Jean Piaget e o Construtivismo

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    Jean Piaget e o ConstrutivismoFonte: Revista Nova Escola - Edio 139 Janeiro/ Fevereiro de 2001

    O impacto talvez mais forte recebido pela escola bsica neste sculo no partiu de um educador. Foi obra de umpsiclogo, o suo Jean Piaget. O centenrio de seu nascimento celebrado este ano com vrios eventoscientficos mundo afora. Piaget dedicou a vida a estudar as engrenagens da inteligncia, do nascimento maturidade do ser humano. Decifrou sucessivos degraus na evoluo do raciocnio. No empregou asdescobertas para propor novos mtodos de ensino, mas batalhou pela educao em organismos internacionais eno fugiu de tomar partido em disputas pedaggicas. Suas pesquisas tiveram efeitos profundos no progresso daeducao. J nos anos 20, deram aval terico a pedagogos inovadores, entre eles o francs Clestin Freinet.Hoje, sua obra continua viva. a matriz do construtivismo, linha educativa em rpida expanso no Brasil.

    UM GNIO SUO ENTRA NA NOSSA ESCOLAJean Piaget foi um daqueles meninos que os professores de hoje identificariam como um superdotado. Ou que oscolegas de classe chamariam de CDF. Precoce, com apenas 10 anos publicou em Neuchtel, sua cidade natal, naSua, um artigo com estudos sobre um pardal branco. Aos 22, j era doutor em Biologia. Intelectualmenteinsacivel, escreveria cerca de setenta livros e 300 artigos sobre Psicologia, Pedagogia e Filosofia. O prprio larde Piaget foi uma espcie de extenso da universidade. Casou-se com uma assistente e desvendou muitos dosenigmas da inteligncia infantil dentro de casa, observando os prprios filhos. Concluiu que a criana tem umaforma prpria e ativa de raciocinar e de aprender, que evolui, por estgios, at a maturidade intelectual. No umadulto em miniatura. Seus erros apenas caracterizam essa forma particular de pensar.

    A celebridade de Piaget e sua importncia para a educao vm exatamente desses estudos. J nos anos 20,pedagogias inovadoras encontraram em sua obra a sustentao cientfica que lhes faltava. "Destacando o papelativo da criana no aprendizado, seus trabalhos deram base aos educadores da Escola Nova", explica Lino deMacedo, especialista piagetiano da Universidade de So Paulo (USP). A Escola Nova era um movimento deeducadores europeus e norte-americanos que contestava a passividade a que a criana estava condenada pelaescola tradicional. "Piaget defendeu principalmente a Escola Ativa", comenta o psiclogo Mrio SrgioVasconcelos, da Universidade Estadual de So Paulo (Unesp). A Escola Ativa era uma corrente da Escola Nova qual se alinhava, por exemplo, o pedagogo Clestin Freinet. "Foi s em 1936", diz Mrio Srgio, "que Piagetchegou ao meio educacional brasileiro, com o texto O Trabalho por Equipes nas Escolas: Bases Psicolgicas,traduzido pelo professor paulista Luiz Fleury."

    Foi preciso quase meio sculo, contudo, para que sua influncia se fizesse sentir mais amplamente no ensinobsico brasileiro - e de maneira nem sempre percebida com clareza. que as idias de Piaget vm entrando nasnossas escolas sob o nome de construtivismo. E muita gente associa o termo apenas psicloga argentina EmiliaFerreiro, a grande divulgadora dessa linha educacional no Brasil desde o incio dos anos 8O. Acontece que Emlia Piaget puro. Por isso, falar em construtivismo falar principalmente em Piaget.

    "Um aluno trouxe um pedao de outdoor enorme e me perguntou o que estava escrito ali. Estava escrito aluga -se"Maria Bezerra, diretora da Escola Municipal Coronel Hlio Chaves e professora da rede estadual, em So Paulo,conta sua experincia piagetiana

    EU E PIAGET"Leciono h 17 anos. Em 1983, tive um aluno repetente que trazia jornais velhos para saber o que estava escrito.Eu dizia: 'Voc nem sabe o ma-me-mi-mo-um, como quer saber o que est escrito a?' At que ele trouxe um

    pedao de outdoor enorme e perguntou. 'Professora, o que est escrito aqui?' Era 'aluga-se'. Conversando com oaluno, ele contou o seguinte: 'Eu moro num barraco de caixote, todo escrito. Quero ler tudo, mas l no tem ma-me-mi-mo-um nem nada do que a senhora ensina'. Naquela hora decidi deixar a cartilha e comecei aexperimentar. Fiz cursos com Emilia Ferreiro e voltei faculdade, onde estudei Piaget. Ento, estabeleo umarelao prxima entre eles. Entender as formas de raciocnio das crianas, segundo Piaget, ajudou-me tambm atrabalhar com as outras disciplinas."

    AFINAL, O QUE CONSTRUTIVISMO?Das alturas da pesquisa terica para a sala de aula

    Construtivismo no apenas o termo pelo qual conhecida a linha pedaggica que mais vem ganhando adeptosentre os professores de primeiro grau. Possui outro significado, mais antigo e mais amplo, que ultrapassa as

    fronteiras do universo escolar. , sobretudo, o nome de uma das trs grandes correntes tericas empenhadas emexplicar como a inteligncia humana se desenvolve. As outras duas so o empirismo e o racionalismo. Por ser onome do sistema ao qual se filia Piaget, a palavra construtivismo passou a designar tambm a linha pedaggicainspirada em sua obra. Essas trs escolas divergem quanto relao entre meio ambiente e intelignciia. "Asteorias empiristas e racionalistas so chamadas de reducionistas porque reduzem o desenvolvimento intelectual

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    s ao do indivduo ou s fora do meio", explica Mrcia Moreira, professora de Psicologia Educacional daPontifcia Universidade Catlica (PUC) de Belo Horizonte. J o construtivismo atribui um papel ativo ao indivduo,sob a influncia do meio. " a pessoa que constri o seu prpria conhecimento", completa o psiclogo FernandoBecker, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

    Alm de Piaget, outros estudiosos importantes para a educao, como o russo Lev Vygotsky (1896-1934) e ofrancs Henry Wallon (1879-1962), tambm so considerados construtivistas.

    EMPIRISMOConcepo terica que parte do princpio de que o desenvolvimento da inteligncia determinado pelo meioambiente e no pelo sujeito. Portanto, de fora para dentro. A idia que o ser humano no nasce inteligente, mas passivamente submetido s foras do meio, que provocam suas reaes. As reaes satisfatrias soincorporadas e as insatisfatrias tendem a ser eliminadas. Assim, o desenvolvimento intelectual pode sertotalmente modelado de fora, pois a fora que o determina se encontra nos estmulos externos e no no indivduo

    RACIONALISMOConcepo terica que parte do princpio de que o desenvolvimento da inteligncia determinado pelo indivduo eno pelo meio. Portanto, de dentro para fora. A idia que o ser humano j nasce com a inteligncia p r-moldada.A lgica, por exemplo, seria uma capacidade inata do homem. medida que o ser humano amadurece, ele vaireorganizando sua inteligncia pelas percepes que tem da realidade. Essas percepes dependem decapacidades que so inerentes ao indivduo e no dos estmulos externos

    CONSTRUTIVISMOConcepo terica que parte do princpio de que o desenvolvimento da inteligncia determinado pelas aesmtuas entro o indivduo e o meio. A idia que o homem no nasce inteligente, mas tambm no passivo soba influncia do meio. Ao contrrio, responde aos estmulos externos agindo sobre eles para construir e organizar oseu prprio conhecimento, de forma cada vez mais elaborada

    JEAN PIAGETSua teoria, chamada Epistemologia Gentica ou Teoria Psicogentica, a mais conhecida concepoconstrutvista da formao da inteligncia. Ele explicou detalhadamente como, desde o nascimento, o indivduoconstri o conhecimento

    EMLIA FERREIROA psicloga argentina, que vive no Mxico, foi aluna de Piaget e usou sua teoria para pesquisar especificamentecomo a criana constri seu aprendizado da escrita e da leitura. No Brasil, o nome mais ligado ao ensinoconstrutivista

    Como a inteligncia se desenvolve

    Para o bilogo que Piaget nunca deixou de ser, "vida , em essncia, auto-regulao". Ele inclua a vida mental,pois achava que para manter um equilbrio dinmico com o meio ambiente que desenvolvemos a inteligncia.Quando o equilbrio se rompe, o indivduo age sobre o que o afetou (seja um som, uma imagem ou umainformao) buscando se reequilibrar. "Para Piaget, isso feito por ADAPTAO e por ORGANIZAO", explicaMaria Tereza Coutinho, professora de Psicologia da Educao da Universidade Federal de Minas Gerais. AADAPTAO tem duas formas bsicas: a ASSIMILAO e a ACOMODAO. Na ASSIMILAO, o indivduousa as estruturas psquicas que j possui. Se elas no so suficientes, preciso construir novas estruturas. Isso

    ACOMODAO. Piaget diz que "na assimilao e na acomodao se pode reconhecer a correspondncia prticadaquilo que sero mais tarde a deduo e a experincia: a atividade da mente e a presso da realidade". J aORGANIZAO articula esses processos com as estruturas existentes e reorganiza todo o conjunto. Assim, oindivduo contri e reconstri continuamente as estruturas que o tornam cada vez mais apto ao equilbrio. Masessas cosntrues seguem um padro, em idades mais ou menos determinadas. So os estgios, que se dividemem vrios subestgios, com formas especficas de inteligncia.

    ESTGIOS DESCREVEM EVOLUO DO RACIOCNIOVeja algumas caractersticas e exemplos das principais etapas, segundo Piaget

    Sensrio-motor (0 a 2 anos)A partir de reflexos neurolgicos bsicos, o beb comea a consturir esquemas de ao para a ssimilarmentalemnte o meio. A inteligncia prtica. As noes de espao e tempo, por exemplo, so construdas pela

    ao. O contato com o meio direto e imediato, sem representao ou pensamento

    Pr-operatrio (2 a 7 anos)

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    A criana se torna capaz de representar mentalment pessoas e situaes. J pode agir por simulao, "como se".Sua percepo global, sem discriminar detalhes. Deixa-se levar pela aparncia, sem relacionar aspectos. centrada em si mesma, pois no consegue colocar-se, abstratamente, no lugar do outro

    Operatrio-concreto (7 a 11 anos)Nessa fase, a criana j capaz de relacionar diferentes aspectos e abstrair dados da realidade. No se limita auma representao imediata, mas ainda depende do mundo concreto para chegar abstrao. Desenvolvetambm a capacidade de refazer um trajeto mental, voltando ao ponto inicial de uma situao

    Lgico-formal (12 anos em diante)A representao agora permite a abstrao total. A criana no se limita mais representao imediata nemsomente s relaes previamente existentes, mas capaz de pensar em todas as relaes possveis logicamente

    DESCUBRA SEU LADO PIAGETTrocar a prtica tradicional por uma linha de ensino construtivista no uma tarefa simples para o professor."Exige flexibilidade e disposio", diz Maria Anita Martins, diretora da Faculdade de Educao da PontifciaUniversidade Catlica (PUC) de So Paulo. "O professor perde o controle absoluto, de quem sabe tudo, para setornar um pesquisador em ao dentro da sala de aula". Tambm no existe um mtodo. "A prtica construtivistano um caminho j pronto mas est em permanente construo", explica Maria Anita. Estudo e crtica sofundamentais, pois o desconhecimento pode levar a simplificaes graves. Um exemplo: "Entender que a crianaconstri seu prprio conhecimento no torna o professor dispensvel", alerta a diretora. Ao contrrio. "Ele deve terpleno domnio de sua disciplina para transform-la, continuamente, em um saber didaticamente compreensvelpara a criana", completa Maria Luza Andreozzi da Costa, professora de Psicologia da Educao da PUC. Outroexemplo: "Ver o erro como parte do processo de aprendizagem no libera o professor de estar sempreapresentando os modelos certos", diz Maria Anita.

    "O mais importante foi descobrir que a criana pensa de uma forma prpria e tem pontos de vista diferentes dosde um adulto"Maria Antonieta Pacini, professora na Escola Municipal Martim Frnacisoc de Andrada, em So Paulo, conta suadescoberta do cosntrutivismo

    EU E EMLIA"Leciono desde 1967 e alfabetizo desde 1984. A cartilha era a minha muleta. Em 1990, uma colega dispensou-a eachei os trabalhos dos alunos dela uma beleza. A decidi experimentar tambm, mas de forma irregular, porqueestava confusa. Em 1991, fiz um curso da prefeitura sobre Emilia Ferreiro e s ento dispensei a cartilha. Sei queela se baseou na teoria de Piaget, mas quando falo em construtivismo penso primeiro nela. O mais importante foidescobrir que a criana pensa de uma forma propria e tem pontos de vista diferentes dos do adulto. Agora,comeamos a trabalhar o nome do aluno e vamos definindo temas para atividades, a partir das quais a turmaseleciona o vocabulrio. Em relao cartilha, a maior diferena que os estudantes deixam de serquadradinhos, no escrevendo s o j aprendido."

    Dicas do mestre para professores

    Piaget sempre bateu duro na escola tradicional e defendeu prticas baseadas em jogos, pesquisas e trabalhos emgrupo. Veja o que ele escreveu:

    MINIADULTOS

    "A educao tradicional sempre tratou a criana como um pequeno adulto, um ser que raciocina e pensa comons, mas desprovido simplesmente de conhecimentos e de experincia. Sendo a criana, assim, apenas umadulto ignorante, a tarefa do educador no era tanto a de formar o pensamento, mas sim de equip-lo."

    O REI DA CLASSE"A escola tradicional no conhece outro relacionamento social alm daquele que liga um professor, espcie desoberano detentor da verdade intelectual e moral, a cada aluno considerado individualmente."

    O BOM ENSINO"A escola ativa pressupe, ao contrrio, uma comunidade de trabalho, com alternncia entre o trabalho individuale o trabalho em grupo."

    O ALUNO ATIVO

    "O professor deve conferir especial relevo pesquisa espontnea da criana ou do adolescente. Toda verdade aser adquirida deve ser reinventada pelo aluno, ou pelo menos reconstruda, e no simplesmente transmitida."

    MESTRE-COMPANHEIRO

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    "O que se deseja que o professor deixe de ser apenas um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforo,ao invs de se contentar com a transmisso de solues j prontas."

    TIRANIA INTELECTUAL"Na realidade, a educao constitui um todo indissocivel. No se pode formar personalidades autnomas nodomnio moral se o indivduo submetido a um constrangimento intelectual de tal ordem que tenha de se limitar aaprender por imposio, sem descobrir por si mesmo a verdade: se passivo intelectualmente, no conseguirser livre moralmente."

    PAPEL INSUBSTITUVEL" evidente que o educador continua indispensvel, a ttulo de animador, para criar situaes e armar osdispositivos iniciais capazes de suscitar problemas teis criana. E para organizar, em seguida, contra-exemplosque levem reflexo e obriguem ao controle das solues apressadas."

    HONRA AO MRITO"Vamos nos limitar, como exemplo do que pode ser feito com os modestos meios e sem nenhum incentivoparticular por parte dos ministrios responsveis, a lembrar a notvel obra realizada pelo (educador francs)Clestin Freinet."

    "Quando se respeitar a criana, ter fim essa escola em que professores reprovam alunos e saem tranqilamentede frias"Reflexes do pedagogo Lauro de Oliveira Lima, fundador do Centro Experimental Jean Piaget, no Rio de Janeiro

    "Tomei conhecimento dos estudos de Piaget nos anos 50 e passei a me corresponder com ele. Acabei criando umsistema de ensino baseado em sua teoria chamado, em homengem a ele, mtodo Psicogentico. Em 1974, abrino Rio de Janeiro a Escola A Chave do Tamanho (Centro Experimental e Educacional Jean Piaget). Nela, ascrianas no so divididas por sries tradicionais. So agrupadas em doze estgios de amadurecimentointelectual, passando de um nvel para outro segundo seu desempenho. Em Piaget, acho que o mais importante a relao entre homem e meio. a que a Pedagogia pode interferir. No na idia do construtivismo, que umprocesso interno. Essencial respeitar a criana, para acabar com essa escola em que professores reprovamalunos e saem de frias."

    AS COMEMORAESO centenrio de nascimento de Piaget vem sendo lembrado em vrios pases. No Brasil, o Centro ExperimentalEducacional Jean Piaget, no Rio de janeiro, promove a partir de 14 de setembro uma exposio sobre opesquisador e, de 6 a 8 de outubro, o Encontro Internacional Piagetiano. O endereo do Centro Travessa MadreJacinta, 18, Gvea, Rio de Janeiro, CEP 22451-140, tel. (021) 274-9345. Emilia Ferreiro est coordenando umcongresso internacional em trs edies na Amrica Latina. O evento j foi realizado na Cidade do Mxico, noms de abril e, em So Paulo, com a colaborao da USP, em junho. O encerramento ser em Buenos Aires, emoutubro. O telefone para informaes, no Brasil, (011) 818-3149.Mas as maiores comemoraes acontecem na Sua. A universidade de Genebra promove uma exposio atjaneiro e dois congressos cientficos, de 11 a 18 de setembro. Informaes: Archives Jean Piaget, 18, Route desAcacias, 1227 Acacias, Genebra, Sua, tel. (004122) 705-7021.