Jesuitas No Maranhao e Grao Para (Sidney Luiz Mayer)

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    SIDNEY LUIZ MAYER

    JESUTAS NO ESTADO DO MARANHO E GRO-PAR: CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS ENTRE ANTNIO VIEIRA E JOO FILIPE BETTENDORFF NA

    APLICAO DA LIBERDADE DOS NDIOS

    SO LEOPOLDO

    2010

  • SIDNEY LUIZ MAYER

    JESUTAS NO ESTADO DO MARANHO E GRO-PAR: CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS ENTRE ANTNIO VIEIRA E JOO FILIPE BETTENDORFF NA

    APLICAO DA LIBERDADE DOS NDIOS

    Dissertao para a obteno do ttulo de mestre no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade do Vale do rio dos Sinos UNISINOS.

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues

    SO LEOPOLDO 2010

  • Catalogao na publicao: Bibliotecrio Flvio Nunes, CRB 10/1298

    M468j Mayer, Sidney Luiz. Jesutas no estado do Maranho e Gro-Par : convergncias e

    divergncias entre Antnio Vieira e Joo Filipe Bettendorff na apli-cao da liberdade dos ndios / Sidney Luiz Mayer. 2010.

    242 f. ; 30 cm.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Si-nos, Programa de Ps-Graduao em Histria, 2010.

    Orientador: Pr. Dr. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues.

  • 7

    RESUMO

    O presente trabalho reconstitui o processo de formao do projeto missionrio je-sutico para o Maranho portugus da segunda metade do sculo XVII. Trajetria tomada em sua dinmica prpria, isto , na tenso entre a continuidade e a descontinuidade de seu ser processo. Em outra forma, a presena jesutica considerada e justificada no trnsito entre as suas principais determinantes: a experincia de missionariedade e as categorias de pensamen-to pelas quais aquela tomou forma. Este estudo preocupa-se com as circunstncias da ativida-de jesutica na Amaznia seiscentista, nas quais a realidade da Colnia foi experimentada segundo o sistema do pensamento escolstico ibrico, do qual os jesutas eram os principais representantes. Esta processualidade aparece na anlise de dois momentos distintos e com-plementares da Histria da Misso jesutica no norte da Amrica portuguesa: na transio entre a fase fundacional e a fase denominada de expanso, perodo no qual se destacou a in-terveno conflituosa do Padre Antnio Vieira na constante defesa da liberdade dos ndios e, posteriormente, na anlise da transio do perodo vieirino fase de consolidao, obtida pela reestruturao organizacional da Misso e adoo de uma posio conciliatria da parte do Padre Joo Felipe Bettendorff junto aos colonos portugueses.

    Palavras-Chave: Misso, Projeto Jesutico, Contexto, Categorias de Pensamento

  • ABSTRACT

    The present work reorganizes the Jesuit missionary project for Portuguese Mara-nho in the second half of the seventeenth century. The course taken in its own dynamic, that is, in the tension between the ongoing continuity and the irruptions of its being process. In another manner, the Jesuit presence, considered after careful thought, and justified in the transit between its determinants: the experience of missionarity and the category of thought, through which it took shape. Drawing out this study, it offers a worrisome feeling that deals with the circumstances of Jesuit activities in the sixteenth century in Amazonia in which the

    colonial reality that has been tested according to the Iberian scholastic system of thought for which Jesuit were the leading point. That dealing shows in an analysis of two distinct and complementary moments of the Jesuit mission's History in the north of Portuguese American:

    in the transition between the foundation phase and the phase called enlargement period in which there was on outreaching and conflicting intervention of Father Antonio Vieira in the continuous support of the Indian' freedom, and later on, in the analysis in the "vieirian" period to the consolidation phase, gained by the setting up a new structure of the mission and, as well as the adoption of a friendly position obtained by Father Joo Filipe Bettendorff towards Por-tuguese colonial settlements.

    Key-Words: Mission, Jesuit Project, Context, Categories of Thought

  • ABREVIATURAS E SIGLAS

    ARSI - Archivum Romanum Societatis Iesu (Roma/Italia) BRAS - Brasilia: Seco do Archivum Romanum Societatis Iesu GAL. BEL - Gallo-Belga: Seco do Archivum Romanum Societatis Iesu HCJB - Histria da Companhia de Jesus no Brasil - Obra de Serafim Leite (1938-1950) LUS - Lusitania - Seco do Archivum Romanum Societatis Iesu FBN - Fundao Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro/ Brasil)

  • SUMRIO

    Pag.

    Introduo ................................................................................................................................7

    Objeto e suas Questes ..............................................................................................................7 Dilogo com a Historiografia ...................................................................................................13 Metodologia e Fontes ...............................................................................................................17 Diviso da Dissertao .............................................................................................................21

    Captulo I Conquista do Norte da Amrica Portuguesa e a Fundao da Misso Jesu-tica(1615-1655) .......................................................................................................................22 1. O Surgimento do Maranho Portugus ................................................................................24 1.1 Estruturao do Estado Portugus no Maranho ...............................................................28 1.2 Opulncia e Misria da Terra .............................................................................................35 2. Os Primeiros Missionrios no Maranho .............................................................................42 2.1 Os Jesutas no Maranho ....................................................................................................46 3. A Refundao da Misso (1653-1655)..............................................................................49 3.1 Padre Antnio Vieira: O Missionrio do Maranho ..........................................................51

    Captulo II Expanso da Misso jesutica no Maranho (1655-1661)............................72

    1. Fundamentos do Pensamento Jesutico do Sculo XVII .....................................................75 1.1 Antecedentes: Fontes do Pensamento Escolstico ............................................................75 1.2 A Segunda Escolstica .......................................................................................................77 1.3. O mvel Filosfico da Segunda Escolstica .....................................................................79 2. O Pensamento Escolstico na Colnia..................................................................................85 3. A formalizao de um Novo Pensamento: Padre Lus de Molina ............................... ...91 3.1 Formas Legais de Escravido ............................................................................................92 3.2 Os Gentios do Novo Mundo e o Direito Europeu de Evangelizar .................................94 3.3 Molina e a tica do Comrcio de Escravos........................................................................97 4. Misso do Maranho e Gro-Par sob o signo da Segunda Escolstica ............................100 4.1 A Cosmoviso de Antnio Vieira ....................................................................................104 5. Expanso da Misso sob o governo de Antnio Vieira .....................................................110 5.1. A Legislao Indgena Portuguesa ..................................................................................111 5.2 Expanso da Misso e a Lei de 1655: Extenso Jurdica do Pensamento........................113 5.3 Os Aldeamentos: Instrumento e Eficcia na Expanso da Misso ..................................117 5.4 Expulso jesutica de 1661 do Maranho e Go-Par ......................................................128

    Captulo - III Restaurao e Consolidao da Misso Jesutica no Estado do Maranho e Gro-Par..............................................................................................................................142

  • Pag.

    1. A Restaurao da Misso ..................................................................................................143 2. Joo Filipe Bettendorff no Maranho Portugus ...............................................................145 2.1. Origem e Formao .........................................................................................................148 2.2. O Missionrio e as Primeiras Experincias .....................................................................154 3. Contexto da Consolidao: Tenses Externas ...................................................................158 3.1. O Contexto da Consolidao: As tenses Internas .........................................................164 3.1.1. O conflito Jurisdicional entre duas Provncias Jesuticas ............................................167 3.1.2. O Primeiro Governo de Joo Filipe Bettendorff (1668-1674) .....................................173 4. A Lei da Liberdade dos ndios de 1680 .............................................................................175 4.1. A Proibio do Cativeiro .................................................................................................176 4.2. A Implementao da Lei de 1680 ...................................................................................177 4.3. A Soluo dos Escravos Africanos ..............................................................................178 4.4. A Administrao dos Aldeamentos.................................................................................187 5. O Regimento das Misses de 1686 e seu Contexto ...........................................................189 5.1. O Regimento das Misses e seu Contedo .....................................................................198 5.1.1. O Governo dos ndios ..................................................................................................199 5.1.2. A Administrao Cotidiana e Manuteno dos Aldeamentos ......................................199 5.1.3. A Arregimentao da Mo-de-obra .............................................................................200 5.1.4. O Regimento das Misses e sua Aplicao .................................................................202 6. A Misso sob o Novo Governo de Bettendorff ..................................................................206 7. Continuidade e Descontinuidade: A dinamis do projeto jesutico na Amaznia ...............211

    Concluso ..............................................................................................................................217

    Fontes e Bibliografia ............................................................................................................221

    1.Fontes Manuscritas ............................................................................................................ 221 1.1Fontes Publicadas .............................................................................................................224 2.Bibliografia .........................................................................................................................233

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    INTRODUO

    Objeto e suas Questes

    Quando em 1653 o Padre Antnio Vieira (1608-1697) desembarcou em So Lus, no Maranho portugus, para fundar de novo 1 a Misso jesutica, a presena da Companhia de Jesus no norte da Amrica portuguesa assumia nova forma e a Misso alcanava um novo estgio de sua existncia. No entanto, o mesmo Padre Vieira que se declarava re-fundador da Misso entendia-se ao mesmo tempo continuador dela, pois tinha conscincia que estava [...] seguindo os desgnios do Padre Lus Figueira, e as ordens de S. M., em que manda que edifiquemos casas e Igrejas nas trs capitanias do Maranho, Par e Gurup 2.

    Conhecedor dos atritos entre os jesutas e os colonos portugueses, nos tempos da fundao da Misso pelo Padre Lus Figueira (1574-1643), o Padre Vieira refundava a Mis-so sob certos pressupostos: a idia de que o sucesso da atividade da Companhia de Jesus no norte da Amrica portuguesa dependia da cooperao com os colonos, que acabaro de en-tender a verdade do zlo que l nos leva, e desenganar-se quo errado o conceito que tm de ns, em cuidarem que queremos mais os ndios que suas almas 3. Contudo, esta posio cau-telosa do Padre Vieira modificar-se-ia inteiramente aps a constatao in locus das injustias que se cometiam contra o amerndio. A interferncia das autoridades locais no assunto da evangelizao dos ndios foi outro fator que contribuiu para o movimento de ruptura dos jesu-tas com os colonizadores do Maranho portugus. Exemplo desses atritos encontra-se na re-lao tumultuosa entre o Padre Vieira e o Capito-mor do Gro-Par, Incio do Rego Barreto. Fato sobre o qual escreveu o Padre Vieira: mostrei-lhe [ao Capito-mor] como as misses no eram cousa que lhe estivesse encomendada a le, seno a mim [...] 4.

    A mudana de atitude do Padre Vieira em relao aos colonos e autoridades locais indica um processo necessrio pelo qual o projeto missionrio jesutico forjou-se no Mara-nho colonial. 1Carta do Padre Antnio Vieira ao Padre Provincial do Brasil, Francisco Gonalves, de Lisboa, 14 de Novem-

    bro 1652. In: Cartas do Padre Antnio Vieira. Reunidas e comentadas por Joo Lcio de Azevedo. Coimbra: Imprensa da Universidade, t. I, 1925, p. 286. 2Ibidem, pp. 275-276. 3Ibidem, p. 286. 4 Carta do Padre Antnio Vieira ao Padre Provincial do Brasil, do Gro-Par, 1654. In: Cartas..., t. I, 1925, p.

    361.

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    Alguns anos depois, em 1685, o Padre Joo Felipe Bettendorff (1625-1698), outra grande autoridade no governo das misses jesuticas no norte da America portuguesa, exercia o cargo de Procurador da Misso em Lisboa e negociava junto Corte o retorno dos jesutas regio norte e uma nova lei que deveria regulamentar o trato dos ndios naquele Estado 5. Ao participar da constituio do Regimento das Misses de 1686, o Padre Bettendorff contrariou algumas idias do Padre Vieira, principalmente quando aceitou que uma clusula da Lei en-tregasse novamente aos jesutas o encargo de repartidores dos ndios de servio, o que a ex-perincia j havia demonstrado ser fonte de muitos conflitos 6.

    Naquele mesmo perodo, o Padre Bettendorff ops-se igualmente ao ento Supe-rior da Misso Padre Jdoco Peres (1633-1707), quem pretendia fosse entregue a D. Pedro II um requerimento da parte dos missionrios, no qual pediam, [...] com commum sentimento de todos 7, a extino definitiva da Misso jesutica no norte da Amrica portuguesa. Porm, longe de atender o desejo dos missionrios, o Padre Bettendorff, opondo-se s idias de seus co-irmos, alcanou do Monarca a restaurao da Misso, em 1685, e a implantao do Regi-mento.

    Desta forma, percebe-se que no somente as tenses externas Misso apontam para existncia de um processo de constituio do projeto jesutico na Amaznia, mas tam-bm o movimento de idias e posies diferentes no corao da Misso indicador de proces-sualidade.

    Se a pergunta pela constituio do projeto missionrio jesutico no Maranho por-tugus seiscentista respondida com o elemento de natureza processual, em seu cerne deve-se encontrar a experincia dos missionrios, a qual foi adquirida pelo contato direto com a realidade em que a Misso se inseria, isto , no contato com a sociedade colonial e com os grupos indgenas que pretendiam evangelizar.

    No entanto, o que de fato movimentava o complexo mecanismo da Misso jesuti-ca no antigo Estado do Maranho seiscentista? Qual a dinamis daquela processualidade?

    Recentemente, Charlotte Castelnau-LEstoile, em Operrios de uma Vinha Est-ril 8, elegeu por paradigma de compreenso da ao missionria jesutica na Provncia do Bra-

    5Os jesutas haviam sido expulsos do Estado do Maranho e Gro-Par durante a Revolta de Beckeman, em 1684. 6Serafim Leite. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portuglia; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, t. IV, 1943, p. 90. 7Joo Felipe Bettendorff. Chronica da Misso dos Padres da Companhia de Jesus no Estado Maranho. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.72, parte 1, 1910, p. 406. 8Charlotte de Castelnau-lEstoile. Operrios de uma Vinha Estril: Os Jesutas e a Converso dos ndios no Brasil 1580-1620. Bauru: EDUSC, 2006.

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    sil as seguintes determinantes: experincia missionria e ideais das Constituies da Compa-nhia de Jesus. Projeto e prticas missionrias foram abordados pela autora em sua constante tenso, da qual surgiu o movimento necessrio de adaptao constante da Companhia de Jesus ao contexto de sua insero. Um exemplo concreto desta tenso foi oferecido por Castelnau, quando da anlise das negociaes do mtodo de aldeamento entre a Provncia do Brasil e o Governo Geral da Ordem jesutica 9.

    Entende-se, portanto, que o conceito de projeto missionrio, na perspectiva abordada por Castelnau, no algo fechado, mas processo construdo na interao de dois plos de um mesmo corpo: missionrios e sua experincia de um lado, hierarquia e o ideal expresso nas Constituies da Companhia de Jesus, de outro. Surge desta tenso, uma dico-tomia entre missionrios e suas prprias Constituies, o que gera naturalmente um problema. A determinante da experincia esteve entre o Governo da Companhia, defensor das Constitui-es, e entre os missionrios da Provncia do Brasil. Sendo assim, o contato com o Novo mundo seria o responsvel pela tenso entre o ideal e a prtica dos missionrios.

    Contudo, segundo Castelnau, experincia e ideal das Constituies permitiram a reconstituio do projeto missionrio da Provncia do Brasil com xito. Todavia, quando na metade do sculo XVII este projeto transferido do Estado do Brasil para o Estado do Ma-ranho e Gro-Par, as categorias organizadoras, utilizadas por Castelnau, sofrem modifica-es. Isto porque a experincia dos missionrios na Amaznia foi lida pelos prprios jesutas com novo instrumental, a saber: o mvel de pensamento da Segunda Escolstica. Com isto, as categorias de pensamento que permitiam determinada leitura da experincia na Provncia do Brasil, no sculo XVI, no so exatamente as mesmas dos documentos fundadores estudados por Castelnau.

    Os missionrios jesutas do Maranho portugus, especificamente, os Padres An-tnio Vieira e Joo Felipe Bettendorff, faziam parte do movimento reformador do pensamento de Santo Toms de Aquino, chamado de Segunda Escolstica. Neste sentido, a ao daqueles jesutas no pode ser separada do pr-suposto do paradigma escolstico, de suas categorias fundadoras: o mundo ordenado e sustentado pela unidade divina, o homem criado por Deus, mas livre perante ele; o homem , sobretudo, responsvel pela construo de seu mundo humano e, portanto, , alm do mais, co-responsvel pelo acabamento da prpria obra divina.

    9Charlotte de Castelnau-lEstoile. Operrios de uma Vinha Estril: Os Jesutas e a Converso dos ndios no Brasil 1580-1620. Bauru: EDUSC, 2006, p. 89.

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    Sendo assim, para uma aproximao da ao jesutica na Amaznia, seleciona-ram-se dois determinantes: a experincia e o mvel de pensamento da Segunda Escolstica. O conceito de experincia, ao lado das categorias de pensamento, entendido em sua dupla estrutura: ela refere presena de um objeto que se mostra ao sujeito como conscincia. As-sim, o objeto que se mostra no inclui somente um contedo, mas tambm a forma, isto , o modo do sujeito experimentante construir o contedo ou objeto. Neste sentido, o contedo da experincia, ainda que redundante, apresenta-se ao sujeito segundo estruturas de acolhi-mento do prprio experimentante. Estas estruturas denominam-se, de acordo com o objetivo desta Dissertao, de mvel de pensamento da Segunda Escolstica.

    Desta forma, em todo o processo da atuao dos jesutas na Amaznia existe um movimento contnuo de ruptura e continuidade na ao de seus atores, o qual se notou ser garantido principalmente pelas categorias de pensamento pelas quais se guiavam os mission-rios jesutas. sobre este dinamismo, inerente ao jesutica na Amaznia, que se dedica esta Dissertao.

    Trata-se de estudar este projeto missionrio em sua dinmica prpria, acompanha-da de um paradoxo: sua constituio d-se na tenso da continuidade e descontinuidade de seu ser processo. Contudo, no se pretende abord-lo do ponto vista de sua finalidade, isto , a partir da converso do amerndio, - o quanto foi eficiente em seu propsito de trazer para a Igreja Catlica os ndios da Amaznia - mas to somente como presena jesutica que se cons-tri e se justifica no trnsito entre as suas principais determinantes: a experincia de missiona-riedade e as categorias de pensamento pelas quais a primeira toma forma e informa a Misso.

    Este estudo preocupa-se, portanto, com as circunstncias da atividade jesutica na Amaznia seiscentista em que a realidade da Colnia foi experimentada, lida e ordenada atra-vs das espessas lentes do pensamento Escolstico ibrico.

    Neste sentido, a natureza processual da Misso alcanou mxima expresso em dois momentos distintos e complementares de sua existncia. Primeiramente, salientou-se entre a fase fundacional e a fase de expanso e, posteriormente, na transio da fase expansi-onista fase de consolidao 10. Nestes momentos decisivos da Misso, dois atores se desta-caram como promotores da atividade jesutica na Amaznia seiscentista: Antnio Vieira e Joo Felipe Bettendorff.

    10A historiografia convencionou classificar a Histria da Misso jesutica na Amaznia em trs perodos: a fun-dao, com o Padre Luiz Figueira, a expanso com Antnio Vieira e, finalmente, a consolidao com Joo Fili-pe Bettendorff. Cf. Karl-Heinz Arenz. De lAlzette lAmazone: Jean-Philippe Bettendorff et ls Jsuites em Amazonie Portugaise (1661-1693). Luxembourg: Institut G-D. de Luxembourg, 2008, pp. 28;119.

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    A fase fundacional, tanto sob o brevssimo governo do Padre Lus Figueira como sob o governo de Antonio Vieira, foi marcada por uma poltica de conciliao com os mora-dores locais ante a resistncia desses em aceitar a presena da Companhia de Jesus. No entan-to, a experincia de missionao realizada pelo Padre Vieira levou-o a romper categoricamen-te com a aquela posio de cooperao.

    Inaugurava-se, com isto, a fase de expanso, a mais conhecida pela historiografia. Este momento da presena dos jesutas na Amaznia tomou forma atravs de uma poltica agressiva encabeada pelo Padre Vieira contra os colonos escravagistas. O atrito entre jesutas e colonos fora alimentado pela luta dos primeiros em fazer cumprir a legislao portuguesa indigenista e pela determinao dos colonos em no obedec-la. A liberdade dos ndios este-ve, portanto, na gnese dos conflitos na rea norte e tornou-se o contexto da experincia jesu-tica naquela regio. Tais embates tiveram seu pice com a expulso dos jesutas, em 1661, de todo o Estado e, mais tarde, em 1684, novamente da Capitania do Maranho. Ambas as expul-ses deram-se pelo mesmo motivo, isto , pela defesa da legislao promovida pelos jesutas. Assim, em 1661, a Misso amparava-se e defendia a Lei de 1655 e, em 1684, o mesmo ocor-ria com a Lei de Liberdade dos ndios de 1680. A primeira delimitava as ocasies em que os ndios poderiam ser escravizados, salvaguardando a liberdade dos demais. Em seus pontos principais fora mentor o prprio Padre Vieira 11. J a Lei de 1680 garantia a total liberdade aos ndios. Tambm na redao desta participou ativamente o pregador.

    A fase de consolidao, por sua vez, iniciou-se propriamente em 1685 quando os jesutas voltaram a se estabelecer na Capitania do Maranho. Um ano depois do retorno, D. Pedro II entregava ao Estado do Maranho e Gro-Par o Regimento das Misses de 1686, o qual passou a orientar o trato dos ndios em todo o Estado. Antes, porm, houve um movi-mento indito na histria da Misso que, favorecida pelo contexto, voltou-se sobre si mesma, importando-se mais com sua estrutura interna do que com as atividades externas. Isto foi pos-svel porque, desde 1661, - quando os jesutas sofreram a primeira expulso e o Padre Vieira deixou definitivamente a rea norte - at 1680, os jesutas ficaram afastados da administrao temporal dos aldeamentos. Resultou disto, espao privilegiado para que se organizassem in-ternamente. Assim, pela primeira vez, o cuidado com o aspecto fsico da Misso ganhou grande importncia, principalmente nos dois momentos em que o Padre Bettendorff a gover-nou, 1668-1674 e 1690-1693. As residncias, igrejas e colgios ganharam novas e durveis edificaes. Estes ltimos, que eram dois, o Colgio do Maranho e o Colgio do Gro-Par, 11

    Carta do Padre Antnio Vieira ao Rei D. Joo IV, do Maranho, 04 de Abril de 1654. In: Cartas..., t. I, 1925, pp. 431-441.

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    ganharam, alm de melhorias em seus edifcios, melhor suporte econmico, pois a eles se anexaram hortas, jardins e fazendas de gado.

    Esta reestruturao, no entanto, trouxe consigo muitas disputas internas, uma vez que a administrao da Misso se tornara complexa e o sistema de comunicao, tanto com a Provncia do Brasil quanto com a Provncia de Portugal, continuava precrio e, muitas vezes, no atendia a necessidade de uma estrutura administrativa cada vez mais exigente. O que ge-rou diversos mal entendidos entre os missionrios, especialmente quanto pertena jurisdici-onal da Misso Provncia do Brasil e a nomeao de Visitadores, Superiores e Reitores dos Colgios. Neste sentido, se a fase de expanso foi marcada mais pelos conflitos externos Misso, a fase de consolidao enfrentou tambm as divises internas.

    A nomeao do Padre Bettendorff como Procurador das Misses, em 1684, e a negativa do Padre Vieira ao Regimento das Misses de 1686, anunciaram mudanas substan-ciais forma de presena jesutica na regio norte. Significou mesmo a impostao de uma nova maneira de abordar o assunto da liberdade dos ndios e de se relacionar com a sociedade colonial, atravs de uma poltica de conciliao.

    Sendo assim, a primeira expulso da Companhia de Jesus do Maranho, em 1661, a promulgao do Regimento das Misses, em 1686, e com este, uma nova impostao apos-tlica, foram acontecimentos que, em conjunto e entrelaamento, constituram-se em um fato histrico 12. Assim construdo, o fato alastra-se para alm do ano de 1693, quando Bettendorff entregou definitivamente o governo da Misso, pois o Regimento das Misses, substancial-mente, no fora alterado at a implantao da Legislao Pombalina, em 1750. Portanto, ul-trapassaria o escopo deste trabalho e as fontes disponveis. Restringiu-se, pois, a pesquisa s atividades de Vieira e Bettendorff, sem, contudo, cometer-se arbitrariedade, uma vez que o problema investigado reside na experincia de missionao e no impacto da mesma em seus atores, culminando no Regimento de 1686. Assim, para alm das atividades de Bettendorff, at a chegada da Legislao Pombalina, esto as conseqncias das modificaes de 1686, o que no interdita o ncleo principal dessa investigao.

    12Entende-se por fato histrico o objeto da Histria construdo pelo historiador, isto , o acontecimento trabalha-do, interpretado, que, assim tecido, desvela a riqueza do passado, como ponderou Jean Glnisson: A realidade histrica, pr-existente cincia, desaparece. O historiador perde esta impassibilidade de descobridor da realida-de sensvel, da qual era to orgulhoso, quando pretendia rivalizar em objetividade com o fsico. Os fatos histri-cos so, ento, em larga medida, construes da Histria. Os caminhos da Histria. Jean Glnisson. Iniciao aos Estudos Histricos. So Paulo: Bertrand, 1986, p.132.

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    Dilogo com a Historiografia

    A ao jesutica no norte da Amrica portuguesa no recebera tanta ateno da historiografia quanto presena da Companhia de Jesus no Estado do Brasil. Mesmo assim, seria custoso discutir aqui todas as obras que foram dedicadas ao antigo Estado do Maranho e Gro-Par seiscentista que sempre se confunde com a prpria Histria dos jesutas nele. No entanto, algumas delas devem ser destacadas pela importncia comparativa a este trabalho 13.

    A obra de Joo Francisco Lisboa (1812-1863) tem sido, durante muito tempo, consultada nas pesquisas sobre as atividades dos jesutas na rea norte, ainda que a Crnica do Brasil Colonial: Apontamentos para a Histria do Maranho 14 classifica-se entre a litera-tura ante-jesutica de fins do sculo XIX e incio do sculo XX. de Lisboa, porm, o mrito de uma das primeiras tentativas de compilao e comentrio da legislao indigenista portu-guesa 15. A interpretao do autor acerca do problema da mo-de-obra indgena consiste em colocar, de um lado, os colonos vidos da mo-de-obra escrava e, de outro, os jesutas radi-

    13

    Os primeiros trabalhos a explorarem as atividades dos jesutas na Amaznia certamente foram os bigrafos do Padre Antnio Vieira. A primeira biografia de Vieira a escreveu Andr de Barros (1675-1754) na primeira meta-de do sculo XVIII. Andr de Barros destacou-lhe principalmente a imagem de modelo de jesuta pela dedicao e santidade. Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jesus Chamado por Antonomasia o Grande: Acclamado no Mundo por Principe dos Oradores Evangelicos, Prgador Incomparavel dos Augustis-simos Reys de Portugal, Varo Esclarecido em Virtudes, e Letras Divinas, e Humanas, Restaurador das Mis-ses do Maranho, e Par pelo P. Andr de Barros da Companhia de Jesus, Lisboa, na Nova Officina Sylviana, 1746. Porm, menos de um sculo depois da primeira biografia, outra, desta vez da pena do Bispo de Viseus, D. Francisco Alexandre Lobo (1763-1844) retratou o Padre Vieira como homem dado a vaidades e a ambio. Francisco Alexandre Lobo. Discurso Histrico e Critico acerca do Padre Antnio Vieira e das suas Obras. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1897. O celebre jornalista maranhense Joo Francisco Lisboa (1812-1863) escreveu uma biografia denominada a Vida do Padre Antnio Vieira, em que explorou a presena do pregador na rea norte e os conflitos locais gerados por ela. Uma das mais conhecidas afirmaes de Lisboa a de que Vieira era afligido por ambio desmedida. Neste sentido, o ainda jovem Antnio Vieira, dada a sua condio humilde, teria visto na Companhia de Jesus a oportunidade de realizar suas pretenses de ambio. Tambm, a atividade poltica do Padre Antnio Vieira no escapou a esta interpretao, pela qual, a atividade vieirina seria um desco-lamento das obrigaes religiosas do jesuta, movido por aquela natureza quase cpida. Lisboa privilegiou na primeira parte de sua obra a atividade poltica e diplomtica do Padre Vieira e reservou para a segunda parte, que a mais antiga, o perodo vieirino no Estado do Maranho e Gro-Par. No entanto, Lisboa no contemplou o ano de 1655, quando o Padre Viera esteve na Corte a tratar da questo indgena. Joo Francisco Lisboa. Vida do Padre Antnio Vieira. So Paulo: W. M. Jacson, 1964, pp. 7-8; 109. Leandro Henriques Magalhes lembra que o livro de Francisco Lisboa, no entanto, no deve ser tomada como uma nica obra, pois foi construda em duas partes e cada uma delas em pocas distintas e com objetivos igualmente diferenciados: A primeira parte, Vida do Padre Antnio Vieira (na Europa), uma obra inacabada e sem reviso, publicada pela primeira vez aps a morte de seu autor, em 1901[...] J a segunda parte, Vida do Padre Antnio Vieira (Jornal do Timon) no Brasil, foi publicada pela primeira vez em 1852, como parte integrante do Jornal do Timon sendo assim uma obra aca-bada. Cf. Leandro Henrique Magalhes. A Legitimidade da Restaurao Portuguesa a partir do Discurso do Padre Antonio Vieira (1641-1661). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2006, p. 58. 14Joo Francisco Lisboa. Crnica do Brasil Colonial: Apontamentos para a Histria do Maranho. Petrpolis: Vozes, 1976. 15Ibidem, pp. 198-233.

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    calmente contrrios escravizao do amerndio 16. Portanto, Lisboa contempla a posio da Companhia de Jesus, ante o problema da escravido dos nativos, em sua dimenso institucio-nal. No levanta a pergunta acerca de possveis desacordos dentro da prpria Ordem e como estas experincias particulares incidiram na constituio do projeto missionrio jesutico para a Misso do Maranho e Gro-Par.

    A biografia do Padre Vieira escrita por Joo Lcio de Azevedo (1855-1927), no incio do sculo XX, aponta para uma unidade interpretativa menos subjetiva, em que a ativi-dade do jesuta atrelada aos interesses polticos de Portugal. Obra dividida em dois tomos e estruturada em cinco perodos correspondentes aos principais momentos da vida do Padre Vieira, ganha espessura com a quantidade de fontes citadas. No primeiro perodo, intitulado O religioso, apresentou as bases da formao do Padre Vieira; em O poltico destaca-se a sua atuao junto dos cristos novos e sua atividade diplomtica; em O missionrio retra-tado o tempo em que esteve no Estado do Maranho e Gro-Par como Superior da Misso, 1653-1661; o quarto perodo, O vidente, seja talvez o tema mais inovador e que Joo Lcio o interpreta como componente da prpria atividade poltica de Vieira; em O Revoltado, reconstituda a estada do jesuta em Roma, onde consegue do Papa a revogao de todas as condenaes da Inquisio portuguesa; o ltimo perodo estabelecido por Azevedo O ven-cido, no qual expe os ltimos anos de Vieira na Bahia at sua morte em 1697.

    De modo semelhante, Joo Lcio de Azevedo fez em Os jesutas no Gro-Par: Suas Misses e a Colonizao, livro publicado em 190117. Seu trabalho ordena-se a partir da atuao de grandes nomes da Misso maranhense, como Luiz Figueira e Antnio Vieira. A ao desses missionrios quase sempre est atrelada a alguma disputa com os colonos, tendo como pano de fundo a legislao indgena 18. Sendo assim, o projeto missionrio da Compa-nhia de Jesus visto por Azevedo como antagnico aos interesses dos moradores, mas sem que se pergunte pelos determinantes que possibilitaram a constituio de tal processo.

    A monumental obra de Serafim Leite, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, como se sabe, pretende contar toda a Histria dos jesutas na Amrica portuguesa colonial; tratou tambm largamente da ao dos jesutas no Maranho e Gro-Par e dos conflitos em torno da questo da liberdade dos ndios 19. Em relao aos trabalhos da Companhia na Ama-znia, Leite encontrou determinante na oposio entre o projeto jesutico e as aspiraes dos 16Ibidem, p. 209. 17Joo Lcio Azevedo, Os Jesutas no Gro-Par: Suas Misses e a Colonizao, Lisboa: Livraria Tavares Car-doso & Irmo, 1901. 18Ibidem, p. 156. 19Serafim Leite, op. cit., 1943, t. IV, p.44.

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    colonos por riquezas. No entanto, por ser obra de carter geral, no se preocupa com os ele-mentos mais sutis que estiveram presentes na constituio do projeto missionrio da Compa-nhia. Contudo, foi o primeiro a perceber que entre os missionrios da Amaznia, em temticas como a mo-de-obra indgena e a continuidade dos missionrios na rea norte, no havia total consenso 20.

    Neste sentido, a obra de Charles Ralph Boxer A Idade de Ouro do Brasil: Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial aponta para esta discusso quando afirmou que a revolta dos colonos do Maranho de 1684 [] ajudou a convencer os jesutas de que preci-savam contemporizar com a necessidade que tinham os colonos dos trabalhos forados 21. Para Boxer, tal percepo expressou-se no Regimento das Misses do Estado do Maranho e Gro-Par, promulgado pela Coroa em 1686, [] esse Regimento formou a carta bsica para o trabalho missionrio e para o fornecimento do trabalho amerndio no Estado de Ma-ranho-Par at a secularizao das misses, pela Coroa, em 1750-1755 22.

    Eduardo Hoornaert, em Histria da Igreja no Brasil 23, reafirma a posio de Charles Ralph Boxer de que o Padre Bettendorff no seguiu os passos de Vieira em relao liberdade dos ndios, j que preferiu seguir a linha de Alexandre de Gusmo (1629-1724) no Estado do Brasil, apostando numa soluo de conciliao 24.

    A historiografia atual, referente ao dos jesutas na Amrica portuguesa trouxe inovaes na abordagem de seu objeto, desta forma, aponta para no raras dissenses, cho-ques de idias, rupturas e negociaes entre Provncias jesuticas, governo geral, entre sditos e os superiores. Neste sentido, concesses estratgicas e at o acatamento tcito de decises hierrquicas na Companhia de Jesus fazem sentido.

    Obras como As Misses Jesuticas e o Pensamento Poltico Moderno: Encontros Culturais, Aventuras Tericas, de Jos Eisenberg, Operrios de uma Vinha Estril: Os jesu-tas e a converso dos ndios, de Charlotte Castelnau-LEstoile e como a recente obra de Karl-Heinz Arenz, D'e lAlzette lAmazonie: Jean-Philippe Bettendorff et ls Jsuites em Amazo-nie Portugaise (1661-1693), inovam na maneira pela qual analisam a presena da Companhia de Jesus na Amrica portuguesa.

    20Ibidem, p. 89-90. 21Charles Ralph Boxer. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. So Pau-lo: Companhia Editora Nacional, 1963, p. 243. 22Ibidem. 23Eduardo Hoornaert. (org.). Historia da Igreja no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1977. 24Idem, A Evangelizao do Brasil Durante a Primeira poca Colonial. In: Eduardo Hoornaert (org.). Histria da Igreja no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1977, p.82. Esta passagem apia-se nos estudos de Serafim Leite.

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    O recente trabalho de Karl-Heinz Arenz, D'e lAlzette lAmazonie: Jean-Philippe Bettendorff et ls Jsuites em Amazonie Portugaise (1661-1693), analisa o estabele-cimento e a consolidao da Companhia de Jesus na Amaznia portuguesa no sculo XVII, sobretudo entre 1661 e 1693 25. Este perodo caracterizado pela polmica concernente ao estatuto jurdico dos amerndios catequizados nos aldeamentos. O principal objeto de Karl-Heinz a ao missionria do Padre Joo Felipe Bettendorff. O autor compreende o projeto missionrio como um fenmeno de mltiplos aspectos, cujos marcos orientadores so os de reciprocidade e de continuidade. Esta obra foi de fundamental importncia para esta Disserta-o por ser a nica de grande dimenso dedicada presena do Padre Joo Felipe Bettendorff no Maranho portugus. Tambm Carl Borromus Ebner 26 e Maria Eugenia Codina dedica-ram artigos especificamente sobre a vida e misso do jesuta luxemburgus, mas de dimen-ses menores 27.

    Jos Eisenberg abordou em sua obra, As Misses Jesuticas e o pensamento Pol-tico Moderno, a contribuio das misses jesuticas no Estado do Brasil, 1549-1610, para a constituio do pensamento poltico moderno. O mesmo autor debruou-se sobre conceitos polticos formulados pelas cartas dos missionrios enviadas ao Governo central da Companhia de Jesus, observando como estas antecipavam mudanas significativas nos conceitos formula-dos por pensadores jesutas na Europa, como o Padre Lus de Molina, no final do sculo XVI. A principal transformao, operada pela experincia missionria, nasceu da discusso entre os Padres Nbrega e Quiricio Caxa, cujo contedo, a possibilidade da servido voluntria, ope-rou transformao no entendimento do conceito de direito natural, formulado pela doutrina Escolstica e desenvolvido por Lus de Molina. Eisenberg apoiou-se no contextualismo de Skinner e Pocock para fundamentar teoricamente o processo de gestao daquele conceito 28. Apesar de se tratar de um estudo sobre os jesutas da Provncia do Brasil, a universalidade dos conceitos jesuticos, analisados por Eisenberg, corroboraram para o estudo das categorias de pensamento jesutico, s quais se dedicou esta Dissertao.

    Finalmente, importante obra para o estudo atual da Companhia de Jesus na Am-rica portuguesa colonial Operrios de uma Vinha Estril: Os jesutas e a converso dos

    25Karl-Heinz Arenz. De lAlzette lAmazone: Jean-Philippe Bettendorff et ls Jsuites em Amazonie Portugaise (1661-1693). Luxembourg: Institut G-D. de Luxembourg, 2008. 26 Carl Borromus Ebner. Johann Philipp Bettendorf SJ (1625-1698) Missionar und Entwicklungspionier, Nordbrasilien. In: Neue Zeitschrift Missionswissenschaft, 31, (1975), p. 81-99. 27Mara Eugenia Codina. La Crnica del P. Betendorf: un Misionero del Siglo XVII en el Amazonas portu-gus. In: Sandra Negro y Manuel M. marzal. (Orgs.) Un Reino en la Frontera: las Misiones Jesuitas en la Am-rica Colonial. Lima: Abya-Yala, 1999, pp. 329-345. 28Aprofundar-se- a teoria contextualista no subttulo: Metodologia e Fontes.

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    ndios de Charlotte Castelnau-LEstoile. A autora tem como foco principal de sua investiga-o o projeto missionrio da Companhia de Jesus no Brasil entre os anos 1580 a 1620 e as transformaes ocorridas naquele projeto a partir da experincia de missionria. Desta forma, o projeto e as prticas missionrias so abordados em sua constante tenso. Surge desta tenso o processo necessrio de constante adaptao do projeto missionrio ao contexto de sua inser-o. Exemplo concreto analisado quando da negociao do mtodo de aldeamento entre a Provncia do Brasil e o Governo Geral da Ordem jesutica. Apesar desta obra no se voltar diretamente Misso da regio norte, sua abordagem foi importante para a posio do pro-blema investigado neste trabalho.

    Metodologia e Fontes

    A metodologia empregada consiste na crtica analtica descritiva da documentao existente a partir da dinmica que envolveu a configurao do projeto missionrio da Compa-nhia de Jesus no norte da Amrica portuguesa. Descreve-se o movimento de continuidade e descontinuidade na urdidura dos trs momentos principais da Histria da Misso: a fase fun-dacional da Misso, a fase de expanso com o Padre Antnio Vieira e a consolidao com o governo missionrio de Joo Felipe Bettendorff.

    A dinmica prpria da constituio da presena da Companhia de Jesus no norte da Amrica portuguesa constituiu-se em constante tenso da experincia dos missionrios com a realidade local, que serviu de fora motriz para esta gestao. Neste sentido, a corres-pondncia, dos Padres Vieira e Bettendorff, aponta para duas fontes de constante tenso: a relao externa da Misso com a sociedade colonial e os desafios internos sua auto-gerncia.

    Os conflitos exteriores Misso estiveram presentes desde a fundao pelo Padre Lus Figueira, em 1636. Estes conflitos intensificaram-se com a poltica agressiva em defesa do ndio, adotada pelo Padre Antnio Vieira, e tornaram-se moderados atravs da poltica conciliatria do Padre Bettendorff, a partir do Regimento das Misses de 1686. Foi atravs dessas foras externas que a Misso direcionou suas atividades e consolidou sua existncia na Amaznia seiscentista.

    Mas no somente a experincia forjada pelas presses externas moldaram a pre-sena da Companhia no norte da America portuguesa. Tambm os conflitos internos prpria

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    Misso, iniciados com a restaurao da Misso em 1661, oriundos da ausncia do Padre An-tnio Vieira e da administrao temporal dos aldeamentos, corroboraram para moldar a posi-o dos jesutas na regio norte. Estes conflitos atingiram seu pice com as crticas de Vieira ao Regimento das Misses de 1686, negociado em Lisboa pelo Padre Bettendorff.

    Este processo verificou-se na intensa correspondncia dos Padres Vieira e Betten-dorff, entre 1652 e 1693, eleita nesta Dissertao, como fonte principal para a reconstituio do projeto missionrio jesutico na Amaznia seiscentista. As cartas do Padre Bettendorff foram fotocopiadas do Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI) e as de Antnio Vieira extradas da publicao coordenada por Joo Lcio de Azevedo. Tambm se fez uso da Chro-nica da Misso dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranho, escrita pelo mesmo Padre Bettendorff, em1698.

    Como critrio para a seleo e leitura das cartas, seguiu-se parcialmente quanto estabeleceu a metodologia usada por Joo Adolfo Hansen em sua obra Cartas do Brasil 29. Esta edio das cartas de Vieira foi elaborada a partir da seleo de cartas extradas da publi-cao de 1925-1928, de Joo Lcio de Azevedo, seguidas pelo critrio cronolgico 30. Desta forma, a primeira carta dos trs volumes, a nua de 1626 e a ltima a de 1697, escrita por Vieira sete dias antes de sua morte. A adoo do critrio cronolgico [...] vlido, obvia-mente, mas arbitrrio como qualquer 31, alertou Joo Adolpho Hansen.

    Ao se manusear a correspondncias dos dois principais atores da Misso, levou-se em considerao o gnero das categorias retrico-teolgico-poltico, sempre de acordo com o que estabeleceu Hansen para as cartas de Antnio Vieira: Sua correspondncia no deve ser entendida como jogo de palavras sem relao com o real de positivista. Tpico discreto, Vieira pauta as cartas com o juzo, aristotelicamente ordenado com prudncia tornada evidente na sua simplicidade elegante 32.

    A doutrina, portanto, est intimamente vinculada ao contedo e prtica, dando origem e forma matria. Nota-se tambm que as cartas reiteram a unidade mstica da Com-panhia e a subordinao do remetente ao destinatrio, no pacto de sujeio pessoa fictcia do Rei. Assim perspectivadas, pela doutrina, pelo gnero, etc, elas nada tm de positividade de-vido aos filtros prticos e tericos 33. Desta forma, pode-se distinguir a correspondncia viei-rina em negociais e particulares de acordo com a ars dictaminis medieval. As primeiras tratam

    29Joo Adolfo Hansen (Org.). Cartas do Brasil (1626-1697). So Paulo: Hedra, 2003. 30

    Joo Lcio de Azevedo. Cartas do Padre Antnio Vieira. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925-1928. 31

    Joo Adolfo Hansen, op. cit, 2003, p, 11. 32

    Ibidem, p. 17. 33

    Ibidem,p. 56.

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    de relacionamentos civis, ao passo que as ltimas referem-se preferencialmente questes especulativas: razo de estado e questes doutrinrias. Para Hansen o Primeiro gnero, familiar, trata de assuntos particulares, aplicando um estilo simples [...] O outro gnero, nego-cial, trata de assuntos de interesse geral, por isso admite a dissertao, a erudio, a doutrina, os ornamentos e a polmica. No tem destinatrio especificado como particular; ou o desti-natrio representante de uma posio institucional, no-familiar 34.

    Trs caractersticas, particularmente, em Vieira distinguem cartas particulares da-quelas negociais: a matria, a forma e o tema, as quais se enquadram nos trs gneros de ora-tria: o deliberativo (introdutrio) o epidtico (argumento) e o judicial (finalidade) 35. Esta rgida estrutura lembra que o remetente parte de um todo social objetivo, para o qual se es-fora em criar representaes cujas categorias e cdigos sejam inteligveis 36. Mesmo as cartas familiares esto rigidamente ordenadas pelos cdigos da poca e todas apontam para um fim determinado, conscientemente perseguido pelo autor. Nunca se pode esquecer que Vieira jesuta: tipo que no dissocia doutrina e prtica, membro subordinado do padroado, declara-damente anti-maquiavlico, anti-luterano, anti-calvinista, obediente ao Papa e ao Rei, at a morte 37.

    Enfim, praticamente, Hansen selecionou a correspondncia vieirina segundo trs critrios: destinatrio, tema e cronologia. Para o critrio destinatrio, Hansen encontrou classes de destinatrios: jesutas, sociedade colonial e a Corte portuguesa 38.

    Com este primeiro critrio, direcionou-se a leitura das cartas para as pertencentes ao grupo de destinatrios jesutas, ou seja, a relao do remetente Vieira com os religiosos da Companhia de Jesus. Este grupo de cartas possibilitou maior entendimento das tenses internas Misso. A temtica principal destas cartas refere-se aos negcios da Companhia de Jesus, em especial ao missionria no Estado do Brasil e Maranho.

    No segundo e terceiro grupo de destinatrios, Hansen discrimina cartas cujos destinatrios so membros eclesisticos e civis maranhenses sociedade colnia e membros da Corte, portanto, ad extra Societatis, as quais permitiram a reconstituio das tenses exter-nas Misso.

    Ao empregar o primeiro critrio de seleo, automaticamente incluem-se os outros dois critrios empregados por Hansen: cronologia e tema. Entretanto, se, por um lado, a cor-

    34Joo Adolfo Hansen, op. cit., 2003, p. 18. 35

    Ibidem, p.20. 36

    Ibidem, p. 21-22. 37

    Ibidem, p. 56. 38Ibidem, p.13

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    respondncia dos dois principais Superiores da Misso se presta reconstituio dos conflitos e tenses na histria da ao jesutica na Amaznia e evidencia o determinante da experincia, por outro lado, no o suficiente para esclarecer a leitura da mesma experincia que alcana-va fazer um jesuta missionrio da Amaznia colonial, como bem alertou Hansen.

    Assim, para se chegar ao segundo determinante, selecionado para esta Disserta-o, isto , as categorias de pensamento da Segunda Escolstica, recorreu-se metodologia contextualista de Quentin Skinner, que a partir de 1969, quando publicou na revista History and Theory o ensaio metodolgico Meaning and understanding in the history of ideas, tor-nou-se um dos mais consultados tericos da histria das idias polticas 39. Neste artigo, Skin-ner apresenta a proposta contextualista, que pretende evitar a descaracterizao do significado de sistemas de pensamento, elaborados no passado, pela ateno ao contexto em que o aparato terico foi produzido e aplicado. Em, As Fundaes do pensamento Poltico Moderno, Skin-ner no se deteve mais a explicar sua metodologia, mas esta obra tornou-se exemplo prtico de uso do contextualismo. A importncia dela, para esta Dissertao, est principalmente no entendimento de Skinner sobre a importncia da ars dictaminis na expresso de conceitos 40.

    Procurou-se fazer, alm de uma anlise linear do perodo estudado, o qual per-mitia as fontes, tambm um corte vertical daquela realidade, ou seja: identificou-se as cate-gorias de pensamento que regiam a leitura que os jesutas faziam de sua experincia na Mis-so do Maranho. Portanto, este procedimento permitiu no somente o isolamento do deter-minante das categorias de pensamento, s quais os jesutas do sculo XVII estavam atrelados, mas tambm a exposio do modo pelo qual a experincia desses missionrios, relatada nas fontes, foi lida a partir daquele determinante.

    Diviso da Dissertao

    O primeiro captulo contextualiza a primeira fase da Misso jesutica no nascente Estado do Maranho. Contexto no qual a Companhia de Jesus tratou de se estabelecer, ado-tando uma poltica de conciliao com os colonos. No entanto, a experincia de contato com a

    39Este artigo de Skinner foi republicado por James Tully, em 1988. Quentin Skinner. Meaning and understand-ing in the history of ideas. In: James Tully (org.). Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Prince-ton: Princeton University Press, 1988, p. 29-67. 40

    Quentin Skinner. As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno. So Paulo: Companhia das Letras, 1978.

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    sociedade colonial e as dificuldades que esta impunha evangelizao do ndio, levou o Padre Vieira a romper com a poltica de cooperao com os moradores para adotar outra mais agres-siva na defesa do ndio. Esta primeira aproximao do objeto encontra o determinante bsico da constituio do projeto missionrio, isto , a experincia missionria, que foi considerada insuficiente para a compreenso dos acontecimentos gerados pela posio vieirina.

    Ante a insuficincia do primeiro determinante para a compreenso da fase de ex-panso da Misso sob o governo do Padre Vieira, o segundo captulo testa a hiptese de que so as categorias de pensamento da Segunda Escolstica que serviram de paradigma aos mis-sionrios para proceder leitura de suas prprias experincias. Para tanto, procurou-se resga-tar o pensamento da Segunda Escolstica, a partir do isolamento de seu mvel filosfico: a cincia mdia. Buscou-se ento a relao deste novo determinante com a colonizao do Mundo Novo pela obra do Padre Lus de Molina, um dos maiores tericos da Segunda Esco-lstica. A ponte entre o arcabouo terico e o contexto colonial encontrou-se, finalmente, no problema da liberdade e na escravizao do homem, teorizadas por Lus de Molina e assenta-das, em grande parte, na cosmoviso do Padre Antnio Vieira e em sua ao na Amaznia.

    Finalmente, o terceiro captulo analisa a fase de consolidao da Misso e as mo-dificaes do projeto missionrio pela atividade do Padre Joo Filipe Bettendorff, tendo como ponto de partida os conceitos forjados pelos determinantes prprios da dinmica da presena dos jesutas na regio norte. Desta forma, reconstituem-se as tenses internas e externas que permitiram Bettendorff reformular a presena jesutica no Norte, porm, a partir de estratgias antigas, isto , adotando uma poltica de conciliao com os colonos.

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    Captulo I

    A CONQUISTA DO NORTE DA AMRICA PORTUGUESA E A FUNDAO DA MISSO JESUTICA (1615-1655)

    A primeira fase da Misso jesutica no Estado do Maranho do sculo XVII, cha-mada fundacional, 1615-1655, enfrentou grandes desafios e foi marcada por duas tentativas

    de fundao 41. A primeira tentativa, feita pelo Padre Luiz Figueira (1574-1643), resultou frustrada com sua morte e a de vrios companheiros seus na Costa do Gro-Par 42. O segun-

    do empreendimento contou com a participao do Padre Antnio Vieira (1608-1697) e alcan-ou grande xito.

    No entanto, as grandes distncias e as dificuldades impostas pela floresta tropical, eram um constante empecilho na vida dos missionrios no norte da Amrica portuguesa. O processo de Conquista leste-oeste ainda no se havia completado e, tampouco, a administra-o portuguesa havia-se instalado por completo, o que dificultou muito as relaes da Misso jesutica com a florescente sociedade colonial. De fato, este ltimo dado foi o que mais mar-cou a ao missionria, pois a resistncia, por parte dos colonos e autoridades locais, s ativi-dades da Companhia de Jesus no Maranho e Gro-Par iniciou-se ainda na fase fundacional

    41A historiografia convencionou classificar o desenvolvimento da Misso jesutica no Estado do Maranho e Gro-Par em trs fases: a de fundao, com o Padre Luiz Figueira, a de expanso, com o Padre Antnio Vieira e, finalmente, a de consolidao, com o Padre Joo Filipe Bettendorff. Cf. Karl-Heinz Arenz. De lAlzette lAmazone: Jean-Philippe Bettendorff et les Jsuites en Amazonie Portugaise (1661-1693). Luxembourg: Publications de la Section Historique de lInstitut G.-D. de Luxembourg, 2008, pp. 28; 119. Esta Dissertao, por sua vez, liga o nome do Padre Antnio Vieira tambm fase fundacional, pois entende que o jesuta, no incio de seu governo como Superior da Misso do Maranho, adotou uma poltica de no agresso aos colonos no tocante ao cativeiro de ndios e, portanto, identificou-se com a atitude prpria dos jesutas da fase fundacional. Esta posio de conciliao no foi inaugurada pelo Padre Vieira, verdade, antes fora herdada do Superior que o antecedera, o Padre Luiz Figueira, que, ante a presso dos camaristas de So Lus, assinou um termo de com-promisso com a cidade. Comprometia-se a no se intrometer na questo dos escravos indgenas, como se ver oportunamente. No entanto, o posicionamento dos jesutas, em relao aos colonos, sofreu alteraes no decorrer da permanncia dos missionrios no norte da Amrica portuguesa. O Padre Vieira, por exemplo, com o Sermo de Santo Antnio aos Peixes, pregado pouco antes de se embarcar para Portugal, em 1654, romperia com a estra-tgia de conciliao entre jesutas e colonos e tornaria pblico o confronto com os portugueses ao fazer que se aplicasse no Estado a Lei de liberdade dos ndios de 1655. Desta forma, chamar-se- fase de expanso somente os acontecimentos posteriores ao ano de 1655. 42Serafim Leite. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portuglia; Rio de Janeiro: Instituto Nacio-nal do Livro, 1949, t. VIII, p. 98. O Padre Joo Filipe Bettendorff assim descreveu o Padre Figueira: [...] elle que no Brazil era exemplo e o espelho em que se miravam os mais; elle por puro zelo de salvao das almas compoz a arte da Lingua Brazilica, elle que acompanhou o Padre Francisco Pinto (...) pelas Serras de Ibiapaba [...] elle foi o primeiro missionrio do Maranho, e Xing, o primeiro fundador do colgio de Nossa Senhora da Luz [...]. Cf. Joo Filipe Bettendorff. Chronica da Misso dos Padres da Companhia de Jesus no Estado Mara-nho. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro, vol.72, parte 1, 1910, p. 66.

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    da Misso. O pano de fundo desses atritos foi a dependncia dos colonos lusitanos da mo-de-obra indgena, foco de interminveis discusses em torno da liberdade dos ndios.

    Os primeiros missionrios da Companhia de Jesus, ocupados no Estado do Mara-nho e Gro-Par, valeram-se da rica experincia evangelizadora que os jesutas haviam acu-mulado em quase um sculo de presena no Estado do Brasil. A proximidade das duas experi-ncias missionrias, no Brasil e no Maranho, confirma-se pela existncia de elementos co-muns: o Padroado portugus, que regulamentou a evangelizao em ambos os ncleos admi-nistrativos e o mtodo de aldeamento, herdado dos jesutas do sculo XVI, e que serviu de referncia para os missionrios jesutas no Maranho 43.

    Neste captulo no se pretende apenas a reconstituio das caractersticas da fase fundacional da Misso jesutica, pretende-se tambm abordar o contexto no qual esteve inse-rida. Buscou-se o panorama poltico, administrativo, scio-econmico e eclesial aos quais esteve atrelada. Este panorama certamente imprimiu singularidade experincia da coloniza-o e evangelizao no Estado do Maranho e Gro-Par, pois traz consigo a marca das inva-ses estrangeiras, a colonizao tardia, a influncia do Governo dos Reis de Espanha, cuja poltica descentralizadora criou condies para separar o norte da Colnia do Estado do Brasil. Tais fatores fizeram com que o Norte se aproximasse e ligasse mais e mais Metrpole.

    Dito isto, chega-se finalmente ao gravssimo problema econmico. Importa ressal-tar que as Cmaras citadinas de So Lus e Belm chegaram a confrontar-se com autoridades metropolitanas, encurralar governadores e, at mesmo, afrontar o poder eclesistico, trans-formando-se em verdadeiro palco de atuao do poder particular na Colnia. Por fim, estabe-leceu-se o contexto do nascimento da Misso jesutica que, de certa forma, vem moldar o con-texto e a atuao dos missionrios da Companhia de Jesus naquela fase inicial. Contexto sem o qual no se poderia compreender suficientemente sua multiforme realidade.

    43Apesar destes elementos em comum, no se far uso da idia de movimento missionrio ou ciclo mission-rio, pelo qual a Misso do Maranho seria mais um dos ciclos de evangelizao do Estado do Brasil. Dar-se- preferncia idia de que a missionao desta regio constituiu-se experincia parte daquela do Estado do Brasil, uma vez que, atentando-se para as caractersticas, tanto da Conquista leste-oeste, como do estabelecimen-to do prprio Estado do Maranho e das misses nele, ver-se- o quo particular foi a sua constituio. Esta posio defendida por Karl-Heinz, a quem se seguir de perto nesta Dissertao, principalmente para a recons-tituio da vida e obra do Padre Joo Felipe Bettendorff. Cf. Karl-Heinz Arenz, op. cit., 2008. A idia de ciclos missionrios, porm, foi concebida por Eduardo Hoornaert, quem considerou a Misso do Maranho como o terceiro movimento missionrio do Brasil, depois do ciclo litorneo e sertanejo daquele Estado, ambos fracas-sados quando do incio do ciclo maranhense. Cf. Eduardo Hoornaert. Movimentos Missionrios. In: Eduardo Hoornaert (org.). Histria da Igreja no Brasil: Ensaio de Interpretao a partir do Povo. Petrpolis: Editora Vozes, 1977, pp. 42-103.

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    Assim sendo, a fase fundacional definiu a posio dos jesutas em dois sentidos: um de conciliao, quando o Padre Luiz Figueira, pressionado pela Cmara do Maranho as-sinou um documento de conciliao; outro de ruptura, quando o Padre Antnio Vieira, no Sermo de Santo Antnio aos Peixes, rompeu com a colaborao oficial. O documento assi-nado por Luiz Figueira proibia o envolvimento da Companhia de Jesus na questo do cativei-ro indgena, limitando a ao dos jesutas. Por outro lado, o Sermo de Antnio Vieira indica-va que a defesa da liberdade dos ndios tornar-se-ia a principal caracterstica da Misso jesu-tica.

    Assim, com a vinda do Padre Antnio Vieira ao Maranho portugus e com as su-as primeiras atividades (1653-1654), numa primeira aproximao do objeto de estudo, apre-sentou-se o mecanismo pelo qual o projeto missionrio jesutico forjou-se na Amaznia seiscentista.

    1. O Surgimento do Maranho Portugus

    O Maranho foi ocupado pelos portugueses em situao bastante diferente daque-la do Brasil, poca em que Portugal esteve sob o Governo dos Reis de Espanha (1580-1640) 44

    . A Expanso para o norte era projeto antigo, como deixou entender Pero Rodrigues em sua Informao do Rio do Maranho e do Grande Rio Par (1618), em que se pode ler: havia muitos annos que se desejava descobrir as terras do Maranho que he huma regio que est nesta costa do Brasil e se estende como 100 legoas da linha equinocial ate dous gros a ban-

    da do sul 45. Portugal visava o controle da desembocadura do rio Amazonas, rea de grande

    valor estratgico para se lanar o domnio lusitano sobre toda a bacia Amaznica 46.

    44Luiz Felipe de Seixas Corra lembra que existem divergncias entre os historiadores quanto a denominao deste perodo. Ingleses e franceses empregam termos como anexao, aquisio, conquista ou incorpora-o de Portugal pela Espanha. Os historiadores portugueses, brasileiros e espanhis fazem uso de variadas ma-tizes como onomsticos: Perodo Filipino. Outros ainda apontam para o carter plural da Coroa: Dupla Monar-quia etc. Existem os que acentuam o sentido de associao das Coroas e no tanto o carter de anexao, da as nomenclaturas como Unio Ibrica. Por fim, existem os que atribuem a este perodo designao do tipo funcio-nal: Governo dos Reis Espanhis. Cf. Luiz Felipe de Seixas Corra. O Governo dos Reis Espanhis em Portugal (1580-1640): Um Perodo Singular na Formao do Brasil. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasilei-ro, Rio de Janeiro, n. 410, jan./mar. 2001, pp. 51-66. 45ARSI, Bras. 8/I, ff. 255r-255v. Informao de Pero Rodrigues sobre o Rio do Maranho e do Grnde Rio Par. J publicado por Serafim Leite, op. cit., 1943, t. III, pp. 425-426. 46Arthur Cezar Ferreira Reis. Limites e Demarcaes na Amaznia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacio-nal, 1947, p. 21.

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    Muito embora aquele territrio fosse ento reconhecido pelos portugueses e con-cedido a Joo de Barros, Ferno lvares de Andrade e Aires da Cunha, no havia sido ocupa-do por seus donos at a primeira metade do sculo XVII 47. Sendo assim, esta regio no re-

    cebeu nenhuma ao significativa de colonizao por parte de Portugal e Espanha at se esta-belecerem nela os franceses. Foi propriamente a partir de 1612, com a fundao da Frana Equinocial por Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardire, que ocorreram iniciativas sig-nificativas de ocupao, no tempo do Governo dos Reis de Espanha. Neste sentido, para ca-racterizar estes acontecimentos, a expresso de Luiz Felipe Corra reveste-se de sentido: [...] inegvel a importncia do Brasil no comeo do sculo XVII como teatro do confronto his-

    pano-batavo 48. Poder-se-ia dizer o mesmo dos primrdios da Regio Norte, modificando to

    somente os atores. Assim sendo, tambm o Maranho, num primeiro momento, transformou-se em teatro da animosidade franco-espanhola.

    A 10 de Maro de 1534, D. Duarte Coelho fundou o povoamento de Olinda cha-mando-o de Nova Lusitnia, a qual lhe foi doada pelo Rei de Portugal D. Joo III. Este remo-to ncleo de povoao, a partir de 1574 at 1616, tornar-se-ia o centro irradiador da Conquista leste-oeste. Foi, portanto, a partir de Pernambuco que os exploradores se lanaram em direo ao Norte. Dirigiram-se, primeiramente, Paraba e ao Rio Grande do Norte para, finalmente, incorporar as terras ridas do Cear. O noroeste desta Capitania era marcado por uma cadeia montanhosa, denominada Ibiapaba, a qual fora, durante quase um sculo, o limite da ocupa-o portuguesa na Amrica. Somente nos primeiros anos do sculo XVII houve exploraes consistentes para alm daquela barreira natural. No entanto, se por terra havia to grandes dificuldades, por mar a viagem tornava-se ainda mais arriscada, devido s correntes martimas contrrias. Do outro lado de Ibiapaba estava o Maranho, onde se descortinava um cenrio bastante diverso daquele do Cear. A paisagem, predominantemente verde, era alimentada por grandes rios, os quais permitiam que as expedies penetrassem por centenas de quilmetros continente adentro. Entre os anos de 1500 e 1540, alguns exploradores espanhis como Vi-cente Iaez Pinzn (1462-1514), Diego de Leppe, Alonso Mercadillo, e tambm exploradores lusos, como Joo Coelho, Joo Lisboa, Diogo Ribeiro e Ferno Fris tiveram contato com o

    Rio das Amazonas, conforme registrou o Padre Jos de Morais (1708-?) em sua crnica 49.

    47Arthur Cezar Ferreira Reis. A Conquista da Costa Leste-Oeste. In: Arthur Cezar Ferreira Reis. pocas e Vises Regionais do Brasil. Manaus: Edies Gov. Est. Da Amaznia, 1966, p. 105. 48Luiz Felipe de Seixas Corra. O Governo dos Reis Espanhis em Portugal (1580-1640): Um perodo Singular na Formao do Brasil, op. cit., 2001, pp. 51-66. 49Jose de Morais. Histria da Companhia de Jesus na Extincta Provncia do Maranho e Par pelo Padre Jose de Moraes. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio de Brito & Braga, 1860, t. I, pp. 484-492.

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    Todavia, o longo processo de incorporao do Maranho ao Imprio Ibrico teve propriamente incio no ano de 1574, a partir de importantes relaes estabelecidas com os ndios Potiguaras, habitantes da Paraba, e que de longa data, compactuavam com os explora-

    dores franceses 50. Anos mais tarde, em 1580, depois de um longo tempo de conflitos, estabe-

    leceu-se tambm a paz com os ndios Tabajaras. Da Paraba, os portugueses passaram foz do rio Potengi, atual Estado do Rio Grande do Norte, onde dominaram os Potiguaras. Manuel Mascaranhas Homem e Jernimo de Albuquerque ergueram o Forte dos Trs Reis Magos, nas imediaes do futuro ncleo de Natal. Pero Coelho de Sousa alcanou o vale do rio Jaguaribe

    em 1603 51.

    No entanto, frustrou-se completamente a primeira tentativa dos portugueses se es-tabelecerem no vale do Jaguaribe. Tampouco os jesutas conseguiram faz-lo de imediato. Para estes ltimos, como se ver mais adiante, a expedio Serra de Ibiapaba, em 1607, ter-

    minou em desastre 52. Posteriormente, Martin Soares Moreno fundou o Forte de Nossa Senho-

    ra do Amparo, que veio a ser a ponta de lana para as iniciativas posteriores dos colonizado-res, em direo ao Maranho.

    Por ocasio da construo da Fortaleza do Amparo, Daniel de La Touche j se ha-via instalado no Maranho. Fundou, em 1612, um ncleo fortificado ao qual deu o nome de So Lus. No mesmo ano, o Governador Geral do Brasil, D. Diogo de Meneses, considerou a

    guerra contra La Touche uma necessidade 53. Mas foi somente D. Gaspar de Sousa, sucessor

    de D. Meneses, quem tomou a iniciativa e, em 1613, enviou Jernimo de Albuquerque para o Maranho. Esta foi a primeira investida contra os franceses, que em 1615 foram vencidos definitivamente e deixaram So Lus do Maranho. Evidentemente, isto no significou o do-mnio completo da regio pela Coroa Ibrica, pois a extenso das terras no permitia que, de imediato, se instalasse nela um sistema de defesa contra a presena de estrangeiros. Um im-portante feito realizar-se-ia em 12 de Janeiro de 1616, quando Francisco de Castelo Branco, cumprindo ordens de Alexandre de Moura, avanou sobre o delta do Rio das Amazonas e ergueu o Forte do Prespio, alicerce da futura cidade de Belm.

    50Arthur Cezar Ferreira Reis, op. cit., 1947, p. 22. Para a Histria das Capitanias do litoral nordeste consultar: Carla Mary S. Oliveira; Ricardo Pinto Medeiros. (Orgs.) Novos Olhares Sobre as Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Joo Pessoa: UFPB, 2007. 51A Fortaleza dos Reis Magos foi projetada pelo jesuta Gaspar de Samperes (1680-1743), era a ltima sentinela de Portugal a caminho do Equador. Cf. Serafim Leite. Luiz Figueira: A sua Vida Herica e a Sua Obra Liter-ria. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1940, p. 21. 52Arthur Cezar Ferreira Reis, op. cit., 1947, p.22. 53Ibidem.

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    preciso ressaltar ainda que, em grande parte, foi a animosidade das naes euro-pias contra Espanha que levou intensificao da presena de estrangeiros no norte da Am-

    rica portuguesa 54.

    Do que se leva dito, duas caractersticas importantes na colonizao da rea norte: a especial situao de Portugal, por estar sob o Governo dos Reis de Espanha, e a presena ostensiva de estrangeiros nas terras a serem incorporadas. Esta peculiaridade influenciou o desenrolar da histria da Amaznia portuguesa, uma vez que a presena dos franceses, e seu contato com os nativos, delineou os limites essenciais entre os lusos e as tribos espalhadas

    pelo imenso Litoral Norte 55. A Colnia portuguesa foi marcada tambm pelo fato de ter sido

    estabelecida numa regio onde j havia ndios cristianizados, ou em processo de cristianiza-o, por determinao dos missionrios franceses.

    Apesar da colonizao francesa de So Lus ter sido de carter privado, com o apoio da Coroa da Frana, a Regente, Dona Maria de Mdicis, imps ao empreendimento uma poltica religiosa catlica; por isto a presena de missionrios capuchinhos na expedio de

    Daniel de La Ravardire 56. Portanto, os capuchinhos franceses foram responsveis por aquele

    trabalho inicial junto aos nativos do Maranho, como esclarece um antigo documento francs, datado de 01 de Novembro de 1612 e intitulado Declarao dos Trs Lugares-Tenentes do Rei de Frana Instaurando as Leis Fundamentais da Frana Equinocial, no qual se l:

    Ordenamos a todos e quem quer que seja, que honrem e respeitem os reverendos Padres Capuchinhos, enviados por sua Majestade a fim de implantarem entre os ndios a religio catlica, apostlica e Romana, sob pena de serem punidos os infratores segundo o caso e a ofensa perpetrada 57.

    54Ibidem, p. 21. 55Karl-Heinz Arenz, op. cit., p. 52. 56Franz Obermeier. Documentos Sobre a Colnia Francsa no Maranho (16121615): As Partes Censuradas do Livro de Yves dvreux Suitte de lHistoire. In: Wagner Cabral da Costa (org.). Histria do Maranho: Novos Estudos. So Lus: Eduma, 2004, p, 33. Obermeier explora as partes que foram censuradas do livro de Yves dvreux, que pretendia ser continuidade cronolgica de outra obra mais conhecida pela historiografia, a Hist-ria da Misso dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranho e Terras Circunvizinhas de Claude dAbbeville. Algumas partes do livro de dvreux foram censuradas por refletirem questes incomodas como a comparao moral entre a cultura europia e a indgena. Dvreux aplica, por exemplo, o conceito de virtude natural para os nativos e de corrupo para os europeus, muito embora conserve o pensamento de que os primeiros eram inferi-ores, j que no eram cristos. A supresso destas partes do livro pretendia evitar equvocos, como o de se considerar um chefe indgena mais virtuoso do que um rei europeu, pois sua chefia firmava-se na virtude natural e no na dominao coercitiva como acontecia na Europa. Idem, p. 39-40. 57Vasco Mariz; Lucien Provenal. Declarao dos Trs Lugares-Tenentes do Rei de Frana Instaurando as Leis Fundamentais da Frana Equinocia. In: Vasco Mariz; Lucien Provenal. La Ravardire e a Frana Equinocial: Os Franceses no Maranho (1612-1615). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 190.

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    Mesmo sendo difcil avaliar o alcance desta questo, o que fugiria em muito ao objetivo desta Dissertao, pode-se pensar que o fato de os portugueses terem encontrado ndios j em processo de cristianizao tenha facilitado o contato dos primeiros missionrios jesutas com as tribos litorneas do Norte 58.

    1.1 Estruturao do Estado Portugus no Maranho

    A Carta Rgia de 12 de Junho de 1621 erigiu o Estado do Maranho, separando administrativamente as Capitanias do Maranho e Gro-Par do Estado do Brasil. Assim per-maneceria at 1652, quando este Estado seria suspenso por um perodo de dois anos. Mas, uma Carta Rgia, de 25 de Agosto 1654, o restabeleceu novamente, passando a chamar-se

    Estado do Maranho e Gro-Par, nome que conservaria at 1751 59. O novo Estado era for-

    mado pelas Capitanias do Maranho e Gro-Par, ambas constitudas por Capitanias subsidi-rias, criadas em pocas diferentes.

    Tanto a Capitania do Maranho como a do Gro-Par eram formadas por Capita-nias subsidiarias. A do Maranho possua sete Capitanias subsidirias: trs hereditrias e qua-tro reais. As reais eram Itapecuru, Icatu, Mearim e Cear, a mais antiga fundada em 1611. Tapitapera, Caet e Vigia eram hereditrias, sendo administradas por Capites donatrios. A Capitania do Gro-Par, por sua vez, era composta por cinco Capitanias subsidirias, das quais o Gurup pertencia Coroa, enquanto Joanes, Camet, Cabo do Norte e Xingu eram Capitanias hereditrias.

    58Para Almir Diniz de Carvalho Jnior, os missionrios portugueses do Estado Maranho, no sculo XVII, en-contraram e trataram com ndios j cristianizados. Ver: Almir Diniz Carvalho Jnior. ndios Cristos: A Con-verso dos Gentios na Amaznia Portuguesa (1653-1769). Tese de Doutorado em Histria. Campinas: UNI-CAMP, 2005. 59No existe acordo entre os historiadores em relao data da fundao do Estado do Maranho. Preferiu-se aqui a data indicada por Capistrano de Abreu por se basear no documento que erigiu o Estado: Isto se ordenou em 1621. Comeava no Cear, prximo do Cabo de So Roque e ia fronteira setentrional, ainda indefinida. Cf. Capistrano de Abreu. Captulos da Histria Colonial e Os Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Bras-lia: Editora Universidade de Braslia, 1963, p. 132. Charles Boxer pensa que a instalao do Estado teria ocorri-do entre 1623 e 1626. Cf. Charles Ralph Boxer. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de Crescimento de uma Soci-edade Colonial. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963, p. 239. A data de 1623 corresponde, de fato, nomeao do primeiro Governador do Maranho, Francisco Coelho de Carvalho e a data de 1626 corresponde posse do mesmo governante.

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    A Coroa Ibrica decidiu pela separao administrativa das Capitanias do Norte,

    ligando-as diretamente a Lisboa, por motivos de cunho prtico 60. O isolamento devido s

    largas distncias com a sede de governo na Bahia, as dificuldades com as correntes martimas contrrias, que praticamente impossibilitavam a navegao em direo costa-leste durante a maior parte do ano, so os principais motivos que os historiadores apresentam para justificar a separao administrativa da Colnia. Capistrano de Abreu afirma que:

    As dificuldades de comunicao martima entre o Maranho e o resto do Brasil sugeriram a idia de criar ali um estado independente. Isto se ordenou em 1621. Comeava no Cear, prximo do Cabo de So Ro-que e ia fronteira setentrional, ainda indefinida 61.

    Tambm Charles Boxer afirma que s caractersticas geogrficas foram o motivo principal pelo qual a Coroa Ibrica optou pela diviso da Amrica Portuguesa em dois ncleos administrativos. Diz o autor citado:

    Por motivos geogrficos evidentes, o litoral Maranho-Par era cha-mado muitas vezes, costa leste-oeste, em contraste com a faixa de terra que ia do Cabo de So Roque ao Rio de La Plata, qual se dava o nome de costa norte-sul. Devido s diferenas dos ventos e cor-rentes predominantes daquelas duas regies costeiras, a comunicao martima entre elas fazia-se extremamente difcil para os navios que saam da primeira para a segunda daquelas regies [...] As diferenas radicais entre a regio amaznica e a costa leste-oeste por um lado, e o resto do Brasil pelo outro, levou a uma fuso das duas Capitanias de Maranho e Gro-Par no estado administrativamente separado daque-le nome, formado entre 1623 e 1626 62.

    Alm dessas diferenas radicais, como expressou Boxer, poder-se-ia acrescentar a preocupao da Coroa ibrica com a indesejada presena de estrangeiros, que se encontra- 60Para maior compreenso da interferncia administrativa do governo dos Felipes no Brasil, consultar a obra de Roseli Stella. O Domnio Espanhol no Brasil Durante a Monarquia dos Felipes (1580-1640). So Paulo: UNI-BERO, 2000. 61Capistrano de Abreu, op. cit., 1963, p. 132. 62Charles Ralph Boxer, op. cit., 1963, p. 239.

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    vam ainda espalhados pela bacia Amaznica. Em conseqncia, a nova regio poltica justifi-car-se-ia tambm como estratgia de ocupao da Amaznia.

    O Estado do Maranho, desde a sua fundao, contava entre seus principais ma-

    gistrados o Governador, o Ouvidor Geral e o Provedor da Fazenda 63. O primeiro Governador,

    Francisco Coelho de Carvalho, foi nomeado em 23 de Setembro de 1623, mas devido ao seu envolvimento com a questo holandesa em Pernambuco, somente em 1626 tomou posse do

    cargo 64. Estas autoridades, respondiam administrao colonial, representada pelo Conselho

    Ultramarino, como lembra Joo Lcio de Azevedo:

    Os negcios da administrao da colnia corriam em Lisboa pelo Conselho Ultramarino (Primeiramente Conselho da India), competia Meza de Conscincia e Ordens os assunptos ecclesisticos, e o que se denominava Provedoria dos defunctos e ausentes. Cumpriam-se tam-bm disposies das diferentes secretarias de Estado; as ordens do De-sembargo do Pao, relativas justia; e as do Contador-mr dos Con-tos de reis e Casa, que diziam respeito fazenda 65.

    A forma de governo no Maranho assumiu vrias modalidades, que se sucederam, uma a uma, e de vez em quando, at regrediu as antigas modalidades. Da Conquista do norte da Amrica portuguesa at a posse do primeiro Governador, prevaleceu o regime dos Capi-tes-Mores como informou o cronista Joo Filipe Bettendorff:

    Tendo Alexandre de Moura governado dous annos a capitania do Ma-ranho, chegou Bento Maciel por Governador da Capitania do Par no anno 1618, e depois de estar o governo oito annos nas mos dos Capites Mores, chegou finalmente [...] Francisco Coelho de Carvalho por primeiro Governador de todo o Estado que governou treze annos 66.

    63Joo Lcio de Azevedo. Os Jesutas no Gro-Par: Suas Misses e a Colonizao. Lisboa: Livraria Tavares Cardoso & Irmo, 1901, p. 144. 64Arthur Cezar Ferreira Reis. A Conquista da Costa Leste-Oeste. In: Arthur Cezar Ferreira Reis. pocas e Vises Regionais do Brasil. Manaus: Edies Gov. Est. Da Amaznia, 1966, p. 113. O Padre Bettendorff regis-trou na Chronica o ano de 1629 para o incio do governo de Francisco Carvalho. [...] chegou finalmente no anno de 1629 Francisco Coelho de Carvalho por primeiro Governador de todo o Estado que governou treze an-nos. Cf. Joo Filipe Bettendorff, op. cit., 1910, p. 47. 65Joo Lcio de Azevedo, op. cit. 1901, pp. 143-144. 66Joo Filipe Bettendorff, op. cit., 1910, p. 47.

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    O primeiro Capito-Mor do Maranho, Jernimo de Albuquerque, fora nomeado em 1616. A 03 de Setembro de 1626, Antnio Muniz Barreiro, ltimo Capito-Mor desta primeira fase, entregou o Governo a D. Francisco Coelho de Carvalho, inaugurava-se, pois, o regime dos Governadores. administrao de D. Carvalho seguiram- se quatro outros Go-vernadores: Jcome Raimundo de Noronha, Pedro de Albuquerque, Francisco Coelho de Car-

    valho Sardo e Lus de Magalhes 67.

    Com a restaurao da Coroa portuguesa, em 1640, e a ascenso ao trono de D. Jo-o IV, da Casa de Bragana, mudanas substanciais ocorreriam na administrao das Col-nias. No caso especfico do Estado do Maranho, fazia-se urgente adaptar o aparelho adminis-trativo colonial s peculiaridades da regio, de forma a resolver os eventuais impasses polti-cos e econmicos gerados pelas distncias e, principalmente, pelas eternas intrigas regionais, em grande parte, causadas pelas administraes particulares exercidas pelos donatrios de Capitanias. Estas reformas, ligadas tendncia centralizadora da Monarquia portuguesa, no tardariam a esbarrar com a realidade do Estado do Maranho. O abuso de poder, praticado pelas Cmaras locais, a ambio dos Governadores e a influncia do poder eclesistico, foram

    alguns dos mais tradicionais focos de conflito no Norte 68.

    Por dois anos, o Estado ficou supresso, 1652-1654, e as duas principais Capitanias foram novamente subordinadas ao Estado do Brasil. Em 1654, porm, as autoridades lusitanas convenceram-se de que o melhor, para os interesses da Coroa, seria retomar a antiga unidade poltica, o que de fato ocorreu naquele mesmo ano. Nesta questo, o Padre Antnio Vieira posicionou-se veementemente em prol da centralizao. Por fim, em meio s negociaes, as Cmaras de So Lus e Belm foram partidrias da restaurao do antigo Estado, conforme se l em Arthur C. F. Reis:

    A revogao de 1652 fra pleiteada pelas Cmaras de Belm e So Lus, em representao endereada ao Rei. Agora, as duas edilidades, enviando procuradores ao Reino para promover uma soluo no caso da mo de obra indgena, mudavam de atitude e faziam cro com os que advogavam a restaurao do Estado 69.

    67Arthur Cezar Ferreira Reis, op. cit., 1966, p. 113. Entre 1641 e 1643, o Estado do Maranho permaneceu sem governadores devido invaso holandesa. Cf. Antnio Ladislau Monteiro Baena. Compndio das Eras da Pro-vncia do Par. Belm: Universidade Federal do Par, 1969, pp. 52-57. 68Joo Lcio de Azevedo, op. cit., 1901, pp. 143 -144. 69Arthur Cezar Ferreira Reis, op. cit., 1966, p. 115.

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    Um ano depois das negociaes, em 1653, Andr Vidal fora nomeado Governador do novo Estado, o qual passou a chamar-se Estado do Maranho e Gro-Par. Somente no sculo XVIII, com a administrao de Francisco Xavier Mendona Furtado, 1751-1759, a nomenclatura mudaria para Estado do Gro-Par e Maranho.

    Nesta estrutura de poder, inaugurada com a fundao do Estado do Maranho, em 1621, e retomada em 1654, as Cmaras das duas principais Capitanias exerceram grande in-fluncia. Muitas vezes, desafiavam ou desrespeitavam os representantes da Corte e autorida-des eclesisticas. O contnuo jogo de interesses particulares movia as Cmaras, de forma que situavam em permanente mudana, como se verificou na questo da restaurao do Estado. Sobre este movimento vertiginoso de idias e posturas expressou-se Joo Lcio de Azevedo:

    Hombreando com os enviados da metrpole e quasi sempre em lucta aberta com elles; promovendo conflictos, representaes, arruaas; ta-xando os salrios e o preo dos gneros; decretando impostos, prohi-bindo negcios, ordenando prises, as camaras constituam verdadeiro estado no estado 70.

    Em artigo recente, Alrio Cardoso retomou esta questo em perspectiva inusitada. Props-se a analisar a construo retrica da imagem da Cmara de So Lus, no sculo XVII, desvelada pelo texto das Atas camarrias. Para Cardoso, as Cmaras ultramarinas, de forma geral, encontraram a garantia de sua imposio nas Colnias pela construo fictcia de um sujeito discursivo coletivo, atravs do qual, os camaristas se colocavam, no apenas como falantes em nome da res publica, mas tambm como nica via de defesa dos interesses da

    mesma 71. Tal construo foi possvel porque encontrou na justia portuguesa uma forte ten-dncia ao particularismo, isto , a preponderncia das leis particulares sobre as leis gerais do

    Imprio 72.

    As Cmaras eram integradas pela elite local, ditos cidados, sendo constitudas, pelo menos formalmente, por um juiz, dois ou trs vereadores, um procurador e pelos oficiais camarrios, responsveis pelo abastecimento da cidade e fixao de preos, este ltimo cha-mado almotac, e o escrivo.

    70Joo Lcio de Azevedo, op. cit., 1901, p. 144. 71Alrio Carvalho Cardoso. Poderes Internos: A Cidade de So Lus e o Discurso da Cmara no Sculo XVII. Cincias Humanas em Revista. So Lus, v. 5, n. 2, 2007, pp. 132-133. 72Ibidem, p.131.

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    Cardoso considera que as Atas escritas na Cmara de So Lus guardam, em sua forma, semelhanas muito prximas ao paradigma epistologrfico da poca, a ars dictaminis. Assim, elas se revestem de um carter formal pr-estabelecido e uma dada relao hierrquica surge de seu contedo expresso de forma retrica: a vontade do rei, o bem comum da res pu-blica e o bem do povo. Neste sentido, a relao entre os oficiais da Cmara e a autoridade do rei torna-se ambgua, pois as Cartas Rgias passavam pela interpretao dos camarrios, que

    buscavam, defendendo os seus interesses, um equilbrio entre as partes 73. Apresentam-se,

    portanto, como agentes imprescindveis para a conduo da cidade, assumindo o papel de defensores da ordem e corretores de eventuais vcios, primando sempre pelas condutas tradi-

    cionais consagradas 74.

    No entanto, no foi apenas o sujeito discursivo coletivo que as Cmaras ultra-marinas criaram; tambm personagens e assuntos foram moldados pela retrica administrati-va, para dar sustento e beleza quela imagem. Desta forma, das Atas surgem problemas e personagens tipificados como anota Cardoso:

    Conformadas a um ambiente local, mas no refm dele, as Atas cons-troem uma srie bem conhecida de problemas e agentes tipificados. Assim o missionrio, necessrio, mas muitas vezes desobediente; o governador, com tendncias a onipotncia; o capito-mor, des-respeitoso. Da mesma forma que existem figuras tpicas, h situaes tipificadas. Nesse sentido, as Atas da Cmara, como gnero documen-tal, reproduzem uma srie de queixas: a falta de recursos, mesmo que estes existam; problemas com o soldo das tropas; motins; e at mesmo ausncia de moeda 75.

    Para o autor, aquelas tpicas, utilizadas como recurso retrico das Cmaras ultra-marinas, visavam mobilizar o poder real a fim de obter suas benesses para exercer o controle local. Neste sentido, a Cmara de So Lus no se constituiu exceo.

    Em So Lus, o discurso sobre o trabalho indgena apresentado pelo autor como exemplo desta estratgia camarista. Assim, em 1654, os oficiais da Cmara apontam para a origem de todos os bens e problemas do Estado, isto , os ndios. Desde 1649 este Conselho

    73Cardoso trilha em sua pesquisa, como ele mesmo expressou, o caminho aberto por Joo Adolfo Hansen na anlise retrica da epistolografia, em que compreende as Atas das Cmaras como gnero retrico. 74Alrio Carvalho Cardoso, op. cit., 2007, p. 133. 75Ibidem.

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    vinha estabelecendo regras para a utilizao da mo-de-obra indgena. Como conseqncia, em 1653, determinou-se que os donos de rede de pesca no empregassem mais de 12 ndios neste servio e impedia a transferncia de ndios para o Reino. Cardoso lembra que estas me-didas tinham o objetivo claro de bem regulamentar a utilizao da mo-de-obra, pois, do con-trrio, seria prejudicial cidade. Com este controle mantinha-se o equilbrio da res publica e evitava-se o uso privado da mo-de-obra, incompatvel com o discurso camarista do destino

    coletivo da cidade 76. O controle rgido sobre a mo-de-obra indgena em So Lus demons-

    tra a eficincia do discurso de poder que emanava da Cmara. Segundo o autor, a intensidade retrica dos oficiais camaristas verifica-se no dis-

    curso recorrente sobre a falta de trabalhadores para os ofcios mecnicos: sapateiros, alfaiates, pedreiros, carpinteiros e a ausncia de recursos da cidade. Muito embora, a falta de rendas no possa ser ignorada nestas primeiras dcadas da Colnia, Cardoso est convencido de que no existia nas tpicas da falta de reservas e da misria do Maranho apenas uma realidade vivida,

    mas tambm uma realidade construda retoricamente 77.

    Por outro lado, o autor cauteloso ao tentar concluir a questo supracitada, uma vez que o poder das Cmaras encontrava seus prprios limites nas relaes locais, conforme se pode ler no pargrafo abaixo:

    De outro modo, na prtica, as prprias atividades missionrias, estabe-lecimento de fazendas, cultivo de gneros da terra, jornadas ao serto e controle sobre o trabalho indgena, fogem relativamente ao controle da Cmara 78.

    Desta forma, os aldeamentos e a legislao indgena portuguesa tornaram-se um trunfo para os religiosos ante o d