Jean-Genet-O-BALCÃO
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O BALCO(Le Balcon)
de Jean Genet
Pea em nove quadros
Traduo de
Jaqueline Castro e Martim Gonalves
A teno: Texto distribudo pelo portal de teatro e cultura:
www.oficinadeteatro.comem carter puramente de uso e leitura PESSOAL.
Todos os direitos reservados aos detentores legais dos direitos da obra.
Para a representao e comercializao legal da pea, entrar em contato
com o autor.
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PERSONAGENS
O Bispo
O Juiz
O Carrasco: Arthur
O General
O Chefe de Polcia
O Velho
Roger
O Homem
Um dos Revoltosos
O Enviado
O Primeiro Fotgrafo
O Segundo Fotgrafo
O Terceiro Fotgrafo
O Mendigo: O Escravo
Irma: A Rainha
A Mulher
A Ladra
A Ma
Carmen
Chantal
Primeiro Quadro
Cenrio - No teto, um lustre que ser sempre o mesmo, a cada quadro. O cenrio parecerepresentar uma sacristia, formada por trs biombos de cetim, vermelho sangue. No biombo do
fundo dispe-se de uma porta. Em cima, um enorme crucifixo espanhol, desenhado em trompe-
l'oeil. Na parede da direita, um espelho - cuja moldura dourada e esculpida - reflete uma cama
desfeita que, se o cmodo tivesse uma disposio lgica, se encontraria na sala, nas primeiras
poltronas. Uma mesa com um cntaro. Uma poltrona amarela. Sobre a poltrona: uma cala preta,
uma camisa, um palet. O Bispo, de mitra e capa dourada, est sentado na poltrona. Ele
nitidamente mais alto que o normal. O papel ser desempenhado por um ator que subir em
andas de ator trgico de cerca de cinqenta centmetros de altura. Seus ombros, sobre os quais
se assenta a capa, sero ampliados ao mximo, de modo que, ao subir do pano, aparea
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desmesurado e hirto como um espantalho. Seu rosto est exageradamente caracterizado. Ao
lado, uma mulher bastante jovem, muito maquiada e vestida com um quimono de renda, enxuga
as mos numa toalha. Em p, uma mulher de uns quarenta anos, morena, rosto severo, vestida de
um sbrio vestido preto. Irma. Um chapu de presilha apertada, como um capacete militar.
O BISPO (Sentado na poltrona, no meio do palco, com uma voz cava, mas veemente) - Na
verdade, no tanto a doura nem a uno que deveriam definir um prelado, porm a mais
rigorosa inteligncia. O corao nos leva perdio. Cremos ser donos de nossa bondade: ns
somos escravos de uma serena languidez. ainda de outra coisa que se trata, no de
inteligncia. (Hesita) Seria de crueldade. E alm dessa crueldade - e atravs dela - um caminhar
hbil, vigoroso em direo Ausncia. Em direo Morte. Deus? (Sorrindo) Eu vos vejo chegar!
(Para sua mitra) Tu, mitra em forma de chapu de bispo, saiba bem que se meus olhos se
fecharem pela ltima vez, o que verei, por trs das minhas plpebras, s tu, meu belo chapu
dourado... Sois vs, belos ornamentos, capas, rendas...
IRMA (Com brutalidade) - O que foi dito est dito. Quando a sorte est lanada... (Durante todo o
quadro ela se deslocar pouco. Est muito perto da porta)
O BISPO(Muito suave, afastando Irma com um gesto)
E os dados jogados...
IRMA - No. Dois mil, dois mil, e nada de conversa. Ou me zango. E no est nos meus
hbitos... Contudo, se est em apuros...
O BISPO(Seco e jogando a mitra) - Obrigado.
IRMA - No vai quebrar nada. Isto ainda vai ter utilidade.( mulher) Guarde (Coloca a mitra na
mesa, perto do cntaro)
O BISPO (Depois de um profundo suspiro) - Disseram-me que essa casa vai ser sitiada. Os
revoltosos j atravessaram o rio.
IRMA (Preocupada) - H sangue por toda parte... O senhor vai seguindo pelo muro do
Arcebispado e entra na Rue de la Poissonnerie... (De repente ouve-se um terrvel grito de dor, de
uma mulher que no se v. Aborrecida) Eu tinha recomendado que fossem silenciosos.
Felizmente tomei a precauo de tapar as janelas com uma cortina acolchoada. (Subitamente
amvel, insidiosa) E o que que foi executado esta noite? Beno? Orao? Missa? Adorao
perptua?
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O BISPO(Grave) - No fale disso agora. Est acabado. S penso em voltar... A senhora diz que a
cidade est em sangue...
A MULHER(Interrompendo) - Beno, madame. Em seguida, minha confisso...
IRMA - E depois?
O BISPO - Basta.
A MULHER - Foi s. E no final, minha absolvio.
IRMA - Ento, ningum pode assistir? Nem sequer uma vez?
O BISPO (Assustado) - No. Estas coisas devem permanecer e permanecero secretas. J
indecente falar enquanto se despem. Ningum. E que todas as portas estejam fechadas. Bem
fechadas, cerradas, abotoadas, amarradas, afiveladas, costuradas...
IRMA - Eu s estava lhe pedindo...
O BISPO - Costuradas, madame Irma.
IRMA(Aborrecida) - Permite ao menos que me preocupe... profissionalmente? Eu j disse: dois
mil.
O BISPO (Sua voz de repente se clarifica, torna-se precisa, como se acordasse. Mostra um pouco
de irritao) - No deu para cansar. Apenas seis pecados, e longe de serem os meus preferidos.
A MULHER - Seis, mas capitais! E tive dificuldades para encontr-los.
O BISPO(Preocupado) - O qu, eram falsos?
A MULHER - Todos verdadeiros! Refiro-me dificuldade que tive em comet-los. Se o senhor
soubesse o que necessrio atravessar, ultrapassar, para chegar desobedincia...
O BISPO - Eu no duvido. A ordem do mundo est to tumultuada que tudo permitido - ou
quase tudo. Mas se os seus pecados eram falsos, pode dizer agora.
IRMA - Ah, no. Posso at ouvir suas reclamaes quando voltar. No. Eram verdadeiros. (
mulher) Desamarre-lhe os cordes. Descalce-o. E quando tornar vesti-lo, que no se resfrie. (Ao
Bispo) O senhor quer um grogue, uma bebida quente?
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O BISPO - Obrigado. No tenho tempo. Eu preciso ir-me. (Sonhador) Sim, seis, mas capitais!
IRMA -Aproxime-se, vamos despi-lo!
O BISPO(Suplicante, quase de joelhos) - No, no, ainda no.
IRMA - Est na hora. Vamos! Depressa! Mais depressa! (Todos continuam a falar enquanto
despem-no. Ou melhor, retiram apenas os alfinetes, desamarram os cordes que parecem
prender a capa, a estola e a sobrepeliz)
O BISPO(Para a mulher) - Os pecados, voc realmente os cometeu?
A MULHER - Sim.
O BISPO - Fez mesmo os gestos? Todos os gestos?
A MULHER - Fiz.
O BISPO - Quando voc se aproximava de mim estendendo seu rosto, eram realmente de fogo os
reflexos que o iluminavam?
A MULHER - Sim.
O BISPO - E quando minha mo com o anel santo pousava sobre sua testa perdoando...
A MULHER - Sim.
O BISPO - E que meu olhar mergulhava em seus belos olhos?
A MULHER - Sim.
IRMA - E nos seus belos olhos, Monsenhor, passou pelo menos o arrependimento?
O BISPO(Levantando-se) - A galope. Mas, ser que eu procurava o arrependimento? Vi o lvido
desejo de culpa. E inundando-a, o mal subitamente a batizou. Seus grandes olhos abriram-se
sobre o abismo... uma palidez de morte tornava mais vivo - sim, madame Irma - tornava mais vivo
seu rosto. Mas nossa santidade s existe na medida em que perdoamos os pecados de vocs. E
se fossem fingidos?...
A MULHER(Subitamente coquete) - E se meus pecados fossem verdadeiros?
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O BISPO (Em um tom diferente, menos teatral) - Voc est louca! Espero que realmente no
tenha feito aquilo tudo.
IRMA (Ao Bispo) - No lhe d ouvidos. Quanto a seus pecados, tranqilize-se. Aqui no h...
O BISPO(Interrompendo) - Eu sei. Aqui no h a possibilidade de praticar o mal. Vocs vivem no
mal. Na ausncia de remorsos. Como poderiam praticar o mal? O Diabo atua. E a que o
reconhecemos. o grande Ator. E foi por isso que a Igreja amaldioou os comediantes.
A MULHER - O senhor tem medo da realidade, no ?
O BISPO - Se fossem verdadeiros, seus pecados seriam crimes e eu estaria numa enrascada.
A MULHER - O senhor chamaria a polcia? (Irma continua a despi-lo. Porm, mantm a capa
sobre os ombros)
IRMA - Deixe-o em paz. Chega de perguntas. (Ouve-se novamente o mesmo grito terrvel) Eles,
novamente! Vou faz-los calar.
O BISPO(Aproximando-se lentamente do espelho, pra diante dele) - ...Mas responde, espelho,
responde. Ser que venho aqui descobrir o mal e a inocncia? (Para Irma, muito suavemente)
Saia! Deixe-me s!
IRMA - tarde. O senhor no vai poder mais sair sem perigo...
O BISPO(Suplicante) - Um minuto, apenas.
IRMA - H duas horas e vinte minutos que o senhor est aqui. Isto , vinte minutos a mais...
O BISPO(Subitamente colrico) - Deixe-me s. Escute por detrs das portas se quiser, sei quecostuma faz-lo, e volte quando eu tiver acabado. (As duas mulheres saem suspirando, com ar
cansado. O Bispo fica s, depois de fazer um visvel esforo para acalmar-se, diante do espelho e
segurando a sobrepeliz)...Responde-me espelho, responde. Ser que venho aqui descobrir o mal
e a inocncia? E em suas faces douradas, que era eu? Nunca, que Deus seja testemunha, nunca
desejei o trono episcopal. Tornar-me bispo - elevando-me s custas de virtudes ou de vcios -
significou afastar-me da dignidade definitiva de bispo. Explico: (O Bispo falar num tom muito
exato, como se seguisse um raciocnio lgico) para tornar-me Bispo, foi preciso que me obstinasse
em no s-lo, mas agisse como se o fosse. Uma vez Bispo, a fim de s-lo, foi necessrio - a fim
de s-lo para mim, claro! - foi necessrio que no esquecesse de no s-lo para que pudesse
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exercer minha funo.(Segura a aba de sua sobrepeliz, beijando-a) Oh rendas, rendas, feitas por
tantas e pequenas mos para esconder tantos colos ofegantes, colos fartos, e rostos, e cabelos,
vs me ilustrais com ramos e flores! Recomecemos. Mas - a est o hic! (Ri) Agora, falo latim! -
uma funo uma funo. No uma maneira de ser. Ora, bispo uma maneira de ser. E um
encargo. Um fardo. Mitras, rendas, tecidos de ouro e de pedrarias, genuflexes... A funo que v merda! (Crepitar de metralhadoras)
IRMA(Passando a cabea pela porta, entreaberta) - O senhor acabou?
O BISPO - Mas deixe-me, com os diabos. Suma-se. Estou me interrogando. (Irma torna a fechar a
porta) A majestade, a dignidade, iluminando minha pessoa, no encontram sua origem nas
atribuies da minha funo. - Tampouco, cus! em meus mritos pessoais. - A majestade, a
dignidade que me iluminam advm de um brilho mais misterioso: que o bispo precede-me. Falei-
te claro, espelho, imagem dourada, decorada como uma caixa de charutos mexicanos? E quero
ser bispo na solido, unicamente pela aparncia... E para destruir toda e qualquer funo, quero
trazer o escndalo e liquidar-te, puta, sacana, peidona e piranha...
IRMA(Voltando) - Agora, basta. preciso partir.
O BISPO - Vocs esto loucas, ainda no terminei. (As duas mulheres entraram)
IRMA - O senhor sabe que no estou procurando brigas para me divertir, mas no h tempo a
perder... Estou lhe repetindo que h perigo para todos permanecerem na rua. (Rudo de
metralhadora, ao longe)
O BISPO(Amargo) - Vocs esto pouco ligando para a minha segurana e quando tudo termina
vocs esto pouco ligando para o resto do mundo!
IRMA(Para a Mulher) - No lhe d ouvidos. Dispa-o. (Ao Bispo, que desceu de seus coturnos e
tem agora as dimenses normais de um ator, do mais banal dos atores)Ajude, o senhor est todo
tenso.
O BISPO(Com ar idiota) - Estou tenso? Tenso solene! Imobilidade definitiva...
IRMA(A Mulher) - D-lhe o casaco...
O BISPO(Olhando seus trapos que se amontoam pelo cho) - Ornamentos, rendas, atravs de
vs regresso a mim mesmo. Reconquisto um domnio. Bloqueio uma antiga praa-forte da qual
fora expulso. Instalo-me numa clareira onde, enfim, o suicdio possvel. O julgamento depende
de mim e eis-me aqui, frente a frente com minha morte.
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IRMA - bonito, mas preciso ir embora. O senhor deixou seu carro porta principal, perto do
pilar...
O BISPO(Para Irm) - J que o nosso Chefe de Polcia, este pobre incapaz, nos deixa massacrarpela gentalha! (Voltando-se para o espelho e declamando) Ornamentos! Mitras! Rendas! Capa
dourada, tu, principalmente tu, me protegeste do mundo. Onde esto minhas pernas, onde esto
meus braos? Que fazem minhas mos sob tuas abas de brocados, cintilantes? Inbeis para
qualquer coisa que no seja o esboo de um gesto flutuante tornaram-se cotos d asas - no de
anjos, mas de galinhas-dangola - capa austera, permites que no calor e na escurido se alimente
a mais terna, a mais luminosa doura. Minha caridade, que vai inundar o mundo, foi sob esta
carapaa que a destilei... Como uma faca, minha mo algumas vezes aparecia para abenoar? Ou
cortar, decepar? Cabea de tartaruga, minha mo afastava as abas. Tartaruga, ou vbora
prudente? E voltava gruta. Dentro, minha mo sonhava... Ornamentos, capas douradas... (O
cenrio se desloca da esquerda para a direita, como se penetrasse nos bastidores. Aparece ento
o quadro seguinte)
Segundo Quadro
Cenrio
Mesmo lustre. Trs biombos, marrons. Paredes nuas. Mesmo espelho, direita, no qual reflete-se
a mesma cama desfeita do primeiro quadro. Uma mulher, jovem e bela, parece algemada, punhos
atados. Sua roupa, de musselina, est esfarrapada. Os seios mostra. De p, diante dela, o
carrasco. um gigante, nu at cintura. Muito musculoso. Seu chicote passa por detrs da fivela
de seu cinto, pelas costas, como se tivesse um rabo. Um Juiz que, ao levantar-se, parecer
descomunal, tambm ele encompridado por andas, invisveis sob seu traje, e o rosto maquilado,
de bruos, rasteja em direo da mulher que aos poucos vai recuando.
A LADRA(Estendendo o p) - Ainda no! Lambe! Lambe primeiro... (O Juiz faz um esforo para
arrastar-se mais ainda, depois se levanta e, lentamente, penosamente feliz, vai sentar-se em um
escabelo. A ladra, esta mulher acima descrita, muda de atitude e, de dominadora, torna-se
humilde)
O JUIZ(Severo) - Ento voc uma ladra! Foi surpreendida... Quem? A polcia... Voc esquece
que uma rede sutil e slida, meus tiras de ao, controlam todos os seus gestos? Insetos de olhos
vivos, montados em seus tentculos, eles vigiam. A todas! E todas, prisioneiras, so trazidas ao
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tribunal... Que tem a declarar? Voc foi surpreendida... Sob sua saia... (Ao Carrasco) Passe-lhe a
mo por debaixo da angua, encontrar o famoso blso Canguru. ( ladra) Que voc enche com
tudo o que abafa sem nem escolher. Porque voc insacivel e neca de discernimento. Alm
disso, voc uma idiota... (Ao carrasco) Que que tinha nesse famoso bolso Canguru? Nesta
enorme pana?
O CARRASCO - Perfumes, Senhor Juiz, uma lanterna, uma lata de flit, laranjas, vrios pares de
meias, ourios, uma toalha, uma charpe.(Ao Juiz) O senhor est me ouvindo? Estou dizendo:
uma charpe.
O JUIZ(Sobressaltando-se) - Uma charpe? Ah, ah, ento isso. E para que, a charpe? Hein,
para qu? Estrangular algum? Responda. Estrangular quem? Voc uma ladra ou uma
estranguladora? (Muito doce, implorando) Diga, meu bem, suplico-lhe, diga que voc uma ladra.
A LADRA - Sim, Senhor Juiz!
O CARRASCO - No!
A LADRA(Olhando-o, espantada) - No?
O CARRASCO - Isso para depois.
A LADRA - Hein?
O CARRASCO - Estou dizendo: a confisso tem sua hora. Agora, negue.
A LADRA - Para ser mais espancada?
O JUIZ(Melfluo) - Justamente, meu bem: para ser espancada. Primeiro voc deve negar, depois
confessar e arrepender-se. De seus belos olhos quero ver jorrar a gua morna. Oh! Quero que
fique encharcada. Poder das lgrimas!... Onde est meu cdigo? (Procura sob sua toga e pegaum livro)
A LADRA - J chorei...
O JUIZ (Finge ler) - custa de pancadas. Quero lgrimas de arrependimento. Depois de v-la
molhada como um prado, estarei satisfeito.
A LADRA - No fcil. Ainda h pouco tentei chorar...
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O JUIZ (Deixando de ler, num tom semiteatral, quase familiar) - Voc bem jovem. nova?
(Preocupado) Mas no menor?
A LADRA - No, no senhor...
O JUIZ - Trate-me de Senhor Juiz. Desde quando est aqui?
O CARRASCO - Desde ontem, Senhor Juiz.
O JUIZ (Retomada do tom teatral e retomada da leitura) - Deixe-a falar. Gosto dessa voz sem
consistncia, dessa voz dispersa... Escute: preciso que voc seja uma ladra modelo se quiser
que eu seja um juiz modelo. Falsa ladra, torno-me um falso juiz. Est claro?
A LADRA - Est, Senhor Juiz.
O JUIZ(Continuando a ler) - Bem. At agora tudo bem. Meu carrasco espancou com fora... pois
tambm ele tem sua funo. Estamos ligados: voc, ele e eu. Por exemplo, se ele no
espancasse, como que eu poderia impedi-lo de espancar? Portanto, deve bater para que eu
intervenha e prove minha autoridade. E voc, deve negar para que ele bata... (Ouve-se um rudo:
alguma coisa deve ter cado no cmodo ao lado. Tom natural) Que foi? As portas esto bem
fechadas? Algum pode nos ver e nos ouvir?
O CARRASCO - No, no, esteja tranqilo. Puxei o ferrolho. (Vai examinar um enorme ferrolho na
porta do fundo) E o corredor est interditado.
O JUIZ(Tom natura) - Tem certeza?
O CARRASCO - Posso garantir. (Pe a mo no bolso) Posso dar uma tragada?
O JUIZ(Tom natural) - Fume, o cheiro de fumo me inspira. (Mesmo rudo de h pouco) Oh, mas o
que est acontecendo? O que est acontecendo? No posso ficar em paz? (Levanta-se) Mas oque ?
O CARRASCO (Seco) - Nada. Com certeza deixaram cair alguma coisa. o senhor que est
nervoso.
O JUIZ(Entonao natural) - possvel, mas este nervosismo que me esclarece. Mantm-me
acordado. (Levanta-se e aproxima-se do tabique) Posso olhar?
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O CARRASCO - Apenas uma olhadela porque j est f icando tarde.(O carrasco d de ombros,
pisca o olho para a ladra e esta faz o mesmo)
O JUIZ(Depois de ter olhado) - Est iluminado. Brilhando... mas vazio.
O CARRASCO(Dando de ombros) - Vazio!
O JUIZ(Com uma entonao ainda mais familiar) - Voc parece preocupado. Alguma novidade?
O CARRASCO - Esta tarde, pouco antes de sua chegada, trs pontos estratgicos caram em
mos dos revoltosos. Provocaram vrios incndios: Nenhum bombeiro acudiu. Tudo pegou fogo.
O Palcio...
O JUIZ - E o Chefe de Polcia? Deixando o barco correr, como de costume?
A LADRA - H quatro horas que no temos notcias dele. Se conseguir fugir, certamente vir para
c. Est sendo esperado a qualquer momento.
O JUIZ( ladra, sentando-se) - De qualquer maneira, que no tenha esperanas de atravessar a
ponte da Rainha - explodiu esta noite.
A LADRA - J sabamos. Daqui, ouvimos a exploso.
O JUIZ (Retomada do tom teatral. L no Cdigo) - Enfim, prossigamos. Assim, aproveitando-se do
sono dos justos, aproveitando-se do cochilo, voc avana, afana, abafa e arranca...
A LADRA - No, Senhor Juiz, jamais...
O CARRASCO - Baixo a lenha?
A LADRA(Gritando) - Arthur!
O CARRASCO - Que que h com voc? No se dirija a mim. Responda ao Senhor Juiz. E me
trate de Senhor Carrasco.
A LADRA - Est bem, Senhor Carrasco.
O JUIZ(Lendo) - Prossigo: voc roubou?
A LADRA - Roubei, sim, Senhor Juiz.
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O JUIZ(Lendo) - Bem. Agora responda depressa, e corretamente: que mais roubou?
A LADRA - Po, porque tinha fome.
O JUIZ (Levanta-se e deixa o livro) - Sublime! Funo sublime! Terei de julgar tudo isto. Oh,
menina, voc me reconcilia com o mundo. Juiz! Serei Juiz de seus atos! de mim que dependem
a balana, o equilbrio. O mundo uma ma, corto-a em dois: os bons e os maus. E voc aceita,
obrigado, voc aceita ser a m! (De frente para o pblico) Estou diante de vs: mos vazias,
bolsos vazios, arranquem a podrido e joguem-na fora! Mas um ofcio penoso. Se cada
julgamento fosse pronunciado com seriedade, me custaria a vida. E por isso que estou morto. Vivo
nesta regio da exata liberdade. Rei dos Infernos, peso os que esto mortos, como eu. Voc est
morta como eu.
A LADRA - O senhor me d medo.
O JUIZ(Com muita nfase) - Cale-se. Nas profundezas do Inferno, separo os humanos que por l
se aventuram. Uns para as chamas, outros para os campos de lilases. Tu, ladra, espi, cadela,
Minos te fala, Minos te pesa. (Ao Carrasco) Crbero?
O CARRASCO(Imitando cachorro) - Au, au!
O JUIZ - s belo. E a presena de uma nova vtima te embeleza ainda mais. (Levanta-lhe os
lbios) Mostra tuas presas terrveis. Brancas.(De repente, parece preocupado. ladra) Espero
que no esteja mentindo. Voc realmente praticou estes roubos?
O CARRASCO - No se preocupe. Ela nem precisava pensar em no fazer. Eu a arrastaria at l.
O JUIZ - Estou quase chegando. Continue. Que roubou? (Subitamente, um crepitar de
metralhadora) Isto no acaba nunca. Nem uma trgua.
A LADRA - J lhe disse: a revolta dominou quase toda a zona Norte...
O CARRASCO - Cale a boca.
O JUIZ (Irritado) - Vai responder-me, sim ou no? Que mais roubou? Onde? Quando? Como?
Quanto? Por qu? Para quem? Responda.
A LADRA - Muitas vezes penetrei nas casas durante a ausncia das criadas, passando pela
escada de servio... Roubava nas gavetas, quebrava o cofre das crianas. (Procura as palavras)
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Uma vez, vesti-me de mulher honesta. Pus um tailleur marrom, um chapu de palha preto com
cerejas, um vu, e um par de sapatos pretos - de salto cubano - e ento, entrei...
O JUIZ(Apressadamente) - Onde? Onde? Onde? Onde -onde -onde? Onde entrou?
A LADRA - No sei mais, desculpe.
O CARRASCO - Bato?
O JUIZ -Ainda no. ( moa) Onde entrou? Diga-me, onde?
A LADRA(desorientada) - Juro, no sei mais.
O CARRASCO - Bato, Senhor Juiz, bato?
O JUIZ (Ao carrasco e aproximando-se dele) - Ah! Ah! Seu prazer depende de mim. Gosta de
bater, hein? Estou satisfeito, Carrasco! Magistral amontoado de carne, quarto de lombo que uma
simples palavra minha bastante para fazer mover-se.(Simula mirar-se no carrasco) Espelho que
me glorifica! Imagem que posso tocar, eu te amo. Eu nunca teria fora nem jeito para deixar
lanhos de fogo em suas costas. Alis, que poderia fazer com tanta fora e jeito? (Toca-o) Ests
a? Ests a, meu brao enorme, pesado demais para mim, grosso demais, gordo demais para
meu ombro e que, sozinho, caminha a meu lado! Brao, peso de carne, sem ti eu no seria nada...
(A ladra) Sem voc tambm no, menina. Vocs so meus dois complementos perfeitos... Ah, que
belo trio formamos! (A ladra) Mas voc tem um privilgio em relao a ele; alis, em relao a mim
tambm: o da anterioridade. Meu ser Juiz uma emanao de seu ser ladra. Bastaria que voc
recusasse... mas no se atreva!... que voc recusasse a ser quem - o que , logo, quem - para
que eu deixe de existir... desaparea, evaporado. Estourado. Volatilizado. Negado. Donde: o Bem
proveniente do... Ento? Ento? Voc no recusar, no mesmo? No recusar ser ladra? Seria
errado. Seria criminoso. Voc me impediria de ser! (Implorando) Diga, meu bem, meu amor, voc
no recusar?
A LADRA(Dengosa) - Quem sabe?
O JUIZ - Como? Que est dizendo? Recusaria? Diga-me onde. E diga-me tambm o que roubou.
A LADRA(Seca, erguendo-se) - No.
O JUIZ - Diga-me onde. No seja cruel.
A LADRA - No me chame de voc, sim?
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O JUIZ - Senhorita... Senhora. Peo-lhe. (Ajoelha-se) Veja, suplico-lhe. No me deixe nesta
posio, esperando para ser juiz. Se no houvesse juiz, onde iramos parar? Mas se no
houvesse ladres...
A LADRA(Irnica) - E se no houvesse?
O JUIZ - Seria terrvel. Mas a senhora no far isto comigo, no ? Que no existam!
Compreenda: que voc se esconda tanto tempo quanto puder e meus nervos agentarem por trs
da recusa de confessar; que, maliciosamente, voc me faa perecer, tripudiar, se quiser, agitar,
babar, suar, relinchar de impacincia, rastejar... quer que eu rasteje?
O CARRASCO(Ao Juiz) - Rasteje!
O JUIZ - Sinto-me orgulhoso!
O CARRASCO(Ameaador) - Rasteje! (O Juiz, que estava ajoelhado, deita-se de bruos e rasteja
suavemente em direo ladra. medida que avanar rastejando, a ladra recuar) Est certo.
Continue.
O JUIZ( ladra) - justa, sua tratante, fazer-me rastejar em busca de meu ser de Juiz, mas se
voc recusasse definitivamente, seria criminoso, sua safadinha...
A LADRA(Altaneira) - Trate-me de senhora e queixe-se polidamente.
O JUIZ - Obteria o que desejo?
A LADRA(Coquete) - Custa caro roubar.
O JUIZ - Eu pago! Eu pago o que for preciso, minha senhora. Porque se no tivesse mais que
separar o Bem do Mal, para que serviria eu? Responda.
A LADRA - o que me pergunto.
O JUIZ(Infinitamente triste) - H pouco ia ser Minos. Meu Crbero latia. (Ao carrasco) Voc se
lembra? (O carrasco interrompe o juiz jazendo estalar o chicote) Como voc era cruel, mau! Bom!
E eu, impiedoso. Ia encher os Infernos de condenados, encher as prises. Prises! Prises!
Prises, calabouos, lugares abenoados onde o mal impossvel porque so a encruzilhada de
toda a maldio do mundo. No se pode cometer o mal no mal. Agora, no condenar o que mais
desejo, julgar.(Tenta reerguer-se)
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O CARRASCO - Rasteje! E rpido, que tenho de me vestir.
O JUIZ( moa) - Minha senhora! Minha senhora, aceite, peo-lhe. Estou pronto a lamber seus
sapatos com minha lngua, mas diga-me que uma ladra...
A LADRA (Num grito) - Ainda no! Lambe! Lambe! Lambe primeiro! (O cenrio se desloca da
esquerda para a direita, como no fim do quadro precedente, e penetra nos bastidores da direita.
Ao longe, crepitar de metralhadoras)
Terceiro Quadro
Cenrio
Trs biombos na mesma disposio dos precedentes, mas verde-escuros. O mesmo lustre. O
mesmo espelho refletindo a cama desfeita. Numa poltrona, um cavalo desses que so usados
pelos bailarinos folclricos - com um saiote pregueado. No aposento, um senhor, de aparncia
tmida. o General. Tira o palet, depois o chapu-de-cco e as luvas. Irma est perto dele.
O GENERAL (Mostra o chapu, o palet e as luvas) - Que no fiquem por a.
IRMA - Sero dobrados, embrulhados...
O GENERAL - Que desapaream.
IRMA - Vou guard-los. E at queim-los.
O GENERAL -Ah, sim, mesmo, gostaria que queimassem! Como as cidades, ao crepsculo.
IRMA - O senhor notou alguma coisa no caminho?
O GENERAL - Passei por grandes perigos. O populacho explodiu barreiras, e bairros inteiros
esto inundados. Principalmente o arsenal, de modo que as munies ficaram molhadas. E as
armas enferrujaram. Tive de me desviar bastante - contudo, no tropecei em nenhum afogado.
IRMA - Eu no me permitiria indagar sobre suas opinies. Todo mundo livre e eu no meenvolvo em poltica.
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O GENERAL - Ento, falemos de outra coisa. O importante saber de que maneira sairei desta
casa. Ser tarde quando...
IRMA -A propsito de tarde...
O GENERAL - verdade. (Procura no bolso, retira algumas cdulas, conta e entrega a Irma que
as conserva nas mos) Eu no estou para ser abatido no escuro, quando sair. Porque,
naturalmente, no haver ningum para me acompanhar...
IRMA - Creio que no, infelizmente. Arthur no est livre. (Um longo silncio)
O GENERAL(Subitamente impaciente) - Mas... ela no vem?
IRMA - No sei o que estar fazendo. Recomendei que tudo estivesse pronto sua chegada. O
cavalo j est a... Vou chamar.
O GENERAL - Deixe que eu fao. (Toca a campainha) Gosto de tocar a campainha! D
autoridade! Ah, o sinal de ataque!
IRMA - Daqui a pouco, meu General. Oh, desculpe, j estou lhe conferindo a patente... Daqui a
pouco o senhor ir...
O GENERAL - Piss! No fale nisso.
IRMA - O senhor tem uma fora, uma juventude! Uma petulncia!
O GENERAL - E esporas: Terei esporas? Pedi que as prendessem nas botas. Botas acaju, no ?
IRMA - Sim, meu General. Acaju. De verniz.
O GENERAL - De verniz, est bem, mas com lama.
IRMA - Lama e talvez um pouco de sangue. Mandei preparar as condecoraes.
O GENERAL -Autnticas?
IRMA -Autnticas.(De repente, um longo grito de mulher)
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O GENERAL - O que ? (Quer aproximar-se da parede da direita e j se abaixa para olhar, mas
Irma intervm)
IRMA - No nada. H sempre imprevisto de um lado e de outro.
O GENERAL - E este grito? Um grito de mulher. Um chamado de socorro, quem sabe?
IRMA(Glacial) - Aqui, nada de complicaes, acalme-se. Por enquanto, o senhor est paisana.
O GENERAL - verdade. (Novo grito de mulher) Mesmo assim, perturba. Alm disso, atrapalha.
IRMA - Mas o qu estar fazendo? (Vai tocar a campainha, mas pela porta do fundo entra uma
jovem muito bonita, ruiva, cabelos soltos, despenteados. Seu colo est quase nu. S usa um
corpete preto, meias pretas e sapatos de saltos muito altos. Traz um uniforme completo de
General, mais a espada, o chapu de dois bicos e as botas)
O GENERAL(Com severidade) - Finalmente, chegou. Com meia hora de atraso. o quanto basta
para perder uma batalha.
IRMA - Ela compensar, meu General. Eu a conheo.
O GENERAL(Olhando as botas) - E o sangue? No vejo sangue!
IRMA - Secou. No se esquea de que o sangue de suas batalhas de outrora. Bem, vou deix-
los. Tm tudo que precisam?
O GENERAL(Olhando direita e esquerda) - A senhora esquece...
IRMA - Meu Deus! verdade, ia me esquecendo.(Coloca sobre a cadeira as toalhas que trazia no
brao. Depois sai pelo fundo. O General vai at porta, fechando-a chave. Mas to logo a porta
fechada, ouve-se bater. A moa vai abrir. Atrs, e ligeiramente contrado, o carrasco, suando,enxugando-se com uma toalha)
O CARRASCO - Madame Irma est a?
A MOA(Seca) - No Roseiral. (Corrigindo-se) Perdo, na Capela Ardente.(Fecha a porta)
O GENERAL(Aborrecido) - Espero que me deixem em paz. E ests atrasado, que fazias? No te
deram a rao de aveia? Sorris? Sorris a teu cavaleiro? Reconheces sua mo, suave e segura?
(Agrada-a) Meu bravo corcel! Bela gua! Juntos, galopamos tanto!
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A MOA - E no s! Quero ganhar o mundo com minhas patas nervosas, meus cascos
ferrados. Tire as calas e os sapatos, para que eu possa vesti-lo.
O GENERAL (Tomou da chibata) - Sim, mas primeiro de joelhos! De joelhos! Vamos, vamos,dobra teus jarretes, dobra... (A moa empina, solta um relincho de prazer e se ajoelha como um
cavalo de circo diante do General) Bravo! Bravo, minha pombinha! No te esqueceste de nada. E
agora, vais me ajudar e responder s minhas perguntas. E perfeitamente natural que uma boa
potranca ajude seu dono a desabotoar-se, atirar as luvas, e que lhe responda de fio a pavio.
Ento, comea desamarrando meus cordes. (Durante toda a cena que se seguir a moa ajudar
o General a despir-se e, depois, a vestir-se de General. Quando este estiver completamente
vestido, ver-se- que assumiu propores gigantescas, graas a uma trucagem teatral: andas
invisveis, ombros ampliados, rosto maquilado com exagero)
AMOA - Continua com o p esquerdo inchado?
O GENERAL - Sim. o p da sada. o que tripudia. Como a tua pata, quando ests contente.
AMOA - Mas o que que estou fazendo? Desabotoe-se o senhor.
O GENERAL - Voc cavalo ou analfabeta? Se for cavalo, balance a cabea. Ajude-me. Puxe.
Puxe com menos fora, voc no burro de carga.
AMOA - Fao o que devo.
O GENERAL - Revolta-se? J? Espere que esteja pronto. Quando passar-lhe o freio pela boca...
AMOA - Ah, no, isso no.
O GENERAL - Um General sendo repreendido por seu cavalo! Ter o freio, a rdea, os arreios, a
barrigueira, e eu, de botas, de capacete, chicoteio, ataco!
AMOA - O freio terrvel. Faz sangrar as gengivas e a comissura dos lbios. Vou babar sangue.
O GENERAL - Espumar rosa e peidar fogo! Mas que galope! Pelos campos de centeio, pelos
campos de alfafa, pelos prados, caminhos empoeirados, pelos montes, deitados ou de p, da
aurora ao crepsculo, e do crepsculo...
AMOA - Ponha a camisa para dentro. Puxe as alas. No pouca coisa vestir um General
vencedor e que vai ser enterrado. Quer o sabre?
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O GENERAL - Que permanea sobre a mesa, como o de Lafayette. Bem em evidncia, mas
esconda as roupas. Onde, no sei, mas deve existir um esconderijo previsto em algum lugar.(A
moa faz um pacote com as roupas e as esconde atrs da poltrona) A tnica? Bem. Todas as
medalhas esto a? Conte.
AMOA(Aps haver contado, muito depressa) - Todas, meu General.
O GENERAL - E a guerra? Onde est a guerra?
AMOA(Muito suave) - Aproxima-se, meu General. noite num campo de macieiras. O cu est
calmo e rseo. Uma sbita paz - o queixume das pombas - banha aterra, precedendo os
combates. O ar suave. Um fruto caiu sobre a relva. E uma pinha. As coisas prendem sua
respirao. A guerra foi declarada. O tempo est bom...
O GENERAL -Mas de repente?
A MOA - Estamos beira do prado. Contenho-me para no dar coices, nem relinchar. Suas
coxas esto mornas e voc comprime meu flanco. A morte...
O GENERAL - Mas de repente?...
AMOA - A morte atenciosa. Dedo aos lbios, ela, ela, ela que convida ao silncio. Uma
bondade derradeira ilumina as coisas. Voc j est mais atento minha presena...
O GENERAL -Mas de repente?
AMOA - Abotoe-se sozinho, meu General. A gua estava imvel nos audes. O prprio vento
esperava por uma ordem para enfunar as bandeiras...
O GENERAL - Mas de repente?...
AMOA - De repente? Hein? De repente? (Parece procurar as palavras) Ah, sim, de repente,
ferro e fogo! As vivas! Foi preciso tecer quilmetros de crepe para colocar nos estandartes. Sob
seus vus, as mes e as esposas conservavam os olhos secos. Os sinos rolavam dos
campanrios bombardeados. Dobrando uma rua, um lenol azul assustou-me: empinei, mas,
domado pela sua mo doce e pesada, meu tremor passou. Prossegui. Como eu te amava, meu
heri!
O GENERAL - Mas... os mortos? No havia mortos?
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AMOA - Os soldados morriam beijando o estandarte. Voc era todo vitrias e bondade. Uma
tarde, lembra-se...
O GENERAL - Eu estava to leve que me pus a nevar. A nevar sobre meus homens, a sepult-lossob o mais terno dos sudrios. A nevar. Berezina!
AMOA - Os estilhaos de granadas lanhavam os limes. Enfim, a morte agia. De um a outro,
gil, cavando uma chaga, apagando um olho, arrancando um brao, abrindo uma artria,
chumbando um rosto, cortando bruscamente um grito, um canto, a morte no agentava mais.
Finalmente, cansada, ela prpria morta de cansao, descansou, leve, sobre os seus ombros.
Adormeceu.
O GENERAL (brio de alegria) - Pare, pare, ainda no chegou o momento, mas sinto que ser
magnfico. O talabarte? Perfeito.(Olha-se no espelho) Austerlitz! General! Homem de guerra e de
parada, eis-me na minha aparncia mais pura. Nada, no deixo para trs nenhum contingente.
Simplesmente, apareo. Se atravessei guerras sem morrer, se atravessei as misrias, sem morrer,
se fui promovido sem morrer, foi para este minuto prximo morte. (Subitamente pra, uma idia
parece preocup-lo) Diga-me, Pombinha...
AMOA - O qu, meu senhor?
O GENERAL - Onde est o Chefe de Polcia, a quantas anda? (A moa faz com a cabea um
sinal negativo) Nada? Sempre na mesma? Em suma, tudo lhe escapa entre os dedos. E ns,
perdemos nosso tempo?
A MOA (Imperiosa) - Em absoluto. E de qualquer modo, no de nossa conta. Continue. O
senhor dizia: para ste minuto prximo morte... e depois?
O GENERAL (Hesitando) - ...prximo morte... onde no serei nada, nada alm de minha
imagem, muito embora refletida ao infinito nestes espelhos... Tens razo, penteia tua crina.Escova-te. Exijo uma potranca bem vestida. Assim, daqui a pouco, ao chamado das trombetas,
vamos descer -eu te cavalgando- ao encontro da glria e da morte, pois vou morrer. Trata-se
realmente de uma descida sepultura...
AMOA - Mas, meu General, o senhor est morto desde ontem.
O GENERAL - Eu sei... mas de uma descida solene e pitoresca, por inesperadas escadas...
AMOA - O senhor um General morto, mas eloqente.
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O GENERAL - Porque morto, cavalo tagarela. O que fala, e com voz to bela, o Exemplo. No
sou mais que a imagem daquele que fui. Agora, tua vez. Vais baixar a cabea e esconder os olhos
pois quero ser general na solido. Nem mesmo para mim, mas para minha imagem, e minha
imagem para sua imagem, e assim sucessivamente. Em suma, estaremos entre iguais. Pombinha,ests pronta? (A moa sacode a cabea) Ento, vem. Veste tua roupa baia, cavalo, meu belo
genetde Espanha. (O general passa-lhe o cavalo de brinquedo por cima da cabea. Depois faz
estalar seu chicote) Salve! (Sada sua imagem no espelho) Adeus, meu general! (Depois se
estende na poltrona, os ps sobre a cadeira, e cumprimenta o pblico conservando-se to rgido
quanto um cadver. A moa coloca-se diante da cadeira e, neste mesmo lugar, esboa os
movimentos de um cavalo andando)
AMOA(Solene e triste) - O desfile comeou... Atravessamos a cidade... seguindo o rio. Estou
triste... O cu est cerrado. O povo chora um heri, to belo, morto na guerra...
O GENERAL(Sobressaltando-se) - Pombinha!
AMOA(Desviando-se, em prantos) - Meu general?
O GENERAL -Acrescenta que morri de p! (Depois retoma sua pose)
AMOA - Meu heri morreu de p! O desfile continua. Seus oficiais subalternos precedem-me...
Depois, venho eu, Pombinha, cavalo de batalha... A banda militar toca uma marcha fnebre... (A
moa canta - caminhando imvel - a Marcha fnebre de Chopin que uma orquestra invisvel, com
cobres, continua. Ao longe, um crepitar de metralhadoras)
Quarto Quadro
Cenrio
um quarto cujos trs painis visveis so trs espelhos nos quais est refletido um velhote
maltrapilho, mas bem penteado, imvel no meio do recinto. Perto dele, indiferente, uma moa
ruiva muito bonita. Colete de couro, botas de couro. Coxas nuas e belas. Jaqueta de pele. Espera.
O velhote tambm. Est impaciente, nervoso. A moa, imvel. O velhote, tremendo, tira suas luvas
furadas. Retira do bolso um leno branco e enxuga-se. Tira os culos. Dobra-os e coloca-os num
estojo, em seguida pe o estojo no bolso. Enxuga as mos com um leno. Todos os gestos do
velhote refletem-se nos trs espelhos. Portanto, so necessrios trs atores para representar os
reflexos. Finalmente, ouvem-se trs pancadas na porta do fundo. A moa ruiva aproxima-se. Diz:
"0 que ?". Irma estende o brao que segura uma palmatria e uma peruca muito suja edesgrenhada. A moa pega-as e a porta torna a fechar-se. A fisionomia do velhote se ilumina.A
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moa ruiva tem um ar exageradamente altivo e cruel. Pe a peruca na cabea do velhote, com
brutalidade.O velho tira do bolso um pequeno buqu de flores artificiais. Segura-o como se fosse
oferec-lo moa que o chicoteia e arranca o buqu com a palmatria. A fisionomia do velhote se
ilumina com doura. Muito perto, crepitar de metralhadoras. O velhote toca a peruca.
O VELHO - E os piolhos?
A MOA(Muito vulgar) - Esto a.
Quinto Quadro
CenrioO quarto de Irma. Muito elegante. o mesmo quarto que se via refletido nos espelhos dos trs
primeiros quadros. O mesmo lustre. Longas rendas caindo do urdimento. Trs poltronas. Um vo
esquerda. Perto dele um aparelho que permite a Irma ver o que se passa em seus sales. Porta
direita. Porta esquerda. Irma est fazendo suas contas, sentada penteadeira. Perto dela uma
moa: Carmen. Um crepitar de metralhadora.
CARMEN(contando) - Dois mil do Bispo... dois mil do Juiz... (Levanta a cabea) No, madame,
tudo na mesma. Nada de Chefe de Polcia.
IRMA(Aborrecida) - Vai chegar, se que chega... e chega que nem uma fera! E, no entanto...
CARMEN - Eu sei: no mundo, tudo necessrio. Mas nada de Chefe de Polcia. (Volta a contar)
Dois mil do General... dois mil do marinheiro... trs do garoto...
IRMA - J lhe disse, Carmen, no gosto disso. Exijo respeito aos visitantes. Vi-si-tan-tes! Nem
mesmo eu (Acentua esta palavra) ouso cham-los de clientes. E, no entanto...(Faz estalar, de
maneira acintosa, as cdulas novas de mil que segura na mo)
CARMEN(Dura. Voltou-se e fixa Irma) - Para a senhora, sim: o tutu e o requinte!
IRMA(Tentando conciliar) - Estes olhos! No seja injusta. Voc tem andado irritada. Os ltimos
acontecimentos nos deixaram com os nervos flor da pele, mas tudo isto vai passar. E o sol
voltar a brilhar. O Sr. Georges...
CARMEN (Mesmo tom de antes) - Ah, este!
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IRMA - No fale mal do Chefe de Polcia. Sem ele, estaramos em maus lenis. Sim, ns, porque
voc est ligada a mim. E a ele.(Longo silncio) E principalmente sua tristeza que me preocupa.
(Douta) Voc est mudada, Carmen. E mesmo antes que a revolta comeasse...
CARMEN - J no tenho tanto que fazer aqui, Madame Irma.
IRMA (Desconcertada) - Mas... eu lhe entreguei a contabilidade. Voc se instalou em meu
escritrio e, de repente, minha vida inteirinha abriu-se diante de voc. No tenho mais segredos, e
mesmo assim no est contente?
CARMEN - Claro, agradeo-lhe a confiana, mas... no a mesma coisa.
IRMA - "Aquilo" lhe faz falta? (Silncio de Carmen) Ora, Carmen, quando voc subia ao rochedo
coberto de neve com uma roseira florida de papel amarelo - que, alis, devo tornar a guardar no
poro - e o devoto desmaiava ante a sua apario, voc no estava se levando a srio, no ?
Diga, Carmen... (Curto silncio)
CARMEN - Quando as nossas sesses terminam, a senhora nunca permite que se comente e por
isso desconhece os nossos verdadeiros sentimentos. A senhora observa tudo de longe, patroa,
mas se alguma vez a senhora pusesse o vestido e o vu azul, ou fosse a penitente sedutora, ou a
gua do general, ou a camponesa currada no palheiro...
IRMA(Chocada) - Eu!
CARMEN - Ou a empregadinha de avental rosa, ou a arquiduquesa deflorada pelo guarda, ou...
enfim, no preciso dar a lista completa, a senhora saberia o que isto custa e que necessrio
compensar com um pouco de ironia. Mas nem entre ns a senhora deixa que se fale sobre o
assunto. A senhora tem medo de um sorriso, de uma pilhria.
IRMA(Muito severa) - verdade, eu no gosto que se brinque. Um acesso de riso, ou mesmo um
sorriso, pe tudo a perder. Se h sorriso, h dvida. Os clientes querem cerimnias graves. Comsuspiros. Minha casa um lugar severo. Permito que vocs joguem cartas.
CARMEN - Ento no se espante com nossa tristeza. (Pausa) Penso em minha filha.(Irma
levanta-se, pois ouviu um toque de campainha, e dirige-se quele estranho mvel situado
esquerda, espcie de aparelho munido de um visor, de um fone e de um grande nmero de
alavancas. Enquanto fala, baixa uma alavanca e espia pelo visor)
IRMA - Cada vez que lhe fao uma pergunta mais ntima voc amarra a cara e me vem com sua
filha. Voc ainda insiste em visit-la? Mas, no seja idiota, entre a nossa casa e a da ama de leite
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l na roa existe o fogo e a gua, a revolta e as balas. Eu at me pergunto se ...(Novo toque de
campainha. Madame Irma levanta uma alavanca e abaixa outra)...se o Sr. Georges no foi
liquidado no caminho. Se bem que um Chefe de Polcia saiba se proteger.(V as horas num
relgio que tira de seu corpete) Est atrasado. (Parece preocupada) Ou ento teve medo de sair.
CARMEN - Para chegar a seus sales, estes senhores atravessam o fogo das metralhadoras sem
medo. Eu, para ver minha filha...
IRMA - Sem medo? Com um temor que os excita. Por trs do muro de fogo e de ferro, com as
narinas dilatadas, eles farejam a orgia. Vamos voltar s nossas contas, est bem?
CARMEN(Aps um silncio) - No total, contando o marinheiro e os atendimentos mais simples, d
trinta e dois mil.
IRMA - Quanto mais se mata nos subrbios, mais os homens vm correndo para os meus sales.
CARMEN - Os homens?
IRMA(Depois de uma pausa) - Alguns. Atrados por meus espelhos e meus lustres, sempre os
mesmos. Para os outros, o herosmo substitui a mulher.
CARMEN(Amarga) - A mulher?
IRMA - Como que vou chamar vocs, minhas grandes, compridas criaturas estreis? Eles
nunca fecundam vocs. E, no entanto... se vocs no estivessem aqui...
CARMEN -A senhora tem suas diverses, Madame Irma.
IRMA - Cale-se. este jogo glacial a causa de minha tristeza e de minha melancolia. Felizmente
tenho minhas jias. Correndo perigo, alis. (Sonhadora) Tenho minhas diverses... e voc, as
orgias de seu corao...
CARMEN - Isso no resolve nada, patroa. Minha filha gosta de mim.
IRMA - Voc a princesa distante que vai v-la com brinquedos e perfumes: Ela pe voc no cu.
(Rindo com estardalhao) Ah, isto demais, pensar que para algum o Inferno que meu bordel
possa parecer o Cu! o Cu para sua garota! (Ri) Mais tarde voc far dela uma puta?
CARMEN - Madame Irma!
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IRMA - verdade. Devo deix-la em seu bordel secreto, seu prostbulo precioso e cor-de-rosa, em
seu puteiro sentimental... Voc me acha cruel? Esta revolta tambm me abalou os nervos. Sem
que voc perceba, atravesso perodos de medo, de pnico... Tenho a impresso de que a revolta
no visa a tomada do Palcio Real, mas a pilhagem de meus sales. Tenho medo, Carmen. No
entanto, j tentei tudo, cheguei at a rezar. (Sorri com esforo) Como o seu penitente. Estoumagoando voc?
CARMEN(Decidida) - Duas vezes por semana, s teras e s sextas, tinha de ser Nossa Senhora
de Lourdes e aparecer a um contador do Banco da Provncia. Para a senhora era dinheiro em
caixa e a justificativa do bordel; para mim era...
IRMA(Espantada) - Voc aceitou. No parecia zangada...
CARMEN - Eu era feliz.
IRMA - E ento? Onde est o mal?
CARMEN - Vi o efeito que causava sobre o meu contador. Vi seus transes, seus suores, ouvi seus
estertores...
IRMA - Basta. Ele no vem mais. Me pergunto por qu. Talvez o perigo, ou, quem sabe, sua
mulher descobriu. (Pausa) Ou morreu. Cuide das minhas contas.
CARMEN - Sua contabilidade nunca substituir minha apario. Tornara-se to verdadeiro quanto
em Lourdes. Agora, s me preocupo com minha filha, madame Irma. Ela est num verdadeiro
jardim...
IRMA - Voc ter muita dificuldade em ir a seu encontro e daqui a pouco o jardim estar em seu
corao.
CARMEN - Cale-se!
IRMA(Inexorvel) - A cidade est cheia de cadveres. Todos os caminhos esto impedidos. Os
camponeses tambm aderiram. o caso de se perguntar o porqu. Contgio? A revolta uma
epidemia. Tem o mesmo carter fatal e sagrado. De qualquer maneira, vamos ficar cada vez mais
isolados. Os revoltosos odeiam o Clero, o Exrcito, a Magistratura, e a mim, Irma, cafetina e dona
de prostbulo. Voc ser morta, estripada, e sua filha adotada por um virtuoso rebelde. E o que
nos espera, a todos. (Arrepia-se. De repente, um toque de campainha. Irma corre ao aparelho,
olha e escuta como h pouco) Salo 24, o salo das Areias. Que est acontecendo? (Espia,
preocupada. Longo silncio)
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CARMEN(Sentara-se penteadeira de Irma e retomava as contas. Sem levantar a cabea) - A
Legio?
IRMA(Sempre com o olho colado no dispositivo) - Sim. o Legionrio herico que cai nas areias.E Rachel lanou-lhe um dardo orelha, a idiota. Podia ficar desfigurado. Tambm, que idia,
deixar-se alvejar por um rabe e morrer - se que se pode dizer assim! -, ao sinal de "cuidado",
sobre um monto de areia! (Uma pausa. Olha com ateno) Ah, Rachel est cuidando dele.
Prepara um curativo e parece que ele est contente. (Muito interessada) Veja, mas isso lhe
agrada. Tenho a impresso de que gostaria de mudar o cenrio e que de hoje em diante vai
morrer no hospital militar, abraado com uma enfermeira... Tenho de comprar um novo uniforme.
Mais despesas. (De repente, preocupada) Bem, isso no me agrada. Nem um pouco. Rachel me
preocupa cada vez mais. Que ela no me v fazer o mesmo que Chantal. (Voltando-se para
Carmen) Por falar nisso, alguma notcia de Chantal?
CARMEN - Nenhuma.
IRMA (Retoma o aparelho) - E este aparelho que no funciona direito! O que que ele est
dizendo? Ele explica... ela ouve... ela compreende. Tenho medo que ele tambm
compreenda.(Novo toque de campainha. Abaixa outra alavanca e olha) Falso alarme. o
bombeiro que vai embora.
CARMEN - Qual?
IRMA - O verdadeiro.
CARMEN - Qual o verdadeiro?
IRMA - O que conserta as torneiras.
CARMEN - O outro falso?
IRMA (D de ombros. Aperta a primeira alavanca) - Ah, exatamente o que eu dizia: as trs ou
quatro gotas de sangue de sua orelha bastaram para inspir-lo. Agora deixa-se ninar. Amanh de
manh estar em forma para ir sua embaixada.
CARMEN - Ele casado, no ?
IRMA - Via de regra, no gosto de falar da vida particular de meus visitantes. O Grande Balco
conhecido no mundo inteiro. E a casa de iluses mais honesta e mais sbia...
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CARMEN - Honesta?
IRMA - Discreta. Mas, para falar com franqueza, sua indiscreta: so quase todos casados .(Pausa)
CARMEN (Pensativa) - Quando esto com suas esposas, a quem amam, ser que eles ainda
guardam uma vaga, uma pequena lembrana das suas festas num bordel?...
IRMA(Chamando-a ordem) - Carmen!
CARMEN - Desculpe, madame... em uma casa de iluses. Eu dizia: eles ainda guardam uma
vaga, uma pequena lembrana das suas festas numa casa de iluses? Minscula, longnqua, no
fundo de suas cabeas, mas presente?
IRMA - possvel, meu bem. Elas devem existir. Como uma lanterna esperando o prximo So
Joo, ou, se preferir, como uma luz imperceptvel de um imperceptvel castelo que, de repente,
podem ampliar, todas as vezes que quiserem descansar.(Crepitar de metralhadoras) Voc est
ouvindo? Eles se aproximam. Eles querem me destruir.
CARMEN (Prosseguindo em seu pensamento) - No entanto, deve ser agradvel uma casa de
verdade...
IRMA (Cada vez mais assustada) - Vo conseguir cercar o prostbulo antes da chegada do Sr.
Georges. Se conseguirmos escapar, uma coisa no se deve esquecer: que as paredes no
esto suficientemente forradas, as janelas mal calafetadas... Ouve-se tudo que se passa na rua.
Portanto na rua deve-se ouvir o que se passa dentro de casa...
CARMEN (Sempre pensativa) - Numa verdadeira casa deve ser agradvel...
IRMA - Quem sabe? Mas Carmen, se minhas meninas comeam a ter essas idias, a runa do
bordel! Acredito, realmente, que voc sinta falta de sua apario. Olhe, posso fazer alguma coisapor voc. Eu tinha prometido a Regine, mas agora dou a voc. Se voc quiser, naturalmente.
Ontem me pediram, por telefone, uma santa Teresa... (Pausa) Ah, evidentemente, de Nossa
Senhora a santa Teresa uma decadncia; mas tambm no to ruim assim... (Silncio) No
diz nada? para um banqueiro. Muito limpo, sabe? Nada exigente. Dou para voc. Se os
revoltosos forem massacrados, claro.
CARMEN - Eu gostava do meu vestido, do meu vu e da minha roseira.
IRMA - Na "Santa Teresa" tambm h uma roseira. Considere.(Silncio)
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CARMEN - E qual o detalhe autntico?
IRMA - O anel. Porque ele previu tudo. O anel de casamento. Voc sabe, que cada religiosa usa
uma aliana, como esposa de Deus. Claro. E assim que ele saber que est lidando com umaverdadeira religiosa.
CARMEN - E o detalhe falso?
IRMA - quase sempre o mesmo: rendas negras sob a saia de l. Ento, quer? Voc tem a
doura que ele gosta, ficar contente.
CARMEN - muito gentil de sua parte pensar nele.
IRMA - Eu penso em voc.
CARMEN - Era sem ironia que eu falava que a senhora gentil. A favor de sua casa, pode-se
dizer que ela traz consolo, madame Irma. A senhora monta e prepara seus teatros clandestinos...
A senhora tem os ps na terra. A prova que a senhora fatura. Quanto a eles... o despertar deve
ser brutal. Logo que acaba preciso comear tudo de novo.
IRMA - Felizmente, para mim.
CARMEN - ...Comear tudo de novo, e sempre a mesma aventura. Da qual gostariam de nunca
sair.
IRMA - Voc no entende nada disso. Eu vejo nos olhos deles: depois, tudo se torna claro.
Subitamente compreendem a matemtica. Gostam de seus filhos e de sua ptria. Como voc.
CARMEN (Empertigando-se) - Filha de oficial superior...
IRMA - Eu sei. sempre preciso ter uma dessas no bordel. Mas lembre-se Que General, Bispo e
Juiz esto na vida...
CARMEN -A senhora est falando de quais?
IRMA - Dos verdadeiros.
CARMEN - Quais so os verdadeiros? Os nossos?
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IRMA - Os outros. Na vida so suportes de uma ostentao que devem arrastar pela lama do real
e do quotidiano. Aqui, a Comdia, a Aparncia mantm-nas puras, a Festa intacta.
CARMEN -As festas que me ofereo...
IRMA(Interrompendo-a) - Eu sei para que elas servem: para esquecer as deles.
CARMEN -A senhora me reprova?
IRMA - As deles servem para esquecer as suas. Tambm eles gostam de seus filhos.
Depois.(Novo toque de campainha, como os precedentes. Irma, que continuava perto do aparelho,
volta-se, cola o olho no visor e aproxima o fone do ouvido. Carmen volta s contas)
CARMEN(Sem levantar a cabea) - O senhor Chefe de Polcia?
IRMA (Descrevendo a cena) - No. O garom, que acaba de chegar. Ainda vai resmungar...
pronto, fica danado porque Eliane est lhe entregando um avental branco.
CARMEN - Eu j tinha prevenido. Ele quer um avental cor-de-rosa.
IRMA -Amanh voc vai ao mercado, se estiver aberto. E compre tambm um espanador para o
empregado da Ferroviria. Um espanador verde.
CARMEN - Contanto que Eliane no esquea de deixar cair a gorjeta no cho. Ele exige uma
verdadeira revoluo. E copos sujos.
IRMA - Querem que tudo seja o mais verdadeiro possvel... Menos alguma coisa indefinvel que
far com que isso no seja verdade. (Mudando de tom) Carmen, fui eu quem decidiu chamar meu
estabelecimento de casa de iluses, mas sou apenas a diretora e cada um, quando toca e entra,
traz seu cenrio perfeitamente estabelecido. S me resta alugar a sala e fornecer os acessrios,
os atores e as atrizes. Consegui desligar minha filha da terra voc compreende o que eu digo?Dei-lhe, desde muito tempo, o sinal de partida e ela voa. Cortei as amarras. Voa. Ou, se quiser,
voga no cu, para onde ela me leva. Ento, minha querida... voc me permite algumas palavras
de ternura? -toda dona de penso tem sempre uma certa queda por uma de suas meninas...
CARMEN - Eu j tinha percebido, Madame. E eu tambm, s vezes... (Olha para Madame Irma de
uma maneira lnguida)
IRMA (Levanta-se e olha-a) - Fiquei um pouco perturbada, Carmen. (Longo silncio)Mas,
recomecemos. Minha querida, a casa realmente decola, deixa a terra, voga pelo cu quando me
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chamo, no fundo de meu corao, mas com grande clareza, de uma dona de penso. Querida,
quando, secretamente, no silncio, repito para mim mesma, em silncio: "s uma cafetina, uma
dona de prostbulo e de puteiro", querida, tudo (Subitamente lrica), tudo esvoaa: lustres,
espelhos, tapetes, pianos, caritides e meus sales, meus clebres sales: o salo dito dos
Fenos, decorado com cenas rsticas, o salo das torturas, salpicado de sangue e lgrimas, osalo Sala do Trono, drapeado com veludo e flor de lis, o salo dos Espelhos, o salo do Aparato,
o salo dos Repuxos perfumados, o salo mictrio, o salo de Anfitrite, o salo Luar, tudo voa:
sales. Ah! esquecia o salo dos mendigos, dos vagabundos, onde a imundcie e a misria so
enaltecidas. Recomeo: sales, meninas... (Reconsidera) Ah! ia esquecendo: o mais belo de
todos, paramento definitivo, coroa do edifcio - se sua construo for um dia acabada - falo do
salo funerrio, decorado com urnas de mrmore, meu salo da Morte Solene, o Tmulo! O salo
mausolu. Recomeo: sales, meninas, cristais, rendas, balco, tudo desaparece, se eleva e me
transporta! (Longo silncio. As duas mulheres esto imveis, de p, uma diante da outra)
CARMEN - Como a senhora fala bonito!
IRMA(Modesta) - Estudei at o ginsio.
CARMEN - Percebi. Meu pai, o coronel de artilharia...
IRMA(Corrigindo severamente) - De cavalaria, minha cara.
CARMEN - Perdo. verdade. O coronel de cavalaria queria que eu estudasse. Infelizmente...
Madame, a senhora conseguiu. Ao redor de sua bela pessoa organizou um teatro faustoso, uma
festa cujo esplendor a envolve, dissimulando-a para o mundo. Para sua putice era necessrio este
aparato. E eu, s terei a mim e s serei eu mesma? No, madame. Graas ao vcio e misria
dos homens, tambm eu tive o meu momento de glria! Daqui, com o fone no ouvido e olhando
pelo visor, a senhora podia me ver erguida, ao mesmo tempo soberana e boa, maternal e to
feminina, meu calcanhar sobre a serpente de papelo e as rosas de papel rosa, a senhora
tambm podia ver o contador do Banco da Provncia de joelhos diante de mim, e desmaiando ante
minha apario. Infelizmente, ele estava de costas e a senhora no podia ver seu olhar de xtase,nem ouvir as batidas enlouquecidas de meu corao. Meu vu azul, meu vestido azul, meu
avental azul, meu olho azul...
IRMA - Castanho!
CARMEN - Azul, naquele dia. Para ele eu era o prprio Cu que tocava a sua testa. Diante da
Madona que eu era, um espanhol teria rezado e feito promessas. Ele me cantava louvores,
confundindo-me com a sua cor predileta, e quando me levava para a cama, era no azul que ele
me penetrava. Mas eu no vou mais aparecer.
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IRMA - Eu lhe ofereci Santa Teresa.
CARMEN - No estou preparada, Madame Irma. preciso saber o que o cliente vai exigir. Ser
que tudo j foi combinado?
IRMA - Toda puta deve poder - voc me desculpe, j que chegamos a este ponto, falemos de
homem para homem - deve poder enfrentar qualquer situao.
CARMEN - Sou uma de suas putas, patroa, e uma das melhores, eu me orgulho disso. Numa
noitada eu consigo dar...
IRMA - Conheo seu estilo. Mas quando voc se exalta logo que ouve a palavra puta, que voc
repete para voc mesma e com ela se paramenta como se fosse um ttulo, muito diferente de
quando eu uso esta palavra para designar uma funo. Mas voc tem razo, minha querida, em
exaltar sua profisso e fazer disso uma glria. Faa-a brilhar: Que ela a ilumine, se a nica coisa
que voc tem. (Terna) Farei tudo para ajud-la... voc a jia mais pura de meu rebanho, a nica
a quem dedico toda a minha ternura. Fique comigo. Teria coragem de me abandonar quando tudo
est desmoronando? A morte - a verdadeira, a definitiva est minha porta, embaixo de minhas
janelas...(Crepitar de metralhadoras) Est ouvindo?
CARMEN - O exrcito est lutando com coragem.
IRMA - Os revoltosos, com mais coragem ainda. E estamos junto aos muros da catedral, a dois
passos do arcebispado. Minha cabea no tem preo, no, seria bom demais. Mas sabe-se que
ofereo jantares s pessoas importantes. Portanto, sou visada. E no h homens nesta casa.
CARMEN - O Sr. Arthur est a.
IRMA - Voc est brincando? Nenhum, ele um acessrio. Por falar nisso, logo que termine a
funo, vou mand-lo procurar o Sr. Georges.
CARMEN - Se o pior acontecer...
IRMA - E os revoltosos ganharem? Estou perdida. So operrios. Sem imaginao. Virtuosos e
talvez castos.
CARMEN - Eles se habituam logo com o deboche. Basta um pouco de tdio...
IRMA - Voc se engana. Nesse caso, evitaro o tdio. Sou eu a mais visada. Com vocs
diferente. Em toda revoluo h uma puta exaltada que canta uma Marselhesa e se virginiza.
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Voc seria esta puta? Eles daro santamente de beber aos moribundos. Depois... se casaro com
vocs. Voc gostaria de casar?
CARMEN - Flor de laranjeira, vu...
IRMA - Bravo. Casada, para voc, quer dizer fantasiada. Minha querida, voc bem do nosso
mundo. No, eu tambm no vejo voc casada. Alis, o que eles querem nos matar. Ns
teremos uma bela morte, Carmen. Ser terrvel e suntuosa. possvel que meus sales sejam
invadidos, os cristais, quebrados, os brocados rasgados, e que nos degolem...
CARMEN - Tero pena...
IRMA - No. Eles vo ficar ainda mais exaltados com a idia de que esto cometendo um
sacrilgio. De capacete, botas, de bon e peito nu, nos destruiro a ferro e fogo. Ser belssimo.
No podemos desejar outro fim. E voc ainda pensa em ir embora...
CARMEN - Mas, Madame Irma...
IRMA -Agora que a casa vai pegar fogo, a rosa vai ser apunhalada, voc, Carmen, s pensa em
fugir.
CARMEN -A senhora sabe muito bem por que eu quis me ausentar.
IRMA - Sua filha est morta...
CARMEN - Madame!
IRMA - Morta ou viva, sua filha est morta. Penso na sepultura, ornamentada com margaridas e
coroas de prolas, no fundo de um jardim... e este jardim no seu corao, onde voc poder
cuidar dele...
CARMEN - Teria sido um prazer rev-la...
IRMA - Voc conservar sua imagem na imagem do jardim e o jardim em seu corao, sob o
manto em chamas de santa Teresa. E voc ainda hesita? Eu lhe ofereo a mais gloriosa das
mortes e voc ainda hesita? covarde.
CARMEN -A senhora bem sabe que lhe sou dedicada.
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IRMA - Vou lhe ensinar as cifras! As maravilhosas cifras que passaremos, juntas, as noites, a
caligrafar.
CARMEN(Suavemente) - A guerra desencadeada, a senhora disse muito bem, a horda.
IRMA(Triunfante) - A horda! mas ns, ns temos nossas tropas, nossas armadas, nossas milcias,
legies, batalhes, vasos, arautos, clarins, trombetas, nossas cores, auriflamas, estandartes,
pendes... para levar-nos catstrofe! A morte? a morte certa, mas to rpida e com tal
desenvoltura!... (Melanclica) A no ser que Georges ainda seja todo-poderoso... E ainda possa
atravessar a horda e vir nos salvar. (Um grande suspiro) Voc vai me vestir. Mas antes, quero
vigiar Rachel.(Mesmo toque de campainha de h pouco. Irma pe o olho no visor) Com este
instrumento, eu os vejo e posso at ouvir os suspiros. (Silncio. Olha) O Cristo sai com sua
parafernlia. Nunca pude compreender por que pede que o amarrem cruz com as cordas que
traz em -sua mala. So cordas bentas? Quando chega em casa, onde ir guard-las? Que
importa! Vejamos Rachel. (Pressiona outra manivela) Ah, terminaram. Agora esto conversando.
Guardando os dardos, o arco, as faixas de gaze, o quepe branco... No, no gosto nem um pouco
da maneira como eles se olham! Eles esto com um olhar to claro. (Volta-se para Carmen) A
esto os perigos da assiduidade. Seria a runa completa se meus clientes trocassem um sorriso
amistoso com as meninas. Seria uma catstrofe ainda major que se houvesse amor. (Pressiona
maquinalmente a manivela e recoloca o fone. Pensativa) Arthur j deve ter acabado. Ele vem a...
Vista-me.
CARMEN - O que vai pr?
IRMA - O neglig creme.(Carmen abre um armrio e retira o neglig enquanto Irma desabotoa seu
costume) Carmen, e Chantal?
CARMEN - Senhora?
IRMA - Diga, que sabe de Chantal?
CARMEN - Passei em revista todas as meninas: Rosine, Eliane, Florence, Marlyse. Prepararam
seus pequenos relatrios. Vou d-los senhora. Mas eles no me adiantaram muito. Antes, era
possvel espionar. Com o tumulto, mais difcil. No comeo os partidos esto mais definidos,
pode-se escolher. Na paz, tudo menos claro. No sabemos bem a quem estamos traindo. Nem
mesmo se estamos traindo. No h notcias de Chantal. No sabemos se ainda vive.
IRMA - Mas, diga-me uma coisa, voc no teria escrpulos?
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CARMEN - Nenhum. Ingressar no bordel recusar o mundo. Aqui estou e aqui fico. A minha
realidade so os seus espelhos, as suas ordens e as paixes. Que jias a senhora vai usar?
IRMA - Os diamantes. Minhas jias: de verdadeiro s tenho isto. Com a certeza de que o resto
falso, tenho minhas jias, como outras tm uma filha no jardim, Quem a traidora? Voc no querdizer?
CARMEN - Todas elas desconfiam de mim. Eu recolho seus relatrios. Entrego-os senhora. E a
senhora os d Polcia. ela que controla... Eu, no sei de nada.
IRMA - Voc prudente. D-me um leno.
CARMEN (Trazendo um leno de renda) - Vista daqui, onde de qualquer maneira os homens
ficam nus, a vida parece-me to distante, to profunda que possui toda a irreal idade de um filme
ou do nascimento de Cristo numa creche. Quando um homem, no quarto, se abandona aponto de
me dizer: "Tomaremos o arsenal amanh noite", tenho a impresso de ler uma inscrio
obscena. Seu ato torna-se to louco, to... volumoso quanto os que so descritos de uma certa
maneira em certas paredes,.. No, eu no sou prudente. (Batem. Irma sobressalta-se. Precipita-se
sobre o aparelho que, graas a um mecanismo acionado por um boto, encaixa-se na parede,
invisvel. Durante toda a cena com Arthur, Carmen despe e depois veste Irma, de maneira que
esta fique pronta exatamente chegada do Chefe de Polcia)
IRMA - Entre! (A porta se abre. Entra o carrasco que, de agora em diante, chamaremos de Arthur.
Clssico terno de cafeto: cinza-claro, chapu de feltro branco, etc. Termina de dar o n na
gravata. Irma, examinando-o minuciosamente)A funo terminou? Foi rpida.
ARTHUR - Sim. O velhote est se vestindo. Est esgotado. Duas funes em meia hora. Com
todo este tiroteio nas ruas, tenho minhas dvidas de que ele consiga chegar at o seu hotel. (Imita
o Juiz no segundo quadro) Minos te julga... Minos te pesa... Crbero?... Uau! Uau! (Mostra os
dentes e ri) O Chefe de Polcia no chegou?
IRMA - Voc no bateu demais nela? Da ltima vez, a pobre coitada ficou dois dias de cama.
(Carmen trouxe o neglig de rendas. Irma agora est de camisola)
ARTHUR - No se faa de boazinha, nem de falsa puta. Tanto da ltima vez como hoje de noite
ela teve o que merecia: em gaita e em pancadas. Recta-reglo. Se o banqueiro quer ver as costas
marcadas, ento eu marco.
IRMA -Ao menos voc sente prazer?
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ARTHUR - Com ela, no; s gosto de voc. E trabalho trabalho. Tenho conscincia do que fao.
IRMA(Autoritria) - No estou com cimes desta moa, mas no gostaria que voc acostumasse
mal os empregados, cada vez mais difceis de encontrar.
ARTHUR - Duas ou trs vezes tentei fazer as marcas, pintando nas costas com tinta roxa, mas
no funciona. Quando o velho chega, examina e exige que esteja em forma.
IRMA - Pintar? Quem deu licena? (A Carmen) Minhas sandlias orientais, querida.
ARTHUR (Dando de ombros) - Uma iluso a mais, uma iluso a menos! Eu pensei que estava
certo. Mas fique sossegada, agora chicoteio, flagelo, ela grita e ele rasteja.
IRMA - Diga-lhe para gritar mais baixo, que a casa est visada.
ARTHUR - O rdio acaba de anunciar que toda a zona Norte caiu esta noite. E o Juiz ainda quer
gritos. O Bispo menos perigoso. Ele se satisfaz perdoando os pecados.
CARMEN - Sua alegria est em perdoar, por isso ele exige primeiro que os pecados sejam
cometidos. No, o melhor aquele que amarrado, espancado, chicoteado e, depois de
acalentado, ronca.
ARTHUR - E quem que faz ele dormir? (A Carmen) Voc? Voc lhe d o seio?
CARMEN (Secamente) - Eu trabalho direito. Quem usa terno como este, seu Arthur, no tem
direito de gracejar. O cafeto faz careta, nunca sorri.
IRMA - Ela tem razo.
ARTHUR - Quanto ganhou hoje?
IRMA(Na defensiva) - Eu e Carmen ainda no acabamos as comas.
ARTHUR - Eu, j. Pelas minhas contas, deve chegar a vinte mil.
IRMA - possvel. Mas no tenha medo. Eu no fao trapaas.
ARTHUR -Acredito em voc, meu amor, mas no posso controlar: os nmeros se organizam na
minha cabea. Vinte mil! A guerra, a revolta, a metralha, o gelo, o granizo, a chuva, a merda em
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aguaceiro, nada impede! Pelo contrrio. O pessoal est se matando nas ruas, o bordei est
visado: eles insistem. Eu tenho voc a domiclio, meu tesouro, se no...
IRMA(Precisa) - Voc estaria paralisado de medo, no poro.
ARTHUR(Dbio) - Faria como os outros, meu amor. Ficaria esperando que o Chefe de Polcia me
salvasse. Voc no vai esquecer minha pequena porcentagem, no ?
IRMA - O que eu lhe dou d para voc se defender.
ARTHUR - Meu amor! Encomendei minhas camisas de seda. E voc sabe que tipo de sda? E a
cor? Da seda roxa de seus corpetes!
IRMA (Enternecida) - Pare com isso. Na frente de Carmen, no.
ARTHUR - Ento? Vai dar?
IRMA(Desfalecendo) - Vou.
ARTHUR - Quanto?
IRMA(Dominando-se) - Veremos. Eu e Carmen temos de fazer as contas. (Meiga) Tanto quanto
eu puder. Mas agora preciso que voc v buscar Georges, de qualquer jeito...
ARTHUR(Com ironia insolente) - Que que voc est dizendo, minha querida?
IRMA(Seca) - Que voc v buscar o Sr. Georges. Se for preciso v at a Polcia e avise que s
conto com ele.
ARTHUR (Ligeiramente preocupado) - Eu acho que voc est brincando...
IRMA (De repente muito autoritria) - Pelo meu jeito voc j devia saber: no estou mais
representando. Pelo menos, no o mesmo papel. E voc, no tem mais que representar o cafeto
terno e mau: faa o que lhe ordeno, mas antes segure o vaporizador. (A Carmen, que traz o
objeto) Entregue a ele. (A Arthur) E de joelhos!
ARTHUR(Ajoelha-se e vaporiza Irma) - Na rua?... Sozinho?... Eu?...
IRMA (De p, diante dele) - Precisamos saber que fim levou Georges. No posso ficar
desprotegida.
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ARTHUR - Mas eu estou aqui...
IRMA(Dando de ombros) - Tenho de defender minhas jias, meus sales e minhas meninas. O
Chefe de Polcia j devia ter chegado h meia hora...
ARTHUR (Acovardado) - Eu, na rua? ...Mas est chovendo... eles esto atirando... (Mostrando
seu terno) Eu me vesti para ficar, passear pelos corredores e me olhar nos espelhos. E tambm
para que voc me visse vestido de cafeto... Eu s tenho a seda para me proteger...
IRMA(A Carmen) - D-me as pulseiras, Carmen. (A Arthur) E voc, vaporize.
ARTHUR - Eu no sou feito para os exteriores. J faz muito tempo que vivo dentro de suas
paredes... E alm disso, a minha pele no suportaria o ar livre... se ao menos eu tivesse um vu!...
Imagine se me reconhecerem!...
IRMA(Irritada e girando) - Ento v rente aos muros. (Pausa) Leve este revlver.
ARTHUR(Assustado) - Comigo?
IRMA - No seu bolso.
ARTHUR - Meu bolso! E se eu tiver de atirar?...
IRMA(Doce) - Voc j se cansou de ser o que ? Est farto?
ARTHUR - Estou farto... (Pausa) Descansado, farto... mas se sair...
IRMA(Autoritria, mas com doura) - Tem razo. Nada de revlver. Mas tire o chapu, v onde
mandei e volte para me dar notcias. Esta noite voc tem uma sesso. J sabia? (Ele joga seu
chapu)
ARTHUR(Que estava se dirigindo para a porta) - Outra?! Esta noite?! De qu?
IRMA - Eu pensei que j tinha dito: um cadver.
ARTHUR(Com nojo) - E eu, vou fazer o qu?
IRMA - Nada. Voc permanecer imvel e ser enterrado. Poder descansar.
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ARTHUR -Ah, por que que eu... ? Ah, bom. Muito bem. E o cliente?
IRMA(Misteriosa) - Uma pessoa muito importante. E chega de perguntas. V.
ARTHUR (Vai sair, depois hesita, e tmido) - E no se ganha um beijo?
IRMA - Quando voltarmos. Se voltarmos.(Ele sai, sempre ajoelhado. Entra o Chefe de Polcia pela
porta da direita, sem bater. Um sobretudo pesado. Chapu. Charuto. Carmen tenta correr para
chamar Arthur, mas o Chefe de Polcia interfere)
O CHEFE DE POLCIA - No, no, fique, Carmen. Gosto de sua presena. Quanto ao gigol, que
d um jeito de me encontrar. (Permanece de chapu, charuto e sobretudo, mas inclina-se diante
de Irma a quem beija a mo)
IRMA(Ofegante) - Ponha sua mo aqui. (Em seu seio) Estou transtornada. Ainda estou tremendo.
Sabia que voc estava a caminho, correndo perigo. Palpitante, eu esperava... me perfumando...
O CHEFE DE POLCIA (Tirando o chapu, as luvas, o sobretudo e o palet) - J passou. A
comdia terminou. A situao est cada vez mais grave - no desesperadora, mas est se
tornando - fe-liz-men-te! O castelo real ser cercado. A rainha se esconde. Atravessei a cidade por
milagre: a cidade est em fogo e sangue. A revolta trgica, mas l, h alegria enquanto que
nesta casa tudo est morrendo lentamente. Hoje meu dia. Esta noite estarei na cova ou num
pedestal. Portanto, esta histria de eu te amo, eu te desejo, no tem importncia. E o negcio,
como vai?
IRMA - Maravilhosamente. Tivemos grandes representaes.
O CHEFE DE POLCIA(Impaciente) - De que gnero?
IRMA - Carmen sabe contar melhor do que eu. Pergunte a ela.
O CHEFE DE POLCIA(A Carmen) - Como foi, Carmen? Sempre...?
CARMEN - Sempre, sim senhor. Sempre os baluartes do Imprio.
O CHEFE DE POLCIA(Irnico) - Nossas alegorias, nossas armas falantes. E que mais?...
CARMEN - Como toda semana, um novo tema. (Gesto de curiosidade do Chefe de Polcia) Esta
semana o beb, esbofeteado, batido posto na cama, que ento chora e ninado.
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O CHEFE DE POLCIA(Impaciente) - Est bem, mas...
CARMEN - encantador, meu senhor. E to triste!
O CHEFE DE POLCIA(Irritado) - S isso?
CARMEN - To bonitinho quando lhe tiram a fralda...
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O CHEFE DE POLCIA (Cada vez mais irritado) - Voc est me gozando, Carmen? Estou lhe
perguntando se j fui representado.
CARMEN - Se o senhor j foi representado?
IRMA(Irnica, no se sabe para quem) - No foi.
O CHEFE DE POLCIA -Ainda no? (A Carmen) Finalmente, fui ou no fui representado?
CARMEN (Abobalhada) - Representado?
O CHEFE DE POLCIA - Boba! Sim, uma imitao do Chefe de Polcia! (Silncio muito pesado)
IRMA - Ainda cedo. Meu caro, seu cargo no tem a nobreza suficiente para sugerir aos
sonhadores uma imagem que sirva de consolo. Por falta de ancestrais ilustres, quem sabe? No
caro amigo... preciso reconhecer que sua imagem ainda no tem acesso s liturgias do
prostbulo.
O CHEFE DE POLCIA - Quem est sendo representado?
IRMA - Voc j sabe, voc no tem as fichas? (Conta nos dedos): h dois reis de Frana, com
cerimnias de sagrao e rituais diferentes; um almirante desaparecendo na popa de seu
torpedeiro; um bei de Argel, capitulando; um bombeiro, apagando um incndio; uma cabra
amarrada a uma estaca; uma dona-de-casa voltando da feira; um saqueador; um assaltado
amarrado e espancado; um So Sebastio; um fazendeiro em sua granja... nada de chefe de
polcia... nem de administrador das colnias, mas um missionrio morrendo na cruz, e Cristo em
pessoa.
O CHEFE DE POLCIA(Aps uma pausa) - Voc esqueceu o mecnico.
IRMA - Ele no vem mais. De tanto aparafusar, quase construa uma mquina. E que teriafuncionado. Na fbrica!
O CHEFE DE POLCIA - Ento, nenhum de seus clientes teve a idia... a idia mais remota,
apenas esboada...
IRMA - Nada. Sei que voc faz o que pode; voc tenta o dio e o amor. Para voc, a glria uma
ducha fria.
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O CHEFE DE POLCIA(Com veemncia) - Minha imagem cresce cada vez mais, eu lhe garanto.
Torna-se colossal. Tudo, minha volta, reproduz e reflete essa imagem. E voc nunca a viu
representada em sua casa?
IRMA - Mesmo se sua imagem fosse consagrada eu no teria visto. As cerimnias so secretas.
O CHEFE DE POLCIA - Mentirosa. Em cada tabique voc colocou o visor. Toda parede, todo
espelho est trucado. Aqui, os suspiros, l, o eco das lamentaes. Voc no precisa de mim para
saber que a maioria dos truques desse bordel so truques de espelhos... (Muito triste) Ningum!
Mas eu obrigarei minha imagem a desprender-se de mim, a penetrar, a abrir caminho nos seus
sales, a refletir-se, a multiplicar-se. Irma, meu cargo to pesado... Mas aqui, ela surgir diante
de mim, na luz ofuscante do prazer e da morte. (Sonhador) Da morte...
IRMA - preciso continuar matando, meu caro Georges.
O CHEFE DE POLCIA - Fao o que posso, garanto. Cada dia que passa, sou mais temido.
IRMA - Mas pouco. Voc precisa penetrar na noite, na merda e no sangue. (Subitamente
angustiada) E matar o que sobrar de nosso amor...
O CHEFE DE POLCIA(Claro) - Tudo est morto.
IRMA - uma bela vitria. Ento preciso matar o que existe em torno de voc.
O CHEFE DE POLCIA(Muito irritado) - J disse. Fao o que posso. Eu tento provar Nao que
sou um chefe, um legislador, um construtor...
IRMA(Preocupada) - Voc est sonhando.Ou realmente voc espera construir um Imprio e de
qualquer maneira voc est sonhando.
O CHEFE DE POLCIA (Com convico) - Uma vez sufocada a revolta, e sufocada por mim, ecom o apoio da Nao, convocado pela Rainha, nada poder me deter. E a vocs vo saber
quem eu sou agora. (Sonhador.) Sim, minha cara, quero construir um Imprio... para que o
Imprio, em troca,construa para mim...
IRMA - Um sepulcro...
O CHEFE DE POLICIA (Ligeiramente desconcertado) - Mas, finalmente, por que no? Todo
conquistador no tem o seu? Ora! (Exaltado.) Alexandria! Eu terei meu sepulcro, Irma. E voc,
quando colocarem a primeira pedra, estar no lugar de honra.
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IRMA - Muito obrigada. (A Carmen) Carmen, o ch.
O CHEFE DE POLCIA(A Carmen, que ia sair) - Um momento, Carmen. Qual a sua opinio?
CARMEN - Que O senhor quer confundir a vida com longos funerais.
O CHEFE DE POLCIA (Agressivo) - E a vida, outra coisa? Voc que parece saber de tudo,
diga: neste suntuoso teatro, onde a cada instante um drama representado como se diz l fora,
uma missa celebrada o que que voc viu?
CARMEN(Depois de hesitar) - De muito srio, s uma coisa merece ser contada: sem as coxas
do seu dono, uma cala sobre a cadeira, bonito, meu senhor. Nossos ornamentos sem os seus
velhotes, ficam tristes de dar pena. So aqueles que colocamos no cadafalso dos altos
dignatrios. S cobrem os cadveres que nunca terminam de morrer. No entanto...
IRMA(A Carmen) - No foi isso que o Chefe de polcia lhe perguntou.
O CHEFE DE POLCIA - J me habituei aos discursos de Carmen. (A Carmen) Voc estava
dizendo: no entanto...
CARMEN - No entanto, quando eles percebem os ouropis, a alegria nos seus olhos mais o
brilho da inocncia, tenho certeza...
O CHEFE DE POLCIA - Dizem que a nossa casa os conduz Morte. (De repente, uma
campainha. Irma se sobressalta. Uma pausa)
IRMA - Abriram a porta. Quem poder ser a esta hora? (A Carmen) Desa, Carmen, e feche a
porta. (Carmen sai. Silncio bastante longo entre Irma e o Chefe de Polcia que permaneceram
sozinhos.)
O CHEFE DE POLCIA - Meu sepulcro!
IRMA - Fui eu que toquei. Queria ficar um pouco sozinha com voc.(Silncio, durante o qual
olham-se nos olhos, gravemente) Diga-me, Georges... (Hesita) Voc ainda insiste em levar
adiante esta farsa? No, no, no se impaciente. No est cansado?
O CHEFE DE POLCIA - Mas... Daqui a pouco volto para casa...
IRMA - Se puder. Se a revolta permitir.
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O CHEFE DE POLCIA -A revolta uma farsa. Daqui voc no pode ver nada l fora, mas todos
os revoltosos esto representando. E gostam de seu papel.
IRMA - Mas se, por exemplo, ultrapassarem os limites da representao? Isto , se se deixaremlevar at destrurem tudo e tudo substiturem? Sim, sim, sim, h sempre o detalhe falso para
lembrar que a um certo momento e num certo ponto do drama, eles devem parar, e at recuar...
Mas se, levados pela paixo, no reconhecem mais nada e saltam sem hesitar para...
O CHEFE DE POLCIA - Para a realidade? E da? Que experimentem. Fao como eles, penetro
de sbito na realidade que o jogo nos prope e, como tenho o papel principal, eu os liquido.
IRMA - Eles sero os mais fortes.
O CHEFE DE POLCIA - Por que eles sero? Deixei meus homens nos seus sales; assim, fico
a par dos acontecimentos. E, alis, acabe com essa conversa. Voc ou no a dona de uma
casa de iluses? isso. Se venho aqui, para me satisfazer com seus espelhos e seus truques.
Fique tranqila. Tudo se passar como das outras vezes.
IRMA - Hoje, no sei por que, estou preocupada. Os que passam pelas nossas janelas tm um ar
ameaador, mas no cantam. A ameaa est no olhar.
O CHEFE DE POLCIA - E da? Supondo que seja assim, voc me toma por um covarde? Pensa
que vou renunciar?
IRMA(Pensativa) - No. Alis, acho que j tarde demais.
O CHEFE DE POLCIA - Voc tem alguma notcia?
IRMA - Atravs de Chantal, antes de sua fuga. A central eltrica ser ocupada por volta das trs
horas da madrugada.
O CHEFE DE POLCIA - Tem certeza? Quem contou a ela?
IRMA - Os revolucionrios do quarto setor.
O CHEFE DE POLCIA - possvel. Como que ela soube?
IRMA - Foi com sua ajuda que alguns fugiram. Mas foi s ela que ajudou. No v com isso
depreciar a minha casa.
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O CHEFE DE POLCIA - Seu prostbulo, meu amor.
IRMA - Prostbulo. Lupanar. Rendez-vouz. Bordel. Fodedor. Puteiro. Admito tudo. Nesse caso,
Chantal a nica que est do outro lado... Ela fugiu. Mas antes fez confidncias a Carmen; estasim sabe viver.
O CHEFE DE POLCIA - Quem lhe deu esta informao?
IRMA - Roger, o bombeiro. Como que voc acha que ele ? Jovem? Belo? No. Quarenta anos.
Baixo e atarracado. De olhar grave e irnico. Chantal falou Com ele. Eu o despedi: tarde demais.
Faz parte do setor Andrmeda.
O CHEFE DE POLCIA - Andrmeda? Muito bem. A revolta se exalta e ganha as alturas. Se ela
d nomes de constelao s suas frentes evaporar e virar cano. Fao votos de que sejam belas.
IRMA - E se essas canes derem coragem aos revoltosos? E eles queiram morrer por elas?
O CHEFE DE POLCIA - Eles vo amansar com a beleza das canes. Infelizmente no atingiram
o estado nem da beleza, nem da mansido. De qualquer forma os amores de Chantal foram
providenciais.
IRMA - No misture Deus com...
O CHEFE DE POLCIA - Eu sou maom. Da...
IRMA - O qu? Voc nunca me disse.
O CHEFE DE POLCIA (Solene) - Sublime Prncipe do Real Segredo!
IRMA (Irnica) - Voc, irmo maom! De aventalzinho! Com um martelinho, um capuz e uma vela!
engraado. (Uma pausa.) Voc tambm!
O CHEFE DE POLCIA - Por qu? Voc tambm?
IRMA(Comicamente solene) - Guardi de rituais ainda mais solenes! (Subitamente triste)J que
finalmente cheguei a isto.
O CHEFE DE POLCIA - Vai comear a lembrar nossos amores, ?
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IRMA(Com doura) - Nossos amores, no. O tempo em que nos amvamos.
O CHEFE DE POLCIA - E da? Quer fazer o histrico e o elogio? Voc pensa que minhas visitas
teriam menos sabor se no fossem temperadas com a lembrana de uma suposta inocncia?
IRMA - de ternura que se trata. Nem as mais extravagantes fantasias de meus clientes, nem
minha ternura, nem minhas pesquisas para enriquecer meus sales com novos temas, nem os
tapetes, nem os dourados, nem os cristais, nem o frio impedem que tenha havido momentos em
que voc se aninhava em meus braos e que eu me lembre deles.
O CHEFE DE POLCIA - Voc tem saudades?
IRMA (Com ternura) - Daria meu reinado para reviver um desses momentos! E voc sabe qual.
Necessito de uma nica palavra que seja verdadeira, como as rugas que descobrimos noite, ou
quando lavamos a boca...
O CHEFE DE POLCIA - tarde demais. (Pausa) Alm disso, no poderamos viver eternamente.
Enfim, voc no sabe o que, j naquele tempo, em seus braos, eu secretamente pretendia.
IRMA - O que sei que eu te amava.
O CHEFE DE POLCIA - tarde demais. Voc abandonaria Arthur?
IRMA (Ri, nervosamente) - Voc exigiu a presena de um homem aqui. Ele me foi imposto por
voc - contrariando a minha vontade e a minha opinio - num terreno que deveria permanecer
virgem... Imbecil, no ria. Virgem. Isto , estril. Mas voc queria um sustentculo, um eixo, um
falo presente, inteiro, erguido, de p. E a est. Voc me impingiu este monto de carne
congestionada, esta novia com braos de lutador - num circo pareceria forte, mas voc ignora
sua fragilidade. Ele me foi estupidamente impingido porque voc sentia que estava envelhecendo.
O CHEFE DE POLCIA - Cale-se.
IRMA (Dando de ombros) - Atravs de Arthur, voc descansava. No tenho iluses. Eu sou o
homem dele e comigo que ele conta. Mas necessito deste corpo musculoso, nodoso e estpido,
encravado nas minhas anguas. Ou, se voc prefere, ele o meu corpo, mas a meu lado.
O CHEFE DE POLCIA(Irnico) - E se eu estivesse com cimes?
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IRMA - Desta gorda boneca que se disfara em carrasco para saciar um juiz de mentira? Voc
agora est brincando, mas nunca se importou que eu tomasse as aparncias daquele corpo
magnfico. Se quiser, eu repito...
O CHEFE DE POLCIA(Esbofeteia Irma, que cai no div) - E no berre que eu lhe parto a cara etoco fogo nesse pardieiro. E toco fogo nos cabelos e nos plos e solto vocs por a. Ilumino a
cidade com as putas incendiadas. (Muito docemente) Voc acha que sou capaz?
IRMA(Num suspiro) - Sim, querido.
O CHEFE DE POLCIA - Ento, faa-me as contas. Se quiser, desconte o crepe de China de
Apolo. E rpido, que eu tenho de voltar ao meu posto. Por