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Jason Prado e Paulo Condini Organizadores

A FORMAÇÃO DO LEITOR Pontos de Vista

Rio de Janeiro Argus 1999

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Projeto Gráfico: Eduardo Machado e Renata Vidal Composição: Argus Revisão: Paulo Corga Copyright 1999 ARGUS

Todos os direitos de reprodução, divulgação e tradução são reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme ou qualquer outro processo. As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não expressando, necessariamente a

opinião dos editores.

PRADO, Jason (Org.); CONDINI, Paulo (Org.). A formação do leitor : pontos de vista, Rio de Janeiro : Argus, 1999. 320 p. LEITOR; LEITURA; CONHECIMENTO; COMUNICAÇÃO; CULTURA ISBN n° 85.87456-0106 CDD 028.1

P882 f

Edição 1999

Todos os direitos reservados pela ARGUS PARTICIPAÇÕES COMERCIAIS LTDA

Rua Santo Cristo, 148/150 22220-300 — RIO DE JANEIRO — RJ

Fone 21-263.7449 www.leiabrasil.com.br [email protected]

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CONTRA CAPA

Criado especialmente para o 12º COLE pelo Leia Brasil,

Programa de Leitura da Petrobras, A FORMAÇÃO DO LEITOR,

PONTOS DE VISTA reúne as reflexões de trinta personalidades,

entre elas os Ministro de Estado da Cultura e o da Educação, que

têm dedicado seus melhores esforços, além de outras atividades

intelectuais, à questão da leitura, em todas as suas instâncias.

Sua publicação, portanto representa importante contribuição para

todos os interessados nesta área, quer pela conhecida experiência

de seus participantes, quer pela diversidade de visões do

problema, o que por si só, a justifica, que abre caminho para a

percepção de que a leitura e a formação do leitor não são questões

oriundas de uma única vertente, mas frutos de inúmeros fatores

que as determinam.

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Para os professores

e bibliotecários,

em cujas mãos repousa

a enorme responsabilidade

de contagiar nossas crianças

com o amor aos livros.

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Sumário

Apresentação

Affonso Romano de Sant’Anna

Arnaldo Niskier

Bartolomeu Campos Queirós

Carlos Jacchieri

Edmir Perrotti

Eliana Yunes

Elizabeth D’angelo Serra

Elza Lucia Dufrayer de Medeiros

Ezequiel Theodoro da Silva

Fanny Abramovich

Francisco Weffort

Guiomar de Grammont

Guiomar Namo de Mello

Iara Glória Areias Prado

Jason Prado

Joel Rufino dos Santos

Jorge Werthein

Luiz Percival Leme Britto

Maria Alice Barroso

Maria Thereza Fraga Rocco

Ottaviano De Fiore

Paulo Condini

Paulo Renato Souza

Pedro Bandeira

Regina Zilberman

Rui de Oliveira

Ruth Rocha

Sônia Rodrigues

Tânia Dauster

Walda de Andrade Antunes

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PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO

Obra inicial do projeto Cadernos do Leia Brasil — A

Formação do Leitor — Pontos de Vista — foi planejada para ser

lançada em Campinas, por ocasião do 12° COLE, que ocorreu

entre 20 e 23 de julho de 1999, reunindo ensaios de trinta

profissionais que têm dedicado os melhores esforços — entre

outras atividades intelectuais —, à questão da leitura, em todas as

suas instâncias, nos dando suas particulares percepções do que o

leitor e a sua formação significam, bem como os caminhos

possíveis para tornar as ações voltadas a esta atuação cada vez

mais eficientes.

Entretanto, para articular e reunir os textos dessas

personalidades e, mais ainda, para realizar o trabalho editorial

com a qualidade que a obra exigia, foi necessário mais tempo do

que o inicialmente previsto, obrigando-nos a transferir o

lançamento para a data de realização da terceira reunião do

Comitê Estratégico do Leia Brasil, Programa de Leitura da

Petrobras, dia 9 de agosto do corrente.

Acreditamos que, com o lançamento desta obra, estamos

dando o primeiro passo no sentido de cumprir um dos mais

importantes papéis para o qual o Comitê foi criado: o de produzir

textos didático-pedagógicos a serem adotados não só pelo

Programa em suas atividades, como também por todos quantos

estejam interessados em suas práticas, acumulando, com isto, à

função de propagador da produção intelectual já criada, a de um

programa também voltado para a pesquisa e criação do saber.

Os organizadores

[9]

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APRESENTAÇÃO

Quando imaginamos essa coletânea de “pontos de vista”

como marco de nossa passagem pelo 12° COLE, estávamos

pensando em oferecer aos pesquisadores da leitura — e aos

brasileiros, de um modo geral — um documento que reunisse a

visão dos nossos mais ilustres contemporâneos ligados ao

chamado “mundo do livro” , no que toca à questão da formação de

leitores dentro da nossa sociedade.

Não nos preocupamos em reproduzir teorias ou informações

acadêmicas, do mesmo modo que não procuramos receitas

prontas de transformação de não-leitores em aficionados

devoradores de livros... Simplesmente procuramos reunir pessoas

cujas vidas estivessem marcadas pelo trabalho com os livros ou

com a educação.

Mobilizamos escritores, editores, dirigentes das mais

renomadas instituições de ensino e pesquisa e os reunimos numa

obra comprometida exclusivamente com o tema: “A Formação do

Leitor: Pontos de Vista.”

O resultado foi uma obra interessante pela multiplicidade de

estilos, pela diversidade de olhares e de abordagens e pela

envergadura de cada autor.

Esse foi o papel que julgamos oportuno para o Leia Brasil, o

Programa de Leitura da Petrobras, neste momento em que

chegamos ao COLE pela terceira vez em oito anos de atividades,

agora com nossas responsabilidades ampliadas pelas múltiplas

ações que desenvolveremos durante o Congresso.

Este livro traz muitas semelhanças com o Leia Brasil.

Uma das mais importantes, no nosso entender, é a reunião e

mobilização de pessoas e entidades em torno da idéia comum de

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que, sem leitores de fato, não haverá um estado de direito.

Outra semelhança está na sua própria natureza enquanto

objeto: ele não faz parte de um projeto editorial comercial, mas de

um projeto de democratização da informação — e, neste caso

específico, de saberes constituídos —, visando não somente à

instrumentação das nossas escolas públicas, como também os

cursos de formação de professores. [11]

Por isso “A Formação do Leitor: Pontos de Vista” já

transcende seus propósitos iniciais de distribuição comemorativa

à passagem do Leia Brasil pelo Congresso Brasileiro de Leitura,

tomando caminho certo para os acervos de Secretarias de

Educação, de Universidades e de outras entidades de ensino

comprometidas com livros e sua leitura.

O que une a todos nós, organizadores e autores desta

coletânea, gestores do Leia Brasil, Petrobras, participantes do

COLE, professores, pesquisadores e estudantes, é a certeza de que

livros não existem apenas enquanto objetos, mas essencialmente

como veículos de idéias e de pensamentos compartilhados.

Portanto, leia, Brasil.

Os organizadores

[12]

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1 — AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

Leitura: das armadilhas do óbvio

ao discurso duplo Mineiro, poeta, cronista, professor universitário. Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais, foi presidente da Biblioteca Nacional de 1990 a 1996, onde criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER. Foi Secretário das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas e Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (CERLALC).

Sinto-me como o menino que tem que fazer uma composição

sobre “Minhas férias”. Nada mais simples. E, no entanto, bastante

arriscado, pois há o perigo de se cair no previsível, na banalidade.

Escrever sobre “leitura” e sobre a “formação do leitor” é algo

que lembra também aqueles filmes com títulos tipo “O crime no

castelo”, “A última vítima”, “Morte no entardecer”. O expectador já

entra sabendo o que vai encontrar.

Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre

“formação do leitor” ou sobre “leitura” alguma palavra contra a

leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor?

Assim, um tema como este deflagra logo uma questão que

chamaria de a armadilha do óbvio. Quem vai escrever sobre esses

temas vai também naturalmente dizer que é importante formar

leitores, vai enfatizar que ler é um prazer, que a leitura

desencadeia processos conscientizadores e produtivos na

comunidade, etc. Portanto, os encontros [13] em tomo deste tema

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correm o risco de converterem-se em fervorosas assembléias de

autoconsolação.

Preferiria, como o fiz em outras ocasiões em que tive que

abrir seminários, congressos ou discussões sobre este tema,

encaminhar algumas questões subjacentes, ocultas, reprimidas,

mas que representam uma radiografia, uma análise do terreno

onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo.

Portanto, estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio,

que nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do

doente. E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero

levantar uma questão básica: a necessidade de se proceder a uma

leitura crítica dos discursos sobre leitura.

Isto é um vasto e intrincado assunto. Tem inúmeras faces e

disfarces, ou, como eu disse antes — armadilhas. Uma coisa seria,

academicamente, selecionar um corpus de textos teóricos sobre a

leitura, analisar propostas de programas de leitura e conferir tudo

isto com a prática. Ou seja: verificar se a esses textos se seguiu

alguma ação pragmática, que tipo de ação foi essa e se ela

desmente a teoria ou que tipo de obstáculos surgiram para sua

realização.

Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito

da armadilha do óbvio está na banalidade da própria palavra

“leitura”. Se em vez de “leitura” estivéssemos usando uma palavra

nova, de preferência importada de outra língua, talvez fosse mais

fácil fazer saber do que estamos falando.

Por isto, para espanto de muitos editores, escritores e

professores eu tenho repetido: é preciso que se esclareça que,

quando falo de leitura, não estou falando de leitura, mas sim de

leitura.

Isto, advirto, não é uma charada nem um simples jogo de

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palavras. Quem tem ouvidos, ouça, diz o profeta. Ou melhor:

quem sabe ler, que leia.

A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não

gera a ação concreta e específica que gostaríamos deve-se ao que

chamo de duplo discurso. Depois da armadilha do óbvio essa é a

segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada. [14]

Uma coisa são os pronunciamentos, entrevistas, conversas

da boca para fora, outra coisa é realmente acreditar e levar

adiante projetos conseqüentes. Neste sentido, seria um não acabar

coletar aqui e ali exemplos de práticas que não batem com as

teorias e intenções. Poderia, por exemplo, dizer sumariamente que

durante os seis anos (1991-1996) em que liderei, com uma equipe

fantástica, a questão da promoção da leitura e do livro no país,

colhi exemplos fartos do duplo discurso.

Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, um disse

claramente numa reunião dentro do Ministério, para que todos

ouvissem, que “leitura não é um assunto prioritário no meu

ministério, esse é um assunto para o Ministério da Educação”.

Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um

ministro da Cultura, que era membro da Academia Brasileira de

Letras, que não estava falando de alfabetização e sim de leitura.

Ou melhor, que estava falando de leitura e não de leitura.

Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um

“analfabeto funcional”; ter que lhe mostrar projetos de

implementação da leitura tanto na França quanto na Colômbia;

ter que lhe explicar o que é “desescolarização da leitura” e, além

disto, como se estivesse cometendo uma falta, mostrar que

estávamos já realizando programas de leitura em hospitais,

quartéis, parques e sindicatos, que tínhamos projetos de trem-

biblioteca no sul do país, de bibliobarcos na Amazônia e no Rio

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São Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se

modificando por causa disto.

Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, só dois

tomaram conhecimento do programa de leitura que

desenvolvíamos em 300 municípios, utilizando 33 mil voluntários.

Um deles, o último, esforçou-se, e conseguiu, desmobilizar o

programa e desfazer a equipe.

Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo — onde a

prática não fecha com o que é dito — diria que durante todo esse

tempo, embora tenha encontrado um crítico e um ficcionista que

diziam tolices sobre “contadores de história”, não encontrei um só

prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram

inúteis. No entanto, só encontrei, entre as dezenas desses, apenas

dois que haviam destinado verbas para [15] compra de livros. Os

demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham

pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por

livre e espontânea vontade.

Dito isto, e como prova ainda do duplo discurso, assinale-se

que a Colômbia copiou e implementou um projeto brasileiro de

promoção de leitura que teria a participação da Câmara Brasileira

do Livro e outros órgãos do governo. Isto não tem nada demais.

Pessoas, entidades e países devem se beneficiar com as boas

idéias. Mas o grave é que enquanto o projeto baseado nas

propostas brasileiras era posto em marcha, lá na Colômbia, pela

Fundalectura, aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem

devia viabilizá-lo.

Finalizando, eu diria que nessa passagem de século, o

Brasil, em relação à questão da leitura, tem que batalhar

ferozmente em três frentes ao mesmo tempo:

1) a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo.

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Ainda que algum ministro ou presidente possa pensar assim, esta

questão não diz respeito apenas ao Ministério da Educação. Nos

países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto

resultou de um projeto sistêmico nacional;

2) a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos

funcionais: os que têm rudimentos de educação, mas não

conseguem decompor o significado dos signos. Na Itália existem

15 milhões de analfabetos funcionais. Na França são 20% dos

franceses. Quem quiser que estime quantos são no Brasil,

qualquer cifra entre 100 e 140 milhões será possível;

3) a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao

analfabetismo tecnológico. As mudanças rápidas transformam o

cidadão, mesmo de nível universitário, num analfabeto diante das

novas máquinas, e a atualização é dispendiosa, competitiva e

urgente.

Enfim, numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto —

em que o leitor lê em diversas direções e em profundidade, nosso

país está povoado de hipoleitores — aqueles que estão entre o

analfabetismo e o analfabetismo funcional.

Como sair disto é fácil. Basta desarmar as armadilhas do

óbvio e parar com o discurso duplo. [16]

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2 — ARNALDO NISKIER

“Um país se faz com homens e livros.” Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi Presidente dos Conselhos Estadual, Federal e Nacional de Educação, e Secretário de Educação e Cultura do Rio de Janeiro. Autor de mais de cem títulos, ocupa a cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras, e, desde dezembro de 1997, é seu Presidente. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Mesmo que se trabalhe sobre uma herança comum, como a

que caracteriza a comunidade lusófona, hoje de 200 milhões de

habitantes, não há como avançar adequadamente, na busca do

homem novo, se mantidas as atuais condições de miséria e pouco

apreço pelas questões culturais.

No caso do Brasil, temos obstáculos de expressão à nossa

frente, como a existência de 19 milhões de analfabetos e um

magistério de 1,2 milhão de profissionais em geral desmotivados e

recebendo salários incompatíveis com a dignidade da formação do

leitor brasileiro, em que estamos empenhados.

Enquanto países desenvolvidos exibem o índice de leitura de

10 livros por habitante (média anual), o nosso atraso pode ser

facilmente [17] medido pelo per capita de 2 livros por habitante,

nesse índice computando-se também os livros didáticos

distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Educação e do

Desporto. Muito pouco se o objetivo for a valorização do hábito de

leitura entre nós.

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Na verdade, não é o hábito de leitura que se busca, pois

hábitos tendem a ser impostos — e a imposição, na educação,

caminha em geral para a rejeição. O que se pretende é a

formulação adequada de um gosto pela leitura, e isso na idade

devida. Sendo mais claro, é muito difícil estabelecer esse gosto a

partir dos 16 ou 17 anos, quando o jovem, em geral, tem o seu

interesse voltado pragmaticamente para o exame de habilitação ao

curso superior, com a configuração que hoje ostente.

O ideal é que a criança, mesmo antes de ler, trave contato

com os livros, manipule-os, aprecie as ilustrações, interprete o que

está vendo à sua maneira. Isso é uma forma inteligente de

despertar-lhe o gosto, que depois se traduzirá pelas primeiras e

definitivas leituras. Pensar que isso possa acontecer em idade

mais avançada apresenta pouca probabilidade de sucesso, embora

casos se registrem.

Numa reunião do Comitê Executivo do Programa “Leia

Brasil”, no Rio, que é uma iniciativa de primeiríssima qualidade,

com apoio da Petrobras, chamei a atenção para uma realidade

incontrastável. O MEC distribui gratuitamente 60 milhões de

livros didáticos para alunos carentes, num determinado ano, mas

não repete a dose no ano seguinte. É o primeiro problema. O

segundo, ainda mais grave, na linha da formação do leitor, é a

discrepância aritmética em relação aos livros paradidáticos. Ou

seja, o mesmo canal que libera os livros didáticos praticamente

desconhece os paradidáticos, que seriam a riqueza com a qual se

manteria o interesse pela leitura, nas classes abastecidas pela

primeira remessa.

Aqui se assinala, para tristeza nossa, a descontinuidade dos

projetos pedagógicos. Vai o livro de Língua Portuguesa, por

exemplo, mas não segue nenhum outro de literatura infanto-

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juvenil. Cessados os efeitos da inserção do primeiro, no processo,

não há material para sustentar a motivação estimulada, volta-se

praticamente ao estágio anterior de ignorância, o que configura

enorme e lamentável desperdício. Esta continuidade precisa ser

assegurada. [18]

LÍNGUA PORTUGUESA

Do ponto de vista geopolítico, temos redobrado empenho na

valorização da Língua Portuguesa. É um patrimônio a defender e a

preservar, como se disse na reunião da comunidade dos Países de

Língua Portuguesa, realizada em novembro de 1997, em Lisboa.

Com a convicção de que a aprendizagem é para toda a vida e que a

educação deve ser dada para todos, como recomenda a Unesco,

devemos atentar para o avanço das tecnologias da informação e da

comunicação, lançando iniciativas de largo alcance — e não

limitadas a pequenos centros privilegiados. É exatamente aí que

se recomenda o bom enlace multimídia, aproveitando-se o rádio e

a televisão para o trabalho conjunto com a mídia impressa

representada pelo livro, de valor insubstituível em termos

culturais.

É certo que vivemos com tiragens ridículas e, com isso, o

preço da capa se torna excessivamente caro. Com a crescente

mundialização e em especial com o empenho recente de

alargarmos o nosso campo de atuação para outros continentes,

onde há manifestações concretas de apreço à língua portuguesa,

poder-se-á estabelecer um programa de edição e comercialização

de livros sui generis.

A decisão é política e não se pode conceber o silêncio em

matéria de tamanha relevância, quando ninguém tem mais dúvida

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sobre a sua relevância. A formação do leitor não é um fenômeno

para se limitar ao nosso território, mas uma questão que se liga

igualmente a Portugal, Angola, Moçambique (onde perdemos

nítido terreno para o inglês), Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé

e Príncipe, Goa, Macau e Timor-Leste — para só citar esses países.

HORA DA LEITURA

A releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, como fizemos

na Academia Brasileira de Letras, a propósito do lançamento do

programa “Hora da Leitura”, uma iniciativa do Governador

Anthony Garotinho e dos Secretários Hésio Cordeiro, Angelo de

Aquino e Wanderley de Souza, enseja uma série de considerações

no mínimo curiosas. A primeira delas, [19] na apresentação do

ator Luís de Lima, foi o trecho em que há uma referência

emblemática: “É preciso salvar essa gente.” Naquela época, há 500

anos, o Brasil tinha 5 milhões de índios, número que hoje se

reduziu a 325 mil. Foram dizimados pelo branco impiedoso e

voraz.

Nossa lembrança, ao falar na solenidade, foi a valorização da

educação. É a forma adequada de “salvar” um povo, sem

desfigurar as suas raízes. O Governador do Rio de Janeiro, ao

ouvir a argumentação, balançou afirmativamente a cabeça,

concordando com a fala, pois depois confessaria que não tem sido

outra a sua principal preocupação. Deseja terminar o período de

Governo com uma outra feição dada à educação fluminense, hoje

sem cara e sem projeto.

Uma das suas mais felizes iniciativas foi a criação do projeto

“Hora da Leitura”, em parceria com a Academia Brasileira de

Letras, que irá colaborar na escolha dos livros adequados às

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respectivas faixas etárias da clientela pública (mais de 1,2 milhão

de estudantes). Diariamente, sob a orientação de professores e

especialistas, serão lidos nas escolas trechos de obras de autores

nacionais, para criar o indispensável gosto pela leitura. O próprio

Governador confessou que adquiriu esse hábito um pouco à força.

Era um aluno inquieto, na cidade de Campos, travesso mesmo, e

lembra sempre que, depois de alguma estripulia, costumava ser

deixado de castigo pela professora Ledinha, de saudosa memória:

“Eu ficava com ódio dela. Hoje, sou-lhe grato por ser amante do

livro, fundamental na minha formação.”

Depois de contar essa passagem, Garotinho aproveitou a

presença de 300 pessoas, no Teatro R. Magalhães Jr., e declamou

um poema de sua autoria em homenagem à mulher, Rosinha. Foi

aplaudido demoradamente, pela inspiração. Logo depois, já na

platéia, foi a vez dele aplaudir o artista Tom da Bahia, que cantou

a música baseada em versos de Castro Alves, intitulada “A

Queimada”, um grito em defesa do meio ambiente. E também os

versos de Machado de Assis, muito bem declamados pelo ator

Othon Bastos, no CD da série “Os Imortais”, além de trechos de

obras de Machado de Assis, entre as quais “Dom Casmurro”, que

será representado no palco da ABL, com um elenco de que faz

parte a atriz Bel Kutner (filha da nossa inesquecível Dina Sfat).

[20]

O que se tira de mais positivo, numa solenidade assim rica e

diversificada, é o cuidado do Governo do Estado do Rio de Janeiro

com a cultura e a educação dos seus filhos. Começa com a leitura

recomendada por especialistas na matéria, chegando logo em

seguida, como ouvimos promessa, a programas de redação. Virão

concursos em toda a rede, com estímulos variados, para que,

lendo e escrevendo, nossas crianças e jovens possam enfrentar

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com mais chance de êxito o que vem por aí em matéria de

Sociedade da Informação. O Rio mais uma vez pulou na frente.

SEGREDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Quando se está diante do resultado de um vestibular,

sempre é possível estabelecer inferência. Os 26 mil candidatos da

UFRJ mostraram na prova de redação que aguçaram o senso

crítico e estão aperfeiçoando o trato da Língua Portuguesa em

relação aos exames anteriores.

O tema foi instigante: “Que geração é esta que não lê, e disto

nem se envergonha?” Um aluno escreveu na prova inteira a

palavra leitura. Tirou zero. Em compensação, a redação nota dez

provou a capacidade crítica do seu jovem autor, que citou “o

mundo apressado e impaciente dos nossos dias”. Ele entende,

embora não concorde, que saber das coisas pela TV é mais rápido

e mais cômodo. “O jovem sabe disso, mas não se importa, porque

foi educado, desde a tenra infância, a confiar nessa fonte.”

Sou testemunha da ampliação do interesse, em nosso país,

pelas questões vernaculares. Não só através da experiência

acadêmica, mas ao acompanhar o sucesso da obra 70 Segredos

da Língua Portuguesa, onde o professor Salomão Serebrenick

registrou o anseio de largas camadas da nossa população pelo

conhecimento do idioma, depois de um período bastante

expressivo de desapreço por tudo o que se referisse à norma culta.

Entendo até que a televisão pode ser incriminada nesse

processo, com a valorização do linguajar chulo e pobre,

característico de programas humorísticos ou até mesmo via

novelas de baixo teor cultural. Sem ser puritano, pode-se acusar a

utilização frenética de palavrões através do [21] vídeo como um

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modismo exagerado, criando uma dicotomia no espírito das

crianças. Elas são contidas em casa pela educação mais rígida dos

pais, mas têm a sua atenção despertada para a valorização dessas

palavras na TV ou mesmo nas escolas, onde os “professores

moderninhos” incorporam palavras antes proibidas no seu

cotidiano. Isso leva a alguma coisa?

No livro citado, que já se encontra na terceira edição,

Serebrenick mostra o emprego correto do pronome cujo, mostra a

confusão entre infligir, inflingir e infringir, explica a utilização de

haja vista e insiste na grafia correta da palavra tampouco. O livro

é de extrema serventia, pois assinala a diferença entre os verbos

destorcer (tornar direito, desfazer torcedura) e distorcer (mudar o

sentido, desvirtuar). Li a obra com indizível prazer, pois os erros

assinalados são muito comuns até em gente fina, que usa

profissionalmente o verbo, mas não sabe como varia a regência do

verbo assistir, por exemplo.

Crase, vírgula, ponto e vírgula — são elementos

indispensáveis da língua portuguesa, mesmo nessa fase de

unificação em que se vai abandonar o trema e, em certos casos,

também o acento circunflexo. São muitas regras, é verdade, mas

não há como fugir da sua aplicação.

Os jornais estranharam o fato de aparecerem palavras mal

grafadas nos exames vestibulares (horgulho e insentivo). Nossa

convicção é muito clara: escreve-se mal porque se lê pouco, o que

também leva a uma pobreza vocabular mais que evidente. Como é

possível enriquecer a linguagem dos nossos jovens se os índices de

leitura assinalam recordes negativos? O livro é gênero de primeira

necessidade — e por isso mesmo merece o mais completo apoio, a

partir da idéia de formar o hábito de ler. [22]

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3 — BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS

O livro é passaporte, é bilhete de partida Mineiro, graduado em Filosofia com especialidade

em arte-educação pelo Instituto Pedagógico

Nacional de Paris, escritor e poeta premiado

nacional e internacionalmente, conferencista e

autor de publicações sobre educação e leitura.

Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —

Programa de Leitura da Petrobras.

Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta

do leitor ceder-se à escrita do outro, inscrevendo-se entre as suas

palavras e os seus silêncios. Texto e leitor ultrapassam a solidão

individual para se enlaçarem pelas interações. Esse abraço a

partir do texto é soma das diferenças, movida pela emoção,

estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e

escritor. Cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o leitor

projetar seus sonhos.

As palavras são portas e janelas. Se debruçamos e

reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as

portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo,

é iluminar-se com a claridade do já decifrado. Escrever é dividir-

se.

Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia

outra [23] estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem

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caminhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro é

passaporte, é bilhete de partida.

A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria

humanidade e apropriar-se de sua fragilidade, com seus sonhos,

seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no sujeito

dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus

entendimentos.

Há trabalho mais definitivo, há ação mais absoluta do que

essa de aproximar o homem do livro?

Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para

um repouso. O corpo vivo vive em permanente e vários níveis de

leitura. Não há como ausentar-se, definitivamente, deste

enunciado, enquanto somos no mundo. O corpo sabe e duvida. A

dúvida gera criações, enquanto a certeza traça fanatismos.

Reconheço, porém, um momento em que se dá o definitivo

acontecimento: a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente.

Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirar-se

dela. Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o

encontro.

Acredito que ler é configurar uma terceira história,

construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na

fragilidade humana, quando dela se toma posse. A fragilidade que

funda o homem é a mesma que o inaugura, mas só a palavra

anuncia.

A iniciação à leitura transcende o ato simples de apresentar

ao sujeito as letras que aí estão já escritas. É mais que preparar o

leitor para a decifração das artimanhas de uma sociedade que

pretende também consumi-lo. É mais do que a incorporação de

um saber frio, astutamente construído.

Fundamental, ao pretender ensinar a leitura, é convocar o

Page 24: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

homem para tomar da sua palavra. Ter a palavra é, antes de tudo,

munir-se para fazer-se menos indecifrável. Ler é cuidar-se,

rompendo com as grades do isolamento. Ler é evadir-se com o

outro, sem contudo perder-se nas várias faces da palavra. Ler é

encantar-se com as diferenças. [24]

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4 — CARLOS JACCHIERI

A criança é um leitor, por acaso, analfabeto Nascido na cidade de São Paulo, artista plástico,

escritor. Entre suas obras, estão: O Honlenz e o

Labirinto; Os Deuses não eram Astronautas;

Porominare; O Evangelho segundo Jesus Cristo

das Vinhas da Ira — uma releitura do mito cristão;

A Infância da Arte — uma teoria da ontogênese e

da antropogênese da religião e da arte; Oráculo do

candomblé das lyami.

Desenhar as letras no jeito da mão e da forma, no feitio bem

comportado da bonita caligrafia, ou nos garranchos mal educados

das escrevinhações da gente grande, não foi nada difícil, foi até

muito fácil. Copiar as figuras das coisas representadas na Cartilha

do Tomaz Galhardo, com seus nomes escritos em letras

maiúsculas e minúsculas do A B C, foi canja. Afinal, o artista

infantil imitador e garatujador já nasce feito.

Desenhado a giz no quadro negro, na figura lembrada pelos

olhos ao lado da palavra pato, o patinho na lagoa, o p-a-t-i-n-h-o

soletrado no A B C e o pa-ti-nho silabado no bê-á-bá, eram

maneiras de memorizar desenhando, escrevendo e lendo o que era

o objeto pato do mundo real, e o do imaginado na cabeça da gente.

Afinal, nas cartilhas de alfabetização [25] do meu tempo, a

didática orientada para o conhecimento dos objetos reais, por

meio de suas definições formais, vinha do Pestalozzi.

Não nascemos já, de pronto, com os “olhos” das memórias

Page 26: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

gráficas, nem com o polegar opositor já habilitado para pinçar as

ferramentas que vão sendo reclamadas pelos voluntários motores

da manifestação infantil. Isso vai acontecendo naturalmente e,

nesse mesmo compasso, vamos fazendo com que as coisas que

percebemos no mundo de Deus convertam-se em coisas pensadas

na cabeça da gente e, daí, se tornem coisas representáveis em

pinturas, desenhos, sons, palavras etc.

Só muito depois da infância podemos nos dar conta que é

assim, desde sempre, que o bicho gente, já por seus inatos meios

de expressão, se tem feito no escritor e leitor das histórias da

História.

Escritor antes e leitor depois.

Por quê?

Porque enquanto não completamos, em nossas cabeças, o

mundo de representações de nossa própria imaginação,

comparando-o, ponto a ponto, com o mundo da realidade de fato,

que ao nascer já encontramos feita, não podemos, de todo, ler o

mundo da nossa imaginação porque ainda não o terminamos de

“escrever”, e nem mesmo, o da realidade já feita, porque ainda,

ponto a ponto, não terminamos de “lê-lo”.

Cada um de nós, em nossa formação mental, havemos de

reflexionar a condição humana na qual nascemos e de reimaginar

a realidade humana, que nos assiste, já feita. Assim, somente

conseguiremos assimilar uma, no quanto alcançamos reflexioná-

la; e nos adaptarmos à outra, no quanto alcançarmos reimaginá-

la. Eis porque podemos dizer que somos, por natureza,

assimilativos e adaptativos, escritores e leitores natos, por acaso

analfabetos, enquanto também não aprendermos a sê-los no modo

alfabetizado.

Desde o nascimento, a cada instante da nossa vivência,

Page 27: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

somos um ente completo e perfeito. As crianças não sabem o que

quer dizer ser criança, nem carecem dessa consciência formal

para desenvolverem-se, pois, nas suas vivências, contam com

naturais aptidões para auto-educarem-se e auto-adestrarem-se,

vencendo, com essa auto-suficiência, suas provisórias limitações

etárias.

Assim, nos meus sete anos, já falante, rabiscador,

barulhento, [26] manipulador senhor e autor do meu egocêntrico

mundo, incluindo os altruísticos tratos afetivos, ora tranqüilos,

ora birrentos, com mãe, pai e irmãos, parentes e afins, amigos e

inimigos, lá fui eu.

Com sete anos, já me imaginando — por conta das histórias

sempre repetidas pelos adultos diante das crianças — santo e

pecador, anjo e diabo em purgatórios e infernos em reino do céu e

da terra; feitiço e feiticeiro em fantasmagóricas correntes brancas

e negras de arrepiantes exorcismos; personagem lendário em

castelos de fabulosos príncipes e princesas, fadas e bruxas, ogros

e gigantes; destemido aventureiro galante e perverso, em

memoráveis façanhas por terra-mar-e-ar, lá fui eu.

Lá fui eu com meus sete longos anos de vivências em lições

de vida e em lições de coisas, mas ainda analfabeto, entrando no

primário de mala e cuia, com a mochila do material escolar e a

lancheira com pão, ovo e banana, para o recreio.

Nas minhas ingênuas imprudências e confusas

perplexidades, próprias da infância, vi festeiros e festejos

deslumbrantes, procissões, carnavais e paradas patrióticas; vi

gente fardada e paisana se matando em barricadas; vi operários e

secretas, grevistas e pelegos, agredindo-se nos portões das

fábricas; vi guardas civis e gente pacata fazendo a cidade; vi

mulheres da vida e vagabundos excomungados pelas boas

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famílias; vi pobres e doentes públicos e os de bom coração fazendo

caridade... Mas não tinha explicações para essas realidades. Eu

até supunha que elas estivessem escritas nos jornais, revistas e

livros, mas fora do alcance da minha infantil curiosidade.

Deslumbrado com o novo cenário social que se abria para

mim, no bulício da criançada no primeiro dia de escola, entrei na

sala de aula e me postei perfilado de escoteiro no meu lugar.

Diante da professora — que me pareceu majestosa dando

início à sua aula com a primeira ordem: Crianças! Atenção!

Silêncio! — me senti mudado em gente grande. Me senti um

trabalhador aprendendo uma nova profissão: a de saber ler e

escrever. Me senti um soldado se armando para a conquista da

sabedoria escrita que, a mais daquela que se aprende vivendo,

somente se adquire nos livros.

Anos depois, me dei conta de que não havia ido à escola para

aprender a viver os fatos da vida, mas para me fazer um cidadão

civilizado. [27]

Lá fui eu, criança, curioso em descobrir como é que se

escreve nos livros tudo o que acontece no mundo e daí, com eles,

como é que se aprende a reler o acervo do universo literário que

demandou milênios e milênios para se acumular.

As dimensões do fabuloso e do plausível, do ideal e do real,

não guardam fronteiras bem demarcadas na imaginação infantil.

Quando crianças temos noções inteligentes das verdades relativas

a isto ou àquilo. Mas, aí, preferimos não nos deixar guiar por elas

porque, na verdade, pouco importa ao simbolismo infantil limitar-

se a acanhadas veredas formais; a trilhos de bitolas estreitas.

Afinal de contas, a África do Tarzan, a China do Marco Polo,

as léguas de Júlio Verne, as serras do Peri, da Ceci e do Saci-

Pererê, etc, sem esquecer dos montes Cárpatos com os nevoentos

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castelos do Conde Drácula, se encontram de fato nos mapas da

Geografia Física, lhes conferindo imaginosas significações que

favorecem memorizá-las. As aventuras dos cangaceiros do

Lampião, o Navio Negreiro do Castro Alves, e as Reinações do

Narizinho e do pobre Jeca Tatu, com brasileiríssimas lições-de-

vida, entusiasmavam a leitura da História do. Brasil do Rocha

Pombo.

Guardo lembrança de uma escola prestigiando, antes de

tudo mais, a inteligência dos alunos, ensinando-os a não a

deixarem prisioneira de informações provisoriamente objetivas e,

tampouco, soltá-la em deslumbramentos subjetivos: nem tanto ao

mar, nem tanto à terra; lembro de uma escola criadora de leitores

abertos e curiosos para conhecer de tudo um pouco, e melhor se

situarem nos tesouros de suas preferências espirituais. Em suma,

de uma escola formando conscientes leitores sociais, exigentes de

que os textos preservem, entre outros méritos, uma relação

evidente entre as definições verbais e as significações sensíveis.

Bertrand Russell1 falou disso: É verdade que a educação

procura despersonalizar a linguagem, e o faz com certa medida de

êxito. A “chuva” já não é mais esse fenômeno familiar, mas, sim,

“gotas de água que caem das nuvens em direção à terra”, e a

“água” já não é mais o que nos molha, mas, sim, H2O. Quanto ao

hidrogênio e oxigênio, ambos tem definições verbais que precisam

ser apreendidas de cor; não vem ao caso que a pessoa as entenda

ou não. E assim, à medida que a [28] instrução prossegue, o mundo

das palavras vai se tornando cada vez mais separado do mundo

dos sentidos... por fim, tornamo-nos tão exímios manipuladores das

frases que quase não precisamos lembrar que as palavras têm

significados... No entanto, não podemos mais ter a esperança de ser

poetas: se tentarmos ser amantes, veremos que a nossa linguagem

Page 30: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

despersonalizada não surtirá muito efeito para gerar as emoções

que desejamos. Sacrificamos a expressão pelo que comunicamos, e

o que podemos comunicar resulta ser abstrato e seco.

A propósito de Russell, contam que, tirando umas férias no

campo, foi abordado por um camponês que lhe pediu um livro

emprestado. Ele gostava de ler, mas não havia livrarias na região.

Bertrand, então, emprestou-lhe os Diálogos de Platão. No final das

férias, ao devolver-lhe a obra, o homem disse que o havia lido três

vezes.

— E o senhor gostou do que leu? — Russell lhe perguntou.

— Gostei muito! Muito mesmo! — O camponês respondeu. —

Esse tal de Platão tem umas idéias muito parecidas com as

minhas!

Superestimar as idéias do filósofo vai muito bem, tanto

quanto subestimar, a priori, por preconceito, as idéias do homem

comum, vai muito mal. Um e o outro, no que de fato são

pensadores, necessariamente, pensam as mesmas verdades da

condição humana. Daí, sabendo disso, e levando-se na devida

conta as diferenças vivenciais de cada um, podemos dizer o

mesmo sobre as idéias que passam pelas cabeças dos adultos e

das crianças. Uma criança esperta não deixa por menos: adulto

sabido, de fato, só pode ser aquele que tenha idéias muito

parecidas com as dela.

Por isso, livros apropriados para crianças, tornando-as,

desde logo, conscientes leitores sociais, hão de ser os de autores

que, antes de outros méritos, não esquecem que ser criança

também quer dizer ter nascido um sábio leitor, por acaso,

provisoriamente, analfabeto.

1 (Bertrand Russell, O conhecimento humano. Vol. 1o, p. 15, Cia. Ed. Nacional, 1958.) [29]

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5 — EDMIR PERROTTI

Leitores, ledores e outros afins

(apontamentos sobre a formação ao leitor) Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, autor de Bordado Encantado; O Texto Sedutor na Literatura Infantil; Confinamento Cultural, Infância e Leitura.

Ao tentar elaborar uma súmula que me orientasse na

redação deste trabalho, veio-me à mente um escrito de Sartre

sobre a literatura. Se me lembro bem, a publicação era, na origem,

uma conferência em que o filósofo estabelecia uma distinção entre

“fazedores” de livros e escritores. Fugindo do velho chavão da

inspiração — afinal, quem é inspirado? quem não é? — Sartre

centra seus argumentos no terreno mais palpável das opções

humanas. Segundo ele, as páginas apressadas e superficiais dos

“fazedores” de livros não estariam interessadas em enfrentar a

complexidade e a opacidade dos vínculos que nos ligam ao

mundo. O compromisso e o engajamento com a causa da

existência humana seriam atributos somente de artistas

autênticos, que tomam a linguagem não enquanto instrumento de

decifração rasteira do mundo, [31] mas enquanto fonte de

prospecção e indagação radicais.

As colocações de Sartre apontam para um caminho que me

parece essencial compreender ao se abordar a questão da leitura.

Desse modo, em que pese todos os condicionantes de diferentes

ordens, ler é uma atividade que envolve essencialmente um modo

de relação com a linguagem e as significações. Face a isso, talvez

Page 32: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

seja possível estabelecer uma correlação com o autor de As

palavras e dizer: há uma distinção fundamental a ser feita entre

ledores e leitores. Os primeiros seriam sujeitos que se relacionam

apenas mecanicamente com a linguagem, não se preocupando em

atuar efetivamente sobre as significações e recriá-las. O texto é

tábula rasa, exposição sem mistérios das poeiras do mundo. Os

leitores, ao contrário, seriam seres em permanente busca de

sentidos e saberes, já que reconhecem a linguagem como

possibilidade e precariedade, como presença e ausência ao mesmo

tempo, ambigüidade irredutível face aos objetos que nomeia —

“Lutar com palavras é a luta mais vã/ entanto lutamos mal rompe

a manhã”, sintetiza Drummond.

É possível que o leitor pergunte com razão se a distinção

inspirada em Sartre faz sentido, se não peca pelo reducionismo. A

melhor resposta talvez seja sim e não. Sim, porque ao envolver

conceitos, ela tende à redução. Não, porque os conceitos

expressam pontos de vista e valores a respeito de uma realidade e

não são a própria realidade a que se referem. E, no caso, está-se

querendo distinguir uma atitude meramente exterior, ligeira face à

linguagem, de uma atitude empenhada, compromissada, para

usarmos terminologia sartreana.

Está-se tentando distinguir uma atitude reprodutora,

consumista face à linguagem, de atitude criadora e crítica, uma

vez que no mundo contemporâneo tudo tende ao mercado e ao

consumo, inclusive a leitura. Como sabemos, o comércio da

escrita não atua apenas sobre os autores, sobre aqueles que

escrevem, mas sobre todos os envolvidos no seu circuito. Não são,

portanto, apenas os escritores que estão em risco, nas sociedades

de consumo. Os leitores também estão. A lógica de nossas

sociedades tende a conferir atenção especial aos ledores, deixando

Page 33: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

margem mínima para os leitores e suas dificuldades. Um só

exemplo: se há cada vez mais livros no mercado, de outro lado, há

cada vez menos condições de exercitarmos leituras reflexivas,

aquelas que exigem forte [32] concentração, que demandam

tempo, anotações, perguntas a outros autores, a outros leitores,

que conduzem a releituras, ao estudo de pequenos trechos, a

embates profundos e intensos entre texto e leitor. Se, como coloca

um autor alemão, é verdade que a leitura extensiva é cada vez

mais praticada em nosso mundo, vale perguntar se o mesmo

ocorre com a leitura intensiva, aquela que nos lança adiante, que

permite o salto, que nos assalta e é medida muito mais pela

qualidade de seus efeitos que pelo número de páginas lidas.

Nesse sentido, ao se atuar no campo da formação de leitores,

acredito que seja preciso a explicitação de uma concepção de

leitura e de leitores que faça distinção entre os conceitos

apontados. Se as concepções sozinhas não alteram a realidade,

ações desorientadas também dificilmente obterão resultados em

campo tão complexo como o da educação e da cultura. Atirar a

esmo pode ser fácil, mas dificilmente nos fará atingir o alvo

desejado.

Entretanto, dadas as condições contemporâneas, e, em

especial, as brasileiras, não acredito que todas as ações tenham o

mesmo valor. E é o que se está dizendo quando se afirma que toda

e qualquer concepção bem como toda e qualquer forma de ação

são válidas. Claro que no abstrato poderão ser. Mas como o que se

deseja é a atuação na ordem histórico-cultural, é a formação de

leitores e não de ledores, torna-se necessário desenvolver práticas

afinadas com princípios implicados na distinção. Na mesma trilha

de Sartre, Paulo Freire mostrou-nos, por exemplo, a diferença

entre promover hábitos de leitura e promover o ato de ler. Mostrou-

Page 34: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

nos que a decifração mecânica de sinais é atividade totalmente

diversa da ação voluntária sobre a linguagem implicada no ato de

ler. Hábitos estão ancorados na repetição mecânica de gestos;

atos, na opção, no exercício da possibilidade humana de articular

o agir ao pensar, ao definir, ao escolher.

Desse modo, é fundamental deixar claras as concepções

implicadas nos programas de promoção da leitura em curso no

país. É preciso saber se o objetivo é formar consumidores da

escrita, meros usuários do código verbal, ou seres capazes de

imprimir suas marcas aos textos que lêem, estabelecendo com eles

um diálogo vivo e único cujo horizonte não é apenas a busca de

respostas, mas também a formulação [33] de novas indagações.

Parodiando Eco, é preciso distinguir leitura fechada de leitura

aberta, já que o horizonte dos ledores é o fechamento e o dos

leitores, a abertura.

Antes de continuar é bom explicitar aqui uma questão: o

nosso encaminhamento poderá levar a crer que aquela leitura

descompromissada, gostosa, que fazemos na sala de espera do

dentista, na praia, no ônibus, estaria aqui incluída no rol da

leitura extensiva de ledores. Não é disso que estamos tratando.

Podemos sim ter atos descomprometidos de leitura. Afinal, não

estamos permanentemente nas “barricadas do desejo”. A questão

está em outra parte. Ser ledor quando se é leitor é condição

completamente distinta de ser ledor por falta de opções.

Se a formação de leitores implica necessariamente a

definição e o ajustamento de concepções, implica também a

criação de instituições, gestos, modos de atuação compatíveis com

as opções definidas. Assim, se as grandes festas editoriais como as

feiras de livros são elementos que, devidamente utilizados, podem

colaborar com políticas de formação, não se pode deixar de

Page 35: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

considerar que, isoladas, elas se dirigem mais aos ledores que aos

leitores. Da mesma forma, pesquisas ou práticas que se

preocupam apenas com o número de títulos que um aluno lê por

semana, por mês ou por ano. Ora, se a matemática — financeira

ou não — é uma variável que atua sobre a leitura, ela está longe

de indicar o que quer que seja, ao aparecer desvinculada da

problemática da formação de leitores e das implicações de ordem

simbólica envolvidas nos atos lingüísticos.

Nesse sentido, a formação de uma sociedade leitora envolve

não apenas a criação de instituições indispensáveis à sua

constituição (escolas, bibliotecas, editoras, livrarias, entre outras),

como também uma reflexão aprofundada sobre a natureza dessas

instituições, o sentido de suas orientações e de suas práticas.

Tendo em vista os objetivos deste trabalho, destaco neste

ponto um aspecto da questão que me preocupa bastante

atualmente: os espaços de leitura. Sabedor da importância que

eles desempenham na formação de leitores, venho dirigindo meu

trabalho de pesquisa para esse objeto, já que estou certo de que a

apropriação da leitura pelo país demanda uma transformação

radical nas condições institucionais vigentes nesse [34] âmbito

entre nós.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, na sociedade

brasileira em seu todo, a leitura não é ainda nem hábito nem ato.

Ao contrário, ela é vista como comportamento diferenciador, a que

somente seres privilegiados, bem dotados intelectual, cultural e

economicamente, podem ter acesso. As exceções não fazem senão

confirmar a regra. Em decorrência, o que se reserva às maiorias,

quando muito, é o exercício de reconhecimento de signos para

atividades imediatas ligadas à sobrevivência ou pouco mais que

isso.

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Assim, face à falta de intimidade da sociedade, em geral, com

a escrita, não espanta que o espaço familiar não se constitua em

território de introdução das crianças no mundo da cultura

impressa, como ocorre em algumas sociedades em que a leitura é

um instrumento fundamental de mediação das relações

domésticas. Nas casas brasileiras, a televisão com seus apelos de

consumo que continuam reinando absolutos enquanto vivência

simbólica comum. Em decorrência, a criança chega à escola sem

essa experiência única da escrita em situação doméstica e que

serviria para embasar e facilitar extraordinariamente sua

formação de leitor.

Porém, o que faz a escola com essa falta, eis o outro nó do

problema. Ao invés de atuar sobre a ausência, ela passa em geral

a recriminar a família, a responsabilizá-la por ações que quase

nunca tem condições de cumprir. Desse modo, se a criança

apresenta dificuldades para apropriar-se da língua escrita, tal fato

deve-se à falta de estímulos domésticos, à falta de incentivos, à

omissão dos pais na educação dos seus filhos. Ora, seguir tal

caminho não parece levar a grandes resultados, já que a busca de

culpados nunca foi a melhor solução onde cabem ações

pedagógicas. Entendo, pois, que seja necessário deixar de lado as

estratégias de culpabilização e, antes, procurar meios capazes de

incluir as famílias nos projetos pedagógicos, seja por meio de

ações diretas ou indiretas.

Talvez valha a pena um exemplo de inclusão bem sucedida

que adotamos num projeto de pesquisa que coordeno, no

Departamento de Biblioteconomia, da Escola de Comunicações e

Artes, da Universidade de São Paulo. Assim, em 1994, criamos,

em cooperação com a Divisão de Creches, da Coordenação de

Serviço Social da universidade, uma [35] biblioteca-laboratório

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numa creche do campus que atende crianças de zero a seis anos:

a Creche Oeste.

A “Oficina de Informação” — esse o nome do serviço criado -

estruturou-se a partir de um conceito de criança enquanto ser

cultural que se constrói em relação. Assim, se as atividades visam

sempre cada criança ou grupo de crianças em sua irredutibilidade

irrestrita, não são todavia dirigidas apenas a elas. Há também

momentos para as rodas de histórias que agrupam pais e filhos,

para as escolhas conjuntas de livros, para o empréstimo domiciliar

(os horários procuram aproveitar o momento em que os pais vêm

buscar os filhos), para ações informais de troca de informações

entre os mediadores da Oficina e os responsáveis pelas crianças.

Discute-se nesses momentos os usos do livro em situações

familiares, comenta-se, orienta-se, colhem-se dados essenciais à

estruturação e ao funcionamento do serviço. Os pais não vão à

creche, portanto, para simplesmente deixar ou buscar os filhos ou

para reuniões pedagógicas. Vão também para viver experiências

culturais, para apropriar-se de instrumentos e participar de

atividades que até o momento de intervenção da Oficina não

faziam parte do repertório da maioria das casas e que pouco a

pouco começaram a fazer.

Criar vínculos com a família parece ser, portanto, um

caminho promissor, afirmativo, ao contrário da culpabilização

paralisante, do estado de lastimação reativo e que não leva senão

a becos sem saída. Claro, tal percurso coloca exigências nem

sempre fáceis de serem cumpridas. Em todo caso, a experiência

da Oficina de Informação da Creche Oeste vem mostrando que,

apesar dessas dificuldades, é recomendável enfrentar desafios e

apostar na invenção. As possibilidades de ganhos são altas.

Assim, acredito que, especialmente em país como o nosso,

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em que a cultura do livro e da escrita está ainda distante de ser

uma realidade viva, disseminada por todos os territórios sociais, o

caminho do estreitamento dos vínculos entre os diferentes espaços

de leitura é fundamental: escola, família, biblioteca têm que achar

pontos de contato e articulações indispensáveis à formação de

leitores. Contudo, dado o quadro sociocultural do país, a iniciativa

na maioria das vezes deve caber à escola, já que, como diz Samir

Meserani, ela é a agência privilegiada [36] do escrito em nossa

cultura. Caso existam, o papel poderá caber também às

bibliotecas, como foi o caso relatado da Oficina que, de resto,

encontra-se em uma instituição de educação infantil.

Para exercer tal trabalho, é evidente que a escola terá que

mudar suas concepções, suas relações tradicionais com a leitura e

com a atividade pedagógica em geral. Em primeiro lugar, como já

foi expresso antes, será preciso redefinir orientações teóricas,

objetivos, metodologias. Hoje, se muitas ações já são feitas de

forma consciente e criteriosa por educadores empenhados e

afinados com projetos transformadores, muitas são também

desenvolvidas de formas inconscientes, inconsistentes e

burocráticas, por profissionais desestimulados, sem vontade de

mudar, de inventar, que abdicaram do desejo de se expressar em

suas práticas cotidianas. Se, em boa parte, o desestímulo resulta

de condições aviltantes impostas à educação no país, resulta,

também, da desmobilização pessoal e da ausência de

comprometimento político, educacional e cultural. Em tal

contexto, a profissão se reduz à sua mera e parca função

econômica, e, seu exercício, em tempo de espera da

aposentadoria. Um terror!

Evidentemente, com tais considerações, não desejo deixar de

lado a importância das políticas educacionais enquanto motor

Page 39: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

essencial das transformações pedagógicas. Sem isso, as ações

tendem a ser localizadas, pontuais e parciais. Logo, a

democratização da educação e da cultura passa necessariamente

por tal questão. O reconhecimento da importância dessas políticas

e das omissões históricas observadas entre nós nesse aspecto não

pode, contudo, servir para justificar o imobilismo pedagógico.

Adotar tal ponto de vista seria render-se às forças da morte, em

detrimento da crença na força explosiva da criação e da

imaginação. Se está na moda, portanto, reivindicar luxo para

todos, não se pode perder de vista que o luxo não significa

necessariamente invenção, criatividade. Ao contrário, pode

representar o lugar comum, o pasteurizado, a falta de vida

pulsante. Se ter condições favoráveis é ponto facilitador das

transformações, saber conquistá-las e mantê-las é tarefa

estimulante que deve merecer especial atenção dos educadores

comprometidos com a renovação.

Neste momento cabe, mesmo se breve, uma palavra sobre

outro ponto essencial referente à necessidade de preparação dos

mediadores [37] para as novas concepções e práticas. Assim,

acredito que será preciso, em primeiro lugar, que os mediadores

descubram a leitura, experimentem eles próprios a condição de

leitores, já que boa parte, infelizmente, é forçoso admitir, são,

quando muito, ledores. Antes de mais nada, será preciso que se

apropriem do ato de ler e das estratégias pedagógicas ajustadas a

tal perspectiva. Fazer do mediador leitor e, ao mesmo tempo,

profissional competente na área é condição que se impõe a

qualquer programa sério de formação de leitores. Como lembra

Barthes, a leitura não é um conceito abstrato. É antes uma

prática concreta, um jogo, um exercício lingüístico. Desse modo,

sem que se pratique, será difícil o domínio do processo, o

Page 40: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

reconhecimento de suas dificuldades, limites e possibilidades pelo

mediador. A estratégia do faça o que eu mando e não faça o que

eu faço não parece ter muitas chances de vingar no campo de que

nos ocupamos.

Se o papel da família e da escola necessita ser revisto, é

preciso, também, que a biblioteca siga novas orientações, a fim de

ser descoberta pelo país, ao mesmo tempo que o descobre. É

incrível que tenhamos chegado ao final do século XX na situação

de penúria em que nos encontramos neste campo. É como se, em

plena era das telecomunicações, estivéssemos usando apenas

sinais de fumaça para entrar em contato com pessoas de nosso

interesse. Assim, por exemplo, uma mãe foi à biblioteca-

laboratório que implantamos numa escola municipal de ensino

fundamental da periferia de São Paulo. Queria ver o que era

aquele objeto estranho de que seu filho tanto falava e que ela não

tinha a noção do que fosse. Queria saber o que era o lugar que

interessava o filho, pois temia que pudesse ser alguma coisa muito

perigosa. Afinal, pensava ela em sua simplicidade e com exatidão,

são tantas ameaças aos jovens que, sem dúvida nenhuma, é

preciso estar atento.

O exemplo da sincera e aflita mãe nos dá a dimensão do

problema que nos atinge, ou seja, da distância existente entre

biblioteca e sociedade no Brasil. Desse modo, se o país não é

capaz ainda de reconhecer a importância fundamental das

bibliotecas, as bibliotecas existentes não são capazes de dialogar

com o país, de se mostrarem e se fazerem essenciais à vida

brasileira.

Com isso, retornamos ao ponto de partida: é preciso não

apenas [38] criar bibliotecas, mas também desenvolver novas

concepções e práticas, articuladas com nossa experiência de

Page 41: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

mundo, nossos traços culturais fundamentais, nossos graves

problemas socioculturais: fome, violência, analfabetismo, pobreza,

massificação, discriminações sociais, raciais, entre outras

questões de igual importância e que atingem a maior parte de

nossa população.

Diante de tal contexto, venho trabalhando na ECA/USP, na

coordenação de equipe de pesquisadores brasileiros e

estrangeiros, alunos de graduação e pós-graduação, educadores

de diferentes níveis e procedências, na sistematização do conceito

de Biblioteca Interativa, ou seja, na constituição de uma concepção

de serviço de informação e cultura capaz de atuar na mudança

das relações atuais existentes entre biblioteca e sociedade no

Brasil. É a partir dessas premissas que foram construídos os

espaços laboratoriais a que me referi anteriormente, bem como a

Estação Memória, outro espaço que criamos e desenvolvemos na

Biblioteca Infanto-juvenil Álvaro Guerra, em cooperação com a

Secretaria Municipal de Cultura, da cidade de São Paulo.

A construção desses espaços pautou-se por uma concepção

de biblioteca enquanto espaço transitivo, em relação dialógica com

a sociedade em que se acha inserida. Mas obedeceu a

necessidades de sistematização de procedimentos e ferramentas

de trabalho indispensáveis à consecução de tais ideais. Os

resultados já obtidos indicam que estamos no caminho correto e

que é possível reverter o fosso existente atualmente entre

biblioteca e sociedade no Brasil. As crianças da Oficina, os alunos

que freqüentam a Biblioteca Escolar Interativa, da Escola

Municipal de Ensino Fundamental Prof. Roberto Mange, os

freqüentadores da Estação Memória indicam que há avidez de

conhecimento e de comprometimento com a aprendizagem, a

cultura e a leitura, mesmo em locais com condições socioculturais

Page 42: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

difíceis e que à primeira vista não se interessariam por livros,

leitura e outros afins. Há crianças da Escola Roberto Mange que

fogem do recreio (!!!) para ir à “Biblioteca Interativa”, como eles

próprios a chamam. O mesmo já ocorreu várias vezes na creche,

com crianças pequenas de 4, 5, 6 anos.

As novas propostas mostram-se, assim, eficazes e

necessárias aos projetos de formação de leitores. Os pressupostos

interacionistas [39] adotados na configuração dos espaços criados

vêm-se mostrando adequados e capazes de quebrar resistências

nas relações leitura e sociedade. Ao se tornar espaço de expressão,

a biblioteca interativa abre espaço para a efetiva democratização e

não apenas para o acesso à cultura. É nesse aspecto que o

cidadão se distingue do consumidor, o leitor se diferencia do ledor.

Se este tem olhos e ouvidos ávidos, aquele tem, além disso, boca e

um desejo urgente de expressão, já que se posiciona, julga,

compromete-se intensamente com o que lê. Diferentemente do

ledor, o leitor não tem vocação para o consumo sígnico. Seu

horizonte é a expressão, a existência cultural, a reintrodução da

vida nos registros aprisionados no papel. Como diz Michel de

Certeau em sua bela metáfora, o leitor é caçador que efetua

saques em campos alheios, tentando assim acalmar sua fome de

sentidos e significações. A errância é seu destino, já que onde

vislumbra novos sentidos lá está ele pronto para um novo saque.

Nesse sentido, as bibliotecas, assim como os demais espaços

de leitura, devem oferecer-se como campo possível às errâncias e

não enquanto territórios inibidores da livre circulação,

propriedades demarcadas, ferreamente vigiadas por pequenas

autoridades e seu zelo desmedido pelas regras. Jamais tentar,

portanto, aprisionar a leitura, eis regra de ouro para os espaços de

leitura que desejarem desenvolver ações positivas na formação de

Page 43: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

leitores. A natureza errante destes, em contraposição à natureza

condicionada dos ledores, somente poderá florescer

completamente se encontrar campos abertos, espaços capazes de

permitir as mais belas cavalgadas, os mais impressionantes saltos

a cavaleiros ávidos e espantados com a riqueza da aventura

humana. [40]

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6 — ELIANA YUNES

Vista de um ponto Eliana Yunes — que concorda com Borges e se orgulha mais das páginas que leu do que das que escreveu —, é professora de Letras e aprendeu que elas são mortas se o homem não as vivifica. Pesquisadora, criadora do PROLER, professora de Teoria na PUC-Rio, com atuação em universidades públicas de vários Estados, tem extensa bibliografia teórica e metodológica sobre leitura. É, também, consultora de organismos internacionais.

O que mais tenho a dizer sobre a formação do leitor, depois

de ter passado quinze anos vivendo e pesquisando o percurso, de

ter proposto uma teoria e uma pedagogia que, ao que parece,

ainda não foi refutada nem revista e ampliada por pares e ímpares

daqui e d’além mar? Uma e outra correm o país e já estão

recolhidas em teses e dissertações, eximindo-me da obrigação de

concluí-las: elas caminham com os próprios interlocutores. Não,

não se trata de presunção ou arrogância. Trata-se de uma

“evidência invisível” como o claro enigma “drummondiano” que só

conhece quem experimenta. E disto podem dar testemunho

milhares de neoleitores que se vêm constituindo no Brasil, com

todo o rigor teórico mas sem efeitos especiais de intelectualismo;

com toda a metodologia preconizada mas sem os malabarismos

das receitas técnicas, que se [41] tornam obsoletas, tão logo

mudem os contextos e os sujeitos.

Mas, no mesmo dia em que recebi a convite de Paulo Condini

para escrever quatro laudas sobre o tema deste livro e que

Page 45: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

vacilava em fazê-lo, chegou-me um correio eletrônico de Maria

Angela Campeio de Melo, com uma mensagem destas que, de

tanto gostar, ela distribuía pela Internet, em fragmento.

Ei-lo:

“O paradoxo de nosso tempo na história é que temos

edifícios mais altos, mas pavios mais curtos; auto-estradas mais

largas, mas pontos de vistas mais estreitos; gastamos mais, mas

temos menos; compramos mais, mas desfrutamos menos,

variedade de cardápios, mas menos nutrição. São dias de duas

fontes de renda, mas de mais divórcios; de residências mais belas,

mas lares quebrados.

“São dias de viagens rápidas, fraldas descartáveis,

moralidade também descartável, ficadas de uma só noite, corpos

acima do peso, e pílulas que fazem de tudo: alegrar, aquietar,

matar.

“É um tempo em que há muito na vitrine e nada no estoque;

um tempo em que a tecnologia pode levar-lhe essas palavras e

você pode escolher entre fazer alguma diferença, ou simplesmente

apertar a tecla Del.” (P. Fabro)

A aproximação meramente casual dos papéis na impressora

ofereceu-me a justificativa e o pretexto. Quem me lê deve estar

pensando o que tem este texto a ver com o que me foi pedido dizer,

em exíguas linhas que pareço desperdiçar. Nesta escrita — sem

sofisticações lingüísticas, coloquial quase, com uma economia de

recursos expressivos, feitos de pontuações antitéticas em

estruturas paralelísticas —, que leio? Para além do dito, o

implícito e o subentendido: uma leitura crítica de mundo.

Para escrever essa leitura — porque ela o é, não sendo

necessário lembrar Paulo Freire — grafando-a em um instantâneo

de frases curtas, o autor/leitor (de mundo) deve ter se debruçado

Page 46: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

atentamente sobre a vida dos homens neste final de milênio, com

os valores e expectativas de seu repertório pessoal, recolhidos de

um amplo acervo de memórias atuais sobre a condição humana,

em hora de profundas contradições.

Sabendo que na linguagem os discursos tanto flagram a

natureza [42] dada das coisas em seu recorte cultural, quanto

fazem surgir, nos desvãos do consenso e da linearidade, a palavra

inaugural que surpreende outras versões de mundo, podemos

dizer que um leitor se vai constituindo também por ela. Enquanto

pronuncia-se como um pronome /eu/, sujeito conscientizado de

seu lugar histórico e responsável pelas conseqüências de seu

dizer/pensar/fazer, o leitor alcança uma singularidade própria e

comunicável, passível de ter assinatura.

Ela, a singularidade, se dá como expressão de uma

compreensão súbita que não ignora o contexto, os interlocutores e

suas outras motivações; ela propõe sentido para o vácuo que há

entre o mundo e o anseio de plenitude e transparência do homem,

na visão desse leitor — e se oferece como escrita.

Ela, a linguagem, é denúncia de nossa doença, de nossa

falta, e, ao mesmo tempo, nosso remédio e cura, ponte sobre o

vazio. A leitura singular é resposta e recusa à passividade; leitura

é mais que recepção. O leitor que percebe as fraturas de nossas

práticas quer acusá-las na criação, o que nem sempre se dá sem

conflitos. E lá está a palavra que convida a sair da casca, que

provoca, incita o próprio desejo de ser outro e não o mesmo:

“Galos sozinhos não tecem manhãs.”

Recorrer à literatura realiza isto porque não diz, antes pede a

seu leitor que o diga, que se pronuncie, e, tendo “lido”, escreva.

Isto fez Fabro e faço eu: “fisgo pela palavra, a não palavra”; só se é

escritor porque antes se é leitor. Mais ainda, vejo no texto quantas

Page 47: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

observações atentas em marcas da língua, aparecem

singularmente articuladas, reunidas para insinuar a dissonância

que, afinal, expressam — faço a leitura da palavra. Nela,

subitamente o novo, a outra coisa, a terceira margem — e nós,

seus leitores, que nos inscrevemos no texto, apertando a tecla

ENTER: pronto, aqui estamos, parceiros das subjetividades com

que construímos o mundo — não apenas porque endossamos,

rejeitamos ou polimos o texto e as idéias. Mas sobretudo porque,

ouvindo nossa voz no comentário, criamos e sabemos então o que

é ser... humano. [43]

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7 — ELIZABETH D’ANGELO SERRA

O direito à leitura literária Pedagoga, assumiu a Secretaria Geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 1989, e desde 1996 é membro da Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Incentivo à Leitura da Fundação Biblioteca Nacional (PROLFR).

Os Congressos de Leitura — COLE, promovidos pela

Associação de Leitura do Brasil — ALB, reúnem, de dois em dois

anos, um número cada vez maior de pessoas vindas de todas as

regiões do País que esperam ouvir, falar, conversar, aprender,

trocar experiências e refletir sobre questões de leitura e de escrita.

O crescente interesse pelo tema do congresso, como área de

estudo e como prioridade na ação educativa, traz algo novo com

grande força política, além de aprimoramento profissional,

conferindo aos participantes um papel de vanguarda na educação

e na cultura. Trata-se da conscientização da função social da

leitura e da escrita como resultado de um compromisso com a

melhoria da qualidade de vida da população.

Embora esta conscientização ainda seja muitas vezes afetiva

e [45] emocional, é objetiva quanto à meta a alcançar. Essa

determinação merece ser ressaltada pois seu efeito multiplicador é

fortalecido nesses congressos, ampliando, assim, o potencial

revolucionário da leitura na ação individual de cada professor-

leitor. Sabemos que a transformação de nossa realidade

educacional é muito mais complexa que o desejo de transformar.

Mas é o desejo e a paixão que impulsionam o início de uma

Page 49: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

possível mudança.

Entendemos a formação do leitor como um processo

histórico, dinâmico e dialético, de reconhecimento de signos

escritos, pertencentes a uma determinada estrutura lógica, cujos

significados somente se expandem e se multiplicam através de

uma alimentação permanente e variada de textos escritos, e de

entornos e contextos culturais motivadores da leitura, processo

onde, apesar de silenciosa, se trava uma disputa de poderes. A

ausência de bibliotecas públicas modernas no País, com bons

acervos e bibliotecários preparados para atender à necessidade de

leitura e de informação da população, é a expressão dessa disputa

como reflexo da concentração de poder sobre o conhecimento.

Os programas de alfabetização de adultos, por exemplo, para

abrir de fato a eles as portas do mundo da escrita, não deveriam

ficar restritos aos bancos escolares, mas acontecer nas Bibliotecas

Públicas. Somente através delas a emoção de ler pela primeira vez

poderá ser alimentada, da mesma forma como fazem aqueles que

já são leitores porque podem comprar livros ou freqüentar

bibliotecas. Não basta ensinar um adulto a ler. É necessário

garantir-lhe o direito à convivência com livros, revistas e jornais,

para que seja um leitor. As crianças e jovens brasileiros cujas

famílias também não podem formar suas bibliotecas particulares

devem, desde cedo, conviver com a leitura e os livros nas

bibliotecas das escolas para se familiarizarem com o espaço e,

quando adultos, irem ao encontro delas com naturalidade porque

conhecem a importância social dos seus serviços.

Espanta-nos o silêncio sobre a importância social das

Bibliotecas Públicas por parte dos intelectuais. Ao reivindicarem

igualdade de oportunidades na educação ou no acesso à cultura,

raramente falam das funções da Biblioteca Pública para a

Page 50: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

democratização permanente do conhecimento. A omissão dos

intelectuais é grave e reflete uma visão [46] elitista e egoísta, pois

parecem esquecer suas próprias histórias de leitura. Sem livros

não é possível ser leitor.

A escola desempenha a função da educação formal, contudo

é a Biblioteca Pública a instituição do conhecimento, que está

aberta aos interesses das pessoas por toda a vida, e é através dela

que a maioria da população tem condições materiais para se

formar leitora. O pré-requisito para escritores, criadores, artistas,

cientistas e mesmo jornalistas para exercerem suas funções é ser

leitor. Também têm que ser leitores os que podem desfrutar

plenamente das artes e das ciências para apreciá-las, estudá-las

ou reinventá-las. Isto é uma forma de poder. A leitura que os une

e forma a base cultural que os qualifica não é a leitura técnica,

mas a literária.

A formação de leitores tem sido, assim, fruto de uma

situação histórica, determinada por condições econômicas,

emocionais e culturais. O poder abstrato da leitura literária

sempre esteve ligado a um poder concreto que é o econômico.

Contraditoriamente, os livros são produtos comerciais, o que os

coloca numa relação de produção que, por sua vez, é o que

possibilita a sua multiplicação e conseqüente deselitização.

A leitura apresentada com uma função social maior do que o

reconhecimento do código escrito é uma conquista recente. Com o

advento da industrialização, nos anos 20, o mercado exigiu uma

mão-de-obra que soubesse reconhecer as letras e os números. A

sofisticação desse mercado passou a exigir, mais recentemente,

trabalhadores com maior capacidade para apreender e absorver

tecnologias complexas que exigem leitura de textos mais longos,

redação de relatórios, manuais e conhecimento de inglês. Outro

Page 51: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

aspecto é a mobilidade das classes sociais brasileiras na busca de

melhor posição na pirâmide social, um dos efeitos do processo de

democratização. A escolaridade é considerada, por grupos sociais

mais pobres, como fator decisivo para ampliar as suas chances de

trabalho e, conseqüentemente, facilitadora da ascensão social. E

boa escolaridade é sinônimo de uma boa habilidade de leitura!

Nos últimos anos a escola pública brasileira tem buscado

melhorar as suas condições de trabalho, discutindo o seu papel

social e valorizando a sua função como entrada principal, para a

maioria de crianças e jovens, no mundo da escrita. A compra de

livros de literatura pelo Governo [47] Federal vem crescendo e

ganhando espaço importante nas escolas. A publicação dos

Parâmetros Curriculares Nacionais e dos guias críticos dos Livros

Didáticos, a criação do Programa Nacional Biblioteca na Escola, o

movimento de valorização salarial do professor, a avaliação

nacional da qualidade dos vários níveis de ensino, a introdução de

televisões e computadores no espaço da escola estão colocando,

finalmente, a educação fundamental como prioridade nacional.

O Ministério da Cultura, com os programas “Uma Biblioteca

por Município” e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura —

PROLER, que agem de maneira integrada, tem divulgado e

fortalecido a relação entre a leitura e as bibliotecas. Como

resultado, estados e municípios demonstram interesse pelo

assunto através da demanda por bibliotecas, situação inexistente

até 3 anos atrás.

Para formar leitores não basta, portanto, ensinar a ler, como

fez a escola da maioria da população durante muito tempo e que

hoje, por ação da sociedade, dos professores e dos governos,

começa a mudar. Alfabetizar é uma tarefa simples de ser realizada

quando há uma decisão política da sociedade e do governo.

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Mas não basta alfabetizar para formar leitores. O Mobral nos

ensinou isso e se o programa Alfabetização Solidária não criar as

condições, para os seus alfabetizados, de acesso permanente ao

livro, o processo de leiturização não ocorrerá por falta de uso da

habilidade adquirida. É o chamado iletrismo. É preciso, portanto,

criar uma estratégia integrada que contemple:

1. oportunidades de contato com os textos de qualidade

através de muitas, muitas bibliotecas, escolares e públicas,

incentivando, com apoio da mídia — televisão, rádio, jornal —, a

população brasileira a freqüentar bibliotecas, como direito do

cidadão, criando espaço para o desenvolvimento de uma cultura

de bibliotecas;

2. valorizar socialmente a leitura e a escrita informando

sobre a sua importância e ampla dimensão social, desvelando a

sua presença em produtos de cultura de massa onde não é

percebida, como na criação das telenovelas ou na atuação de

artistas famosos através da TV, teatro, cinema, música, a fim de

torná-las — a leitura e a escrita — desejáveis e necessárias à vida;

[48]

3. investir maciçamente na formação leitora e escritora dos

professores, principalmente os do ensino fundamental, colocando

o tema da leitura e da escrita como básico na formação do

magistério. É necessário que o professor resgate a sua identidade

como uma identidade leitora.

No Seminário que a Fundação Nacional do Livro Infantil e

Juvenil-FNLIJ organiza e coordena neste 12o COLE, o tema da

formação do leitor se une à reflexão sobre os projetos da sociedade

que nós adultos, queiramos ou não, deixamos registrados através

das leituras dos livros que oferecemos às crianças e jovens. A

partir desse foco propusemos a reflexão sobre três pontos

Page 53: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

estruturais na formação do indivíduo — ética, estética e afeto —

que servem de alicerce para os sentimentos de liberdade,

solidariedade e para os processos de criação.

Ao escolhermos o livro de literatura como representação

dessa interferência, entendemos que, como já foi dito, a leitura

literária contribui fortemente para a formação integral da pessoa.

Estabelecendo o livro, a leitura, a escrita e a ilustração como

pontos de contato entre crianças, jovens e adultos, queremos dizer

que formar ou não leitores é responsabilidade de todos os adultos

leitores onde quer que eles estejam ou em que função trabalhem,

numa demonstração prática, e não só teórica, sobre o que é

partilhar bens culturais.

O leitor em potencial é único e, por isso, só pode ser formado

um a um. Não se formam leitores em série. E só um leitor forma

um leitor. Ler no livro o texto literário para o outro, criança, jovem

ou adulto, partilhando a emoção de cada palavra, através da voz e

do movimento, desperta o interesse pela leitura e demonstra afeto

e atenção, explicitando a forte relação entre literatura e emoção,

entre um leitor e outro leitor.

Na última Feira de Livros para crianças e jovens, de

Bolonha, em abril de 99, tivemos a oportunidade de ouvir e

conhecer Daniel Pennac, professor francês e escritor, durante uma

palestra para professores italianos promovida por sua editora, na

Itália, sob o título: o Direito de Ler. Em seu livro Como um romance

Pennac defende uma pedagogia de leitura, através da leitura

partilhada em voz alta.

No entanto, sua principal mensagem para os professores foi

que esquecessem as “mensagens”, não formulassem perguntas

sobre um texto [49] literário dando a oportunidade ao aluno de

perguntar, falar, conversar o que quiser, pois a literatura é

Page 54: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

provocadora do pensamento. Disse, também, que o professor deve

controlar-se, reprimir sua ansiedade e acreditar no potencial da

criança e da literatura, dando ouvidos ao pequeno leitor.

Ao terminar a palestra, Pennac leu um texto que criou para

o evento cujo título é o nome do seu novo livro: Excelentíssimas

crianças, não publicado no Brasil, e que transcrevo para vocês

encerrando o nosso “ponto de vista sobre a formação do leitor”.

Excelentíssimas crianças

Se eu fosse vocês, a primeira coisa que pediria à professora

ao entrar na sala de aula, pela manhã, seria:

“Professora, leia uma história para nós.”

Não existe melhor maneira de começar um dia de trabalho!

E no final do dia, quando a noite chega, meu pedido ao adulto

mais próximo seria:

“Por favor, conte uma história para mim.”

Não existe melhor maneira para escorregar nos “lençóis da

noite.”

Mais tarde, quando vocês já forem grandes, lerão para outras

crianças aquelas mesmas histórias.

Desde que o mundo é mundo e que as crianças crescem,

todas estas histórias escritas e lidas têm um nome muito bonito:

literatura.

Bibliografia;

— LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da

leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

— LEITE, Paulo Moreira & DE MARI, Juliana. Andando para

cima. Revista Veja. São Paulo: Abril (1.602), 68-71, jun. 1999 [50]

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8 — ELZA LUCIA DUFRAYER DE MEDEIROS

Não tenho um caminho novo.

O que tenho de novo é o jeito de caminhar.

Thiago de Mello

Carioca, professora, assistente social e pedagoga. Membro da Equipe pedagógica do Programa Leia Brasil desde março de 1995, atualmente coordena a Assessoria Pedagógica dos seis estados em que o programa se faz presente.

Contos, poesias, músicas, reportagens, retratos, “causos”,

receitas, ilustrações, pinturas, esculturas, histórias contadas,

romances, novelas, programas de TV, filmes de curta e longa

metragem, desenhos animados, quadrinhos, livros de imagem,

propagandas... Oferecer numa reunião descontraída um banquete

de leituras, sem “pré-conceito”, sem o estigma de “boa” ou “má”

literatura...

Para isso, incentivar a procura de um lugar agradável onde

todos se sintam à vontade — longe dos ritos pedagógicos — um

lugar onde não se fale em planejar, avaliar, objetivar, etc. De

preferência, um local onde os encontros não sejam habituais: a

biblioteca, o refeitório, um canto do pátio ou embaixo de uma

árvore no quintal.

Que esses encontros aconteçam de quinze em quinze dias,

uma [51] vez por mês, aos sábados, no horário complementar. Não

importa. O importante é que sejam sistemáticos, que estabeleçam

uma rotina prazerosa e não se tornem um evento, um tapa-buraco

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nas reuniões pedagógicas ou um espaço de reflexão no início de

qualquer atividade.

Que haja um tempo no qual a leitura seja compartilhada, no

qual se possa refletir, discutir, estar contra ou a favor, comentar,

dar e trocar opinião, descobrir e revelar talentos não aflorados ou

desconhecidos por falta de oportunidade. Que possibilite o

conhecimento entre os participantes, quase sempre estranhos,

apesar do convívio de longos anos, e que permita que eles se

identifiquem e se emocionem com as leituras partilhadas com os

colegas.

O suporte técnico e metodológico desses encontros vem

através de oficinas sistemáticas de leitura realizadas por

especialistas, cuja área de excelência deve estar de acordo com

uma temática previamente estabelecida, fio condutor do trabalho e

estímulo à criação de um repertório de leitura.

Contos de fada, viagens e utopias, mitos e monstros, espaços

maravilhosos, viagens interiores, monstruosidades, modelo

feminino, o herói, imagens, os diferentes modos de ver e ler o

mundo foram algumas dessas temáticas, lidas e compartilhadas

com toda uma gama de memórias, vivências, conhecimento do

mundo, experiências, inquietações, evidenciando o trabalho com o

indivíduo ali presente, esperando que essas vivências despertem

no profissional uma nova postura frente às práticas utilizadas no

trabalho com a leitura.

Estas estratégias vêm sendo oferecidas e estimuladas pelo

Leia Brasil ao longo dos seus oito anos de existência, enquanto

programa de leitura, e dos quais participo há cinco anos como

membro da equipe pedagógica. Os relatos referem-se ao trabalho

dirigido aos profissionais de ensino das escolas públicas por ele

atendidas e que constituem a força do programa e o ponto de

Page 57: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

partida para a formação do aluno leitor.

Estimulamos, também, o uso e a leitura de diferentes

linguagens através da itinerância de exposições, vídeos educativos

e atividades especiais.

Existem resistências à promoção da leitura. Elas se mostram

nas célebres desculpas, como falta de pessoal disponível para o

trabalho, [52] falta de tempo para ler e na real falta de dinheiro

para comprar livro. A essas situações, respondemos não só com a

presença do caminhão-biblioteca e seu acervo de livros de

literatura, mas também com o tempo conquistado para a leitura

compartilhada.

As respostas à ação do Leia Brasil são muitas: bibliotecas

sendo abertas, salas de leitura inauguradas ou reativadas,

bibliotecas repletas de alunos na hora do recreio, alunos “matando

aula” na biblioteca, hora do chá literário, promoção de café da

manhã da leitura, criação de clubes de trocas de livros, reuniões

para leitura nos finais de semana, grupos formados para realizar

visitas a museus e exposições e para assistir a peças teatrais,

organização de grupos de contadores de histórias, saraus de

poesias, surgimento de escritores e poetas.

O trabalho é de conquista e sensibilização. Ele necessita de

tempo e da crença das instituições de ensino de que o exercício

pleno da leitura contribui para a formação de indivíduos capazes

de realizar uma análise crítica do seu cotidiano, levando-os a uma

participação social mais coerente com a consciência dos seus

direitos e deveres.

Como Fernando Sabino temos

A certeza

de que estamos sempre

Page 58: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

começando,

a certeza

de que é preciso continuar,

e a certeza

de que podemos ser interrompidos

antes de continuarmos.

E também, como nos ensina Fernando Sabino, pretendemos

Fazer da interrupção

um caminho novo,

da queda um passo de dança,

do medo uma escada,

do sonho uma ponte,

da procura um encontro. [53]

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9 — EZEQUIEL THEODORO DA SILVA

A formação do leitor no Brasil:

o novo/velho desafio Formado em Língua e Literatura Inglesa pela PUCSP, Doutor em Psicologia da Educação e Professor-Adjunto pela UNICAMP. Foi fundador da Associação de Leitura do Brasil /ALB e Secretário Municipal de Educação de Campinas. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de

leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais

de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto

instituição encarregada pela formação educacional das novas

gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de

preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um

ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se

a formação de leitores maduros, com competência suficiente para

caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da

escrita.

No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal,

vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo.

Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas,

não vêm sendo [55] enfrentadas com o devido grau de seriedade e

responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um

cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos

investimentos no sentido de recuperar o “tempo perdido”. Sabe-se,

por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura

Page 60: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor;

entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica para depois,

fazendo com que o “provisório” ou, pior, o “inexistente” seja

reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes

metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de

governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na

corrente da história.

A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco

dentro de uma escola sem livros.1 De fato, a pedagogia que orienta

o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu

sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do

professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que

estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou

audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de

informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva

com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes,

substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo,

destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores

durante a fase da escolarização.

No que se refere ao condutor do processo de ensino, o

professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de

outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional,

revelada principalmente por salários vergonhosos, vem

acontecendo no país desde o início da década de 70. A

sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos

empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra

tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para

aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares

de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma,

ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor —

Page 61: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

esse espectro do “espelho quebrado” — raramente pode dar o seu

testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem

pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do

ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em

moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma

significação para os estudantes. [56]

Quando um desafio social permanece no tempo e se

esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume

e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A

“crise da leitura” no seio da sociedade brasileira assinala um

quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se

avolumando há bastante tempo.

As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou

superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas,

revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram

apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou

porque não receberam verbas suficientes para a sua

implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao

encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam

inabaladas, configurando um círculo vicioso de difícil combate. O

provisório se eterniza;2 o inexistente se cristaliza ao longo dos

anos.

No quadro das velhas — e perniciosas — tradições deve ser

também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem

os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios

mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais

do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura

em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as

opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para

o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a

Page 62: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as

manobras exercidas em direção ao livro didático “descartável”, a

“disneylândia pedagógica”, etc... — tudo isso revela uma ação

vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma

escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si

só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o

Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo.

Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de

um terreno escolar bombardeado!

Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se

torna difícil, neste momento, saber por onde começar os projetos e

programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a

afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do

indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que

nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na

escuridão do analfabetismo da palavra [57] escrita. Cabe pensar

nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens

a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a

formação do leitor depende de uma convivência constante com

uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-

estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o

abastecimento de livros, etc.) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de

que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe

pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe

pensar também os aspectos de sua formação e atualização

profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da

Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar

um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo

prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.

A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal... e a

Page 63: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

sociedade está pior ainda: desemprego, dependência,

criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes

termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a

formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas

grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em

expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de

alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a

areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido

cenário.

O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as

práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse

deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por

exemplo, de que “Pensar a leitura como formação implica pensá-

la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor:

não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo

que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma

(ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui

ou nos põe em questão frente àquilo que somos (...) como algo que

tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos.” 3

NOTAS

(1) A expressão “O livro é livresco, mas sem livros” é de João

[58] Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu

livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes,

1988, p. IX-XIII). Ele assim a caracteriza: “Sem livros, pratica-se no

Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário,

mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura,

obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo

mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins

em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas

Page 64: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros

didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis;

nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair

dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-

fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas

pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de

cortar, mastigar, degustar — a papa está pronta”.

(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-

permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi

amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro

Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do

provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi,

através de vários estudos, também revela as nossas carências de

infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade,

incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura.

Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora

Laertes, 1996, p. 16. [59]

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10 — FANNY ABRAMOVICH Escritora e educadora, formada em Pedagogia pela USP. Como escritora lançou mais de 40 livros dirigidos a professores, adolescentes e crianças. Foi crítica de produção cultural para crianças no Jornal da Tarde. Folha de São Paulo. Rede Globo, publicando mais de 500 artigos. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

A iniciação com as maravilhanças de uma história acontece,

em geral, adentrando pelos ouvidos da criancinha. É a voz da

mãe, do avô, do tio visitante, da primeira professora que chama

sussurrante para a gostosura de se embalar na lindura dum conto

de fadas, num episódio da Bíblia ou na magia duma lenda, dum

poema brincante, na aventura de outra criança parecida com ela...

Se a história for acalentadamente contada o encantamento

envolve abraçante e o gostinho de quero mais e mais... permanece

marcante e marcado.

Mais tarde, é o momento de olhar as histórias seguindo

apenas os desenhos ainda tão distantes do indecifrável texto

escrito. Olhos num vaivém contínuo fissurados nas ilustrações

mágicas, poéticas, desafiantes para decodificar os enigmas

escritos debaixo ou do lado... [61]

Muitas e muitas vezes, estes desenhos são feios, pesados,

sem graça, apertados e socados nas páginas, e a vontade

imperiosa é abandonar rápida e definitivamente aquela feiúra

pouco imaginativa... Mas se atraentes e convidativos chamam pra

gostosura de se debruçar nas histórias visuais e formar

verbalmente a narrativa . Saborear cada página, cada traço, cada

cor, cada detalhe... Ou se tiverem texto que alguém conte, leia

Page 66: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

devagarinho e a criança retorna sozinha de novo e de novo, até se

assegurar que conhece aquela coceirenta e divertida historieta. E

até finge que lê!

Chega um momento em que a criança adentra pelas

histórias lidas por ela mesma! Independência exibida. Vitória

absoluta, outra bússola para caminhar pelo mundo! Momentos de

descoberta surpreendente, de mergulho em águas desconhecidas,

de curiosidade em saber como se resolverão as acontecências

anunciadas, de arrepios com a tristezura ou a beleza, de puro

deleite... Ou se a história for fraca, boba, requentada, arrastada,

vive os sentimentos de profunda chateação, de irritação, de

canseira desistente, de decepção com o prometido e não sucedido.

Um pouquinho depois, a parada nas estantes das bibliotecas

da Escola, de casa ou de outras casas onde se lê com alegre

desfrute, da Igreja, do Centro Comunitário, do Caminhão do Leia

Brasil, de onde for... A olhadela nas estantes prometendo

maravilhanças aventurosas ou garantindo o tédio. As dúvidas

diante das possibilidades — pequenas ou grandes — de escolha

dos aparentemente promissores... Com qual livro ficar? Com qual

autor passar as próximas horas, dias, semanas??? Em que gênero

mergulhar??? O que parece mais cutucante, mais

irresistivelmente diferente??? Separações provisórias, perguntas,

pedidos de opiniões de quem já leu, volteios... e escolha. Que pode

ser deleitosa ou provocar um baita dum arrependimento ao virar

páginas e páginas de pura bobeira, de lições ensinantes, de

sermões implicantes, de total falta de humor, sem mistérios

assustadores, sem belezas suspirantes... E ter que esperar o outro

dia de voltar na biblioteca pra escolher melhor escolhido... E ficar

na torcida para encontrar a gostosura, a febricitação, a nova

resposta pra pergunta engasgada, a gargalhada ou a lágrima que

Page 67: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

uma história bem escrita traz... E aí se embalar no bem-bom!

Mais tarde, a descoberta das livrarias, dos sebos com

tesouros [62] empoeirados, das feiras de trocas... E ficar horas

fuçando, mexendo, mudando de idéia, separando, fazendo contas

se a grana dá pra tudo aquilo, reagrupando, hesitando até

conseguir escolher o que quer mesmo ler naquele dia, naquela

semana, naquele mês... Pode ser tão bom como ir numa loja de

brinquedos, de videogames, numa papelaria transada, numa

lanchonete apetitosa... Desfrutantemente saboroso! Questão de

quem leva pra passear — parente ou professor — também pensar

em livrarias.

Importante é escolher o lugar pra se ficar com o livro trazido.

Esparramado no chão, deitado na cama, encostado nas

almofadas, apertado na cadeira, balançando na rede. Cada leitor

sabe onde é mais gostoso, mais sossegado, mais abraçante se

largar com as suas páginas cobiçadas ou tratar de ser rápido para

engolir as infinitas páginas obrigadas... e dar uma paradinha pra

pensar no acontecente, na belezura duma frase, na vontade de

copiar uma lindeza no caderno, na decepção com o jeito como

tudo terminou, na brabeza de ter que agüentar aquela chatura

sem fim, em se perguntar se a professora leu mesmo aquele livro

antes de avisar — e sem discussão — que aquela seria a história

daquele bimestre...

O melhor do ler é que é um jogo que se faz sozinho, no

tempo da própria curiosidade, intervalando quando quer, relendo

sem pressa o mais mexente ou incompreensível, voltando atrás,

recomeçando desde o comecinho, pulando parágrafos, copiando

outros, desistindo na metade, prendendo a respiração até chegar

na última linha da última página, adiando prum outro momento,

emprestando pra alguém pra poder trocar as impressões do

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provocantemente vivido, passando adiante como presente, relendo

inteirinho.

Leitura é embriaguez, volúpia, fissuração, mergulho vital e

empurrante, queixo caído com o inesperado, surpresa da

descoberta de um jeito de ser que nem sabia que podia se ter,

emoção escorregando pelos poros, suspiros com a poetura... Sem

nenhuma cobrança que não as próprias. Sem fichas pra

responder, sem prova pra checar se cada detalhe desimportante

foi atentamente observado, sem mês determinado para ficar

acompanhado daquele volume e não de outro muito mais cobiçado

e desejado. [63]

Leitura é paixão, é entrega, tem que ser feita com tesão, com

ímpeto, com garra. De quem lê e de quem indica. Com trocas

saboreadas e não com perguntas fechadas e sem espaço pra

opinião própria, pensada, sentida, vivida. Senão, é só pura

obrigação. E aí, como tudo o mais na vida, não vale a pena.

Mesmo. [64]

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11 — FRANCISCO WEFFORT

Governo, cultura, leitura e identidade Francisco Weffort é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Foi professor convidado da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Atualmente é o Ministro da Cultura.

A questão da formação do leitor, bem como dos programas

de leitura em desenvolvimento e os ainda a serem criados — da

perspectiva deste Ministério —, só poderão ser examinados como

parte integrante das políticas públicas voltadas para o setor

cultural, como um todo, tendo em vista as nossas estratégias para

o setor.

Desta forma, como decorrência da determinação do

presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de fortalecer

amplamente todas as atividades culturais, podemos perceber, em

primeiro lugar, um substancial aumento de recursos do Ministério

da Cultura de 1995 a 1998. Ao crescimento do orçamento se deve

somar a extraordinária colaboração, também por determinação

presidencial, das empresas públicas, especialmente as dos

Ministérios da Fazenda, das [65] Comunicações e de Minas e

Energia.

O crescimento, como decorrência do proposto, foi um traço

dominante da cultura brasileira, nos anos 1995-1998. É certo que

embora também tenham sofrido pesados desgastes em inícios dos

anos 90, a difusão do livro e da leitura, o patrimônio, as artes

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cênicas, os museus, a construção de novos espaços culturais, o

apoio à cultura popular e ao folclore, nunca foram obrigados a

uma parada tão drástica quanto a do cinema.

Não se pode, porém, deixar de assinalar que as áreas

culturais mencionadas passaram, a partir de 1995, por uma

notável aceleração de ritmo e uma extraordinária ampliação de

escala. É evidente que a administração da cultura tem ainda um

bom pedaço de estrada a caminhar. Mas a caminhada, daqui para

diante, só se fará com êxito por quem for capaz de reconhecer o

quanto se caminhou até aqui. Os anos 1995-1998 foram, neste

sentido, decisivos.

Nos mais diversos setores de atividades, pudemos criar

programas outros sem prejuízo da ampliação dos já existentes.

Um exemplo de programa novo é o das bolsas de estudo, para o

aprimoramento da formação de artistas, no país ou no exterior, já

definido em lei desde 1991, mas que só agora tornou-se realidade.

Até 1995, o Ministério da Cultura não tivera condições de oferecer

nenhuma bolsa, mas em 1997 e 1998 concedeu 86. A estes

programas se junta o de intercâmbio, analisado por Eric

Nepomuceno, que inclui dezenas de visitas de escritores e artistas

ao exterior e centenas de projetos de apoio para apresentações de

grupos brasileiros na América Latina, Estados Unidos e Europa. É

ainda digno de nota o programa das bandas de música, criado em

1976, e que se ampliou consideravelmente nos últimos anos.

Seguindo tradição firmada desde há algum tempo, a da

difusão da leitura, ampliamos o Proler, programa da Fundação

Biblioteca Nacional, e estendemos a outras capitais do país o

Paixão de Ler, inspirado no Fureur de Lire, de origem francesa, e já

aplicado, com êxito, na cidade do Rio de Janeiro. Recém-criado, o

programa Uma Biblioteca em Cada Município atendeu a cerca de

Page 71: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

315 municípios de 1996 a 1998.

Um ponto a merecer maior atenção é o da concentração dos

recursos do mecenato, captados nos termos da Lei Federal da

Cultura, na [66] região Sudeste do país, com peso maior no eixo

Rio-São Paulo. Um dos principais objetivos destes recursos tem

sido o de favorecer programas como Leia Brasil, da Petrobras, cuja

eficiência é cada vez mais evidente, tal o número de solicitação de

sua ampliação nos vários estados do país.

É verdade que a tendência à concentração de recursos no

eixo Rio-São Paulo ainda permanece, não obstante os esforços

para ampliar os benefícios para outras regiões, contrariando uma

visível propensão da cultura brasileira a uma diversidade que se

expande para todo o país.

Parte essencial do nosso desenvolvimento, a cultura não

poderia deixar de expressar alguns dos nossos desequilíbrios

sociais e econômicos. Temos, por exemplo, uma grande indústria

do livro e, contudo, um precário sistema de distribuição através de

livrarias. Além disso, temos um livro que, nas livrarias, é ainda

muito caro. Não se pretende dizer que as coisas estejam paradas,

mas ainda falta muito para que se possa falar de um relativo

equilíbrio entre produção, distribuição e preços no setor.

Típico dos nossos desequilíbrios é que o Brasil das grandes

cidades cria novas demandas culturais num ritmo muito mais

rápido do que o da ampliação das nossas pequenas estruturas de

produção e, sobretudo, de distribuição. Em todo caso, nem tudo

são problemas, pois algumas soluções também se apresentam. E a

distribuição de livros, acompanhando a venda de jornais e revistas

do Rio e de São Paulo, mostra que temos na área uma

extraordinária demanda potencial. O Brasil é, de fato, um imenso

mercado para os produtos da cultura, e temos que passar a

Page 72: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

enfrentar, na escala necessária, a questão importante de descobrir

os meios de chegar a ele. Assim como, na área do livro, surgiram

as megalivrarias.

Difusão cultural

Num pais de dimensões continentais, os programas de

difusão terão que vir a ocupar um lugar mais relevante, talvez

prioritário, no futuro próximo. Muito se tem feito através do

Proler, programa da Biblioteca Nacional, e das edições e projetos

de circulação de música e de artes cênicas da Funarte, bem como

através da Casa Rui Barbosa, por [67] meio de suas edições e

vínculos com os museus-casas, e da Fundação Palmares, no

campo da tradição afro-brasileira. Muito se tem feito também

através de filmes e vídeos, produzidos pela Funarte e pela

Secretaria do Audiovisual, os quais buscam registrar e difundir

conhecimentos sobre nossos artistas, festas e tradições.

Caminhamos nestes anos, além dos livros, vídeos, filmes, música

e artes cênicas, também na circulação de exposições de artes

plásticas, quase sempre a partir de iniciativas localizadas no eixo

Rio-São Paulo.

A valorização da diversidade cultural diz respeito tanto ao

reconhecimento das faces da nossa identidade quanto à critica

das nossas desigualdades sociais e regionais. Já observou o

presidente Fernando Henrique Cardoso, falando da economia, que

se já não somos um país subdesenvolvido, continuamos a ser um

pais socialmente injusto. Algo de semelhante se pode dizer da

cultura, generosamente diversa e abrangente, contrastando com

uma estrutura social muitas vezes desigual e excludente. Nestas

circunstâncias, a capacidade da nossa cultura, fundamentalmente

Page 73: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

a leitura, de incluir a todos, qualquer que seja a sua origem,

região ou condição social, é um trunfo decisivo do processo de

consolidação, entre nós, de uma cidadania democrática.

Muitos brasileiros se reconhecem como brasileiros — e,

neste sentido, iguais no plano da cultura —, antes que se

pudessem reconhecer como iguais no plano da cidadania política.

É que nós nos formamos como uma comunidade cultural antes de

sermos uma democracia política. Deste modo, a difusão cultural,

além dos caminhos que abre ao reconhecimento da nossa

identidade como nação, vale também para reforçar os caminhos

do nosso processo de democratização.

Assim como não pode ser vista à parte da democratização

política, a leitura, verdadeiro passaporte para a fruição cultural,

não pode ser vista também à parte do nosso desenvolvimento

econômico. No governo Fernando Henrique Cardoso, os recursos

que o Estado lhe tem dedicado, como de resto a toda a cultura,

têm que ser entendidos menos como gasto e mais como

investimento. Somados os recursos públicos das esferas federal,

estadual e municipal, eles são apenas uma pequena parcela —

cerca de 10% — dos recursos globais do setor, estimados em cerca

de 8 bilhões de reais em 1998. Estes recursos públicos são

contudo [68] essenciais porque atuam como fermento para fazer o

bolo crescer.

A finalidade da leitura, neste sentido, como de resto o da

cultura, não é o mercado, mas a formação plena da identidade das

pessoas e o enriquecimento da sensibilidade humana. Ela vale em

si mesma. Eis um princípio nunca esquecido no governo Fernando

Henrique. E isso quer dizer, entre outras coisas, que o acesso

pleno à leitura é, como à educação, um dever do Estado. Há que

reconhecer, apesar disso e talvez por isso mesmo, que nós somos

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um amplo mercado consumidor de cultura, e que a cultura que

necessitarmos e que não pudermos produzir nós teremos que

importar. O cinema é o exemplo mais evidente disso. Outro

exemplo é o do turismo, que, em boa parte, se apóia em razões

culturais, e que leva quantidades de dinheiro brasileiro para o

exterior.

Como disse Fernando Henrique Cardoso, estamos em uma

época de afirmação da nossa auto-estima como nação. Afirmação

diante de nós mesmos e diante do mundo. Não temos por que

temer o mundo moderno, cada vez mais globalizado, com as suas

fronteiras sempre mais abertas. Também nós vamos caminhando

na rota da modernização, parte que somos de um povo dotado de

enorme vitalidade cultural e que vai conquistando, passo a passo,

os sentidos da sua identidade. [69]

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12 — GUIOMAR DE GRAMMONT Escritora, professora de Filosofia no Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou o livro Corpo e Sangue pela Editora DesEscritos em Belo Horizonte/MG,199I. Prêmio Casa de las Americas em 1993 com o livro de contos O fruto de Vosso Ventre, publicado em Cuba. Atualmente cursa doutorado na USP.

A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser

proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas : acorda os

homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de

suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura

induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora

destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de

Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler

aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo

mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de

ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre

Emma Bovary, tornou-se esposa inútil para fofocas e bordados,

perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar

um [71] adulto perigoso, inconformado com os problemas do

mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal

de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o

homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz,

ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda,

estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho

com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas da

imaginação.

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Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não

experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles : o conhecer.

Mas pra que conhecer se, na maior parte dos casos, o que

necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer

o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o

homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente

ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a

imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é

devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a

fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem

enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem

acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em

movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das

montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais

percebidas.

É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos

impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para

os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela

aventura e pela descoberta que fez do homem um animal

diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem

noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer

guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias,

podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida

destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos

conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo

administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem

Page 77: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar

a sociedade se todos os seres humanos [72] soubessem o que

desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a

fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os

instrumentos de conquista da sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as

pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários,

contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as

filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea.

Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente

transportados para outras dimensões, menos incômodas. É esse o

tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o

homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões

tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura ?

É preciso compreender que ler para se enriquecer

culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido

apenas a alguns, Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos

práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da

alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de

contas, a leitura é um poder e o poder é para poucos. Para

obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da

submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Além disso, a leitura promove a comunicação de dores,

alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o

íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A

leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história

a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o

mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem perigosamente humano. [73]

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13 — GUIOMAR NAMO DE MELLO

A escola do futuro: uma ponte de

significados sobre a estrada da informação Guiomar Namo de Mello é Pedagoga, com Especialização em Orientação Educacional, Mestra em Psicologia da Educação, Doutora em Educação e Pós-Doutorado em Sistemas Comparados de Educação. Atualmente é Membro do Conselho Nacional de Educação e Diretora Executiva da Fundação Victor Civita.

Nas sociedades contemporâneas a informação e o

conhecimento estão se tornando disponíveis a um número cada

vez maior e mais diversificado de pessoas. A internet, rede mundial

de informação que torna o hipertexto acessível a um simples toque

dos dedos, é a expressão tecnologicamente mais avançada de um

processo que há mais de 50 anos vem se instalando na nossa

cultura.

Uma consulta à banca de revistas e jornais, existente em

cada esquina das grandes cidades, mostra que o hipertexto há

muito faz parte do cotidiano urbano. Aí se encontra um mundo às

vezes caótico mas sempre divertido de acesso à informação:

dicionários e jogos instrutivos; obras que vão da jardinagem à

filosofia, passando por esportes, decorações, atualidades políticas

e científicas, saúde, ecologia e outras. [75] Todas a um custo

bastante aproximado...

Acrescente-se a isso o enorme poder informativo e formativo

da televisão e a possibilidade recente de interação entre os

diferentes meios de comunicação, para dimensionar o caminho

Page 79: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

aberto pela “auto-estrada” da informação que só tenderá a

ampliar-se e a aumentar o número dos que nela navegam.

O avanço da tecnologia da informação vai propiciar uma

mudança no paradigma da produção e divulgação do

conhecimento. Não é fácil desenhar com precisão o cenário do

futuro, mas uma coisa parece clara: o conhecimento deixará de

ser monopólio das instituições que tradicionalmente têm sido suas

zelosas depositárias. Vale a pena portanto fazer um esforço para

(re)significar o papel do professor e da escola nesse futuro

próximo.

É preciso reconhecer que, para muitas crianças que estão

nascendo neste final de milênio, a escola não será a única e talvez

nem a mais legítima fonte de informações. Conseqüentemente o

papel do professor sofrerá mudanças profundas. A maioria dos

professores ainda opera como guardiã de conhecimentos aos quais

dá acesso segundo um ordenamento pré-definido e de acordo com

metodologias que considera adequadas. No futuro próximo, no

entanto, ele terá que assumir também a função de incorporar e

significar, no contexto do ensino, conhecimentos que vêm de

diferentes fontes externas à escola, quase sempre numa seqüência

e lógica que escaparão a seu controle.

Se quiser que seus alunos gostem de aprender, o professor

não pode continuar isolado em sua disciplina. Além de

especialista em determinada área do conhecimento, ele terá de

desenvolver habilidades para identificar as relações de sua

especialidade com outras áreas de conhecimento.

Essa mudança de papéis vai muito além da mudança na

posição física do professor em sala de aula — na frente ou junto

aos alunos. Ela atinge o núcleo mesmo da missão da escola:

reconhecer que não é possível transmitir conhecimentos com a

Page 80: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

mesma velocidade e atratividade da multimídia. E privilegiar a

constituição de um quadro de referência científico, cultural e ético

para selecionar, organizar, dar sentido e levar à prática a

informação e o conhecimento. [76]

Construir sentidos com base na informação e no

conhecimento poderá ser a tarefa mais nobre da escola na

sociedade da informação: se a auto-estrada da informação estará

cada vez mais presente na sociedade, às instituições educativas

caberá construir sobre essa auto-estrada uma ponte de

significados que permita aos alunos navegar sem serem

atropelados pela quantidade e diversidade de informações que já

estão congestionando a nossa visão de mundo.

Que outra coisa propunham mestres como Dewey, Piaget,

Vigotsky ou Freinet, para citar apenas alguns, apesar de suas

diferenças? Esse é, portanto, um sonho antigo dos educadores,

mas até hoje não conseguimos que a educação escolar, como um

todo, vá além da transmissão de conhecimentos. Será que a

tecnologia da informação poderá ser o elemento que faltava?

A resposta a essas perguntas dependerá de enfrentarmos,

entre outros desafios, o de (re)significar os instrumentos do

trabalho pedagógico: currículos, métodos e programas de ensino e

perfis de competência dos professores.

A construção de sentidos na escola terá que ser cada vez

mais interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar. O conhecimento

contemporâneo está ultrapassando as fronteiras rígidas do

paradigma científico do século passado. A estrutura do hipertexto

expressa bem essa noção: nele, muitos links podem ser

estabelecidos entre fatos de natureza diferente, conceitos que os

representam e linguagens que dão suporte à representação

conceitual. Projetos de investigação, de produção ou intervenção

Page 81: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

real ou simulada na realidade, quase sempre considerados

“extracurriculares”, terão que ser (re)significados como mais do

que nunca “curriculares”.

Para produzirem conhecimentos significativos as situações

de aprendizagem precisam induzir o aluno a referir o aprendido na

escola ao vivido e observado de modo espontâneo. Daí a

necessidade da abertura do currículo para a experiência do aluno

e o conhecimento ao qual ele tem acesso fora do contexto escolar.

Motivar o aluno a aprender requer superar as limitações da

transposição didática: essa é uma regra pedagógica antiga. Mas

daqui em diante essa tarefa terá que levar em conta que a

experiência dos alunos estará cada vez mais carregada de [77]

informações e conhecimentos que não consideram fronteiras

nacionais, culturais ou etárias.

Acessar e adquirir conhecimento pode ser um ato solitário. A

construção de sentidos implica necessariamente na interação pela

qual eles são negociados com o outro: familiares, amigos,

professores ou interlocutores anônimos dos textos e dos meios de

comunicação. Toda negociação de significados envolve valores.

Mas é da educação escolar que a sociedade cobra os valores que

considera positivos para as novas gerações. Por essa razão,

mesmo interativas e formadoras de mentalidades, as tecnologias

da informação e da comunicação não dispensam a educação

escolar. Desta se espera que prepare os alunos a renegociar os

significados veiculados pela mídia por meio da análise crítica.

Os conteúdos de ensino terão que ser (re)significados como

meios e não mais como fins em si mesmos. Deverão visar menos a

memorização e mais as capacidades necessárias ao exercício de

dar sentido ao mundo: analisar, inferir, prever, resolver

problemas, continuar a aprender, adaptar-se às mudanças,

Page 82: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

trabalhar em equipe, intervir solidariamente na realidade. Não é

por acaso que tais competências são as que agregam maior valor

ao trabalho e ao exercício da cidadania nas sociedades

contemporâneas: a organização dos processos produtivos e das

práticas sociais também está sendo afetada pela revolução da

informação.

Finalmente é necessário reafirmar a importância da

educação escolar na constituição de significados deliberados. Ela

parte da experiência espontânea para chegar à sistematização e

abstração, que libertam do espontaneísmo. Significados

deliberados identificam o objeto do conhecimento, sabem como se

aprende, atribuem valores à aplicação do saber e estimulam sua

expressão. Só eles têm a universalidade dos significados

socialmente reconhecidos como verdadeiros: as ciências, os

valores da diversidade, igualdade, solidariedade e

responsabilidade e a importância das linguagens que os

expressam.

Esses objetivos — base da identidade ética e não excludente

— são perseguidos pela educação escolar desde que Sócrates

associou a sabedoria à virtude. A incapacidade de alcançá-los

legitimou condenações ferozes da escola e dos educadores. A

tecnologia da informação pode [78] ser uma nova oportunidade de

cumprirmos com êxito a missão que nos legaram os grandes

pedagogos do passado, expressando o anseio social de uma vida

melhor e mais feliz. [79]

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14 — IARA GLÓRIA AREIAS PRADO

Para formar leitores na escola Iara Prado é Licenciada em História pela Universidade de São Paulo, com Pós-graduação na área de História Social. Professora universitária e do Ensino Fundamental, e Membro Efetivo do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo, Membro Efetivo do Conselho da Condição Feminina de São Paulo e Secretária de Educação Fundamental do Ministério da Educação.

A história escolar vem mostrando que, não apenas no Brasil

mas em diferentes países do mundo, o acesso ao ensino da língua

— alfabetização e estudos posteriores — não tem garantido a

competência dos alunos para utilizar adequadamente a escrita. Há

um enorme contingente de pessoas que tecnicamente aprendeu a

ler e escrever na escola e não consegue fazer uso da linguagem em

situação de leitura e escrita — são os chamados analfabetos

funcionais: pessoas que, em decorrência do tipo de ensino que

tiveram, não se tornaram capazes de compreender o que lêem e de

se comunicar por meio da escrita.

Porém, alguns dados numéricos permitem analisar a

dramática situação brasileira no que se refere ao acesso a livros, a

despeito de todas as estimativas de que os níveis de leitura vêm se

elevando. Segundo a [81] Câmara Brasileira do Livro, o país

consome 2,3 livros per capita ao ano, sendo que 60% dos livros

vendidos são escolares — didáticos e paradidáticos — e que parte

considerável é distribuída gratuitamente pelo governo nas escolas.

E o Ministério da Cultura informa que a maior parte do material

de leitura adquirido espontaneamente no país é comprado em

Page 84: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

bancas de jornais e revistas e que as bancas vendem mais livros

do que as livrarias. Informa também que há apenas 4.000

bibliotecas públicas no Brasil, aproximadamente uma para 40.000

habitantes.

E, somando-se a outros tantos, disse o escritor Alberto

Manguei, em entrevista recente a uma revista brasileira: “Ler é

poder.” A leitura dá poder porque é um meio para compreender o

mundo e essa compreensão é uma condição de cidadania— além

do que, lendo, podemos nos tornar, cada vez mais, também

cidadãos da cultura escrita.

Portanto, os desafios que se colocam para a escola — espaço

privilegiado de desenvolvimento da competência para ler e escrever

— não são poucos, pois todas as evidências têm mostrado que

essa competência não depende propriamente do acesso a certas

práticas convencionais de ensino da língua, mas a experiências

significativas de utilização da escrita no contexto escolar, tanto em

situação de leitura como de produção de textos.

O Ministério da Educação, assumindo seu papel de indutor

de políticas, vem produzindo documentos e incentivando projetos

que têm na formação de leitores uma das finalidades principais.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Referencial

Curricular Nacional de Educação Infantil, a Proposta Curricular

para a Educação de Jovens e Adultos, os Referenciais para a

Formação de Professores são documentos orientadores da

educação escolar e da formação dos docentes brasileiros, que

assumem a defesa da formação de leitores como uma prioridade e

sugerem possibilidades de trabalho pedagógico para incentivar a

leitura e desenvolver a capacidade dos alunos de fazer uso real da

escrita.

O “Programa Nacional Biblioteca na Escola” — que distribui

Page 85: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

livros de literatura, obras de referência e materiais de apoio a

alunos e professores de escolas públicas de ensino fundamental —

e o projeto “Pró-Leitura na Formação do Professor” — que integra

o Programa de [82] Cooperação Educacional Brasil-França e é

resultado da iniciativa conjunta do MEC e da Embaixada da

França — são ações complementares com a mesma finalidade.

A tarefa é, cada vez mais, criar condições favoráveis para o

desenvolvimento de propostas eficazes de formação de verdadeiros

usuários da linguagem, o que pressupõe trabalhar com os

diferentes textos, tanto em situações de produção como de

compreensão. No que se refere à leitura, isso implica um amplo

trabalho não apenas com livros, mas com todos os materiais em

que a palavra escrita é ferramenta para o acesso à informação, ao

entretenimento, à compreensão crítica do mundo...

Principalmente quando os alunos não têm contato

sistemático com bons materiais de leitura e com adultos leitores,

quando não participam de práticas onde ler é indispensável, a

escola deve oferecer materiais de qualidade, modelos de leitores e

práticas de leitura eficazes. Essa pode ser a única oportunidade de

esses alunos interagirem significativamente com textos cuja

finalidade não seja apenas a resolução de pequenos problemas do

cotidiano. É preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do mundo:

não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam

apenas durante as atividades na sala de aula, apenas no livro

didático, apenas porque o professor pede. Sem um trabalho com a

diversidade textual, certamente não é possível formar leitores

competentes, ou seja, pessoas que, por iniciativa própria, são

capazes de selecionar, dentre os textos que circulam socialmente,

aqueles que podem atender às suas necessidades e que são

capazes de utilizar procedimentos adequados para ler.

Page 86: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Hoje se sabe que o desenvolvimento da capacidade de ler

depende, em grande medida, do sentido que a leitura tem para as

pessoas: do ponto de vista de quem lê, a escrita deve responder a

objetivos de realização imediata. É assim que acontece fora da

escola: lemos para solucionar problemas práticos, para nos

informar, para nos divertir, para estudar, para escrever ou revisar

o próprio texto. Certos textos lemos por partes, buscando a

informação necessária, outros exaustivamente e várias vezes,

outros rapidamente, outros vagarosamente. Às vezes controlamos

atentamente a compreensão, voltando atrás para checar nosso

[83] entendimento; outras seguimos adiante sem dificuldade,

entregues apenas ao prazer de ler; outras realizamos um grande

esforço intelectual e, a despeito disso, continuamos lendo sem

parar...

Toda criança, jovem e adulto têm direito a essas experiências

de leitura também na escola. Isso requer um trabalho pedagógico,

criteriosamente planejado, não só com a diversidade de textos,

mas com a diversidade de objetivos e formas de ler.

Para tornar os alunos bons leitores, para desenvolver o gosto

e o compromisso com a leitura, a escola terá de mobilizá-los

internamente, pois esse é um aprendizado que requer esforço.

Precisará fazê-los achar que ler é algo interessante e desafiador,

algo que, conquistado plenamente, dará a eles autonomia e

independência. E terá de oferecer condições favoráveis para as

práticas de leitura — que não se restringem apenas aos recursos

materiais disponíveis, pois, na verdade, todas as evidências têm

revelado que o uso que se faz dos livros e demais materiais

escritos é o aspecto mais determinante para a formação de leitores

de fato. [84]

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15 — JASON PRADO

Ingenuidade e inconseqüência Publicitário, jornalista. Professor Convidado da cadeira de Promoções e Merchandising da Escola de Comunicação da UFRJ e Diretor Geral do Programa Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Nos primeiros dias do ano de 1992, levamos à Petrobras um

projeto de bibliotecas sobre rodas que, ao nosso ver, atenderia

com desenvoltura às necessidades de relacionamento institucional

daquela empresa com um público especial, constituído por alunos

e professores das escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro.

Por pura ingenuidade nós não dimensionamos o que havia

por trás daquela porta que, timidamente, acabávamos de abrir.

O pretexto — ou justificativa — que adotamos para abrir as

escolas às mensagens corporativas da maior empresa brasileira foi

o de ajudar a formar leitores a partir de uma oferta constante e

sistemática de bons livros de literatura, e ele acabou se

configurando numa necessidade tão veemente da rede de ensino

que, hoje, precisamos encontrar justificativas [85] para não

atender, com o que resultou daquele projeto inicial, as centenas

de milhares de escolas de todo o país.

Desde a primeira visita do caminhão colorido à primeira

escola, deu para perceber, pela euforia das crianças, que, pelo

menos em parte, nós tínhamos acertado: o Leia Brasil tinha um

público.

Também por ingenuidade, naquele trabalho embrionário que

Page 88: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

resultava de algumas pesquisas sobre a nossa realidade

educacional, sob a ótica da publicidade e da comunicação social,

que era a nossa pauta, imaginávamos que a dita “oferta” de livros

seria o abre-te-sésamo para uma nação de leitores. Por isso o

batizamos com o subtítulo de bibliotecas volantes, centrando toda

a sua conceituação na idéia de um contêiner de livros ambulantes.

Levou algum tempo até que percebêssemos um vazio que se

instalava nas escolas logo após o impacto da chegada do

caminhão: professores que se afastavam para “matar o tempo”

atualizando papos; alunos das primeiras séries do primeiro grau

desfilando livros densos e enormes pelos pátios; bibliotecárias

escolares torcendo o nariz para o projeto invasor... Era o princípio

do caos.

Foi quando despertamos para o fato de que há outros fatores

de grande importância para a formação de leitores do que a

simples possibilidade do contato com o livro.

Com o apoio do Proler — que acabava de ser criado pela

Fundação Biblioteca Nacional — descobrimos que não basta

oferecer livros. Mais ainda, descobrimos que será difícil encontrar

um aluno que leia sem um professor leitor.

Por pura ingenuidade começamos a trabalhar a leitura nas

escolas pelo viés da sedução.

Utilizamos mais de uma centena de técnicas e artifícios para

seduzir alunos e professores para a leitura, e abrimos ao máximo

o significado do termo, dando-lhe a dimensão do universo: quem

lê, constrói uma nova dimensão de significados. Quem lê, viaja

pelo mundo da fantasia.

Fomos em busca de outras parcerias, oferecendo a fome de

nossos alunos em troca da sede atávica das entidades por público

cativo. Sem custo para as partes. [86]

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Com isso enriquecemos nosso arsenal de seduções, exibindo

telas de Debret em Alagoas, índios Karajás em São Paulo,

Portinari na Bahia. Levamos gente para aprender História do

Brasil jogando RPG no Museu Histórico Nacional. Promovemos

visitas guiadas aos mais fantásticos espaços culturais da

atualidade, da Academia Brasileira de Letras ao Paço Imperial.

Levamos artistas inimagináveis para escolas de subúrbio. E fomos

todos viver a Aventura do Teatro1.

Paralelamente, iniciamos um trabalho de valorização do

professor, mexendo com sua auto-estima, e provocamos a

libertação das suas identidades aprisionadas.

Coisas que só se faz por má-fé ou ingenuidade.

E por isso fomos inconseqüentes.

Alguns dos nossos alunos e professores começaram a querer

ler.

Alguns gostaram.

Uns tantos, até, passaram a escrever, a contar histórias, a

declamar poemas, a trabalhar com teatro, artes plásticas...

Em algumas das nossas escolas, toda a comunidade —

educadores, alunos, vizinhos, pais, etc. — se reúne uma vez por

semana, durante mais de uma hora, para conversar sobre suas

leituras de filmes, de livros, de músicas, de reformas de fachadas

de prédios que viram pelo meio das ruas. Em suma, do cotidiano.

Nossa inconseqüência gerou uma enorme pressão sobre a

Petrobras, que a cada ano tem aumentado nosso raio de ação e

ampliado significativamente o alcance de nossas propostas.

Hoje, se você está lendo essas linhas em 1999 e for um dia

útil no calendário escolar, aproximadamente 28 mil alunos

estarão visitando nossas 16 bibliotecas volantes, devolvendo e

emprestando livros. Amanhã, outros tantos. E depois de amanhã

Page 90: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

também.

E assim sucessivamente, até que nossos 610 mil

usuários/mês completem um ciclo de visitas. Depois, começa tudo

de novo, até o fim do ano letivo.

Esses números, como todo número numa narrativa, são

relativos.

O que são alguns entre milhões?

Não importa! Não é disso que estamos tratando, e sim do

fato de que, de certa forma, alguns estão se tornando leitores. E

mais: alguns já [87] chegaram ao simbólico estágio da leitura

silenciosa, com vocabulários ampliados, compreendendo textos e

falas complexas.

É possível, portanto, formar leitores. Ou seja: há caminhos

pelos quais se consegue modificar o comportamento de pessoas.

Esse é um dos pressupostos da Comunicação, e é

sintomático que o Leia Brasil tenha nascido como uma proposta

de trabalho de relações públicas. Ele acabou transformando-se

num veículo de massa e, como tal, tem modificado o

comportamento de leitura de um expressivo contingente

populacional.

Seria formidável se outros veículos de massa se envolvessem

nessa questão de formar leitores. Mas isso é muita ingenuidade de

nossa parte. E as conseqüências, então, seriam por demais

imprevisíveis...

Voltando aos nossos recém-chegados leitores. Grande parte

desses alunos e professores nos escrevem textos pungentes sobre

suas descobertas da leitura e na leitura.

De um deles, quando conquistamos o Prêmio Petrobras de

Qualidade pelos resultados do Leia Brasil, recebemos um bilhete

que nos dava conta de nossa ingenuidade e inconseqüência, tal

Page 91: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

como a descrevemos agora. Essa pessoa, citando alguém cujo

nome nos escapa, nos disse o seguinte: “Ele não sabia que era

impossível. Por isso, foi lá e fez.”

1. Peça inspirada na obra de Maria Clara Machado. [88]

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16 — JOEL RUFINO DOS SANTOS

Como me apaixonei por livros Escritor, historiador, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ. Atualmente é Superintendente de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, membro do Comitê Científico Internacional do Programa Rota de Escravo da UNESCO e Coordenador no Brasil do Programa das Escolas associadas à UNESCO.

Nasci em Cascadura, tradicional bairro do Rio de Janeiro.

Carroças, recolhiam o lixo, puxadas por pobres burros tristes.

Meu avô, aposentado do DLU (Departamento de Limpeza Urbana,

o dono das carroças) sentava-se na calçada com outro

aposentado, chamado Bahia, e sonhava grandezas. Faria uma

viagem ao Recife, compraria o terreno ao lado, se tornaria sócio do

Botafogo...

Nos colégios em que estudei o primário (hoje 1a a 5a série) e o

ginásio (de 5a a 8a), não havia bibliotecas, nem muito menos sala

de leitura. Além das salas e dos pátios havia, é verdade, uma sala

sempre fechada: o quarto-escuro. Lá, o faltoso ficava uma hora

defronte da sua consciência.

Não foi, portanto, na escola que me apaixonei por livros. [89]

Onde foi?

Minha avó materna era de origem caeté (ou talvez fulniô ou

talvez potiguara, de qualquer jeito indígena). Trabalhou toda vida

de cozinheira, veio para o Rio trazida por um ricaço que não

queria ficar sem suas mães-bentas e cozidos. Era uma contadora

Page 93: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

excepcional de histórias, e quando ficou em cadeira-de-rodas, não

podendo mais cozinhar, sentávamos à sua volta para ouvir “O

Soldado Verde”, “O que aconteceu com Malasartes”, “O dia em que

Lampião entrou em Cajazeiras”...

Primeiro, portanto, fui seduzido por histórias.

Minha família era de religião batista. Pai, mãe, irmãos, tios,

avós — todos. Os batistas eram de uma religiosidade singela,

discreta e puritana (portanto, algo hipócrita). Aí pelos oito anos

tive uma comoção ao descobrir que o pai do pastor auxiliar não

usava meias; me pareceu uma pecado sem remissão.

Eu me alfabetizei na Bíblia, depois de aprender a juntar

sílabas numa cartilha qualquer. Quer dizer, o que estava na

cartilha eram signos; no livro sagrado, textos. Textos fabulosos,

fábulas, histórias. Pessoas como minha avó — com sua memória e

seu talento de narrar — haviam escrito aquilo. Podia abrir em

qualquer página e viajar. (A técnica “abrir em qualquer página”, na

minha família, serviu também para dar nome aos filhos. Abria-se e

com o dedo se procurava o primeiro nome. Meus irmãos se

chamam Samuel, Ebenezer, Giré (Sic). Eu seria Isaq, mas minha

avó, na última hora, fez um apelo por Joel.)

Minha mãe esperava que lendo muito a Bíblia eu me

tornasse um bom cristão como ela. Não me tornei. O sagrado, no

meu caso, perdeu para o literário.

Mergulhado desde menino na Palavra de Deus, fui seduzido

pela primeira e abandonei o segundo. Não lembro com alegria esse

fracasso da minha mãe.

Mas devo contar que, naquele tempo, todo ambiente das

igrejas (a minha era a batista de Tomás Coelho) era literário. Se

recitava poesia (a fama dos declamadores, como, por exemplo,

minha irmã, corria a cidade), se montavam peças, toda manhã de

Page 94: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

domingo as missionárias (com sotaque do meio-oeste americano)

contavam histórias para crianças, e, enfim, havia sensacionais

concursos de versículos (quem sabia [90] mais?), etc.

Um outro tipo de literatura, antagônica à Bíblia, começou,

porém, a agir sobre mim.

As histórias em quadrinhos, como se sabe, surgiram na

imprensa americana em fins do século passado. Logo chegaram ao

Brasil, mas proliferaram, de fato, após a Segunda Guerra. Surgem

as bancas de jornal, fascinantes, oferecendo “gibis a mancheias” (e

não livros, como queria Rui Barbosa): Capitão Marvel, Flash

Gordon, Brucutu, Ferdinando, Capitão América, Tocha Humana,

Nioba, a Rainha da Selva... Meu preferido era o Príncipe

Submarino, com suas orelhas de peixe.

Minha mãe proibia. Queixava-se das mesmas coisas que

muitos pais de hoje com relação à televisão: estimula a violência, o

sexo precoce, a superficialidade, o banditismo... Essa proibição foi

o segundo fracasso de minha mãe: o gibi ganhou mais um gozo

para mim, o do proibido. Eu sonhava ganhar meu primeiro salário

na vida para arrematar inteira uma banca de gibi.

Estou aqui tentando mostrar como me apaixonei por livros,

especialmente os de ficção. Falei de minha avó, da Bíblia e das

histórias em quadrinhos. Ainda falta uma “causa”, que deixei por

último. Veio na adolescência, quando as outras três já tinham

agido.

Eu entrei no ginásio aos 13 anos. Os donos eram metodistas

(a força do protestantismo na minha formação) e praticavam uma

pedagogia severa e bondosa. No segundo ano começava o latim.

Na primeira aula, professor Matta, rechonchudinho e careca, se

dirigiu ao quadro e escreveu o primeiro parágrafo do De Belo

Galico, só depois de apresentar o autor — general de antes de

Page 95: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Cristo que fundou o império romano, Julius Caesar — começou a

traduzir. Não sei por que comecei a me sentir diante de um

espelho. Numa língua desconhecida, há dois mil anos atrás, do

outro lado do oceano, um general escrevera algo que eu podia ler,

se quisesse. Quem era eu? Um menino pobre, filho de seu

Antônio, apanhador de caranguejo nos mangues de Olinda, e dona

Felícia, favelada de Casa Amarela. Quem era ele? Julius Caesar.

Se eu quisesse aprender latim e estava em mim querer,

Julius Caesar teria escrito o De Belo Galico para mim. Ao

descobrir isso, na aula inaugural do velho professor Matta, senti

uma alegria íntima e feroz. [91]

Perdoei a meu amigo Julius Caesar todos os crimes que mais

tarde estudei na faculdade.

Dos fatores que me tornaram um leitor incurável, este último

é o mais difícil de explicar. É bom, porém, que não se explique

completamente tudo. [92]

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17 — JORGE WERTHEIN

A UNESCO e a formação do leitor Argentino, 57 anos, Ph.D em Educação e Mestrado em Comunicação pela Universidade de Stanford. Representante da UNESCO no Brasil.

Para uma Organização das Nações Unidas que há mais de

meio século luta contra o analfabetismo no mundo, escrever sobre

a formação do leitor representa mais um desafio e também uma

oportunidade, no marco de uma política cujo objetivo maior é o de

assegurar a todas as pessoas, sem nenhuma discriminação,

condições para o domínio dos códigos básicos da cidadania, quais

sejam, o domínio da leitura, da escrita e do cálculo.

O mundo, lamentavelmente, entrará no próximo milênio com

aproximadamente 1 bilhão de analfabetos absolutos e 100 milhões

de crianças sem escola. Se a esses números adicionarmos o

grande contingente de analfabetos funcionais, verifica-se logo que

estamos diante de um quadro assustador, pois privar seres

humanos do direito da leitura [93] e da escrita equivale a negar-

lhes o direito à cidadania. Sem dúvida, pois como muito bem

lembrou Antenor Gonçalves, a língua é o grande projeto de

formação de cidadania, por meio do qual o homem toma

conhecimento dos direitos que lhe garantem e protegem a vida,

nas condições de produção de sua vida social e individual. O

domínio da língua, continua Gonçalves, significa o ingresso no

universo dos homens livres, gerando resistência à opressão.1

É devido a isso que a UNESCO atribui prioridade máxima à

Page 97: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

erradicação do analfabetismo e à educação permanente para

todos. Não se trata mais de apenas erradicar o analfabetismo —

embora seja esta uma condição politicamente estratégica — mas

de garantir educação continuada para todos e por toda a vida. A

Declaração de Hamburgo Sobre Educação de Adultos, aprovada

em 1997, admitiu que a educação ao longo da vida é mais do que

um direito: é uma das chaves do século XXI. É, ao mesmo tempo,

conseqüência de uma cidadania ativa e uma condição para

participação plena na sociedade.

Observa-se que este novo conceito de educação é de grande

importância no contexto da discussão sobre a formação do leitor.

Por um lado, significa que o processo de alfabetização precisa ser

visto como passo inicial necessário ao início de uma trajetória

longa de ler e de ver o mundo com lentes que vão se ampliando

para melhor decifrar a realidade; por outro, significa que a

formação do leitor necessita aprendizagens que favoreçam o

desenvolvimento da capacidade de análise e de crítica.

Não é mais suficiente somente ler. É preciso mais. É preciso

saber ler. É o saber ler que permite indagar e perguntar. Eis aí o

sentido pedagógico da leitura. Tinha razão George Steiner ao

afirmar que ler corretamente é correr grandes riscos. É tornar

vulnerável nossa identidade, nosso autodomínio. Sem dúvida, é

esse tipo de leitura que permite a iluminação da realidade. Mas

como formar esse leitor? Pode ser que existam vários caminhos,

mas nenhum se iguala ao da escola pública de qualidade, que é o

locus privilegiado para a aquisição dos instrumentos necessários

para uma leitura crítica do mundo. É o locus insubstituível onde

podem e devem ser construídos os alicerces para que cada aluno-

sujeito dê início a uma trajetória de crescente autonomia

intelectual, de [94] forma a garantir permanente aquisição e

Page 98: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

domínio de saberes.

Se é verdade que a escola pode desempenhar papel dos mais

relevantes no processo de formação do leitor, é importante

sublinhar que essa potencialidade só se explicitará, plenamente,

na medida em que o projeto pedagógico da escola colocar o ensino

da língua em posição privilegiada, ou seja, o estudo da língua

precisa ser entendido como veículo de inserção lúcida do

estudante no circuito de idéias de seu tempo. O domínio das

idéias e da cultura, que caracteriza o tempo histórico no qual o

estudante se acha inserido, é de grande alcance para ampliar o

significado das diversas leituras que se tornarem necessárias.

Para se ter uma idéia de como pode ser importante a leitura

e, sobretudo, a leitura dos clássicos, reportamo-nos novamente a

George Steiner, que, ao comparar o ensino das ciências com o

ensino das humanidades, afirmou:

“As ciências reformularão nosso meio ambiente e o contexto de

lazer ou subsistência no qual a cultura é viável. Contudo, embora tendo

inesgotável fascinação e constante beleza, as ciência naturais e

matemáticas só raramente são de interesse fundamental. Com isso

quero dizer que acrescentaram pouco a nosso conhecimento ou controle

das possibilidades humanas, que comprovadamente existe mais

compreensão da questão do homem em Homero, Shakespeare, ou

Dostoievski do que em toda a neurologia ou a estatística.”2

Se dermos crédito a essa afirmação, há muito o que ser

reformulado nas escolas de educação básica, no sentido de

renovar o conteúdo e a prática pedagógica para que o aluno

vislumbre um futuro mais cheio de significados. E já que se

debate tanto o Mercosul, quão extraordinário seria se, a essa

altura, autores como Borges, Euclides da Cunha, Garcia Márquez,

e tantos outros de uma notável plêiade de valores literários da

América Latina, fossem lidos e interpretados, não como algo

Page 99: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

excepcional, mas como atividade curricular regular das escolas

básicas da região. Certamente, o conhecimento dos problemas e

dos desafios latino-americanos seria percebido por crianças e

jovens que estariam em melhores condições para engendrar o

futuro. [95]

Dessa forma, verifica-se que o melhor caminho para a

formação do leitor é a instauração de uma escola de qualidade

para todos e de todos, sem o que, qualquer remendo que se fizer a

posteriori será sempre insuficiente para que o domínio da palavra

e da escrita seja, de fato, um instrumento de libertação e

dignidade humanas. É certo que, como vimos no início desse

texto, estamos longe desse ideal, face aos grandes déficits do

sistema educacional. No entanto, quando se compara o panorama

atual da educação no mundo, e também no Brasil, com o que

existia há mais de cinqüenta anos (ao tempo em que a UNESCO

foi criada), constata-se que progressos significativos foram

alcançados, tanto em termos de alfabetização, quanto de escola

para todos.

Ainda recentemente, a UNESCO participou, em Brasília, de

seminário de avaliação da Política de Educação para Todos da

década. Segundo os depoimentos e as próprias críticas, ficou

evidente o progresso alcançado. As oportunidades educacionais

estão se universalizando e a luta pela melhor qualidade da oferta

educativa também já se iniciou. Isso significa que há um cenário

de perspectivas concretas que passará a constituir o palco

principal de lutas pela universalização da cidadania, que,

certamente, ocupará o principal espaço da agenda política do

próximo milênio.

É nesse quadro que a UNESCO concebe o desenho de sua

agenda de atuação para o futuro, que terá na educação para todos

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e de todos, ao longo da vida, o seu eixo norteador.

1 GONÇALVES, Antenor. O Poder da Palavra. UNESP. Campus de Marília. 2 STEINER, George. Linguagem e Silêncio. São Paulo, Cia das Letras, 1988. [96]

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18 — LUIZ PERCIVAL LEME BRITTO

Máximas impertinentes Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. (Rodrigo S. M. — na verdade Clarice Lispector — A Hora da Estrela)

Doutor em Lingüística pelo IEL/UNICAMP, Mestre em Educação, Presidente da Associação de Leitura do Brasil desde 1993 e Professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba. Autor de literatura e publicações sobre leitura e educação.

Quando se fala em formação do leitor, implicita-se muitas

outras coisas de que não se fala diretamente. A mais evidente

delas é a idéia de que nem todo mundo que sabe ler é leitor, isto é,

que ser leitor significa algo mais que simplesmente saber ler, algo

mais que saber enunciar em voz alta ou em silêncio as palavras

escritas em linhas corridas (caso contrário, formar o leitor seria

sinônimo de ensinar a ler). Outra idéia implícita é que deve existir

alguém ou algo que tenha a capacidade e a autoridade de formar o

leitor, isto é, um agente formador; mais ainda, que esse formador

é leitor e sabe como formar leitores. E, a mais forte de todas, a

idéia de que ser leitor é algo positivo, caso contrário não se

justificaria o esforço empreendido em sua formação.

Essas idéias têm estimulado programas de incentivo à

leitura e [97] justificado as mais variadas campanhas de

promoção da leitura; são motivo de livros e preocupação

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pedagógica; resultam de/em um perigoso (e apenas aparente)

consenso. Por isso, gostaria de, negando o consenso, pôr em

questão algumas dessas crenças subjacentes ao debate político e

pedagógico em torno da leitura, apresentando essas que eu

chamei de máximas impertinentes.

A leitura não é nem boa nem má, a leitura é a leitura

O que é ser leitor? Trata-se, certamente, de uma categoria

em que se inclui determinado tipo de pessoa, assim como ocorre

com ser consumidor, motorista, passageiro, espectador, usuário,

assinante, pedestre, assegurado, cliente, eleitor. Esses são, por

assim dizer, alguns dos atributos que se incorporam à condição de

ser de cada indivíduo na sociedade contemporânea e que

caracterizam o exercício da cidadania.’ Para cada uma dessas

situações, supõe-se um comportamento, um direito. São situações

em que, de acordo com o conceito de cidadão de Milton Santos,

articulam-se o espaço público e o privado.

O mesmo se passa com ser leitor. Saber ler é uma

necessidade objetiva do sujeito moderno, na medida em que a

leitura está implicada por muitas práticas sociais, e a

impossibilidade de realizá-la impede, em alguma medida, o sujeito

de participar delas. E assim como não faz sentido dizer que

alguém, por ser cliente, eleitor, usuário ou assegurado, torna-se

melhor ou pior, mais ou menos crítico, também não faz sentido

afirmar que o indivíduo é melhor ou pior, mais ou menos crítico,

por ser leitor. Lê-se pelas mais variadas razões diferentes tipos de

textos, em diferentes suportes e em diferentes situações. Não há

nenhum valor ético ou moral associado ao exercício da leitura: ela

se presta a muitas finalidades e é realizada por pessoas de todas

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as índoles, de qualquer ideologia.

Ler é verbo transitivo

O mito de que ler faz bem, de que torna as pessoas

melhores, parte do princípio de que não importa o que se leia. No

entanto, não se [98] pode negar que a leitura pressupõe

necessariamente o texto, que se este não existe sem aquela, a

recíproca também é verdadeira. Assim, não se pode pensar a

leitura sem pensar os objetos sobre os quais ela incide. Ler um

romance pressupõe, em função dos códigos sociais estabelecidos,

esquemas e finalidades de leitura diferentes de quando se lê um

relatório ou uma receita culinária (sei que se pode escrever um

poema na forma de uma receita, que se pode escrever um relatório

literário, que é tênue a fronteira entre biografia e ficção; mas sei

também das convenções que permitem essas possibilidades).

O leitor de X é leitor de X

Outra das idéias que circula muito nas escolas e em

programas de promoção da leitura é que o importante é ler, não

importa o quê. Por trás dessa idéia, está a crença que uma leitura

puxa outra e que a pessoa começa lendo história em quadrinho e

conforme pega o gosto pela leitura passa a ler coisas melhores.

Nada contra que o sujeito leia o que quer ou precisa, mas não há

como aceitar essa idéia de progressão na formação do leitor. As

TVs educativas continuam mantendo índices de audiências

baixíssimos, apesar da enorme audiência de certos programas

sensacionalistas. Os filmes de autor continuam sendo assistidos

por muito menos gente que os filmes de aventura. O grande

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sucesso de jornais populares no Rio de Janeiro não implicou o

aumento de vendas dos jornais tradicionais. De fato, o sujeito vai

ler aquilo que tenha relação com seu modo de vida, com suas

necessidades pessoais e profissionais, com os vínculos culturais e

sociais.

Não é a leitura que conduz o indivíduo a novas formas de

inserção social. É, ao contrário, o tipo de vínculo que ele

estabelece que pode conduzi-lo eventualmente a ler certas coisas

de certo jeito. A leitura, mesmo feita em recolhimento, não é um

comportamento subjetivo, uma questão de hábito ou de postura, é

uma prática inscrita nas relações histórico-sociais.

Ler não é um prazer, ainda que possa ser [99]

A aproximação de leitura e prazer é uma das imagens mais

freqüentes tanto em campanhas de promoção de leitura quanto

em sugestões de métodos de ensino da leitura. Supõe-se que as

pessoas, se encontrarem prazer na leitura, lerão mais e melhor. O

curioso é que este seria o único prazer que precisaria ser

promovido, como se fosse uma espécie de prazer secreto ou como

se as pessoas não soubessem o que lhes dá prazer. É certo que

alguém pode encontrar prazer na leitura, principalmente quando

se associa leitura com entretenimento ou com a experiência

estética. Mas não é certo que haja relação necessária nem vínculo

entre leitura e prazer. Ao contrário, a leitura muitas vezes exige

esforço e concentração intensos, é cansativa, é feita por obrigação

(e também não há nada de errado que seja feita assim), por

motivos profissionais, religiosos, cotidianos ou outros. (Eximo-me

de comentar o eventual prazer do masoquista.)

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A leitura de entretenimento é um entretenimento

Se assisto a um show de música, se saio para dançar, se fico

vendo TV, se vou no parque de diversões, se jogo futebol, se faço

um churrasco com amigos ou se leio um livro, isso depende dos

meus gostos, modo de vida e condição financeira. Não há até aí

nenhum parâmetro de avaliação que permita dizer que esta

diversão é melhor que aquela; pode-se, isto sim, lançar mão de

princípios éticos ou sociais para pôr em questão certas diversões

macabras.

Divertir-se é muito bom e não tem por que supor que a

leitura não seja um bom divertimento. Mas, enquanto

divertimento, ela não é diferente de qualquer outra forma de

entretenimento (prazer por prazer, tanto faz ler ou ver). Ela não

forma ou transforma ninguém, não produz nenhuma mudança na

sociedade nem conduz a outros hábitos.

De qualquer modo, não se pode esquecer que, na sociedade

industrial moderna, a indústria do entretenimento é uma das

maiores do mundo, movimentando somas fantásticas de dinheiro.

Nesse sentido, o livro ou revista é uma mercadoria como outra

qualquer, como um brinquedo, um doce ou uma peça de

vestuário, e cabe aos empresários do setor promover seus

produtos. [100]

O leitor que se promove é um estilo de vida

A mulher recostada languidamente em uma poltrona; a

criança estirada no chão diante de um livro, as pernas em

movimento para o ar, as mãos no queixo sustentando o rosto; o

moço sentado numa mesa de um café com um livro aberto sobre a

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mesa; o velho com a criança no colo e o livro na mão; o intelectual

diante de enormes fileiras de livros sisudos. São imagens

recorrentes em iconografias de leitura. Imagens de algo que

reconforta, diverte, instrui, instiga a imaginação. Imagens que

reproduzem um modo de ser apropriado. É interessante perceber

os objetos que combinam com ler: se criança, almofada; se

mulher, sofá; se homem, cachimbo e caneta.

Interessantemente, ao lado desse clichê de leitor bem

comportado reside seu antípoda: a imagem do maravilhoso

maldito; o escritor que deixa morrer a amada, mas salva seus

manuscritos do naufrágio; que passa noite em claro debruçado

sobre sua obra, sacrificando a saúde; que experimenta

radicalmente a vida e morre, ainda jovem, de cirrose hepática ou

de overdose; que se suicida num quarto sórdido de Paris.

As duas imagens se sobrepõem para construir o mito da

superioridade do leitor: de um lado o gênio indomável do artista,

de outro a fruição pacífica do burguês radical.

Poder ler é direito de cidadania

Aqui reside a questão central. A escrita e a leitura sempre

foram, e continuam sendo, instrumento fundamental de poder e,

nesse sentido, sempre estiveram, e continuam estando,

articuladas aos processos sociais de produção de conhecimento e

apropriação dos bens econômicos. A própria alfabetização em

massa resulta muito mais das necessidades do sistema do que de

uma democratização social ou de uma mudança de consciência

dos detentores do poder. Portanto, o quê e o quanto um cidadão é

leitor depende, acima de tudo, de sua condição social e da

possibilidade de ter acesso ao escrito, e isto depende das relações

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sociais. Não é por acaso que os dados da pesquisa de mídia Abril

(1994), relativos [101] ao perfil do leitor de suas revistas, trazem

números tão insignificantes para o segmento E, exatamente

aquele que tem menor poder de compra, que vive nas piores

condições, que tem mais desempregados (estranha condição de

cidadão essa!). Ou seja: os mais excluídos da leitura são também

os mais excluídos da sociedade, os que não têm hoje emprego,

moradia, atenção à saúde, direito ao lazer.

Promover a leitura só tem sentido enquanto movimento

político de contrapoder, enquanto parte de um programa de

democratização social. Nesse sentido, a questão que se coloca é a

do direito de ler e não a da promoção deste ou daquele

comportamento, ou a valorização de tal ou qual gosto. O que

interessa não é o que um sujeito lê, se gosta mais disso ou

daquilo, se encontra ou não prazer na leitura, mas sim se pode

ler, e ler quanto e o que quiser. [102]

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19 — MARIA ALICE BARROSO Romancista, bibliotecária e Mestre em Ciência da Informação, foi Diretora-Geral do Instituto Nacional do Livro e do Arquivo Nacional. Atualmente desenvolve o projeto — tema de sua tese de mestrado — sobre a biblioteca pública na educação do adulto, com acervo especialmente dedicado ao analfabeto funcional.

Não será demais recordar que nossa geração de

bibliotecários (aquela que surgiu na década de 50), se fosse

interrogada quanto ao real motivo que a teria levado ao estudo da

biblioteconomia, daria como resposta a determinação de

contribuir para a formação do leitor, acima de tudo.

Podia ser até que muitos houvessem enveredado por esse

caminho pela afinidade com aquele que seria o leitor infantil; e

não será difícil compreender que a compreensão do texto torna-se

cada vez mais completa na medida em que esse texto for mais

simples, em que as palavras se complementem sem o esforço

maior do pernosticismo lingüístico.

Assim, os bibliotecários que passaram a centralizar o seu

trabalho naquele leitor em potencial (que muitos também chamam

de analfabeto [103] funcional) descobriram na simplicidade do

texto infantil a indispensável aproximação que se oferece aos que

se iniciam e/ou desenvolvem o seu exercício de alfabetização

trilhando o caminho da educação supletiva.

Há, portanto, uma clara conexão no fato de a biblioteca

pública estar sendo amplamente utilizada não só em cursos de

alfabetização como naqueles destinados aos analfabetos

funcionais.

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Como um “centro de informação” é possível reconhecer nos

bibliotecários os educadores (e não, meramente, instrutores):

assim é que a educação do adulto passou a conceituar aqueles

que não tiveram acesso ao estudo em idade própria ou que só

lograram esse acesso de modo insuficiente.

No Brasil, a sugestão de utilizar a biblioteca pública paralela

à escola na complementação da educação do adulto tem a ver com

a aprendizagem da leitura: o material didático deverá ser

apropriado para aquele que vem de ingressar na biblioteca a fim

de adquirir, no mínimo, habilidades de escrita, leitura e operações

numéricas — o que deverá facilitar o seu ingresso no mercado de

trabalho.

Os bibliotecários não são servidores da escolaridade, porém

podem ser considerados como os agentes capazes de transformar

o mundo particular dos leitores. Eles oferecem acesso a um

universo coerente ou a um tipo de poder capaz de estruturar a

incoerência através da linguagem. Na verdade, o bibliotecário

expande o seu papel de contribuir para que o usuário aumente a

habilidade no processo da leitura.

Alguma estatística: O Library Literary Planning Guide

informa que 25 milhões de adultos americanos não sabem ler nem

escrever; outros 35 milhões são funcionalmente analfabetos; 85%

dos jovens que comparecem perante a Corte de Justiça são

analfabetos funcionais; de 4 a 6 dos 8 milhões de desempregados

se ressentem de não terem sido treinados, pelo menos, com

habilidades cotidianas, o que poderia, hoje, dar-lhes oportunidade

num emprego de relativa tecnologia. Cerca de um terço das mães

que recebem auto-alimentação são funcionalmente analfabetas.

Um, em cada três americanos, se reconhece incapacitado de ler

um livro. A população existente nas prisões representa a mais alta

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concentração de analfabetos funcionais. (JOHNSON & SOULE,

Illinois, 1986, p.408). [104]

Na verdade, a estatística acima enseja que se indague: em

que se distingue o analfabeto do alfabetizado que não lê?

Cabe, ainda, indagar o que têm feito as bibliotecas públicas

pelos que desejam se alfabetizar?

Definição: O analfabetismo — como quase todo termo na

área da Educação — possui vários significados. As várias

interpretações da palavra, ou seja, aquela que diz respeito ao

analfabetismo do adulto e a que se refere ao analfabetismo

funcional, nem sempre são adequadas ao contexto em que são

usadas.

Analfabeto funcional é aquele que não consegue ler o

formulário do seu próprio emprego nem as instruções que lhe são

passadas por seu superior, tem dificuldade em realizar operações

numéricas ou decodificar as manchetes de jornais.

Há quem indague por que a biblioteca pública?

Vale a pena lembrar FLUSSER (O bibliotecário animador,

1982, p.122) que cita a biblioteca pública como o órgão capaz de

dar a palavra a quem não a tem. Vale enfatizar a transformação

ocorrida na alfabetização de adultos, que era realizada de forma

autoritária (FREIRE, A Importância do ato de ler, 1984, p. 83) e

agora a palavra é uma ato de reconhecimento do mundo, um ato

criador. Ele pontua que a instrução da educação não se limita ao

treinamento técnico a fim de corresponder às necessidades de

uma área. Na verdade, FREIRE não se refere à educação que

domestica e acomoda, mas à educação que liberta pela

conscientização, com a qual o homem opta e decide.

FREIRE inova classificando a biblioteca popular como um

centro disseminador do saber e não como um depósito silencioso

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de livros. Em sua obra A importância do ato de ler em três artigos

que se completam (1994, p. 18) esse educador afirma que falar da

educação de adultos e de bibliotecas escolares é falar, entre

muitos outros, do problema da leitura e da escrita. Não da leitura

de palavras e de sua escrita em si próprias, como se lê-las e

escrevê-las não implicasse uma outra leitura, prévia e

concomitante àquela, a leitura da realidade mesma.

Um outro ponto que FREIRE acha interessante sublinhar é

que uma visão crítica de educação, portanto da formação do leitor,

se refere à necessidade que têm os educadores de viver, na

prática, o [105] reconhecimento óbvio de que nenhum deles está

só no mundo.

A biblioteca popular/pública necessita estimular a criação

de horas de trabalho em grupo, realizando verdadeiros seminários

de leitura.

Numa área popular — que possa ser desenvolvida por

bibliotecários, documentalistas, educadores, historiadores —

poderá ser feito o levantamento da área através de entrevistas

gravadas com os mais antigos moradores, o que poderia

representar o testemunho dos momentos fundamentais da sua

história comum.

PAULO FREIRE recomenda que se faça com esse material

folhetos, observando total respeito à linguagem dos entrevistados.

Esse material, desde que coletado em diferentes regiões, deverá

ser intercambiado, constituindo um material didático de

indiscutível valor: nele possivelmente encontraremos o autor

(recém-alfabetizado) que o escreveu, como também através dele

encontraremos o leitor que estará exercitando a sua aprendizagem

de leitura.

Como bem enfatiza o educador PAULO FREIRE, um dos

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aspectos positivos de um trabalho como esse é o reconhecimento

do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa, que poderá

conhecê-lo melhor. E não objeto da pesquisa que os especialistas

fazem em torno dele.

A forma como deve atuar uma biblioteca pública, a

constituição de parte do seu acervo que deverá estar dirigida à

formação dos analfabetos funcionais, as atividades que podem ser

desenvolvidas em seu interior, tudo isso deve estar inserido numa

política cultural: na verdade, a biblioteca pública deve também ser

utilizada na educação do adulto.

Até a Segunda República o problema da educação dos

adultos não se distinguia especialmente dentro da problemática

mais geral da Educação Popular. Em sua tese de mestrado

VANILDA PAIVA (Educação popular e educação de adultos)

esclarece que a educação de adultos começou a ser percebida de

forma independente a partir da experiência do Distrito Federal

(1933-1938), com ANISIO TEIXEIRA, como Secretário da

Educação, e das discussões travadas no Estado Novo, quando o

censo de 1940 indicava a existência de 55% de analfabetos nas

idades de 18 anos e mais. [106]

Devemos admitir no analfabetismo o traço delineador que

sublinha as áreas da injusta distribuição educativa, dividindo a

humanidade. Em certas regiões geográficas é possível reconhecer

a existência do analfabetismo, da desnutrição, da pobreza, da

mortalidade infantil contribuindo para uma péssima qualidade de

vida.

E também devemos estar conscientes de que não será

somente através do combate ao analfabetismo que conseguiremos

vencer a injustiça social.

Vivenciando a véspera do 3o milênio, cremos que deva ficar

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bastante claro que a alfabetização não se engloba somente nas

exigências da sociedade ou do governo, na intenção de incorporar

os analfabetos -os analfabetos funcionais — na cultura letrada; o

centro de interesse deve ser a educação do adulto. A alfabetização

pode ser uma das ferramentas disponíveis para a educação do

adulto. [107]

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20 — MARIA THEREZA FRAGA ROCCO

Leitor, leitura, escola: uma trama plural “Não existe texto em si, separado de qualquer

materialidade, fora de um suporte que permita sua leitura, fora da circunstância em que é lido.”

CAVALLO e CHARTIER1

Professora titular da Faculdade de Educação da USP e Professora convidada da Universidade de Paris. É autora dos livros: Literatura/Ensino: Uma problemática; Crise na Linguagem: A Redação no Vestibular e Televisão e Persuasão, além de artigos e ensaios publicados no Brasil e no exterior.

Reflexões Iniciais

Leitor — texto — leitura, termos fundadores de uma relação

aparentemente imutável, revelam, no entanto, que entre o traçado

da escrita, do texto — mais fixo e menos sujeito a modificações —,

e as leituras que dele se fazem, instaura-se, conforme M. de

CERTEAU, uma nova ordem em que prevalecem “o efêmero, a

pluralidade e a invenção”. E por quê? Porque, segundo o autor,

“nossa sociedade hoje mede a realidade por sua capacidade de

mostrar, de se mostrar e de transformar as comunicações em

viagens do olhar.”2

O leitor agora busca nos textos uma reapropriação de si

mesmo. Nesses textos, a partir da própria experiência prévia de

vida, o leitor, o espectador se tornam plurais. No programa de

atualidades da TV, no texto do livro ou do jornal,

leitores/espectadores enxergam paisagens do [109] próprio

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passado que acabam por integrar às visões, às leituras do

presente.

Desse modo, os textos, enquanto espécies de “reservatórios

de formas”, esperam que o leitor lhes dê vida, modificando-os

enquanto objetos de leitura, aos quais são atribuídas “múltiplas

significações”.3

Mas nem sempre as “coisas” foram assim. Pelo menos,

oficialmente. Houve um momento em que se acreditava numa

ordem fixa mais ou menos secreta — inerente à natureza dos

textos — e inacessível aos não iniciados.

O livro, os textos escritos, sacralizados e inatingíveis, só

poderiam ser objeto de estudo dos privilegiados que

transformavam a leitura feita (também legítima, claro!) em um

produto ortodoxo de interpretação única. Assim, textos, livros,

lidos por vozes uníssonas, prendiam-se a um poder social

fortemente elitizado e amplamente propagado.

Foi preciso o tempo passar. Foi preciso questionar a

estaticidade e a rigidez de certas instituições (igreja, escola,

partidos). Foi preciso surgir um Roland Barthes para que se

começasse a mostrar, sem nevoeiros, a relação de reciprocidade,

antes velada, que sempre existiu entre leitor, leitura e texto. Uma

vez desvendada, tornou-se possível, então, enxergar com nitidez a

“pluralidade indefinida das ‘escrituras’ produzidas pelas diversas

leituras”.4

Em nossos dias, esse tipo de poder citado ainda pretende ser

exercido, por exemplo, em vários produtos da mídia e na própria

escola. Na medida em que procuram, por vezes, isolar os textos de

seus leitores e receptores, algumas matrizes tentam inutilmente

deter a posse e estabelecer uma “verdade” única dos textos, seja

por parte dos produtores, seja por parte dos próprios professores.

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Inutilmente, sim. Pois como ensina ainda de CERTEAU, “por

trás do cenário teatral dessa nova ortodoxia, se esconde hoje,

como também no passado, a atividade silenciosa, transgressora,

irônica ou poética de leitores (ou espectadores) que sabem

resguardar boa parte da própria privacidade e manter a distância

necessária dos ‘mestres’”.5

Leitura: Gestos, Lugares, Suportes

A leitura — preocupação sempre presente na História — não

se [110] faz por abstrações. Ela se mostra, ao longo do tempo,

como uma atividade que se concretiza pela prática de gestos

diversos, ocorrendo em variados lugares, por meio de diferentes

suportes.

Se no passado o rolo, pesado, exigia uma determinada

postura física do leitor, prendendo-lhe as mãos durante o ato de

ler, a invenção do códice libertou não só as mãos, o corpo e os

movimentos do leitor, mas também os espaços físicos da leitura e,

claro, os próprios textos.

Mudanças nos suportes — do rolo para o livro; do livro para

o jornal; mudanças nos espaços — do interior das bibliotecas para

os vários compartimentos da casa; dos quartos e salas para a

conquista definitiva dos espaços abertos: jardins, cafés, praças

públicas; mudanças de gestos: da posição ereta — leitores

sentados, braços sobre as mesas — para a liberação corporal sem

restrições; deitados em suas camas; estirados sobre a grama;

sentados em bancos de trens, ônibus e metrôs, todas essas

modificações constituem-se em pontos fundamentais para

compreendermos os períodos que marcaram a evolução histórica

desses gestos, lugares e suportes da leitura.

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No entanto, em que pese a enorme importância destas

interfaces, a análise exclusiva de gestos, lugares e suportes não

consegue dar conta do estudo da leitura em suas inter-relações

mais finas. É necessário, pois, que ao se realizar tal análise, não

sejam esquecidas outras engrenagens que movimentam e

articulam dimensões também essenciais. E por quê? Porque, para

além dos gestos, lugares e suportes, existem grandes diferenças

entre aqueles que, numa mesma época, lêem os mesmos textos.

Sejam diferenças individuais entre mais letrados e menos letrados,

sejam diferenças entre “mundos” de leitores.

Stanley FISH6 criou uma expressão viva e competente para

explicar diferenças de leituras. Trata-se das “comunidades

interpretativas” que constituem o “mundo” ou os “mundos” dos

leitores. Cada uma de tais comunidades partilha e põe em ação

um mesmo conjunto de interesses, usos e competências ao ler

textos escritos, os quais, por seu turno, circulam em diferentes

suportes que são parte integrante e integradora dos próprios

processos de interpretação e de significação.

Exatamente, o que se entende por suportes? São todos os

materiais, produtos e equipamentos que permitem a um texto

circular. [111] Do papiro ao papel; do rolo ao livro; do volume

pesado aos formatos mais leves, fáceis de serem transportados e

utilizados; das páginas policopiadas às outras, transmitidas

eletronicamente e, talvez, impressas de modo esparso. Isso, sem

falar das diferentes naturezas de textos: verbais, visuais, híbridos,

etc.

Enfim, se são muitas as “comunidades interpretativas”; se

são diferentes os leitores, individualmente, dentro da mesma

“comunidade”, são plurais também os textos, os espaços e os

suportes que permitem sua circulação e apropriação. Sobre essa

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dinâmica é que devemos nos debruçar ao pensarmos em um

trabalho sistemático com leitura.

Escola: Espaço formal do trabalho com leitura

A leitura acontece no cotidiano de cada pessoa também de

modo plural. Lê-se informalmente sobre vários assuntos; lê-se

para aumentar o que se sabe sobre o mundo histórico e factual;

lê-se em busca de diversão e descontração; lê-se para obter

informações úteis e satisfazer curiosidades diversas. Lê-se, na

vida, em geral, de forma não organizada, e nem precisa mesmo ser

assim.

Ainda que o trabalho escolar nunca possa divorciar-se ou

distanciar-se do que acontece no dia-a-dia da vida, é na escola,

enquanto instituição formal de educação, que atividades ligadas à

ampliação do universo cultural do indivíduo, ligadas à

aprendizagem sistemática dos diferentes campos do saber, devem

ser concebidas e desenvolvidas de maneira competente.

Pensando-se na questão da leitura, também é na escola que

podem e devem ser exercitadas, organizadamente, as práticas da

leitura comum, cotidiana. Textos que circulam no meio urbano, no

espaço doméstico, devem entrar também na escola, em todos os

níveis de ensino, desde a educação infantil, passando-se pelo

curso fundamental, até chegar-se ao ensino médio, momento em

que esses textos devem tangenciar outros, pré-selecionados, ou

com eles estabelecer intersecções.

Se, tanto na vida quanto na escola, a leitura acontece de

forma multifacetada, cabe, no entanto, à escola, a tarefa de

alargar, por essa leitura, os limites do próprio processo de

produção do conhecimento e [112] de reflexão sobre o que se

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produziu. Professores, alunos, textos e leituras devem interagir

todo o tempo de forma organizada e sistemática.

Se, por meio de um projeto de leitura na escola, pode-se

tentar ampliar os limites do conhecimento, tal projeto, em todos os

níveis, terá também que pulverizar equívocos cristalizados pela

aceitação não refletida de pré-conceitos do senso comum, sempre

repetidos à exaustão; mas o projeto deverá proporcionar aos

estudantes, em diferentes níveis, o acesso ao prazer da leitura.

Prazer que resulta de um trabalho intelectual árduo, de um

necessário corpo-a-corpo que se instaura entre o leitor-aluno, sua

experiência prévia de mundo e o texto estético, seu autor e os

outros leitores virtuais ou reais com quem irá partilhar

interpretações e significações recém-inauguradas.

Assim, em qualquer faixa etária e de ensino, o contato com

textos artísticos (visuais, verbais, entre outros) precisa ocorrer, de

forma plena, e com a contínua intermediação do professor. O texto

artístico, como, por exemplo, o literário (ficcional ou poético),

provocará um saudável alargamento das experiências da vida real

de cada um, ampliando também as possibilidades de refinamento

do imaginário pessoal e coletivo. A literatura e as outras

manifestações artísticas em conjunto, quando bem desenvolvidas

pela escola, geram, também fora dela, intercâmbios ilimitados

entre indivíduo — obra de arte — e comunidade; entre lazer,

informatividade e fruição.

A esta altura, surge como essencial a atividade do professor.

De um professor que deve, sim, ser bem formado e mostrar-se

capaz de pensar em um “ambicioso” projeto de leitura para

qualquer faixa etária e nível de escolaridade.

Para tanto, alguns requisitos devem ser exigidos desse

professor a fim de que seu trabalho com leitura tenha êxito.

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Que o professor seja, antes de tudo, um leitor. O

professor A que não lê nunca terá a memória povoada pelas

ricas e inesquecíveis imagens fornecidas pelas diferentes

formas dos textos de arte, principalmente pelos textos

literários. Se assim for, se o professor não se revelar um

leitor, ele jamais conseguirá trabalhar com leitura;

Que o professor conheça e avalie criticamente os

conceitos [113] de leitura, a natureza da leitura e que

analise as linhas teórico-metodológicas que procuram dar

conta de um sério trabalho docente, com leitura. Que esse

professor conheça a carpintaria dos diferentes tipos de

textos e saiba avaliá-los em seus suportes, naturezas e inter-

relações, explorando-os interativamente com os estudantes;

Que o professor se posicione com firmeza e segurança

diante de certas práticas diluidoras de análise textual e de

leitura. São práticas muito comuns que, tentando facilitar o

trabalho dos alunos, acabam antes por descaracterizar as

relações sociais fundadoras da leitura na escola; relações

que se constroem e se sustentam com base em leituras

partilhadas, de textos, pelos seus leitores. Essa facilitação

excessiva gera simulacros, impede o contato efetivo do aluno

com os textos de arte e cria um obstáculo perene para que,

na escola, se atinja o real prazer de ler;

Que o professor saiba escolher bons textos e de várias

naturezas. E que, para explorá-los, esse professor crie

exercícios inventivos que levem seus alunos à liberação do

imaginário, ao invés de aprisionar a capacidade de devanear

e sonhar dos estudantes na camisa-de-força tecida pelas

perguntas banais que já pressupõem respostas pré-

fabricadas, e que, além de serem um mal em si, acabam por

Page 121: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

estilhaçar a integridade dos bons textos.

Cabe à escola oferecer condições, e ao professor bem

formado realizar um competente trabalho de LEITURA com alunos

de todas as idades e graus de ensino.

Referências

1. CAVALLO, G. e CHARTIER, R., História da leitura no

mundo ocidental, São Paulo, Ática, 1998, v. 1, p. 9.

2. de CERTEAU, M., A invenção do cotidiano, Petrópolis,

Vozes, 1994, p. 47. [114]

3. de CERTEAU, M., id.ib., p. 267.

4. de CERTEAU, M., id.ib., p. 268.

5. de CERTEAU, M., id.ib., p. 268.

6. FISH, S. Is there a text in this class? 9a ed, Massachusetts,

Harvard Univ. Press, 1995. [115]

Page 122: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

21 — OTTAVIANO DE FIORE

A formação do leitor, uma tarefa Ottaviano de Fiori é escritor e editor. Professor de Ciências Sociais na PUC de São Paulo. Seus escritos mais recentes tratam do desenvolvimento das ideologias modernas no Brasil. Atualmente é Secretário do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura e Presidente do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Entre os problemas de nossa cultura, a leitura tem um papel

essencial e decisivo para o salto civilizatório que o Brasil vem

realizando. Não há nação desenvolvida que não seja uma nação de

leitores. Desde o operário que precisa ler manuais até o advogado

que precisa decifrar os textos legais, passando pelo estudante nos

exames, o cidadão que enfrenta as urnas, a dona de casa que

enfrenta a educação da família, o executivo que enfrenta sua

papelada, todos os membros de uma sociedade civilizada são

obrigados a utilizar várias formas de leitura e interpretação de

livros, jornais, revistas, relatórios, documentos, textos, resumos,

tabelas, computadores, cartas, cálculos e uma multidão de outras

formas escritas.

É importante perceber que o hábito de leitura de um povo

não pode ser considerado igual à sua alfabetização. Saber ler não

é suficiente [117] para ter-se familiaridade ou convívio

permanente com a leitura. Todos os povos civilizados se

caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos,

isto é, gente que desde a infância adquiriu o hábito de leitura e

Page 123: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

que todos os dias manipula com facilidade uma grande

quantidade de informação escrita. E, por detrás desta diversidade

dos tipos e meios de leituras encontra-se sempre o mesmo objeto,

o mais poderoso instrumento do saber jamais inventado pelos

homens: o livro.

Não é, pois, exagero afirmar como Darcy Ribeiro que o livro

foi a maior invenção da História e a base de todas as outras

conquistas da civilização. E não é exagero também afirmar que o

livro no Brasil não vai nada bem — apesar de ter todas as

possibilidades de superar esta deficiência num curto prazo

histórico. Quantos livros os brasileiros lêem por ano? Os

indicadores indiretos são eloqüentes. Nos EUA são produzidos 11

livros per capita/ano, na França 7 e no Brasil 2,4. Mesmo

considerando que boa parte da leitura do Brasil não é feita em

livros mas em jornais e revistas. Ou seja, muitíssimo menos do

que seria necessário para o desenvolvimento do país.

Esta situação é uma ameaça latente e permanente para o

nosso desenvolvimento social, econômico e político. É

fundamental para o futuro da democracia brasileira estabelecer

condições para que da multidão de jovens pobres que habita as

periferias possa emergir uma massa significativa de pessoas

educadas que se integrem nas nossas futuras elites. E para que

isto se realize é essencial que esta massa de jovens tenha

familiaridade com a leitura. Sem isso sua ascensão será frustrada,

nossa democracia continuará a perigo e nossa sociedade

continuará pobre.

Panorama do Livro no Brasil

Em 1990 éramos cerca de 144 milhões e produzimos em

Page 124: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

torno de 1,6 livros per capita. Em 1998 somos quase 160 milhões

e estamos produzindo perto de 2,4 livros per capita, o que

significou uma melhoria real — que pode ser atribuída à

estabilização da economia iniciada em 1995. Entretanto, este

número manteve-se o mesmo entre 1996 e 1998. No ano 2000 as

projeções indicam que seremos 165 milhões e, se o [118] consumo

de livros continuar crescendo apenas passivamente, produziremos

cerca de 2,5 livros per capita — isto é, estaremos marcando passo.

A situação é, aliás, pior do que pode parecer: destes 2,4 livros

per capita produzidos nos últimos três anos, apenas 0,7 são livros

não didáticos. Ou seja, o livro didático, que é praticamente

obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo federal,

constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país.

Pode-se afirmar que, na prática, o único livro que o povo brasileiro

conhece é o escolar, e que, terminada a escola, ele deixa de ter

qualquer contato com este instrumento fundamental para o

desenvolvimento social, político e econômico da nação e dos

indivíduos.

Duas exceções importantes devem ser registradas. Uma é o

livro religioso, que cresce muito mais que os outros setores devido

à distribuição mais eficiente e penetrante. Outra é o livro infanto-

juvenil, (às vezes classificado incorretamente como paradidático),

que cresceu devido a sua ligação essencial com a escola.

Constatadas estas duas exceções, todo o resto — livros de

referência, literatura, técnicos, profissionais, científicos —

mantém-se dentro dos 0,7% que não crescem com o passar dos

anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de

nossa economia. De fato, na última década, a quantidade de livros

per capita no Brasil tem crescido e decrescido em proporção direta

com o aumento ou diminuição das compras de livros escolares

Page 125: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

pelo estado. O livro livremente comprado pelos cidadãos é um

mercado que não se desenvolve.

Os fatores da leitura

Estudos globais encomendados pela UNESCO permitiram

identificar quais os fatores críticos no estabelecimento do hábito

de leitura de um povo ou de uma pessoa: ter nascido numa família

de leitores; ter passado a juventude num sistema escolar

preocupado com o estabelecimento do hábito de leitura; o preço do

livro; o acesso ao livro e o valor simbólico que a população lhe

atribui.

Cada um destes fatores, se atacado isoladamente, não

resolverá [119] o problema. O livro pode até ser barato, mas se

não houver pontos de venda ele não será comprado. Ele pode

mesmo ser grátis. Mas se não houver bibliotecas ele continuará

não sendo lido. A escola pode valorizar a leitura, mas se a

sociedade não o fizer, o hábito se extingue na saída da escola. E

assim por diante. Só programas permanentes que ataquem

simultânea e coordenadamente estes cinco fatores poderão

produzir o aumento progressivo do consumo de livros e o desejado

crescimento da massa crítica de leitores.

O livro na família

Nascer numa família de leitores é um acidente biográfico

bastante raro no Brasil, mesmo entre as famílias de alto poder

aquisitivo, o que significa que qualquer política de expansão da

leitura no Brasil passa pelo estímulo à formação de bibliotecas

familiares. Apesar deste ser um ponto sobre o qual é difícil agir,

Page 126: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

temos bons motivos para não desanimar. Pesquisas realizadas

pela Editora Abril Cultural no início dos anos 80 com compradores

de coleções de livros e fascículos vendidos em bancas

demonstraram que cerca de 60% deles — pessoas de profissões

modestas como motoristas, garçons e auxiliares de enfermagem —

vêem nestas enciclopédias e coleções, compradas com sacrifício,

uma forma de financiar a ascensão social de seus filhos.

O livro no sistema escolar

Sabidamente a biblioteca escolar é o patinho feio do sistema

educacional. A carreira de bibliotecário escolar sequer existe.

Ninguém sabe de fato o total destas bibliotecas ou espaços de

leitura nem sua situação global do ponto de vista de acervo,

performance e resultados. Apenas as secretarias estaduais de

educação (e nem todas) estão parcialmente informadas a respeito.

Não há também uma política geral de apoio, organização,

treinamento e fomento da biblioteca escolar, instituição

fundamental para o futuro de qualquer país.

Em certas escolas, especialmente as privadas, a situação

pode até ser descrita como boa — mas é quase certo que na

maioria é precária. [120] Pior: de certa forma a obrigatoriedade da

leitura didática age mais como desestímulo à leitura do que como

fomento. Professores militantes da leitura já perceberam que,

depois de terem interessado as crianças na leitura através de

autores inteligentes e divertidos, esta atividade declina

dramaticamente no colegial, e um dos motivos é que nesta fase a

escola passa a obrigar à leitura dos autores exigidos no vestibular.

Dado que o futuro da nação são suas crianças, e que estas,

mesmo sem pertencerem a famílias de leitores, estão concentradas

Page 127: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

nas escolas, a questão do estímulo à leitura na escola é o fator

crítico mais importante e mais descuidado na criação de um público

para o livro brasileiro. Criar um bom sistema nacional de

bibliotecas escolares, dotado de bons programas de estímulo à

leitura, à imaginação e à cultura geral, criará um enorme mercado

presente e futuro para o livro com conseqüências gigantescas na

cultura geral, capacitação e empregabilidade de nosso povo.

O preço do livro está ligado ao problema do acesso ao livro

O livro é caro no Brasil. É caro se comparado aos preços

internacionais e mais caro ainda se avaliado pelo poder de compra

de nosso povo. O motivo fundamental deste preço são nossas

baixas tiragens. Um livro que no exterior é impresso em 30 mil

exemplares, no Brasil não passa de 3 mil.

Os motivos para estas baixas tiragens são: a falta de pontos

de venda, em especial de livrarias, e a falta de bibliotecas que

comprem livros.

Nossas livrarias

Para um país de 160 milhões temos cerca de 22 mil bancas

de jornal e menos de mil livrarias, a maioria em dificuldades. O

problema fundamental não é sequer a falta de clientes porque

basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa

cidade sofra uma explosão. Mesmo para o nosso livro tão caro há

uma demanda reprimida que não é atendida. [121]

É necessário, pois, estabelecer uma política nacional de

fomento às livrarias, seguindo a máxima de José Sarney: A livraria

é um serviço público terceirizado. Esta é uma questão delicada,

Page 128: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

pouco estudada, mas essencial para o futuro do livro. Uma

proposta importante, surgida na Câmara Setorial do Livro e da

Comunicação Gráfica, é a criação de um programa especial que

permita às 10 mil papelarias do país voltar a vender livros como

elas faziam no passado antes da venda de livros tornar-se para

elas um negócio desimportante e secundário.

A questão do preço do livro é pois um problema que requer

transformações estruturais muito menos ligadas aos fatos da

produção do que aos fatos da distribuição. Ele só será resolvido

progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de

bibliotecas públicas e escolares — expansões estas que permitam

aos editores trabalhar com grandes tiragens e economia de escala.

Nossas bibliotecas

Para obter-se um livro é preciso comprá-lo ou emprestá-lo.

Para comprá-lo é necessária, como vimos, uma vasta rede

nacional de pontos de venda. Para emprestá-lo gratuitamente são

necessárias as bibliotecas públicas.

Uma pesquisa realizada este ano pela Secretaria de Política

Cultural do Ministério da Cultura identificou 3.896 bibliotecas

públicas em todo o país, em sua esmagadora maioria municipais.

Mais de 80% de seu público é formado por estudantes, indicador

indireto da falta de bibliotecas escolares. O acervo da grande

maioria destas bibliotecas não é atualizado há vários anos.

Essencialmente elas não compram livros e sobrevivem com

doações, o que significa que estes acervos crescem ao acaso e sem

uma política racional de compras voltada para as necessidades de

seus freqüentadores específicos, os estudantes. É fundamental

pois que seja criado, para as bibliotecas públicas, um fundo de

Page 129: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

compra de acervo, com a participação dos governos federal,

estadual e municipal, da iniciativa privada, da sociedade e de

órgãos internacionais.

Assim, se quisermos utilizar nossa rede de bibliotecas como

um instrumento da batalha pela difusão popular da leitura e da

cultura escrita, [122] abrem-se a nossa frente dois caminhos: a

modernização das bibliotecas públicas e a expansão da rede.

A modernização das bibliotecas existentes

Considerando o grau de subutilização da rede nacional de

bibliotecas, sua modernização permitirá, de imediato, multiplicar

pelo menos por cinco o seu número de usuários. Para isto será

necessário implementar programas de:

1 — Treinamento e mobilização de cerca de 13.000

responsáveis;

2 — Criação de uma política de acervos;

3 — Reequipamento e informatização de toda a rede;

4 — Ampliação de público e implantação de programas de

incentivo à leitura em todas as bibliotecas públicas do país,

coordenados e fomentados pelo PROLER, programa sediado na

Biblioteca Nacional, que já identificou mais de 130 programas de

incentivo à leitura em todo o Brasil.

Expansão da rede de bibliotecas públicas

Mesmo que tenhamos pleno sucesso na revitalização da rede

existente, ainda assim ela é insuficiente para as necessidades do

nosso País. Para atingirmos o nível da Espanha ou da Itália,

precisamos de uma rede com 10 mil ou 15 mil bibliotecas

Page 130: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

públicas. O que significa no mínimo triplicar a rede existente,

criando com isto ao menos mais 26 mil empregos. Este objetivo está

longe de ser utópico. O México em 10 anos implantou 5 mil

bibliotecas públicas voltadas em especial para a escola. A

Venezuela e a Colômbia realizaram feitos semelhantes e — em

certos aspectos de qualidade — até mais audaciosos.

Trata-se de um objetivo perfeitamente realizável. Isto foi

demonstrado pelo sucesso do programa Uma Biblioteca em Cada

Município sediado na Secretaria de Política Cultural. Em 1966 o

programa implantou 45 novas bibliotecas. Este número cresceu

para 68 em 1997 e atingiu 212 em 1998. Sendo que, neste último

ano, até julho, o ritmo de implantação superou a taxa de uma

biblioteca por dia, na [123] verdade, 1,7 por dia.

O modelo atual de implantação das novas bibliotecas

O programa Uma Biblioteca em Cada Município está sendo

realizado através de convênios realizados com as prefeituras ou

estados. O Ministério da Cultura não constrói edifícios de

bibliotecas, a não ser no caso das emendas de parlamentares ao

programa. Tanto o prédio — que deve ser próximo à escola ou

num lugar de fácil acesso — quanto a lei de criação da biblioteca,

os funcionários e a linha telefônica constituem contrapartida

obrigatória das prefeituras ou estados.

O programa lhes repassa uma verba de até 40 mil reais,

destinados à compra de cerca de dois mil volumes iniciais, todo o

equipamento, estantes, arquivos, móveis, xerox, vídeo,

computador e o que mais for necessário em cada caso.

Os responsáveis pela nova biblioteca recebem do Ministério

uma carta de recomendação de acervo, que é orientadora e não

Page 131: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

obrigatória. Seu compromisso é apenas o de manter um equilíbrio

necessário entre as várias categorias de livros — enciclopédias,

técnicos, infantis, literários, etc. Como resultado da compra pela

própria biblioteca, em alguns estados, como o Maranhão, as

aquisições de livros regionais chegaram a 30%, o que não

aconteceria se as compras fossem centralizadas pelo Ministério.

É importante notar que, apesar deste programa estar sendo

um sucesso e de contar com o apoio geral, as novas bibliotecas

vão precisar de integração, treinamento e renovação de acervo

tanto quanto as velhas, que foram mais ou menos abandonadas a

sua sorte. Isto é, se os programas de apoio e modernização de toda

a rede não forem implementados, em pouco tempo as novas

bibliotecas estarão na situação das velhas.

Outros modelos de biblioteca

Além da biblioteca pública, com sede fixa, existem dois

outros tipos que não podem ser esquecidos: a biblioteca volante e

a mala de livros. [124]

A mala de livros é o que melhor se adapta às regiões muito

pobres ou às de baixa densidade populacional. Sua vantagem é o

pequeno custo associado à mobilização espontânea dos leitores. O

sistema funciona melhor quando coordenado por uma biblioteca

pública. Sua sede pode ser uma casa de família, um

estabelecimento comercial ou uma igreja. Basta um bom armário

com uns cem volumes que são periodicamente substituídos por

um mensageiro da sede central. O armário é controlado pelo

próprio dono da casa que se encarrega dos empréstimos e de seu

controle. O sistema funciona muito bem em várias regiões do país,

inclusive as periferias de Brasília, e merece ser fortalecido como

Page 132: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

um serviço extra das bibliotecas públicas. Nas regiões rurais o

carteiro pode tornar-se um personagem importante deste sistema.

A biblioteca volante, também chamada ônibus biblioteca, foi

introduzida no Brasil por Mário de Andrade e ainda funciona em

São Paulo, onde presta bons serviços. Hoje, o modelo mais bem

sucedido do gênero é o Leia Brasil, um empreendimento privado,

financiado pela Petrobras, que, circulando pelas escolas de

municípios sem bibliotecas, atinge mais de 600 mil alunos/mês e

16 mil professores.

O valor simbólico do livro na mente do povo

Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO

como decisivos na implantação do hábito de leitura de um povo.

Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e

do prestígio do livro para nosso povo. Ela deverá ser feita para nos

orientar corretamente. Mas não precisamos dela para começar a

trabalhar. Também não havia pesquisa a respeito de nossa rede

nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa, e ela foi

realizada simultaneamente ao trabalho de implantação das novas

bibliotecas.

As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura

foram realizadas pelo MINC e pelo MEC.

Em convênios com os grandes municípios e a Associação

Nacional de Livrarias, o MINC realiza já há três anos, no mês de

Novembro, a campanha Paixão de Ler, que se iniciou em quatro

capitais e já existe em 22. A campanha difere em cada cidade mas

é sempre [125] organizada a partir das bibliotecas públicas e é

dirigida em especial para os professores e estudantes. O MINC

contribui com a divulgação, cartazes e folhetos, alem de um bônus

Page 133: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

livro, distribuído pelas bibliotecas, através do qual os professores

podem adquirir o livro que desejarem em qualquer livraria. Já

foram distribuídos mais de 50 mil destes bônus. Este ano o MINC

pretende cobrir todas as capitais do país, em especial suas

periferias.

O MEC, no ano que passou, usando a televisão, realizou a

campanha Ler é Viajar. Entretanto é evidente que estes eventos

meritórios só terão influência sensível nos hábitos da população

se, contando com o apoio da televisão, forem substituídos por

programas permanentes de difusão, propaganda e convencimento.

De todos os trabalhos necessários em favor do livro e da cultura

escrita, este é certamente aquele que menos progrediu e aquele

que ainda pode render muitos frutos — se fugir da mera

publicidade em si mesma e se tornar um instrumento integrado

aos outros programas acima mencionados, testemunhando os

esforços realizados pela nação, sugerindo sua multiplicação,

engajando o povo, as famílias, as escolas, os sindicatos, as igrejas

e as empresas.

Que fazer?

Como vimos, a ampliação contínua do hábito de leitura, a

expansão significativa da indústria editorial e a conseqüente

queda do preço do livro só poderão ser obtidas por um conjunto

simultâneo de medidas diretas e indiretas adotadas pelo estado,

pelas empresas e pela sociedade.

A Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica, onde

foi reunida boa parte da informação acima apresentada,

apresentará em breve alguns resumos de seu trabalho e as

relativas sugestões. Mas desde já podemos ressaltar alguns pontos

Page 134: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

fundamentais em torno dos quais deveremos desenvolver

programas específicos de ação. Os mais importantes parecem ser:

a — Estabelecer programas conjuntos com os municípios e

os estados destinados a expandir a rede de livrarias; [126]

b — Programas de ampliação e barateamento da venda de

livros pelo Correio e outros meios que não livrarias;

c — Programas de desenvolvimento das bibliotecas

familiares;

d — Programas de incentivo à leitura na escola básica;

e — Programas de difusão dos livros paradidáticos nas salas

de aula da escola básica;

f — Criação de um programa nacional de bibliotecas

escolares;

g — Modernização, ampliação e treinamento da rede

nacional de bibliotecas públicas;

h — Implantação de programas de incentivo à leitura nas

bibliotecas públicas;

i — Regionalização das feiras de livros;

j — Novo desenho do anteprojeto da Lei da Leitura do Livro e

da Biblioteca;

k — Programa permanente de propaganda da leitura, do

livro e da biblioteca.

Estas sugestões desenvolvidas na Câmara Setorial não

representam tudo o que se pode fazer pela leitura e pelo livro. Mas

se começarmos a trabalhar a sério nestes programas,

coordenando-os num único movimento, certamente estaremos

dando ao nosso povo um poderoso instrumento de acesso ao livro,

à cultura escrita e, portanto, ao progresso social, econômico e

político de nossa nação.

A rigor já sabemos o que fazer, o resto aprenderemos

Page 135: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

fazendo. [127]

Page 136: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

22 — PAULO CONDINI

Afinal, a formação de que leitor? Escritor, Diretor da Casa Mário de Andrade-SP, Assessor Especial para Literatura do Secretário de Estado da Cultura de São Paulo e Secretário-Executivo do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Quando afirmamos que o Brasil não é um país leitor, não

estamos, com certeza, deixando de considerar as milhares de

obras vendidas, todos os meses, nas bancas de jornais e em

clubes de livros; as centenas de milhares de jornais, revistas e

volumes de literatura de cordel; nem as cifras milionárias de livros

didáticos que infestam as estatísticas das diversas associações de

editores.

Certamente, em número absoluto de exemplares, a indústria

editorial do Brasil ostenta respeitável posição na lista dos grandes

produtores de papel impresso, e é sempre este o argumento que

costumam utilizar para minimizar a importância de políticas

públicas de estímulo à leitura que não sejam as de distribuição

maciça de livros, preferencialmente em caráter nacional, o que,

quase sempre, acaba [129] sensibilizando as autoridades

responsáveis, nos vários escalões governamentais.

Números e estatísticas podem ser enganosos.

É conhecida a anedota do nadador que morreu afogado

numa lagoa que tinha a profundidade média de 30 cm.

A quantidade aparentemente imensa de exemplares

publicados, no País, não corresponde nem a dois livros, por

Page 137: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

habitante, ao ano...

Quem, por força da profissão, visita remotos recantos do

País, pode dizer das centenas de milhares de obras distribuídas

estragando nas caixas que nunca foram abertas...

Cegueira e teimosia podem ser perigosas.

Que a prática das políticas públicas até hoje adotadas nessa

área não levou a quase nada pode ser comprovado pela

inexistência de um verdadeiro mercado editorial.

Objetivamente, o País carece de distribuidores — mais de

setenta por cento dos livros publicados ao ano são didáticos e sua

distribuição ocorre basicamente entre janeiro e março —; o

diminuto número de livrarias, menos de 1.500 em toda a nação,

tende a diminuir; a ínfima quantidade de bibliotecas,

aproximadamente 3.000 no Brasil inteiro, e todas elas sem verbas

para aquisição e ampliação de acervo, tende agora a aumentar por

força de um programa governamental, o que, esperamos, dê certo;

as tiragens, com raras exceções, caíram progressivamente — em

1981 um livro infantil tinha, em sua primeira edição, tiragens de 3

a 5 mil exemplares. Hoje, variam de 1,5 a 2 mil exemplares —,

para uma população que cresceu mais de 30 milhões de almas no

mesmo período.

Também como efeito perverso deste quadro, as editoras

dificilmente abrem espaço para a literatura, principalmente para

os novos criadores e, especialmente, para os ficcionistas.

Os únicos espaços existentes são para as personalidades

conhecidas da mídia, atores, apresentadores e músicos, cujo

carisma garanta grandes tiragens; ou o das editoras didáticas que,

para fugir à sazonalidade do seu mercado, e poder manter seu

contingente de distribuidores e divulgadores ativos, investem num

tipo de publicação a que denominam paradidática. Como diz o

Page 138: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

nome, especializada em obras para leitura em classe, ficcional ou

de divulgação teórico-científica, [130] sempre com o objetivo de

complementar aspectos curriculares não tratados nas obras

didáticas — história, ecologia, geografia, línguas, costumes, etc. —

e sempre a partir de modelos estruturais e temáticos

empiricamente testados em pesquisas com professores e alunos.

Da mesma forma, quando reafirmamos que o Brasil não é

um país leitor, não estamos, com certeza, deixando de considerar

as centenas de milhares de páginas lidas nas escolas de todo o

Brasil pelos nossos jovens e professores. É claro que eles lêem, e

que as escolas, cada uma da sua perspectiva e medida, os

estimulam.

Por certo, para entender o nosso ponto de vista, é

fundamental buscar respostas às perguntas:

Por que eles lêem, e o quê?

E, é evidente que, para dar respostas a estas perguntas,

teremos que aprofundar nosso olhar sobre a escola e o seu real

papel, até chegar à questão primordial:

Que tipo de homem ela pretende formar?

Há muito tempo que, no Brasil, a escola perdeu seu caráter

civilizador. Ainda que renovada em sua ação pedagógica, nosso

ensino cada vez mais está a serviço de preparar os jovens para o

ingresso à universidade, como se todos tivessem essa

oportunidade, e como isto fosse um fim em si mesmo.

Pragmática e superficial, coloca toda a eficiência pedagógica

a serviço do adestramento dos seus jovens, esquecendo, com isto,

a nobre missão de educar: partilhar o saber acumulado, como

forma de ampliar ainda mais os horizontes da humanidade,

provendo a formação necessária a fim de que, seres

biogenicamente equipados para observar, pensar e expressar os

Page 139: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

fatos e coisas do tempo e espaço em que vivem, possam

desenvolver-se em sua plenitude, passando da condição de ser

virtual para ser real, ou seja: de um ser de inteligência inata, para

o ser de inteligência cultural, socialmente construída.

É evidente que nossa escola, com raras exceções, favoreça

esse tipo pragmático de leitura, porque ele é fruto de seu

compromisso básico: o de inserir o homem no universo da

Economia de Produção.

Na verdade, quando afirmamos que o Brasil não é um País

leitor, estamos nos referindo a uma outra dimensão da leitura,

fruto de uma [131] outra qualidade de compromisso: o de inserir o

homem também no universo da Antropologia Cultural, abrindo-lhe

as portas para a fruição do patrimônio geral da humanidade; para

a expansão ilimitada do seu espírito e, como conseqüência, para

transformá-lo em um ser civilizador.

Assim foi que todo o saber do Ocidente se criou a partir de

dez algarismos e de trinta e duas letras do alfabeto1.

À soma deste conhecimento, guardada nos livros e noutras

obras do fazer do homem, é o que chamamos nossa herança

cultural, e é o acesso a este tesouro acumulado que nos dá a

verdadeira dimensão de nossa humanidade; que nos diferencia

radicalmente de qualquer outro ser vivo, e que nos propicia a

condição de participar desse processo civilizador.

Em suma, quando asseveramos que o Brasil não é um País

leitor, estamos propondo, com esta afirmação, uma reflexão

corajosa sobre a premente necessidade de mudar a nossa escola;

a real possibilidade de ampliar eficientes programas de leitura já

existentes no País e o dever inadiável de resgatar os que, por

incúria ou equívoco, foram desativados, dando assim o primeiro

passo para a construção do Brasil como uma nova civilização.

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1 Este número é relativo ao alfabeto Cirílico, originalmente de 43 letras. [132]

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23 — PAULO RENATO SOUZA

Um ponto de vista Economista pela UFRS. Mestre em Economia pela Universidade do Chile e Doutor em Economia pela Universidade de Campinas. Professor Titular da UNICAMP. Foi técnico do BID em Washington, Reitor da UNICAMP. Secretário Estadual de Educação em São Paulo, Diretor da OIT no Chile, Economista da Cepal. Professor da PUC — São Paulo, UFRJ, Universidade do Chile e da Universidade Católica do Chile. Atualmente é Ministro da Educação.

Quantos de nós não se lembram, às vezes, de frases ou

versos, de contos, poemas ou histórias inteiras lidos ou ouvidos

em nossa juventude ou mesmo na mais tenra infância?

O livro é insubstituível e é evidente a importância da leitura.

Mas nem sempre se pensou assim.

No gymnásion dos gregos não se praticava só a ginástica,

pois os jovens também tomavam contato com os filósofos e suas

idéias, e isso era suficiente para construir um entendimento

cosmológico, indispensável à compreensão do seu tempo. Na Idade

Média, essa cosmovisão vinha por meio das leituras religiosas; no

século XVI, as primeiras gramáticas da língua portuguesa foram

distribuídas para o aprendizado da população, principalmente

para a leitura da Bíblia e temas religiosos. Só mais tarde, [133]

com a chamada filosofia das luzes e a circulação das idéias dos

grandes pensadores modernos, a razão e o conhecimento científico

possibilitaram nova compreensão do mundo. Para isso, o livro e a

leitura foram e continuam se constituindo nos pilares do

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conhecimento, apesar de todo o arsenal tecnológico moderno.

A experiência republicana brasileira revela uma permanente

preocupação com o combate ao analfabetismo, com os estudos

pedagógicos e com a formação profissional — na agricultura, no

comércio e na indústria. As políticas para a instrução pública e as

várias tentativas de estruturação de um serviço eram, quase

sempre, descontinuadas. Após meio século de República, os

números não eram nada animadores: uma grande parcela — 55%

da população maior de 18 anos — era composta de analfabetos, e

a oferta de ensino público atendia menos de 50% das crianças em

idade escolar. Esse era o resultado de grande investimento que até

então havia sido feito em favor da educação.

Logo no primeiro governo republicano foi criado o

Pedagogium, inspirado no Museu Pedagógico francês, e, no

segundo, o Instituto Profissional. Mais tarde, surgiram códigos

para o ensino secundário e superior, Institutos e Escolas

Superiores. Em 1909, realizou-se o I Congresso de Instrução, e em

1922, aconteceu a I Conferência Interestadual do Ensino Primário,

sempre com a função governamental da Educação vinculada ao

Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Após a revolução de 30

e a instalação do governo provisório surgiram o Ministério dos

Negócios da Educação e da Saúde Pública, o Conselho Nacional de

Educação, a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa e o

Serviço de Radiodifusão Educativa. No governo constitucional que

se seguiu, surgem o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

(INEP), o Instituto Nacional do Livro (INL) e o Instituto Nacional de

Cinema Educativo.

Somente na década dos 50, o já então chamado Ministério

da Educação e Cultura iniciou uma Campanha do Livro Didático

e, a partir de 1955, instituiu o Programa de Edição de Livros

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Didáticos. As experiências de co-edições do INL com as editoras e

mesmo a de edição de livros didáticos e literários se

desenvolveram pelos anos 60 e 70, quando surgem o FENAME e a

FAE. Por causa da descontinuidade [134] administrativa

decorrente da mudança de ministros, esses órgãos lançavam

diversos programas que se mantinham por um tempo e logo

desapareciam: as Bibliotecas Móveis, as Salas de Leitura, a

Biblioteca Escolar e a Biblioteca do Professor. No período mais

recente, na década dos 80, foram criados o Pedagogium — Museu

da História da Educação Brasileira e a Fundação Pró-Leitura, que

não permaneceram, e um que se manteve: o Centro de

Informações Bibliográficas (CIBEC), que funciona até hoje,

vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais (INEP), este, criado na década de 30 e transformado

em autarquia, no atual governo, para ser a instituição responsável

pelos censos e levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas de

temas educacionais, avaliações e perspectivas da educação em

nosso país.

Nessa retrospectiva, não se vê uma política pública clara e

permanente em favor do livro, da leitura e da formação do leitor. E

isso é indispensável a qualquer jovem do mundo moderno.

A leitura é uma experiência muito ampla que inclui a própria

percepção do mundo e as diferentes formas de compreender os

ambientes. Essa percepção que o homem tem do mundo encontra

no livro a melhor forma de registro, fazendo-nos capazes de

apreender, organizar e construir o conhecimento.

Contudo, podemos ler qualquer manifestação da natureza —

o movimento das estrelas, a marcha das estações, o movimento

das marés ou a fenomenologia das plantas —, assim como os

testemunhos do ser humano — sua simples presença, suas

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atividades ou sua produção cultural —, que podem ser

reconhecidos desde os mais remotos documentos arqueológicos

até a mais recente edição de um jornal diário.

Quando olho o céu e concluo “Vai chover”, eu faço uma

leitura dos elementos da natureza, que posso transmitir

oralmente. Entretanto, esse conhecimento só representará um

patrimônio da humanidade quando for registrado de maneira

sistematizada, i.e., no momento em que as nuvens se organizam

de determinadas formas, cores ou volumes e mais, quando o vento

sopra em determinada direção, sob certas condições de força e de

temperatura, sabemos que pode chover. Nesse momento fazemos

a leitura desse conhecimento, podemos registrá-lo e transmiti-lo

por meio de um livro. [135]

Pode-se proceder a uma leitura de todas essas

manifestações, da natureza e do homem, porém, somente através

do registro sistemático, em códigos reconhecíveis, se pode

socializar o conhecimento.

Em nossos dias, muitas novas formas de comunicação são

possíveis, mas todas dependem quase sempre de vários bens

materiais ou tecnológicos — dinheiro, máquinas, energia,

tecnologia — enquanto basta ao leitor ter incorporado o código de

recepção e interpretação dos textos para depender só de si mesmo

para a leitura de um livro.

Se o livro é veículo ou suporte natural dos códigos

lingüísticos, seu objetivo é sempre o leitor. A ele se destinam os

escritos e, portanto, devemos cuidar de sua formação no processo

educativo. O livro didático é a base de todo o processo, o início de

um trabalho com o aluno, com a intenção de desenvolver nele o

gosto pela leitura. Além de ser um elemento básico no processo de

aprendizagem e o domínio da língua, o livro didático é também um

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caminho eficaz para se desenvolver no estudante a compreensão

do meio em que vivemos e o gosto pela literatura, desde que tenha

qualidade e o mestre saiba bem utilizá-lo.

Como uma orientação geral sobre a educação fundamental,

nossos estudantes e professores têm hoje à disposição os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); o Programa Nacional do

Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional da Biblioteca da

Escola (PNBE), voltados, realmente, ao atendimento da

comunidade escolar no seu sentido mais amplo. Isso está claro

tanto do ponto de vista material e técnico quanto do conceitual, já

que as obras difundem, em seus conteúdos, os valores da

cidadania, promovendo uma formação integral.

A responsabilidade legal do MEC fez com que a compra dos

livros didáticos fosse associada a um rigoroso processo de

avaliação dás obras oferecidas pelas editoras. A maior vida útil

das obras é, também, uma das metas do Programa Nacional do

Livro Didático, cujos decretos de criação e de regulamentação

obrigam à adoção de livros reaproveitáveis e à definição de

critérios específicos para sua reutilização por, pelo menos, três

anos. Podemos, porém, ir mais longe, estendendo, gradativamente,

o aproveitamento do livro. Comprovam isso pesquisas do Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Ministério da

Ciência e Tecnologia, segundo as quais, os títulos podem ser

utilizados [136] por até cinco anos, como acontece em outros

países.

O mesmo prazo valeria para o projeto educativo da escola.

Os livros passaram por uma avaliação criteriosa dos conteúdos e

metodologias trabalhadas. Eliminamos deles falhas, preconceitos,

insuficiências ou incoerências, sendo selecionados os mais

adequados para a publicação de um Guia, que é distribuído,

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anualmente, aos professores. O resultado é uma lista de

qualidade, da qual os próprios professores escolhem os títulos que

querem utilizar em sala de aula.

Para o Ministério da Educação, a leitura é prioridade, e

várias são as iniciativas voltadas para a difusão do livro e o

incentivo à leitura, tanto para os alunos quanto para os

professores. Ampliamos a participação do MEC em diversos

programas, como o PROLER (MEC/MinC/FBN); desenvolvemos

campanhas de incentivo à leitura; criamos programas de

distribuição de livros para as bibliotecas escolares; intensificamos

o intercâmbio e a cooperação internacional. Nesse campo, é

importante citar o “Projeto pró-Leitura”, resultante de um acordo

entre a França e o Brasil, que se dedica à formação do professor e

se desenvolve com sucesso em vários estados brasileiros.

Creio que deva ser essa a estratégia para a atualização dos

acervos das Bibliotecas.

As bibliotecas são de indiscutível importância, de todos os

tipos: bibliotecas escolares, bibliotecas universitárias, bibliotecas

públicas estaduais e municipais, bibliotecas de instituições

públicas, sindicatos e conselhos de diversas categorias

profissionais e de entidades privadas. Tenho notícias de um

razoável desenvolvimento dos acervos e atualização dessas

bibliotecas, nos últimos tempos. Se não se desenvolveram no nível

desejado, pelo menos os atores se envolveram e tomaram

iniciativas.

As parcerias do governo com a iniciativa privada, já

efetivadas, somam mais de uma centena, permitindo o

enriquecimento de acervos como um todo e, às escolas, o acesso a

outros recursos materiais, contribuindo efetivamente para a

melhoria da qualidade do ensino público em nosso país. A

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avaliação que faço é extremamente positiva.

Em todos os estados encontramos trabalhos que promovem

a leitura. Existem dezenas de exemplos tocantes, como o dos

professores [137] da cidade de Quixelô, a 400 km de Fortaleza-

Ceará, que, com o projeto A leitura e a escrita no processo de

alfabetização, escolheram os caminhos da leitura e da escrita

como guia para suas práticas pedagógicas nas escolas públicas da

cidade, mudando as relações das crianças com a leitura. A

diretora da Biblioteca Pública Benedito Leite, professora Rosa

Maria Ferreira de Lima, começou a ligar a garotada em literatura

com o Programa Livro na Praça. O trabalho é feito sempre nos

finais de semana, em praças de bairros da periferia, com o apoio

das comunidades, da prefeitura e de empresas privadas.

São pessoas que procuram partilhar a leitura com quem não

desfruta desse privilégio, levando a dimensão social da

apropriação crítica do texto escrito. É como o caso, que apareceu

em um concurso no ano passado, de uma professora aposentada

que vai às ruas da sua pequena cidade ler com as crianças,

motivando-as a buscar, nos livros, um sentido novo para suas

vidas, entre outras tantas experiências originais. Uma vez

conquistada a criança ela terá condições de sair do mundo da

leitura para uma leitura do mundo.

Diferem as formas, as soluções, os locais, mas o objetivo é o

mesmo: qualificar a educação oferecida à maioria de nossas

crianças e jovens, por meio de uma meta comum, que é a leitura

para todos, e assim melhorar as perspectivas do futuro de cada

um.

O importante desses programas que desenvolvem parcerias,

que vão ao encontro dos educadores-leitores, daqueles que estão

fazendo acontecer e despertar o gosto e a necessidade pela leitura

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e pela escrita, é que eles agregam, também, pelo mérito dos seus

trabalhos e pela importância do tema, a adesão de vários

parceiros, dando força e representatividade aos movimentos. Além

de editores e livreiros, parceiros “naturais”, são importantes

outros agentes, como serviços sociais, meios de comunicação,

prefeituras, secretarias de educação e de cultura, universidades,

centros de cultura, e de organizações não governamentais. Esse

esforço solidário amplia a ação indireta dos programas de leitura e

os faz crescer tão rápido que ainda não temos condições para

mensurá-lo. [138]

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24 — PEDRO BANDEIRA

Esperançando, que é sempre

tempo de esperançar Professor, ator, publicitário e jornalista até

dedicar-se exclusivamente à criação de Literatura

para crianças e jovens em 1983. Algumas de suas

obras mais conhecidas: A Droga da Obediência, A

marca de uma lágrima, Feiurinha, Descanse em

paz, meu amor, A hora da verdade, Mais respeito,

eu sou criança.

Acredito que ninguém discordará desta afirmativa: nosso

eterno subdesenvolvimento deve-se à nossa ignorância. A riqueza

das nações não mais se baseia na posse de grandes extensões de

terra de boa qualidade para cultivar ou das riquezas do subsolo.

Isso tudo nós temos. O que nos falta é uma população capacitada

a produzir bens utilizando de modo moderno essas riquezas.

O que nos falta é o Conhecimento.

E o Conhecimento está escrito. Mesmo na televisão ou nos

computadores. Nada foi criado até agora que substitua a palavra

escrita como fonte de acesso ao acervo do Conhecimento

acumulado pela Humanidade durante séculos.

Sem dúvida esta é a principal causa do nosso

subdesenvolvimento. [139] Não há plano econômico, por mais

adequado que venha a ser, não há governante, por mais bem-

intencionado que seja, que possa solucionar problemas ligados à

nossa própria incapacidade de agir em favor de nós mesmos. Só

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uma ampla e profunda revolução educacional poderá reverter

nosso destino de nação pobre e marginal no contexto do planeta.

Nosso desenvolvimento e nossa felicidade só podem ser

atingidos na medida direta do desenvolvimento de nossa

capacidade de ler, de entender o que está escrito, de “saber como

fazer”, transformando-nos efetivamente em leitores, isto é, em

pessoas que saibam ler criticamente, argumentando, discutindo e

posicionando-nos diante das idéias expostas nos textos. Além

disso, quem lê bem, também entende melhor o que ouve,

protegendo-se de discursos enganosos e aproveitando melhor

discursos positivos.

Para confirmar isso, basta raciocinar sobre um ponto: todos

os países que têm uma elevada taxa de analfabetismo ou de semi-

analfabetismo necessariamente apresentam um baixo consumo de

livros per capita.

E vice-versa: viajando-se, por exemplo, nos confortáveis

trens de países como a Alemanha ou o Japão, sempre

encontraremos praticamente todos os passageiros lendo para

passar o tempo da viagem do modo mais agradável possível. No

Brasil, porém, se estivermos à espera de um avião em qualquer

um dos grandes aeroportos, veremos que praticamente ninguém

estará lendo um livro para preencher o longo tempo de espera

para o embarque. E quem tem dinheiro para viajar de avião

certamente não pode culpar o preço dos livros por sua pouca

ligação com a leitura...

Muitos críticos acusam a televisão por esse nosso descaso

pela leitura. Esquecem-se estes que, antes do advento da televisão

no Brasil, nossa população, mesmo a elite, também não lia.

Diferentemente, países como a Alemanha, o Japão e os Estados

Unidos, os maiores consumidores de livros per capita do mundo,

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são ao mesmo tempo possuidores de sistemas de televisão

moderníssimos e com altíssimos índices de audiência.

Nossa juventude não lê? E seus pais? Esses lêem? A verdade

é que nossos jovens não têm o exemplo em casa, e todos sabemos

que a [140] imitação é a base do aprendizado. E não se trata

somente de famílias carentes; mesmo os pais brasileiros de elite,

mesmo muitos médicos e engenheiros lêem muito pouco no Brasil.

Muitos dos professores que criticam os próprios alunos por não

lerem, também não lêem ou lêem muito pouco eles mesmos.

No modo brasileiro, o “ter” é mais importante que o “ser”.

Muitos pais aceitam gastar boas somas de dinheiro para comprar

o tênis da moda para os filhos, mas protestam quando a escola

pede que comprem livros para eles. No modo brasileiro, é mais

importante investir no pé da criança do que em sua cabeça.

Precisamos desesperadamente transformar nossos jovens em

leitores, em bons leitores, antes que eles se tornem adultos iguais

a nós, eternizando nosso destino de pobreza e ignorância. Mas,

como fazer isso? Em que ponto da vida de uma criança deve ser

iniciado o processo educacional?

É claro que em casa. Se um brasileirinho, quando bebê, teve

o privilégio de adormecer no colo da mãe ouvindo acalantos,

certamente não estranhará quando mais tarde for introduzido ao

mundo da Poesia. Se, desde muito pequena, essa criança ouvir

histórias de fadas e contos maravilhosos aconchegada no colo da

mãe, do pai ou da vovó, e se, logo em seguida, puder folhear livros

coloridos, “lendo” as ilustrações mesmo antes da alfabetização

formal, o livro estará para sempre inoculado em suas veias como

portador de sensações, de explicações emocionais, de respostas

para suas dúvidas. Um leitor se faz em casa.

Mas o que fazer se, como já afirmamos, nossas crianças

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crescem e vão para a escola sem ter a leitura como exemplo

doméstico?

Acredito que, a exemplo das campanhas de rádio e tevê que

aconselham o aleitamento materno, penso que seriam muito úteis

campanhas do tipo: “Cante com o seu bebê no colo!” e “Conte

histórias para seu filho dormir!” Do mesmo modo como é fácil

fazer os brasileiros consumirem certos produtos simplesmente

mostrando atores e atrizes utilizando esses produtos ao longo de

cenas de novelas, penso que seria ótimo se usássemos esse

recurso para apoiar o livro. O que aconteceria se um protagonista

de novela aparecesse lendo e comentando algum romance com

outro? E se uma de nossas atrizes fosse vista a cantar para [141]

seu bebê, a contar-lhe histórias de fadas, mesmo que fosse de

modo incidental em uma cena de novela?

Bom, mas isto é uma outra história, porque, pelo andar do

carro de bois, a tarefa de formar leitores, no Brasil, cabe quase

que exclusivamente à escola; está nas mãos dos nossos

professores e professoras, profissionais mal treinados, mal pagos,

desmotivados, desrespeitados socialmente. Uma guerra se vence

com bons soldados, não com soldados mal alimentados, mal

treinados e com soldo miserável. Temos de mudar isso já! Temos

de treinar nossos professores, temos de tornar atraente a carreira

do magistério para atrair nossos melhores vestibulandos para ela.

Precisamos de multidões de bons professores, capazes de seduzir

nossas crianças para a leitura.

Falei em seduzir? Pois é isso. Como diz o educador francês

Daniel Pennac, o verbo ler é parente dos verbos sonhar e amar,

pois nenhum dos três suporta o imperativo. Ninguém pode

ordenar que uma pessoa ame ou sonhe; ela sonha ou ama se

quiser. O mesmo acontece com a leitura. Precisamos de

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professores que não forcem seus alunos a ler, mas de profissionais

sedutores que demonstrem o prazer, o tesão que é ler uma boa

história.

Contudo, devemos repensar nosso modo de ver a educação.

Provavelmente desde sempre, mas certamente com o reforço da

ditadura militar, abraçamos um conceito de que seria preciso

apressar nosso desenvolvimento educacional, selecionando os

melhores, para criarmos uma elite que pudesse arrastar o Brasil

para a frente. Na mentalidade de nossos educadores e professores,

está o desprezo, a irritação como aluno mais fraco. Nós, os

professores, adoramos dar aula para os bons alunos e

perseguimos os mais fracos, tachando-os de burros, de

preguiçosos, e estamos sempre dispostos a reprová-los,

provocando uma forma cruel de seleção dos mais aptos. E é

comum receber grande respeito social aquele professor duro,

severo, que reprova muito, que pune os mais fracos sem parar.

Agora comparemos esse professor com um médico: um bom

médico é aquele que só se dedica aos pacientes sãos e se irrita

quando aparece alguém doente requerendo seus cuidados? É claro

que não. Quanto mais grave for o estado de saúde do paciente,

maior dedicação ele receberá do corpo médico e das enfermeiras

de um hospital. E isso [142] tudo sem irritação, porque o doente é

o objeto do trabalho da medicina.

Por que com a escola é diferente? Por que expulsamos de

sala, por que punimos, por que expulsamos os alunos fracos?

Temos de imaginar nossas escolas como hospitais que

cuidam de todos os pacientes, menos dos sãos. Isso porque o bom

aluno avança sozinho na escola, pouco precisando de socorro do

professor. São os mais fracos que precisam de nós, de todo o

nosso esforço. O professor que adora reprovar pode ser comparado

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ao médico (felizmente hipotético) que adora assinar atestados de

óbito. Tratar somente os sãos, servir somente à elite, como sempre

fizemos e ainda fazemos, selecionar somente os mais aptos e

relegar todo o resto à vala comum tem sido a nossa política

educacional. E isso é fascismo. Só podemos sonhar com

democracia no ensino se nos dedicarmos a todos os alunos,

especialmente aos que mais precisam de nós, os mais fracos. Em

cada escola, deveríamos ter algo como um Centro de Terapia

Intensiva, desde a pré-escola, para que todos os brasileiros

tenham a oportunidade de transformar nosso País.

Senão, não será o caos. Já é o caos.

Vamos sair dele? [143]

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25 — REGINA ZILBERMAN Regina Zilberman, licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutorou-se era Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. É professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde leciona Teoria da Literatura e coordena o curso de Pós-graduação em Letras. É pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Seja Carlos Drummond de Andrade nosso “guia de leitura”

que, no poema “Biblioteca Verde”, registra as emoções provocadas

pela posse dos livros pertencentes à Biblioteca Internacional de

Obras Célebres, coleção de prestígio distribuída no Brasil no

começo do século XX.1 Depois de muito insistir com o pai, que não

queria adquirir a Biblioteca, mas que, pressionado (“Compra,

compra, compra”, repete o menino), cede, o poeta recorda o modo

como se apropriou dos livros:

Chega cheirando a papel novo, mata

de pinheiros toda verde. Sou

o mais rico menino destas redondezas.

(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.) [145]

Ninguém mais aqui possui a coleção

das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.

Antes de ler, que bom passar a mão

no som da percalina, esse cristal

de fluida transparência: verde, verde.

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Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.

Templo de Tebas. Osiris, Medusa,

Apolo nu, Vênus nua... Nossa

Senhora, tem disso nos livros?

Depressa, as letras. Careço ler tudo.

A mãe se queixa: Não dorme este menino.

O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!

Espermacete cai na cama, queima

a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo

essa Biblioteca antes que eu pegue fogo

na casa. Vai dormir menino, antes que eu perca

a paciência e te dê uma sova. Dorme,

filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio. Em filosofias

tropeço e caio, cavalgo de novo

meu verde livro, em cavalarias

me perco, medievo; em contos, poemas

me vejo viver. Como te devoro,

verde pastagem. Ou antes carruagem

de fugir de mim e me trazer de volta

à casa a qualquer hora num fechar

de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina.

O que saberei, o que não saberei nunca,

está na Biblioteca em verde murmúrio

de flauta-percalina eternamente.2

A apropriação do texto se dá de modo praticamente

ritualístico: primeiro, ele apalpa a obra, sentindo-a de modo táctil

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e explicitando a natureza carnal do livro. Depois, procura as

figuras, detendo-se nas [146] imagens visuais, para só então

mergulhar nas letras, que o conduzem a universos fantásticos,

distantes no tempo, no espaço e nas idéias, mas próximos dele,

dada a materialidade do livro, para onde o leitor, apaixonado,

sempre retorna.

A experiência de Carlos Drummond de Andrade dá-se no

interior da família e da vida doméstica, testemunhada pelo pai, a

mãe e o irmão, que não participam da viagem imaginária do futuro

poeta. Olavo Bilac experimenta fenômeno similar, mas em cenário

diferente, a escola. A crônica “Júlio Verne” registra a admiração do

escritor e de seus colegas pelo ficcionista francês, cujas obras

eram lidas por todos, conforme um processo de socialização

ausente na situação apresentada pelo poema:

No colégio, todos nós líamos Júlio Verne; os livros passavam

de mão em mão; e, à hora do estudo, no vasto salão de

paredes nuas e tristes, — enquanto o cônego dormia a sesta

na sua vasta poltrona, e enquanto o bedel, que era

charadista, passeava distraidamente entre as carteiras,

combinando enigmas e logogrifos, — nós mergulhávamos

naquele infinito páramo do sonho, e encarnávamo-nos nas

personagens aventureiras que o romancista dispersava,

arrebatados por uma sede insaciável de perigos e de glórias,

pela terra, pelos mares e pelo céu.3

O contexto é outro, mas, em ambos os casos, os leitores

vivenciam encantamento similar, fundado na profunda

identificação com a história narrada:

Oh! os homens e as cousas que vi, as paisagens que

contemplei, os riscos que corri, os amores que tive, os sustos

que curti, os combates em que entrei, os hinos de vitória que

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encantei e as lágrimas de derrota que chorei, — viajando com

Júlio Verne, conduzido pela sua mão sobre-humana!

Quase morri de frio no pólo, de fome numa ilha deserta, de

sede na árida solidão do centro da África, de falta de ar no

fundo da terra, de deslumbramento na proximidade da lua!

Atravessei areais amarelos e infinitos, beijei com os olhos

oásis esplêndidos, dormi à sombra das tamareiras da Síria e

à sombra dos pagodes da Índia, contemplei o lençol intérmino

das águas dos grandes rios, cacei tigres e crocodilos na Ásia

e na África, [147] arpoei baleias no mar alto, perdi-me em

florestas virgens, naveguei no fundo do mar entre vegetações

fantásticas e animais imensos, ouvi o estrondo da queda do

Niágara, enjoei com o balanço de um balão no meio do céu

formigante de astros, e quase fui comido vivo pelos Peles-

vermelhas!...

A essa exaltação opõe-se o mundo escolar, a que o leitor

volta quando o livro se encerra:

E, quando os meus olhos pousavam sobre a última linha de

um desses romances, quando eu me via de novo no salão

morrinhento e lúgubre, quando ouvia de novo o ressonar do

cônego e as passadas do bedel charadista, — havia em mim

aquela mesma súbita descarga de força nervosa, aquele

mesmo afrouxamento repentino da vida, aquele mesmo alívio

misturado de tristeza (...).

Era o regresso à triste realidade, à tábua dos logaritmos, à

gramática latina, à palmatória do cônego, às charadas do

bedel. Era o desmoronamento dos mundos, o eclipse dos sóis,

a ruína dos astros: era o pano de boca que descia sobre o

palco da ilusão matando a fantasia e ressuscitando o

sofrimento...

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Para experimentar efeito similar, o menino Lima Barreto, tal

como o pequeno Carlos Drummond, conta com a solidariedade do

pai, consumidor dos livros de Júlio Verne:

A minha literatura começou por Jules Verne, cuja obra li toda.

Aos sábados, quando saía do internato, meu pai me dava

uma obra dele, comprando no Daniel Corrazzi, na Rua da

Quitanda. Custavam mil-réis o volume, e os lia, no domingo

todo, com afã e prazer inocente.4

Por sua vez, no que se refere aos efeitos dessa leitura, Lima

Barreto está mais próximo de Olavo Bilac do que jamais sonhou a

estética de ambos:

Fez-me sonhar e desejar saber e deixou-me na alma não sei

que vontade de andar, de correr aventuras, que até hoje não

morreu, no meu sedentarismo forçado na minha cidade natal.

O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho.

(...) Do que mais gostava, eram aquelas que se passavam em

[148] regiões exóticas, como a Índia, a China, a Austrália;

mas, de todos os livros, o que mais amei e durante muito

tempo fez o ideal da minha vida foram as Vinte mil léguas

submarinas. Sonhei-me um Capitão Nemo, fora da

humanidade, só ligado a ela pelos livros preciosos, notáveis

ou não, que me houvessem impressionado, sem ligação

sentimental alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no

mundo estranho que não me compreendia a mágoa, nem ma

debicava, sem luta, sem abdicação, sem atritos, no meio de

maravilhas.

Jorge Amado foi outro viajante do imaginário, valendo-se da

ajuda, por um lado, do britânico Jonathan Swift, autor das

Viagens de Gulliver, por outro, de seu professor, o padre pouco

ortodoxo em matéria de ensino, que lhe pôs nas mãos livros

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salvadores:

No colégio dos jesuítas, pela mão herética do padre Cabral,

encontrei nas Viagens de Gulliver os caminhos da

libertação, os livros abriram-me as portas da cadeia. A

heresia do padre Cabral era extremamente limitada, nada

tinha a ver com os dogmas da religião. Herege apenas no que

se referia aos métodos de ensino da língua portuguesa, em

uso naquela época, ainda assim essa pequena rebeldia

revelou-se positiva e criadora.5

Leitura é viagem, mostram os escritores: no sentido literal,

quando as obras se deslocam de um centro urbano para o interior

de Minas Gerais, conforme recorda Drummond; e metafórico,

quando são os leitores que rumam para terras distantes e

universos longínquos. Da rotina cotidiana para o mundo da

fantasia o caminho não é longo, desde que o instrumento — o livro

— esteja ao alcance de seu destinatário; e esse percurso é de mão

dupla, porque o leitor invariavelmente retorna ao lugar de onde

partiu. No meio do caminho tem a escola. Bilac contrapõe a sala

de estudos, de “paredes nuas e tristes”, à paisagem exuberante

que sua imaginação freqüenta por força da linguagem de Júlio

Verne. Jorge Amado não está muito longe dessa apreciação,

porque precisou encontrar um padre “herético” para poder

ultrapassar a “limitada vida do aluno interno”6 a que estava

condenado. Brito Broca, por sua vez, divide-se entre a leitura

apaixonada e os deveres escolares, executados sob o olhar

vigilante do pai. [149]

Broca narra de que modo se tornou admirador de Júlio

Verne: por influência da avó materna, foi levado à leitura dos

romances desse escritor e, como Lima Barreto, empenhou seus

tostões na compra dos volumes que, nesse caso reprisando Carlos

Page 161: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Drummond de Andrade, chegavam com dificuldade à cidade

interiorana onde morava:

Na minha infância e nos primórdios da adolescência, embora

me fosse geralmente controlada pela vigilância paterna a

leitura de romances, tive a meu favor a circunstância de

minha avó os ter lido apaixonadamente na mocidade e a

efusão com que meu pai os lia, sempre que conseguia subtrair

algum tempo a uma vida terrivelmente afanosa. (...) Como eu,

embevecido, manifestasse o desejo de penetrar também

nesses mundos maravilhosos, ela tinha o cuidado de me

observar que os meus domínios seriam outros, os de Júlio

Verne, cujo encanto também experimentara. Falava-me das

Aventuras do Capitão Hateras, de Cinco Semanas em

um Balão, de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Mas

onde encontrar esses livros? Não era fácil adquiri-los, no

Interior, naquele tempo. Marcou, assim, uma data na minha

vida o dia em que, à força de rigorosa economia, poupando

tostão a tostão, consegui mandar comprar em São Paulo o

primeiro romance de Júlio Verne: Atribulações de um

Chinês na China.7

Mas à sua fome de ler contrapõe-se a necessidade de fazer os

deveres de casa, impostos pela escola. A cena noturna, repartida

entre livros de ficção e temas escolares, retrata a oscilação do

menino entre os dois mundos, agora separados pela figura

paterna:

Relembro o quadro. A noitinha, depois que o comércio fechava,

ei-lo entrar, trazendo para casa os livros de escrituração

mercantil, em que trabalhava até pouco depois das dez. Logo

que ele assumia o posto, eu vinha colocar-me defronte, no

outro canto da mesa, com os meus cadernos, os meus livros

Page 162: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

escolares. Nem sempre, porém, me entretinha nessa tarefa;

muitas vezes, dando-a por cumprida naquele dia, trazia, em

lugar dos compêndios, um romance e me entregava com

fruição à leitura. Como as horas passavam depressa! Ao bater

das dez, meu pai [150] fechava os vastos in-fólios de

contabilidade (...). Se eu permanecia na leitura, não dando

mostras de me aprontar, também para deitar-me, ele

intervinha: — “Vamos, basta de leitura, são horas de dormir.”

— “Faltam só algumas páginas — desculpava eu — já estou

no fim...” E como os minutos corressem e o fim não chegasse,

ele advertia, já num tom meio severo: — “Acaba com isso, já

disse, tem muito tempo, amanhã, para ler.” Não havia outro

remédio senão fechar o livro, a mente a fervilhar de imagens e

peripécias. Com que desespero, nessas implacáveis dez

horas, interrompi a leitura de tantos romances que me

empolgaram dos onze aos quinze anos! LA deixava os heróis

às voltas com as situações mais complicadas: Phileas Fog e

Passepartout em apuros; Estácio, arrancando a espada,

pronto a morrer por Inezita.

Raras vezes a escola, seu aparato, como salas de aula, seus

instrumentos, como o livro didático, e sua metodologia, como a

execução do dever de casa, provocam lembranças aprazíveis de

leitura. As atividades pedagógicas provocam tédio, quando não são

vivenciadas como aprisionamento, controle ou obrigação. A leitura

parece ficar do lado de fora, porque os professores não a

incorporam ao universo do ensino.

Quem lê, contudo, quer o lado de fora, para onde se desloca,

comandado pela imaginação. Por isso, talvez seja o caso de se

pensar em transformar o “de dentro” da sala de aula em “de fora”

da leitura. Para obter esse resultado, os escritores oferecem o

Page 163: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

receituário que os fez leitores vorazes: contestar as normas, como

sugere Jorge Amado; deixar o livro ao alcance da mão, para ser

apalpado, cheirado, folheado, como desejou Carlos Drummond de

Andrade; nunca, porém, deixar que se rompa o fio da viagem,

onde se equilibram todos, esses andarilhos da literatura brasileira.

1 Sobre a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, v.

Saraiva, Arnaldo. Fernando Pessoa: Poeta-Tradutor de Poetas.

Porto: Lello, 1996.

2 Andrade, Carlos Drummond de. Biblioteca Verde. In:___.

[151] Menino Antigo (Boitempo — II). Rio de Janeiro: Sabiá; José

Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 129 —

130.

3 Bilac, Olavo. Júlio Verne. In:____. Ironia e Piedade. In:____.

Obra Reunida. Organização e Introdução de Alexei Bueno. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 726 — 729.

4 Barreto, Afonso H. Lima. O Cemitério dos Vivos. São Paulo:

Brasiliense, 1961. p. 88.

5 Amado, Jorge. O Menino Grapiúna. Rio de Janeiro: Record,

1981. p. 101.

6 Id. ibid.

7 Broca, Brito. O ‘Vício Impune’. In.____. Escrita e Vivência.

Campinas: EDUNICAMP, 1993. p. 15. [152]

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26 — RUI DE OLIVEIRA

A ilustração e a reprodução da imagem

como formas de conhecimento, e os mitos do original

Designer e ilustrador. Professor do Curso de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando da Escola de Comunicações e Artes da USP. Atualmente, desenvolve no CTE — Centro de Tecnologia Educacional, o Projeto Animagem — oficina de cinema e animação. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Lembro que a primeira vez em que vi o “Tríptico Portinari,”

de Hugo Van Der Goes, no Museu Uffizi, em Florença, foi na

década de setenta. Eu ainda era um estudante de arte em

Budapeste. Todo o meu conhecimento anterior deste maravilhoso

retábulo da pintura flamenga do século XV estava restrito aos

livros e às reproduções. O primeiro impacto que senti diante da

obra foi pelo seu gigantismo. Foi também a primeira vez em que

tive a vivência das contradições do que significa o conhecimento

diante do original, com as reproduções da obra que conheci

através de livros. Este conflito se acentuou ainda mais quando

estive em frente de Sandro Botticelli, a quem sempre admirei como

um mestre, principalmente em seu período de juventude. Lembro

que neste caso a impressão foi no sentido inverso, isto é, apesar

de na época já conhecer [153] as características técnicas da

têmpera, achei que as reproduções de “Nascimento de Vênus” e a

“Primavera” estariam mais adequadas no múltiplo do que no

Page 165: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

original, guardando logicamente as questões de proporção,

textura, etc. Portanto — ainda que de forma intuitiva — eu estava

diante de uma questão que mais tarde viria a me ocupar em

termos teóricos, quando passei a lecionar no Curso de Desenho

Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Pensando sobre o significado cultural da arte da ilustração,

principalmente como veículo de conhecimento, e a possibilidade

da imagem impressa ser mais verídica do que o próprio original,

pretendo, através deste pequeno estudo, evocar algumas

contradições e preconceitos contra a imagem reproduzida, no caso

a ilustração, que ainda permanecem de forma velada, mas muitas

vezes explicitamente.

Reportando-me ainda à experiência que tive diante do

mestre flamengo, destaco o painel central representando a

“Adoração dos Pastores”. A magistral organização do espaço e o

jogo simbólico das proporções dos personagens deste verdadeiro

presépio sagrado impressionaram-me profundamente. A fruição

desta obra-prima — a partir do real, da presença humana

insubstituível — fora totalmente reveladora para mim, até mesmo

na descoberta da “Anunciação”, pintada por fora das alas, quase

em forma monocromática.

Descrever e rever mentalmente este tríptico é uma aula

eterna de ilustração. Por exemplo: as mãos de José postas em

oração, e as mãos contritas e espirituais de Maria são um ícone

que me ficou para sempre, e que adoto como referência até hoje

dentro de meus limites, quando represento as mãos em meus

trabalhos.

O processo como foi construída a narração neste quadro de

Van Der Goes é uma fonte inesgotável de descoberta para os

ilustradores, desde as flores nos dois vasos, que simbolizam a

Page 166: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

pureza, conseqüentemente Maria até a leveza dos dois anjos que

levitam, contrastando com a imagem rústica e ao mesmo tempo

sublime dos pastores. Estas soluções narrativas e simbólicas

fundamentais na ilustração — o que sempre é bom enfatizar —

são uma arte de contar histórias por imagens, que inevitavelmente

nos conduzem a uma reflexão sobre os limites entre a pintura e a

ilustração. [154]

Diante da “experiência do real”, a que me referi no início

deste estudo, gostaria de me deter unicamente neste ponto: os

momentos em que a leitura da ilustração e da pintura realmente

se polarizam. Estou me referindo à questão do múltiplo, da

reprodução em série, e da transmissão de conhecimento. A

ilustração é sempre uma imagem que foi criada para ser

reproduzida. O seu conhecimento pleno, a sua fruição correta

advêm, portanto, do livro. Existem outras diferenças fundamentais

entre a pintura e a ilustração. Porém, no momento, por suas

inúmeras contradições, nos deteremos apenas nesta última.

Seguindo, pois, a trilha acima descrita, chegamos à

conclusão de que conceitualmente o original da ilustração é o

múltiplo. Isto é, a sua reprodução impressa num livro, por

exemplo. No caso da pintura, ela tem o seu estágio maior de

percepção quando estamos diante do original, ou das condições

ideais para as quais esta pintura foi criada. Porém, neste ponto,

começam as incompatibilidades citadas acima. O que realmente

significa o original? A percepção direta do real é sempre a

condição básica de fruição do fenômeno pictórico? Veremos, no

entanto, que esta condição fundamental nem sempre se realiza.

Isto é, a visão do original nem sempre autentica a experiência do

real.

Se deslocarmos esta discussão em direção à arte do nosso

Page 167: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

século, chegaremos no “fundo de um poço sem fundo”, como dizia

Tennessee Williams. Citaria apenas alguns exemplos do

Dadaísmo, que questionou, até os últimos limites, o significado de

peça única e do conceito sacro de original. Neste sentido,

transcrevo dois pensamentos enunciados por Picabia, afirmando

que as verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por

artistas, mas por pessoas anônimas e comuns.

Continuando ainda com Francis Picabia, ele chega à

conclusão daquilo que seria conhecido como “ready-mades” ao

afirmar que o cordão umbilical entre o objeto e seu criador havia

se rompido, e que não havia diferença fundamental entre o objeto

feito pelo homem e o objeto feito pela máquina — “a única

intervenção pessoal possível numa obra é a escolha”, concluía. O

urinol que Duchamp chamou de “Fonte”, e tentou expor na

Exposição dos Independentes em Nova Iorque, sob o pseudônimo

de R. Mutt, era certamente igual a milhares de outros encontrados

nas lojas. [155]

Muitos exemplos poderiam ser citados no contexto da arte de

nosso século, sobre esta chamada “experiência única” diante da

obra original. Porém, não é necessário tanto radicalismo para

levantarmos a questão ambígua do original, e sua fruição ideal.

Basta retornarmos ao século XIX, mais precisamente ao

Impressionismo, que encontraremos uma outra face deste

multifacetado rosto. Em outras palavras, por exemplo, os efeitos

de luz solar das pinturas de um Claude Monet ou de um Camille

Pissarro: apreciá-los dentro de uma galeria sob luz artificial, ou

tecnicamente elaborada, pode até ser entendido como uma

inadequação no ato de fruir corretamente a pintura destes

mestres. Melhor seria se as víssemos nas condições em que foram

criadas, ou seja, ao ar livre, o que seria sem dúvida mais

Page 168: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

compatível com o ato de criação daqueles artistas. Logo, muito

acima do significado de ser original, o que existe na verdade é um

ritual adequado de cognição da pintura, que até pode ser único.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados dentro do

universo da escultura, e a impropriedade de sua correta leitura

em galerias e museus, principalmente com relação à luz. Acho

oportuno — diante de todos os mitos e sacralização do que seja

original — levantarmos esta questão, dirigindo sempre nossa

reflexão para a ilustração, e toda a sorte de incompreensões que

ainda a envolve. Todas estas dúvidas nos conduzem a uma

conclusão: de que nem sempre a obra original é vista de maneira

original, existindo também a possibilidade de que a reprodução,

como já foi dito anteriormente, em termos conceituais, seja mais

verídica do que a própria realidade e originalidade da peça única.

Esta discussão é importante pelo fato de a ilustração sofrer

freqüentemente o estigma de uma linguagem menor, a começar

até pelo seu habitual suporte, o papel, muito mais perecível do

que a tela, e em termos de mercadoria e posse ser um

“investimento” de pouco futuro e rentabilidade.

A ilustração seria uma linguagem dirigida pela

circunstancialidade, e, por este motivo, uma experiência e

conhecimento artístico atrofiados. Este preconceito — que é

tristemente real e revela uma absoluta incompreensão até da

própria história da arte e sua discussão — fugiria totalmente dos

limites físicos deste trabalho. Porém, não podemos deixar ao largo

este tema do “fim servido” da arte, e da circunstância que norteou

grande parte da criação em todas as épocas. [156] Bastaria

apenas citar no universo da música alguém que resplandece como

astro eterno — estou me referindo a Johann Sebastian Bach, que

levou ao extremo sublime seu ofício de músico. Como autêntico

Page 169: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

artesão, trabalhava copiosamente, semanalmente, para os cultos

dominicais. Em vida mais conhecido como exímio organista, até

hoje nos causa depressão a leitura de suas humildes cartas

solicitando ajuda e proteção para os nobres de sua época. Sua

magistral música — que era meramente destinada ao momento —

tornou-se erudita e transcendente em nossos tempos. Mesmo

assim, como estigma de música “descartável”, sua obra ficou

esquecida após a sua morte. Apenas em princípio do século XIX

Mendelssohn o “ressuscitou”, e é também no início do nosso

século que as transcrições para orquestra feitas por Leopold

Stokovsky o popularizaram, colocando-o num lugar que sempre

foi seu — um monumento da música.

Este apelo a duas referências musicais, inclusive utilizando

a palavra “transcrição”, é da maior importância quando estamos

estudando a relação entre conhecimento e imagem impressa.

Citarei agora um exemplo, infelizmente pouco conhecido, da

complexa relação entre obra original, reprodução impressa e

conseqüente conhecimento da imagem original através da gravura

reproduzida. Evoco o nome e a obra de um dos pintores que mais

admiro e que tem grandes influências em meu trabalho de

ilustrador. Estou me referindo a Henry Fuseli, nascido em 1721 e

falecido em 1825. Este pintor visionário e profundamente

envolvido com a arte fantástica foi contratado em 1786 pelo

marchand e editor Aldermann Boydell para pintar uma série de

quadros sobre peças de Shakespeare, como por exemplo “Sonho

de uma Noite de Verão”. Estes quadros, após serem exibidos em

sua galeria, na verdade se destinavam a servir de modelo para que

fossem feitas gravuras a partir deles, e conseqüente publicação em

forma de livros, e quem sabe até vendidas separadamente. Este

não é um exemplo isolado; artistas ingleses do porte de Romney e

Page 170: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Reynolds foram também contratados por Boydell.

Voltando às pinturas de Fuseli, elas estão hoje em dia em

galerias como Tate Gallery, Vancouver Art Gallery, etc. Sobre este

tema de arte, ilustração e conhecimento, que é na verdade o

motivo central deste trabalho, voltarei a falar mais adiante. [157]

Retornando ao quarto de espelhos, — este labiríntico

exercício que é a concepção de original — as contradições se

aguçam ainda mais quando constatamos que o conhecimento da

pintura dos grandes mestres se realiza em nossos dias,

basicamente, através da reprodução nos livros de arte. Neste

ponto, existe uma analogia com os exemplos que citei acima das

ilustrações a partir da obra de Fuselli, na verdade “transcrições” e

gravuras para peças de Shakespeare. Esta leitura (a reprodução)

possui um processo próprio e extremamente diversificado de ver e

decodificar a imagem original. Portanto, existem vários “originais”

a partir destas traduções visuais, onde até mesmo um trabalho de

“restauro” é obtido através de métodos modernos, como o laser e a

computação gráfica.

Os critérios para reprodução destas obras realmente não

existem. Não se trata de salvaguardar a aura, o valor cultuai, a

obra única e irreproduzível — Walter Benjamin já dissecou muito

bem esta questão. Porém, retornando ao que poderíamos chamar

de imponderabilidade do conceito de fruição original, é muito

difícil aceitar no túmulo de Lourenço de Médici o modo frontal

como é iluminada a peça escultórica representando o

“pensamento”, criada pelo gênio de Michelangelo. Tendo na parte

inferior o Crepúsculo e a Aurora, esta escultura, em pose de

meditação, foi imaginada para ser vista com os olhos em

penumbra, acentuada mais ainda pelo elmo que lhe encobre a

fronte. Isto certamente lhe conferiria um nível mais simbólico e

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introspectivo. Entretanto, não é isto que experimentamos nem na

Capela dos Medicis, tampouco nas inúmeras reproduções da obra.

Esta complexa relação entre a experiência do real e a

dramatização da luz, e conseqüente (ou inconseqüente?)

reprodução em livros e catálogos, pode ser melhor compreendida

quando observamos, neste caso, algumas reproduções da pequena

escultura o Hermafrodita — um protótipo de Policie de 150 AC,

que está na Galeria Borghese, em Roma. O escultor o representou

deitado de bruços, intencionalmente encobrindo o atributo

feminino ou masculino, criando uma indefinição, uma

ambigüidade absolutamente clara para o observador. No entanto,

este mistério é revelado de forma unilateral pela iluminação

capciosa criada principalmente na maioria das reproduções da

obra. A luz é dirigida para a região lombar do personagem. Em

termos bem vulgares, — até porque vulgar é a sua iluminação, —

o [158] foco de luz é dirigido precisamente para a bunda de

Hermafrodita.

Nesta parte final do estudo, gostaria, através de alguns

exemplos, de enunciar que a concreção, divulgação do

pensamento, nas mais diversas disciplinas, teve na imagem

impressa a sua real complementação. Tentando encontrar uma

metáfora para a palavra e a imagem, eu diria que a primeira é a

alma e a segunda, o corpo; portanto, parceiras indissolúveis.

Começando pelo Renascimento, e por uma de suas maiores

figuras que foi Leonardo Da Vinci, seus estudos diversificados em

geologia, zoologia, botânica, anatomia, astronomia, além de seus

projetos em máquinas e engenharia, tudo isto é distribuído em

mais de 5.000 páginas de anotações, repletas de ilustrações. Seu

pensamento era portanto materializado pelas imagens, que

assumiam um alto estágio do pensamento visual, com sua própria

Page 172: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

sintaxe, ao mesmo nível de suas especulações escritas.

Expressando ao mesmo tempo a beleza e a informação, estas

imagens prescindem em muitas casos da palavra. As indicações

escritas funcionam às vezes como fato complementar. Deste modo

os pensamentos em imagens feitos por Da Vinci são uma

referência para conceituarmos a arte de ilustrar. Neste caso, elas

não contam histórias, elas narram conhecimento.

Permanecendo ainda no Renascimento, foi através das

gravuras italianas, reproduzindo as obras dos grandes mestres,

que o principal vulto do renascimento alemão teve o primeiro

contato com a arte italiana dos “Quatrocentos.” Estou me

referindo ao genial pintor e gravador alemão Albrecht Durer. Este

fato inclusive é documentado por seus estudos a partir das

gravuras de Andrea Mantegna, como a “Batalha dos Deuses do

Mar.” Durer foi o primeiro grande artista alemão a conhecer a

Itália — ele tinha 23 anos quando esteve em Veneza. Certamente o

contato direto com a arte italiana e o seu conhecimento prévio

através de gravuras fizeram com que Durer — diferente dos outros

artistas alemães que tinham os mestres flamengos como modelo

— tivesse um caminho totalmente diferente, e até mesmo

contestador.

Ainda nesta seqüência da imagem impressa como forma de

pensamento, não posso deixar de citar o exemplo de Petrus Paulus

[159] Rubens. Este magnífico pintor, originário da Antuérpia,

onde nasceu em 1577, teve uma vida exitosa como pintor,

cidadão, embaixador e homem das cortes européias. Rubens foi

também um grande ilustrador, utilizando motivos alegóricos,

símbolos, emblemas e figuras mitológicas nos livros que ilustrava.

Repleto de encomendas, trabalhando com uma equipe de

discípulos e com um profundo sentido de negócios, percebeu que

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sua obra única poderia ser vendida e difundida através de cópias

em gravuras. Para tanto, montou um atelier com um grupo de

gravadores que iria “traduzir” para um esquema basicamente

linear, em forma de gravuras, a sua obra pictórica. Criou com isto,

inclusive, um estilo próprio, que certamente tinha a sua

orientação. Este estilo, um “Rubens médio”, para o grande

público, ficou tão famoso quanto o “estilo Goltzius”, ou o “estilo

Callot” — estou me referindo a dois grandes gravadores

aguafortistas do século XVI, que criaram uma verdadeira escola de

reprodução de originais de pintura. O importante é dizer que a

popularidade, e principalmente, a extraordinária influência de

Rubens na arte européia da época se deu através de gravuras da

sua pintura.

Para concluirmos sobre a importância da ilustração, e da

imagem impressa como formação de pensamento, quero citar um

curioso exemplo de influência da gravura. O fato em questão é o

famoso quadro de Eduard Manet que tanta polêmica causou em

1863, quando exposto no Salão dos Recusados, o célebre “Almoço

sobre a Relva”. A tranqüilidade de uma mulher nua e seu

displicente olhar para o observador em plena conversa de dois

vestidos cavalheiros causaram um escândalo no grande público,

tudo isso aliado a uma extraordinária palheta, um jogo de luzes,

uma naturalidade até então nunca representada numa cena ao ar

livre. Todavia, este ícone da pintura francesa do século XIX guarda

incríveis semelhanças com uma antiga gravura do século XVI de

autoria de Marcantonio Raimondi, denominada “O Julgamento de

Páris.” Este não é, em absoluto, um exemplo isolado na história da

arte. Enfatizo, pois, que a imagem é realmente um gênero de

pensamento, uma persuasão fortíssima em nossos dias

globalizados, e a nação que melhor usar suas imagens e ícones

Page 174: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

dominará, numa primeira fase, todos os fenômenos culturais do

planeta, e, numa segunda fase, o real domínio econômico das

outras nações. [160]

Logo, o estudo da imagem impressa nos mais diversos

suportes e emitido nos mais diferentes veículos de alta tecnologia

é fundamental para qualquer País que tenha um mínimo de

projeto sério quanto ao seu futuro, como nação, como povo, e,

principalmente, como preservação de seus valores culturais. [161]

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27 — RUTH ROCHA

Livros X Computador Paulista, socióloga, orientadora pedagógica e editora. Escritora premiada de extensa obra de literatura infantil e juvenil. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Computador é bom. É. Faz coisas fantásticas!

Mas não faz as coisas que um livro faz.

E depois, livro não enguiça, como disse o Millor Fernandes.

E computador, como disse o Ziraldo, não se leva pra cama.

E não se põe uma violeta dentro dele.

O livro guarda tesouros!

E o computador, não guarda?

Ah, guarda.

Mas acontece que os tesouros que o livro guarda são

complementares com a nossa fantasia. E o processo de leitura

possibilita essa operação maravilhosa que é o encontro de que

está dentro do livro com o que está guardado na nossa cabeça.

[163]

Seja na leitura de ficção, de literatura, seja na leitura de um

ensaio.

Os neurônios funcionam em sintonia com a letra impressa.

Completam, enriquecem, complementam.

Quando se lê, se põe em funcionamento tanto as funções

intelectuais do cérebro, o seu lado esquerdo, como o lado direito,

instintivo, imaginoso, emotivo.

Page 176: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Por isso a leitura preenche todos os nossos desejos, todas as

nossas necessidades.

Além disso a leitura desenvolve a independência do espírito.

Não traz tudo pronto, como o computador. Não é sem motivo que o

livro tem mais de dois mil anos.

Como formar leitores?

Fornecendo livros!

Tenho visto um número enorme de pais que dão aos filhos

brinquedos caríssimos. Com o preço de um videogame pode-se

comprar uma pequena biblioteca. Jamais vi um pai entrar numa

livraria e comprar uma pequena biblioteca para seus filhos.

E, sem livros, dificilmente se aprende a gostar de ler. [164]

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28 — SÔNIA RODRIGUES

Das dificuldades da exposição Doutora em Literatura, escritora, criadora do jogo Autoria e Companhia — de produção de enredos coletivos —, consultora de projetos de formação de platéia para empresas e instituições culturais, colunista do suplemento feminino do jornal O Estado de São Paulo e colaboradora do Programa Leia Brasil.

Por que existem mais leitores do que escritores? Por que é

mais fácil aprender a ler do que a escrever? Por que a leitura e a

escrita podem ser usadas automaticamente e, no automático,

mascaram limites de visão e de atuação?

Deve parecer estranho começar a partilhar um ponto de

vista pelas dúvidas e não pelas certezas. Leitora quase que

compulsiva, escritora, doutora em literatura e co-autora de um

jogo educativo de criar histórias em grupo, sempre me intrigou a

dificuldade de contar histórias demonstrada por um grande

número de pessoas.

Durante muito tempo, acreditei que bastava uma boa

iniciação à leitura para que todos pudessem expressar livremente

seu potencial criativo. Transformado em leitor pelo contato com o

produzido pela [165] imaginação alheia, o ser humano seria

sujeito de sua própria obra. As redações, a correspondência, os

relatórios seriam mais coerentes, mais coesos, mais belos. Hoje sei

que isso não é verdade.

A formação do leitor para levá-lo à escrita é um processo

Page 178: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

mais complexo. E, talvez, mais misterioso. Não estou aqui me

referindo às pessoas que apresentam um alto potencial de

inteligência para a linguagem, como alguns para a música.

Meu questionamento dirige-se à maioria dos seres saudáveis

com experiências, dores e alegrias comuns à espécie. Com uma

capacidade íntegra de compreender a língua materna e dominar

suas regras.

Por que, mesmo quando são leitores sensíveis, essas pessoas

não se expressam através da escrita? Por que não conseguem

escrever uma história ou mesmo contá-la com clareza de forma a

produzir prazer, terror, riso ou compaixão em outros?

Conheço dezenas de leitores que confessam não conseguir

escrever. Amam o texto literário, porém fazer ficção lhes parece

uma tarefa impossível. Alguns alegam ser esta uma atividade para

eleitos, iluminados, gente dotada de um talento acima do comum.

Outros imaginam os escritores como pessoas que detêm o

privilégio de poder estudar o texto, burilá-lo em condições ideais, e

prometem a si mesmos que um dia, “quando se aposentarem,

ganharem na loteria ou tirarem longas férias”, imitarão. Para os

dois grupos, na maioria das vezes, escrever, mesmo um texto

pragmático, relatório, carta, ofício, é um esforço assombroso.

Fazê-lo com facilidade, um dom.

Depois de seis anos estudando a produção coletiva de texto,

interativa e instantânea dos jogos de representação (RPG),

praticada por jovens, e depois de ter contribuído para a criação de

um jogo, cheguei a um ponto de vista específico que aqui partilho:

escreve o leitor que se mostra. Escreve o leitor que se arrisca à

exposição. O leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a

rejeição ou aquele que precisa da companhia, do aplauso, da

apreciação de alguém que o leia.

Page 179: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

O escritor é o leitor que escolhe o palco e não a platéia. Ele é

platéia dos outros autores, mas se acha no direito de se expor

também na arena. Talvez não seja nem uma questão de direito e

sim de compulsão. É um leitor que precisa recriar o que leu, viu,

ouviu (como, aliás, todos [166] os leitores o fazem no processo de

produção de sentido). Precisa mais: se arriscar aos aplausos ou às

vaias ao exibir sua recriação.

A formação desse leitor segue passos específicos. É

necessário que se crie um clima de confiança para que os

resultados de leituras sejam partilhados, as primeiras criações

mostradas em público e, principalmente, se demonstre ao leitor,

sempre e sempre, o direito inalienável de recontar histórias.

Óbvio que grandes escritores se formaram em famílias

opressoras, escolas opressoras, regimes políticos idem. Alguns

irão atrás de literatura e de publicar sua literatura mesmo que

canhões busquem impedir. Mas esses fazem parte da minoria dos

resistentes, aqueles que lerão mesmo que tentem colocar uma

venda em seus olhos ou amarrem suas mãos. Para cada um que

tem dentro de si a compulsão de escrever, milhares serão

sufocados pela falta de condições de desenvolverem essa forma de

comunicação humana.

Penso que a maioria das pessoas não acredita ter o direito à

imaginação, ao exercício da beleza a partir de histórias contadas e

recontadas. A não ser no faz de conta infantil, nas brincadeiras de

“casinha” ou de “polícia e ladrão.” Depois desses breves anos, as

pessoas aprendem, na escola e na vida, coisas sérias para passar

de ano, trabalhar, casar, constituir família.

A ficção se torna uma atividade à parte dos “outros”, os

artistas, atores, escritores, roteiristas de cinema ou de telenovelas.

Com sorte, se existir uma iniciação anterior, essas pessoas se

Page 180: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

tornarão leitores. Platéia. Escreverão com maior ou menor

dificuldade textos aos quais atribuirão a categoria de realidade. No

trabalho, na correspondência entre amigos ou familiares.

É preciso que se incorpore à formação de leitores o conceito

de invenção do real. O Rio de Janeiro em “Dom Casmurro” era o

Rio “inventado” por Machado de Assis. Da mesma forma, se uma

recém-casada retrata em carta a sua melhor amiga os melindres

da sogra, trata-se de uma sogra inventada também, as cores serão

mais ou menos favoráveis dependendo do relacionamento entre as

duas e a confiança entre a remetente e a destinatária.

A diferença principal, na minha opinião, entre a hipotética

nora e [167] Machado de Assis é que este tinha a certeza de que

alguém perceberia a originalidade do seu Rio de Janeiro e dos

personagens e sentimentos que ali colocava a circular. Se essa

certeza não existia dentro dele, existia pelo menos a necessidade

de encontrar e encantar o leitor. O direito de conquistar um

interlocutor para sua obra. A noção de que seria capaz de recontar

a trajetória de um ciumento, mesmo que Homero ou Shakespeare

tivessem feito isso antes dele.

Acredito que escritores têm, em comum, essa convicção. Têm

algo a dizer e alguém quer ouvir. Ler. Nem que para isso precisem

se expor ao ridículo, às críticas, às concessões. Mesmo que

recorram ao baú das lembranças familiares, à denúncia dos ex-

amores e amigos. À fofoca, portanto. Correndo o risco de imitar,

quem sabe mal, seus autores preferidos.

O resto é talento sim, mas principalmente trabalho. E

maturidade e mais trabalho. E lucidez e mais trabalho. Muito

esforço para seduzir o leitor, sabendo que até chegar a ele existe

uma longa cadeia industrial a ser percorrida.

Isto — a via crucis do escritor — não é objeto dessa minha

Page 181: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

reflexão. Quero apenas chamar atenção que é necessário que se

acrescente às atividades voltadas para o projeto de formação de

leitores uma intervenção específica no sentido de ampliar o direito

de recontar. O direito de se expor. A competência do Narciso que

se mostra, não para o espelho, mas para seus pares e diz: “Eu

também sou belo.”

Não basta formar uma sociedade leitora. É preciso que

ousemos mais. É urgente democratizar os segredos da narrativa.

Criar espaços onde leigos, de qualquer idade, se manifestem

livremente como autores. Socializar a idéia de que a leitura e a

escrita como instrumentos de imaginação são um direito. Mais do

que direito ou além dele, são fonte de prazer e arma de combate.

Caminho de redenção e troféu da condição humana.

Qualquer escritor sabe que a imaginação concretizada no

texto tem esses poderes. De Homero a Woody Allen. Só não o

sabem, ainda, os milhões de estudantes que se digladiam com

dissertações onde não conseguem transmitir seus pontos de vista.

Os apaixonados incapazes de colocar no papel o calor dos seus

sentimentos. Os solitários impedidos [168] de estabelecer contato

através da escrita. As vítimas sem possibilidade de defesa ou de

vingança pela palavra.

É indispensável à formação do leitor o exercício da confiante

exposição. Só assim a leitura será um contágio, uma grande

epidemia de autores, cada um no seu território, senhor, rainha,

dono da sua própria palavra. [169]

Page 182: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

29 — TÂNIA DAUSTER

Espaços de Sociabilidade:

ouvindo escritores e editores sobre a formação do leitor e políticas públicas de

leitura no final do século XX Doutora em Antropologia Social (UFRJ) e Mestre

em Educação (PUC-RJ). Leciona a disciplina de

Antropologia e Educação nos cursos de

graduação e pós-graduação do Departamento de

Educação da PUC-RJ. Coordena o escritório da

UNESCO no Rio de Janeiro. Membro do Comitê

Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura

da Petrobras.

Este texto emerge de um programa de pesquisa

interinstitucional que vem sendo encaminhado conjuntamente

pelo Departamento de Educação da PUC-Rio e pela Faculdade de

Educação da UFRJ1. Ao longo desta parceria, as seguintes

pesquisas vêm sendo realizadas, desde 1992, sob a coordenação

de Tânia Dauster (PUC-RIO) e Pedro Benjamim Garcia (FAE-

UFRJ):

“Cotidiano, práticas sociais e valores nos setores populares

urbanos,” enfocando alunos de uma escola pública municipal da

Zona Sul do Rio de Janeiro e suas práticas de leitura;

“A formação do leitor — limites e possibilidades da escola” —

, estudando a visão de escritores da chamada literatura infanto-

juvenil, residentes na cidade do Rio de Janeiro; [171]

Page 183: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

“Reordenação de linguagens e formação de leitor”, buscando

as percepções de editores de literatura infanto-juvenil que moram

no Rio de Janeiro.

Embora exista uma linha nítida de abordagem temática, que

privilegia o “olhar antropológico”, cada uma dessas pesquisas tem

uma gama específica de questões. Mas, por que falar de um

“programa de pesquisa”?

Sucessivos estudos, oriundos de projetos anteriores sobre a

formação do leitor, vêm configurando continuidades e rupturas em

termos de campos empíricos e de indagações. Apesar disso,

optamos por manter e enriquecer o quadro teórico inicialmente

adotado. Contudo, ao se abordar o universo do livro, percebe-se

que este, como meio de comunicação e difusão dos mais antigos,

ao lado de seu impacto cultural e educativo, comporta também

interesses industriais e econômicos próprios do setor editorial. A

associação destes fatores cria um sistema complexo de parâmetros

aparentemente incompatíveis. Portanto, a investigação do mundo

da editoração e da leitura requer a compreensão das relações

internas entre os diferentes elementos que compõem a “cadeia do

livro”, assim listados em opúsculo da UNESCO: criação literária,

função do editor, impressão, distribuição, práticas leitoras e

construção do significado.

Postura teórico-metodológica

Essa concepção global deveria ser objeto de políticas

nacionais de leitura próprias a cada país, de acordo com as quais

temos construído nossos objetos de investigação.

No enfoque teórico adotado, destacamos o conceito de

cultura, contribuição relevante do campo da Antropologia, fugindo

Page 184: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

ao sentido que lhe é dado pelo senso comum e a uma visão

exclusivamente erudita.

Nessa acepção antropológica, cultura significa crenças,

valores, visão de mundo, significados entrelaçados, idéias e

práticas que orientam os indivíduos no seu dia-a-dia (Geertz,

1979), assim como artefatos materiais. Nesta mesma linha,

buscamos entender as diferenças sociais e os modos distintos de

construção da realidade (Velho, 1978), assim [172] como o caráter

relacionai e dinâmico entre as diferentes esferas sociais.

Nosso propósito foi embasado na Antropologia, como

mencionamos, e na História Cultural, tendo em vista compreender

as redes de significado a partir dos pontos de vista do “outro”,

operando com a lógica de suas categorias e conceitos, sem reduzir

nossa argumentação à sistematização destas categorias.

Sabendo que o pesquisador é parte do problema que ele vai

investigar, necessitamos trazer à luz e tentar compreender nossas

idiossincrasias e pré-conceitos, na busca de avançar o

conhecimento da área pesquisada.

Situar o problema na especificidade do social significa

“desnaturalizar” os fenômenos, ou seja, mostrar que fatores como

atitudes, comportamentos, gosto, formação do leitor, relação com

os livros, significado da leitura e fatos similares são socialmente

construídos e nada têm de “naturais”, pois pertencem ao campo

da cultura e das relações nas sociedades. Trabalhando em

contextos simbólicos e comunicacionais, estivemos atentos às

relações sujeito/sujeito e sujeito/ “objeto”, buscando seus

significados, sistemas simbólicos e de classificação, códigos,

práticas, valores, atitudes, idéias e sentimentos, em uma postura

de base antropológica que pressupõe a quebra da visão

dissimuladora da homogeneidade e dos estereótipos.

Page 185: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Nossos caminhos de investigação são marcados pelo

entendimento das diferenças entre posturas simbólicas e as

distintas práticas sociais, o que resulta em significações

específicas e singulares, em cujo horizonte metodológico damos

forma a nossas perguntas. Construímos um referencial

bibliográfico com resumos e análises e textos da literatura

pertinente a nossos problemas. Em princípio, abrangemos o que

vem sendo publicado no Brasil, sob forma de artigos e livros, nas

áreas da Educação, Antropologia e História Cultural.

Esse acervo vem sendo analisado, numa perspectiva de

“estranhamento” e “relativização”, buscando-se lógicas de

representações e ações, assim como padrões de recorrência.

O caminho adotado tem pontos de apoio na pesquisa-diálogo

de Gilberto Velho (1986). De certo modo, fazemos parte do

universo do entrevistado, compartilhamos suas experiências,

tensões, expectativas e [173] ansiedades, e temos, algumas vezes,

gostos, valores e concepções em comum. Reconhecemos como

nossas muitas de suas práticas e, no que tange ao domínio de

livros e leituras, os autores que habitam nosso imaginário e o dos

entrevistados são quase sempre os mesmos. Portanto, trata-se de

uma troca entre sujeitos culturalmente próximos, na qual as

fronteiras entrevistador/entrevistado se diluem.

Queiroz (1998) mostra que a entrevista é, por excelência,

uma situação dialógica e técnica de coleta de dados. Seu exame —

na perspectiva da busca de padrões sociais — representa uma

tentativa de compreensão do social nos indivíduos.

Para situar sociologicamente nossos comentários

posteriores, discutiremos os conteúdos emergentes de escritores e

editores, dois universos sociais investigados nos últimos anos, na

chamada literatura infanto-juvenil2.

Page 186: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

Esses escritores se vêem como profissionais, uma vez que

vivem de seu próprio trabalho, têm inúmeros livros publicados e

traduzidos (em países como México, Itália, Alemanha, Estados

Unidos), participam de feiras de livros, tanto no Brasil quanto no

exterior, visitam escolas, são lidos dentro e fora do âmbito escolar,

e são leitores tanto da “grande literatura” quanto de revistas em

quadrinhos.

Quanto aos editores, seus pontos de vista abrangem versões

e perspectivas distintas sobre o universo do livro e a formação do

leitor.

Entre os fatores emergentes nos comentários desses dois

tipos de profissionais, podemos citar:

Referências às ditas crises da leitura por prazer e da

literatura consagrada, ao mesmo tempo em que se constata um

mercado de livros em ascensão, direcionado ao público infanto-

juvenil;

O crescimento desse mercado de livros, associado a vendas

feitas diretamente às escolas;

A necessária redução dos preços dos livros, para atender à

demanda de leitores (embora esta seja uma visão polêmica);

A existência de práticas escolares que afastam os alunos da

leitura;

O espaço da escola como único acesso à leitura e à literatura

consagrada, para a grande maioria da população; [174]

A hipótese do desaparecimento do livro tendo em vista a

difusão do computador e o impacto da imagem na sociedade do

final do século XX.

Após estas breves considerações sobre os universos sociais

investigados, faremos alguns comentários úteis para a elaboração

de políticas públicas de leitura3, embora muitas das questões

Page 187: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

levantadas já estejam incluídas no rol de possibilidades previstas

pela administração pública.

Em parte, tal continuidade de propósitos oficiais na área de

políticas públicas de leitura indica que há questões crônicas à

espera de soluções abrangentes, nesta área.

A presença do livro e seus paradoxos

Diz-se que cada vez se lê menos, dado o poder da imagem da

TV e do vídeo. Contudo, nunca se publicou tanto quanto hoje.

Dados quantitativos mostram que o Brasil é um grande mercado

editorial, com significativo contingente de leitores e grande

vitalidade no universo da leitura, como vendas expressivas,

freqüentes feiras de livros, noites de autógrafos, rede de

bibliotecas e grupos de contadores de histórias. Vale lembrar que

nossa Bienal do Livro é a terceira maior do mundo e que este

evento, em 1999, revestiu-se de novo brilho por sua organização

interna, com a presença de autores e especialistas em variados

debates, e com a homenagem prestada à literatura portuguesa,

atraindo imenso público.

Acreditamos, também, conforme temos indicado em outros

textos, que o ato da leitura não se reduz à prática literária e que

tal associação indica uma concepção limitada do conceito de

leitura.

Ao tentar ultrapassar os estereótipos, percebemos uma visão

elitista da leitura e da literatura, que obstrui a vitalidade, o

interesse em torno das diversas práticas e atos de leitura, e dos

leitores. Para Paulo Rangel4, “há uma relação entre o que as

pessoas lêem e o nicho do editor”, o que justifica um leque amplo

e uma diversidade de gostos e ofertas no universo das

Page 188: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

publicações. Daí inferirmos que as práticas leitoras e o ofício da

literatura podem ser exercidos de várias formas, o que nos [175]

conduz a uma visão mais complexa e multifacetada dos

fenômenos da criação, da editoração, daquelas práticas leitoras e

dos “leitores” em geral. Isto, entretanto, não nos permite ignorar

ou negar a importância e a qualidade diferencial da literatura

escrita pelos grandes autores, seu significado formativo e seus

efeitos subjetivos.

Podemos, por fim, dizer que a presença do livro é marcante

na cena brasileira, pelo menos no que diz respeito à rede das

grandes capitais.

Contudo, longe de ser tranqüilizador, este quadro revela

paradoxos, entre os quais:

A face da exclusão — considerando-se a população em

termos amplos, são bens escassos: a competência na leitura

silenciosa (que revela familiaridade no ato de ler “enquanto ato de

produção de significado e interpretação” — Chartier, 1990), e a

posse do livro (seja de literatura ou ligado à informação e aos

diversos campos de conhecimento);

O acesso diferencial ao uso e posse do computador — até o

momento, este equipamento não representa a “morte” do livro,

nem da leitura e da escrita, mas apenas um outro suporte para

textos, o que não abala a vitalidade do mercado editorial;

O pequeno número de leitores literários —

comparativamente à população total;

A escassez de bibliotecas públicas e sua concentração nas

áreas privilegiadas das cidades — é importante ressaltar que o

acervo das bibliotecas existentes necessitaria ser constantemente

atualizado, além de ampliado com obras de literatura ficcional e

de referência para a formação dos estudantes5;

Page 189: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

O papel da escola — é fundamental na formação do leitor e,

sobretudo, quando se trata do leitor de setores populares, embora

a escola seja vista por muitos como uma “vacina” contra a leitura,

envolvendo constrangimentos à formação desse leitor. Salvo o

risco de generalização indevida, esta visão crítica talvez se deva ao

despreparo de parcela expressiva do professorado, à

obrigatoriedade da adoção de um só livro e ao uso das fichas de

leitura (por alguns consideradas um mal necessário, dada a

precariedade do corpo docente).

Passaremos, a seguir, aos comentários de escritores e

editores, buscando sobretudo as recorrências entre esses dois

universos. [176]

Políticas públicas e estratégias de formação de leitores

O gosto pela literatura pertence ao domínio da arte. Birman

(1996) comenta que o leitor moderno tem, com o texto, uma

relação de prazer e de revelações imaginárias, na qual “... a leitura

é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de

educação, justamente porque o que está em causa não é apenas o

entendimento, mas principalmente a subjetividade do leitor”.

“O gosto se forma pela opção”, declara Julio Emílio Braz. Já

para Luiz Antonio Aguiar, a formação do leitor se dá na liberdade

de escolha, sem obrigatoriedade. Livro não é material didático e o

professor deve “ir no caminho do interesse da criança”6.

Liberdade, opção e prazer aparecem como valores

relacionados à subjetividade do leitor, mas também devem ser

incorporados à dinâmica das políticas públicas sobre leitura,

dentro e fora da escola. Isto porque é preciso levar em conta a

formação do gosto pela leitura enquanto enriquecimento do

Page 190: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

imaginário. Trata-se da lógica da subjetividade, transposta e

traduzida para a lógica da ação e das políticas públicas.

Contudo, parece-nos fundamental trazer o outro lado da

moeda: Jean Hébrard, em comentário no Salão do Livro, em Paris

(1998), recomenda que o discurso em prol da leitura não seja

apenas afetivo, mas contenha um trabalho de leitura, como um de

seus eixos principais. Nesta linha, a escola tem um significativo

papel, no que tange à construção de espaços coletivos de

discussão e debate em torno da leitura e do livro. Isto significa um

esforço intenso de elaboração, construção e negociação do sentido

da própria leitura, a partir do confronto de distintos pontos de

vista. O mesmo autor, em recente palestra na PUC-Rio (1999),

falando de políticas públicas educacionais, apresenta como uma

das vias de entrada para a cultura escrita as práticas do

“aprender a falar”, que fariam da escola o espaço do “ensinar a

falar”.

O professor, enquanto detentor da função de “saber falar a

língua escrita”, seria incentivador de outras maneiras de dar vida

ao ato pessoal da leitura. Neste enfoque, caberia uma

reorganização das sociabilidades da leitura, buscando novas

formas de se falar sobre o que se lê. Ainda segundo Hébrard, este

seria o trabalho da leitura, ou seja, falar da leitura [177] realizada

implica reconhecer a existência do ato de ler. Portanto, dever-se-ia

estimular o diálogo em torno do livro e não “aprisionar” a

literatura, como se ela fora material didático. Neste sentido, é

questionável o uso de encartes, fichas e avaliações. Em relação à

ficha de leitura, ponto muito polêmico, disse Ana Maria Machado:

Já fui muito contra essa ficha (quando ela vem nos livros) e

sei que, hoje, ela é muito criticada. Eu preferia que ela não

existisse, mas reconheço sua importância no Brasil, sobretudo no

Page 191: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

caso da professora do interior, sem recursos e despreparada. Para

ela, a ficha dá um mínimo de orientação.7

A escola apresenta uma dupla face na formação do leitor. De

um lado, a obrigatoriedade de leitura de um só livro pode criar

resistências e obstáculos à formação do gosto e do hábito de ler.

Mas pode significar o único acesso a livros, para quem não os tem

em casa.

Nesse propósito, os entrevistados concordam que as políticas

públicas têm que incentivar e apoiar a leitura de livros na escola,

atuando na formação de professores, viabilizando acervos de livros

e favorecendo acesso freqüente a bibliotecas atualizadas.

Assim, Ana Maria Machado sugere que seja garantido, a

cada escola, um acervo de pelo menos 300 livros, de uma lista

básica de aproximadamente 5.000, escolhidos por uma comissão

de especialistas. A autora lembra, também, que traduções bem

feitas são boas leituras e que, portanto, os professores de

português poderiam indicar livros estrangeiros.

Também merecem atenção as campanhas incentivadoras do

hábito de ler, envolvendo distintos estimuladores, como grupos de

contadores de história e outros, além de recursos como programas

televisivos, etc.

Relata Ana Maria uma iniciativa inglesa de leitura em

colégio, acessível a qualquer outro país. Trata-se do “Projeto de

Leitura Silenciosa Contínua”8. Essa autora nos conta a vivência de

sua filha nessa experiência, em 19889:

No primeiro dia, a única coisa que ela trouxe para casa foi

uma pasta com fecho éclair, de plástico transparente, onde estava

escrito USSR. Dentro, havia uma folha mimeografada, com um

cabeçalho que [178] continha data, título do livro, autor e

comentário da família, em quatro colunas. Atrás vinham

Page 192: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

informações sobre o Projeto: entre elas, a de que a escola havia

aderido à campanha do USSR, que não era obrigatória. Podem dela

participar escolas públicas ou particulares, mas é basicamente

voltada para as primeiras. A escola se compromete a determinar um

horário semanal para leitura silenciosa. A de minha filha optou por

40 minutos. Outras optam por 30 minutos, uma hora. Neste período,

eles avisam aos pais que não tentem vir ao colégio, porque ninguém

vai poder recebê-los. A leitura silenciosa é para toda a escola: do

porteiro à diretora, todos lêem. A professora não pode ficar

corrigindo caderno, o homem da cantina pára tudo. Não se atende

ao telefone. Este horário deve ser antes do recreio, porque se

alguma criança estiver em um ponto do livro em que não queira

parar, pode continuar durante o recreio. Ao acabar a leitura, todos

voltam a suas obrigações. O professor não pergunta: “O que faz tal

personagem?” Alguém poderá até indagar: “Quantas páginas você

leu?” Mas o aluno só precisa registrar na folha os dados do livro da

biblioteca, levando a fichinha para casa. Aí, irmão, irmã, avô, avó,

pai, etc, devem completar a parte da opinião da família sobre a

leitura da criança: “Ele gostou...”, ou “ele não gostou...”, “que bom

que ele está lendo esse livro...”, ou “nunca ouvi falar nesse autor,”

etc. Alguém da família tem que ter uma opinião sobre aquele livro,

colocando-a na ficha até o dia da próxima leitura, prazo dado pela

escola. Após a terceira semana, se o aluno não trouxer a opinião de

casa, os pais são chamados ao colégio para uma conversa. O

interessante é que a família se envolve nesse projeto. Outro critério

importante na escola inglesa é o sistema de pontos, em que uma

série de atividades, inclusive essa campanha da leitura, torna a

escola prioritária para receber ajuda do governo. Por exemplo, tendo

comprado um determinado número de livros novos para a

biblioteca, a escola conta pontos para o sistema. Se precisa

Page 193: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

cimentar novamente o pátio ou colocar uma grade nova, poderá

também utilizar os pontos da campanha. Essa experiência existe há

24 anos e aplica-se apenas à escola primária. Uma avaliação

mostrou que ela conseguiu aumentar a freqüência da leitura entre

os jovens.

Outro ponto recorrente, no discurso de nossos entrevistados,

diz [179] respeito à disseminação de bibliotecas. Idealmente, a

maioria delas deveria ser de estaduais e, portanto,

necessariamente diversificadas, com uma dupla entrada na

escolha de seus acervos: ao mesmo tempo centralizados e

contendo obras de autores locais.

Segundo recomendação da UNESCO, a relação tolerável é de

uma biblioteca para cada 12.000 habitantes. De acordo com

dados veiculados pelo Jornal do Brasil10, há 3.500 bibliotecas

públicas e 22 milhões de brasileiros alfabetizados não têm

biblioteca próxima a suas casas. Para se alcançar o ideal, seria

necessário criar aproximadamente 2.000 unidades.

É claro que mais bibliotecas devem ser criadas e atualizadas,

mas elas têm que funcionar como espaços vivos, nos quais os

bibliotecários, assim como os professores, são preparados para

estimular a formação do leitor.

Do ponto de vista econômico, autores e editores insistem no

barateamento do livro, por meio da redução de impostos sobre a

produção. É reiterada também a publicação de obras de domínio

público, melhor distribuição em bancas de jornais e investimento

em edições de bolso.

Em suma, preços altos e baixas tiragens são considerados

“inimigos” do livro e da formação do leitor.

No que diz respeito ao grande evento da Bienal, pesquisa

recente da empresa de pesquisa Vox Populi conclui que mais de

Page 194: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

90% da população brasileira não têm o hábito de ler, o que indica

a importância de se difundir, no país, pequenos eventos, como

feiras e salões de livros, que não deveriam ficar limitados apenas

às grandes capitais.

Para finalizar, volto à tese central da UNESCO (1996):

Desenvolvimento econômico não é variável independente.

Inúmeros projetos de desenvolvimento sócio-econômicos

fracassaram, por não levar este fator em conta. Os fatores

econômico e cultural se interpenetram. Dado o papel constitutivo da

cultura, teremos que pensar o desenvolvimento em termos que

englobem também o crescimento cultural.

Buscando uma síntese, diria que são culturais as políticas

de leitura. Cabe aos responsáveis pelos equipamentos de

educação e cultura promoverem parcerias, criando as teias

articuladoras entre família, escola, [180] bibliotecas, museus,

cinema, teatro e música, enfim, tecendo a rede cultural na qual o

leitor se forma.

Referências Bibliográficas

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existência. São Paulo: Editora 34, 1996.

CHARTIER, R. A História cultural entre práticas e

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CUÉLLAR, J. P. (org.) Nossas diversidades criadoras.

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DAUSTER, T. Leituras no Rio de Janeiro. In: Testemunho III.

Antologia em prosa e verso. Rio de Janeiro: Oficina do Livro

Ltda., 1994.

_____. O Cipoal das letras: entre olhares, recortes e

construções da Antropologia e da História, no contexto de uma

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Campinas, SP, revista da Associação de Leitura do Brasil (ALB),

Fac. de Educação UNICAMP, Ano 15, n. 28, dez. 1996. Série

documental: eventos, INEP-MEC, n. 5, maio/1994, p. 48 — 54.

_____. Jogos de inclusão e exclusão sociais — sobre leitores e

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Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro (org. Barbara Freitag), 1997-

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_____.; MATA, M. L. O valor social da Educação e do trabalho

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Departamento de Educação da PUC-Rio, 1990.

_____.; MATA, L.; GARCIA, Pedro, B. Cotidiano, práticas

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diferencial da escrita e da leitura e o significado da imagem entre

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GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:

Zahar Edit., 1979.

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Brasil). Org. e introdução de Olga de Moraes von Simson. São

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VELHO, G. Observando o familiar. In: A aventura

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_____. Subjetividade e sociedade — uma experiência de

geração. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1986.

1 Vale esclarecer que as recorrentes pesquisas sobre a

formação do leitor, dentro e fora da escola, têm recebido o apoio

do CNPq, incorporando alunos de iniciação científica, mestrandos

e doutorandos, tanto da PUC-Rio como da UFRJ. Dissertações,

teses e artigos vêm sendo elaborados e estes últimos,

apresentados em seminários, no Brasil e no exterior, pelos

componentes da equipe.

2 Esta classificação corresponde às concepções de alguns

dos escritores. Vale dizer, contudo, que a literatura infanto-juvenil

brasileira é vista como uma das melhores do mundo e comparada

qualitativamente à inglesa.

3 Trata-se de iniciativas públicas e privadas importantes,

como: o programa PROLER, articulado à Biblioteca Nacional; a

campanha “Paixão de Ler”, da Secretaria Municipal de Cultura do

Rio de Janeiro; e o “Leia Brasil”, programa da Petrobras apoiado

pela UNESCO.

4 Em entrevista realizada em 1996, para a pesquisa A

formação do leitor — limites e possibilidades da escola.

5 A Secretaria Municipal de Cultura, na gestão de Helena

Severo, começa a implantar bibliotecas em áreas faveladas, tendo

sido iniciadas essas atividades no contexto de ações do Programa

Favela-Bairro. [182]

6 Em contatos realizados para a pesquisa A formação do

leitor — limites e possibilidades da escola, em 1996.

7 Em entrevista realizada em 1997, para a pesquisa A

formação do leitor — limites e possibilidades da escola.

8 Uninterrupted Sustained Silent Reading (USSR).

Page 197: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

9 Em entrevista realizada em 1997, para a mesma pesquisa,

A formação do leitor — limites e possibilidades da escola.

10 (Informe JB, 1997). [183]

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30 — WALDA DE ANDRADE ANTUNES

Leitura e biblioteca Bibliotecária, Mestra em Planejamento Bibliotecário. Doutora em Educação, Professora do CID — Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília, Diretora Técnica da WA-CORBI. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Era da informação. Mais do que isso — era do conhecimento.

A sociedade globalizada, ao tempo em que se defronta com o

encontro de profissões, tendências, demandas, enfrenta mudanças

que chegam a todos os segmentos desta sociedade exigindo dos

indivíduos um maior aporte cultural e educacional. De outra

parte, o país vive um dos momentos mais significativos de sua

história, no qual se vê obrigado a acelerar o processo de

modernização sobre novas bases políticas na busca de

consolidação e fortalecimento da vida democrática.

Enquanto o país enfrenta grandes desafios no concerto

internacional, motivado pelas freqüentes mudanças nas relações,

importantes avanços científicos e tecnológicos, passíveis de

fortalecer o desenvolvimento, criam o risco de gerar maiores

desequilíbrios dentre [185] aqueles que não dispõem de

articulações calcadas no campo cultural e não detêm reais

potencialidades e recursos próprios. As ações governamentais

tendentes à globalização em todos os aspectos precisam se voltar

Page 199: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

para a promoção da auto-realização dos indivíduos. Sendo assim,

a elevação do nível cultural e educativo, fundamento essencial

para as transformações esperadas, se assinalam como prioritárias

medidas voltadas para a adoção de diretrizes que garantam a

formação de leitores. Medidas urgentes, ousadas e de impacto

devem constituir planos de ação abrangentes que fortaleçam a

solidariedade nacional e garantam o engajamento de todos os

setores da sociedade. Aponta-se, neste alvo, talvez a única

possibilidade de ampla participação do indivíduo no processo de

formação do seu conhecimento e no esforço maior de participar da

construção de uma sociedade globalizada e igualitária — ser este

indivíduo leitor, freqüentador de bibliotecas, usuário da

informação.

O livro, a leitura e a biblioteca alinham-se como importantes

componentes sociais e, em especial, do sistema educativo.

Somam-se a isto os meios de comunicação e veiculação, de modo

a que o livro seja disponibilizado e atenda as muitas demandas de

leitura de forma que a aprendizagem, o acesso à informação e ao

conhecimento ocorram plenamente. Promoção da leitura tem

nítidas interfaces na luta contra o analfabetismo, cuja eliminação

é condição essencial do desenvolvimento e bem-estar dos povos.

Porém, promover a leitura é tarefa que deve estar respaldada

por medidas que garantam a disseminação do livro, fortalecendo a

todas as instâncias (criação, produção, disseminação) para que

isto aconteça. O campo editorial brasileiro, registrando expressivo

desenvolvimento, especialmente no que se refere à produção de

livros infantis e infanto-juvenis, é capaz de contribuir efetivamente

para o desenvolvimento da leitura. Destaca-se como estrutura

básica-suporte neste contexto o papel de serviços bibliotecários

em suas diversas modalidades, de modo a atingirem as

Page 200: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

comunidades, independente de sua situação geográfica. Cabe,

desta forma, a ação de políticas públicas que garantam o

desenvolvimento dos acervos das bibliotecas escolares e públicas

para permitir a estas unidades o verdadeiro cumprimento de sua

missão — formadora de leitores e disseminadora de informações.

[186]

A biblioteca é centro dinâmico de promoção da leitura, de

apoio à aprendizagem, centro de disseminação cultural, de

informação. Especialmente bibliotecas públicas e escolares trazem

em sua missão explícita a participação no desenvolvimento do

indivíduo. Se por um lado a educação deve permitir o pleno

exercício da dúvida, da especulação e da busca da verdade, por

outro podemos dizer que o homem educado não é

necessariamente um homem sábio, mas um homem capaz de

buscar o caminho da sabedoria. Por esta razão, os especialistas

situam a educação como um processo em permanente

desenvolvimento. Ninguém pode ser considerado educado, se não

for capaz de adquirir novos conhecimentos. A ausência de

bibliotecas nas escolas e nas comunidades priva os alunos, os

cidadãos, das oportunidades de leitura, de facilitação da

aprendizagem, de acesso ao conhecimento. Se educação e,

conseqüentemente, a cultura são partes integrantes e

fundamentais da formação dos indivíduos, a leitura do livro, a

disponibilidade ofertada pela biblioteca, são molas propulsoras do

desenvolvimento da individualidade, da independência na busca

da informação. À diversidade de possibilidades que uma biblioteca

oferece pela leitura de muitos autores, pela diversidade de idéias,

soma-se a função de elemento de comunicação, a compreensão da

mensagem, o conteúdo que é lido por parte de quem lê —

condições e insumos importantes que levam o indivíduo a

Page 201: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

construir o seu próprio pensamento, a ter as suas idéias. A

liberdade experimentada em uma biblioteca é extremamente

relevante, quer seja biblioteca escolar ou pública — desvencilha-se

de qualquer método que possa resultar em unificador no processo

de ensinar, restrito à previsibilidade de ações.

O desenvolvimento da leitura, na escola, está intimamente

vinculado ao livro. As primeiras atividades de aproximação

estabelecidas ainda na pré-escola têm no livro de literatura o

despertar do interesse na criança. A livre escolha, o

direcionamento ditado pelo interesse, pela curiosidade, pelo

prazer, a caminhada que aí se inicia, vai desde o apego emocional

que cresce na medida em que o livro assume um significado maior

na vida da criança, quer como o veículo que desvenda novos

horizontes, que amplia o seu mundo, que sacia a sua curiosidade,

que oferece as grandes oportunidades de crescer além da dimensão

que a sala-de-aula lhe propicia. (ANTUNES, 1998) [187]

A propósito ABRAMOVICH, F. (1989), escritora brasileira,

expressa o seu pensamento na introdução da obra Leitura

infantil: gostosuras e bobices, quando narra:

...Ah, a volúpia de ler sozinha, de mergulhar no mundo

mágico das letras pretas que remetiam a tantas histórias

fantásticas!!! Como era triste e comovente. O soldadinho de

chumbo, é também triste e dadivosa. A sereiazinha, dois contos de

Andersen... como era deleitoso, delicioso, lagartear... com os livros

de Monteiro Lobato. Era gostosura pura, era maravilhamento total...

E essa volúpia de ler, essa sensação única e totalizante que só a

literatura provoca, esse ir mexendo em tudo e formando meus

critérios, meus gostos, meus autores de cabeceira, relendo os que

me marcaram ou mexeram comigo dum jeito ou de outro, esse

perceber que ler é um ato fluido, ininterrupto, de encantamento e de

Page 202: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

necessidade vital, é algo que trago comigo desde muito, muito

pequenina... E foi algo que me tornou essa viciada total em ler que

sou até hoje!...

Ler, para mim, sempre significou abrir todas as comportas pra

entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência das

personagens... ler foi sempre maravilha, gostosura, necessidade

primeira e básica, prazer insubstituível...

A diversidade de livros que uma biblioteca oferece em seu

acervo favorece a habilidade de ler, além de atender às

necessidades naturais de leitura e interesse do leitor. Ainda,

garante o oferecimento de materiais, orienta e cria condições para

que o aluno vivencie experiências enriquecedoras e, através do

livro, não obtenha apenas a informação, mas que este se converta

em forma de lazer, prazer e freqüência nos momentos livres. É

ainda na diversidade que a biblioteca pode oferecer que o aluno

passa a distinguir o que seja uma boa leitura, atrativa,

convidativa, instigante, fortalecendo, desta maneira, o hábito de

ler.

E o que mais se espera: um leitor autônomo, um usuário

que sabe escolher o livro, procurar a informação. Um leitor que

usa a informação, que a amplia, pelo conhecimento.

Ressaltada a importância do papel da biblioteca como

fundamental no contexto de formação do leitor, registra-se, aqui

também, a preocupação expressa por tantos quantos o

reconhecem. A biblioteca, [188] especialmente aquela cuja

clientela identificada é o leitor ou potencial leitor infantil —

bibliotecas infantis, bibliotecas escolares e seções infantis em

bibliotecas públicas não ocupam o espaço que lhes é devido junto

à educação e à cultura.

Ressalte-se ainda o fato de que a descontinuidade está

Page 203: Jason Prado & Paulo Condini - A Formação do Leitor (pdf)(rev)

sempre presente no trabalho da biblioteca na escola: o

responsável pela biblioteca é a primeira.

Além disso, ressalte-se o papel da biblioteca com relação à

oportunidade de manipulação de diferentes materiais impressos e

audiovisuais, tomando contato com outras linguagens,

favorecendo o desenvolvimento de outras formas de comunicação,

expressão e leitura.

A ampliação de visão de mundo soma-se às experiências de

leitura. [189]

Nota da revisora: Páginas em branco: 10, 30, 44, 54, 60, 70, 74, 80, 108, 116, 128, 144, 162, 170, 184

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1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.