Jessé de Souza

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O caminho da inclusão Jessé de Souza - O Estado de S. Paulo 25 Outubro 2014 | 16h 00 Última década de crescimento econômico brasileiro foi obra do esforço e do trabalho da parte de baixo da população, que dinamizou a sociedade - e seu avanço é que pode garantir nosso futuro, afirma sociólogo O Brasil de hoje está diante de nova escolha histórica que pode decidir seu futuro. Essa escolha se refere a dois modelos de sociedade distintos. O primeiro, que ainda é o dominante, foi gestado em outro momento decisivo de nossa história, um desses momentos raros em que a escolha entre caminhos alternativos possíveis se realiza e se congela depois em uma espécie de “destino” para as gerações futuras. Esse momento foi o golpe de 1964 e das forças que o apoiaram, que optou por construir um modelo de moderna sociedade de consumo para 20% da população. Essa opção histórica foi consolidada nos anos 1990 com o governo FHC. O segundo modelo representa o anseio das forças derrotadas em 1964 por uma sociedade mais inclusiva. Modelo esse que vingou na esfera política nos últimos 12 anos, ainda que longe de deter a hegemonia na esfera pública que constrói a “opinião pública” e, portanto, não detém o efetivo controle da prática econômica e social. Afinal, existem limites claros para um Estado reformador em meio a uma sociedade conservadora. Ainda que esse segundo modelo tenha conseguido incluir, de modo precário e instável, outros 20% adicionais da população no mercado de consumo e reduzido formas extremas de miséria material, seu desenvolvimento se deu de modo errático, incompleto, sem efetivo planejamento e ao sabor das conjunturas. A fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo é explicada pela manutenção da força social e econômica do modelo anterior, as quais se mantiveram intocadas mesmo depois da eventual perda do poder político. Para que compreendamos a força inabalada do modelo dominante, mesmo com a perda eventual do poder político, é preciso compreender como funciona a íntima e orgânica relação entre economia e a política. A pedra de toque para que possamos perceber esse jogo, sempre mantido cuidadosamente nas sombras, é o mote da “corrupção e ineficiência estatal” contraposta à suposta virtude e eficiência do mercado. Essa é, na realidade, a “única bandeira” de legitimação do modelo excludente de sociedade ainda no poder real. Esse é, afinal, o único pretexto por meio do qual os interesses mais privados do 1% mais rico podem ser travestidos em suposto interesse geral. Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de “corrupção organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street - a matriz da Avenida Paulista - que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários. Enquanto os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países inteiros, ganha foto na capa da Time como financista do ano. Quem é que ganha, na verdade, com a corrupção tornada legal do mercado e celebrada como mérito? É isso que o cidadão feito de tolo não vê. No Brasil, inclusive, a tolice é ainda muito pior que em qualquer outro lugar. Nenhuma sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa, na qual quase 70% do PIB é ganho de capital - lucro, juro, renda da terra ou aluguel - e está concentrado no 1% mais rico da população. Por outro lado, só cerca de 30% cabe aos salários dos restantes 99%. Nas

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  • O caminho da incluso

    Jess de Souza - O Estado de S. Paulo

    25 Outubro 2014 | 16h 00

    ltima dcada de crescimento econmico brasileiro foi obra do esforo e do trabalho da

    parte de baixo da populao, que dinamizou a sociedade - e seu avano que pode garantir

    nosso futuro, afirma socilogo

    O Brasil de hoje est diante de nova escolha histrica que pode decidir seu futuro. Essa

    escolha se refere a dois modelos de sociedade distintos. O primeiro, que ainda o dominante, foi

    gestado em outro momento decisivo de nossa histria, um desses momentos raros em que a

    escolha entre caminhos alternativos possveis se realiza e se congela depois em uma espcie de

    destino para as geraes futuras. Esse momento foi o golpe de 1964 e das foras que o

    apoiaram, que optou por construir um modelo de moderna sociedade de consumo para 20% da

    populao. Essa opo histrica foi consolidada nos anos 1990 com o governo FHC.

    O segundo modelo representa o anseio das foras derrotadas em 1964 por uma sociedade

    mais inclusiva. Modelo esse que vingou na esfera poltica nos ltimos 12 anos, ainda que longe

    de deter a hegemonia na esfera pblica que constri a opinio pblica e, portanto, no detm o

    efetivo controle da prtica econmica e social. Afinal, existem limites claros para um Estado

    reformador em meio a uma sociedade conservadora. Ainda que esse segundo modelo tenha

    conseguido incluir, de modo precrio e instvel, outros 20% adicionais da populao no

    mercado de consumo e reduzido formas extremas de misria material, seu desenvolvimento se

    deu de modo errtico, incompleto, sem efetivo planejamento e ao sabor das conjunturas. A

    fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo explicada pela manuteno da fora

    social e econmica do modelo anterior, as quais se mantiveram intocadas mesmo depois da

    eventual perda do poder poltico.

    Para que compreendamos a fora inabalada do modelo dominante, mesmo com a perda

    eventual do poder poltico, preciso compreender como funciona a ntima e orgnica relao

    entre economia e a poltica. A pedra de toque para que possamos perceber esse jogo, sempre

    mantido cuidadosamente nas sombras, o mote da corrupo e ineficincia estatal contraposta

    suposta virtude e eficincia do mercado. Essa , na realidade, a nica bandeira de

    legitimao do modelo excludente de sociedade ainda no poder real. Esse , afinal, o nico

    pretexto por meio do qual os interesses mais privados do 1% mais rico podem ser travestidos em

    suposto interesse geral.

    Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de

    corrupo organizada, comeando com o controle dos mais ricos acerca da prpria definio

    de crime: criminoso passa a ser o funcionrio do Estado ou o batedor de carteira pobre enquanto

    o especulador de Wall Street - a matriz da Avenida Paulista - que frauda balanos de empresas e

    pases e arruna o acionista minoritrio embolsa, hoje mais que antes da crise, bnus milionrios.

    Enquanto os primeiros vo para a cadeia, o segundo, que s vezes arrasa a economia de pases

    inteiros, ganha foto na capa da Time como financista do ano. Quem que ganha, na verdade,

    com a corrupo tornada legal do mercado e celebrada como mrito? isso que o cidado feito

    de tolo no v. No Brasil, inclusive, a tolice ainda muito pior que em qualquer outro lugar.

    Nenhuma sociedade complexa to absurdamente desigual como a nossa, na qual quase 70% do

    PIB ganho de capital - lucro, juro, renda da terra ou aluguel - e est concentrado no 1% mais

    rico da populao. Por outro lado, s cerca de 30% cabe aos salrios dos restantes 99%. Nas

  • sociedades capitalistas mais dinmicas da Europa, como Frana e Alemanha, essa relao

    inversa. Ns, brasileiros, somos pelo menos o dobro mais tolos que os europeus. Essa deveria

    ser a real vergonha nacional.

    Mas tem muito mais. Essa transferncia grotesca de riqueza entre ns realizada por

    servios e mercadorias superfaturados - cobrados pelo mercado e no pelo Estado - com as taxas

    de juro e de lucro mais altas do mundo, que so cobradas pelos bancos e pelas indstrias cujos

    lucros e juros vo para o 1% mais rico. E quem so as classes cujos indivduos so feitos de

    tolos seno aquelas mdias e trabalhadoras ascendentes, precisamente as que consomem os

    carros com o dobro da taxa de lucro dos carros europeus; pagam taxas de juro estratosfricas

    para bancos em qualquer compra a prazo; e servios de celular dos mais caros do mundo, ainda

    que o servio seja incomparavelmente pior? Quem feito de tolo aqui seno partes significativas

    das classes mdias e trabalhadoras ascendentes, muitas das quais defendem o Estado mnimo e o

    mercado mximo e pagam preos mximos por produtos e servios mnimos e de baixa

    qualidade a capitalistas que possuem monoplios para produzir mercadorias e servios de

    segunda categoria?

    essa corrupo organizada do mercado que aparece como milagre do mrito de

    capitalistas que na verdade herdaram o privilgio e nunca correram nenhum risco. E essa viso

    das coisas que difundida na esfera pblica. Se pensarmos duas vezes, no entanto, percebe-se

    que o Estado , pasme-se, o nico lugar onde a corrupo ainda visvel como tal e tem,

    portanto, alguma possibilidade de controle real.

    Decisivo, tambm, o papel das fraes majoritrias e conservadoras da classe mdia de

    verdade entre ns, aquela que tem um estilo de vida e padro de consumo semelhante a suas

    irms europeia e americana. Essa classe mdia a scia menor do modelo de sociedade para

    20% da populao e ocupa os cargos de prestgio do mercado superfaturado e monopolizado.

    Essas fraes so a tropa de choque do 1% de endinheirados no s porque o defendem na

    prtica nos tribunais, nas salas de aula, nos jornais e em todas as dimenses do cotidiano onde a

    defesa dos privilgios dessa pequena minoria e de seu scio menor est em jogo; ela tambm

    quem sai rua, como nas manifestaes de junho de 2013, sequestrando as demandas populares

    do incio dos protestos em nome da eterna corrupo s da poltica, para defender os interesses

    da classe de endinheirados que a explora. Afinal, esse 1% a nica parcela que efetivamente

    tem algo a ganhar quando se encurta o Estado e se mercantiliza toda a sociedade. Nas sociedades

    que aprenderam a mitigar a produo de desigualdades que o capitalismo estimula, foi o Estado

    que retirou a sade, a educao e a previdncia das mos do mercado, de modo a garantir um

    mnimo de condies bsicas de competio social mesmo para quem no nasceu em bero

    privilegiado. Demonizar o Estado o pretexto perfeito para quem ganha com a mercantilizao

    total da sociedade, ou seja, o mesmo 1% que j controla toda a riqueza. Mas a tolice das classes

    mdias e fraes ascendentes que compram esse discurso como se fosse seu no explica a raiva e

    o dio ao uso do Estado - ainda que de modo parcial, incipiente e inconcluso - para os interesses

    da maioria esquecida da populao brasileira.

    Isso acontece hoje em dia num grau muito mais alto, posto que essa classe, agora, teme por

    seu lugar de privilgio devido ao encurtamento do espao social com as classes populares que

    foi a principal obra dos ltimos governos. O Brasil de hoje ainda marginaliza 60% de sua

    populao das benesses da sociedade moderna, mas o Estado ousou aumentar o nmero de

    includos no mundo do consumo de 20% para 40%. a raiva ancestral de uma sociedade

    escravocrata, acostumada a um exrcito de servidores cordatos e humilhados, que explica a

    tolice dos que compram a ideia absurda de mais mercado no pas do mercado j mais injusto e

    concentrado do mundo. A raiva, no fundo, contra o fato de muitos desses esquecidos estarem

  • agora competindo pelo espao antes reservado classe mdia, como vimos nos rolezinhos, nas

    reclamaes dos aeroportos cheios e na perda dos valores de distino com relao gentinha

    no mais to cordata e humilhada. Sem o ressentimento e o desprezo ao populacho - no fundo, o

    medo da competio social revertido em agresso -, no h como entender que tanta gente seja

    manipulada por um discurso hoje to descolado da realidade como o da virtude do mercado e

    demonizao do Estado.

    Se existe algum bem na polarizao das ltimas eleies que ela mostra os conflitos reais

    que racham a sociedade contempornea brasileira: a contradio entre as classes scias no

    projeto de construo de uma sociedade para 20% e o projeto inconcluso e incipiente de um

    Brasil para a maioria da populao. A segunda abolio da escravatura - hoje no mais de uma

    raa, mas de uma grande classe de excludos - proposta por Joaquim Nabuco h mais de cem

    anos hoje mais atual que nunca.

    Esse o ncleo do modelo alternativo de sociedade para o Brasil moderno. Central para o

    sucesso do projeto que tanto as fraes progressistas da classe mdia - elas tambm existem -

    quanto as que hoje so feitas de tolas por seus verdadeiros algozes compreendam que tm muito

    mais a ganhar com um Brasil mais inclusivo.

    A ltima dcada de crescimento econmico brasileiro, depois de 30 anos de estagnao, foi

    obra do esforo e do trabalho da parte de baixo da populao, que logrou dinamizar a economia

    e a sociedade como um todo. Com um mnimo de estmulo, foram as classes populares

    voluntariosas que encheram de otimismo e vigor uma sociedade estagnada e decadente. O futuro

    do Brasil, e muito especialmente das classes mdias e ascendentes, no aponta para a aliana

    subordinada com os endinheirados em que o lugar do otrio e do esperto j est pr-decidido.

    Aponta para o novo, para o nunca realizado que a verdadeira cura para a doena brasileira: o

    cncer do Brasil para poucos.

    Para isso no preciso muito: s um pouquinho mais de reflexo e generosidade e um

    pouquinho menos de mesquinharia e tolice.

    * JESS DE SOUZA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE

    HEIDELBERG, NA ALEMANHA, PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE

    FEDERAL FLUMINENSE (UFF), AUTOR DE 'A RAL BRASILEIRA: QUEM E COMO

    VIVE' (HUMANITAS)

  • Pensamento mediano

    Jess de Souza - O Estado de S.Paulo

    18 Maio 2013 | 16h 09

    Singularmente perversa e infantilizada, nossa classe mdia o suporte de uma viso de

    mundo que transforma explorao em generosidade

    A professora Marilena Chau prope uma discusso interessante e oportuna acerca da classe

    mdia brasileira. Seu julgamento indignado certeiro, ainda que abstrato e indiferenciado. Mais

    interessante que o burburinho causado perceber a "justificao" do privilgio dessa classe para

    que possamos compreend-la. Antes de tudo, o que "privilgio"? E como ele se reproduz? Em

    todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilgios que asseguram acesso diferencial

    aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais,

    como o prestgio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro ertico, por exemplo,

    so explicados a partir da apropriao diferencial de certos "capitais" - que vo pr-decidir toda

    a competio social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as

    24 horas do dia. Esses "capitais impessoais", antes de tudo o capital econmico e o capital

    cultural, so, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominao social

    injusta.

    A regra bsica da cegueira na qual todos vivemos que percebemos o "capital econmico",

    mas nunca percebemos o "capital cultural". que o capital cultural no so apenas os ttulos

    escolares de prestgio que garantem classe mdia seus empregos bem pagos e reconhecidos.

    Capital cultural tambm e principalmente toda a herana imaterial e invisvel, tanto emocional

    quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforo, no convvio familiar,

    como a habilidade para o pensamento abstrato, o estmulo concentrao - que falta s classes

    populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais

    importante que o presente, etc. Isso tudo somado constri o indivduo das classes alta e mdia

    como "vencedor" na escola e depois no mercado de trabalho, no por seu "mrito individual",

    como os indivduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma "vantagem de sangue",

    familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado.

    Como a herana do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de

    todo privilgio, invisvel e opaca conscincia cotidiana, a falcia do "milagre" do mrito

    individual pode campear vontade. Esse falso milagre o fundamento que legitima todo tipo de

    apropriao injusta de privilgios permanentes, condenando os indivduos que tiveram o azar de

    nascer na famlia e na classe errada misria e humilhao, como se algum pudesse

    "escolher" ser pobre e desprezado. A dominao social moderna produzida por um engodo,

    uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Mas isso acontece

    exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos como Frana, Alemanha

    ou Estados Unidos.

    Mas o que h de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que no existe

    nessas outras sociedades? que no Brasil as classes mdia e alta no apenas repetem a distoro

    da realidade que permite perceber o privilgio herdado como se tivesse nascido do prprio

    esforo, mas tambm "tiram onda" de que so generosas e crticas. Essa uma fraude que um

    republicano americano tpico jamais faria. Como isso se tornou possvel? Ainda que poucos

    percebam, o mundo social no apenas dinheiro e o que o dinheiro compra. O mundo social

    tambm construdo por ideias que lhe do compreensibilidade e orientam o comportamento

  • prtico das pessoas. O Brasil moderno tem como seu "mito fundador" - mito esse que coloniza

    todos os partidos polticos indistintamente - uma reformulao peculiar operada por Srgio

    Buarque no "mito nacional" sintetizado por Gilberto Freyre. So de Srgio Buarque as bases

    ideais do Brasil que se compreende como oposio entre um Estado ineficiente e corrupto e um

    mercado virtuoso, santo e eficiente.

    Essa ideia absurda - afinal no existe corrupo no Estado que no seja estimulada por

    interesses do mercado - hoje uma espcie de segunda pele dos brasileiros, muito especialmente

    nas classes mdias. Por qu? Porque ela confere algo indispensvel ao privilegiado que a

    necessria "boa conscincia" que essas classes precisam ao localizar em um "outro", que

    ningum define, uma "elite abstrata" que pode ser todos e ningum, a fonte de todo mal nacional

    e se eximir de toda a responsabilidade. Afinal, se todo o mal est no Estado corrupto ento se

    pode continuar, com boa conscincia e se achando uma pessoa muito legal, a explorar

    cotidianamente o trabalho mal pago das classes baixas, que poupa o tempo da classe mdia para

    que essa possa se dedicar a incorporar ainda mais capital cultural para reproduzir, em escala

    ampliada, seus prprios privilgios de classe. O fundamento do privilgio da classe mdia ,

    antes de tudo, o "conhecimento" valorizado - que exige tempo para ser apropriado -

    indispensvel reproduo de mercado e Estado. Essa "luta de classes", invisvel e cotidiana,

    tipicamente brasileira, ningum v porque nesse mundo absurdo da irresponsabilidade social

    tambm a desigualdade culpa da corrupo e do patrimonialismo do Estado.

    A ideologia do patrimonialismo - leitura, alis, superficial e distorcida de Max Weber

    compartilhada por Buarque e pela maioria dos intelectuais brasileiros de hoje - domina, com sua

    institucionalizao partidria, escolar e miditica, toda a vida poltica do Brasil moderno,

    abrangendo, por exemplo, em igual medida, tanto o PSDB quanto o PT. Essa a ideologia da

    "irresponsabilidade social praticada com boa conscincia", que permite encobrir todos os

    conflitos verdadeiros ao criar falsas oposies e, assim, silenciar as dores e sofrimentos

    cotidianos de uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta. A nossa classe mdia

    singularmente perversa e infantilizada, apenas por ser o suporte social mais tpico de uma viso

    de mundo narcsica que transforma explorao em generosidade impedindo todo aprendizado

    possvel e toda crtica. Mas a cegueira e o atraso da conscincia moral comprometem a

    sociedade como um todo.

    * JESS DE SOUZA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE HEIDELBERG,

    NA ALEMANHA, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA E

    AUTOR DE OS BATALHADORES BRASILEIROS - NOVA CLASSE MDIA OU NOVA

    CLASSE TRABALHADORA? (EDITORA UFMG)

  • O Estado de todas as culpas, por Jess Souza

    Jess de Souza - O Estado de S.Paulo

    05 Setembro 2009 | 14h 47

    Ele s associado politicagem. E o mercado, racionalidade: eis a trava do debate pblico no Brasil

    O debate pblico e poltico brasileiro, h algumas dcadas, travado sob a forma de um

    suposto conflito entre mercado e Estado. A atual discusso sobre o petrleo do assim chamado

    pr-sal apenas o confirma. Assim sendo, se quisermos compreender efetivamente o que est em

    jogo nesse debate conjuntural sobre o que fazer com o dinheiro do petrleo recm-descoberto -

    assim como compreender os debates conjunturais do passado recente e dos que ainda vo

    acontecer no futuro prximo - temos que focar nossa capacidade compreensiva na reconstruo

    da estrutura invisvel presente em todas essas situaes conjunturais passageiras. O tema do

    debate muda ao sabor das circunstncias. Sua "estrutura profunda", no entanto, permanece a

    mesma. Qual a estrutura profunda nunca tematizada enquanto tal na mdia? O Estado sempre

    suspeito de "politicagem" e de "aparelhamento" por indicaes polticas e o mercado definido

    como instncia "tcnica", ou seja, reflexo da "racionalidade pura" e do "clculo tcnico". Um a

    esfera do "privilgio inconfessvel" e o outro o reflexo da "razo tcnica" supostamente no

    interesse de todos. isso que explica o foco constante e dirio na "corrupo poltica" como a

    lembrar ao pblico onde est o mal e onde est o bem. Como tudo no mundo social, essa uma

    realidade "construda", fruto de uma leitura seletiva e interessada do mundo.

    Como a recente crise mundial mostrou sobejamente (j nos esquecemos dela?), a corrupo

    endmica tanto no mercado quanto no Estado em qualquer latitude do globo. A mitigao da

    corrupo em qualquer esfera da vida ocorre quando os mecanismos de controle ganham

    eficincia. A leitura seletiva do Estado como ineficiente e corrupto e do mercado como pura

    virtude esconde a ambiguidade constitutiva dessas duas instituies que podem servir ao bem ou

    ao mal conforme seu uso. Por que a "dramatizao" cotidiana mil vezes repetida de justamente

    essa viso distorcida do mundo? A meu ver porque ela o ncleo mesmo da violncia simblica

    - aquele tipo de violncia que no "aparece" como violncia - que torna possvel a manuteno e

    a reproduo continuada no tempo da sociedade complexa mais desigual e injusta do planeta.

    O mundo social no perceptvel a olho nu. Pode-se ver a pobreza e a desigualdade nas

    ruas e no se perceber suas causas. O brasileiro das ruas aprendeu a vincular as mazelas sociais

    do Brasil corrupo poltica. A tese do Estado corrupto - ou a tese do "patrimonialismo" na sua

    verso erudita igualmente conservadora e frgil - mata dois coelhos com uma mesma cajadada.

    Como o conflito que ela cria falso de fio a pavio - na realidade, mercado e Estado so

    interdependentes e igualmente ambivalentes -, ela ajuda a fabricar uma realidade que permite

    esconder todos os conflitos sociais reais. Pior ainda. Como uma falsa oposio dramatizada

    como "conflito", tem-se a impresso de que existe efetivo debate crtico entre ns, de que temos

    uma esfera pblica atuante, uma mdia atenta e crtica e um pas politicamente avanado, quando

    a realidade , ponto por ponto, precisamente o inverso.

    A dramatizao do Estado ineficiente e corrupto serve como fachada para "representar" a

    poltica sob a forma simplista, subjetivada e maniquesta das novelas, enquanto se cala e se

    esconde acerca das bases de poder real na sociedade. Toda a aparncia de "crtica social",

    enquanto toda ao efetiva a da conservao dos privilgios reais. Assim, fala-se do combate

    aos "coronis" e s "oligarquias" - sempre caricatamente nordestinas como o bigode de Sarney -

  • enquanto escondem-se as reais novas oligarquias responsveis por abocanhar quase 70% do PIB

    sob a forma de lucro ou juros reduzindo os salrios a pouco mais de 30%. Nos pases europeus

    social-democratas essa proporo inversa. As falsas oposies escondem oposies reais. O

    falso "charminho crtico" da dramatizao do Estado ineficiente e corrupto serve para esconder e

    desviar a ateno para a luta de classes que cinde o pas entre privilegiados que possuem um

    exrcito de pessoas para servi-los a baixo preo e dezenas de milhes de excludos sem nenhuma

    chance nem esperana de mudana de vida.

    Para todo um exrcito de analistas que se concentram no "teatro" da poltica - com suas

    fofocas e escaramuas dirias entre senadores e deputados com poder decisrio entre o nada e o

    muito pouco - falar-se em "luta de classes" um tabu. Luta de classes coisa do passado, tem a

    ver com greves de trabalhadores e sindicatos que esto desaparecendo ou perdendo importncia.

    Essa a cegueira da poltica como "espetculo" pseudocrtico para um pblico acostumado

    informao sem reflexo. A luta de classes s percebida nas raras vezes em que as classes

    oprimidas logram alguma forma de reao pblica eficaz. Condenam-se ao esquecimento todas

    as formas naturalizadas e cotidianas do uso e abuso do trabalho barato e no valorizado. Um

    pequeno exemplo. O exrcito de babs, empregadas, faxineiras, porteiros, office-boys,

    motoboys, que permitem que a classe mdia brasileira possa dedicar seu tempo a trabalhos

    valorizados e bem pagos relegando o trabalho pesado e mal pago a outra classe de seres

    humanos que tiveram o azar de nascer na famlia (e na classe social) errada. Isso no "luta de

    classes"? Apenas porque no h piquetes, polcia e sangue nas ruas? Apenas porque essa

    dominao silenciosa e aceita, dentre outras coisas porque tambm eles, os humilhados e

    ofendidos, ouvem todo dia que o nosso nico mal a corrupo no Senado ou em algum rgo

    estatal?

    E para as classes mdia e alta? No um verdadeiro presente dos deuses ter privilgios que

    nem seus consortes europeus ou norte-americanos possuem e ainda poder ter a conscincia

    tranquila de quem sabe que o mal do Brasil est em "outro" lugar, l bem longe em Braslia, um

    "outro" abstrato, mau por definio, em relao ao qual podemos nos sentir a "virtude" por

    excelncia? No se fecha com isso um crculo de ferro onde necessidades sociais e existenciais

    podem ser manipuladas por uma poltica e uma mdia conservadora e seu pblico vido por

    autolegitimao e por conscincia tranquila?

    Para Max Weber - pensador crtico mal lido entre ns como inspirao para a tese do

    patrimonialismo - os ricos, saudveis e charmosos, em todas as pocas e em todos os lugares,

    no querem apenas ser ricos, saudveis e charmosos. Eles querem saber que tm "direito" a

    serem ricos, saudveis e charmosos em oposio aos pobres, doentes e feios. essa necessidade

    o verdadeiro fundamento e razo do sucesso da tese da suspeio do Estado entre ns. Ela serve

    como uma luva para no perceber e naturalizar um cotidiano injusto e ainda transferir qualquer

    responsabilidade para uma entidade abstrata e longnqua, garantindo boa conscincia e aparncia

    de envolvimento crtico na poltica.

    A cortina de fumaa do falso debate acerca da demonizao do Estado serve para deslocar a

    nica e verdadeira questo do Brasil moderno: uma desigualdade abissal que separa gente com

    todos os privilgios, de um lado, de subgente sem nenhuma chance real de uma vida digna desse

    nome, de outro lado. O culpado desse crime coletivo no apenas o bigode de Sarney. toda

    uma sociedade infantilizada por falsos debates e por falsas prioridades e que ainda se pensa -

    suprema autoindulgncia - como crtica e atuante. Esse projeto poltico no de partidos, at

    porque o consenso conservador atinge todos indistintamente. As tmidas iniciativas de poltica

    social do atual governo, por exemplo, so mero paliativo da efetiva redeno dos secularmente

    humilhados e ofendidos. O que fazer com os recursos do pr-sal poderia e deveria ser o estopim

  • para um novo debate brasileiro, corajoso, maduro e generoso, por oposio ao debate covarde,

    infantil e mesquinho que temos hoje.

    * DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG (ALEMANHA)

    E PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, AUTOR

    DE A RAL BRASILEIRA: QUEM E COMO VIVE, A SER PUBLICADO EM OUTUBRO

    PELA UFMG

  • A misria da poltica brasileira

    Jess Souza* - O Estado de S.Paulo

    07 Fevereiro 2009 | 22h 38

    Falso conflito entre mercado e Estado oculta nossa tragdia social

    No mundo moderno a cincia, substituindo a funo das religies ticas nas sociedades

    pr-modernas, que detm a autoridade legtima para falar no espao pblico sobre qualquer

    assunto relevante. A esfera poltica no exceo. A forma dominante de se perceber a poltica

    no Brasil foi produto de intelectuais cujas ideias foram associadas, de modo intencional ou no,

    a interesses poderosos. Depois de institucionalizadas, essas ideias ganham vida prpria e

    esquecem sua gnese. Se quisermos compreender de que modo percepes arbitrrias do

    mundo se tornam norma de conduta legtima, inclusive para aqueles que so oprimidos por

    ela, precisamos relembrar sua gnese.

    Qual a ideia-fora que domina a vida poltica brasileira contempornea? Minha tese

    (influenciada pela leitura do liberalismo brasileiro em Florestan e Werneck Vianna, mas

    desenvolvida de modo bastante modificado e pessoal a seguir) a de que essa ideia-fora uma

    espcie muito peculiar de perceber a relao entre mercado, Estado e sociedade, onde o Estado

    visto, a priori, como incompetente e inconfivel e o mercado como local da racionalidade e da

    virtude. O grande sistematizador dessa ideia foi o patrono da sociologia moderna brasileira:

    Srgio Buarque de Hollanda.

    Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma civilizao

    singular e inverte o diagnstico positivo de Freyre, defendendo que essa civilizao, e seu

    tipo humano, o homem cordial, , na realidade, o nosso maior problema social e poltico.

    isso que confere o aparente charminho crtico de sua tese. Afinal, o homem cordial

    emotivo e particularista e tende a dividir o mundo entre amigos, que merecem todos os

    privilgios, e inimigos, que merecem a letra dura da lei. O interessante no argumento de

    Srgio Buarque que, apesar de o homem cordial estar presente em todas as dimenses da

    vida, grande parte de sua ateno se concentra na ao do homem cordial no Estado.

    o Estado dominado pelo homem cordial e particularista que se tornar o conceito mais

    importante da vida intelectual e poltica brasileira at hoje: o patrimonialismo do Estado e da

    elite corrupta. Nos seus seguidores, essa oposio se torna ainda mais simplista. O mercado

    capitalista deixa de ser uma instituio ambivalente, fruto de longo aprendizado histrico, que

    permite tanto, por um lado, separar o interesse econmico de consideraes ticas e com isso

    produzir riquezas em quantidades inauditas, mas, tambm, por outro lado, produzir e legitimar

    desigualdades injustas de todo tipo indefinidamente, para ser apenas o reino da virtude por

    excelncia. O Estado, tambm ambivalente, podendo refletir interesses de todo tipo,

    congelado no lado de uma suposta elite privilegiada, a qual, como ningum a define, se

    refere a todos e a ningum e pode ser usada em qualquer contexto ao bel prazer do falante (quase

    sempre, ele prprio, de alguma elite). Mas o toque de Midas dessa ideologia, que vai

    explicar a sua adeso popular, a associao, efetuada por baixo do pano e sem alarde, entre

    mercado e a sociedade como um todo, nos convidando a nos sentirmos to virtuosos, puros e

    imaculados como o mercado. A partir da, como a recompensa narcsica o aspecto decisivo,

    a associao tornada afetiva e, em grande medida, infensa crtica racional.

    O caminho dessa concepo em direo hegemonia que hoje ela desfruta foi longo. No

    perodo da redemocratizao do ps-guerra a classe social suporte dessa ideologia foi, alm da

  • elite empresarial paulistana que o seu bero, a pequena burguesia tradicional, ou seja, a classe

    que tem interesse na moral e transforma o ressentimento (que sente em relao ao burgus que

    inveja) em virtude moralista ao se imaginar mais puro e virtuoso que os outros. Quem votava em

    Jnio e Carlos Lacerda pertencia majoritariamente a esse grupo social. As significativas

    modificaes do capitalismo brasileiro nos ltimos 30 anos, principalmente sua expanso para o

    campo e a criao de um dinmico agronegcio exportador, permitiram uma verso moderna,

    expansionista e ainda mais agressiva dessa ideologia, para alm de sua matriz paulista original,

    abrangendo amplos setores do Centro-Oeste, Sudeste e Sul brasileiros. Esses setores que se

    desenvolveram a sombra do Estado (assim como a prpria elite empresarial paulistana), so os

    que defendem, agora, a no-interveno do mesmo em assuntos sociais e o corte de impostos. O

    PSDB representante dos setores modernos economicamente dinmicos e politicamente

    conservadores e no mais a UDN o representante partidrio dessa corrente. A fora dessa

    ideologia to grande que, mesmo a ral brasileira (1/3 dos brasileiros), sua maior vtima,

    como comprovam as recentes pesquisas empricas que desenvolvemos nos ltimos quatro anos

    com os tipos sociais da ral (A Ral Brasileira: quem e como Vive, no prelo, 2009),

    reproduz, a seu modo, essa mesma percepo do mundo.

    E por conta da influncia desse iderio, acima exposto, que ouvimos e lemos todo dia,

    pela grande maioria da mprensa brasileira, a cantilena contra a gastana do Estado quando este

    constri novas universidades ou procura formular as bases de um tmido, diga-se de passagem,

    assistencialismo de curto prazo. Esse pessoal, assim como os setores privilegiados brasileiros, se

    imagina efetivamente vivendo em Londres ou Chicago e no na sociedade complexa mais

    desigual do planeta.

    a hegemonia desse discurso que explica tambm a paradoxal posio de um lder

    carismtico como Lula. Lula uma espcie de profeta exemplar (Max Weber) dado que sua

    identificao com as massas afetiva, por conta de seu passado exemplar, sem, no entanto, ser

    baseada em nenhum discurso unitrio e coerente (atributo do profeta tico). O problema da

    sucesso de uma liderana carismtica, carisma pessoal por excelncia quando no se baseia

    num discurso articulado, reflete, precisamente, o drama atual de quem dispe do poder poltico,

    mas no possui a hegemonia ideolgica. Esse contexto, o fechamento do universo do discurso

    articulado, amesquinha toda a esquerda brasileira na covardia do politicamente correto, que

    fragmenta as lutas polticas em inmeras bandeiras sem articulao entre si e segundo a ltima

    moda, e cuja nica nota comum a timidez e a ausncia de ousadia.

    A dramatizao do (falso) conflito entre mercado e Estado esconde todos os nossos

    verdadeiros conflitos sociais. A percepo dominante e unilateralmente econmica do mundo

    coloniza o horizonte da linguagem e do discurso de tal modo que a dor e o sofrimento humanos,

    socialmente produzidos, so amesquinhados ao estatuto de sentimentos mudos, sem expresso

    articulada. isso que faz com que o efetivo resgate social dos nossos excludos, a verdadeira

    causa de todos os problemas sociais brasileiros, tentado de modo tmido e de curto prazo no

    atual governo, jamais esteja no centro do debate poltico entre ns.

    * DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG (ALEMANHA)

    E PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, AUTOR

    DE A CONSTRUO DA SUBCIDADANIA (UFMG)

  • A ral eternizada

    Jess Souza* - O Estado de S.Paulo

    05 Julho 2008 | 23h 59

    O erro histrico da sociedade brasileira achar natural ter "gente" de um lado e

    "subgente" de outro

    O debate sobre programas assistenciais populao mais pobre no Brasil se perde, muitas

    vezes, na miopia da conjuntura poltica e das querelas partidrias. como se no existisse

    "poltica" fora dos partidos e de suas respectivas propagandas. Eu gostaria de mudar o foco de

    anlise, dado que ele falso e condenado a atacar espantalhos e nunca os problemas reais. Na

    verdade, a "sociedade" e no o "Estado", ao contrrio do que pensam o senso comum e as

    teorias "cientficas" que apenas reproduzem o senso comum em linguagem erudita, o verdadeiro

    local da formao dos consensos, quase nunca articulados conscientemente, que monta todo o

    fundamento do horizonte do possvel em todas as questes polticas fundamentais.

    Esses consensos sociais inarticulados so construdos a partir de idias e concepes de

    mundo que logram se tornar hegemnicas em dado contexto histrico. A forma como a

    sociedade brasileira percebe, hoje em dia, sua abissal desigualdade social "colonizada" por

    uma viso "economicista" da realidade social. O economicismo , na realidade, um subproduto

    do liberalismo como viso de mundo hoje dominante em todo o planeta, a qual tende a reduzir

    todos os problemas sociais lgica da acumulao econmica. Entre ns, no entanto, o

    economicismo, de to hegemnico, transformou-se na nica linguagem social compreensvel por

    todos, de tal modo que nossos graves problemas sociais so todos superficialmente percebidos e

    amesquinhados a questes de "gesto de recursos". Com isso, cria-se a falsa impresso de que

    conhecemos os nossos problemas sociais e o que falta apenas uma "gerncia" eficiente - a

    crena fundamental de toda viso tecnocrtica do mundo - quando, na verdade, nem sequer se

    sabe o que se est combatendo.

    Seno, vejamos. A crena fundamental do economicismo a percepo da sociedade como

    sendo composta por um conjunto de homo economicus, ou seja, agentes racionais que calculam

    suas chances relativas na luta social por recursos escassos com as mesmas disposies de

    comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade.

    Nessa viso distorcida do mundo, o marginalizado social percebido como se fosse algum com

    as mesmas capacidades e disposies de comportamento do indivduo da classe mdia. Por

    conta disso, o miservel e sua misria so sempre percebidos como contingentes e fortuitos, um

    mero acaso do destino, sendo sua situao de absoluta privao facilmente reversvel, bastando

    para isso uma ajuda passageira e tpica do Estado para que ele possa "andar com as prprias

    pernas". Essa a lgica de todas as polticas assistenciais entre ns.

    esse mesmo raciocnio economicista, que abstrai sistematicamente os indivduos de seu

    contexto social, que transforma a escola, pensada abstratamente e fora de seu contexto, em

    remdio para todos os males de nossa desigualdade. Na realidade, a escola, pensada

    isoladamente e em abstrato, vai apenas legitimar, com o "carimbo do Estado" e anuncia de toda

    a sociedade, todo o processo social opaco de produo de indivduos "nascidos para o sucesso",

    de um lado, e dos indivduos "nascidos para o fracasso", de outro. Afinal, o processo de

    competio social no comea na escola, como pensa o economicismo, mas j est, em grande

    parte, pr-decidido na socializao familiar pr-escolar produzido por "culturas de classe"

    distintas.

  • Como toda viso superficial e conservadora do mundo, a hegemonia do economicismo

    serve ao encobrimento dos conflitos sociais mais profundos e fundamentais da sociedade

    brasileira: sua nunca percebida e menos ainda discutida "diviso de classes". O economicismo

    liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas

    "economicamente", no primeiro caso como produto da "renda" diferencial dos indivduos e no

    segundo caso como "lugar na produo". Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar

    invisveis todos os fatores e pr-condies sociais, emocionais, morais e culturais que

    constituem a renda diferencial. Esconder os fatores no econmicos da desigualdade , na

    verdade, tornar invisvel tanto a gnese quanto a reproduo da desigualdade no tempo. Para se

    compreender como as classes sociais so diferencialmente produzidas necessrio perceber

    como os "capitais impessoais" que constituem a hierarquia social e permitem a reproduo da

    sociedade moderna - o capital cultural e o capital econmico - so tambm diferencialmente

    apropriados. O capital cultural, sob a forma de conhecimento tcnico e escolar, fundamental

    para a reproduo tanto do mercado quanto do Estado modernos. essa circunstncia que torna

    as "classes mdias", que se constituem historicamente precisamente pela apropriao diferencial

    do capital cultural, uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe alta se

    caracteriza pela apropriao, em grande parte pela herana de sangue, de capital econmico,

    ainda que alguma poro de capital cultural esteja sempre presente.

    O processo de modernizao brasileiro constitui no apenas as novas classes sociais que se

    apropriam diferencialmente dos capitais cultural e econmico. Ele constitui tambm uma classe

    inteira de indivduos no s sem capital cultural nem econmico, mas desprovida, esse o

    aspecto fundamental, das pr-condies sociais, morais e culturais que permitem essa

    apropriao. essa classe social que designo em meus trabalhos de "ral" estrutural, no para

    "ofender" essas pessoas j to sofridas e humilhadas, mas para chamar a ateno,

    provocativamente, para nosso maior conflito social: o abandono social e poltico, "consentido

    por toda a sociedade", de toda uma classe de indivduos "precarizados" que se reproduz h

    geraes enquanto tal. Essa classe social, que sempre esquecida enquanto uma classe com uma

    gnese e um destino comum, s percebida no debate pblico como um conjunto de

    "indivduos" carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de discusso

    superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como "violncia",

    "segurana pblica", "combate fome", etc. Afinal, a produo de indivduos "racionais" e

    "calculadores", os tais que poderiam com a ajuda passageira do Estado depois "caminhar com as

    prprias pernas", no um dado "natural", "cado do cu", como pensa o economicismo

    dominante, o qual, alis, no "privilgio" de economistas. Ele produto de capacidades e

    habilidades transmitidas de pais para filhos por mecanismos de identificao afetiva por meio de

    exemplos cotidianos assegurando a reproduo de privilgios de classe indefinidamente no

    tempo. Disciplina, capacidade de concentrao, pensamento prospectivo (que enseja o clculo e

    a percepo da vida como um afazer "racional") so capacidades e habilidades da classe mdia e

    alta que possibilitam primeiro o sucesso escolar de seus filhos e depois o sucesso no mercado de

    trabalho. O que vai ser chamado de "mrito individual" mais tarde e legitimar todo tipo de

    privilgio no um milagre que "cai do cu", mas produzido por heranas afetivas de "culturas

    de classe" distintas, passadas de pais para filhos. A ignorncia, ingnua ou dolosa, desse fato

    fundamental a causa de todas as iluses do debate pblico brasileiro sobre a desigualdade e

    suas causas e as formas de combat-la.

    Na realidade, essa classe, que soma 1/3 da populao brasileira, produzida e reproduzida

    como classe precarizada, pela no-incorporao dos pressupostos indispensveis apropriao

    nem de capital cultural nem de capital econmico. Ela literalmente reduzida a "corpo" e

  • explorada pelas classes mdia e alta como "corpo" vendido a baixo preo, seja no trabalho das

    empregadas domsticas, seja como dispndio de energia muscular no trabalho masculino

    desqualificado, seja ainda na realizao literal da metfora do "corpo" venda, como na

    prostituio. Os privilgios da classe mdia e alta advindos da explorao do trabalho

    desvalorizado dessa classe so insofismveis. Se pensarmos apenas nas empregadas domsticas,

    temos uma idia de como a classe mdia brasileira, por comparao com suas similares

    europias, por exemplo, tem o singular privilgio de poder poupar o tempo das repetitivas e

    cansativas tarefas domsticas que podem ser investidas em trabalho produtivo e reconhecido

    fora de casa.

    Alm de se reproduzir como mero "corpo", incapaz de atender s demandas de um mercado

    cada vez mais competitivo baseado no uso do conhecimento til para o mercado, essa a classe

    tambm da escola (pblica) brasileira de segunda classe e do servio de sade (pblico) de

    segunda classe. Essa tambm a classe que transformada em delinqente e perigosa e julgada

    por outra classe (cuja truculncia e insensibilidade social podem ser perfeitamente percebidas no

    magistral filme Juzo, de Maria Augusta Ramos). Essa a nossa "luta de classes" intestina,

    cotidiana, invisvel e silenciosa que s ganha as manchetes sob a forma "novelizada" da

    violncia transformada em espetculo e alimentada pelos interesses comerciais da imprensa.

    Que o leitor no me entenda mal. muito melhor assistencialismo do que nada, at mesmo

    um assistencialismo de curto prazo e mope como inevitvel com os pressupostos do

    economicismo. Mas isso s vai conseguir melhorar as condies de reproduo da "ral"

    enquanto "ral". S vai "empurrar com a barriga" o grande drama histrico da sociedade

    brasileira desde o incio de seu processo de modernizao: a continuao da reproduo de uma

    sociedade que "naturaliza" a desigualdade e aceita produzir "gente" de um lado e "subgente" de

    outro. Isso no culpa de governos. So os consensos sociais vigentes que elegem os temas

    dignos de debate na esfera pblica assim como elegem a forma de (no) compreend-los. No

    nosso caso, "escolhemos" debat-los superficialmente e torn-los invisveis. Nossa ojeriza

    histrica de nunca perceber e admitir conflitos sociais j teve vrias causas e vrios nomes. Hoje

    em dia o economicismo hegemnico que esconde sistematicamente, mesmo para os setores

    potencialmente mais crticos de nossa classe mdia e alta, nosso conflito social mais

    fundamental, que tambm a fonte de todos os nossos reais desafios como sociedade.

    * JESS SOUZA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG

    (ALEMANHA) E PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE

    FORA, AUTOR DE A CONSTRUO DA SUBCIDADANIA (UFMG)