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    Jssica Raquel Rodeguero Stefanuto

    Fetichismo na Msica: do conceito adorniano reflexo sobre

    (im)possibilidades formativas.

    Araraquara

    Programa de Ps-Graduao em Educao EscolarMestrado

    UNESP

    2014

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    Jssica Raquel Rodeguero Stefanuto

    Fetichismo na Msica: do conceito adorniano reflexo sobre

    (im)possibilidades formativas.

    Dissertao apresentada bancaexaminadora, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em EducaoEscolar, sob orientao do prof. Dr. AriFernando Maia.

    Araraquara

    Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar

    UNESP

    2014

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    RESUMO

    O presente trabalho pretende discutir o conceito de fetichismo na msica de T.

    W. Adorno considerando que ele pode auxiliar no desenvolvimento de uma educao

    musical crtica e emancipatria. As principais referncias so suas obras de crtica

    musical, mas se buscar tambm uma atualizao do pensamento do autor frente nova

    configurao histrica atual. Para Adorno a crtica ao fetichismo na msica vai alm da

    discusso acerca da Indstria Cultural, remetendo ao contexto sacrificial e ritualstico

    presente no surgimento da msica e s caractersticas do processo de racionalizao e

    desencantamento do mundo que, na modernidade, se refletem nela. Tal conceito

    apresenta-se, na obra adorniana, em trs mbitos intimamente relacionados: o mbito da

    msica sria e da esttica musical, incluindo as dimenses tcnica, da produo e da

    execuo; o mbito social incluindo as funes e utilidades que os variados estilos

    musicais vm assumindo ao longo do tempo, e o mbito subjetivo, incluindo uma

    discusso sobre a relao que os ouvintes estabelecem com as mais variadas produes

    musicais. A semiformao dominante no campo musical torna necessrio pensar a

    educao em sua dupla dimenso, tanto adaptativa como crtica, mas ressaltando esta

    ltima e os limites impostos pela indstria cultural musical para a formao.

    Palavras chave: T. W. Adorno, filosofia da msica, fetichismo na msica, regresso da

    audio, semiformao, educao musical.

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    ABSTRACT

    This thesis discusses T. W. Adornos concept of fetishism in music considering his

    relevance to develop a critical and emancipatory musical education. The main

    references are his works on musical criticism, but it also seek an update of the author'sthinking ahead to the new current historical setting. The Adornos critique of fetishism

    in music goes beyond the discussion of Cultural Industry, it referring the sacrificial and

    ritualistic context in the emergence of the music and the characteristics of

    rationalization and disenchantment of the world that, in modernity, keep in the music.

    This concept is articulated in Adorno's work in three related areas: the scope of serious

    music and musical aesthetics, including technical dimensions, production and

    execution; the social context including the functions and values that varied musical

    styles have assumed over time, and the subjective sphere, including a discussion of the

    relationship listeners have with the musical productions. The dominant semiformation

    in the musical field makes it necessary to think about education in a dual dimension,

    both adaptive as critical, but emphasizing the latter and the limits imposed by the music

    industry for education

    Key words: T. W. Adorno, philosophy of music, fetishism in music, regressive

    listening, semiformation, music education.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, aqui, especialmente:

    Ao professor Dr. Ari Fernando Maia, o acolhimento e a orientao deste

    trabalho, a pacincia, a dedicao, e agradeo tambm a crtica e a desconstruo que

    foram essenciais para a construo deste texto.

    Ao meu pai, Jos Antnio, todo amor e todo apoio.

    minha me, Maria ngela, o amparo, o amor e a torcida.

    Aos meus irmos, Mriam, Lucas e Andr, a presena mesmo distante, a

    compreenso, as conversas, as risadas, a companhia, os telefonemas, as visitas.

    Aos professores da Escola Municipal de Ensino Artstico de Itpolis: Eliandra,

    Sandra, Adriana, Eud e, especialmente, Ana Maria Broderhausen, minha professora

    de piano. Esse trabalho seria impensvel sem tudo que aprendi com vocs.

    Mainara Barbieri, amiga que escapa do tempo e da distncia.

    professora Dr Nilma Renildes da Silva agradeo a amizade, o incentivo e a

    confiana.

    Olvia, a companhia dedicada e paciente.

    Aos amigos que enriqueceram o mestrado: Simone Cheroglu, Fernando Pizoni,

    Bruno Vitti, Giuliana Sorbara, Elaine Scarlatto e especialmente, Juliana Duci, Juliana

    Pimenta e Bruno Perozzi. Agradeo a companhia, as conversas, as piadas, os escritos, as

    leituras, as discusses, o apoio, enfim, agradeo termos compartilhado momentos muito

    ricos nessa aventura.

    Aos colegas da FACOL que compartilharam cotidianamente as alegrias e

    dificuldades da tarefa educativa.

    Aos meus alunos, que me fazem professora e me instigam a pensar a Educao.

    Ao professor Dr. Luis Antnio Calmon Nabuco Lastria agradeo a arguiocuidadosa deste trabalho ainda em fase de projeto.

    Ao professor Dr. Sinsio Ferraz Bueno e professora Dr Monique Andries

    Nogueira agradeo a presena e a significativa contribuio nas bancas do exame de

    qualificao e da defesa.

    Lidiane, que sempre fez mgica na secretaria de ps-graduao.

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    Como se fora a brincadeira de roda

    Memria!

    Jogo do trabalho na dana das mos

    Macias!

    O suor dos corpos, na cano da vida

    Histrias!

    O suor da vida no calor de irmos

    Magia!

    Como um animal que sabe da floresta

    Memria!

    Redescobrir o sal que est na prpria pele

    Macia!

    Redescobrir o doce no lamber das lnguas

    Macias!

    Redescobrir o gosto e o sabor da festaMagia!

    Luiz Gonzaga Jr.

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    NDICE

    Introduo................................................................................................................... p. 09

    Captulo 1: Fetichismo, Msica e Emancipao......................................................... p.15

    1.1 Msica e tcnica: dos primrdios do domnio da natureza racionalizaotipicamente ocidental....................................................................................................p.24

    1.2 Msica e Linguagem: o espao para a dialtica.....................................................p.39

    1.3 Msica emancipada: autonomia da dissonncia.................................................... p.42

    Captulo 2: Fetichismo e Sociologia da Msica.......................................................... p.49

    2.1 Msica e o fetichismo da mercadoria.................................................................... p.51

    2.2 Fetichismo e Indstria Cultural............................................................................. p.57

    2.3 Sobre funo social e finalidade das msicas populares ...................................... p.68

    2.4 Teoria do ouvinte .................................................................................................. p.77

    2.4.1. Construo social do gosto musical ........................................................ p.80

    2.4.2. Ajustamento x fuga: semelhanas entre o ouvinte e o fascista ............... p.85

    2.4.3. Tipos de comportamento do ouvinte e novas tecnologias ...................... p.89

    Captulo 3: Fetichismo e formao cultural ............................................................. p.102

    3.1Formao, semiformao e ressentimento ........................................................... p.104

    3.2 Fetichismo e regresso da audio ..................................................................... p.112

    3.3 (Im)possibilidades formativas ............................................................................ p.115

    Consideraes finais ................................................................................................. p.121

    Referncias ............................................................................................................... p.125

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    Porque o estremecimento passou e, apesar de tudo, sobrevive, que as obras de arte o

    objectivam como suas cpias.

    T. W. Adorno, Teoria Esttica

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    INTRODUO

    A msica tem sua origem nas manifestaes coletivas, ritualsticas, de culto

    sacrificial e, portanto, ela nasce vinculada ao mito, magia e aos ritos de oferenda aos

    deuses em troca do apaziguamento dos homens. Isso implica que, desde a origem, eainda hoje, a msica repleta de fantasia e feitios, mas tambm de racionalidade que,

    j nos primrdios, buscava o controle da natureza atravs da ordenao dos sons. Ao

    mesmo tempo em que o desenvolvimento da racionalidade musical acompanha o

    desenrolar da racionalidade extra musical, por sua linguagem intrinsecamente no-

    conceitual, a organizao dos sons ainda se mantm como refgio para elementos de

    fantasia que manifestam resistncia administrao desmedida, e expressa uma

    contradio: simultaneamente esse encanto desejado e buscado por meio da msica e

    temido, como expresso da conexo com a natureza a que o homem no pode retornar.

    A flauta de P e o pnico correspondente ao seu som, no mito grego, apontam

    o carter ambguo da experincia musical desde o seu incio, uma vez que ela ao mesmo

    tempo manifesta aqueles instintos e desejos que foram reprimidos pela civilizao e

    representa um meio para dirigi-los e racionaliz-los (ADORNO, 1938/1991). O

    potencial da msica como refgio para aquilo que, expulso da cultura, fascina e

    aterroriza os homens, permanece pela idiossincrasia de sua linguagem intrnseca. No

    entanto, tambm permanece o potencial, que parece ser predominante na indstria

    cultural, de a msica pregar uma falsa harmonia e uma falsa conciliao do homem com

    a natureza, com o finito e com o assustador, atravs de um encantamento agradvel que

    conforta e conforma.

    Atualmente, notrio que estamos diante de um cenrio de crescente

    preenchimento dos espaos e do tempo por msicas fetichizadasas msicas aparecem

    corriqueiramente como um preenchimento de ambientes, tal como se elas fossem papis

    de parede - e de um desenvolvimento tcnico que possibilita que os sujeitos encontrem

    e possuam canes e queas carreguem consigo em aparelhos de execuo musical

    que so utilizados nos mais variados ambientes e durante as mais variadas atividades.

    Ainda que no contexto brasileiro ela no ocupe o centro de discusses acaloradas e bem

    fundamentadas tal como ocupou no contexto em que viveu Theodor Adorno

    (ALMEIDA, 2007), a msica um elemento bastante acessvel e presente no cotidiano

    das pessoas. Apesar disso, no se percebe uma valorizao dos profissionais de ensino

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    de msica1 ou investimento em estudos e no acesso a uma educao musical

    especializada e crtica, como se o encantamento, a satisfao e a utilidade

    proporcionadas por uma audio mediana das msicas favoritas fossem os elementos

    mais importantes e a finalidade bvia de todo material musical e como se esse cenrio

    no tivesse uma correspondncia com um cenrio social de conformismo e

    dessensibilizao.

    Na indstria cultural, os elementos encantatrios da msica se manifestam de

    forma reprimida, administrada e irrefletida, o que motiva o desenvolvimento da presente

    pesquisa que, por sua vez, focaliza as seguintes questes: afinal, o que faz com que a

    msica seja capaz de encantar? Ser s uma artimanha da forma mercadoria para fazer-

    se necessria e desejada? E decorrente disso: como o estudo sobre o encantamento que

    as msicas potencialmente provocam pode contribuir para a reflexo acerca de uma

    educao musical com vistas emancipao? Uma educao que vise o conhecimento

    musical sem reflexo sobre os elementos de feitio da msica no seria, ela mesma, uma

    educao fetichista? Para responder a essas perguntas, este trabalho se volta para o

    conceito defetichismo na msica, discutido por T. W. Adorno em alguns momentos de

    sua produo de crtica cultural e musical e busca refletir, a partir dele, sobre as

    possibilidades formativas que encontramos num contexto de recusa formao.

    O conceito em questo parece ser importante inclusive para compreender a

    prpria crtica musical realizada pelo autor e pertinente estud-lo e debat-lo quando

    se evidencia um crescente preenchimento dos ambientes j ruidosos por msicas de

    sucesso sem qualquer qualidade artstica. O modo como a msica se presentifica no

    contexto atual, sendo tantas vezes idolatrada, revela que a relao dos seres humanos

    com a msica traz consigo algo de irracional, como se se tratasse de um feitio lanado

    pelos sons e pelos aparatos tcnicos sobre um sujeito ouvinte que jaz encantado e

    paralisado. Nesse caminho, pensar uma formao cultural a partir da discusso doconceito de fetichismo na msica fornece uma perspectiva crtica para alm dos

    contedos musicais, pois traz tona elementos que remetem relao dos homens com

    a natureza, com o desenvolvimento da racionalidade ocidental e com o medo, e implica

    repensar o conformismo em prol de uma indignao com a situao vigente no mundo.

    1 importante lembrar que, no Brasil, a profisso de educador musical no existe no Cdigo deProfisses do Ministrio do Trabalho. A educao musical tambm no consta como subrea das reas de

    Artes ou de Educao, nas listas emitidas pelas agncias de fomento. Isso implica que, oficialmente, noexiste educao musical no Brasil. (FONTERRADA, M. T. de O. De tramas e fios: um ensaio sobremsica e educao. So Paulo: Unesp, 2003).

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    A necessidade e relevncia de aprofundar e explanar os estudos adornianos na

    rea da Sociologia e Filosofia da Msica se mostram na vinculao inevitvel da msica

    com a crescente e irrefrevel racionalizao e tecnificao de nosso tempo, que elimina

    da sociedade como um todo e de cada sujeito o que resta de imensurabilidade. Voltar-se

    para os estudos acerca da msica fetichizada dedicar-se a um aspecto relevante e atual

    da obra adorniana que j contm em si a esperana de uma formao cultural e de uma

    msica que seja diferente da conformao que elas adquirem na sociedade radicalmente

    tecnificada. Diante da irrefrevel regresso advinda do progresso irrefrevel, cabe a

    realizao da crtica radical da sociedade e da prpria racionalizao como forma de

    fazer jus ao pensamento racional e, nesse sentido, Adorno foi profcuo em realizar a

    crtica radical da sociedade a partir da crtica imanente do material musical.

    Num sentido amplo, Adorno, em vrios textos (1938/1991, 1941/1986,

    1956/2008, 1958/2009, 1968/1986, 1970/2011, 1973/2011, 1978/1999), problematiza ao

    menos trs aspectos do fetichismo na msica, a saber: o mbito estritamente musical, ou

    composicional, acerca da tcnica intrnseca s obras, da produo e da execuo

    musical; o mbito social, sobre as funes e utilidades que as msicas vm assumindo

    ao longo do tempo; e o mbito subjetivo, sobre os modos como os sujeitos recebem e

    percebem os sons. Cada um desses aspectos, mutuamente relacionados, ensejam

    discusses que em alguma medida colaboram para se pensar e discutir sobre uma

    formao cultural e musical que almeje a emancipao dos sujeitos.

    Fundamentando-se, ento, nos trabalhos adornianos, o primeiro captulo deste

    trabalho objetiva discutir as formas de fetichizao que se vinculam ao material musical

    justamente pelo seu carter etreo e sua linguagem no conceitual. Essa perspectiva leva

    em conta o fato de que a Histria das msicas deve ser pensada para alm do momento

    em que a msica produzida na lgica da mercadoria j que se considera o

    desenvolvimento do material musical para alm dos perodos comumente consideradosde caracterizao da msica ocidental tipicamente europeia, o que remete a crtica para

    alm da configurao das msicas na indstria cultural. Compreender o fetiche que

    envolve as msicas requer que o pensamento seja remetido aos primrdios, s primeiras

    manifestaes musicais, ao contexto em que essas manifestaes provavelmente se

    davam e ao carter sagrado que mediava a relao dos ouvintes com as msicas.

    Alm disso, requer um olhar que vincule o desenvolvimento musical ao prprio

    desenvolvimento da racionalidade e do processo civilizatrio, uma vez que, sendo asmsicas produes humanas e culturais, elas so necessariamente produtos sociais que

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    trazem em si marcas de seu momento histrico e organizao social. Tendo isso em

    vista, preciso problematizar que justamente o encanto, a magia, o rito, o culto, a

    fantasia, o fetiche e a adorao que se fizeram presentes nos primrdios da Histria da

    humanidade e da criao musical, vo sendo paulatinamente banidos e acusados de mito

    ao longo do desenvolvimento da civilizao ocidental.

    sabido que, num sentido freudiano, no se reprime algo sem que esse algo

    retorne de algum outro modo. As tentativas de administrar e de expurgar os vestgios de

    magia da msica que relembram aos homens uma relao com a natureza que no mais

    existe, mas que ainda fascina e aterroriza, marcam o desenvolvimento da racionalidade

    musical e a tornam fetichizada de outras maneiras, regressando para uma nova forma

    daquilo que se pretendeu fugir. As possibilidades de emancipao do material musical

    so pensadas a partir de composies que, ao contrrio de desejar banir qualquer

    fetiche, encarem as possibilidades tcnicas, as contradies e as tarefas do momento

    histrico, bem como a criatividade do artista, e se faam obras verdadeiramente

    artsticas. Ainda no primeiro captulo, ento, discutem-se as formas de emancipao do

    material musical dos tabus e supersties que se inculcaram nas estruturas de

    organizao musical ao longo do processo de racionalizao tipicamente ocidental.

    O segundo captulo objetiva discutir o conceito de fetichismo na msica

    levando em considerao uma mediao da sociologia da msica, ou seja, considerando

    as relaes entre as msicas e os ouvintes sendo esses necessariamente seres sociais e,

    portanto, com um ouvido e uma percepo construdos histrica e socialmente.

    necessrio considerar que existe uma dialtica entre as diferentes mediaes aqui

    estudadas e que as separaes feitas tm carter didtico. Nesse caminho, discute-se

    como as msicas passam a assumir as mais variadas funes para os ouvintes, as quais

    se distanciam de qualquer preocupao com a verdade e com a lida com a contradio.

    As msicas, ao contrrio de buscarem uma emancipao dos ouvintes, parecem seorganizar muito mais em favor da ideologia vigente, coadunando-se com os sistemas de

    organizao de poder hegemnicos e encantando os ouvintes que so levados ao esforo

    de uma obedincia resignada.

    Nesse captulo tambm se discute o envolvimento das msicas com o fetiche

    tpico das mercadorias. Com o que foi discutido at aqui, j parece ser claro que essa

    forma de fetichizao do material musical no a nica, at porque h um considervel

    tempo histrico antes da constituio de uma lgica mercadolgica que invadiu a tudo ea todos. A msica sequestrada pela indstria cultural passa a tambm carregar consigo o

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    fetiche tpico das mercadorias, mas ainda assim, por sua linguagem no conceitual, as

    msicas guardam possibilidades de resistncia que precisam ser levadas em

    considerao quando se pensa seu papel formativo e seu carter emancipador. Ou seja,

    mesmo quando envolta com o fetichismo das mercadorias, as msicas mantm certas

    peculiaridades que precisam ser pensadas em favor das prprias msicas.

    A discusso sobre uma psicologia social do ouvinte ganha lugar tambm no

    segundo captulo, afinal, a tarefa de pensar a constituio da msica como um cimento

    social encantatrio deve levar em conta a constituio do prprio ouvinte, de sua

    personalidade, dos hbitos e tabus que so tpicos de determinados momentos

    histricos. Uma aceitao da situao vigente tendo a cumplicidade de determinadas

    msicas no pode ser compreendida sem que se envidem esforos no sentido de

    compreender como ocorre essa aceitao fetichista nos prprios sujeitos. O fetichismo

    na msica tem como contrapartida subjetiva uma regresso dos sentidos e a promoo

    de uma relao cega e irrefletida com os bens da cultura que merece reflexo.

    Nesse caminho, o terceiro captulo complementa essa discusso pensando a

    funo formativa da msica e seu papel dentro de um contexto educativo que, tal como

    compreende Adorno, deve mirar-se no imperativo categrico de que as condies que

    permitiram Auschwitz no mais se repitam. Ora, se a cultura no emancipatria por si

    s, j que altos nveis de apropriao e compreenso de bens culturais podem coexistir

    com as mais crassas atrocidades, urgente e necessrio que se produzam discusses

    acerca das (im)possibilidades emancipatrias da msica, essa produo cultural que

    permeia quase que ubiquamente os ambientes cotidianos. Os conceitos de regresso da

    audio e de semiformao so discutidos aqui no esforo de compreender as

    contrapartidas subjetivas e tambm as formas fragmentadas e reificadas de se

    estabelecer relao com os elementos da cultura.

    A discusso acerca do fetichismo na msica traz elementos novos para sepensar a educao musical bem como para a construo de uma reflexo que possibilite

    a elaborao de princpios educativos tendo em vista as possibilidades de resistncia, de

    inadequao e de emancipao que a msica pode carregar consigo. preciso, portanto,

    pensar a formao musical tanto positiva como negativamente, uma vez que parece que

    encontramos problemas anteriores ao educar musicalmente. Comportamentos de recusa

    e fria em relao formao cultural no podem ser menosprezados. Pensar as

    possibilidades de formao de ouvintes conscientes, considerando a reflexo sobre asimpossibilidades formativas, , ento, a discusso que finaliza este trabalho.

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    A dissonncia a verdade da harmonia.

    T. W. Adorno, Teoria Esttica.

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    Captulo 1

    Fetichismo, Msica e Emancipao

    Antes de iniciar a discusso acerca do fetichismo na msica, vlido pensar

    etimologicamente a palavrafetiche. Um autor contemporneo, Christoph Trcke (2010),

    remete obraDu culte des dieux fetiches (1760),de autoria de Charles De Brosses2para

    explanar a palavrafetiche: a palavra fetiche vem do portugusfeitio: obra de magia.

    Por trs est o latim factitius: feito artificialmente (p.199). Trcke faz esse

    apontamento numa parte de seu texto dedicada mercadoria fetiche.

    Vladimir Safatle, num texto que especificamente discute a questo do

    fetichismo (2010), com foco maior para a perspectiva freudiana, tambm encontra em

    De Brosses uma das primeiras caracterizaes sobre o tema:

    Enunciado pela primeira vez em 1756 pelo escritor francs Charles deBrosses, membro da Acadmie ds Inscriptions et Belle-Lettres deParis e colaborador da Enciclopdia de Diderot e dAlambert, ofetichismo aparecia como pea maior de uma operao que visava aestabelecer os limites precisos entre nossas sociedade esclarecidas esociedades primitivas pretensamente vtimas de um sistema encantadode crenas supersticiosas (p.21).

    Caracterizando sociedades primitivas, o termo fetiche j estava presente nas

    reflexes dos sculos XVII e XVIII:

    De fato, o termo nasce do impacto das Grandes Navegaes noimaginrio europeu. Vendo a maneira com que os objetos inanimadose animais eram compreendidos como dotados de foras sobrenaturaispor tribos africanas, os navegantes portugueses descreveram taisobjetos comofetissos (SAFATLE, 2010, p. 32).

    Safatle (2010) pontua, ento que, para De Brosses, o termo fetissodiz respeito

    a algo divino, coisa encantada devido sua pretensa derivao da ra iz latina fatum

    (destino, orculo),fanum (lugar consagrado) efari (falar, dizer), deixando de lado a raiz

    latina derivada de factio (modo de fazer), facticius (artificial, falso), que era a correta

    (p.32).

    2

    De Brosses (1709 1777) era um escritor francs, membro da Acadmie ds Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopdia de Diderot e dAlambert (SAFATLE, 2010).

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    possvel perceber que o termo fetichismo remete inicialmente para a

    atribuio de qualidades sobrenaturais a objetos que so fruto da ao dos prprios

    homens. Tambm se refere inicialmente a caractersticas de povos ditos primitivos e

    infantis. Bruno Latour (2002) quem, com uma provocativa ironia, discute a produo

    de fetiches modernos e busca descrever, no contexto das Grandes Navegaes, como os

    portugueses, cobertos de amuletos da Virgem e dos santos (p.15), acusaram os

    africanos de primitivos por adorarem fetiches.

    K. Marx tambm faz meno ao conceito para a definio de fetichismo da

    mercadoria, no volume Primeiro dO Capital, ao considerar as caractersticas

    metafsicas e teolgicas que envolvem os objetos tornados mercadorias. nos estudos

    de Adorno, no entanto, que se encontra a discusso sobre o fetichismo na mercadoria

    cultural e, especificamente, o fetichismo na msica, considerando as peculiaridades do

    material musical e sua organizao e percepo pelos ouvintes ao longo da Histria.

    Discutir um conceito, de modo geral, tende a ser um esforo no sentido de

    conter completamente o objeto, abarcando-o em sua totalidade na tentativa de conhec-

    lo. Para T. W. Adorno, porm, essa tentativa de abarcar a totalidade necessariamente

    frustrada: a dialtica no diz inicialmente seno queos objetos no se dissolvem em

    seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradio com a norma

    tradicional da adaequatio (1967/2009, p.12). Para o autor, o conceito no abarca

    completamente o objeto nem se mantm esttico numa lgica de adequao e

    objetivao. A contradio, por sua vez, presente no conceito, fornece um indcio da

    no-verdade da identidade (ADORNO, 1967/2009, p.12), lembrando que a

    correspondncia total do conceito com o objeto falsa e que a totalidade do conceito

    ilusria.

    Ao mesmo tempo, para o autor, pensar significa identificar (ADORNO,

    1967/2009, p.12-13), ou seja, o conceito condio e substncia para o pensamento etem seu contrapeso no pensamento reduzido a frmulas, ideal do pretenso

    esclarecimento (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006). Essa lgica do pensamento

    que busca a identificao, a equivalncia e a unidade, porm, insuficiente: chocando-

    se com os seus prprios limites, esse pensamento ultrapassa a si mesmo (ADORNO,

    1967/2009, p.13). A insuficincia inevitvel do pensamento seria, ento, potencialmente

    capaz de impeli-lo at a dialtica.

    Tratar, pois, de um conceito referente ao pensamento dialtico e negativo de T.W. Adorno soa como um paradoxo se no se levar em conta tanto a existncia de

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    contradies no interior do conceito como de elementos que no se contm no mbito

    conceitual, contrariando a adequatiotradicional e a busca desesperada por objetividade.

    com essa perspectiva que o presente trabalho se lana ao desafio de ampliar a

    compreenso sobre o conceito de fetichismo na msica no pensamento adorniano e, a

    partir dele, pensar a formao: a utopia do conhecimento seria abrir o no -conceitual

    com conceitos, sem equipar-lo a esses conceitos (ADORNO, 1967/2009, p.17).

    Adorno contextualiza sua filosofia da msica considerando o processo que

    inexoravelmente levou a uma cultura em que o desenvolvimento da tcnica e da cincia

    no se d sem as mais grotescas contradies, em que se confundem pensamento e

    matemtica e na qual os indivduos so privados da liberdade e da autonomia que

    seriam potncia de uma racionalidade emancipatria. Nesse processo, a razo perverte-

    se em ratio, numa pretensa objetividade que elimina as possibilidades dela voltar-se

    para si mesma e reconhecer seus limites e possibilidades de superao, sendo, afinal,

    uma razo capaz de esclarecer-se. As contradies que esto presentes na cultura se

    expressam tambm no campo musical, no qual coexistem a reduo da razo ao clculo

    e a ampliao da racionalizao para abarcar o que dela pretende escapar.

    A crtica adorniana, ao contemplar a presena de sons ordenados desde os

    primrdios da Histria humana e apontar para uma relao entre msica, linguagem e o

    processo de dominao da natureza, vai para alm da crtica indstria cultural. Essa

    crtica remete a uma discusso sobre a relao entre elementos mticos no material

    musical e o gradual processo de racionalizao que se reflete nele, assim como relao

    entre msica e linguagem, s funes que a msica desempenha na sociedade burguesa

    e, finalmente, aos problemas da regresso da audio. O conceito de fetichismo da

    mercadoria, portanto, levado em considerao na obra adorniana, mas no suficiente

    para explicar as vrias formas de fetiche que envolvem as msicas.

    Nesse sentido, nota-se uma articulao entre msica e filosofia que coloca emestreita relao os conceitos filosficos e musicais: os estudos do autor no qual este

    trabalho se fundamenta consideram que os modos como historicamente se d o

    desenvolvimento da forma musical esto fundamentalmente relacionados ao problema

    dos processos de racionalizao e desencantamento do mundo. Tais processos, prprios

    de uma sociedade crescentemente tecnificada, acabam por ter uma expresso musical,

    na medida em que sua lgica se expressa tambm na msica. Adorno (1970/2011)

    afirma que a arte, desde os seus mais antigos vestgios, encontra-se j demasiadoimpregnada de racionalidade (p. 501), mas importante ressaltar que a racionalidade

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    primitiva, relacionada mimese, ainda que seja racionalidade, no pode ser confundida

    com a racionalizao tpica do ocidente moderno, que discutida por Max Weber

    (1921/1995) e retomada na Dialtica do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno

    (1947/2006).

    Se para Adorno (1970/2011, p.135) analisar as obras artsticas equivale a

    perceber a histria imanente nelas armazenada, oesforo despendido nesse primeiro

    captulo de compreender a fetichizao do material musical que est relacionada

    intimamente ao processo composicional e ao processo de racionalizao e

    desencantamento do mundo, o qual cinde violentamente esprito e matria e busca banir

    os elementos subjetivos da cultura e assim, inevitavelmente, da estrutura interna da

    msica. Esse aspecto composicional relativo estrutura interna das obras musicais, ou

    seja, lgica da ordenao dos sons, alturas, timbres, duraes e silncios que

    compem a linguagem e a tcnica intrnseca s obras musicais.

    importante acrescentar que embora existam caractersticas universalmente

    presentes na forma musical, como o fato dela sempre se organizar como arte temporal,

    h diferenas importantssimas entre, por exemplo, o canto gregoriano, a msica

    barroca, a romntica e aquela que se emancipa da tonalidade. Em cada uma delas se

    expressa de um modo distinto a tenso entre as possibilidades tcnicas e a expresso,

    consubstanciando em cada momento um conjunto de possibilidades estticas. Alm

    disso, as formas e contedos musicais tm carter social, ou seja, expressam tambm

    um determinado momento do desenvolvimento da racionalidade.

    Msica se faz de som e silncio se desenvolvendo no tempo 3. Ela , portanto,

    uma arte essencialmente temporal. O som produzido por uma sequncia de impulsos e

    repousos que compem a onda sonora. Para Wisnik, representar o som como uma onda

    significa que ele ocorre no tempo sob a forma de uma periodicidade, ou seja, uma

    ocorrncia repetida dentro de uma certa frequncia (1989, p.17). Essa periodicidade efrequncia fazem com que a onda sonora contenha a partida e a contrapa rtida do

    movimento: a ascenso da onda representa impulsos que caem ciclicamente e geram

    um novo impulso (WISNIK, 1989, p.17).

    Essa relao entre opostos, como impulso e repouso na onda sonora, marca a

    estrutura da msica desde seus elementos mais especficos. O tmpano auditivo, por

    3Sobre a fsica do som ver WISNIK, J. M. O som e o sentido uma outra histria das msicas, Ed.Companhia das Letras, 1989.

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    exemplo, registra a onda sonora, ao capt-la, como uma srie de compresses e

    descompresses. Ele entraria em espasmo se no houvesse esse movimento de opostos e

    s houvesse compresso. Desse modo, no h som sem silncio: o som presena e

    ausncia, e est, por menos que isso aparea, permeado de silncio (WISNIK, 1989,

    p.18). Tambm o silncio est permeado de sons: mesmo quando no ouvimos os

    barulhos do mundo, fechados numa cabine prova de som, ouvimos o barulhismo do

    nosso prprio corpo (WISNIK, 1989, p.18). A estrutura sonora , portanto, rica de

    relaes entre opostos.

    Wisnik (1989, p.26-27) afirma que a natureza oferece tanto a experincia do

    som com frequncias regulares, constantes, estveis, como aquelas que p roduzem o

    som afinado, com altura definida quanto a experincia do som de frequncias

    irregulares, inconstantes, instveis, como aquelas que produzem barulhos, manchas,

    rabiscos sonoros, rudos:

    Um som constante, com altura definida, se ope a toda sorte debarulhos percutidos provocados pelo choque dos objetos. Um somafinado pulsa atravs de um perodo reconhecvel, uma constnciafreqencial. Um rudo uma mancha em que no distinguimosfrequncia constante, uma oscilao que nos soa desordenada(WISNIK, 1989, p.27).

    No entanto, seres de cultura que somos, ultrapassamos a caracterizao fsica

    acerca do som e do rudo: nosso ouvido, construdo histrica e culturalmente, passa a

    diferenciar som agradvel de rudo a partir de outros elementos e valores engendrados

    no processo de racionalizao do mundo e nas relaes de poder. A racionalizao do

    material sonoro e a percepo desses sons no so neutras, pois participam de um

    processo que identifica som ordenado e razo (ATTALI, 1977/2003). Poder, ordem e

    rudo se relacionam intimamente e superam qualquer definio fsica de rudo.Attali (1977/2003) explicita que rudo tanto violncia, algo que incomoda,

    que desconecta e interrompe uma transmisso, como tambm percebido como fonte de

    exaltao. O rudo se faz simulacro do assassinato ritual. At mesmo biologicamente,

    Attali afirma que rudo uma fonte de dor, j que depois de certo limite ele se torna

    uma arma mortfera: o ouvido, que transforma sinal sonoro em impulso eltrico

    endereado para o crebro, pode ser danificado e at destrudo, quando a frequncia

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    sonora ultrapassar 20000 hertz ou quando a intensidade ultrapassar 80 decibis4(p.27).

    Outras consequncias do excesso de rudo citadas pelo autor so a diminuio da

    capacidade intelectual, acelerao dos batimentos cardacos e da respirao, retardo no

    processo digestivo, hipertenso, entre outros. O rudo, aquilo que se sacrifica como

    vtima, possui, assim, um estado ambivalente e peculiar, pois a vtima ao mesmo

    tempo adorada e excluda (ATTALI, 1977/2003, p.26).

    Ao fazer uma anlise do quadro Carnivals Quarrel With Lent, de Pieter

    Brueghel5, Atalli (1977/2003) afirma que o pintor tornou audvel o confronto poltico

    entre harmonia e dissonncia, ordem e desordem, rudo e silncio. A relao entre o

    festival e a quaresma aparece para ele como uma relao poltica e ideolgica da qual o

    som e o rudo so representantes simblicos. Para Atalli, a ordenao dos sons e o

    movimento de excluso do rudo no processo de desenvolvimento da msica acontecem

    intimamente relacionados organizao poltico-econmica da poca. Existe assim,

    uma relao da msica com o poder, pois a msica , primordialmente, a domesticao

    e a ritualizao dessa arma como um simulacro do ritual assassino que canaliza a

    violncia, ou seja, ela uma forma menor de sacrifcio (ATTALI, 1977/2003).

    Sacrifica-se aquilo que considerado rudo em prol de uma ordem que almeja

    extirpar a violncia. No entanto, cria-se uma ordem pretensamente imutvel, fixa e

    universal que tambm violenta! E assim, para Attali (1977/2003), toda msica pode

    ser definida como um rudo ao qual dado forma de acordo com um cdigo, ou seja, de

    acordo com as regras do arranjo que teoricamente conhecvel pelo ouvinte. A

    significao do som se faz, assim, bastante complexa: o valor de um som determinado

    em relao a outros sons e isso dentro de uma cultura especfica (ATTALI, 1977/2003).

    O fato a ser sublinhado que essa ordenao no simplesmente dada, mas criada, j

    que a msica inscrita dentro do prprio poder que produz a sociedade e a significao

    dos sons se associa quase sempre a um discurso hierrquico (ATTALI, 1977/2003).A ordenao sacrificial ganha contornos matemticos e torna-se pretensamente

    idntica lgica matemtica. Weber matematicamente claro ao explicar a ordenao

    4No ingls: The ear, which transforms sound signals into electric impulses addressed to the brain, can be

    damage, and even destroyed, when the frequency of a sound exceeds 20,000 hertz, or when its intensityexceeds 80 decibels.

    5 Pieter Brueghel (1525-1569) foi um pintor renascentista flamengo, comumente nomeado como

    Brueghel, O Velho. O quadro citado uma pintura a leo sobre madeira de 1m18 x 1m64 que data de1559 e se encontra no Museu de Histria da Arte, em Viena, ustria.

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    da msica e descrever as leis pretensamente imutveis e invariveis que caracterizam a

    msica ocidental racionalizada e qual nosso ouvido moderno familiarizado:

    toda msica racionalizada harmonicamente parte da oitava (relao de

    frequncias 1:2) e a divide nos dois intervalos de quinta (2:3) e quarta(3:4), portanto em duas fraes do esquema n/n+1, chamadas fraesprprias, que tambm esto na base de todos os nossos intervalosmusicais abaixo da quinta (WEBER, 1995, p.53).

    Assim, msica no apenas a objetividade fsica da onda sonora, mas a

    fora que sons, silncios e rudos significam e evocam em determinados momentos da

    cultura (WISNIK, 1989). Isso implica que o que considerado som afinado ou

    agradvel e o que considerado rudo incmodo, varia ao longo da Histria e das

    culturas nas mais variadas localidades geogrficas sempre imbudo de valores para

    alm da caracterizao fsica do som. O quanto esse jogo de opostos pode ser explorado

    nas construes musicais tambm bastante relativo ao momento histrico da cultura e

    da poltica.

    A tentativa de evitar o rudo antiga. Wisnik (1989) afirma que:

    A histria da adoo e da rejeio da msica pela Igreja, durante toda

    a Idade Mdia, cheia de idas e voltas. Por um a lado, h momentosde rigorismo em que a prpria msica concebida, toda, como rudodiablico a ser evitado (quando se percebe, at com razo, que impossvel purg-la de componentes ruidosos: a msica abre sempre oflanco da falha, da assimetria, do excesso, da incompletude e dodesejo). Em outros momentos so os barulhos animados das msicaspopulares, suas percusses, cantos e danas, que nunca se calaram nahistria humana, que entram em alguma medida nas igrejas e chegama se misturar com os cantos litrgicos em sugestivas polifonias (veja-se por exemplo o caso dos motejos, cantos a vrias vozes misturandoelementos sacros e profanos). Essa histria participa da luta entre ocarnaval (que entroniza no calendrio cristo aqueles ritos pagos que

    liberam o rudo e a corporalidade) e a quaresma (com seu somsilencioso e asctico) (WISNIK, 1989, p.41).

    A msica tonal moderna, por exemplo, continua a evitar o rudo, sendo

    executada inclusive em ambientes que idealmente isolam os considerados rudos

    (WISNIK, 1989). Ao contrrio, a partir do sculo XX, a msica que ultrapassa a

    tonalidade incorpora rudos que alargam o campo sonoro do que considerado som

    musical. A incorporao de barulhos de todo tipo nas msicas do sculo XX guarda

    relao com o fato dos ouvidos dos homens desse tempo terem sido constitudos aps a

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    Revoluo Industrial e aps a Primeira Guerra, ou seja, depois de que rudos

    inimaginveis e assustadores at ento passaram a compor a cena da vida cotidiana. Ou

    seja, a lgica que indica o que som agradvel ou desagradvel, som musical ou rudo,

    som que remete a ordem ou a desordem, s pode ser compreendida historicamente.

    Tambm os conceitos de consonncia e dissonncia, referentes

    respectivamente aos sons que ouvimos e que trazem a sensao de repouso ou que, ao

    contrrio, sugerem a necessidade de uma resoluo, devem ser pensados em relao

    inescapvel com a cultura e o momento histrico. Schoenberg (1922/2001) quem

    afirma que:

    As expresses consonncia e dissonncia, usadas como antteses, so

    falsas. Tudo depende, to somente, da crescente capacidade do ouvidoanalisador em familiarizar-se com os harmnicos mais distantes,ampliando o conceito de som eufnico, suscetvel de fazer arte (...).O que hoje distante, amanh pode ser prximo; apenas umaquesto da capacidade de aproximar-se. A evoluo da msica temseguido esse curso: incluindo no domnio dos recursos artsticos, umnmero cada vez maior de possibilidades de complexos j existentesna constituio do som (SCHOENBERG, 1922/2001, p59).

    Almeida (2007, p.297) sintetiza: "A idia de consonncia e dissonncia

    estabelecida, portanto, no pela fsica, mas pela histria". Assim, possvel afirmar quea organizao interna da msica no se d apartada de seu contexto social, mas ao

    contrrio, acolhe em sua estrutura interna elementos e sentidos que vo muito alm da

    mera objetividade fsica do som, abarcando poderes polticos e econmicos . No por

    acaso, afirmou Adorno, a tonalidade foi a linguagem musical da era burguesa

    (ADORNO, 1968/1986, p.155). Tambm no se aparta das formas de audio de seus

    ouvintes: a organizao dos sons conta algo de seu contexto e traz as marcas e

    possibilidades do seu tempo, podendo essa caracterizao ser percebida de variadas

    maneiras ou nem ao menos ser compreendida pelos sujeitos o que no impede seu

    poder poltico. Em outras palavras, o ouvido dos sujeitos tambm construdo histrica

    e socialmente.

    Para discutir o conceito de fetichismo na msica, Adorno atentou para a

    Histria presente nas obras de arte. Portanto, o conceito de fetichismo na msica no

    discutido apenas em seu texto de 1938, intitulado O fetichismo na msica e a regresso

    da audio, mas uma temtica que perpassa sua obra de crtica musical. Nesse

    movimento de atentar para a Histria da racionalizao, a crtica adorniana ultrapassa a

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    crtica ao fetichismo da mercadoria e abarca uma crtica do fetichismo na msica em

    relao inescapvel com o processo de racionalizao e desencantamento do mundo.

    Adorno remete ao trabalho weberiano Os fundamentos racionais e sociolgicos da

    msica (1921/1995), o qual trata da categoria racionalizao para discutir as

    construes musicais:

    Max Weber, autor do projeto mais compreensivo e ambicioso de umasociologia da msica at a data [...] ressaltou a categoria daracionalizao como a categoria decisiva do ponto de vista dasociologia da msica e assim, a ops ao irracionalismo dominante naconsiderao da msica, sem que, no entanto, sua tese ricamentedocumentada tivesse mudado muito na religio burguesa da msica6(ADORNO, 1970b/2006, p.13-14).

    o processo de racionalizao do mundo que, penetrando na msica,

    gradativamente busca afastar os elementos contraditrios que compem a estrutura

    musical e que procuram identificar rudo, desordem, maldade e, por outro lado, razo,

    harmonia e bem estar. A harmonia musical como um sistema de poder torna audvel a

    legitimidade da ordem do mundo: como poderia uma ordem que trouxe uma msica

    to maravilhosa ao mundo no ser desejada por Deus e requerida pela cincia?7

    (ATTALI, 1977/2003, p.61). A harmonia capturada pela lgica racional ocidental

    moderna mascara uma organizao hierrquica e conflituosa, pois probe o rudo, a

    dissonncia e o conflito mesmo que, evidentemente, eles continuem a existir

    (ATTALI, 1977/2003).

    Adorno tambm claro ao afirmar que a msica, mesmo participando desse

    movimento progressivo de racionalizao, traz ainda consigo justamente aquilo que foi

    expulso nesse processo de desencantamento: dentro da evoluo global em que

    participou da racionalidade progressiva, no entanto, ao mesmo tempo, a msica sempre

    foi tambm a voz do que no caminho dessa racionalidade se deixava para trs ou se

    6No espanhol Max Weber, autor del proyecto ms comprehensivo y ambicioso de uma sociologa de la

    msica hasta la fecha [...] resalt la categoria de racionalizacin como la categoria decisiva desde elpunto de vista de la sociologia de la msica y, com ello se opuso al irracionalismo dominante em laconsideracin de la msica, sin que, por l dems, su ricamente documentada tesis hubiera cambiadomucho em la religin burguesa de la msica.

    7

    No ingls: how could anorder that brought such wonderful music into the world not be the one desiredby God and required by science?.

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    sacrificava como vtima8 (ADORNO, 1970b/2006, p.14). Como feita de sons, a

    msica no se deixa ordenar de uma vez por todas: os sons afinados pela cultura, que

    fazem a msica, estaro sempre dialogando com o rudo, a instabilidade, a dissonncia

    (WISNIK, 1989, p.27). Da o movimento de se atentar ao processo de desencantamento

    do mundo e s modificaes tcnicas incutidas na msica, bem como s possibilidades

    de fantasia e magia que tambm permanecem, para compreender as formas de fetiche

    que compem o material musical alm da msica comercial da Indstria Cultural.

    1.1 Msica e tcnica: dos primrdios da dominao da natureza racionalizaotipicamente ocidental

    No grego, tcnica techn identificada arte, situando-a junto aoartesanato e aos ofcios. Por sua vez, musik techna arte das musasidentifica o que

    hoje chamamos msica. V-se que a tcnica tinha um significado inseparvel da arte,

    bem como o mito, um significado inseparvel da organizao dos sons. Esses sentidos

    no se mantiveram ao longo do processo de racionalizao do mundo, porm essas

    relaes entre msica e mito e entre tcnica e artesanato no foram completamente

    resolvidas e integradas.

    Adorno (1970/2011), no entanto, reflete sobre o problema que colocado

    quando se busca uma origem da msica, em outras palavras, reflete sobre a dificuldade

    em se estabelecer um momento inicial que, sendo a msica produto da ao tipicamente

    humana, remeteria a um marco de fundao da prpria cultura: como poder ento

    buscar-se a origem histrica de algo que no nenhum produto da natureza e que

    pressuposto pela histria humana? (ADORNO, 1970/2011, p.494).Trcke (2008), na

    obra Filosofia do Sonho, busca ampliar a compreenso acerca da formao da cultura

    desenvolvendo uma profunda arqueologia. No entanto, sobre o estabelecimento de uma

    origem, ele tambm afirma que:

    Os comeos tm a sua prpria manha. Quem, por exemplo, permite ocomeo da sociedade moderna no sculo 19 e a arte moderna nosculo 20, logo estar confrontado com uma via moderna nos fins daIdade Mdia e imagens de expresso surrealista do barroco primitivo.Quem procura o comeo da burguesia na poca da Renascena,depara-se com a pergunta de por que j no quer deixar valer a polis

    8No espanhol Dentro de la evolucin global em que participo de la racionalidad progresiva, sin

    embargo, al mismo tiempo, la msica sienpre fue tambim la voz de l que em la senda de esaracionalidad se dejaba atrs o se le sacrificaba como vctima (ADORNO, 1970b/2006, p.14).

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    tica como burguesia primitiva. Onde h comeos h formasprecedentes (TRCKE, 2008, p.98, grifos do autor).

    Apesar disso possvel pensar acerca de um contexto que possibilite ampliar a

    compreenso sobre os primrdios e Adorno (1958/2009) traz elementos que remetem aesse incio e s formas musicais mais primitivas. Esse autor relembra que:

    Toda msica e especialmente a polifonia (...) teve sua origem emexecues coletivas do culto e da dana, fato que nunca foi superado ereduzido a simples ponto de partida pelo desenvolvimento damsica para a liberdade, mas a origem histrica est ainda implcitacom seu sentido prprio, mesmo que a msica tenha rompido htempos com toda execuo coletiva (ADORNO, 1958/2009, p. 24).

    Os primrdios da musik techn, portanto,podem ser relacionados aos rituais

    mgicos que os homens, em coletivo, realizavam em busca de apaziguamento e controle

    da natureza pavorosa e desconhecida. Essas primeiras execues foram coletivas e se

    deram num contexto em que predominava uma relao mimtica entre os homens e a

    natureza: nesse mbito mgico, o feiticeiro torna-se semelhante aos demnios; para

    assust-los ou suaviz-los, ele assume um ar assustadio ou suave (HORKHEIMER e

    ADORNO, 1947/2006, p.21). O feiticeiro, na tentativa de controlar a natureza, imita

    aquilo que apavora os homens: todo ritual inclui uma representao dos

    acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia (HORKHEIMER

    e ADORNO, 1947/2006, p.20).

    Nesse contexto ritualstico e sagrado, a msica era um elemento mgico,

    venerado e, por isso, fetichista. Ela possua um fetiche que Adorno chamar na Teoria

    Esttica (1970/2011, p.35) de fetiche arcaico. Arcaico por ser retrospectivamente

    discutido: aos sujeitos modernos possvel discutir que esse fetichismo remete ao

    contexto, um tanto nebuloso, dos primrdios da msica, em que as produes musicais

    relacionavam-se aos trabalhos mgicos de feiticeiros e eram restritas a determinadas

    cerimnias rituais. Essa forma de fetichizao do material musical parece circunscrever-

    se a esse momento intrinsecamente mgico da Histria das msicas, podendo, no

    entanto, aparecer velado, como um sintoma, em produes musicais no decorrer do

    processo evolutivo da tcnica musical, quando a magia vai sendo brutalmente

    reprimida.

    A forma arcaica de fetichizao do material musical diferencia-se do feticheque se desenvolve ao longo do processo de desencantamento do mundo porque, no

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    contexto de magia, a dominao aparece escancarada e no camuflada em iluses ou

    confortos ideolgicos: a inteno , de fato, dominar a natureza em prol da

    sobrevivncia humana. E a relao dos homens com essa natureza, no contexto mgico,

    leva em conta aquele animismo que foi acusado de ser mitolgico pelo processo de

    esclarecimento. Nas palavras de Horkheimer e Adorno: a magia pura e simples

    inverdade, mas nela a dominao ainda no negada, ao se colocar transformada na

    pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu (1947/2006, p.21).

    Num tempo anterior linguagem alfabtica racionalizada e escrita, o canto

    ocupava um lugar sagrado, mtico e dependia da transmisso oral e da memria. Neste

    passado pr-histrico, a vida e a morte haviam se explicado e entrelaado nos mitos

    (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.19). Para Wisnik (1989) os mitos centram

    as narrativas sobre a msica no mbito do smbolo sacrificial. A origem dos

    instrumentos musicais tambm remete lgica do sacrifcio: as flautas so feitas de

    ossos, as cordas de intestinos, tambores so feitos de pele, as trompas e as cornetas de

    chifres (p.35). Nesse contexto, oanimal sacrificado para que produza o instrumento,

    assim como o rudo sacrificado para que seja convertido em som, para que possa

    sobrevir o som(p.35).

    No sacrifcio de uma vtima, espera-se realizar uma troca com os deuses:

    oferece-se o bode expiatrio para que os deuses deem em troca apaziguamento aos

    homens. A msica, em seus primrdios, realizava o mesmo movimento: o som o

    bode expiatrio que a msica sacrifica, convertendo o rudo mortfero em pulso

    ordenado e harmnico (WISNIK, 1989, p.34). Para Trcke (2010) essa relao

    centrada no pavor: a troca foi nos seus primrdios uma legtima defesa contra o pavor

    e por isso tinha por objetivo nada menos que o equilbrio nervoso e csmico da

    excitao, deuses apaziguados, poderes naturais no mais ameaadores, relaes

    pacificadas, em suma, um mundo aprumado (p.217).As discusses de Wisnik (1989), Attali (1977/2003) e Trcke (2008)

    convergem quando eles pensam a msica como elemento ordenador, ou seja, como o

    mais intenso modelo utpico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a mais

    bem acabada representao ideolgica [...] de que ela no tem conflitos (WISNIK,

    1989, p.34). Nesse raciocnio, um som em unssono capaz de, magicamente, evocar

    um fundamento sonoro que, por sua vez, tambm um fundamento de um universo

    social pretensamente harmnico: as sociedades existem na medida em que possamfazer msica, ou seja, travar um acordo mnimo sobre a constituio de uma ordem

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    entre as violncias que possam atingi-la do exterior e as violncias que as dividem a

    partir do seu interior (WISNIK, 1989, p.33-34)

    Na Teogonia, de Hesodo, a manifestao da palavra cantada presentifica os

    deuses e a ordem social de equilbrio, harmonia e prosperidade instaurada pelo poder de

    Zeus. O canto se organiza como um apelo sensual com a finalidade de dominao e

    ordenao. Nesse contexto, os deuses j no se identificam diretamente aos elementos

    da natureza, mas passam a represent-los, signific-los: os deuses separam-se dos

    elementos materiais como sua suprema manifestao. De agora em diante, o ser se

    resolve no logos (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.21). Os homens no

    mais imitam a natureza para control-la, mas passam a se identificar imagem e

    semelhana do poder invisvel e, a este poder, assemelham-se pelo comando e pelo

    olhar de senhor (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.21).

    Na msica tambm se expressa esse movimento de a lgica mimtica

    gradualmente tornar-se uma lgica de representao e significao. Schoenberg

    (1922/2001) afirma que a arte , em seu estgio mais elementar, uma simples imitao

    da natureza (p.55).O sistema tonal, enquanto forma posterior de ordenao dos sons,

    faz a mediao entre uma linguagem musical mais ou menos espontnea dos homens,

    uma linguagem, por assim dizer, falada, imediata, e normas que haviam se cristalizado

    dentro dessa linguagem (ADORNO, 1968/1986, p.150). Schoenberg (1922/2001)

    tambm afirma que o sistema temperado o qual somente um expediente para

    dominar as dificuldades materiais tem pouca semelhana com a natureza (p.60). A

    msica progressivamente se afasta da mimesepara imitar o logos.

    preciso considerar que a musik techn nasce num contexto mitolgico e

    mgico em que existe uma fungibilidade especfica: em vez do deus, o animal

    sacrificial que massacrado (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.22). A

    cincia d fim a essa especificidade: a cincia no precisa dessa substitutividadeespecfica, pois os animais utilizados nos experimentos so um mero exemplar,

    facilmente descartveis e fungveis (ZUIN, 1999, p.11-12). Considerando que a

    unidade e a equivalncia so os elementos que permitem a calculabilidade e, portanto, o

    conhecimento do mundo, a cincia passa a se afastar do objeto que buscava conhecer:

    como a cincia, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, no pelo

    distanciamento progressivo em relao ao objeto (HORKHEIMER e ADORNO,

    1947/2006, p.22).

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    A lgica da organizao dos elementos musicais gradualmente passa de um

    contexto em que a relao dos homens com a natureza era mediada pela lgica da

    identidade com aquilo que apavora, da troca especfica sacrificial que repete a situao

    assustadora, permitindo distines que levam tenso viva elementos necessariamente

    distintos, para um contexto em que a equivalncia e o distanciamento dos objetos regem

    todos os mbitos da vida humana. Para Horkheimer e Adorno (1947/2006, p.27), antes,

    os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora a prpria igualdade torna-se fetiche.

    Portanto, a msica fetichista desde os primrdios, porm nem sempre sua funo

    encantatria foi conivente com a ideologia burguesa.

    A concepo atual de tcnica como procedimento resultado desse longo

    processo de racionalizao que, ao buscar a identificao e a unidade de todos os

    mbitos da vida com a cincia, cinde mtodo e contedo (ADORNO, 1970/2011,

    1970b/2006). Porm, para Adorno, esse processo de racionalizao no consegue ser

    completo na obra de arte: sobre toda a tcnica artstica paira, em relao com o seu

    telos, uma sombra de irracionalidade (1970/2011, p.331). O encantamento arcaico

    persiste ainda, inextirpvel, mas em alguma medida negado e recalcado, no fetichismo

    atual. Para o autor (1970b/2006), a tcnica, em seu sentido grego, a representao

    externa de algo interior.

    Em msica, tcnica, e, portanto, a expresso de algo interior, significa a

    realizao do contedo espiritual por meio dos sons, seja por meio da produo ou da

    reproduo dos sons: a totalidade dos recursos musicais a tcnica musical: a

    organizao da prpria coisa e sua traduo para o fenomnico9 (ADORNO,

    1970b/2006, p. 233). Evidentemente, em msica essa objetivao da obra ganha um

    carter peculiar, pois a tcnica capaz de representar a msica em partitura, por

    exemplo, mas isso no equivale a sua manifestao: a msica objetivada quando

    executada e sua objetivao etrea e espiritual, mas, ainda assim, intimamenterelacionada tcnica. Para Adorno, porm, esses dois momentos, tanto a produo

    como a execuo dos sons, so abarcados pelo conceito de tcnica (ADORNO,

    1970b/2006).

    A organizao tcnica da obra capaz de fornecer alguma objetividade e, de

    qualquer modo, lhe d um sentido, por isso, a tcnica se faz chave para o conhecimento

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    Na verso em espanhol: La totalidad de los recursos musicales es la tcnica musical: la organizacin dela cosa misma y su traducin a lo fenomnico.

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    da arte: a obra de arte se converte num contexto de sentido em virtude de sua

    organizao tcnica; nada h nela que no se legitime necessariamente como tcnico10

    (ADORNO, 1970b/2006, p.233). , portanto, necessrio conhecer a linguagem tcnica

    da msica para adentrar seu contedo. Porm, se a msica no pode ser compreendida

    sem que se compreenda sua tcnica intrnseca, tambm a tcnica deve ser compreendida

    mediante compreenso da obra (ADORNO, 1970/2011).

    A msica artstica, por sua vez, no apenas tcnica, mas tambm contedo.

    Para o pensamento dialtico de Adorno, contedo e tcnica so idnticos e noidnticos:

    noidnticos porque a obra de arte tem sua vida justamente na tenso entre o interior e o

    exterior e porque a obra s pode ser considerada artstica quando apontar para alm de

    si mesma, apontamento que apenas se vislumbra quando se mantm em relao dialtica

    elementos contrrios, como interno e externo; porm, como em composio s existe o

    que realizado, a manifestao do contedo espiritual s se d por meio da tcnica. E

    aqui se identificam contedo e tcnica: interior e exterior se geram reciprocamente

    (ADORNO, 1970b/2006).

    Nessa dinmica entre tcnica e contedo permanecem resduos de fantasia e

    utopia caractersticos dessa dialtica que, recalcados pela lgica civilizatria, podem se

    expressar sintomaticamente como um fetichismo paralisante. Tendo em vista a

    necessidade de existncia de tenso de opostos na construo musical, Adorno pontua

    que o trabalho tcnico na arte se torna sem sentido, ou mesmo falso, sempre que ela

    ignora essa noidentidade e trata coisas diferentes como iguais, multiplicando laranjas e

    mquinas de escrever11(ADORNO, 1978/1999, p. 204). Pode-se falar tambm de um

    fetichismo na msica quando ela condenada a falsas identidades. A presso econmica

    um fator que, para Adorno (1958/2009), promove a reduo de tenses a formas

    equivalentes, tanto no interior da obra como nos mecanismos externos a ela:

    Esta tenso, que se resolve na obra de arte, a tenso entre sujeito eobjeto, entre interior e exterior. Hoje, quando sob a presso daorganizao econmica total, ambos os elementos se integram numafalsa identidade, numa conivncia das massas com o aparato de poder,

    10Na verso em espanhol: La obra de arte se convierte en contexto de sentido en virtud de suorganizacin tcnica; nada hay en ella que no se legitime necesariamente como tcnico.

    11No ingls The technical work of art becomes meaningless, or even false, whenever it ignores this

    nonidentity, and treats unlike things alike, multiplying oranges and typewriters (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p.204)

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    e junto com a tenso se dissolvem o estmulo criador do compositor ea fora de gravitao da obra (...). (ADORNO, 1958/2009, p.27)

    A regncia do princpio de equivalncia, que iguala fenmenos

    necessariamente contraditrios tal como na relao entre subjetividade e objetividade,faz com que tempo e espao terminem sendo reduzidos tambm a um denominador

    comum, tanto durante a composio como na forma de audio. Adorno far, na

    Filosofia da nova msica (1958/2009), crtica espacializao do tempo na obra de

    Stravinsky. Quanto a isso, Almeida (2007) exemplifica que:

    Em ambas as peas [Ragtime para Onze Instrumentos e Piano-Rag-Music, de Stravinsky], assim como ragtime daHistria do Soldado, a

    nfase na sincopa surge, literalmente, como uma ideia fora do lugar.Pois se o efeito da recusa do tempo forte justamente o de quebrar auniformidade rtmica, em uma msica na qual essa uniformidade nemmesmo considerada, a sncopa acaba revertendo em seu contrrio.Paradoxalmente, so as notas em tempo forte que agora passam acausar estranhamento (ALMEIDA, 2007, p. 134).

    Para ele, essa forma de construo de Stravinsky, esse virtuosismo rtmico,

    aliado descontinuidade dos ncleos temticos e s constantes sequncias sobre

    ostinatos, estilhaa a temporalidade interna da msica (ALMEIDA, 2007, p.134). Tal

    estilhaamento impede a construo do nexo e da coerncia da msica que se

    desenvolveriam no tempo.

    Adorno (1978/1999) acrescenta que o fenmeno fsico musical e as

    caractersticas especficas da msica, no podem ser tornados idnticos, assim como o

    movimento temporal da msica, enquanto tempo-durao, ao invs de tempo

    espacializado, inseparvel de uma no-identidade de cada instante musical, os quais se

    articulam e no meramente se justapem de forma inerte e independente. Nas palavras

    do autor:

    O fato de todos os elementos e dimenses musicais serem reduzidos aum denominador comum a fim de promover uma estrutura geral desentido, liberta de qualquer elemento alheio imposto externamente,tem o efeito paradoxal de debilitar a verdadeira idia do significado daestrutura. (ADORNO, 1978/1999, p. 202-203)12.

    12No ingles The fact that all musical elements and dimensions are reduced to a common denominator inorder to promote a total structure of meaning, liberated from any foreign, externally imposed element, has

    the paradoxical effect of undermining the very idea of meaningful structure (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p.202-203)

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    Reduzir o tempo a espao tambm rompe com o movimento que, na obra

    artstica, indica um devir, um algo a mais que vai alm da prpria obra. Romper com

    esse devir condenar a msica tambm a um fetichismo que a transforma em ideologia

    ao atestar o existente afirmando-o como o nico e melhor modo de organizao

    possvel, como um isso. Nesse sentido a msica se converte em ideologia em seu

    sentido mais pregnante no ps-guerra, e tpico da indstria cultural: a mera afirmao de

    que o que existe no poderia ser de outra forma (HORKHEIMER e ADORNO,

    1956/1973). No difcil ver, entretanto, que h outras formas de ideologia vinculadas

    msica, como ser explicitado adiante quando discutirmos as funes que Adorno

    atribui msica.

    Aquilo que se mostra alheio ordenao vigente do mundo e relembra a

    angstia e o medo do desconhecido e incontrolvel banido e tornado tabu. J no

    programa tico-musical de Plato veem-se traos de um saneamento de estilo

    espartano(ADORNO, 1938/1991, p.81). Pela ordem e disciplina platnicas, a msica

    empurrada a um movimento especfico de seleo de sons: nos atrativos proibidos

    entrelaam-se a variedade do prazer dos sentidos e a conscincia diferenciada

    (ADORNO, 1938/1991, p.81). Esses aspectos censurados pela disciplina platnica,

    sintomaticamente retornam na grande msica ocidental: o prazer dos sentidos como

    porta de entrada da dimenso harmnica e finalmente colorstica (ADORNO,

    1938/1991, p.81). Isso demonstra que as caractersticas que so banidas em um

    momento da racionalizao, violentamente e sem elaborao, retornam modificadas, tal

    como sintomas, em outros momentos da civilizao.

    A lgica formal, a calculabilidade, o reconhecimento apenas daquilo que

    redutvel unidade e a equivalncias permutveis entre si e entre todo e qualquer corpo,

    so as formas de controle do mundo a que o processo de esclarecimento permitiuhegemonia. Inverte-se a lgica da dominao: se os homens buscavam a identificao

    natureza para delimit-la de forma declarada, agora os homens se afastam da natureza

    na certeza da dominao e consideram-se imagem e semelhana do poder invisvel.

    Mas os mitos j se encontravam sob a disciplina e poder enaltecidos pelo racionalismo:

    eles j eram produto do esclarecimento (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006).

    O pensamento ordenador e a cincia, na busca pela unidade e pela

    equivalncia, substituem o lugar dos espritos e demnios pelo cu e sua hierarquia, asprticas de feitiaria pelo sacrifcio e pelo trabalho servil, regido pelo comando. Se do

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    medo o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido

    (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p. 26), o processo de desencantamento do

    mundo busca uma relao de afastamento entre os homens e os objetos para que estes

    sejam melhor manipulados e, assim, dominados. Pretensamente, essa relao almeja o

    conhecimento, porm culmina em alienao daquilo que se pretendia dominar.

    Na msica essa dinmica, que reflete o movimento do processo de

    esclarecimento, se expressa nos diferentes modos como as msicas modal, tonal e ps-

    tonal simbolizam o par ordem/desordem. Segundo o exemplo de Wisnik (1989), a

    msica modal, pr-capitalista, a ruidosa, brilhante e intensa ritualizao da trama

    simblica em que a msica est investida de um poder (mgico, teraputico e

    destrutivo) que faz com que a sua prtica seja cercada de interdies e cuidados rituais

    (WISNIK, 1989, p.35). Essa msica centrada no ritmo e tem forte presena das

    percusses. Tambm tem forte presena de timbres, vozes, vocalizes e sotaques

    (WISNIK, 1989). No entanto, as msicas modais so msicas que procuram o som

    purosabendo que ele est sempre vivamente permeado de rudo, afinal, os deuses so

    ruidosos (WISNIK, 1989, p.39, grifos do autor). Ou seja, o carter fetichista da

    msica modal ainda explcito, mgico, e encara o contraditrio sem buscar expulsar o

    rudo.

    O canto gregoriano inaugura a tradio ocidental que caminha para a msica

    barroca, clssica e romntica dos sculos XVII, XVIII e XIX. Ele caracteriza-se por

    evitar o acompanhamento instrumental, e preferir vozes masculinas cantadas em

    unssono e capela, na caixa de ressonncia da igreja (WISNIK, 1989, p.41). Quando

    o canto gregoriano evita o acompanhamento colorstico de instrumentos e evita a

    pulsao rtmica, transformando-a na pronunciao do texto litrgico, ele desvia a

    msica modal para o domnio das alturas. Essa configurao prepara o terreno para o

    surgimento da msica tonal (WISNIK, 1989).Cabe marcar que essa modificao na estrutura interna da msica quer filtrar

    todo o rudo, como se fosse possvel projetar uma ordem sonora completamente livre da

    ameaa da violncia mortfera que est na origem do som (WISNIK, 1989, p.42).

    Assim, o fetichismo passa a identificar ordem afinao numa busca de reproduzir na

    terra a suposta ordenao divina. Ele deixa de ser explcito e d as mos ideologia

    burguesa, prometendo e anunciando um valor universal, sem conflito ou violncia. A

    msica lanada tentativa de excluir o rudo criando o embuste de que o rudo pode,afinal, ser excludo. E, ainda assim, a exemplo do trtono, o tabu permanece.

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    A busca de eliminao da incomensurabilidade e do desconhecido culmina,

    assim, por condenar o esclarecimento a um retorno mitologia:

    A insossa sabedoria para a qual no h nada de novo sob o sol, porque

    todas as cartas do jogo sem-sentido j teriam sido jogadas, porquetodos os grandes pensamentos j teriam sido pensados, porque asdescobertas possveis poderiam ser projetadas de antemo, e oshomens estariam forados a assegurar a autoconservao pelaadaptao essa insossa sabedoria reproduz to somente a sabedoriafantstica que ela rejeita: a ratificao do destino que, pela retribuio,reproduz sem cessar o que j era. O que seria diferente igualado(HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.23).

    A aspirao em eliminar aspectos subjetivos da cultura e amputar qualquer

    forma de feitio segue resignada e as msicas no passam por esse processo de formailesa, pois a tentativa de eliminar qualquer forma de desordem e irracionalidade das

    obras musicais em si mesma fetichista. O racionalismo tpico do ocidente buscou

    gradualmente enquadrar tambm a tcnica musical na lgica das cincias, propondo

    notaes, nomenclaturas e representaes que se pretendeu que fossem universais.

    Desse modo, todo msico que conhecesse a notao seria capaz de reproduzir um som

    sem experincia prvia ou memorizao, mas devido leitura de sinais que

    distinguissem visualmente a altura, o tempo e o ritmo, independente do estilo musicalou do contexto no qual se desse a execuo (REZENDE, 2008).

    Adorno afirma que uma religio burguesa da msica se constri nesse

    processo de racionalizao, o qual, por sua vez, um processo de aburguesamento da

    msica:

    A [religio burguesa] da msica , inquestionavelmente, a histria deuma racionalizao progressiva. Teve fases como a reforma de

    Guido

    13

    , introduo notao mensural, a inveno do baixo cifrado,a afinao temperada, finalmente a tendncia, desde Bach irresistvel,hoje levada ao extremo, da construo musical integral14(ADORNO,1970b/2006, p.14).

    13 Guido dArezzo (991dC 1033) foi um terico italiano da msica que criou e implementou umreforma na notao musical no Ocidente, fazendo uso de linhas e espaos similares ao pentagramamoderno e modificando assim a relao com a escrita musical. Contando com o apoio de papas, essanotao fez parte do contedo a ser disseminado pelas cruzadas. Ver REZENDE, 2008.

    14No espanhol La de la msica es, incuestionablemente, la historia de uma racionalizacin progresiva.Tuvo fases como la reforma de Guido, la introducin de la notacin mensural, la invencin del bajo

    cifrado, la afinacin temperada, finalmente la tendncia, desde Bach irresistible, hoy llevada ao extremo,a la construccin musical integral(ADORNO, 1970b/2006, p.14).

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    A crtica de Adorno ao processo de racionalizao, porm, no vem em defesa

    desconsiderao da tcnica musical em prol de uma pureza ou legitimidade da obra de

    arte: a tcnica um dos elementos necessrios msica e a obra de arte s existe

    enquanto dialtica entre o contedo subjetivo e a tcnica que torna exprimvel tal

    contedo: seria agradvel ao hbito vulgar elimin-la; mas seria falso, porque a tcnica

    de uma obra constituda pelos seus problemas, pela tarefa aportica que essa obra se

    pe objetivamente (ADORNO, 1970/2011, p.323).

    A busca de objetividade e racionalizao, na tentativa de eliminar o

    irracionalismo na msica culmina por eliminar justamente elementos cuja necessria

    tenso e diferena compem a totalidade da obra de arte, condenando a msica a um

    fetichismo sequestrado pela ratio. Nas palavras de Adorno (1958/2009):

    O elemento no conceitual e no concreto da msica (...) f-lacontrria ratioda vendibilidade. Somente na era do cinema sonoro,do rdio e das formas musicais de propaganda, a msica ficou,precisamente em sua irracionalidade, inteiramente sequestrada pelaratio comercial (p. 15, grifos nossos).

    Diante da adoo desmedida das possibilidades tcnicas, a tecnologia

    extramusical, produzida por uma sociedade que torna suspeito tudo que no se submeteao critrio da calculabilidade (ADORNO e HORKHEIMER, 1947/2006), torna-se

    elemento interno msica, deixando de estar presente como uma possibilidade corretiva

    da obra de arte. Tal admisso faz da tcnica uma autoridade exclusiva que acaba por

    levar a msica irracionalidade da qual se procurou fugir: a necessidade matemtica

    que se impe de fora do fenmeno musical, sem a mediao da subjetividade, tem

    alguma afinidade com o acaso absoluto15(ADORNO, 1978/1999, p. 205). atravs da

    eliminao da subjetividade que um projeto designado a conquistar a natureza terminaadorando o resultado fossilizado da manipulao como se isso se fizesse por si

    mesmo16(ADORNO, 1978/1999, p. 202).

    15No ingls An abstract, mathematical necessity that imposes itself on the musical phenomenon fromoutside, without subjective mediation, has some affinity with absolute chance (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p. 205).

    16No ingls Precisely through its elimination, subjectivity is unconsciously taken to an extreme, a

    project designed to conquer nature that ends up worshiping the fossilized result of its manipulations as ifit were being in itself (ADORNO, T. W. Sound Figures, 1978, p.202).

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    No caso especfico da msica ocidental, o elemento irracional no meramente

    eliminado, mas resolvido e integrado prpria racionalidade (SAFATLE, 2007), a

    exemplo da tonalidade menor, que fornece ao sistema o antigo tremor exorcizado pela

    racionalidade do prprio sistema (ADORNO, 1973/2011, p. 120), fazendo as vezes de

    pelo ouriado e sendo calculadamente utilizada em exaltaes fascistas ou que pregam o

    entusiasmo irracional pela prpria morte. Se essa administrao do racional e do

    irracional na msica sria chega a dispor a tcnica no lugar de uma autoridade

    exclusiva, na msica popular industrializada, por sua vez, como se discutir mais

    profundamente no segundo captulo, os mecanismos arcaicos so controlados e

    socializados de ponta a ponta(ADORNO, 1973/2011, p. 120).

    Nesse extremo da desconsiderao da dialtica entre esprito e matria, em se

    tratando de uma composio sria, a msica condenada a uma fossilizao por aderir

    desmedidamente tcnica e ao estilo impostos de fora, alheios quela relao em que o

    artista se depara com um problema histrico a ser trabalhado junto tcnica musical

    (ADORNO, 1978/1999). Essa fossilizao uma forma de fetiche tpica da msica na

    poca da plena racionalizao instrumentalizada, ou seja, ao recusar violentamente as

    formas mgicas e fetichistas, ao legitimar a lgica formal a despeito da convivncia do

    contraditrio, o processo de racionalizao se recusa a enfrentar o movimento dialtico

    da cultura e condena a msica ao retorno ao fetichismo.

    No trabalho j citado de Almeida (2007) um exemplo dessa objetivao

    extremada se encontra no neoclassicismo: diante de um problema historicamente

    justificado, o neoclassicismo no o enfrenta diretamente, mas busca uma falsa soluo

    no retorno a formas no mais justificadas (ALMEIDA, 2007, p.170). O neoclassicismo

    de Hindemith um exemplo mais especfico: ele pede que a execuo de suas peas se

    faa com uma atitude de mquina(p.164). No texto Msica e Tcnica(ADORNO,

    1978/2009 e 1970b/2006), Adorno usa como exemplo desse cmulo da objetivao osexperimentos de msica aleatria17que caem num acaso esvaziado.

    Se mesmo no contexto de produo da msica sria corre-se o risco de

    extrapolar o uso da tcnica e de formas enrijecidas condenando a msica fossilizao e

    ao fetichismo, na msica popular e comercial esse problema ainda mais gritante:

    17A msica aleatria (do latim, alea significa dado) procura a liberdade e joga com a imprevisibilidade,o acaso e a sorte, tanto durante a composio, como no momento da execuo. As notas que sero usadas,

    que lugar ocuparo e em que ordem sero executadas algo que pode ser escolhido jogando-se dados(BENNET, R. Uma breve histria da msica, 1986).

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    O conceito de tcnica na indstria cultual s tem em comum o nomecom aquele vlido para as obras de arte. Este diz respeito organizao imanente da coisa, sua lgica interna. A tcnica daindstria cultural, por seu turno, na medida em que diz respeito mais

    distribuio e reproduo mecnica, permanece ao mesmo tempoexterna ao seu objeto (ADORNO, 1962/1986, p. 95).

    As formas de fetichizao tpicas da indstria cultural sero discutidas mais

    frente, mas aqui interessante considerar que a fossilizao do material musical e,

    portanto, tambm a fetichizao, so praticamente um pressuposto das construes

    musicais na lgica da indstria cultural em funo da adequao do material musical s

    lgicas de racionalizao externas prpria racionalidade do material.

    Outra forma de fetichizao do material musical a busca desmedida por sanara objetividade e mergulhar num solipsismo que recusa suas relaes com a

    materialidade e busca uma existncia puramente espiritual. No movimento civilizatrio,

    as obras de arte so tambm condenadas ruptura violenta entre matria e esprito: nos

    traos do que foi ultrapassado pela evoluo geral, toda arte est maculada de uma

    suspeita hipoteca de tudo o que no foi bem seguido e regressivo (ADORNO,

    1970/2011, p. 500). Mais uma vez, Adorno (1958/2009) remete a essa antiqussima

    dvida que a msica contraiu ao separar o esprito do fsico:

    A dialtica hegeliana de senhor e escravo chega por fim ao senhorsupremo, ao esprito que domina a natureza. Quanto mais este espritoavana para a autonomia, mais se afasta da relao concreta com tudoo que domina, homens e matria por igual. Logo que domina em suaprpria esfera (que a da livre produo artstica), o esprito dominatudo at a ltima entidade material; comea a girar sobre si mesmocomo se estivesse aprisionado e desligado de tudo quanto lhe opostoe de cuja penetrao havia recebido seu significado prprio(ADORNO, 1958/2009, p.26).

    E o esprito, que foi expulso como algo perigoso e irracional, d coisa o

    carter de metafsica, desliga-se de suas determinaes materiais, e se torna fetichista:

    A plenitude perfeita da liberdade espiritual coincide com a castraodo esprito. Seu carter fetichista e sua hipstase como pura forma dereflexo tornam-se evidentes desde o momento em que o esprito jno permanece subordinado ao que no em si esprito, mas que,como elemento subentendido de todas as formas espirituais, o nicofator que a elas confere substancialidade (ADORNO, 1958/2009,

    p.26).

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    A partir da brutal ciso entre matria e esprito, rompe-se a necessria dialtica

    e tenso que permitem msica manifestar seu contedo de verdade. Assim, a msica

    pode ser construda tendendo a ser demasiadamente espiritual, ou seja, sem sua base

    material e determinao objetiva que lhe d substancialidade. Arvora-se a, na pretenso

    de uma expresso que seja puramente espiritual, encantatria e fantasmtica, e se

    entrega ao fetichismo.

    Na obra Crtica dialtica em Theodor Adorno - Msica e verdade nos anos

    20, ao discutir o Expressionismo18, Almeida (2007) fornece um exemplo de como o

    jovem Adorno se preocupou com a veracidade da obra de arte num movimento de

    absolutizao do eu, que, apesar de nascido do incmodo com a sociedade vigente e no

    sem contradies, se descola das determinaes materiais. O autor afirma que omovimento expressionista buscou resolver as contradies entre o eu e o mundo, mas

    no pela reconciliao e, assim, os expressionistas buscam no prprio Eu o

    fundamento do mundo que o constrange (ALMEIDA, 2007, p.39).

    Mesmo na esperana de transformar o mundo ps Primeira Guerra, a arte

    expressionista mergulha na subjetividade do eu e tende ao solipsismo. Almeida

    (2007) no se refere fetichizao da msica, mas parece ser possvel considerar o

    momento expressionista como um exemplo da tendncia fetichizao do material poreste momento almejar uma pureza subjetiva: como o Expressionismo absolutiza o

    Eu, justamente pela proposta de expressar uma vivncia do mundo livre de

    constrangimentos formais, corre o risco de perder essa relao com o tpico, e assim sua

    veracidade e validade, sucumbindo ao solipsismo (p.40).Ao no buscar a reconciliao

    entre o eu e o mundo, mas algo como uma recusa, ou uma fuga, a obra de arte tenderia a

    uma falsidade que pode ser considerada fetichista.

    possvel, ento, afirmar que, para Adorno, tanto a extrema objetivao do

    material musical quanto a construo de uma obra musical que se arvora numa

    espiritualidade descolada da determinao material, produzem uma fetichizao da

    msica no mbito tcnico, ou seja, tanto a entrega intangibilidade fetichista como a

    recusa amedrontada de toda e qualquer forma de fetiche, condenam a msica a um

    retorno que sintomaticamente fetichista. A desconsiderao do material musical

    enquanto dialtica e tenso entre elementos distintos e contraditrios, entre esprito e

    18

    Sugere-se aqui a leitura de MATTOS, C. V. de, Expressionismo alemo, arte e vida, para uma melhorcompreenso da crtica adorniana a esse movimento artstico.

  • 7/24/2019 Jessica Raquel Rodeguero Stefanuto

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    matria, entre racionalidade e magia, produz uma msica enfeitiada que recusa sua

    tarefa no movimento dialtico e contraditrio da Histria.

    Uma forma de elaborao da fetichizao do material musical que o artista

    enfrente a tarefa aportica da msica frente s contradies histricas e mantenha a

    necessidade de tenso e dialtica no interior da obra, concebendo a composio como

    uma resposta a problemas histricos configurados no conjunto de possibilidades sonoras

    e formais que se impem ao artista (ALMEIDA, 2007, p.101) como o faz, ao menos

    em uma fase de seu trabalho, Schoenberg, o compositor dialtico19 (ADORNO,

    1934/2008). Por sua vez, a possibilidade de manter a dialtica e a tenso na estrutura

    interior, composicional, e exterior, social, se d pela prpria linguagem tcnica da

    msica, pelo aspecto incondicionalmente tcnico do seu poder encantatrio

    (ADORNO, 1970/2011, p.327).

    Frisa-se: a possibilidade da prpria estrutura da obra de arte ser construda

    como elaborao da fetichizao do material musical torna o material musical dialtico

    e artstico. Em outras palavras, a msica pode ser composicionalmente pensada em

    considerao dialtica e contradio de elementos mgicos e racionais. No entanto,

    vale marcar, mesmo a msica que enfrenta sua tarefa histrica e composicionalmente

    encara a dialtica pode ser condenada a um retorno no elaborado ao fetiche devido a

    outros aspectos: pode ser envolta pelo fetiche da mercadoria ou pode ser percebida de

    forma fetichizada por ouvintes regredidos. Beethoven, por exemplo, leva a tcnica de

    19No texto intitulado El compositor dialtico (1934/2008), Adorno explica a dialtica na obra deSchonberg afirmando que: Em Schnberg no se trata do arbtrio e do capricho de um artistasubjetivamente desvinculado, tal por exemplo como quando ele quis etiquetar-se de expressionista. Mastampouco se trata do trabalho de um arteso cego que vai atrs de sua matria fazendo clculos, semintervir nela ele mesmo espontaneamente. O que em verdade melhor caracteriza Schnberg; o que deveser entendido como origem de sua histria estilstica assim como de suas tcnicas; o nico de onde talvezse possa extrair um conhecimento srio, uma troca de princpios e, do ponto de vista da histria,

    extremamente exemplar no modo de comportar-se com seu material por parte do compositor. Este j noostenta ser seu criador nem tampouco obedece a sua regra previamente dada. (...) Mas esse sentido podequalificar-se de dialtico. Em Schnberg a contradio entre rigor e liberdade no se supera no milagre daforma (p.213-214, traduo minha). No espanhol: Em Schnberg no se trata del arbtrio y el caprichode um artista subjetivamente desvinculado, tal por ejemplo como cuando se lo quiso etiquetarexpressionista. Pero tampoco se trata del trabajo de um artesano cigo que v detrs de su matria haciendoclculos, sin intervenir em ella ya espontneamente El mismo. Lo que em verdad caracteriza msbien a Schnberg; lo que debe entenderse como origen de su historia estilstica a s como de sus tcnicas;lo nico de donde quiz pueda extrairse um conocimiento serio, es um cambio de princpios y, desde elpunto de vista de la historia, sumamente ejemplaren el modo de comportarse com su material por partedel compositor. ste ya no alardea de ser su creador ni tampoco obedece a su regla previamente dada. (...)

    Pero este sentido puede calificarse de dialctico. Em Schnberg la contradiccin entre rigor y libertad nose supera ya en el milagro de la forma (p.213-214).

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    seu tempo mxima possibilidade, podendo-se dizer que, sua obra, em grande medida,

    encara a tarefa aportica da msica de seu tempo : o Beethoven tardio preside rejeio

    musical da nova ordem burguesa