idosos que em razão de sua condição humana e de sua interação, possui
unidade argumentativa diante de uma problemática comum (ATAIDE: 2002).
As opiniões e pontos de vista dos idosos emergem diretamente da experiência, são
argumentos do senso comum que não se baseiam em coisa alguma a não ser na vida como um
todo (Geertz: 2000) e, em conjunto, formatam um pensamento deliberadamente organizado,
que emerge num contexto bem definido e que nos conduz a conclusões bastante úteis sobre o
morar na velhice.
3.2.1 Possibilidades de morar edificadas pelo Trabalho
Conversando com os idosos percebemos que os modos de estarem no mundo são
impregnados pelas formas com que, ao longo da vida, se relacionaram com o trabalho. A Casa
é lugar que, em sua plenitude, se conquista pelas condições materiais que seus ofícios lhes
proporcionavam. Do trabalho derivam as possibilidades de morar, bem como, os lugares e
localidades em que a Casa se insere e as relações que são estabelecidas.
Página | 137
Ouvir as trajetórias individuais e as histórias de vida de cada idoso nos permitiu
recontar o percurso de consolidação dos direitos sociais e da efetivação de políticas públicas
no Brasil de um ângulo pouco conhecido por administradores e gestores públicos: a
perspectiva de quem viveu à margem e com limitado acesso aos bens sociais e culturais
produzidos pela sociedade capitalista.
Quando olhadas em conjunto as narrativas nos dão pistas de um ponto importante que
a pesquisa pretendeu explorar: Quais seguranças a propriedade da Casa garante às pessoas
idosas? Questão que mostra sua relevância quando nos vemos diante de pessoas que somente
na velhice puderam conhecer e desfrutar da segurança de um Lar.
Nos bastidores da história oficial os colaboradores desta pesquisa - velhos
trabalhadores, em sua maioria provenientes de zona rural; expulsos do campo pela pobreza,
falta de trabalho ou mesmo pela força do imponderável (doença, viuvez, morte dos pais) -
lutavam pela sobrevivência.
Ao falarem do passado nos revelam a trajetória de incertezas e inseguranças que
marcaram suas vidas. Exceto por Dona Maria Duffet que, no segundo casamento, pode
desfrutar de mais conforto e estabilidade financeira, todos os demais se mantiveram no grupo
social a que pertencem desde o nascimento e mesmo ela, após a morte do marido, retorna à
sua posição inicial.
Tal constatação nos dá provas dos entraves para a mobilidade social em nosso país.
Apesar de toda uma vida dedicada ao trabalho apenas uma pequena parte de nossos
colaboradores consegue que, ao menos seus filhos, avançassem um degrau na escala social.
Seu Antonio é um deles; dois de seus filhos conheceram a Inglaterra e descobriram novas
possibilidades de ganhar a vida – montaram uma empresa de curtir couro para exportar para
Europa – enquanto que um terceiro tentava entrar na vida política candidatando-se a vereador.
Aos filhos dos demais idosos restou uma vida semelhante à dos pais: de muito
trabalho, sufoco para criar seus filhos, escassez de recursos e incertezas quanto ao futuro. A
fala de Dona Geni nos dimensiona tanto a necessidade por que passam seus filhos, quanto o
alivio por agora estar numa situação de maior segurança e independência: “Me ajudam como
podem, mas não com dinheiro. Com dinheiro não podem ajudar a gente, são apurados e a
crise esta difícil. A gente que tem que se virar. Mas graças a Deus já me ajudaram bastante e
hoje eu não preciso mais da ajuda deles”.
Dona Zélia também aponta para as necessidades de seus filhos ao justificar que não
recebe visita porque moram longe e não podem vir à pé: “Pra vir pra cá tem que usar ônibus
Página | 138
ou usar moto ou tomar um taxi, então fica difícil, porque todo mundo precisa de dinheiro. O
pouquinho que sobra é pra investir em alguma coisa”.
O trabalho nunca amedrontou nossos narradores, é força motriz em suas vidas. Pelo
trabalho se fizeram, conquistaram dignidade e descobriram o mundo. Homens e mulheres que
dedicaram suas vidas ao trabalho tornaram-se ‘especialistas em atividades árduas’.
Dona Maria Duffet, dentro de Casa, realizando trabalhos domésticos: “esses
‘domesticão grosso’ que teve antes, as casas eram tudo difícil de limpar. Cuidar de criança.
Depois a gente tinha que ir na escola também, às vezes eu ia um dia e faltava dois, pra ficar
cuidando da casa e dos irmãos pequenos”.
Dona Geni, por sua vez, tornou-se grande conhecedora dos serviços da lavoura:
“Serviço de lavoura eu conheço tudo. Eu roçava, carpia, quebrava milho [...] Eu gostava da
lavoura, criava porco, galinha, tinha bastante fartura. Quando vim morar pra cá eu senti muito.
Mas o trabalho lá é cansativo, nossa... Mesmo que eu pudesse agora não voltava mais pra
lavoura, porque não agüento mais nada: roçar, carpir.”.
Seu Adelino, outro mestre da lavoura, aprendeu com o pai a lidar com a terra e nos
ensina a base para plantar cada tipo de alimento: “Muitos anos fazendo lavoura, roçando
mato. Derrubava mato com meu pai. O pai ensinou a roçar. Derrubava mato, cortava no
machado e queimava e fazia a lavoura e plantava cana verde; plantava milho - plantava três,
quatro sementes, eu pegava a base, já sabia a base de ‘ponhá’. O feijão plantava duas
sementes, três - não pode plantar um montão de feijão, é duas sementes”.
A vinda para a cidade não tornou o trabalho menos duro, ao contrário, a vida adulta de
nossos narradores se fez no exercício de atividades desgastantes, e, para as mulheres, quase
sempre sem direitos assegurados, na margem do sistema produtivo. Elas tornaram-se
costureiras, lavadeiras ou empregadas domésticas enquanto que os homens atuaram como
ajudantes de pedreiro – os que cresceram profissionalmente tornam-se pedreiros autônomos -
e caminhoneiros. Em comum toda uma vida de trabalho incessante, desgastante e, por vezes,
degradante.
Seu Adelino, que veio para a cidade com mais de 60 anos, após perder os pais e os
irmãos, “garrou” emprego de trabalhar de servente de pedreiro. Seu Antonio, que também
dedicou mais de vinte anos de sua vida à construção civil, reconhece o lugar de seu trabalho
no sistema produtivo: “[...] era uma época que a construção civil não tinha valor, pedreiro não
tinha valor. Trabalhava um monte, fazia um monte de serviço e não tinha preço, poxa vida!”.
Página | 139
Seu Abel e Seu Irineu dedicaram suas vidas à profissão de caminhoneiro. Os homens
da estrada lembram com orgulho do trabalho desempenhado com muito esmero. Seu Irineu,
desde que criança, vendo o pai caminhoneiro, sabia que aquele seria o seu destino, e
aguardava ansioso pelo momento de poder se tornar também um caminhoneiro: “Meu pai era
motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do quarto ano, ele
me chamou e perguntou: ‘Você quer continuar estudando? Eu pago o seu estudo, ou você
prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo?’ Quando ele falou
‘quer ir viajar comigo’, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de andar de caminhão e
aprender a guiar”.
Seu Abel conheceu a profissão um pouco mais tarde, antes trabalhou como Ajudante
Geral em empresas de laminação e no mêtro de São Paulo. Mesmo assim, teve tempo pra
passar trinta e dois anos na boléia de um caminhão: “Trabalhei a maior parte da minha vida
como caminhoneiro. Trabalhei trinta e dois anos! Com insalubridade deu os trinta e cinco pra
aposentar. Só contou o trabalho de caminhão pra me aposentar”.
O trabalho possibilitou, aos nossos colaboradores homens, longas viagens e o contato
constante com pessoas, lugares e costumes diferentes. É pelo trabalho que conhecem o mundo
para além de suas cidades de origem; seu Antonio, construindo casas, andou pelo Rio Grande
do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Curitiba, São Paulo e Sorocaba.
Seu Abel, na boléia do caminhão conheceu o mundo: “Por isso que eu falei que
conheço tudo. Eu gostava muito de ser caminhoneiro, é bom! A gente sofre mais é divertido”,
saia de São Paulo levava a carga para Porto Alegre ali, outra carga lhe esperava, ia
descarregar em Minas, de lá pra Bahia e, assim, passava um mês fora de casa, até para fora do
país viajou; Argentina, Paraguai: “eu andei por todo canto do mundo!”
Seu Irineu não ficou atrás, viajava de São Paulo para Porto Alegre e depois ia para
Ponta Grossa, para só então retornar pra Itapeva. A diferença é que todo final de semana
conseguia estar em casa e, sempre que podia, levava Dona Tereza, sua esposa, na boléia do
caminhão. Ela também pôde conhecer São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Porto Alegre e
Santa Catarina e assim, ficava mais fácil aceitar as ausências do marido.
O que não aconteceu com a mulher de seu Abel, que há tempos é divorciado: “Difícil
ser mulher de caminhoneiro... a mulher cansou! [...] eu vivia na estrada”. Mais adiante em sua
narrativa, nos deixa saber que, além do longo tempo na estrada, este trabalhador, e sua
família, enfrentaram o problema do alcoolismo.
Página | 140
Para as mulheres as oportunidades foram diferentes, mas também possibilitaram
conhecer outros lugares – as casadas seguiam os maridos em busca de trabalho e as solteiras
iam sozinhas atrás de melhores oportunidades.
Dona Geni toda vida trabalhou, para ajudar o marido que sempre foi pobre, apesar de
“trabalhador e honesto”. Quando veio para a cidade lavava roupa: “Tem uma casa que eu
lavei roupa dois anos a fio: roupa de açougue, ‘roupaiada’ suja, roupa de fazenda. Lavava pra
cinco casas!”. Ainda hoje não pode descansar, todos os dias ela percorre a cidade vendendo os
sonhos que seu filho padeiro prepara.
Dona Zélia, também trabalhou a vida toda, no campo foi bóia fria, plantava feijão,
milho, carpia roça. Quando veio para a cidade continuou fazendo serviço de roça, mas
também trabalhou em casas de família e na rodoviária: “Agora eu faço bico lá (na rodoviária)
de vez em quando. Quando falta gente eu vou atender no guarda volume”.
Dona Maria Rosa, por sua vez, passou toda a infância e juventude trabalhando pesado
nos afazeres da casa e da roça ajudando na sobrevivência da família adotiva e, posteriormente,
da biológica. Quando decide mudar para a cidade a jovem se torna empregada doméstica e
num período em que as empregadas eram tidas como propriedades de seus patrões, suportou
extensas jornadas de trabalho: “Então, eu trabalhei olha, sem quase descanso, o tempo todo
[...] Antigamente a gente trabalhava no domingo, então eu trabalhava a semana inteira. Eu não
tinha descanso. Eu vim descansar mesmo, agora que sou aposentada. Quando meu vô morreu
eu fui embora, eu falei: “aí, eu vou embora pra São Paulo”.
Aos dezessete anos a jovem parte para São Paulo em busca de trabalho, de lá vai para
Sorocaba e depois para Piracicaba; “mas, lá também era sofrido. Trabalhei com gente ruim”.
Retorna para Itapeva depois de adulta, quando a mãe esta no leito de morte, mora com a irmã
e segue, até a aposentadoria, cuidando do cotidiano das famílias de seus patrões.
Quando os irmãos de Dona Maria Duffet cresceram ela teve tempo para se torna uma
grande costureira: “Eu fazia vestido de noiva, costurava calça, camisa pra homem. Naquela
época não tinha esses figurinos que agora a gente vê na vitrine, então, eu saia, quando podia,
ia nas cidades que tinham aquelas vitrines com alguma coisa pra ver os modelos tudo. Ia pra
Avaré, Sorocaba, Itapetininga. Eu viajei bastante. Conheci esses lugares depois que casei e
que fiquei livre dos meus irmãos. Então, costurei muito, muito, muito, muito”.
Realizar bem as tarefas que a vida lhes designava sempre foi motivo de orgulho e o
trabalho, por mais sofrido que fosse também foi fonte de alegria. A satisfação e
contentamento de Seu Irineu, ao falar de como foi um caminhoneiro zeloso, colore sua
Página | 141
narrativa; em mais de vinte anos na estrada, nunca sofreu um acidente: “[...] graças a Deus e
ao São Cristovão, que sempre me acompanhou, eu nunca tive problema, assim de bater
caminhão, comigo não.”
Até o patrão reconhece a prudência e o zelo do motorista: “Oh, Negão, você já tem o
seu santo protetor e tudo, continue firme com ele e rezando, sempre rezando e pedindo,
porque você sabe, nós estamos com onze caminhões, dez já bateram, só você que nunca
bateu, nunca aconteceu acidente”. Eu falei: “continuarei rezando”, e, graças a Deus,
trabalhei com ele um tempão e nunca aconteceu nada”.
Dona Maria Rosa também sente orgulho por fazer bem o seu trabalho: “[...] eu fui
assim, muito dedicada ao serviço. Então, todas as patroas falavam que eu tinha uma excelente
qualidade. Eu cuidava bem dos filhos delas, fazia o serviço tudo direito. Eu trabalhei todo
esse tempo, nunca cheguei um dia atrasada no serviço. Nunca faltei no serviço, porque eu
achava que eu tinha aquela responsabilidade no meu serviço, então, todo mundo admirava
isso de mim”.
As profissões de nossos colaboradores, por vezes, os expunha à riscos. A prudência de
Seu Irineu decorre dos perigos reais, encontrados todos os dias nas estradas do país: “Eu
viajei nove anos na estrada que liga São Paulo à Curitiba, Regis Bittencourt, conhecida como
rodovia da morte. Fazia o trecho de São Paulo a Porto Alegre, as viagens tinham horário e eu
viajava a noite inteira. Graças a Deus eu nunca sofri um acidente e vi tanto acidente ali que, se
não tivesse um pouco de coragem, largava mão até de trabalhar”.
Além de arriscados os trabalhos são extenuantes e muitas vezes levam ao esgotamento
da força física. Seu Antonio nos fala do desgaste provocado pelo trabalho na construção civil:
“É um trabalho que desgasta e a gente se machuca naquele sobe e desce de andaime, nossa!
Chegou um ponto que não agüentei, por isso vim de Santa Catarina, larguei o serviço lá
porque não pude fazer, muita dor na coluna, muita pressão alta”.
A estafa, ainda que inconsciente, é tamanha e leva a maior parte de nossos narradores
à invalidez. Dos homens, somente Seu Abel conseguiu exercer a atividade profissional até a
aposentadoria. Os demais, quase que como uma coincidência, de um destino por vezes,
previsível, aposentaram-se por invalidez.
Seu Antonio, por conta de um erro médico sofreu um começo de derrame - a injeção
para baixar a pressão foi aplicada em grande quantidade: “A injeção era pra baixar a pressão e
nem precisava ter tomado porque a pressão estava 18 por 10, qualquer comprimido já
Página | 142
resolvia”. Por conta deste incidente “[...] parei de trabalhar porque me tirou a força do quadril
e o braço ficou com seqüela”.
Também Seu Adelino quando se aposenta é por invalidez: “Aposentei, não foi por
idade, foi por invalidez, a aposentadoria não veio pela idade certa. Foi invalidez que eu
aposentei. É esse o salário que eu estou com ele”.
Seu Irineu, por sua vez, dedicou-se tanto à profissão que descuidou da saúde. Num
acidente de percurso, perdeu a visão – em decorrência do diabetes – e não conseguiu
completar o tempo necessário para a aposentadoria: “Por incrível que pareça eu trabalhei vinte
e cinco anos com caminhão. Na carteira profissional tenho quase vinte e um anos registrados
como caminhoneiro, só que quando deu o problema de saúde fiquei encostado e não
aposentei. Eu fiquei encostado e parei de recolher INPS [...] Eu estou recebendo um salário
mínimo, é um salário que o governo me dá, até completar 65 anos e poder aposentar por idade
e invalidez, porque sem visão não tem jeito de dirigir mais”
Seu Abel, único trabalhador que consegue exercer a profissão até a aposentadoria, não
ficou imune aos acontecimentos imponderáveis da vida que o levaram ao esgotamento das
forças físicas: “[...] em 2009 deu AVC em mim, daí que eu fui pro asilo. Tinha 60 anos
quando aconteceu. [...] Eu morava com a minha mãe e eu fiquei dependente de tudo, tudo,
tudo, tudo! [...] E os médicos disseram que o AVC foi por conta da bebida”.
Entre as mulheres entrevistadas, Dona Maria Rosa, a única solteira do grupo, é também, a
única mulher a se aposentar. Sozinha escreveu a sua história e, recentemente, conseguiu
descansar: “[...] vai fazer três anos que estou aposentada. Desde setenta e três, quando saiu o
registro pra empregada, eu já tava registrada. Mas eu podia ter aposentado há mais tempo. Eu
trabalhava, as patroas descontavam o INSS de mim e não pagavam, por isso que eu demorei a
me aposentar”.
As demais trabalhadoras, quase que como uma coincidência do destino, que também se
mostra previsível entre as mulheres, têm como renda a pensão de seus falecidos maridos.
O fruto destas vidas de trabalho foi uma velhice de escassez. O trabalho inseguro –
associado à espoliação do capital imobiliário, ausência de políticas públicas de moradia e
outros agravantes - não lhes proporcionou, no decorrer da vida produtiva, adquirir suas Casas
garantindo por conta própria as seguranças de um lar.
Com as baixas aposentadorias ou pensões, restou aos nossos velhos trabalhadores a
ocupação dos bairros periféricos da cidade - muitas vezes negligenciados pelo poder público e
mais expostos à violência urbana.
Página | 143
Antes da inclusão no Programa Vila Dignidade a maioria deles vivia em moradias sem
qualquer conforto (porões, casas úmidas e emboloradas). Estiveram sempre ameaçados pelo
risco de não conseguir assumir as elevadas despesas de aluguel, pela vontade dos
proprietários dos imóveis que, às vezes, sem aviso prévio solicitavam a entrega da casa ou
pelos perigos do bairro – assaltos, brigas de porta de bar, comércio e consumo de drogas,
entre outros. Para quase todos esses trabalhadores a inclusão no Programa pôs fim a uma
longa trajetória de incertezas.
Desfrutando, no presente, da segurança de ter um novo lar, é mais fácil perceber as
carências de suas residências anteriores. Dona Zélia faz uma longa descrição de como era a
sua casa: “Antes de morar aqui eu morava na Vila Nova numa casinha feinha. Essa aqui dá de
cem à zero. [...] a casinha era muito, muito mal arrumada, mal feita mesmo [...] Eu morava de
frente com outra casa. Era uma entrada bem menor que aqui. De um lado uma casa do outro
lado outra casa e, no fundo tinha mais dois cômodos pegados com a minha casa [...] Fizeram
uma “valetona” deste tamanho, de frente da minha casa[...] Dai ficou aquela coisa horrível,
tudo que era sujeira parava ali. Quando chovia enchia aquela valeta de água, estava feio
mesmo. Tudo isso na porta da minha casa”.
Dona Maria Rosa aponta para as dificuldades, de saúde e financeiras, que a antiga
moradia lhe impunha: “Ah, a casa era assim.... Muito, muito embolorada. Não batia sol. E
então, eu comecei a ter problema de muita tosse por causa da umidade. Morei lá uns três anos.
Uns três ou quatro anos. Pagava R$ 240,00 de aluguel. Caro! Lá, tinha dia que eu passava
sem comer o meu viradinho de farinha com café. Porque não dava pra pagar o aluguel”.
Para Seu Adelino o problema maior se relacionava à violência, praticada por seus próprios
parentes: “Morei muitos anos no porão. Lá que eu era roubado. Volta e meia “tavam” me
roupando. A minha sobrinha achou que eu tava condenado ali”.
Seu Antonio encontrou uma forma de se livrar do aluguel - ele cuidava de um terreno e ali
pôde construiu um barraco para descansar o corpo, mas estava sempre inseguro porque sabia
que a qualquer momento teria de deixar o lugar, pois a intenção do proprietário era desfazer-
se do terreno: “Eu morava no Sítio, no Pilão D’água, pertinho daqui [...] fiz uma casinha pra
mim – um barraquinho [...] Lá fiquei dois anos até que o dono me falou que iria construir, e
então iria fazer uma casa pra colocar o pedreiro. Eu então pensei: “está pedindo a casa para
colocar o pedreiro”.
A vida de Dona Geni foi marcada pelas constantes mudanças de endereço decorrentes da
dificuldade em pagar os elevados aluguéis ou, ainda, do alcoolismo do filho – que sempre a
Página | 144
indispunha com os proprietários: “Mudei bastante, nossa! Nem estranhei quando vim pra cá,
porque lá era muito sofrimento, eu não gostava de lá. Era sofrido pela situação que a gente
passava”.
Também para Dona Maria Duffet a vida, após o falecimento do segundo esposo, foi
marcada por constantes mudanças. Se casada pode desfrutar da segurança de um lar, viúva
precisou se deslocar em vários momentos: “[...] depois da sua morte (segundo marido), foi um
tal de mudança. A gente que não tem casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas,
depois larga lá e vai ficando. A gente também vai perdendo o gosto. É complicado! Ah, agora
esta tudo “simplesinho” mas, antes, nossa! A gente pagava faxineira pra fazer faxina na casa,
limpar aqueles vidros, aquelas “coisaradas” tudo”.
Seu Abel, que vivia a recuperação de um AVC antes de ser incluído no Programa,
desfrutou de segurança: “No asilo, pelo menos esse daqui de Itapeva, os outros eu não sei, é
muito bem cuidado. Eu devo muito obrigação pra todo mundo lá. Os funcionários treinados te
respeitam, porque o importante é o respeito. Porque, se você me respeita eu tenho que te
respeitar”. No entanto, tanto cuidado era pago com a perda da autonomia financeira: “Mas,
veja bem, lá não é ruim de ficar, só que o que é seu fica tudo lá. Por exemplo, eu já estava
aposentado, o cartão já ficava lá com a presidente, então, você não vê dinheiro e não ter
dinheiro é uma situação ruim, pra qualquer pessoa”.
Dentre todos os nossos colaboradores apenas a vida de Seu Irineu esteve livre da
instabilidade de freqüentes mudanças de residência. Neste ponto, sua narrativa destoa das
demais, pois este velho trabalhador morou toda vida na mesma casa, algo incomum no grupo
pesquisado.
Teve muita dificuldade em sair da casa onde viveu a infância, a descoberta da profissão e
do amor, a chegada do filho e depois da nora e dos netos. Na verdade ele até torceu escondido
- para não ser contemplado no Programa – para não decepcionar Dona Tereza que nunca
gostou de morar ali e sempre quis ter a sua própria Casa.
Alguns de nossos colaboradores puderam desfrutar, em determinado momento da vida, da
posse de seus próprios lugares, mas, por diversas razões perderem estes lugares. Dona Geni
teve sua casa, mas o marido, tentando realizar o sonho de ter um terreno maior, trocou-a e, no
meio da transação, faleceu. Dona Geni ficou sem documentos, sem nada: “[...] antes de
morrer passou a Casa. Eu tentei segurar e não consegui, ele era brabo. Ele “breganhou” a
Casa, fez uma “breganha”, uma troca. Ele era louco por terra e trocou a Casa por um
Página | 145
terreninho, um sitio. Só que ele morreu e ficou sem documento nenhum. Daí tomaram tudo...
Fiquei sem nada... Como não tinha documento, quem era o dono ali tomou de novo”.
A sorte de conquistar a Casa própria só poderia bater à porta de nossos colaboradores pela
inclusão em programas habitacionais, logo, nenhuma possibilidade de inscrição poderia ser
desperdiçada. Dona Geni descreve com precisão sua peregrinação e frustração em busca do
imóvel próprio: “[...] Sabe, eu andava se batendo que nem barata no açúcar. Fiz inscrição num
lugar, fiz inscrição noutro. Fiz inscrição lá naquelas casas que estão fazendo agora. Fiz
inscrição lá naquela vila que tá construído umas casas ali do lado da estação. Fiz inscrição lá,
fiz inscrição aqui. Alguns nem ficaram prontos, não saíram da terra. Só ficou na gaveta o
papel mesmo. Fiz a inscrição ficou na gaveta... Sempre falei “Deus vai preparar uma casa
pra mim” e Deus preparou aqui”.
Seu Irineu, atendendo às vontades da esposa também fez sua inscrição em programas
implantados no município: “A Tereza sim, sempre teve vontade (de se mudar), tanto que
fizemos a inscrição, uma época, no CDHU, mas nunca tivemos sorte de ser sorteado”.
Dona Maria Duffet foi a única dos entrevistados que revelou ter condições de comprar
seu imóvel, mas por azar do destino, teve sua poupança confiscada pela política
governamental do presidente Collor: “A gente tinha um dinheiro bom, dava pra comprar uma
Casa muito boa aqui em Itapeva, mas daí o Collor pegou nossa poupança [...] Essa casa era
pra ter sido comprada quando meu marido estava vivo, mas quando viemos ver uma, aqui no
Parque São Jorge, em frente à delegacia e perto da minha irmã, o pessoal dele não quis que
nós comprássemos [...] Eu sei que quando foi dali uns dias veio o tal plano que caçou tudo”.
Para nossos colaboradores, com exceção de Seu Irineu, o sonho de ter a casa própria
embalou muitas noites de sono e esteve no topo da lista de pedidos para Deus: “Quando saiu a
inscrição pra essas casas aqui, nossa, eu dei graças à Deus. Eu pedia todo dia pra Deus que eu
queria ter essa casa. Quando eu fui chamada pra pegar a casa, pra mim parecia que eu tava no
céu[...]” , nos revela Dona Maria Rosa.
3.2.2 As seguranças do morar: a vida após a inclusão no Programa Vila Dignidade
Ao abordarem o momento presente é nítida a ruptura que a inclusão no Programa Vila
Dignidade causou nas vidas destes idosos, muitos experimentam, pela primeira vez: a certeza
de como será o amanhã, a estabilidade financeira, a segurança - de poder escolher o que
Página | 146
comer, de ter onde dormir, de poder dormir a hora que desejar, de poder adquirir bens como
mobiliário ou vestimentas novas-, a certeza de estar protegido durante uma chuva forte.
Dona Maria Duffet, apesar de agora estar num lugar que considera “simplesinho”,
reconhece que a conquista da Casa pôs fim a incerteza de não ter onde morar e às constantes
mudanças: “A gente que não tem casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas, depois
larga lá e vai ficando”.
Com sua fala nos damos conta do desgaste físico provocado por tantos deslocamentos,
afinal ela já era de idade quando viveu o período de maior incerteza em relação à moradia.
Além dele, a força de suas palavras dimensiona o desgaste emocional provocado pela
necessidade de se desfazer de seus pertences - objetos que carregou por toda a vida e que
carregam sua biografia. Como nos lembra Bosi:
[...] há algo que desejamos que permanece imóvel, ao menos na velhice: o conjunto dos objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a quietude, a disposição tácita mas expressiva. Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Bosi: 1994: 441
Certamente a perda destes objetos representou mais que a dos espaços – que nunca lhe
pertenceram e, por isso, sabia que não seriam definitivos. A passagem escolhida para dar o
tom de sua narrativa tem haver com o sentimento de frustração diante da necessidade de abrir
mão de suas coisas: “Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”.
Mas também a gente não pode se apegar às coisas toda a vida”. Sua fala nos revela o
descontentamento provocado pelo desapego forçado: “A gente também vai perdendo o
gosto”. Com cada objeto que se vai, vai um pedaço de sua vida.
O drama de Dona Maria Dufett é exclusivo entre o grupo de idosos entrevistado, pois
para os demais a realidade era bem diferente. Exceto Seu Irineu e Dona Tereza, que já tinham
tudo na Casa anterior, os outros idosos, não tinham o que carregar pra mobilhar a Casa nova.
A carência da maioria dos moradores da Vila Dignidade contrasta com a carência de
Arnaldo Antunes, que tem tudo em sua casa, só falta alguém chegar. Na realidade pesquisada
faltava quase tudo: fogão, sofá, armário. Só agora os idosos experimentam a felicidade de
mobilhar seu Lar, construir a identidade de suas casas, ao mesmo instante em que
reconstroem suas próprias identidades.
Página | 147
Se ver no mundo de um jeito diferente, poder desfrutar do privilegio de ter objetos
para imprimirem parte de suas memórias - a memória de uma nova vida, ou uma nova fase na
velha vida sofrida - é firmar-se no mundo numa outra posição.
Seu Antonio é um dos que não tinham muita coisa pra trazer: “Eu só tinha fogão,
geladeira - uma geladeira branca, que estragou, ai comprei essa. Eu não tinha cama, guarda
roupa, sofá - o sofá eu comprei aqui -, não tinha guarda louça, mesa, não tinha nada. Fui
comprando aos poucos. Essa mesa grandona eu comprei por causa da criançada, quando eles
vêm enchem a casa”.
Agora ele tem uma Casa montada e que cuida com muito carinho. Como nos revelou:
“Eu gosto da coisa bem caprichada, eu gosto mesmo. As pessoas que vem aqui falam que
parece que tem uma mulher morando aqui”.
Dona Maria Rosa fez questão de nos falar das dificuldades enfrentadas no passado
para mobilhar sua Casa: “Quando eu fui morar sozinha eu não tinha nada. Minha irmã deu
uma xícara, minha sobrinha me deu um garfo, uma colher e um prato. A outra minha sobrinha
me deu uma panela. Eu cozinhava alguma coisa na panela, virava num prato, pra poder
cozinha outra, e nem por isso eu ia maldizer a Deus”.
A satisfação de poder, na velhice, consumir algum bem, é fator de segurança que
merece destaque. Livrar-se dos aluguéis pesados possibilita o investimento em outras
necessidades essenciais, como aponta a própria Dona Maria Rosa; “Minha vida financeira
melhorou bem mais, depois que eu vim pra cá. E também eu como melhor - o que eu não
comia antes eu como de tudo que eu quero”.
A mudança é tão expressiva que, além de comer melhor, é possível pensar em trocar
os móveis velhos e materializar o desejo de ter tudo novo na Casa nova: “[...] Tudo que eu
tenho eu comprei depois que vim morar aqui. Tudo que eu tenho aqui eu comprei. Agora só
falta comprar a mesa, o fogão. A semana que vem eu vou comprar uma cama de casal, porque
a minha é pequenininha. Falei: “eu vou comprar se Deus permitir”. Estou terminando de
pagar essas coisas e, acabando, compro a cama”.
Seu Abel, que sofria por não ter independência financeira no tempo em que morou no
asilo, hoje comemora com orgulho: “Eu não tinha nada, porque no asilo não precisava, fui
comprando tudo. Tudo fiado! O que tem aqui é tudo fiado. E agora já está tudo pago. Agora é
tudo meu”.
Enquanto a maior parte dos moradores exibe com orgulho os móveis que, em suaves
prestações, foram adquiridos para dar uma cara nova para a Casa, e para a vida nova, Seu
Página | 148
Adelino, nos impressiona ao revelar mais uma das muitas facetas das relações que os velhos
podem estabelecer com os objetos.
Descreve com detalhes de onde veio cada um dos móveis que estão em sua casa: “Eu
não tinha esse armário, o armário de cá é usado, o outro eu comprei lá na casa que vende
roupa usada. Comprei pra ter, porque não tinha armário. O armário que eu mandei fazer é esse
armarinho velho, era pequeno pra ponha as coisas. Agora vasilha, uns deu vasilha pra mim.
Cadeira, essas cadeira não são minhas. A minha sobrinha que deu. Não é meu, eu não comprei
ela que me deu. O sofá a mulher de baixo comprou do homem e me deu de presente. Esse
outro foi a mulher do João, minha sobrinha, que me deu, porque fizeram o roubo de mim, se
favoreceram do meu dinheiro. Eu sei que é errado, sei que está lá o roubo, mas me deram de
presente. É velho mas serve, tá bom. É presente que eu peguei. Lá no quarto, o guarda roupa
foi a minha sobrinha que me deu, agora esses dois armários eu comprei”.
O excesso de desapego em relação ao mobiliário de sua casa – tem móveis porque os
ganhou - nos comove e, na seqüência, a lucidez de suas razões é revela: Algumas pessoas me
dizem: “O que você vai fazer com o seu dinheiro quando você morrer? Você deixa de
comprar um móvel, uma coisa que você pudia ter na casa, pudia ter mais coisa pra aparecer
na casa”. Mas eu pergunto: “o que eu vou fazer com esse móvel? Eu não sei o dia que Deus
vai me levar, eu compro hoje, amanhã pode Deus me levar, o que eu vou fazer com o móvel?
Não faz mais nada. Então tanto faz ter um móvel na casa como o seu dinheiro, a pessoa não
leva, não leva nada”.
Além de evidente na organização e cuidados que todos os idosos, com exceção de Seu
Adelino, depositam em suas Casas, a sensação de bem estar, é experimentada nos afazeres do
cotidiano. Livrar-se do pesado fardo de ter que sobreviver do suor de seu trabalho tornam as
ações do dia a dia mais satisfatórias, pois são realizadas com menos esforços.
A facilidade de deslocamentos, a preparação dos alimentos, os momentos de lazer,
que agora são desfrutados sem preocupação: os finais de semana passados na companhia de
parentes, a leitura de um livro, a possibilidade de ter novos amigos, tudo isso pode ser
percebido e vivido com mais intensidade agora que não precisam mais despender todo o
tempo da existência na luta pela sobrevivência.
É poética a descrição do momento presente feita por Seu Adelino: “[...] Agora eu
estou nessa vida de regalo. De olhar aqui os outros que tá passando na rua, outro tá lá na
cidade, outro tá noutro lugar e prosear com os velhos murcho que nem eu mesmo. É essa
Página | 149
vida! Hoje não tenho necessidade de trabalhar. É pescar, fiz um covo feio que nem eu mesmo.
Mas o feio tem direito de ir no rio pescar”.
E não é só isso, Seu Adelino que teve uma vida marcada por carências ganhou muita
coisa depois que se mudou: “Depois que vim viver aqui eu tenho mais amigos e ganhei a
aposentadoria - há muito tempo eu sou aposentado, mas pra mim não há dinheiro, com tanto
roubo. Aqui eu estou segurando mais dinheiro, dou ajuda lá na igreja, mas estou segurando
dinheiro. Tenho mais companheiros, aqui todos olham por mim. Muita gente que era estranho
agora é conhecido meu e esta me protegendo”.
O relacionamento com a vizinhança é outro ponto que merece destaque, pois nos
esclarece sobre os ganhos que uma concepção arquitetônica bem planejada pode proporcionar
às pessoas que se utilizam de equipamentos públicos. No caso da Vila Dignidade permite que
as pessoas circulem, se vejam e estejam em constante contato umas com as outras. A
sociabilidade entre os idosos faz surgir redes espontâneas de cuidados, o que também é fator
de segurança, uma vez que se tem a certeza de ter com quem contar quando alguma situação
adversa acontecer.
Como evidencia seu Abel que, além de se relacionar bem com todos os vizinhos, conta
com a solidariedade e ajuda de Dona Tereza para organizar as atividades do dia a dia: “Em
casa eu não faço nada. Pago pensão pra mulher do Chaminé, a Dona Tereza. Daí, ela cozinha
pra mim e trás aqui. Ela também lava a minha roupa, faz tudo. Só que eu pago. A amizade é
bom por causa disso aí. A amizade e o respeito. Afinal: “[...] o mundo, dá muitas voltas, dá
muitas voltas, e numa dessas voltas, pra você cair é fácil, fácil. Depois que você cai, pra
levantar é difícil. E as pessoas podem te ajudar”.
Dona Maria Rosa também evidencia a importância desta rede de solidariedade: “Acho
que aqui a turma cuida muito de mim. Porque se eu levantar aqui e ninguém vê eu ir pra lá, o
povo já vem tudo aqui. Saber se eu estou bem, o que esta acontecendo. E também não pode
ter inimizade aqui dentro. Pra mim é muito bom assim, eu gosto”.
Dona Zélia, que tinha sérios problemas com os vizinhos de sua residência anterior nos
fala que seu contato com a vizinhança é melhor agora e conclui: “[...] Por essa e por outras,
aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura. Me relaciono bem com os vizinhos, não vou na
casa de ninguém, mas tenho um bom relacionamento”.
Dona Geni também já sente diferença na relação com os vizinhos: “Os vizinhos aqui
são tudo bom, só que eu vou falar bem a verdade, eu não conheço tudo ainda. As vizinhas
aqui são muito boas”. Dona Geni observa que até com a família o relacionamento é melhor:
Página | 150
“Até com a minha família ficou melhor, ficou bem melhor, porque agora eles vêm mais na
minha casa. Principalmente a filha que ficava um ano sem ir na minha casa”. E no relembrar
se dá conta de que vivia mesmo sozinha antes da inclusão no Programa: “Pensar bem uma
coisa, o Natal e o Ano Novo eu passava sozinha. Só o que morava em cima de mim, esse
Gilson morava em cima e eu morava em baixo, que ia na minha casa, porque tava do lado”.
A Vila possibilita também fazer novas amizades através do contato com pessoas que
vão ao Condomínio, para conhecer o Projeto, ou realizar ali projetos acadêmicos. Seu Abel
gosta da presença dos convidados: “Aqui sempre vêm estagiários. Semana passada estiveram
aqui uns de Santo André, vieram com o Projeto Rondon, uma molecada jovem e animada,
vieram fazer exercícios com a gente. Isso aqui foi tudo eles que fizeram pra mim”.
Dona Maria Duffet também aprecia as visitas: “[...] tem o pessoal que vem de fora e
faz amizade com a gente. Nossa já veio tanta gente. Agora mesmo teve aqui o projeto
Rondon, tinha gente de São Paulo, Santo André, Mauá, Poá, Sorocaba, Campinas”.
A melhora no estilo de vida é tamanha, que repercuti na saúde dos moradores da Vila.
Dona Maria Duffet gosta de ter assistência médica e enfermeiros visitando-a em sua casa.
Dona Geni, que recentemente foi incluída no Programa Vila Dignidade já sente melhoras em
sua vida: “Ter vindo pra cá me trouxe muitos benefícios: tenho mais saúde, tranqüilidade,
trouxe paz pra minha vida. É uma benção, nossa!”.
Seu Adelino demonstra tranqüilidade por ter profissionais que se preocupam com ele:
“Está vindo uns médicos preparar a minha vida: um exame, uma coisa ou outra. Já veio uma
dentista examinar se eu queria uma dentadura - escreveram, pegaram o RG e o cartãozinho do
SUS, pra pedir uma dentadura. Tão fazendo tudo isso ai”.
Sei Irineu também aponta para os cuidados de saúde de que antes não dispunha: “Eu
acho que as mudanças que tiveram depois de virmos pra cá foi tudo pra melhor, tudo coisa
boa [...] A saúde minha graças a Deus está controlada: o diabetes, a pressão, o coração está
tudo controlado. Temos o posto de saúde aqui pertinho, dois ou três quarteirão, o médico é
muito bom. Ele vem aqui a cada dois meses e o que a gente precisa vai no postinho e eles
atendem. Tem a enfermeira padrão que é uma pessoa muito boa, atende muito bem a gente, dá
muita atenção. Então, aqui é bom por causa disso”.
Seu Abel traz um novo elemento, a autonomia financeira conquistada recentemente:
“[...] então, você não vê dinheiro (no asilo) e não ter dinheiro é uma situação ruim, pra
qualquer pessoa. Agora, aqui já é o contrário. Saí de lá já me devolveram o cartão. Eu não
Página | 151
gasto um salário mínimo pra passar um mês aqui. Agora sobra um pouco. Então, pra mim “tá”
ótimo!”.
E Dona Zélia, aponta principalmente o ambiente, a estrutura física da casa, sem
umidade, lixo no quintal e sem a feiúra da casa anterior: “Minha vida mudou em todos os
sentidos, principalmente no ambiente. Aqui é mais arejado, você já não precisa estar correndo
pondo pano pra não derramar água”.
Dona Maria Rosa, Dona Maria Duffet e seu Irineu apontam para a questão da
acessibilidade: a Vila esta bem localizada e é de fácil acesso ao centro, o ônibus passa na
porta e, em quinze minutos se chega à cidade.
É evidente, nas narrativas, que a inclusão no Programa Vila Dignidade representou
melhoria na qualidade de vida dos idosos, garantindo-lhes segurança e proteções que, de outra
forma, não acessariam.
No entanto, despertou nossa atenção, o fato de nenhum idoso identificá-lo como
política social ou alternativa aos asilos. Para todos eles, é proeminente a questão da moradia;
as demais políticas públicas, que se inter-relacionam na execução do Programa, não são
percebidas como conjunto articulado capaz de originar outra coisa que não uma Casa.
Nem mesmo as condicionalidades do Programa que partem da obrigação de pertencer
a uma classe etária, ser idoso, ou seja, ter mais de 60 anos - além de ser independente para a
realização das atividades de vida diária, ter rendimento mensal de até um salário mínimo,
vivenciar situações de risco pessoal e/ou social, residir no município há pelo menos dois anos
e não possuir imóvel próprio – caracterizam-no como algo além de uma política habitacional.
Quando incitados a falar sobre velhice e envelhecimento começam a aparecer
elementos que podem nos ajudar a entender porque os idosos compreendem o Programa
apenas como política habitacional. Entre eles – e na sociedade como um todo - é recorrente a
idéia de que a velhice esta no outro ou é um devir que esperam não chegar nunca. O medo de
envelhecer se explica pela associação recorrente de velhice/dependência/ demência. Como já
observou Concone:
Creio que pudemos perceber que há um temor ligado ao envelhecimento, um medo de ser velho. Medo mais que justificado, dado que o envelhecimento é visto quase que exclusivamente como uma fase de perdas: perdas físicas, perdas sociais, perdas psíquicas, perdas afetivas. Não deixa de ser um horizonte tenebroso que é necessário afastar.
Concone: 2007: 29
Página | 152
Dona Geni é clara: “[...] eu não me considero “veia”, porque, “veio” mesmo, que vai
se entregando, não tem coragem de fazer serviço. Não tem coragem, se acostuma com a
sujeira. Não é mesmo?”
Na fala de seu Irineu essa associação também é marcante: “Falar a verdade, eu não me
considero muito velho. Porque a pessoa quando é muito, uns fala velho outros fala idoso,
quando é muito velho anda mais debilitado. Não pode fazer as coisinhas dele sozinho. A gente
aqui faz as coisas da gente sozinho.”
Dona Zélia também faz questão de frisar: “Eu nem sei dizer como é ser velho. Não sei
dizer porque eu não sou velha e acho que não vou envelhecer. A gente tem o pensamento bom
e enquanto não tiver gaga mesmo, enquanto não esquecer de tudo, eu serei jovem. Quando
começar a esquecer, ai já não poderei mais andar sozinha, não poderei mais lembrar das
coisas, já estarei velha”.
Seu Abel é enfático: “Acho que não existe velho. Acredito que não! Porque, uma
hipótese, você tem trinta anos, eu tenho trinta e dois. Eu sou mais velho, você já me chama de
velho, mas outro que vem 29, 28, vai te chamar de velho. E assim por diante, vamos que
vamos...”
Dona Maria Rosa, apresenta bons argumentos para não se considerar velha: “Eu não
me acho velha porque eu tenho o espírito jovem - não vou também ficar usando uma coisa de
jovenzinha, eu sei me colocar. [...] Ah, eu não tenho nem idéia de como seja envelhecer. Não
tem gente velha né? Velho é assim: aquela pessoa que está em cima de uma cama, que não
pode mais se locomover... Eu não, eu ando, vou ao supermercado. A turma pede pra ir
comprar as coisas eu vou, pedi pra ir à padaria eu vou, e ando por ai, e faço amizade com todo
mundo”.
Embora nenhum dos idosos assuma o medo de envelhecer, no conjunto, as narrativas
evidenciam a força com que este temor se faz presente no imaginário do grupo e alguns
idosos nos dão pistas de como é traumático quando os outros os reconhecem como velhos.
Dona Zélia fica brava e se ofende quando alguém julga que os moradores da vila são velhos:
“Eu não me considero velha. Velho não anda, ou anda caindo os pedaços. Aqui não é um
condomínio de velho é um condomínio de idoso. Idosa eu sou. Tem pessoa que fala que aqui
é a vila dos velhos, são pessoas cínicas, aqui ninguém se considera velho”.
E seu Antonio não fica atrás na indignação: “[...] o pessoal passa lá na rua, às vezes,
gente que vem visitar aqui diz: “vamos lá visitar os velhinhos”, é muito diminuído, sendo que
Página | 153
a gente está com um pouco de gás ainda. Eu acho essa parte ruim. Até falei pra uma que eu
estava meio de olho nela, é da igreja também, ela vinha aqui fazer culto comigo, eu falei para
ela, ela estava meio investigando eu. Nós estavamos ali nos aparelhos, eu falei pra ela que
esse ponto de vista fica ruim pra nós que ela fala: “Ah, nós vamos lá visitar os coitadinhos
dos velhinhos”.
Diante destes posicionamentos desenha-se um argumento que inconscientemente
justifica o não reconhecimento do Programa como política social. A demanda habitacional é
uma marca de nossa sociedade que não diferencia as pessoas, enquanto que a demanda social
é fator de diferenciação e exclusão. Assim caracterizar o Programa como política social –
como alternativa aos asilos – significa reconhecer-se como diferente e em condição de
inferioridade – é ser velho e depende do poder público para viver. Assim é mais digno habitar
uma Casa que habitar uma instituição.
Para os idosos de idade mais avançada o processo de envelhecimento parece ser mais
consciente, mas no geral, ainda não se consideram velhos porque preservam a autonomia.
Dona Maria Duffet nos diz: “Quando era mais nova não pensava que iria envelhecer, até
alguns anos atrás era tudo normal pra mim; antes de eu ir ao médico e tomar remédio pra
pressão, diabetes e não sei o que. Antes disso eu não achava que era nem nova nem velha. Eu
nem pensava na velhice, achava que eu era conservada e podia fazer tudo sem precisar dos
outros. E quando precisava de alguma coisa a gente pagava tudo numa boa. Hoje ainda não
me acho velha”
Dona Geni também reforça a ideia de Dona Maria: “Eu pensava que não ia ficar
“veia”, pensava que ia morrer logo [...] Por causa do sofrimento eu achava que ia morrer logo
[....] E agora não me considero “veia”. Tô “veia”, mas eu tenho minhas forças pra andar,
tenho aquela disposição de conversar com as pessoas, andar, fazer serviço, limpar as coisas -
limpo uma coisa, limpo outra.”
Seu Antonio admite que é velho, “mas não muito, porque eu tenho espírito de mais
novo, embora agora eu esteja mancando. Saio por ai mancando, mas eu vou para toda parte” .
Seu Adelino é o único que, diante da fraqueza do corpo, já não tem como negar seu
envelhecimento: “Eu considero velho porque já sou de idade. Como vê a palavra está no
registro, no documento e na idade da gente. A gente sente não tendo aquela energia que eu
tinha de moço. Eu já tenho canseira no corpo, tenho cansaço na perna. Tenho canseira,
“tremimento” na perna - passo gelo, às vezes, faço “andada”, como fiz “andada” ontem, mas
Página | 154
sinto canseira. Subir uma subida ataca o cansaço no colo. Tomo remédio pra bronquite. Acho
que prejudica, é isso que eu acho”.
Diante da constatação da velhice vivida, ou que irá chegar um dia, o melhor é estar no
lugar que eles compreendem como o lugar dos velhos por excelência: “Eu imaginava que ia
morar no asilo, pros outros cuidar na minha vida. Porque parente, às vezes, não tem jeito da
gente se enquadrar com parente, “fugenta”, às vezes, tudo por causa do parente. Acho melhor
“ponhar” no asilo, eu não quero esse sofrimento. Ninguém quer sofrer”
Seu Antonio cogita, sem receio, a possibilidade de morar numa ILPI: “Esses dias
estava pensando que de repente é melhor ir para o asilo do que ficar perturbando a família.
Eles trabalham e tem a cabeça deles, o mundo deles é outro, então a gente velho já é um trem
fora da linha pra eles. Se for preciso, não acho ruim morar num asilo, só se os filhos não
quiserem que eu vá e arrumem um jeito de me cuidar.
Para Dona Zélia o asilo também se apresenta como uma boa alternativa para não
morar ou depender dos filhos: “Meus filhos vivem me falando “mãe, a hora que nós tiver
uma casa a srª vai morar comigo”. Um deles falou assim pra mim “mãe, a hora que eu casar
eu vou levar a srª pra morar comigo”, e eu sempre dou essa frase pra eles: “olha, eu prefiro
asilo a ter que morar com um filho” . Deus me livre de morar com filhos!”
O ideário dos idosos acerca do asilo também nos ajuda a entender porque o Programa
não é, por eles, associado à área social: as instituições sociais são lugares de
velhos/dependentes – é o lugar do outro. Não é lugar de se viver mas lugar de ser cuidado.
Parte deles se quer pode se imaginar demandando por cuidados tão específicos. Para
Dona Geni, é impossível se imaginar vivendo num asilo: “Nem quero pensar em ter que
morar em asilo, Deus o livre! Nem quero pensar nisso. Eu não penso em ir no asilo... Acho
que não dá. Lá é muito misturado e eu sou assim: gosto das coisas quietinho, gosto de fazer
meu serviço quietinho, eu gosto de ficar quieta. Lá tem muito “veio”, eu sou “veia” também,
mas lá tem muito “veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo... Nunca fui visitar um asilo, mas
penso que é assim porque, a gente passa de ônibus lá ta aqueles “veio” sentado pra fora. Eu
penso assim comigo”.
Dona Maria Rosa tem a receita para a construção de um asilo que considera ideal,
onde se possa mais que “ficar sentado pra fora”, onde se possa morar “[...] Eu acho assim, que
devia ter um lugar, por exemplo: em Piracicaba tem uma coisa muito boa no asilo, eu achei o
asilo de lá excelente. É assim: tem aqueles que não podem se locomover - eu fui lá há anos,
mas não me esqueço - então, eles ficam num lugar que ficam só as pessoas cuidando no
Página | 155
quarto. Mas, dentro do asilo, é como se fosse aqui, cada um tem sua casa - uma belezinha, as
casas tudo com seu jardinzinho, eles cuidam. Ai que coisa mais linda! Muito lindo! Eu lembro
que quando eu fui visitar eu falei: “ah, quando eu ficar velha eu quero morar aqui”. Então eu
acho que devia ter um lugar assim pra pôr as pessoas. Não deixar jogado. Passa tanta
entrevista, as pessoas falam: “jogaram eu aqui, não vem nem me ver”. Deve ser uma mágoa
pra pessoa. Deus me livre de acabar a vida de um jeito tão triste”.
Colocações tão expressivas nos indicam como se constroem essas teias de significados
que modelam a percepção dos idosos acerca dos asilos: concebem estes lugares como
exclusivo para idosos dependentes, e/ou abandonados pela família - o que eles definem como
velhos, logo, não são lugares para eles – pelo menos não enquanto preservarem sua
autonomia.
Por isso talvez os idosos não associem o Programa em que estão incluídos como
alternativa ao asilo ou instituição de acolhimento, pois no imaginário geral quem demanda por
estes serviços é o outro, o velho dependente.
Neste sentido, pode ser mais dignificante entender o Programa exclusivamente pela
perspectiva habitacional, já que a necessidade de moradia não é exclusiva de um grupo etário
e não gera distinções pejorativas em relação aos demais integrantes da sociedade, como
normalmente acontece com os idosos que são acolhidos nos asilos.
Além disto, os asilos não devem ser um lugar confortável e bom para se viver, como
nos evidencia Dona Geni, ao contar-nos uma conversa que teve com sua ex vizinha: “A
mulher disse assim pra mim: “Viu Dona Geni, a senhora mudou? A Tereza estava falando
que lá é o asilo”. Aí eu falei: “nossa, não sabia que asilo era bom igual lá. Porque lá é um
condomínio fechado, lá tem tudo. Lá até a água pra senhora lavar o rosto na pia do banheiro
é água quente. Tem água quente na pia pra lavar o rosto, não sei se no asilo existe isso”.
3.2.3 A Casa é onde quero estar
No conjunto as narrativas nos evidenciam que no imaginário dos entrevistados a
instituição não é o lugar de estar. Com suas falas os idosos nos esclarecem sobre seu desejo de
estar em Casa e de nela permanecer até a morte, que muitos esperam ser súbita - querem dali
partir para “uma melhor” sem a necessidade dos cuidados de outrem – família ou instituição.
As seguranças proporcionadas pela conquista deste espaço são tanto afetivas e
psíquicas quanto físicas, materiais e sociais. Assim como nas musicas em que a Casa cantada
Página | 156
é projetada a partir de relações afetivas, é fortaleza guardiã dos sentimentos e daquilo que
realmente tem valor (amigos, livros, discos, amor e self) e se transforma em Lar ao agregar
elementos naturais à companhia de alguém que se ama, ou ao promover a interação com o
mundo, a Casa real de nossos colaboradores também é fortaleza - projetada a partir de
necessidades materiais e de vulnerabilidades sociais - guardiã da paz e da tranqüilidade. O
calor do Lar é concha que protege do mundo externo, lugar do aconchego e da proteção
divina.
Como nos mostrou DaMatta o espaço da Casa é o universo privado da família,
parentes, compadres e amigos; lugar privilegiado do aconchego, do repouso e da
hospitalidade; espaço das ações que podem ser condenadas na rua e do tempo dos finais de
semana – tempo interno, de lazer e para ser vivido em família.
Nas narrativas dos idosos são claras essas idealizações. Dona Maria Rosa sonhava em
ter Casa e família: “Eu sempre fui assim: eu queria ter uma família. Eu queria assim, ter
minha casa. Eu sempre falava: “o dia que eu tiver a minha casa eu junto a minha família pra
almoçar na minha casa”.
E qual o tamanho de sua frustração por agora ter Casa, mas não conseguir reunir a
família: “[...] essas coisas não acontecem. Os meus parentes quase não vêm aqui. O pessoal ai
mesmo fala “credo Maria os seus parentes não vem na sua casa”. Eu falo, “eles não vêm
mesmo”. Só essas legítimas. Elas vêm sempre aqui, mas os outros não”.
Mas esta triste constatação não diminui o valor e a importância de sua Casa, nem o
apreço que tem por ela: “Eu adoro, adoro minha casa, adoro o lugar que moro...” A percepção
de Lar de Dona Maria Rosa, assim como o Lar idealizado por Arnaldo Antunes, se relaciona
plenamente com lareira, local da cozinha onde se ascende o fogo que com suas chamas
iluminam, aquecem e transformam os alimentos (Fellipe: 2010) e promove relações afetivas:
“Ah, eu gosto da minha cozinha. Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...
[...] Quando eu quero fazer uma coisa assim, que eu não posso comer muito, eu faço e divido
com o pessoal - levo um potinho na casa de um e fico só com um pouquinho pra mim. Eu já
divido com os outros”.
Para Seu Adelino a percepção da Casa se relaciona com riquezas como segurança,
sossego, tranqüilidade, paz e uma “vida de regalo”: “Minha vida mudou bastante eu estou na
casa de Deus. Agora eu tenho a Casa, já tô mais sossegado, mais aliviado [...]A riqueza maior
foi a saúde, que Deus deu pra comer, e agora deu a casa aqui, porque foi feito o papel”.
Livrar-se dos alugueis torna a necessidade de trabalhar menos preponderante e lhe possibilita
Página | 157
desfrutar de uma vida mais tranqüila, com tempo de sobra para o lazer: “Hoje não tenho
necessidade de trabalhar. É pescar, fiz um covo feio que nem eu mesmo. Mas o feio tem
direito de ir no rio pescar”.
Seu Antonio fala do aconchego e calor do seu Lar. Quando se ausenta não vê a hora de
retornar para Casa: “[...] dei graças quando cheguei aqui, abri a porta e entrei pra dentro,
quando recebi o calor da minha casa”. Sente orgulho de possuir este espaço: “Quando
converso com as pessoas conto com muito orgulho que moro aqui, todo mundo acha que aqui
é uma maravilha. E aqui é muito adequado para os idosos”.
Para Seu Irineu, que passou toda a vida no mesmo lugar, a Casa é sua maior referência
no mundo - o que tem grande significado quando se considera que o mundo de um
caminhoneiro é imenso. Enquanto pilotou caminhão, sua Casa foi o porto seguro onde mulher
e filho estavam sempre à sua espera. O contraponto com as estradas – lugar de passagem onde
viveu a maior parte de sua vida - é o território da Casa, ponto certo de chegada: “A gente
acostuma num lugar, eu acostumei porque, quando trabalhava com caminhão, sabia que toda
semana, pelo menos um dia na semana, passava lá”.
Em sua narrativa Casa e casamento se imbricam dando sentido ao seu lugar de estar no
mundo. Como nos sugeriu DaMatta; “de casa vêm também casamento, casadouro e casal,
expressões que denotam um ato relacional, plenamente coerente com o espaço da moradia e
da residência” (DaMatta: 1997: 54). Por temor de abalar suas relações familiares sentiu
quando teve que se mudar pra Vila: “Francamente, o dia que eu me mudei, eu não sei, parece
que eu saí do ar. Falar a verdade eu até chorei”.
Deixar pra trás o filho e os netos não foi tarefa fácil de realizar, a idéia de perder o
contato com pessoas tão querida lhe assombrava: “Quando eu sai de lá eu pensava: “poxa
vida agora quero ver eu sair daqui, ficar longe dos meus netos, da minha família, do filho,
da nora, ficar longe deles vai ser difícil”. Eu não esperava que seria assim, que eles viriam
me visitar sempre. Toda semana, pelo menos duas vezes, ele vem. Ele vem, minha nora vem,
os netos, todos estão sempre por aqui”.
A certeza de que a mudança não abalaria os vínculos familiares deixou o processo
mais ameno e proporcionou outras reflexões: “Sei que foi difícil pra mim no começo, mas
depois eu fui pegando o jeito, agora acostumei. [...] e analisando bem, eu pensei comigo: “é
uma coisa que, eu sei que tá garantido aqui pra mim até o dia que morrer, porque depois que
morrer, o caminho certo é o cemitério”.
Página | 158
Para Dona Geni a conquista da Casa pôs fim a uma vida de instabilidade e
inseguranças proporcionando autonomia financeira. Sua percepção de Casa passa também
pela idéia de porto seguro. Lugar de paz e de proteção divina: “Aqui eu sei que é do governo,
é emprestado e quando eu morrer passa pra outra pessoa idosa, mas mesmo assim estou no
céu!”.
Também para Seu Abel a autonomia financeira proporcionada pelo novo lar é fator de
segurança e tranqüilidade: “Não tem lugar melhor no mundo do que aqui viu! [...] Aqui é
muito tranqüilo, graças à Deus!”
Dona Maria Rosa que antes, com muita dificuldade pagava o aluguel de uma Casa
muito embolorada, que não batia sol e que lhe causava problemas de saúde aponta para o
alivio em se livrar do aluguel e, mesmo com a baixa aposentadoria, agora viver melhor: “[...]
eu passei a viver bemmmm mesmo depois que eu mudei aqui. Da minha vida inteira aqui é o
lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem comparação, com os outros lugares”. A
segurança em saber que agora não corre o risco de ser despejada nem de ter que ficar sem
comida pra arcar com os custos do aluguel é fator de tranqüilidade: “É que aqui eu sei que só
vou sair daqui pra últimas moradas. E, se ficar dependente, vou pra um asilo ou, na casa de
familiar”.
Para Dona Zélia a segurança da Casa, é física, sua Casa a protege da força da natureza:
o telhado não pinga na chuva, as paredes não mofam e o espaço é arejado. E também lhe
proporciona relações afetivas com a vizinhança, o que a faz se sentir mais segura: “[...] Por
essa e por outras aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura”.
Para Dona Maria Duffet a Casa idealizada, desejada e alcançada é relicário imenso,
guardião das histórias impressas em seus objetos. Assim como a Casa idealizada e cantada por
Elis Regina a Casa de Dona Maria Duffet é fortaleza que protege seus bens mais valiosos e a
faz encontrar a paz e a tranqüilidade do Lar - sua conquista pôs fim a uma trajetória de
constantes mudanças e necessidade de se desfazer dos preciosos bens que ainda lhe restaram.
Nenhum dos idosos entrevistados pensa em sair do Programa. A própria Dona Maria
Duffet reforça, inúmeras vezes, que não tem intenção de se mudar dali, mesmo com a
possibilidade de rever o seu dinheiro e assim ter condições de adquirir uma Casa própria:
“Mas se eu chegar a pegar esse dinheiro (poupança retirada no Plano Bresser – Collor)
pretendo ajudar alguma obra de caridade. Tirar o suficiente pra viver, pagar uma faxineira
boa, de confiança, pra vir toda semana fazer uma faxina, mudar alguma coisa aqui dentro, pra
Página | 159
conforto da gente e o resto... Mas mudar daqui não penso não. Estou muito bem, graças à
Deus”.
Para Seu Irineu é certo que sua desvinculação do Programa se dará apenas pela morte:
“[...] o dia que a gente faltar, o meu filho com a minha nora, podem tirar toda a mudança, tudo
o que tiver aqui dentro, só deixar a casa vazia”. Por esta certeza ele esta sossegado e não tem
mais nada que possa querer na vida “[...] porque eu penso que aqui tem tudo que eu quero, a
minha mulher sabe fazer tudo, ela, como cozinheira, nossa! Tudo que eu gosto ela faz. Cama
pra dormir tem, eu posso dormir o dia inteiro, se eu quiser descansar. O que mais eu vou
querer?”
Seu Abel nem teria porque se mudar, pois esta no melhor lugar do mundo: “Aqui é
muito tranqüilo, graças à Deus! Graças à Deus! Eu me relaciono bem com todos os vizinhos,
com todos eles. É muito bom demais”.
E seu Antonio também reforça a segurança que sente por saber que dali não precisará
se mudar mais: “Essa casa não é minha, mas até a gente apitar na curva, como diz o ditado do
pessoal, posso viver aqui, a gente fica tranqüilo”. Apenas ele, entre todos os entrevistados, se
pudesse, estaria em outro lugar. Seu sonho é em ter um sitio: “[...] o que eu queria mesmo era
estar no sitio. Aqui esta mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e
criando alguma coisa”.
E Dona Maria Rosa, que teve toda a sua narrativa colorida por sua relação com a Casa,
finaliza: “Da minha vida inteira aqui é o lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem
comparação, com os outros lugares”.
As seguranças proporcionadas pela Casa permitem aos nossos colaboradores projetar o
futuro – se antes não sobrava tempo pra pensar além das necessidades imediatas, hoje, no
aconchego e tranqüilidade do lar, é possível querer mais que as condições necessárias para
sobreviver.
Seu Antonio quer, no futuro, encontrar uma companheira, desfrutar da herança de seu
avó, comprar um sitiozinho e ter uma plantação.
Dona Geni embora ache que velho não tem futuro, espera, ainda fazer muita coisa na
vida. Com o dinheiro que agora sobra: “comer bem, andar bem limpinha. Futuro a gente não
tem mais porque já é velho, como é que a pessoa vai ter futuro? O que tiver que fazer é pra
comer, pra beber, se vestir, ir pra uma igreja, fazer uma visita. Isso é que eu espero!
Seu Irineu espera viver mais pra poder desfrutar da esperada aposentadoria – que deve
chegar quando completar 65 anos de idade: “[...] o meu sonho é, depois que aposentar, viver
Página | 160
mais oito ou dez anos pra desfrutar um pouco da aposentadoria. Eu acho que chego nisso[...]
Então, eu acredito que, controlando o diabetes e tomando meus remédios certo, é capaz que
eu dure mais um tempinho, mas não dá pra calcular porque o corpo é que nem uma máquina.
Você vai indo prá rua e, de repente, ‘puf’”.
Seu Abel, com humor, espera ganhar na loteria: “Meu futuro? Só se acertar na mega
sena, porque de aposentadoria não vai passar disso aqui. É isso aqui o resto da vida, é ou não
é?”.
Dona Maria Rosa é a personagem que melhor ilustra nosso enredo das percepções e
seguranças que uma Casa pode proporcionar à pessoa que envelhece. Dona de uma história
marcada por sofrimento e instabilidade, ela experimenta, na velhice, a felicidade que antes
não conhecia e gosto pela vida: “Tudo que eu falava antigamente, que eu não queria mais
viver, hoje eu falo, “eu amo viver, que coisa mais gostosa”. Sim, já fiquei cansada da vida -
no tempo que eu sofria. Mas hoje, eu adoro viver, nossa, eu amo viver”.
Com a vida cheia de novas possibilidades, “[...] nem tenho tempo de pensar na
solidão. Não tenho mesmo!” Todo dia eu arrumo uma coisa pra fazer, e todo dia eu sou a
mesma coisa”.
Essa idosa que já desejou a morte, acreditando ser essa a saída para por fim ao seu
sofrimento, hoje nos dá a receita de sua felicidade: “[...] que vantagem tem você ficar brava?
Tem dois tempos, um de ficar brava e outro de ficar boa. Então porque já não anda boa o
tempo inteiro?” Mas não é mais fácil? Vai ter que ficar brava? Você vai sofrer. Você não vai
ter que ficar boa depois? Então porque já não andar o tempo inteiro bem com a vida? Eu
adoro viver aqui, que delicia!”
O que pode querer da vida agora é desfrutar de tudo de bom que lhe esta reservado: “O
que eu quero da vida é passear bastante. Eu já falei que a partir do ano que vem eu vou
economizar um pouco pra passear mais”.
Nas canções e nas narrativas percebemos que a noção de Casa é estritamente vinculada
à segurança dos afetos, mas, da arte para a realidade, as narrativas nos mostram que esta
segurança se amplia para a proteção social. A Casa é a grande guardiã das emoções, da
individualidade e da subjetividade de seus moradores. Lugar da intimidade protegida, a partir
do qual as pessoas se projetam no mundo e o apreendem, a Casa é o lugar privilegiado para
construir a si mesmo e a relação com os outros, é lugar de ser, mas, é também lugar de ter
tranquilidade, conforto, segurança de acolhida, paz e uma velhice mais protegida e com
qualidade de vida.
Página | 161
3.3 Estado e Proteção Social: Breves considerações
Robert Castel (2005) nos diz que nas sociedades modernas, constituídas por indivíduos
livres, a proteção é garantida, primeiro, pela propriedade - da vida, da liberdade e dos bens.
Conforme preconizado por Locke, nestas sociedades:
A propriedade é o alicerce de recursos a partir do qual um individuo pode existir por si mesmo e não depender de um patrão ou da caridade de alguém. É a propriedade que garante a segurança em face das circunstâncias imprevisíveis da existência, da doença, do acidente e da miséria de quem não pode mais trabalhar.
Castel: 2005: 18
Assim, o Estado Liberal tem, em sua origem, o dever de proteger as pessoas e seus
bens, ser um Estado de segurança e proteção: a proteção civil fundada no Estado de direito e a
proteção social fundada na propriedade privada.
No Estado Moderno é através da propriedade que o individuo se torna capaz de
proteger-se a si mesmo. Aos não proprietários, ou àqueles que só dispõem de sua força de
trabalho, resta a insegurança social que resulta da vulnerabilidade das condições que condena
as pessoas a viverem “ao Deus dará”, à mercê do mínimo acidente de percurso (Castel: 2005):
A insegurança social é uma experiência que atravessou a história, discreta em suas expressões porque aqueles que passaram por ela quase nunca tinham a palavra – salvo quando ela explodia em motins, revoltas e outras “emoções populares”-, mas carregada de todas as penas e de todas as angústias cotidianas que constituíram uma boa parte da miséria do mundo”.
Castel: 2005: 28
O cerne da problemática da questão social, não resolvida pelos princípios liberais, é a
criação de um desnível entre os membros da sociedade: a separação entre os sujeitos de
direitos (proprietários) e os sujeitos sem direitos (trabalhadores não proprietários) – estes
submetidos à insegurança social.
Para Robert Castel o desenvolvimento de redes de segurança e de sistemas de
“seguridade social”, foi a resposta da Europa Ocidental à insegurança social. A construção
deste sistema teve dois pressupostos como ponto de partida: 1) a proteção do trabalho com a
garantia de direitos aos trabalhadores – acesso à cidadania social através da consolidação do
Página | 162
estatuto do trabalho; 2) o acesso em massa à propriedade social, uma propriedade para a
segurança, colocada à disposição daqueles que estavam excluídos das proteções garantidas
pela propriedade privada, como exemplo, o direito à aposentadoria – uma propriedade do
trabalhador que visa garantir-lhe segurança fora do trabalho.
A solução encontrada para a insegurança social nos Estados Europeus passou pela
consolidação do Estado de Bem Estar Social, um Estado que não resolveu, de fato, o impasse
da desigualdade de condições, mas criou sistemas de proteção que buscavam superar “o
caráter irredutível da oposição proprietários/não proprietários, graças à propriedade social,
que garante aos não proprietários as condições de sua proteção” (Castel: 2005: 36) 63.
Assim, a cidadania social dos europeus foi conquistada através da consolidação do
estatuto do trabalho, ou seja, a maior parte da população, constituída de não proprietários, era
assalariada com direitos comuns reconhecidos constituindo não uma sociedade de iguais –
como preconizado nos princípios liberais – mas uma sociedade de semelhantes64.
No caso brasileiro, a consolidação de nosso Estado foi marcada pela injustiça e pela
desigualdade. Tereza Sales65 acrescenta mais um elemento, essencial na construção da
cidadania no Brasil, a saber, a relação do mando/subserviência66.
Esta autora nos dá os subsideos para compreendermos a complexa trajetória de
consolidação da cidadania civil e social em nosso país e nos ajuda a compreender porque, por
aqui, as políticas sociais sempre exerceram papel de coadjuvante nos modelos político-
econômicos adotados ao longo de nossa história e porque nossa cidadania social foi sempre
renegada pelos interesses das elites dominantes.
63 Este foi o cenário dos países europeus até a década de 70. Nos anos 80 tem inicio o desmantelamento do Estado de Bem Estar Social com o enfraquecimento do Estado e das organizações coletivas. Atualmente nos países europeus a insegurança social é explorada não apenas na mídia e nos discursos políticos, mas evidenciada pelos elevados índices de desemprego, pelo achatamento dos salários e constantes manifestações populares e movimentos de protesto que tomaram contam dos espaços públicos, à partir de 2011, tendo à frente, principalmente, jovens desempregados ou submetidos a “contratos flexíveis” de trabalho, que os colocam, segundo definição recentemente formulada por intelectuais contemporâneos na condição de “precariado”. Para uma analise mais detalhada ver: Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas; David Harvey, ET AL; tradução João Alexandre Peschanski.. ET AL: São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012. 64 Uma sociedade de semelhantes é uma sociedade diferenciada, portanto hierarquizada, mas na qual todos os membros podem manter relações de interdependência porque eles dispõem de um fundo de recursos comuns e de direitos comuns (Castel: 2005: 36). 65 Sales, T. Raízes da desigualdade social na cultura brasileira. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 25, ano 9, junho de 1994 (p. 26 – 37). 66 A autora nos mostra que conceitos como ‘democracia racial’ (Gilberto Freyre) e ‘homem cordial’ (Sergio Buarque de Holanda) funcionam internamente como mediadores das relações de classe, ajudando a dar uma aparência de encurtamento das distâncias sociais. Estes conceitos tão propagandos no pensamento social brasileiro contribuem para que situações de conflito não resultem em conflito de fato, mas em conciliação, evidenciando que a questão da desigualdade social é enrustida pelo fetiche da igualdade.
Página | 163
Nos primórdios, a transposição do mercantilismo europeu para a colônia brasileira
caracterizou-se por um padrão de povoamento pautado na formação de núcleos dispersos
mantidos pelo trabalho escravo de indios e negros trazidos da Africa – o domínio rural
determinou a ocupação do território e configurou os latifúndios.
Por séculos (1500 – 1888) o trabalho escravo modelou a sociedade e estabeleceu as
relações de produção. Neste período a estratificação social esteve formatada em dois grupos
distintos: escravos (oprimidos) e senhores (‘elite’ opressora). Entre eles existia uma porção
pequena de homens livres e pobres que dependiam da tutela dos fazendeiros locais para
garantir sua segurança.
Donos do poder, estes fazendeiros controlavam os aparelhos de justiça, os delegados
de polícia e as corporações municipais e amparavam o homem comum de todos esses
controles mantendo-o sob a sua proteção. Assim, exerciam sobre ele as mesmas formas de
violência praticadas com suas peças de escravos.
Neste contexto, os direitos básicos: o direito à vida, à liberdade individual, à justiça, à
propriedade, ao trabalho; os direitos civis chegavam a esta parcela de homens livres como
uma dádiva do senhor de terras. Essa é a expressão máxima da cidadania concedida - que tem
seus argumentos na cultura política da dádiva e se vincula, contraditoriamente, à näo-
cidadania do homem livre e pobre, que dependia dos favores do senhor territorial para poder
desfrutar dos direitos elementares de cidadania civil.
Consolida-se no Brasil uma cultura política que, para a autora, é uma espécie de
cimento das relações de mando e subserviência - subserviência como o pedir, para além do
obedecer, que faz parte do cerne da cultura política da dádiva.
O drama do mando e subserviência sofreu mudanças com o passar dos anos, mas não
foi superado, e com o fim da escravidão a subserviência incorporou os escravos libertos67. A
abolição da escravidão, acontecimento que poderia marcar o rompimento com esse modelo,
foi antes, responsável por sua perpetuação, pois se associou ao coronelismo, a patronagem e
ao clientelismo.
Antes da República o homem livre para “estar seguro” dependia da tutela de um
grande latifundiário. Na República, os direitos básicos de cidadania foram suplantados pela
dádiva e as desigualdades aprofundadas - o liberalismo aportado por aqui não rompeu a
relação mando/subserviência e a implantação da República perpetuou a cidadania concedida.
67 Exemplos de resistência à violência do mando, apresentado por Sales, foram os cangaceiros e os movimentos migratórios, mas, apesar destas manifestações, a implantação da República perpetuou a cidadania concedida e o liberalismo em nada contribui para instaurar direitos elementares de cidadania.
Página | 164
A leitura de Sales nos esclarece os porquês da questão social no Brasil historicamente
estar fora das responsabilidades do poder público. Pela lógica da dádiva os donos do poder
local (elite agrária e, posteriormente profissionais liberais e primeiros industriais) respondiam
à insegurança social financiando ações caritativas destinadas aos pobres.
Enquanto poder público a intervenção ficava por conta de suas policias – assim se
eximiam de qualquer aproximação com a questão social e abafavam a construção da cidadania
social. Enquanto figuras políticas, buscavam se destacar na sociedade destinando “recursos
próprios 68 ” para o financiamento de ações caritativas desenvolvidas por organizações
privadas, comumente vinculadas à Igreja Católica69.
Longe da perspectiva do direito, estas organizações tinham seu trabalho fundamentado
na lógica da benesse e da caridade70 e carregavam sentidos específicos e contraditórios: 1 -
aparentavam encurtar as distancias aproximando semelhantes – os filhos de Deus - pelo ato de
bondade do “verdadeiro cristão” (pessoas que compõem o poder local e que, por estarem em
condições privilegiadas, podem praticar a caridade); 2 - perpetuavam uma tolerância social
que reconhecia o mendigo como personagem legítimo do mundo da pobreza - próximo e
acolhido pelas demais camadas sociais através da caridade religiosa e; 3 - na contramão,
evidenciavam as vulnerabilidades dos que nada possuíam reforçando os desníveis sociais e
ampliando o poder de concessão dos grupos privilegiados.
Tardiamente, a década de 30, do século passado, marcou o inicio da urbanização das
cidades brasileiras decorrente da intensificação do processo de industrialização. Neste período
vivemos a alternância cíclica de governos autoritários e democráticos e, mais uma vez, a
política da dádiva substitui os direitos de cidadania.
Neste período as primeiras mobilizações dos trabalhadores urbanos pressionavam o
Estado por algum tipo de proteção que respondesse à crescente desigualdade e a questão
68 A expressão vem entre parênteses porque, comumente, quando as doações provinham de agentes públicos esses recursos também eram públicos, frutos de emendas parlamentares estaduais ou federais ou outras fontes de recursos à que o legislativo pode usufruir. No entanto, a maneira como as doações eram noticiadas, por vezes, davam a impressão de se tratarem de recursos próprios, quando na verdade, próprios eram apenas os interesses em doar. 69 Estudando a história de um asilo centenário – o asilo São Vicente de Paula de Itatiba – S.P - para construção de TCC do curso de Especialista em Políticas Públicas, chamou nossa atenção a repercussão destas doações na imprensa local. Freqüentemente os jornais destacavam doações feitas por figuras políticas, não no papel de políticos locais, mas de católicos devotos, que como bons cristãos se sensibilizavam pelas causas sociais. Neste ato é reforçado e ampliado o poder do individuo – e não do Estado - de conceder cidadania para além daqueles que estão sob sua tutela - os despossuídos que perambulavam pela cidade ameaçando as “pessoas de bem”. 70 Aqui o verbo ter poderia ser mantido no presente porque, ainda hoje, parte destas instituições compõem a rede socioassistencial e frequentemente demandam por capacitações para uma pratica garantidora de direitos.
Página | 165
social, que até então era resolvida pela policia, passa a ser considerada na agenda política do
presidente Getúlio Vargas.
São deste período a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, os
Institutos de Aposentadorias e Pensões e as primeiras legislações trabalhistas que
asseguravam alguns benefícios aos trabalhadores urbanos, mas no geral, o modelo de proteção
social adotado manteve em seu cerne a lógica da dádiva refletindo “uma política
governamental corporativista e personalista, em que predominavam interesses particulares dos
dirigentes, em troca de favores” (Belgini: 2006).
No governo Vargas as ações desenvolvidas pelo Estado fogem da caridade cristã para
desembocarem no assistencialismo, e se caracterizam essencialmente pela distribuição de
ajudas materiais às classes mais empobrecidas71. Belgini nos diz que as medidas de proteção
social assumidas entre 1930 e 1954, trouxeram ganhos para o trabalhador como: a instituição
do salário-mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, as férias remuneradas, a proteção do
trabalho da mulher e do menor, a assistência à saúde, à maternidade, à infância e uma série de
outros serviços assistenciais e educacionais.
No entanto, mais uma vez se evidencia, em nossa história, a base da política da dádiva
presente nestas tentativas de construção da cidadania, pois, “Getúlio Vargas estabeleceu uma
política governamental paternalista e, usando os meios de comunicação, difundiu a imagem
de “pai dos pobres”, nascendo daí, as bases populistas de seu governo” (Belgini: 2006: 20).
Estas ações populistas carregavam a áurea de um Estado de Bem Estar que nunca
chegou a ser implantado no Brasil e, ao mesmo tempo em que concediam direitos e benefícios
limitavam a ação política dos trabalhadores e ampliavam a acumulação capitalista por parte
dos empregadores. Tal dualidade, pensada na perspectiva de Sales, tem sua origem na cultura
da dádiva, e se repetirá no período militar, quando:
[...] conhecemos um grande progresso na institucionalização da política social, de que são exemplo a criação do Sistema Nacional de Previdência Social e o BNH, porém essas estruturas são usadas para legitimar o regime militar, com mecanismos de controle, ao eliminar-
71 Em 1942, é fundada a Legião Brasileira de Assistência – LBA, visando apoiar as famílias dos soldados brasileiros que lutavam na Itália. É Dona Darcy, mulher do Presidente Vargas quem tomou frente da instituição e liderou as mulheres que participaram do esforço de guerra que se fazia no país. Ao término da Guerra, em 1946, decidiu-se pela continuidade da LBA, agora desenvolvendo um trabalho na área da infância e da maternidade, ainda sob os cuidados da Primeira-Dama. In: Belgini, P. "Assistência Social: Direito Ou Favor – Um Estudo Sobre As Famílias Nos Programas Sociais Da Prefeitura De Itatiba (SP)" Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Serviço Social à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, sob orientação da Profª. Drª. Marta Silva Campos, 2006. Disponível em www.dominiopublico.gov.br.
Página | 166
se qualquer participação, além de se dar continuidade ao modelo desigual e fragmentado de atendimento à população.
Belgini: 2006: 21
Sales nos diz que apenas em meados dos anos de 1960 rompemos com a perspectiva
da cidadania concedida, não por vontade própria, mas pela expulsão dos trabalhadores rurais
dos domínios do campo, devido à reestruturação implantada com a introdução de tecnologias
na atividade produtiva agrícola.
Neste período, nos centros urbanos a articulação do movimento estudantil contra
restrições às liberdades civis, impostas pelo regime militar, fomentava a emergência dos
movimentos sociais.
Fontoura (2008) vê com otimismo as manifestações populares que emergiram após a
década de 60, pois carregavam a possibilidade de mudança. Para a autora, os movimentos
sociais foram uma inovação que impulsionou a efetivação de uma cultura mais participativa,
forçou a inclusão de novos agentes na área política institucional, desenvolveu novas
estratégias políticas e contribuiu para a construção de uma identidade coletiva.
A contribuição destes movimentos para o fim da ditadura nos anos 80 é indiscutível e
se expressa no fortalecimento da sociedade civil que, pela primeira vez, participa da
elaboração de nossa Carta Constitucional (1988) imprimindo nela uma perspectiva de
cidadania mais plena.
Na Constituição Federal os direitos sociais são reconhecidos, legitimados e garantidos,
dentre eles, o direito à Seguridade Social, entendida como um conjunto integrado de ações
dos Poderes Públicos e da sociedade, nas áreas de Saúde, Previdência e Assistência Social
destinadas a assegurar direitos” (CF: art. 194).
Fischer nos mostra que em tal conquista configura-se um paradoxo:
Mas esta [Constituição] seria um símbolo do paradoxo que caracterizaria o Brasil nos anos subseqüentes: a consolidação de direitos crescentes e universalistas, que deveriam garantir o acesso dos cidadãos aos mais diversos bens e serviços, encontraria um Estado falido, incapaz de assumir seu papel de provedor.
Fischer: 2002:42
Belgini nos explica que estas conquistas se deram no mesmo momento de
aprofundamento da crise econômica, onde a política de caráter neoliberal trouxe
Página | 167
privatizações, privilégio do capital financeiro e retração das responsabilidades do Estado,
apostando-se em um Estado Mínimo.
Apesar de toda luta e reivindicação que resultaram na Constituição de 1988, o que
vemos hoje, com a redefinição do papel do Estado à luz das politicas ideológicas neoliberais,
é a supervalorização dos interesses do mercado em detrimento da garantia dos direitos sociais.
Como resultado a descentralização das ações e a terceirização de bens e serviços públicos se
conjuga com o retorno ao debate sobre a sociedade civil e sua responsabilização diante da
oferta de serviços de interesse público.
Neste mesmo Estado as demandas de trabalhadores, rurais ou urbanos, dentre elas a
bandeira da Reforma Agrária e a luta por moradias de interesse social nos grandes centros –
são propagadas quase que como delírios de grupos extremistas e baderneiros, são duramente
criminalizadas, e os movimentos sociais constantemente expostos a confrontos com a policia
repressora.
Em nossa sociedade o direito à moradia - efetivado pela conquista da Casa Própria – é
distorcido e propagandeado como sonho a embalar as noites de expressivas parcelas dos
trabalhadores mantendo-os vivos e dando-lhes forças para continuar vivendo, trabalhando e se
articulando no desejo de realizar este sonho.
Muito além da esfera individual este desejo se propaga no imaginário social, e pode
ser percebido tanto pela intensidade com que impulsiona o setor imobiliário quanto pela
maestria com que tem sido explorado por marqueteiros políticos dos governos Lula e Dilma
Roussef: o Programa de governo Minha Casa, Minha Vida72 lançado, no final do segundo
mandato de Lula, serviu de plataforma para a campanha eleitoral de Dilma garantindo a
continuidade do Partido dos Trabalhadores no comando do Governo Federal.
Contudo, parcela significativa da sociedade não realiza esse sonho ao longo de suas
vidas produtivas e chega à velhice demandando por maiores cuidados tanto da família –
quando as têm - quanto da sociedade e do poder público.
72 O Programa Minha Casa Minha Vida foi lançado pelo governo federal em abril de 2009 com a pretensão de ser o maior programa habitacional da história do Brasil. Pensado para reduzir o déficit habitacional do país, inicialmente previu a contratação de um milhão de residências para as famílias brasileiras nos centros urbanos e zona rural, incluindo as famílias com rendimento mensal de até três salários mínimos. Entrevista de Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na cidade de São Paulo, ao jornal El Pais, analisa o cenário atual do Programa e a dinâmica do capital imobiliário especulativo, que envolve o despejo de famílias, o desperdício abusivo de dinheiro público e os investimentos despropositados. Borges, Beatriz; “ O Minha Casa Minha Vida Enxuga gelo”; El País – Política; São Paulo; 27.01.2014; conteúdo virtual disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/27/politica/1390859331_258001.html (último acesso: 06/02/2014).
Página | 168
Os idosos entrevistados nesta pesquisa são parte deste contingente de pessoas que, na
velhice vivem o acúmulo das desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas, fruto de
nosso processo histórico usurpador que, de forma perversa, delimitou condições bastante
desfavoráveis para a aquisição da Casa própria e preservação da autonomia.
Estes fatores tornam imprescindível a atuação do Estado na oferta de proteção aos
idosos, que por conta própria não podem garanti-la. Neste contexto é relevante discutir a
oferta e a qualificação dos serviços destinados ao atendimento das pessoas idosas.
Nesta discussão investigarmos o que representa para os velhos ter/não ter Casa e quais
seguranças são garantidas pela propriedade desse lugar/espaço nos apresentou outros tons
para pensarmos instituições que promovam a dignidade humana, que não descartem a riqueza
simbólica impregnada no conceito de Casa e que não a destitua dos sujeitos
institucionalizados.
3.3.1 A proteção à velhice na politica de assistência social73
A Constituição de 1988 foi marco na ampliação da compreensão sobre a assistência
social (deixa de se pautar em princípios previdenciários – contributivos para tornar-se política
pública), destinada também à proteção da velhice: garantia de renda (beneficio de um salário
mínimo) ao idoso que não possuir meios de prover sua própria manutenção (Art. 203) e
responsabilização da família, sociedade e Estado pelo amparo às pessoas idosas (Art. 230).
A consolidação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS 74 efetivou a
assistência social como direito do cidadão e dever do Estado e como meio de “prover proteção
73 Este texto é resultado da discussão apresentada no Grupo de Trabalho Cultura, Velhice e Envelhecimento: olhares cruzados, da 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia: Desafios Antropológicos Contemporâneos, realizada em julho de 2012, na PUC-SP. Artigo Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_28_RBA/programacao/grupos_trabalho/artigos/gt22/Janete%20da%20Silva%20Lopes.pdf (último acesso em 18/03/2014). 74 Antecede a construção do Sistema Único de Assistência Social a Constituição Federal de 1988, que efetiva a Assistência Social como política pública; a Lei Orgânica da Assistência Social (1993), que inicia o processo de construção da gestão pública e participativa da assistência social através de conselhos deliberativos e paritários nas esferas federal, estadual e municipal; a Norma Operacional Básica (1997) que conceitua o sistema descentralizado e participativo, ampliando o âmbito de competência dos governos Federal, municipais e estaduais e instituindo a exigência de Conselho, Fundo e Plano Municipal de Assistência Social para que o município possa receber recursos federais; a sua reedição em 1998 quando diferenciava serviços, programas e projetos; ampliava as atribuições dos Conselhos de Assistência Social; criava espaços de negociação e pactuação (Comissões Intergestora Bipartite e Tripartite, que reúnem representações municipais, estaduais e federais de assistência social); a Política Nacional de Assistência Social (2004) que estabelece diretrizes e princípios congruentes com a C.F e LOAS para a implantação do Sistema Único de Assistência Social SUAS; reitera a concepção de que só Estado é capaz de garantir os direitos e o acesso universal aos que necessitam de assistência social e, por fim, a Norma Operacional Básica – NOB/SUAS (2005) que constrói as bases para a implantação do SUAS.
Página | 169
à vida, reduzir danos, monitorar populações em risco e prevenir a incidência de agravos à vida
em face das situações de vulnerabilidade” (NOB/SUAS: MDS: 2005).
Para materializar a proteção social75 o SUAS estrutura-se em rede socioassistencial,
composta por serviços, programas, projetos e benefícios, organizados nas modalidades de
Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, e deve articular-se com outras políticas
sociais para garantir direitos e condições dignas de vida (NOB/SUAS: MDS: 2005).
A Proteção Social Básica é a modalidade de atendimento destinada à prevenção de
situações de vulnerabilidade. Além dos Centros de Convivência para Idosos – CCI e o
atendimento realizado nos domicílios do idoso, prevê o Beneficio de Prestação Continuada –
BPC76, garantia de renda, no valor de um salário mínimo, aos idosos com 65 anos de idade ou
mais, que não recebem benefício previdenciário, ou de qualquer outro regime de previdência,
com rendimento mensal familiar per capito inferior a ¼ do salário mínimo.
A Proteção Social Especial é definida na Política Nacional de Assistência Social
(MDS: 2004) como a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e
indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social77.
Divide-se entre serviços de Média Complexidade78 e de Alta Complexidade. Na Média
Complexidade dispõe do Serviço de Proteção Especial para pessoas com deficiência, idosos e
suas famílias, que pode ser ofertado nos Centros de Referência Especializados de Assistência
Social - CREAS, no domicilio do Idoso ou em Centro-Dia.
A Proteção Especial de Alta Complexidade é a garantia de proteção integral: moradia,
alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram
sem referência, e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo
familiar e, ou, comunitário (PNAS: MDS: 2004).
75 A proteção social de Assistência Social consiste no conjunto de ações, cuidados, atenções, benefícios e auxílios ofertados pelos SUAS para redução e prevenção do impacto das vicissitudes sociais e naturais ao ciclo de vida, à dignidade humana e à família como núcleo básico de sustentação afetiva, biológica e relacional (NOB/SUAS: MDS: 2005) 76 O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – BPC-LOAS, é um benefício da assistência social, integrante do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, pago pelo Governo Federal, cuja a operacionalização do reconhecimento do direito é do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e assegurado por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência às condições mínimas de uma vida digna. In: http://www.previdencia.gov.br/conteudoDinamico.php?id=23 (último acesso em 01.05.2012). 77 Por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras (PNAS: MDS: 2004). 78 São aqueles que oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos - familiar e comunitário - não foram rompidos (PNAS: MDS: 2004).
Página | 170
Ela é ofertada nos municípios, em sua maioria, por organizações sociais79 e entre os
Serviços que compõem sua rede encontram-se o Serviço de Acolhimento Institucional, que
pode ser ofertado na modalidade de Abrigo Institucional ou Casa-Lar, e as Repúblicas de
Idosos. Descrevemos a seguir, as principais distinções do atendimento ofertado em cada um
destes equipamentos:
• Abrigo Institucional: atendimento em unidade institucional com característica
domiciliar que acolhe idosos com diferentes necessidades e graus de dependência. Deve
assegurar a convivência com familiares, amigos e pessoas de referência de forma contínua,
bem como, o acesso às atividades culturais, educativas, lúdicas e de lazer na comunidade. A
capacidade de atendimento das unidades deve seguir as normas da Vigilância Sanitária,
devendo ser assegurado o atendimento de qualidade, personalizado, com até quatro idosos por
quarto (Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009);
• Casa Lar: atendimento em unidade residencial onde grupos de até 10 idosos
são acolhidos. Deve contar com pessoal habilitado, treinado e supervisionado por equipe
técnica capacitada para auxiliar nas atividades de vida diária integral (Tipificação Nacional
dos Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009);
• Repúblicas: serviço destinado a idosos que tenham capacidade de gestão
coletiva da moradia e condições de desenvolver, de forma independente, as atividades da vida
diária, mesmo que requeiram o uso de equipamentos de autoajuda (Tipificação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009).
Para facilitar a compreensão do que foi dito, esboçamos abaixo a estruturação da rede
de proteção destinada ao atendimento de idosos nas modalidades Básica e Especial do SUAS
e os serviços e benefícios destinados ao atendimento dessa população:
79 Organizações e entidades prestadoras de assistência social que integram o SUAS como parceiras, cogestoras e corresponsáveis pela garantia dos direitos sociais dos usuários (PNAS: MDS: 2004).
Página | 171
Figura 6: Rede Socioassistencial - Proteção do Idoso
Um olhar mais atento para a Política Nacional de Assistência Social (2004) e a
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais (2009) nos mostra que as três possibilidades de
serviços previstos na Alta Complexidade são permeadas pela ideia de instituição, atendem
exclusivamente grupos: maiores, no caso do Acolhimento Institucional; ou menores, no caso
da Casa Lar e das Repúblicas.
Esta ideia de instituição pode se aproximar da fala de Dona Geni, que não quer nem
pensar em ter que morar num asilo, e precisa ser superada: “Nem quero pensar nisso. Eu não
penso em ir no asilo... [...] Lá tem muito “veio”, eu sou “veia” também, mas lá tem muito
“veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo... Nunca fui visitar um asilo, mas penso que é
SUAS
Serviços
Proteção Social Básica
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vinculo -‐ CCI
Serviço de PSB no domicilio
Proteção Social Especial
Média Complexidade
Serviço de PSE no domicilio
Domicilio CREAS Centro-‐Dia
Alta Complexidade
Acolhimento InsXtucional
Abrigo InsXtucional Casa-‐Lar
República de Idosos
Programas Projetos Beneficios
BPC
Página | 172
assim porque, a gente passa de ônibus lá ta aqueles “veio” sentado pra fora. Eu penso assim
comigo”.
Sua fala pode conter percepções equivocadas, mas nos dimensiona a urgência de
possibilidades de atendimento individualizado, que garanta ao idoso um lugar onde ele possa
ser quem é, sem misturar-se, diluir-se e ter sua subjetividade pasteurizada no coletivo, onde
possa gerir o seu cotidiano de acordo com as suas vontades e preferências, mas tendo
garantido o acesso aos bens e atendimentos que possibilitem o exercício pleno de sua
cidadania. Algo que hoje nos parece impensável, ainda uma utopia, distante da lógica que
concebe as politicas universalistas.
No Abrigo Institucional, maioria absoluta dos atendimentos ofertados na Alta
Complexidade, a ideia de instituição é preponderante e ainda que a Tipificação Nacional
(2009) frise a necessidade de se manter características de uma residência muitas destas
instituições foram projetadas há mais de um século, pautadas numa concepção arquitetônica
que, como bem definiu Goffman (1974), pretendia-se total, lugar onde a vida fosse
integralmente administrada. Infelizmente esta lógica ainda pode ser sentida por práticas que
pouco se alteraram ao longo do tempo.
Evidente que muitas destas instituições reordenaram-se e prestam serviços de
incontestável qualidade, atuam na perspectiva da garantia de direitos e são imprescindíveis na
consolidação da Proteção Especial. Mas, é sabido também, e sobre esse tema é comum
vermos noticias estampando as páginas dos jornais, que parte delas vive situações de
abandono, carência e precariedade que exemplificam porque esses tradicionais asilos de
velhos são vistos com resistência e preconceito, tradicionalmente como ‘depósito de idosos’,
lugar de exclusão, dominação e isolamento ou, simplesmente ‘um lugar para morrer’ (Novais,
2003 In: IPEA: 2011)80.
Casa Lar é a modalidade que mais se aproxima de uma concepção mais humanizada e
personalista de moradia. É modalidade de acolhimento institucional que se destina ao
atendimento de até dez idosos com diferentes graus de dependência.
República, como o próprio nome sugere é a coisa pública, comunidade, lugar onde o
coletivo prevalece em detrimento do individuo. São conhecidas experiências exitosas nesta
modalidade de atendimento, no entanto, observando a rede de proteção especial notamos ser
um serviço ainda incipiente.
80 Condições de Funcionamento e infraestrutura das instituições de longa permanência para idosos ; Série: Eixos do Desenvolvimento Brasileiro, nº 93; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; maio de 2011.
Página | 173
Percebemos que a falta de consenso do que seja e como deve funcionar este serviço
explica porque sua oferta é tão reduzida para o público idoso. Muitas vezes, pautados apenas
no preceito de desenvolver gradual autonomia e independência dos usuários, técnicos,
operadores e até mesmo gestores de proteção especial entendem-no, equivocadamente, como
lugares de passagem: o idoso nela permanece até que demonstre condições de garantir sua
independência, construa seu Projeto de Vida e encontre outro lugar para morar.
Essa concepção, enviesada pelo trabalho realizado nas repúblicas para adultos em
processo de saída das ruas, inviabiliza a correta concepção deste equipamento como forma
alternativa à institucionalização dos idosos inibindo a sua implantação e expansão nos
municípios.
Como podemos ver as três modalidades de serviços socioassistenciais que compõem a
rede de proteção ao idoso na Alta Complexidade assemelham-se mais a instituição que a
residências propriamente ditas. São imprescindíveis, mas, representam um leque ainda restrito
diante das inúmeras possibilidades de envelhecer e viver a velhice que, por vezes, culmina na
uniformização dos sujeitos e desta fase da vida.
Pode nos ajudar a compreender essa face institucional dos serviços na Alta
Complexidade o próprio fundamento da politica de assistência, pautado na matricialidade
sociofamiliar. Dele deriva toda a ênfase dada ao trabalho realizado no núcleo familiar, onde a
Alta Complexidade figura como a última alternativa nos cuidados com os idosos - somente
depois de esgotados os esforços para que a família e a comunidade se responsabilizem por
seus idosos é que eles passam a figurar entre o público alvo desta proteção.
Vemos que o enfoque dado à família não se restringe apenas à área da assistência
social. Na contramão das sociedades pós-modernas, mundializadas, de consumo e descarte,
“líquidas” e incertas (Brandão & Mercadante: 2009), cenário onde os arranjos familiares são
(re)desenhados e a proteção à velhice tende a deixar de ser exclusividade da família, o próprio
Estatuto do Idoso (2003) em seu Artigo 3º responsabiliza justamente a família, e
posteriormente a comunidade, a sociedade e o Poder Público, a assegurar com prioridade
absoluta a efetivação dos direitos dos idosos81.
81 Esta prioridade absoluta compreende: atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população; a preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas; a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso; viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações; priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência; capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos (Estatuto do Idoso: Art. 3º).
Página | 174
A importância dada à família na responsabilização pelos cuidados com idosos é
marcante também em outras leis como a Constituição Federal (1988), que fortalece a
reciprocidade intergeracional no interior da família, onde os pais tem o dever de assistir, criar
e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na
velhice, carência ou enfermidade (CF: Art. 229).
Na Política Nacional do Idoso (1994) também é marcante a ênfase dada à família: seu
principio primeiro consiste no dever da família, extensivo posteriormente à sociedade e ao
estado, em assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, participação na comunidade,
dignidade, bem-estar e o direito à vida (PNI: Art. 3º).
Segundo Debert e Simões (2002) essa ideia reproduz o mito da universalidade,
naturalidade e imutabilidade da família nuclear e o mito da família extensa perpetuando
visões ambivalentes e contraditórias que associam qualidade de vida, especialmente na
velhice, à família.
Então, gestores públicos, sociedade e universidades têm, para este século, o desafio de
construir novos saberes, capazes de quebrar paradigmas tão enraizados em nossas normativas
legais e em nossos fazeres, bem como, pensar e propor formas de moradia e de cuidados
desvinculados do contexto familiar e que conjuguem as diversas áreas das politicas sociais e
distintos campos do conhecimento na concepção de soluções variadas: instituições inovadoras
de moradias individuais ou coletivas.
Quando saímos da esfera maior de concepção da politica pública - o âmbito federal - e
partimos para as experiências dos municípios na promoção de cuidados para seus idosos,
constatamos a criação de novos projetos, que partem da identificação de demandas locais ou
especificidades territoriais e nem sempre consideram/responsabilizam primordialmente a
família pelos cuidados com idosos.
Diante deles encontramos múltiplas soluções de atendimento – instituições que
oferecem moradias individuais ou coletivas - evidenciando, primeiro, a característica
intersetorial que permeia a concepção destes projetos e desconfigurando-os como ação
exclusiva de uma área restrita da politica social, seja ela, habitação, assistência social, saúde
ou outra.
Na esfera mais ampla, a construção de novos modelos deve considerar não só o
fenômeno demográfico do envelhecimento, mas as diversas formas de sua configuração, as
múltiplas vulnerabilidades a que a velhice esta exposta, os fatores que levam ao
comprometimento da autonomia do idoso: falta de renda ou de saúde, abandono ou tantas
Página | 175
outras adversidades, bem como, reconhecer a importância do engajamento desses sujeitos
como agentes do seu próprio desenvolvimento e dar possibilidades aos gestores locais para
fomentarem ações que atendam às suas necessidades reais.
Assim, fica claro que a questão do morar na velhice não se descola das proteções
efetivadas pela assistência, mas deve avançar para além desta politica, pois perpassa os
diversos campos do saber e do fazer social. No entanto, apesar de tão evidentes, o que vemos
hoje é a complexidade deste tema padecer diante da perpetuação da histórica
institucionalização da velhice.
Considerações Finais
Entre as novas demandas surgidas do processo de envelhecimento as questões que se
referem à moradia de idosos evidenciam a necessidade de um debate ampliado que proponha
alternativas ao asilamento e que envolva pesquisadores, gestores públicos, movimentos
sociais e demais sujeitos na idealização e objetivação de novas alternativas que atentem para
os diversos modus de envelhecer e viver a velhice, bem-sucedida ou não.
Às velhas formas de institucionalização, perpetuadas em práticas asilares centenárias,
devem ser contrapostas possibilidades das pessoas idosas viverem como parte da comunidade,
nas suas próprias Casas, com a família ou em moradias públicas com suporte social,
segurança e promoção de sua saúde, pelo tempo que desejarem ou puderem.
Pensando nesta direção, a questão da moradia para idosos apresenta-se com outras
tonalidades: não se configura como ação de uma única área das políticas sociais - habitação
ou assistência social – e deve prever múltiplas soluções de atendimento: moradias individuais,
coletivas e outras com oferta de serviços das muitas áreas que tratam as questões do
envelhecimento.
Evidencia-se a necessidade de novos conceitos e caracterizações para essas
instituições que são a Casa de muitos idosos e que, portanto, devem ser concebidas como
local privilegiado das relações, do convívio e da transmissão dos valores socioculturais.
Se no passado a velhice era concebida como problema associado à pobreza, ao
abandono ou a perda de laços familiares que podiam, com certo esforço, ser solucionado por
praticas pautadas na caridade, hoje, um novo paradigma se impõe: é preciso atentar para as
diversas vulnerabilidades presentes nas vidas dos idosos e reconhecer o hibridismo que
Página | 176
caracteriza e demanda pela criação de novas instituições, que deem conta da multiplicidade
dos cuidados que lhes são requeridos pelas mudanças radicais no perfil dos idosos atendidos.
O estado de São Paulo, por contar com o maior contingente de idosos do país, sente
primeiro as pressões e o impacto que o fenômeno do envelhecimento e da longevidade
humana impõe ao poder público. Em 1997 instituiu a Politica Estadual do Idoso, mas,
somente em 2009 iniciou o processo de construção das ações, programas e projetos
articulados em torno de um Plano Estadual para a Pessoa Idosa, denominado Futuridade82,
que tendo como pressupostos a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, agregou gestores
das diversas politicas no âmbito do Estado.
Neste Plano foi criado o Programa Vila Dignidade, local onde esta pesquisa foi
realizada. Aparentemente inovador pela perspectiva de ser uma alternativa ao asilamento,
desde o inicio, o Programa se depara com diversos obstáculos que o impedem de consolidar-
se como Política de Estado - emancipada dos vícios de nossa cultura política que,
intencionalmente, confunde Política Pública com Política Partidária.
Um destes obstáculos se refere à confusão e estranhamento gerado e perpetuado pelos
profissionais da assistência social que, por vezes, o reduz apenas à política de habitação,
negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social.
Esta interpretação é compreensível quando olhada à luz exclusivamente da Tipificação
Nacional dos Serviços Socioassistenciais. De fato, o Programa Vila Dignidade é uma
modalidade de atendimento completamente nova e não se enquadra em nada do que esta
prescrito nesta normativa. No entanto, a autonomia do Estado para propor coisas novas,
dentre elas serviços socioassistenciais, desde que estes não contrariem as diretrizes federais, é
garantida por nossa Constituição, e pode ser invocada para justificar a construção de uma
nova modalidade de atendimento de Alta Complexidade especifica do Estado de São Paulo.
No mais, recorrer à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais para
justificar tal argumentação é, no mínimo, contraditório, quando o que se observa é justamente
a resistência do governo estadual em reconhecer e implantar o Sistema Único de Assistência
Social no estado de São Paulo – haja vista a conceituação de promoção social que ainda
vigora na Constituição Estadual (Arts.232 a 236) em detrimento da assistência social
entendida como direito do cidadão, e dever do Estado.
Neste cenário, de atuação de forças complexas e contraditórias, identificamos uma das
fragilidades do Programa: apesar do potencial para se tornar inovação na modalidade de
82 Como já mencionado anteriormente hoje este Plano se intitula São Paulo Amigo do Idoso.
Página | 177
Serviço de Proteção Especial de Alta Complexidade e das boas intenções previstas em
Decreto e Resolução, as amarrações junto à Política de Assistência Social, no âmbito do
Estado, foram mal tecidas: não criaram consensos entre os operadores desta política e não
fomentaram a consolidação de um serviço socioassistencial para ser ofertado no equipamento
tão pouco previu a destinação de recursos estaduais para o custeio das ações a serem
desenvolvidas.
Diante destes entraves, que refletem o posicionamento do Estado, a responsabilidade
pela operacionalização do Programa recai inteiramente sobre os gestores municipais que, no
fazer, identificam as demandas dos idosos, buscam as articulações necessárias e custeiam
integralmente os projetos e ações desenvolvidas. Aqui enxergamos mais uma das fragilidades
do Programa, pois recai sobre o município o custeio total tanto da manutenção da
infraestrutura quanto da garantia de gratuidade de moradia e das ações socioassistenciais
indispensáveis à operacionalização do Projeto Social.
Cabe frisar que, após as entrevistas, ficou evidente que a não utilização dos recursos
dos idosos para custeio do Programa é o que, à primeira vista, o difere integralmente dos
serviços da Alta Complexidade - ILPIs ou Casas Lar - e dá ao equipamento às conotações que
no imaginário dos idosos são atribuídas a concepção da Casa. Esta característica tão peculiar
preserva a autonomia dos sujeitos e promove a ampliação de seu poder de consumo – como
muitos deles nos disseram agora podem comer melhor, adquirir bens, viajar, entre tantas
outras formas de consumo a que eram privados por conta dos altos aluguéis.
Assim, aquilo que ele apresenta como maior inovação: a gratuidade assegurada na
oferta do acolhimento torna-se ônus exclusivo dos municípios. Isso, por vezes, inviabiliza sua
ampliação e implantação em municípios que não possuem receita suficiente para investir na
área social e boa capacidade de gestão.
Após a realização desta pesquisa ficou evidente a necessidade de dar forma ao novo
rompendo com pensamentos fragmentados que, observados de perto, mostram-se fruto da
pouca experiência dos profissionais em pensar intersetorialmente e em promover articulações
entre as diversas políticas sociais. Olhada mais atentamente esta forma de pensar expõe a
carência por formação e atualização profissional - baseada nas novas perspectivas de
construção de políticas públicas - por parte de todo o corpo funcional das repartições,
incluindo aqueles que ocupam cargos de confiança e que normalmente são os que tomam
decisões.
Página | 178
Todos os sujeitos envolvidos na elaboração, no fazer ou na operacionalização das
politicas públicas precisam avançar na compreensão do que seja uma Instituição de Longa
Permanência e reconhecer que hoje, elas experimentam uma ampliação de seus papéis, o que
exige a intervenção de diversas áreas: sócio sanitária, geronto-geriatricas, assistenciais,
educacionais, lazer, cultura e tantas outras, bem como a reformulação de suas práticas.
Acreditamos que, nesta perspectiva a proposta do Programa Vila Dignidade poderia
ser referencia como inovação em Serviços de Alta Complexidade. As opiniões e pontos de
vista dos idosos nos levam por essa direção: a presença marcante em suas narrativas do
ideário de instituição (asilo) como lugar do outro - o velho dependente que necessita ser
cuidado - evidencia a importância de termos instituições que atentem para as diversas
vulnerabilidades e riscos a que estão expostos, para além dos riscos de saúde, e que
promovam a autonomia, a qualidade e a dignidade da vida na velhice.
Para avançarmos neste debate precisamos escapar das armadilhas impostas pela
cristalização da ideia de instituição ampliando seus sentidos e incorporando os significados da
Casa na concepção de novos lugares/ serviços de acolhimento de idosos.
Nossa hipótese, de que as instituições podem ofertar melhores condições de vida às
pessoas idosas se cultivarem as características deste lugar ancestral que é a Casa; se tomarem-
na como microcosmo das relações sociais, lugar real, com cenários idealizados onde parte dos
nossos sonhos são encenados e reproduzidos, foi testada e as narrativas dos idosos nos dão
pistas de que é possível conceber instituições que realmente protejam e garantam as mais
diversas seguranças – afetivas, emocionais, financeiras, de acolhida -, que preservem a
intimidade, a tranquilidade, o repouso e a simplicidade dos modos de vida de cada morador,
que possam ser a Casa, mundo resumido, protegido, privado por excelência e definido pelo
próprio corpo (Fellipe: 2010) e pelas próprias vontades e desejos dos idosos.
Assim talvez, no longo prazo, os idosos e a sociedade em geral reconheçam esses
lugares como politicas sociais, novas instituições, concebidas e ofertadas por gestores
públicos numa sociedade atenta para as suas necessidades reais. Se isto um dia acontecer
viveremos o fortalecimento e ampliação da percepção das politicas públicas como direito e a
cidadania social como conquista dos homens e não como concessão de alguém ou de Deus.
A subserviência, marca história de nossa formação, fragiliza o processo de construção
da cidadania social no Brasil e precisa ser superada para que falas como a de Dona Geni:
“Aqui é um presente que Deus me deu, nossa uma bênção [...] Sempre falei ‘Deus vai
preparar uma casa pra mim’ e Deus preparou aqui. Deus protege muito a gente, nossa
Página | 179
Senhora! Deus é muito bom na nossa vida. Não era pra eu tá por aqui, foi Deus que preparou
essa casa pra mim! Não tem palavra pra agradecer a Deus. Eu tava deitada na cama ali e
pensando, ‘o que que eu tenho que fazer pra agradecer à Deus não?’, penso sozinha” ou a de
Dona Maria Rosa: “[...] agradeço à Deus todo santo dia por ter conseguido essa casa. Eu nem
sei como agradecer tanto Deus. Todo dia que eu faço a oração eu falo: ‘eu e minha casa
servimos ao Senhor’. Todo santo dia!” deem espaço para o reconhecimento do direito de estar
ali, não porque Deus julga que elas mereçam mas porque são cidadãs de um Estado capaz de
lhe prover um direito social.
Página | 180
Referências Bibliográficas
1 - Bibliografia Citada
Bachelard, G. A Poética do Espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi; 2ª Ed. São Paulo.
Martins Fontes. 2008.
Baltrusis, N. O Crescimento da informalidade nas cidades do terceiro mundo. São Paulo:
XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, 2007.
Belgini, P. "Assistência Social: Direito Ou Favor – Um Estudo Sobre As Famílias Nos
Programas Sociais Da Prefeitura De Itatiba (SP)" Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre em Serviço Social à Comissão Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, sob orientação da Profª. Drª. Marta
Silva Campos, 2006. Disponível em www.dominiopublico.gov.br.
Born, T. Asilo de Idosos: a estação final de uma trajetória marcada por indignidades. In:
Portal do envelhecimento, agosto de 2004.
Bosi, E. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos; 14ª Ed. Companhia das Letras. São
Paulo; 2007.
O tempo vivo da Memória – ensaios de psicologia social; 2ª ed. São Caetano do Sul –
S.P; 2003.
Castel, R. A insegurança social: O que é ser protegido? Tradução de Lúcia M. Endlich Orth;
Petróplis RJ; Vozes: 2005.
Concone, M. H. V. B. Medo de envelhecer ou de parecer? Revista Kairós; São Paulo, 10(2),
dez. 2007, pp. 19-44.
A noção de Cultura; Revista Kairós; São Paulo, 14(4), set. 2011, pp. 01-16.
Cunha, M. C. P.; O Espelho do Mundo – Juquery, a História de um asilo; Rio de Janeiro; Paz
e Terra; 1986.
Página | 181
DaMatta, R; A Casa & a Rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; Rocco; Rio de
Janeiro; 1997.
Fellipe, M. L (2010). Casa: uma poética da terceira pele. Psicologia e sociedade, 22 (2), 299
– 308.
Fischer, R. M. O desafio da Colaboração: práticas de responsabilidade social entre
empresas e Terceiro Setor; São Paulo; Editora Gente; 2002.
Fontoura, J. Movimentos Sociais no Brasil. In: 40 anos (1968 – 2008) Brasil -Política,
Sociedade, Cooperação Internacional. Konrad Adenauer; 2009; p.p 140-167.
Geertz, C. A interpretação das Culturas. Zahar. Rio de Janeiro, 1973.
O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa; Vozes; Petrópolis;
2000.
Gigante, M A; História oral de idosos asilados em São Carlos- SP : velhice, asilo e memória
da cidade(1950-2008). Franca : UNESP, 2008 Tese de Doutorado.
Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo. Perspectiva. 1974.
Groisman, D. Asilo de Velhos: passado e presente. In: Estud. interdiscip. envelhec., Porto
Alegre, v.2, p.67-87, 1999.
Duas abordagens aos asilos de velhos: da clínica Santa Genoveva à história da
institucionalização da velhice; In: cadernos pagu (13) 1999: pp.161-190.
A velhice, entre o normal e o patológico; História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio
de Janeiro, vol. 9 (1): 61-78, jan.-abr. 2002.
Grubis, S. Casa: uma poética da terceira pele; In: Psicologia em Estudo, Maringá v. 8, num.
esp., p. 97-105, 2003.
Halbawachs, M. A Memória coletiva. Sidou, B. (trad). São Paulo. Centauro; Editora. 2004.
Página | 182
Harvey, D. ET..al. Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. Tradução João
Alexandre Peschanski.. ET AL: São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.
Hlilman J. O Código do Ser: Uma busca do caráter e da vocação pessoal; Tradução:
Adalgisa Campos da Silva; Rio de Janeiro; Objetiva; 2001(a)
A força do caráter: A poética de uma vida longa; Tradução de Eliana Sabino; Editora
Objetiva; Rio de Janeiro; 2001(b).
Houaiss, A. Grande Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
Versão on line disponível em: www.houaiss.uol.com.br .
IPEA, Camarano A. A. e Ghauri, S. K. E. Famílias com idosos: ninhos vazios? Texto para
Discussão N.º 950, 2003.
Condições de Funcionamento e infraestrutura das instituições de longa permanência
para idosos; Série: Eixos do Desenvolvimento Brasileiro, nº 93; Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada; maio de 2011.
Lopes, J. S. A velhice e sua institucionalização: cem anos de história do asilo São Vicente de
Paulo de Itatiba. São Paulo, 2011. 71 p. Monografia (especialização) - Universidade São
Francisco. Orientação de: Priscila Diacóv.
& Concone, M. H. V. B. Lugar de Envelhecer: Narrativas de idosos e suas possibilidades de habitar o mundo. Artigo apresentado no Grupo de Trabalho Cultura, Velhice e Envelhecimento: olhares cruzados, da 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia: Desafios Antropológicos Contemporâneos, realizada em julho de 2012, na PUC-SP.Artigo Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_28_RBA/programacao/grupos_trabalho/artigos/gt22/Janete%20da%20Silva%20Lopes.pdf (último acesso em 18/03/2014).
Magnani, J. G. C. Festa no pedaço - cultura popular e lazer na cidade; Hucitec, 2004 (3a. ed.).
Meihy, J. C. S. Manual de História Oral. 5ª ed.. São Paulo. Loyola. 2005.
Meihy, J. C. S & Ribeiro, S. L. S. Guia Prático de História Oral; São Paulo, Editora
Contexto; 2011.
Página | 183
Mercadante, E. F &Brandão, V.M.A.T; Envelhecimento ou longevidade? 1. ed. São Paulo:
Editora Paulus, 2009. v. 1. 114 p.
Oliveira, R. C. O trabalho do antropólogo; 2ª edição; Brasilia; Paralelo 15; São Paulo
Editora Unesp: 2000.
Sales, T. Raízes da desigualdade social na cultura brasileira. IN: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 25, ano 9, junho de 1994 (p. 26 – 37)
Sennet, R. Respeito: A formação do caráter em um mundo desigual; Tradução Rita Vinagre;
Rio de Janeiro: Record; 2004.
A corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo;
Tradução de Marcos Santarrita; Rio de Janeiro: Record; 2009.
Juntos: Os rituais, os prazeres e a politica da cooperação; Tradução de Clóvis
Marques; Rio de Janeiro: Record; 2012.
2 - Legislação Consultada:
Brasil. Constituição Federal. 1988.
Estatuto do Idoso; Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS; Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais; Brasília; 2009.
Conselho Nacional de Saúde, Resolução 196/96.
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Orientações Técnicas: Centro de
Referência de Assistência Social – CRAS - 1. ed. – Brasília: Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, 2009. 72 p.
Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social –
CREAS. Brasília, 2011. Gráfica e Editora Brasil Ltda.
Conselho Nacional de Assistência Social; Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais; Brasília; 2009.
Política Nacional de Assistência Social; Brasília; 2004. NOB/SUAS; Brasília; 2005.
Página | 184
São Paulo, Constituição do Estado; texto promulgado em 05 de outubro de 1989.
Politica Estadual do Idoso; Lei Estadual nº12.548, de 26 de fevereiro 2007.
Plano Estadual para a pessoa Idosa – Futuridade; Coordenação Geral Aurea
Eleotério Soares Barroso; São Paulo; Secretaria Estadual de Assistência e
Desenvolvimento Social; Fundação Padre Anchieta; 2009.
Decreto nº 56.448, de 29 de novembro de 2010.
Resolução Conjunta SH-SEADS, de 15.05.2009.
Diretrizes do Desenho Universal na habitação de interesse social no estado de São
Paulo: espaço para todos e por toda a vida; Secretaria de Estado de Habitação; São Paulo;
2010.
3 – Entrevista:
Borges, B. O Minha Casa Minha Vida Enxuga gelo; El País – Política; São Paulo;
27.01.2014; conteúdo virtual disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/27/politica/1390859331_258001.html (último acesso:
06/02/2014).
4 - Musicas:
Antunes, A. & Ortinho. A casa é sua. Álbum Iê, iê, iê. Produção Fernando Catatau.
Gravadora Rosa Celeste. Formato CD. 2009.
Brita, A. Gouveia, B. Flores, M. Fernandes, A, Coelho, C. Meu Reino. Álbum Zé. Produção
Carlos Beni. Gravadora Polygram. Formato LP. 1989.
Página | 185
Buhr, K. Vira Pó. Álbum Eu menti pra você. Produção Karina Buhr, Bruno Buarque e Mau.
Gravação Independente. Formato CD. 2010.
Rodrix, Z. & Tavito. Casa no Campo. Interpretação de Elis Regina. Produção Roberto
Menescal. Compacto Duplo. Gravadora Philips. Formato LP. 1971.
Buarque, C. Pedro Pedreiro. Álbum Chico Buarque de Holanda Vol. 1. Produção Manuel
Barenbeim. Gravadora RGE. Formato LP. 1966.
5 - Sites consultados:
Fundação Oswaldo Cruz: www.fiocruz.br/icict/media/idosos_tomiko.pdf
Fundação Seade: www.seade.gov.br/master.php?opt=abr_not¬a=251
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: www.ibge.gov.br
Ministério de Desenvolvimento Social: www.mds.gov.br
Portal do Envelhecimento: www.portaldoenvelhecimento.org.br
Prefeitura de Itapeva: www.itapeva.sp.gov.br
Previdência Social: www.previdencia.gov.br
Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social:
www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br
Secretaria Estadual de Habitação: www.habitacao.sp.gov.br
Associação Brasileira de Antropologia: www.abant.org.br
Página | 186
Domínio Público: www.dominiopublico.gov.br.
Jornal El Pais: www.brasil.elpais.com/brasil
6 - Bibliografia Geral
Augé, M. Não Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade; tradução
Maria Lúcia Pereira; Campinas - S.P; Papirus, 1994, 9ª edição.
Bauman, Z. Comunidade a busca por segurança no mundo atual; Jorge Zahar; Rio de
Janeiro; 2003.
Globalização as conseqüências Humanas; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 1999.
Identidade; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 2005.
Ensaios sobre o conceito de Cultura; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 2012.
Balandier, G.; A desordem: elogio do movimento. Trad. Suzana Martins. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
Queirós, B. C.; Tempo de Voo; São Paulo; Comboio de Corda; 4ª impressão; 2011.
Carvalho, E A. C.(org); Godelier: antropologia. São Paulo: Ática, 1981.
Debert, G.G.A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp/Fapesp,1999.
A família e as novas políticas sociais no contexto brasileiro; Interseções: Revista de
Estudos Interdisciplinares.PPCIS/UERJ, 3, 2: 71-92, 2001.
Debert, G. G.&Simões, J.M – Envelhecimento e velhice na família contemporânea. In:
Tratado de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
Espinosa, B. A Ética; Livro III – Da origem e da natureza das afecções; Abril S.A Cultural e
Industrial; São Paulo; 1973.
Página | 187
Freyre, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economiapatriarcal, 25ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1987.
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
Goldani, A.M. As famílias no Brasil contemporâneo e o mito da desestruturação; cadernos
pagu, 1:67-110. 1993.
Hareven, T. Novas imagens do envelhecimento e a construção social do curso da vida;
cadernos pagu, 13: 11-35,1999.
Higuchi, M. I. G. A sociabilidade da estrutura espacial da casa: processo histórico de
diferenciação social por meio e através da habitação; In: Revista de Ciências Humanas,
Florianópolis: EDUFSC, n.33, p.49-70, abril de 2003.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA; Condições de Funcionamento e
infraestrutura das instituições de longa permanência para idosos ; Série: Eixos do
Desenvolvimento Brasileiro, nº 93; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; maio de 2011.
Envelhecimento, pobreza e proteção social na América Latina. Texto para discussão
nº 1292; IPEA; Rio de Janeiro; Jul. 2007.
Mecanismos de Proteção Social para a população idosa brasileira. Texto para
discussão nº 1179; IPEA; Rio de Janeiro; Abr. 2006.
Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica;Texto para
discussão; IPEA; Rio de Janeiro; Abr. 2002.
Josso, M. C. História de Vida e Projeto: a história de vida como projeto e as histórias de
vida a serviço dos projetos; In: Educação e Pesquisa; São Paulo; v.25; n.2, p. 11-23;
jul/dez.1999.
Lévi-Strauss, C. O pensamento Selvagem. Tradução: Tânia Pellegrini, Papirus Editora, 8ª ed.
2008.
As estruturas elementares do parentesco. Trad. Mariano Ferreira; Petrópolis: Vozes;
S. Paulo: EDUSP, 1976.
Página | 188
O olhar distanciado. Lisboa: Edições 70.
Malinowski, B. Uma teoria científica da cultura (capítulos I a IV). Rio de Janeiro: Zahar Ed.,
1975.
Mannheim, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
Mercadante, E. F. Aspectos antropológicos do envelhecimento. In: Matheus Papaléo Neto.
(Org.). tratado de Gerontologia. 2 ed. São Paulo: Atheneu, 2006, v. , p. 211-215.
A construção da Identidade e da Subjetividade do Idoso; Doutorado em Ciências
Sociais (Conceito CAPES 5); Ano de Obtenção: 1997. Orientador: Maria Helena Villas Boas
Concone. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil.
Minayo& Coimbra (org.); Antropologia, Saúde e Envelhecimento; Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz: 2002. 212 pp.
Moreira, U.A. Adélia Prado: Uma Poética da Casa; In: Uniletras; Ponta Grossa; n. 22; p.81-
103; dezembro 2000.
Morin,E. O método – 6. Ética; Tradução de Juremir Machado da Silva; 2ª Ed. Editora Sulina;
Porto Alegre; 2005; I – Assumir a condição Humana; II – Ética Planetária; III – As vias
regeneradoras; IV – A esperança ética: a metamorfose; PP.159 – 182;
Entrevista com Edgar de Assis Carvalho; São Paulo; mar. 2011;
Entrevista ao Programa Roda Viva; T.V Cultura; São Paulo; 18.12.2000.
Moser, B. Clarice, uma bibliografia; Tradução de José Geraldo Couto; São Paulo; Cosac Naif,
2011.
Muniz, E. Martinelli,M. L.; Egger-Moellwald, M. T.; Chiachio, N. B.; O conceito de serviços
socioassistenciais: uma contribuição para o debate.; In Caderno de Textos da VI Conferência
Nacional de Assistência Social; dezembro de 2007.
Neri, A. L. &Yassuda, M. S. (Orgs.). (2004); Velhice bem-sucedida: aspectos afetivos e
cognitivos. Campinas: Papirus, 224 p.
Página | 189
Nora, P; Entre Memória e História – A problemática dos lugares (Trad. Khoury, Y.A.) In:
Proj. história; São Paulo; [10]; dez. 1993.
Orlandi, E. O. As formas do silêncio – Nos movimentos dos Silêncios; Editora da Unicamp;
Campinas / S.P; 1997.
Pollak, M. Memória, Esquecimento, Silêncio; In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.
3, 1989, p. 3-15
Richter, S. & Fronckowiak,A. A poética do devaneio e da imaginação criadora em Gaston
Bachelard; I Seminário Educação, Imaginação e as Linguagens Artístico-Culturais, 5 a 7 de
setembro de 2005.
Savarezza, L. (Org.). La Vejez: Uma mirada gerontológicaactual. 1ª Ed. 2ª reimpressão,
Buenos Aires, Paidós, 2005.
Serres, M. O Incandescente; Rio de Janeiro; Bertrand Brasil; 2005.
Silva, A. C. L.; Mutchnik, V.; Mincache, G. R; Rosa, M. A. S.; Medeiros, S. A. R.; Hong Hee,
J; Aguiar, J. S.; Fortes, R; As Sensações do Morar; Trabalho apresentado no III Congresso
Ibero-americano de Psicogerontologia; s/d.
Sinson; O. R. M. V; Neri; A. L. &Cachioni; M.(orgs). As múltiplas faces da velhice no Brasil;
Campinas S.P; Ed. Alínea; 2004.
Szacki, J. As utopias ou a felicidade imaginada; Rio de Janeiro; Paz e Terra; 1972.
Siqueira, R.L; Botelho,M.I.V; Coelho, F.M.G; A velhice: algumas considerações teóricas e
conceituais. In: Revista Virtual Ciência & Saúde Coletiva, 7(4):899-906, 2002.
Steiner, G. Nostalgia Del absoluto; Tradução Maria Tabuyo/Agustin López; Editora Siruela;
Madri; 2001imo jardin; PP 59/86).
Página | 190
Tunner, V.; O Processo Ritual Estrutura e Anti Estrutura; São Paulo; Vozes; 1974.
Vários Colaboradores; Velhices: reflexões contemporâneas; São Paulo: SESC: PUC, 2006.
.