Jesus Existiu Ou Não - Bart D. HEhrrmman

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Livro em português

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  • Ttulo original: Did Jesus exist? Copyright 2012 por Bart D. EhrmanCopyright da traduo Nova Fronteira 2014 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ouprocesso similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor docopirraite. Texto revisto pelo novo Acordo Ortogrfico EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAES S.A.Rua Nova Jerusalm, 345 Bonsucesso 21042-235Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8212/8313

    COORDENAO EDITORIALOb Editorial

    TRADUOAnthony Cleaver

    PREPARAO DE TEXTOLuiza ThebasRayssa vila

    REVISODbora Tamayose LopesMaurcio Katayama

    DIAGRAMAOThas Gaal RupeikaWinnie Affonso

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    E32j

    Ehrman, Bart D., 1955-

    Jesus existiu ou no? / Bart D. Ehrman. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Agir, 2014.

    il. ; 23 cm.

    Traduo de: Did Jesus exist?

    Inclui bibliografia

    ISBN 9788522030675

    1. Jesus Cristo - Historicidade. 2. Cristianismo. I. Ttulo.

    14-12250

    CDD: 220.6

    CDU: 27-23

  • SUMRIO

    AgradecimentosIntroduo

    Parte I Evidncias do Jesus histricoCaptulo 1 Introduo viso mtica de JesusCaptulo 2 Fontes no crists da vida de JesusCaptulo 3 Os Evangelhos como fontes histricasCaptulo 4 Evidncias de Jesus em fontes externas aos EvangelhosCaptulo 5 Dois dados cruciais sobre a historicidade de Jesus

    Parte II As alegaes dos miticistasCaptulo 6 O argumento miticista: alegaes fracas e irrelevantesCaptulo 7 Invenes miticistas: criando o Cristo mtico

    Parte III Quem foi o Jesus histrico?Captulo 8 Buscando o Jesus da histriaCaptulo 9 Jesus, o profeta apocalptico

    Concluso Jesus e os miticistas

    Bibliografia

    Notas

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer a diversas pessoas que generosamente me ajudaram a escrever eeditar este livro: meu irmo, estudioso clssico na Universidade Estadual de Kent, RaddEhrman; um de meus amigos mais prximos, tanto dentro quanto fora dessa rea deestudo, Jeffrey Siker, da Universidade Loyola Marymount; outra amiga prxima dentro efora da rea, Judy Siker, do Seminrio Teolgico San Francisco; meu estimado colegaMark Goodacre, da Universidade Duke, instituio rival do outro lado da cidade; minhaaluna e assistente de pesquisa do programa de ps-graduao da Duke, Maria Doerfler;meu aluno e assistente de pesquisa do programa de ps-graduao da Universidade daCarolina do Norte-Chapel Hill, Jason Combs; minha filha singularmente perspicaz, KellyEhrman; e meu diligente e exmio editor e amigo da HarperOne, Roger Freet. Todoseles leram cuidadosamente meu manuscrito e sugeriram (inmeras) mudanas. Quandodei ateno a eles, o manuscrito ficou bem melhor; quando no dei, assumo a culpa. Eutambm gostaria de agradecer aos outros membros da equipe da HarperOne queviabilizaram a publicao deste livro, em especial Julie Burton, Claudia Boutote e MarkTauber. um grupo extraordinrio, e um privilgio trabalhar com eles.

    Gostaria de agradecer tambm aos frequentadores do CIA o grupo de leitura deCristianismo na Antiguidade, formado por docentes e ps-graduandos em NovoTestamento/Cristianismo Primitivo tanto da UNC quanto da Duke por uma animadanoite de debate sobre dois dos captulos.

  • INTRODUO

    H vrios anos planejo escrever um livro sobre como Jesus se tornou Deus. Umpregador itinerante e praticamente desconhecido, vindo de uma regio rural remota eatrasada do Imprio Romano, um profeta judeu que anunciou a iminncia do fim domundo tal qual o conhecemos, que provocou a ira de lderes religiosos e civis da Judeiae que foi consequentemente crucificado por revolta contra o estado como foi que,apenas um sculo depois de sua morte, esse campons judeu pouco conhecido passou aser chamado de Deus? Como estavam dizendo que ele era um ser divino cuja existnciaprecedia o mundo, que ele havia criado o universo e que era semelhante ao prprioDeus Todo-Poderoso? Como Jesus foi deificado e adorado como Senhor e Criador detudo?

    Confesso que estou ansioso por escrever o livro, j que essas perguntas esto entre asmais urgentes de toda a histria da religio. Mas fui continuamente forado a adi-lo,pela precedncia de outros projetos. Contudo, ser meu prximo livro. Por enquanto, halgo ainda mais urgente, uma pergunta prvia que devo considerar primeiro. Este livrotrata dessa pergunta prvia.

    Todas as semanas recebo dois ou trs e-mails perguntando se Jesus existiu como serhumano. Quando comecei a receber esses e-mails h alguns anos, achei a pergunta umtanto estranha e no a levei a srio. claro que Jesus existiu. Todos sabem que eleexistiu. No sabem?

    Mas os e-mails continuaram, e fui levado a pensar por que tanta gente me fazia essapergunta. Fiquei ainda mais surpreso ao saber que eu era erroneamente citado emalguns crculos como tendo dito que Jesus nunca existiu. Decidi investigar a questo.Para meu espanto, descobri que h uma extensa bibliografia dedicada discusso daexistncia ou no de Jesus.

  • Fiquei admirado, porque sou um estudioso do Novo Testamento e do cristianismoprimitivo e, h 30 anos, escrevo extensamente sobre a figura histrica de Jesus, osEvangelhos, os primrdios do movimento cristo e os primeiros 300 anos da histria daigreja crist. Assim como todos os estudiosos do Novo Testamento, li milhares de livrose artigos em ingls e outras lnguas europeias sobre Jesus, o Novo Testamento e ocristianismo primitivo. No entanto, eu desconhecia completamente (assim como amaioria de meus colegas da rea) a existncia dessa bibliografia ctica.

    Quero esclarecer logo que nenhuma dessas obras foi escrita pelos especialistas emNovo Testamento e cristianismo primitivo que lecionam nos renomados seminriosteolgicos, escolas de estudos religiosos e nas principais, ou mesmo secundrias,universidades ou faculdades da Amrica do Norte ou da Europa (ou de qualquer outrolugar do mundo). Dos milhares de estudiosos do cristianismo primitivo que lecionamem tais escolas, no h nenhum de meu conhecimento que tenha qualquer dvida sobrea existncia de Jesus. Entretanto, h uma grande quantidade de obras, algumasextremamente inteligentes e bem informadas, levantando essa questo.

    Esses livros e artigos (alm de sites na internet) variam bastante em qualidade.Alguns concorrem com O cdigo da Vinci na paixo por conspiraes e na superficialidadede conhecimento histrico, no s sobre o Novo Testamento e o cristianismo primitivo,mas sobre religies antigas em geral e, de modo ainda mais amplo, sobre o mundoantigo. No entanto, alguns estudiosos honestos no professores universitrios deestudos religiosos, mas estudiosos mesmo assim, dos quais ao menos um temdoutorado na rea de pesquisa do Novo Testamento assumiram essa posio eescreveram sobre o assunto. Seus livros podem no ser conhecidos pelo pblicointeressado em questes relacionadas a Jesus, aos Evangelhos e igreja crist primitiva,contudo ocupam um nicho respeitvel como voz de um grupo (bastante) pequeno, mas(frequentemente) ruidoso. Quem passa a dar ateno a essa voz logo percebe quanto elapode ser persistente e clamorosa.

    E, em certos lugares, essa voz est se fazendo ouvir em alto e bom som. At mesmouma busca rpida na internet revela a extenso da influncia desse ceticismo radical nopassado e a velocidade de sua disseminao atual. Durante dcadas foi uma visodominante em pases como a antiga Unio Sovitica. E ainda mais surpreendente queessa parece ser a viso prevalecente em certas regies do Ocidente hoje em dia.

    Os autores dessa literatura ctica se autodenominam miticistas, ou seja, os queacreditam que Jesus um mito. Os miticistas raramente definem o que entendem pelapalavra mito, uma omisso que os verdadeiros estudiosos da religio consideram infeliz ealtamente problemtica, j que, academicamente, a definio tcnica do conceito varioubastante ao longo dos anos. Para os miticistas, o termo muitas vezes parece significarapenas um relato sem fundamentao histrica, uma narrativa aparentemente histrica

  • que na verdade no aconteceu. Nesse sentido, Jesus um mito porque, embora hajavrios relatos antigos sobre ele, nem todos eles seriam fatuais. Sua vida e seusensinamentos teriam sido inventados por antigos contadores de histrias. Ele nuncateria existido de verdade.

    Aqueles que acham que Jesus no existiu frequentemente assumem posturasmilitantes e so notavelmente hbeis em refutar evidncias que, para o resto do mundocivilizado, soam altamente convincentes e at mesmo indiscutveis. Esses autoressempre tm uma resposta, e os mais inteligentes entre eles devem ser levados a srio,nem que seja para mostrar por que a alegao principal deles no pode estar correta.No importa o que mais se pense sobre Jesus, o fato que ele certamente existiu. issoque este livro vai demonstrar.

    Quase no h necessidade de enfatizar o que j insinuei: a existncia de Jesus defendida por praticamente todos os especialistas no mundo. claro que isso por si sno constitui prova. Afinal, a opinio de especialistas no deixa de ser apenas opinio.Mas por que algum iria ignorar a opinio de especialistas? Se voc vai ao dentista, querque ele seja um especialista ou no? Se voc constri uma casa, quer que o projeto sejafeito por um arquiteto profissional ou por seu vizinho? H quem argumente que o casoda existncia histrica de Jesus diferente, pois, afinal, trata-se de histria, e o acessodos especialistas ao passado to limitado quanto o de qualquer pessoa. No entanto,isso simplesmente no verdade. A principal fonte de conhecimento sobre Idade Mdiade alguns de meus alunos pode ser o filme Monty Python em busca do clice sagrado, masser que a melhor opo? Da mesma maneira, milhes de pessoas adquiriram seuconhecimento sobre o cristianismo primitivo sobre Jesus, Maria Madalena, oimperador Constantino, o Conclio de Niceia lendo Dan Brown, o autor do supracitadoO cdigo da Vinci. Mas, no final das contas, essa realmente uma escolha inteligente?

    Os historiadores srios do movimento cristo primitivo todos eles passam anos sepreparando para ser especialistas na rea. A simples leitura das fontes antigas requer odomnio de vrias lnguas antigas como grego, hebraico e latim, muitas vezes aramaico,siraco e copta, alm de lnguas acadmicas modernas (alemo e francs, por exemplo).E isso apenas o comeo. A especializao exige anos de estudo paciente de textosantigos e uma base slida da histria e da cultura da antiguidade greco-romana, dasreligies do mundo mediterrneo, pags e judaicas, conhecimento da histria da igrejacrist e do desenvolvimento de sua vida social e de sua teologia, alm de vrias outrascoisas. Chama a ateno o fato de que praticamente todos os que passaram vrios anosestudando para obter tais qualificaes esto convencidos de que Jesus foi uma figurahistrica real. Novamente, isso no vale como evidncia, mas no mnimo motivo parareflexo. No campo da biologia, evoluo pode ser apenas uma teoria (como enfatizam

  • penosamente certos polticos), mas uma teoria aceita, com boas razes, por todos oscientistas genunos de todas as universidades reconhecidas do mundo ocidental.

    Ainda assim, como fica claro com a avalanche de comentrios eventualmenteindignados em todos os sites relevantes, simplesmente no h maneira de convencer ostericos da conspirao quanto inconsistncia de sua posio e de que as evidnciasem favor da viso tradicional so totalmente persuasivas. Qualquer um que opte poracreditar em algo contrrio a evidncias que a maioria das pessoas considerainquestionavelmente convincentes o Holocausto, a aterrissagem na Lua, o assassinatode presidentes ou at mesmo o local de nascimento de um presidente nunca poderser convencido. simplesmente impossvel convenc-lo.

    Assim, no tenho a expectativa de convencer ningum do time contrrio com estelivro. Minha inteno convencer pessoas genuinamente interessadas em saber comons temos certeza de que Jesus de fato existiu, um consenso entre praticamente todosos estudiosos da antiguidade, dos textos bblicos, dos clssicos e das origens crists, nos nos Estados Unidos, mas em todo o mundo ocidental. Como eu, muitos dessesestudiosos no tm nenhum interesse pessoal na questo. No sou cristo nem tenho ocompromisso de defender uma causa ou uma agenda crist. Sou agnstico cominclinaes atestas, e minha vida e viso de mundo seriam basicamente as mesmastenha Jesus existido ou no. Minhas crenas no seriam muito diferentes. A resposta questo da existncia histrica de Jesus no me deixar nem mais nem menos feliz,satisfeito, esperanoso, simptico, rico, famoso ou imortal.

    Como historiador, porm, dou importncia a evidncias, assim como ao passado. E,para algum que valoriza tanto as evidncias quanto o passado, uma investigaoimparcial da questo no deixa dvidas: Jesus realmente existiu. Pode no ter sido oJesus em que sua me acredita, ou o Jesus dos vitrais, ou o Jesus do televangelista dequem voc menos gosta, ou o Jesus glorificado pelo Vaticano, pela Conveno Batista doSul, pela megaigreja local ou pela Igreja Gnstica da Califrnia. Mas ele existiu, epodemos afirmar algumas coisas sobre ele com relativa certeza.

    Seja como for, devo admitir que escrevo este livro com certa dose de temor enervosismo. Sei que alguns leitores que apoiam causas agnsticas, atestas ouhumanistas e que geralmente apreciam meus outros textos rejeitaro com alardeminhas argumentaes histricas. Ao mesmo tempo, certos leitores que acham algunsde meus outros textos perigosos ou ameaadores ficaro surpresos, talvez at satisfeitos,por verem que me junto a eles em uma causa comum. possvel que muitos leitoresquestionem a necessidade de escrever um livro explicando que Jesus existiu. Euresponderia a eles que todo personagem, evento ou fenmeno histricos precisam tersua existncia comprovada. Um historiador nunca pode se contentar com suposies. Eh vrias vozes rumorosas por a declarando para quem quiser ouvir que Jesus um

  • mito. Essa posio miticista interessante do ponto de vista histrico e fenomenolgico,como parte de um ceticismo mais amplo que tem influenciado setores do mundoacadmico e merece uma anlise sociolgica lcida. No tenho a competncia ou oconhecimento necessrios para realizar essa anlise abrangente, embora pretenda incluirem minha concluso alguns comentrios breves e gerais sobre o fenmeno miticista. Oque posso fazer como historiador mostrar por que provvel que esteja errado aomenos um conjunto de argumentos cticos sobre o passado de nossa civilizao, mesmoque esses argumentos estejam se infiltrando na conscincia popular em ritmoalarmante. Jesus existiu, e as pessoas que negam abertamente esse fato o fazem noporque analisaram as evidncias com o olhar desapaixonado de um historiador, masporque essa negao est a servio de alguma causa prpria. Do ponto de vistaimparcial, houve um Jesus de Nazar.

  • Parte IEvidncias do Jesus histrico

  • CAPTULO 1

    INTRODUO VISO MTICA DE JESUS

    Os estudiosos modernos do Novo Testamento so famosos, ou infames, por fazeremalegaes sobre Jesus que contradizem aquilo em que a maioria das pessoas,especialmente os cristos, acredita. Alguns afirmam que Jesus foi um polticorevolucionrio que queria instigar as massas em Israel a se rebelarem violentamentecontra seus dominadores romanos. Outros alegam que ele era uma espcie de filsofocnico antigo sem nenhum interesse real na Bblia Hebraica (as escrituras judaicas) ouem Israel entendido como o povo de Deus, mas que se ocupava de ensinar o povo aviver de maneira simples, despojado dos bens materiais dessa vida. Outros insistem queJesus se preocupava basicamente com a m situao econmica de seu povo oprimido eclamava por reformas socioeconmicas, como uma espcie de protomarxista. Outrosainda declaram que sua preocupao principal era a opresso das mulheres e que era umprotofeminista. Alguns dizem que ele se interessava principalmente por questesreligiosas, mas era fariseu. Outros, que ele era membro da comunidade dos manuscritosdo mar Morto, um essnio. Alguns dizem que ele pregava uma tica totalmenteburguesa, era casado e tinha filhos. Outros ainda sugerem que ele era homossexual. Eessas so apenas algumas das teorias mais srias.

    Apesar dessa variedade de opinies, h vrios pontos de consenso entre praticamentetodos os estudiosos em antiguidade. Jesus foi um homem judeu, reconhecido comopregador e mestre, que foi crucificado (uma forma romana de execuo) em Jerusalmdurante o reinado do imperador Tibrio, quando Pncio Pilatos era governador daJudeia. Embora essa seja a viso de quase todos os acadmicos da rea no mundo, no como entende um grupo de autores geralmente rotulados, muitas vezes por si prprios,como miticistas.

    Em uma recente exposio exaustiva dessa posio, um dos principais proponentesda teoria miticista de Jesus, Earl Doherty, define a concepo da seguinte maneira: a

  • teoria de que no houve nenhum Jesus histrico digno desse nome, que o cristianismocomeou com uma crena em uma figura espiritual e mtica, que os Evangelhos soessencialmente alegricos e ficcionais e que no possvel identificar somente umapessoa por trs da tradio de pregao na Galileia.1 Em termos mais simples, o Jesushistrico no existiu. Ou, se existiu, no teve nada a ver com a fundao docristianismo.

    Para dar algum embasamento acadmico a sua teoria, os miticistas citam s vezesuma passagem de uma das maiores obras modernas dedicadas investigao do Jesushistrico, o merecidamente famoso A busca do Jesus histrico, de autoria do estudioso doNovo Testamento, telogo, filsofo, organista clssico, mdico, humanista e detentor doPrmio Nobel da Paz Albert Schweitzer:

    No h nada mais negativo do que o resultado do estudo crtico da vida de Jesus. OJesus de Nazar que se anunciou publicamente como o Messias, que pregou a ticado reino de Deus, que fundou o reino do cu na terra e que morreu para consagrardefinitivamente seu trabalho nunca teve qualquer existncia. Essa imagem no foidestruda por ao externa; ela ruiu, rachada e desintegrada pelos problemashistricos concretos que afloram continuamente.2

    Fora de seu contexto, essas palavras podem parecer sugerir que o prprio Schweitzerno acreditava na existncia do Jesus histrico. No entanto, nada poderia estar maislonge da verdade. Para Schweitzer, o mito era a viso liberal de Jesus predominante emsua poca, proposta nos diversos livros que ele incisivamente resumiu e argutamentedesacreditou em A busca do Jesus histrico. Schweitzer sabia muito bem que Jesusrealmente existiu; na segunda edio do livro, escreveu uma crtica devastadora aosmiticistas de sua poca e, ao final do livro, mostrou a verdadeira identidade de Jesus,segundo sua anlise ponderada. Segundo Schweitzer, ele foi um profeta apocalptico quepregava o fim iminente da histria como a conhecemos. Jesus acreditava que teria papelfundamental nas aes futuras de Deus, quando as foras do mal que dominavam nossomundo seriam derrotadas para dar lugar a um novo reino. Segundo Schweitzer, Jesusiludiu-se seriamente a respeito de si mesmo e dos acontecimentos futuros. O fim domundo nunca veio, e Jesus acabou crucificado por causa de suas ideias. Mas foi umapessoa real, um pregador judeu de quem muito se pode saber por meio do estudocuidadoso dos Evangelhos.

    Para Schweitzer, o problema do Jesus histrico que ele foi, na verdade, uma figuraexcessivamente histrica. Ou seja, Jesus foi uma pessoa to enraizada em sua prpriapoca e lugar um judeu palestino do sculo I com uma compreenso judaica antiga domundo, de Deus e da existncia humana que no fcil traduzi-lo em linguagemmoderna. O Jesus aclamado por pregadores e telogos atuais no existiu. Esse Jesus em

  • particular (ou as vrias verses particulares dele) um mito. Houve, porm, um Jesushistrico, que foi essencialmente um homem tpico de sua poca. E podemos sabercomo ele era.

    O pensamento de Schweitzer a respeito do Jesus histrico coincide com o meu, aomenos em linhas gerais. Como Schweitzer e praticamente todos os estudiosos da readesde ento, concordo que Jesus existiu, que inevitavelmente era judeu, que hinformao histrica sobre ele nos Evangelhos e que, portanto, possvel saber algumacoisa sobre o que ele disse e fez. Alm disso, concordo com o apontamento geral deSchweitzer de que Jesus mais bem compreendido como um profeta judeu que previuuma ruptura cataclsmica da histria em um futuro prximo, quando Deus destruiria asforas do mal para estabelecer seu prprio reino na terra. Explicarei ao final do livro porque tantos estudiosos que dedicaram a vida a explorar nossas fontes antigas sobre oJesus histrico consideram essa viso to convincente. Por ora, quero enfatizar aquesto fundamental: embora algumas teorias sobre Jesus possam ser livrementerotuladas de mitos (no sentido do termo adotado pelos miticistas: tais teorias no sohistria, mas criaes fictcias), Jesus em si no foi um mito. Ele realmente existiu.

    Antes de apresentar as evidncias desse consenso acadmico, prepararei o terrenotraando um breve histrico daqueles que defendem a viso oposta, a de que nuncahouve um Jesus histrico.

    Uma breve histria do miticismo

    No h necessidade de um relato abrangente da teoria de que Jesus nunca existiu.Direi apenas algumas palavras sobre os representantes mais importantes dessa viso ata poca de Schweitzer no incio do sculo XX, seguidas de comentrios sobre alguns dosrepresentantes contemporneos mais influentes que resgataram a teoria nos ltimosanos.

    O primeiro autor a negar a existncia de Jesus parece ter sido, no sculo XVIII, ofrancs Constantin Franois Volney, membro da Assembleia Constituinte durante aRevoluo Francesa.3 Em 1791, Volney publicou um ensaio (em francs) intituladoRunas do Imprio. Ele argumentou nesse texto que, essencialmente, todas asreligies so uma s uma proposio ainda popular em pases de lngua inglesa, entrepessoas que no so especialistas em estudos religiosos, principalmente na versoformulada por Joseph Campbell na segunda metade do sculo XX. Para Volney, ocristianismo tambm no passava de uma variante de uma nica religio universal.Particularmente, essa variante fora inventada pelos cristos primitivos, que criaram osalvador Jesus como uma espcie de deus-sol. A alcunha mais famosa de Jesus, Cristo,fora inspirada no nome do deus indiano Krishna, de som semelhante.

  • Alguns anos depois um livro bem mais srio e influente foi publicado por outrofrancs, Charles-Franois Dupuis, secretrio da Conveno Nacional revolucionria.Origem de todos os cultos (1795) era uma obra enorme de 2.017 pginas. O objetivoprincipal de Dupuis era desvendar a natureza da divindade original por trs de todasas religies. Em uma seo longa do estudo, Dupuis deu ateno especial s chamadasreligies de mistrios da antiguidade. Essas vrias religies eram consideradas demistrios porque a preciso de seus ensinamentos e rituais era guardada em segredopelos devotos. O que sabemos que essas diversas religies secretas eram populares portodo o Imprio Romano, em regies orientais e ocidentais. Dupuis analisoucuidadosamente as informaes fragmentadas disponveis na poca, argumentando quedeuses como Osris, Adnis (ou Tamuz), Baco, Attis e Mitra eram todos manifestaesda divindade solar. Dupuis concordou com seu compatriota Volney: Jesus tambm foraoriginalmente inventado como mais uma personificao do deus-sol.

    O primeiro estudioso da Bblia autntico a alegar que Jesus nunca existiu foi otelogo alemo Bruno Bauer, considerado altamente idiossincrtico e inteligente pelosestudiosos do Novo Testamento.4 Ele praticamente no tinha discpulos no meioacadmico e, ao longo de quase quatro dcadas, escreveu vrios livros, incluindoCriticism of the Gospel History of John [Crtica do Evangelho de Joo] (1840), Criticism of theGospels [Crtica dos Evangelhos] (dois volumes, 1850-1852) e The Origin of Christianity fromGraeco-Roman Civilization [A origem do cristianismo a partir da civilizao greco-romana] (1877).No incio de sua carreira acadmica, Bauer concordava com os outros estudiosos da reasobre a existncia de material historicamente confivel nos trs primeiros Evangelhosdo Novo Testamento, conhecidos como Evangelhos Sinticos (Mateus, Marcos eLucas; so chamados de sinticos porque seus relatos so to parecidos que podem serlidos ao mesmo tempo, em paralelo, diferentemente do Evangelho de Joo, cuja maiorparte se constitui de outras histrias). No decorrer de seus estudos, porm, ao fazeruma anlise cuidadosa, detalhada e extremamente crtica das narrativas dos Evangelhos,Bauer comeou a ver Jesus como uma inveno literria dos autores evangelistas.Concluiu que o cristianismo era uma amlgama do judasmo com a filosofia romana doestoicismo. Obviamente, era um ponto de vista radical para um professor de teologia daUniversidade de Bonn, uma instituio pblica, e acabou custando-lhe o emprego.

    A viso miticista foi encampada algumas dcadas mais tarde na Inglaterra por J. M.Robertson, considerado em alguns crculos como o principal racionalista britnico docomeo do sculo XX. Sua obra mais importante, Christianity and Mythology [Cristianismo emitologia], foi publicada em 1900.5 Robertson argumentou que havia semelhanasnotveis entre o que os Evangelhos diziam sobre Jesus e as crenas de povos antigossobre deuses da fertilidade pagos, que, assim como Jesus, haviam alegadamenteressuscitado. Robertson e muitos outros acreditavam que esses deuses da fertilidade

  • eram baseados em ciclos da natureza: assim como as lavouras, que morrem no comeodo inverno e reaparecem na primavera, o mesmo ocorre com os deuses com os quais soidentificadas. Eles morrem e renascem. A morte e ressurreio de Jesus eram, portanto,baseadas nessa crena primitiva, transposta para a realidade judaica. Alm disso,embora possa ter existido um homem chamado Jesus, ele no tinha nada a ver com oCristo adorado pelos cristos. Este era uma figura mtica baseada em um antigo culto aJosu, um deus vegetativo de morte e ressurreio, ritualmente sacrificado e ingerido.Foi mais tarde que os devotos desse Josu divino transformaram-no em uma figurahistrica, o suposto fundador do cristianismo.

    Muitas dessas teorias foram popularizadas por um estudioso alemo do incio dosculo XX chamado Arthur Drews, cujo trabalho The Christ Myth [O mito de Cristo] (1909)foi possivelmente o livro de miticismo mais influente j escrito, graas ao seu enormeimpacto sobre um leitor em particular.6 Essa obra convenceu Vladimir Ilyich Lenin deque Jesus no foi uma figura histrica real. Isso foi um dos principais motivos dapopularizao da teoria mtica na ento recm-criada Unio Sovitica.

    Aps certo hiato, as proposies miticistas ressurgiram recentemente. Nos captulos6 e 7, eu analiso os argumentos principais dessa posio, mas quero falar aqui sobre osautores, um grupo corajoso e pitoresco. J mencionei Earl Doherty, considerado pormuitos como o maior representante dessa linha de pensamento no perodo moderno.Doherty admite no ter nenhuma qualificao superior em estudos bblicos ou reasafins. No entanto, tem formao em estudos clssicos, e seus livros demonstram amplorepertrio de leitura e conhecimento profundo, algo admirvel para quem , em suaprpria viso, um amador na rea. Sua obra principal o j clssico The Jesus Puzzle: DidChristianity Begin with a Mythical Christ? [O enigma de Jesus: O cristianismo comeou com umCristo mtico?], que ganhou uma segunda edio ampliada, publicada no como umareviso (apesar de ser uma), mas como um novo livro, Jesus: Neither God nor Man: The Casefor a Mythical Christ [Jesus: nem Deus nem homem: O argumento em favor de um Cristo mtico]. Asteses gerais dos dois livros so basicamente as mesmas.

    Robert Price, por outro lado, um acadmico altamente qualificado em reasrelacionadas. Comeou como cristo evanglico conservador de linha dura, commestrado pelo Seminrio Teolgico Gordon-Conwell, uma instituio evanglicaconservadora. Em seguida, fez doutorado em teologia sistemtica na Universidade Drewe depois um segundo doutorado em estudos do Novo Testamento, tambm em Drew.Que eu saiba, ele o nico estudioso qualificado do Novo Testamento que lana mo deuma abordagem miticista. Assim como ocorreu com outros evanglicos conservadoresque perderam a f, a queda de Price foi grande. Seu primeiro livro importante, TheIncredible Shrinking Son of Man: How Reliable is the Gospel Tradition? [A incrvel reduo do Filhode Deus: At que ponto se pode confiar na tradio evanglica?], responde pergunta do

  • subttulo sem a mnima sombra de ambiguidade. A tradio evanglica sobre Jesus no nada confivel. Price defende sua tese com uma anlise detalhada de todas asinterpretaes tradicionais dos Evangelhos, usando argumentos vigorosos e inteligentes.Ele escreveu outros livros, entre os quais o que mais nos interessa aqui The Christ-MythTheory and Its Problems [A teoria do Cristo mtico e seus problemas], a ser publicado dentro dealgumas semanas (no momento em que escrevo). Agradeo a Robert e Atheist Presspor terem disponibilizado a obra para mim.7

    Por sinal, o editor da Atheist Press Frank Zindler, outro representante ativo daviso miticista. Zindler tambm acadmico, mas sem qualificaes em estudos bblicosou em qualquer disciplina sobre a antiguidade. Ele cientista, com formao embiologia e geologia. Lecionou em faculdades comunitrias da Universidade Estadual deNova York durante 20 anos, antes de, segundo ele, ser expulso por apoiar MadalynMurray OHair em sua tentativa de remover das notas de dlar as palavras In God WeTrust (Em Deus confiamos). Extremamente prolfico, Zindler escreve sobre vriosassuntos. Muitos de seus textos foram compilados em uma obra colossal de quatrovolumes intitulada Through Atheist Eyes: Scenes from a World That Wont Reason [Pelos olhos deum ateu: Cenas de um mundo que no raciocina]. O primeiro volume dessa obra-prima chama-se Religions and Scriptures [Religies e escrituras] e contm vrios ensaios direta eindiretamente relacionados a abordagens miticistas de Jesus, escritos em linguagempopular.8

    Um tipo de apoio diferente ao miticismo encontrado na obra de Thomas L.Thompson The Messiah Myth: The Near Eastern Roots of Jesus and David [O mito do Messias: Asrazes de Jesus e Davi no Oriente Prximo]. Thompson formado em estudos bblicos, masno tem qualificao em Novo Testamento ou cristianismo primitivo. um estudioso daBblia Hebraica que leciona na Universidade de Copenhague, na Dinamarca. Em suaprpria especialidade, ele acredita que certas figuras da Bblia Hebraica, como Abrao,Moiss e Davi, nunca existiram. Ele transfere essa perspectiva para o Novo Testamentoe argumenta que Jesus tambm no existiu, mas foi inventado por cristos que queriamcriar a figura de um salvador a partir das escrituras judaicas.9

    Mencionarei outros miticistas ao longo do livro, entre os quais esto Richard Carrier,que, alm de Price, o nico miticista de meu conhecimento com formao superior emuma rea de destaque (doutorado em estudos clssicos da Universidade de Columbia);Tom Harpur, um jornalista religioso de renome no Canad, que lecionou estudos doNovo Testamento em Toronto antes de assumir as carreiras de jornalista e de editor; eum batalho de autores sensacionalistas que no so acadmicos, e nem alegam ser, emnenhuma acepo da palavra.

    Outros autores frequentemente classificados como miticistas apresentam um pontode vista ligeiramente diferente, segundo o qual houve realmente um Jesus histrico,

  • mas no foi ele o fundador do cristianismo, uma vez que a religio foi fundamentada nafigura mtica de Cristo inventada por seus partidrios originais. Archibald Robertsonrepresentou essa hiptese em meados do sculo passado e acrescentava que, emborahouvesse um Jesus na histria, no sabemos praticamente nada sobre esse Jesus.10

    O miticista mais renomado dos tempos modernos ao menos entre estudiosos doNovo Testamento que conhecem o assunto George A. Wells, cuja posio semelhante anterior. Wells professor emrito de alemo na Universidade de Londrese especialista em histria intelectual alem moderna. Ele j escreveu vrios livros eartigos defendendo uma posio miticista, nenhum mais incisivo do que sua obra de1975, Did Jesus Exist? [Jesus existiu?].11 Wells certamente faz bem a lio de casa paradefender sua teoria: embora no seja especialista em estudos do Novo Testamento, eledomina o jargo e tem profundo conhecimento acadmico da rea. Ainda que a maioriados estudiosos do Novo Testamento no considere seu trabalho convincente nemparticularmente bem argumentado, era destacadamente o melhor trabalho miticistadisponvel antes dos estudos de Price.

    Levando os miticistas a srio

    Pode-se dizer que os miticistas, tanto como um grupo quanto individualmente, noso levados a srio pela grande maioria dos estudiosos nas reas do Novo Testamento,cristianismo primitivo, histria antiga e teologia. Isso amplamente admitido pelosprprios miticistas, para seu desgosto. Em uma das obras clssicas da rea, ArchibaldRobertson diz, com boa dose de razo:

    O miticista [] no recebe tratamento justo dos telogos profissionais. Ou elesconspiram para ignor-lo completamente ou, quando isso no possvel, tratam-nocomo um amador cuja falta de qualificaes acadmicas [] anula qualquer valor desuas opinies. Naturalmente, esse tratamento desperta a beligerncia do miticista.12

    Pouco mudou desde o surgimento do volume curto de Robertson, h 65 anos. Osestudiosos qualificados seguem depreciando os miticistas, que em geral reclamamabertamente desse tratamento. Como j mencionado, o miticista mais reconhecido entreos estudiosos do Novo Testamento G. A. Wells. No extenso e merecidamenteaclamado estudo de quatro volumes sobre o Jesus histrico escrito por John Meier, umdos principais estudiosos da rea, Wells e suas ideias so peremptoriamente descartadoscom uma nica frase:

    O livro de Wells, que baseia seus argumentos nessas e outras alegaes igualmenteno fundamentadas, pode ser considerado como representante de todo o conjunto de

  • livros populares sobre Jesus que no me dou ao trabalho de analisardetalhadamente.13

    At mesmo livros que aparentemente abordariam a discusso da existncia de Jesussimplesmente ignoram a polmica. Um exemplo o volume I Believe in the Historical Jesus[Eu acredito no Jesus histrico], do britnico I. Howard Marshall, especialista no NovoTestamento. O ttulo sugere que pelo menos alguma ateno ser dada controvrsia daexistncia ou no de um Jesus histrico, mas o livro apenas apresenta as posiesteologicamente conservadoras de Marshall sobre o Jesus histrico. O autor mencionaapenas um miticista, Wells, descartando suas ideias em um nico pargrafo, com aafirmao de que nenhum estudioso da rea considera seus argumentos convincentes, jque as fontes evanglicas abundantes, baseadas em uma variedade de tradies orais,mostram que Jesus deve sim ter existido.14

    Mais adiante explicarei com mais detalhe por que acho que Wells, Price e diversosmiticistas merecem ser ponderados seriamente, mesmo que, no fim das contas, suasalegaes no sejam consideradas vlidas.15 Vrios outros miticistas, no entanto, nodemonstram nenhuma indicao de estudo metodolgico em suas argumentaes; pelocontrrio, oferecem aos seus leitores alegaes inocentes e sensacionalistas toextravagantes, errneas e mal fundamentadas que no de surpreender que no sejamlevados a srio pelos estudiosos. Tais livros sensacionalistas tm seu pblico; afinal, soescritos para serem lidos. Porm, se despertam alguma reao nos estudiosos, simplesmente de perplexidade por ver obras to inexatas, com base em pesquisas tomalfeitas, sendo publicadas. Apresento dois exemplos a seguir.

    The Christ Conspiracy [A conspirao de Cristo]

    Em 1999, sob o pseudnimo de Acharya S, D. M. Murdock publicou o sonho de todoterico da conspirao: The Christ Conspiracy: The Greatest Story Ever Sold [A conspirao deCristo: o maior conto j vendido].16 O objetivo do livro era provar definitivamente que ocristianismo fundamentado no mito do deus-sol Jesus, que foi inventado por um grupode judeus do sculo II EC.17

    Miticistas desse gnero no deveriam se surpreender de ver que suas ideias no solevadas a srio por estudiosos autnticos, que seus livros no so resenhados empublicaes acadmicas, mencionados pelos especialistas da rea ou sequer lidos poreles. O livro contm tantos erros factuais e afirmaes bizarras que difcil acreditar queseja uma obra sria. Se for sria, difcil acreditar que a autora esteja familiarizada comestudos histricos acadmicos. Sua pesquisa parece ter se restringido a ler e citar umaquantidade de livros no acadmicos que dizem a mesma coisa que ela pretende dizer.

  • Procura-se em vo uma citao de fonte primria antiga, e as citaes de especialistasautnticos (basicamente Elaine Pagels) so tiradas do contexto e erroneamenteinterpretadas. Mesmo assim, ao contestar estudiosos que defendem outros pontos devista, como a de que Jesus existiu (ela os chama de historicizadores), Acharya afirma:Supondo que o desprezo dos historicizadores por esses estudiosos [isto , os miticistas]seja deliberado, s podemos concluir que isso ocorre porque os argumentos dosmiticistas so inteligentes e argutos demais para serem refutados.18 impossvel deixarde se perguntar se, na verdade, o livro no passa de uma boa stira.

    O argumento bsico do livro o de que Jesus seria o deus-sol: Assim, o filho deDeus o filho do sol. Os relatos sobre Jesus seriam

    na verdade baseados na movimentao do sol pelo cu. Em outras palavras, JesusCristo e os outros em que ele inspirado so personificaes do sol, e a fbulaevanglica no passa de uma repetio da frmula mitolgica que gira em torno damovimentao do sol pelo cu.19

    Na opinio de Acharya, o cristianismo comeou como uma religio astroteolgica, emque esse deus-sol Jesus foi transformado em um judeu histrico por um grupo de filhosde Zadok, judeus srio-samaritanos gnsticos, que tambm eram gnsticos therapeutae(um grupo de judeus sectrios) em Alexandria, no Egito, aps a fracassada revolta dosjudeus contra Roma em 135 EC. Os judeus se frustraram em sua tentativa deestabelecer um estado independente na Terra Prometida, o que os deixouprofundamente decepcionados. Eles teriam inventado esse Jesus como uma salvaopara os que estavam arrasados pela destruio de seus sonhos nacionalistas. A prpriaBblia seria um texto astroteolgico com significados ocultos que precisam serdesvendados atravs da compreenso de seu simbolismo astrolgico.

    Veremos adiante que todos os argumentos principais de Acharya so, na verdade,incorretos. Jesus no foi inventado em Alexandria na metade do sculo II da era crist.Ele j era conhecido na dcada de 30 do sculo I, em crculos judaicos da Palestina. Nofoi originalmente um deus-sol (como se houvesse um paralelo com Deus-Filho!); comefeito, nas tradies mais antigas disponveis a seu respeito, ele nem era consideradoum ser divino. Era visto como um profeta e messias judeu. Nenhuma das tradies maisantigas associam fenmenos astrolgicos a Jesus. Essas tradies so verificveis, apartir de vrias fontes originadas pelo menos um sculo antes do momento da criaoastrolgica defendida por Acharya, uma criao supostamente feita por um povo que novivia na mesma regio do Jesus histrico nem tampouco falava a lngua dele.

    Para dar uma ideia do nvel acadmico dessa pea sensacionalista, listei algumas dasaberraes encontradas no livro, na ordem em que aparecem. Acharya alega que:

  • Justino, o padre e telogo cristo do sculo II, nunca cita nem menciona nenhum dos Evangelhos(p. 25). Isso simplesmente inverdico: ele menciona os Evangelhos em diversosmomentos, geralmente os chama de Memrias dos apstolos e cita diferentespassagens, especialmente de Mateus, Marcos e Lucas.

    Os Evangelhos foram forjados centenas de anos aps os acontecimentos que narram (p. 26).Na verdade, os Evangelhos foram escritos ao final do sculo I, cerca de 35 a 65anos depois da morte de Jesus, e h prova material disso: um fragmento demanuscrito dos Evangelhos que data do incio do sculo II. Como pode ter sidoforjado sculos mais tarde?

    No h nenhum manuscrito do Novo Testamento anterior ao sculo IV (p. 26). Isso esttotalmente errado: existem numerosos fragmentos de manuscritos datados dossculos II e III.

    Os autgrafos (Evangelhos originais) foram destrudos depois do Conclio de Niceia (p. 26).Na realidade, no sabemos o que houve com as cpias originais do NovoTestamento; provavelmente se desgastaram devido ao uso excessivo. No hevidncia alguma sugerindo que tenham se conservado at Niceia ou que tenhamsido destrudos depois; h vrias contraprovas indicando que no subsistiram atNiceia.

    A canonizao do Novo Testamento levou mais de mil anos, e muitos conclios foramnecessrios para diferenciar os livros genunos dos falsos (p. 31). O primeiro autor a listar ocnone do Novo Testamento foi o padre e telogo cristo Atansio em 367; ocomentrio sobre vrios conclios mera inveno.

    Paulo nunca cita palavras de Jesus (p. 33). Acharya obviamente nunca leu os escritosde Paulo. Veremos que ele cita sim palavras de Jesus.

    Os Atos de Pilatos, um relatrio lendrio do julgamento e execuo de Jesus, j foiconsiderado um texto cannico (p. 44). Nenhuma de nossas escassas referncias a OsAtos de Pilatos indica ou mesmo sugere tal coisa.

    O verdadeiro significado da palavra gospel20 Gods Spell21, que remete a magia, hipnose eiluso (p. 45). No, a palavra gospel vem do termo em ingls antigo god spel, quesignifica boa notcia, uma traduo bastante precisa da palavra grega euaggelion.No tem nada a ver com magia.

    O padre e telogo cristo Irineu era gnstico (p. 60). Na verdade, ele foi um dos maisvirulentos opositores dos gnsticos da igreja primitiva.

    Agostinho era originalmente um mandeu, ou seja, um gnstico, at depois do Conclio deNiceia (p. 60). Agostinho s nasceu 19 anos aps o Conclio de Niceia e,certamente, no era gnstico.

    Pedro no apenas a rocha mas tambm o pinto, ou pnis, conforme a gria da palavrausada at hoje. Acharya mostra ento em um desenho a mo (prpria?) de um homem com

  • uma cabea de pinto, mas com um enorme pnis ereto no lugar do nariz, com a seguinte legenda:Escultura de bronze do Pinto, smbolo de So Pedro, escondida no tesouro do Vaticano (p.295). No h nenhuma esttua de Pedro na forma de galo com nariz de pnis, nemno Vaticano nem em qualquer outro lugar alm de livros como esse, que adoraminventar coisas.

    Em suma, se falamos de alguma conspirao aqui, no a de cristos primitivos

    inventando a figura de Jesus, mas a de autores modernos inventando histrias doscristos primitivos e de suas crenas referentes a Jesus.

    The Jesus Mysteries [Os mistrios de Jesus]

    Tambm de 1999 o (planejado) best-seller de Timothy Freke e Peter Gandy The JesusMysteries: Was the Original Jesus a Pagan God? [Os mistrios de Jesus: o Jesus original era umdeus pago?]. Freke e Gandy escreveram juntos diversos livros nos ltimos anos, amaioria desvendando os segredos conspiratrios do passado comum a todos ns.Notavelmente, assim como Acharya S, eles argumentam que Jesus foi inventado por umgrupo de judeus semelhantes aos therapeutae, de Alexandria, no Egito, levando inveno de uma nova religio de mistrios (os mistrios de Jesus) que floresceu noincio do sculo III. Em sua argumentao, porm, Jesus no teria sido um deus-sol. Erauma criao baseada em mitologias de deuses que morriam e ressuscitavam,disseminadas por todo o mundo pago. A partir disso vem sua tese principal: A histriade Jesus no a biografia de um messias histrico, mas um mito baseado em narrativaspags perenes. O cristianismo no foi uma revelao nova e extraordinria, mas umaadaptao judaica da antiga religio de mistrios pag.22

    Freke e Gandy asseveram que, no cerne de toda religio de mistrios pag, havia omito de um homem-deus que morria e ressuscitava dos mortos. Essa figura divinaassumia vrios nomes nas religies pags: Osris, Dionsio, Attis, Adnis, Baco, Mitra.Mas fundamentalmente todos esses homens-deuses so o mesmo ser mtico.23 Freke eGandy pensam assim porque todas essas figuras supostamente esto baseadas em umamitologia muito semelhante: o pai era um deus, a me era uma virgem mortal, todosnasceram em uma caverna em 25 de dezembro diante de trs pastores e reis magos,seus milagres incluem a transformao de gua em vinho, todos entraram na cidademontados em um jumento, foram todos crucificados na Pscoa como sacrifcio pelospecados do mundo, desceram ao inferno e no terceiro dia ressuscitaram. Uma vez que asmesmas coisas so ditas sobre Jesus, bvio que as histrias em que os cristosacreditam so todas simplesmente imitaes das religies pags.

  • Historiadores da antiguidade srios ficam escandalizados com tais afirmaes ouficariam caso se dessem ao trabalho de ler o livro de Freke e Gandy. Os autores nofornecem nenhuma evidncia para sua tese da mitologia padro sobre homens-deuses.No citam nenhuma fonte do mundo antigo que possa ser verificada. No como se elestivessem desenvolvido uma interpretao alternativa das evidncias disponveis. Elesnem ao menos citam as evidncias disponveis. E por uma boa razo: no existemevidncias para isso.

    Por exemplo, qual a prova de que Osris nasceu em 25 de dezembro diante de trspastores? Ou de que foi crucificado? E que sua morte redimiu os pecados? Ou quevoltou vida na terra aps ser ressuscitado dos mortos? Nenhuma fonte antiga diz nadadisso sobre Osris (nem dos outros deuses). Mas Freke e Gandy dizem que deconhecimento comum. E provam essas afirmaes citando outros autores dos sculosXIX e XX que o disseram. Mas esses autores tambm no citam nenhuma evidnciahistrica. tudo baseado em alegaes, e Freke e Gandy acreditam nelas simplesmenteporque as leram em algum lugar. Isso no pesquisa histrica sria. um textosensacionalista motivado pelo desejo de vender livros.

    De todo modo, segundo a teoria de Freke e Gandy, o Cristo original era umhomem-deus igual a todos os outros homens-deuses pagos. Foi apenas em um segundomomento que ele foi encampado pelos judeus e transformado na figura histrica de ummessias judeu, criando-se assim o Jesus da histria. Nessa reconstruo, nem o apstoloPaulo nem nenhum outro membro da igreja primitiva sabia alguma coisa sobre esseJesus histrico. Eles adoravam o Cristo pago que havia sido judaizado antes quealgum tivesse a ideia de transform-lo em uma pessoa real que viveu e morreu naJudeia. O Evangelho de Marcos foi essencial para dar vida a essa pessoa; foi ele quemhistoricizou o mito para benefcio dos judeus que precisavam no de uma divindade,mas de uma figura histrica real para salv-los. Freke e Gandy alegam que muitoscristos da parte oriental do Imprio Romano que, assim como Paulo, eram gnsticos entendiam que a verso historicizada do mito no era uma verdade literal, mas umaespcie de extenso do mito. Apenas os cristos do imprio do Ocidente ignoravam isso.Uma vez que o centro de atividade destes era Roma, foi ali que surgiu a Igreja CatlicaRomana, segundo a qual verdadeira a viso historicizada da figura do salvador. Asverses mitolgicas originais dos gnsticos foram reprimidas, resultando no cristianismotradicional, com uma figura histrica de Jesus em sua origem. Mas ele no teria existidode verdade. Foi uma inveno baseada nos deuses das religies de mistrios pags.

    H vrios problemas nessa teoria, como ficar claro em captulos subsequentes. Porora basta dizer que o que sabemos sobre Jesus o histrico no vem do final do sculoI, de crculos egpcios fortemente influenciados pelas religies de mistrios pags, mas

  • vem da Palestina, de judeus comprometidos com sua religio judaica decididamenteantipag, na dcada de 30 do sculo I.

    Mesmo desconsiderando os grandes problemas de suas alegaes principais, difcillevar o livro a srio. Parece uma monografia de graduao, tanto nos detalhes quanto natese geral, repleta de inconsistncias e dados obviamente falsos. As fontes acadmicascitadas pelos autores so quase sempre obras j datadas, de 1925, 1899 e assim pordiante. fcil entender por qu. As ideias que eles defendem podem ter sido aceitas hmais de um sculo, mas nenhum estudioso acredita nelas hoje em dia.

    Como exemplo de inconsistncia, considere estas duas afirmaes, separadas por nomais que duas pginas. Primeira: Os cristos de Jerusalm sempre foram gnsticos,porque no sculo I a comunidade crist era composta exclusivamente de diferentes tiposde gnosticismo!.24 Em seguida, uma pgina depois: Quanto mais analisvamos asevidncias que havamos pesquisado, mais parecia evidente que aplicar os termosgnstico e literalista ao cristianismo do sculo I no fazia sentido algum.25 O quequerem dizer, afinal? Os cristos de Jerusalm do sculo I eram gnsticos ou o termognstico no faz sentido no contexto do sculo I? difcil conciliar ambos.

    Alm disso, como no livro de Acharya, a quantidade de erros factuais constrangedora. Eis alguns exemplos, na ordem em que aparecem (e esta no umalista exaustiva):

    Constantino tornou o cristianismo a religio oficial do imprio (p. 11). Errado. Ele o

    tornou uma religio legal. O cristianismo s veio a figurar como religio oficial nofim do sculo IV, com Teodsio.

    Os mistrios eulesinos remetiam ao homem-deus Dionsio (pp. 18, 22). No verdade.Esses mistrios no se relacionam a Dionsio, mas deusa Demter.

    As descries do batismo cristo feitas por autores cristos so indistinguveis das descriespags do batismo das religies de mistrios (p. 36). Como possvel saber isso? No huma descrio em fonte alguma de qualquer tipo de batismo das religies demistrios.

    Os autores dos Evangelhos criaram deliberadamente o nome grego Jesus a partir de umatransliterao artificial e forada do nome hebraico Josu de modo a garantir queexpressasse o nmero simbolicamente significante 888 (p. 116). Os autores dosEvangelhos no criaram o nome grego Jesus. Ele o equivalente grego do nomearamaico Yeshua e do hebraico Josu. encontrado, por exemplo, no AntigoTestamento grego, bem antes da poca dos autores evanglicos, e um nomecomum nos escritos do historiador judeu Josefo.

    Os romanos eram conhecidos por guardar cuidadosamente os registros de todas as suasatividades, especialmente os procedimentos legais, portanto de surpreender que no haja

  • registro do julgamento de Jesus por Pncio Pilatos nem de sua execuo (p. 133). Se osromanos eram to zelosos com seus registros, no s a falta de registros de Jesusque estranha, mas a de praticamente todos os que viveram no sculo I.Simplesmente no temos certides de nascimento, atas de julgamentos, atestadosde bito ou qualquer outro tipo de documento padro comum hoje em dia. Freke eGandy obviamente no citam um nico exemplo de qualquer outra sentena demorte no sculo I.

    Muitos cristos primitivos rejeitaram o Evangelho de Marcos por no o considerarem cannico(p. 146). Na verdade, o Evangelho de Marcos foi aceito em toda parte comocannico; alis, todos os documentos cristos subsistentes que se referem a eleaceitam sua canonicidade.

    Paulo nunca menciona Cristo em seus ensinamentos ticos (p. 152). Conforme veremos,isso est simplesmente errado; ver I Corntios 7:10-11; 9:14; 11:22-24.

    A verso original do Evangelho de Marcos no inclua qualquer referncia ressurreio (p.

    156). Isso no verdade. A verso original de Marcos no contm um episdioespecfico, em que Jesus aparece diante de seus discpulos aps a ressurreio, maso texto no deixa dvidas de que Jesus se ergueu dos mortos. Ver, por exemplo,Marcos 16:6, que uma passagem original do Evangelho.

    Cristos primitivos de todas as seitas, incluindo Eusbio, o famoso historiador da IgrejaCrist, no aceitavam as duas cartas a Timteo e a carta a Tito como parte do cnone dasescrituras (p. 161). O fato que praticamente todos os que mencionam essas cartasaceitam-nas como cannicas, incluindo Eusbio, que as cita repetidamente emseus escritos.

    A palavra empregada com sentido de ddivas espirituais, charismata, derivada do termomakarismo, do mbito das religies de mistrios, que se refere natureza abenoada daqueleque testemunhou os mistrios (p. 162). Isso pura inveno. No h qualquer relaoetimolgica entre os dois termos. Charismata vem da palavra grega charisma, quesignifica presente. No existe relao com as religies de mistrios.

    Os romanos destruram totalmente o estado da Judeia em 112 EC (p. 178). Essa umaalegao bem estranha. Sequer houve guerra entre Roma e Judeia em 112 EC;houve guerras em 66-70 e 132-35 EC.

    Embora seja til dar uma ideia das afirmaes sensacionalistas encontradas nesse

    tipo de literatura, no acho que autores srios que defendem uma agenda miticista (porexemplo, G. A. Wells, Robert Price e, recentemente, Richard Carrier) devam sertachados da mesma maneira ou considerados culpados por associao. Suas obrasdevem ser julgadas por seus prprios mritos, independentemente dos defeitos e das

  • fraquezas dos sensacionalistas. H autores que fizeram pesquisas srias e realmentealegam que Jesus no existiu. Ainda que utilizem alguns argumentos comuns aosdaqueles que acabo de mencionar, eles no vo to longe. Analisarei esses argumentosem maior detalhe adiante. Porm, quero primeiramente mostrar as evidncias positivasque convencem a todos, menos os miticistas, de que Jesus existiu. Mas, para que essasevidncias faam sentido, preciso no mnimo dar uma ideia geral dos motivos que levamalguns dos autores mais inteligentes e mais bem informados a dizer que ele no existiu.

    A posio miticista bsica

    A tese da maioria dos miticistas contra a existncia histrica de Jesus envolve tantoargumentos negativos como positivos, com predominncia dos primeiros.26

    No conjunto negativo, os miticistas geralmente enfatizam que no h refernciasconfiveis sobre a existncia de Jesus em nenhuma fonte no crist do sculo I. Jesussupostamente viveu at aproximadamente o ano de 30, mas nenhum autor grego ouromano (nenhum autor no cristo, nesse sentido) faz meno a ele em menos de 80anos depois disso. Se Jesus foi uma figura to importante ou mesmo se no foi toimportante no deveria haver referncias a ele em algumas das vrias fontes do sculoI que chegaram at ns? Temos textos de historiadores, polticos, filsofos, estudiososde religio, poetas e cientistas; temos inscries de edifcios e cartas pessoais de gentecomum. Nenhum desses escritos no cristos do sculo I contm uma nica referncia aJesus.

    Aqueles que defendem a existncia histrica de Jesus geralmente argumentam que,na verdade, ele mencionado por um autor: o historiador judeu Josefo, que escreveuvrios livros ao final do sculo I que chegaram at ns. Os miticistas, porm, alegamque as duas referncias a Jesus no livro de Josefo Histria dos hebreus (so as duas nicasreferncias a Jesus em toda a vasta obra de Josefo) no foram escritas originalmente porele, mas inseridas posteriormente em seus textos por escribas cristos. Se isso forverdade, no temos uma nica referncia a Jesus em textos no cristos anteriores aosescritos de Plnio, um governador romano em 112 EC de uma provncia na atualTurquia, e aos escritos dos historiadores romanos Tcito e Suetnio alguns anos maistarde. Alguns miticistas asseveram que essas referncias tambm foram inseridasposteriormente nesses textos, que no so originais. Logo analisaremos todas essasreferncias; por ora basta notar que os miticistas argumentam que, se Jesus realmenteexistiu, difcil acreditar que os escritores de sua poca ou das dcadas seguintes notenham falado dele, contestado e comentado suas ideias ou ao menos mencionado suaexistncia.

  • Alm disso, eles geralmente alegam que, com exceo dos Evangelhos do NovoTestamento, o Jesus histrico no ocupa uma posio de destaque nem mesmo nosprimeiros textos cristos. Enfatizam particularmente que o apstolo Paulo no diz nadaou quase nada sobre o Jesus histrico. Essa afirmao pode chocar a maioria dos leitoresdo Novo Testamento, mas uma leitura cuidadosa das cartas de Paulo revela onde est oproblema. Paulo tem muito a dizer sobre a morte e a ressurreio de Jesus especialmente a ressurreio e claramente adora Jesus como seu Senhor. Mas elerealmente diz muito pouco sobre o que Jesus disse ou fez enquanto estava vivo. Qual omotivo disso, se Jesus foi uma pessoa histrica? Por que Paulo no cita as palavras deJesus, como o Sermo da Montanha? Por que ele nunca se refere s parbolas de Jesus?Por que ele no comenta as aes de Jesus? Por que no menciona nenhum de seusmilagres? Seus exorcismos? Suas controvrsias? Sua viagem a Jerusalm? Seujulgamento por Pncio Pilatos? E os questionamentos continuam nessa linha.

    Diante disso, os defensores da historicidade de Jesus enfatizam novamente que Pauloparece citar Jesus em vrias ocasies (por exemplo, I Corntios 11:22-24). Algunsmiticistas rebatem que essas citaes, assim como as de Josefo, no faziam parteoriginalmente dos escritos de Paulo, mas foram inseridas posteriormente. Outrosargumentam que Paulo no est citando as palavras do Jesus histrico, mas as palavrasdo Jesus celestial transmitidas atravs dos profetas cristos nas comunidades de Paulo.Em ambos os casos, os miticistas acreditam que Paulo no tinha conhecimento de umJesus histrico ou no se referia a uma pessoa assim. Para ele, Cristo era um sercelestial de grandeza mtica. possvel se perguntar, neste momento, como uma pessoaque nunca existiu pode ter morrido. Os miticistas tm uma explicao para issotambm, como veremos adiante. Por enquanto basta saber que, em geral, eles insistemque Paulo no se referia ao Jesus histrico e sublinham que isso seria muito estranhocaso ele realmente soubesse da existncia de Jesus. Isso tambm pode ser dito dosoutros escritos do Novo Testamento, sem contar os Evangelhos.

    Isso significa que Mateus, Marcos, Lucas e Joo so nossas nicas fontes autnticasde conhecimento sobre o Jesus histrico, e os miticistas consideram essas quatro fontesaltamente problemticas enquanto documentos histricos. Para comear, na melhor dashipteses esses textos foram escritos ao final do sculo I, quatro ou cinco dcadas depoisdo suposto perodo em que Jesus viveu, ou at mais tarde. Se ele realmente existiu, nodeveria haver fontes mais antigas? E como podemos confiar em rumores que circularamtantos anos depois dos eventos narrados?

    Os miticistas geralmente destacam que as narrativas dos Evangelhos no soconfiveis. Seus vrios relatos sobre o que Jesus disse e fez esto repletos decontradies e discrepncias e, portanto, so totalmente incertos. So tendenciosos emrelao ao seu tema, no apresentando uma viso imparcial da histria como realmente

  • aconteceu. possvel provar que certas histrias foram modificadas e que algunsrelatos sobre Jesus foram obviamente inventados. Na verdade, quase todas ou mesmotodas as histrias podem ter sido inventadas. Isso vale especialmente para oschamados milagres de Jesus, narrados pelos autores dos Evangelhos para convencer aspessoas a acreditar nele, mas incrveis a ponto de ser literalmente incrveis soimpossveis de se acreditar.

    Ademais, muitos miticistas insistem que os quatro Evangelhos so essencialmenteum s, o Evangelho de Marcos, no qual os outros trs foram baseados. Isso significaque, dos vrios autores pagos, judeus e cristos do sculo I cujos textos subsistiram(supondo que o Evangelho de Marcos seja realmente do sculo I), apenas um descreveou ao menos menciona a vida do Jesus histrico. Como isso seria possvel, se Jesusrealmente existiu?

    Dados todos esses problemas, alguns miticistas insistem que o nus da prova recaisobre quem afirma que Jesus realmente existiu. Mas, ao lado desses argumentosnegativos, h um argumento positivo muito importante: existem paralelos recorrentesentre os relatos sobre Jesus muitos deles incrveis, todos baseados em testemunhostardios e no confiveis e mitos sobre deuses pagos e outros homens divinosdiscutidos no mundo antigo. Assim, os miticistas geralmente invocam narrativas deoutros deuses ou semideuses, como Hracles, Osris, Mitra, Attis, Adnis e Dionsio,que alegadamente nasceram em 25 de dezembro do ventre de uma me virgem,realizaram feitos milagrosos em favor de outros, morreram (muitas vezes para benefciodos outros), ergueram-se dos mortos e mais tarde partiram para viver no reino divino.

    Eu j disse algumas palavras sobre tais alegaes, e vamos examin-las maisdetalhadamente adiante. Por ora enfatizo que o argumento dos miticistas se baseia emdois pilares: considerando-se o argumento negativo, de que no h nenhumatestemunha confivel que faa meno ao Jesus histrico, e o argumento positivo, deque sua histria parece ter sido baseada em relatos de outras divindades. mais simplesacreditar que ele nunca existiu, que foi inventado como mais um ser sobrenatural.Nessa interpretao das evidncias, o cristianismo seria fundamentado em um mito.

    Tendo passado uma ideia geral das razes dos miticistas, antes de refut-las,apresentarei as evidncias que tm convencido todos os outros estudiosos, tantoamadores quanto profissionais, de que Jesus realmente existiu. Esse ser o tema devrios captulos subsequentes.

  • CAPTULO 2

    FONTES NO CRISTS DA VIDA DE JESUS Espero reaes bastante diferentes a este livro em comparao a outros que escrevi

    ao longo dos anos. Para minha grande surpresa, geralmente me acusam ou meagradecem pela mesma coisa, depende de quem me escreve de ser anticristo porcausa do que escrevo em meus livros. Acho isso surpreendente porque no meconsidero anticristo. Quando digo isso s pessoas, muitas vezes recebo uma respostactica: claro que voc anticristo. Voc ataca o cristianismo de tantas maneirasdiferentes!.

    Mas eu nunca enxerguei as coisas dessa maneira. No meu entendimento, a nicacoisa que ataco em meus escritos (e mesmo assim no diretamente) umainterpretao evanglica fundamentalista e conservadora do cristianismo. Concluir queeu ataco o cristianismo o mesmo que dizer que quem no gosta de picol de framboesano gosta de nenhum tipo de sorvete. Voc poderia argumentar (com razo) que picolno sorvete, portanto no gostar de picol no tem nada a ver com sorvete. Mas,mesmo que voc pense que o picol parecido suficientemente com o sorvete paracham-lo assim tambm, no gostar de picol de framboesa significa apenas dizer queh um sabor de picol que voc preferiria no tomar, se houver essa opo.

    No estou querendo dizer que me considero um apologista do cristianismo ou decausas crists. No sou nem um nem outro. Mas nunca ataquei o cristianismo em si nosmeus livros. Ataquei um sabor especfico de cristianismo. verdade que em minharegio, o sul dos Estados Unidos, o sabor que ataco o preferido da maioria dos cristospraticantes. Em uma perspectiva histrica e mundial, porm, o cristianismo protestantealtamente conservador, seja o fundamentalismo, seja o evangelismo radical, uma vozminoritria. o grupo que diz que a Bblia a palavra infalvel de Deus, semcontradies, discrepncias ou erros de qualquer tipo. Eu apenas acho que isso no verdade, assim como a maioria dos cristos ao longo da histria.

  • Considero a Bblia um excelente livro ou conjunto de livros. Nesse sentido, possodiscordar de vrios de meus amigos ateus, agnsticos e humanistas que tm meapoiado. Mas pessoalmente adoro a Bblia. Eu a leio o tempo todo, nos originais grego ehebraico; eu a estudo; eu a ensino. Fao isso h mais de 35 anos. E no tenho planos deparar em um futuro prximo. S no acho que a Bblia seja perfeita. Longe disso. ABblia contm uma multiplicidade de vozes que muitas vezes se contradizem,discordando em detalhes pequenos e temas importantes que envolvem questes bsicas,como a aparncia de Deus, quem o povo de Deus, quem Jesus, como ter uma relaocorreta com Deus, por que h sofrimento no mundo, como devemos nos comportar eassim por diante. E eu discordo totalmente do ponto de vista da maioria dos autoresbblicos em questes isoladas.

    Mesmo assim, considero que todas essas vozes tm valor e devem ser ouvidas.Alguns autores da Bblia eram gnios religiosos, e, assim como escutamos outro gniosde nossa tradio Mozart e Beethoven, Shakespeare e Dickens , devemos dar atenoaos autores da Bblia. Em minha opinio, porm, eles no so mais inspirados por Deusdo que qualquer outro gnio. E contradizem uns aos outros o tempo todo.

    Embora haja inmeros problemas histricos no Novo Testamento, eles no chegam acolocar a existncia de Jesus seriamente em dvida. Ele certamente existiu e, na minhaperspectiva, tambm era uma espcie de gnio religioso, ainda mais do que os autoresque escreveram sobre ele mais tarde. Ao mesmo tempo, provavelmente no tinha muitaeducao; possvel que fosse semianalfabeto. Mas certamente existiu, e at hoje seusensinamentos causam impacto no mundo. Com certeza isso uma maneira de medirgenialidade.

    Como esse o argumento geral do livro, imagino que vou ofender os leitores que meconsideram anticristo, por no pactuar com sua viso. E os leitores cristos podem ficarsatisfeitos de ver que at algum como eu concorda com eles em alguns pontos bsicos(embora certamente no gostem de outras coisas que tenho a dizer no livro). Minhameta, contudo, no agradar nem ofender ningum. analisar uma questo histricacom todo o rigor que ela merece e exige e, ao faz-lo, mostrar que realmente existiu umJesus histrico e que podemos afirmar certas coisas sobre ele.

    Comentrios preliminares

    Antes de mostrar as evidncias a favor da existncia de Jesus, preciso fazer algunscomentrios preliminares sobre historiadores e seu processo de estabelecer o queprovavelmente aconteceu no passado. A primeira coisa a enfatizar que isso mesmoque os historiadores fazem, estabelecer um provavelmente. No temos acesso direto aopassado. As coisas s acontecem uma vez. No h como repetir um evento passado. Isso

  • faz com que as evidncias histricas sejam diferentes das evidncias usadas em cinciaspuras. Uma experincia cientfica pode ser repetida. Alis, deve ser repetida. Quandouma experincia repetida vrias vezes com os mesmos resultados, prev-se que essesresultados sero obtidos a cada vez que se fizer a experincia. Eis um exemplo que usocom meus alunos do primeiro ano de graduao: se quero provar que uma barra de ferroafunda em gua morna, mas que uma barra de sabonete flutua, s preciso de cem tinasde gua e cem barras de cada tipo. Quando eu comear a jog-las na gua, o ferroafundar todas as vezes, e o sabonete flutuar. Isso prova o que certamente acontecerse eu decidir repetir a experincia no futuro.

    Em histria, porm, no temos o luxo de poder repetir um evento passado, portantoprocuramos por outras formas de evidncia. Como sabemos que provamos algohistoricamente? Em rigor, no podemos provar nada historicamente. Tudo que podemosfazer levantar evidncias suficientes (mencionarei logo adiante de que tipo) paraconvencer um nmero suficiente de pessoas (quase todos, esperamos) a respeito dedeterminada alegao histrica. Por exemplo, a de que Abraham Lincoln realmenteproferiu o Discurso de Gettysburg ou que Jlio Csar realmente atravessou o Rubico.Se voc quiser demonstrar que esses eventos histricos de fato aconteceram, ter dereunir uma quantidade de evidncias convincentes. ( claro que no h muita dvidaem relao a esses dois casos em particular.)

    E quanto existncia histrica de Jesus? Entre os miticistas, comum hoje em dia aideia de que, at prova em contrrio, a posio padro deve ser a de que Jesus noexistiu. Isso expresso claramente por Robert Price: O nus da prova parece recairsobre aqueles que acreditam que houve um homem histrico chamado Jesus.27 Eu nopenso dessa maneira. Por um lado, uma vez que todas as fontes antigas relevantes(como veremos) supem a existncia desse homem e que todos os estudiosos que jescreveram sobre o assunto, com a exceo de um punhado de miticistas, nuncamanifestaram qualquer dvida sria a esse respeito, o nus da prova certamente norecai sobre aqueles que defendem a posio quase unnime. Por outro lado, e emconsiderao a Price e seus colegas miticistas, talvez a questo deva ser vista de maneiramais neutra. Como dizia meu colega de longa data E. P. Sanders, eminente professor deestudos do Novo Testamento da vizinha Universidade Duke, O nus da prova recaisobre quem faz a alegao. Ou seja, se Price deseja argumentar que Jesus no existiu, onus da prova por tal argumento dele. Se eu quero argumentar que Jesus existiu sim,o nus da prova meu. Nada mais justo.

    No entanto, h outro princpio histrico enunciado por Price com o qual concordo.Trata-se de uma ideia que se articula bem com o que acabo de dizer sobre o fato de oshistoriadores serem incapazes de repetir o passado, sendo obrigados a basear suasconcluses em evidncias que remetem aos acontecimentos mais provveis. No

  • raciocnio convincente de Price, O historiador no alega ter poderes videntes paraconhecer o passado [] O historiador, por assim dizer, ps-v o passado baseado emfatores e analogias determinveis. Mas tudo uma questo de probabilidades.28 Ao contrriode cientistas, que conseguem, com confiana quase absoluta, prever o que vaiacontecer a partir de seu conhecimento do que de fato acontece, historiadores ps-veem, isto , sugerem o que provavelmente aconteceu baseados em seu conhecimentodas evidncias.

    Mas que tipos de evidncia existem? Essa uma pergunta metodolgica bsica: comopodemos estabelecer com probabilidade razovel que algum do passado realmenteexistiu, sejam os supracitados Abraham Lincoln e Jlio Csar ou qualquer outro, HarryTruman, Carlos Magno, Hiptia, Jernimo, Scrates, Anne Frank ou Bilbo Bolseiro?

    Tipos de fonte que os historiadores desejam

    Os historiadores podem explorar vrios tipos de evidncia diferentes para determinara existncia passada de uma pessoa. Primeiramente, h uma clara preferncia porevidncias materiais, fsicas, como fotografias. difcil negar que Abraham Lincolnexistiu, j que todos ns j vimos fotos suas. claro que as fotos poderiam ter sidoforjadas como parte de uma trama prfida para reescrever a histria dos Estados Unidos.E isso que os tericos da conspirao dizem (no apenas sobre Lincoln, mas sobreeventos ainda mais bem documentados, como o Holocausto). Mas, para a maioria dens, uma pilha de boas fotografias de fontes diferentes geralmente suficiente para nosconvencer.

    Alm de evidncias fsicas, procuramos por produtos subsistentes cuja origem possaser associada pessoa com relativa certeza. Em alguns casos isso pode incluir pedaosde construes, como as casas e os edifcios de Frank Lloyd Wright, por exemplo. Mascom maior frequncia inclui vestgios literrios, textos em geral. Jlio Csar nos deixouum relato das Guerras Glicas. Anne Frank nos deixou um dirio. E temos vriosescritos que podemos relacionar com bastante segurana a um homem (tambmfotografado) chamado Charles Dickens. praticamente certo que todos eles existiram.

    Finalmente, os historiadores procuram por outros tipos de evidncia, nooriginalmente da pessoa, mas sobre ela isto , referncias, citaes ou discusses feitaspor terceiros. So evidentemente os tipos de fonte histrica mais abundantes que temos,os tipos que temos sobre a vasta maioria das pessoas do passado, especialmente as queviveram antes da inveno da fotografia. O que procuramos nesse tipo de evidncia,especialmente em relao a algum como Jesus, uma pessoa que viveu, se que viveu,h quase dois mil anos? Que tipos de fonte so necessrias para convencer oshistoriadores de sua existncia?

  • Os historiadores preferem ter vrias fontes escritas, no apenas uma ou duas.Quanto mais, melhor, obviamente. Com apenas uma ou duas, pode-se desconfiar de quea histria foi inventada (embora seja preciso haver boas razes para se pensar assim;simples negativismo ou pessimismo no suficiente para se duvidar de uma fonte).Mas, quando h diversas fontes assim como quando h vrias testemunhas de umacidente automobilstico , difcil asseverar que uma delas simplesmente inventoutudo.

    Os historiadores tambm preferem ter fontes de datas prximas ao perodo da pessoaou evento que esto descrevendo. Com o passar do tempo, a tendncia para invenorealmente aumenta, portanto bem melhor obter relatos quase contemporneos aoobjeto. Se nossos primeiros registros sobre Moiss so de 600 anos depois da poca emque ele supostamente viveu, esses relatos so bem menos confiveis do que registrosque possam ser razoavelmente datados de seis anos depois que ele viveu. Quanto maisprximo no tempo, melhor.

    Alm de numerosas e antigas, os historiadores tambm gostam que as fontes sejamricas em informaes. Em vez da mera meno do nome de uma pessoa em uma fonte, prefervel que haja relatos longos e detalhados (em vrias fontes antigas). Alm disso, obviamente melhor que esses relatos extensos venham de fontes imparciais. Issosignifica que, se a fonte for tendenciosa de alguma maneira, preciso levar esse aspectoem considerao. O problema que a maioria das fontes tendenciosa: se seus autoresno tivessem opinies sobre o assunto, no falariam sobre ele. No entanto, quandoencontramos relatos que no servem aos propsitos do narrador, temos uma boaindicao de que as histrias so (razoavelmente) imparciais.

    Ademais, em uma situao ideal, as vrias fontes que discutem uma figura ou umevento devem corroborar o que cada uma das outras diz, se no nos detalhes, ao menosnos pontos principais. Se uma fonte antiga diz que Otaviano era um general romano quese tornou imperador, mas outra diz que ele era um campons do norte da frica quenunca saiu de sua aldeia natal, voc est diante de um problema: com o prprioOtaviano ou, nesse caso, com a fonte. Contudo, se voc reuniu vrias fontes de perodosprximos que narram diversas histrias sobre o imperador romano Otaviano isto ,que corroboram os relatos umas das outras , ento voc tem uma boa evidnciahistrica.

    Ao mesmo tempo, importante certificar-se de que as vrias fontes soindependentes entre si e no precisam umas das outras para fornecer informaes. Sequatro autores antigos mencionam um aristocrata romano de feso chamado MarcoBlio, mas voc descobre que trs deles tiraram sua informao do quarto, suas vriasfontes se tornam uma s. A informao comum no representa corroborao, mascolaborao, o que bem menos til.

  • Em suma, se um historiador fizesse uma lista ideal de fontes sobre uma pessoa queviveu na antiguidade, incluiria uma grande quantidade de fontes que fossem de umapoca prxima, que tivessem relatos extensos sobre a pessoa, que fossem at certoponto imparciais em seu contedo e que corroborassem os relatos umas das outras, semsinais de colaborao.

    Com uma lista assim em mente, o que podemos dizer sobre as evidncias para aexistncia de Jesus?

    Fontes da existncia de Jesus: o que no temos

    Pode ser til comearmos analisando o que no temos em termos de registroshistricos de Jesus, preparando, assim, o terreno para uma anlise mais detalhada noprximo captulo sobre o que efetivamente temos.

    EVIDNCIAS MATERIAIS?

    Para comear, no h evidncias materiais ou fsicas da existncia de Jesus (800 anosantes da inveno da fotografia), e isso inclui qualquer tipo de evidncia arqueolgica.No que isso seja um argumento forte contra sua existncia, j que no h evidnciaarqueolgica de nenhum habitante da Palestina da poca de Jesus alm de aristocratasda mais alta elite, ocasionalmente mencionados em inscries (e at mesmo eles notm nenhum outro tipo de evidncia arqueolgica). Na verdade, no temos vestgiosarqueolgicos de nenhum judeu no aristocrata da dcada de 20 do sculo I EC, quandoJesus teria sido adulto. E no h ningum que acredite que Jesus fosse aristocrata.Assim, por que teramos evidncias arqueolgicas de sua existncia?

    Tambm no temos nenhum texto escrito por Jesus. Muitos podem considerar issoestranho, mas na verdade no tem nada de incomum. A vasta maioria das pessoas domundo antigo no sabia escrever, como veremos mais detalhadamente. Muitos discutemse Jesus sabia ler ou no, se que ele viveu, obviamente. Mas, mesmo que soubesse ler,no h indicaes em nossas fontes mais antigas de que soubesse escrever, e nenhumdos Evangelhos faz qualquer referncia a algo escrito por ele.29 Portanto, no h nadaestranho no fato de no haver escritos dele. Devo enfatizar que no temos escritos de99,99% das pessoas que viveram na antiguidade. Claro que isso no prova que elas noexistiram. Isso apenas significa que, se quisermos demonstrar que alguma delas viveu,temos de procurar por outros tipos de evidncia.

    FONTES NO CRISTS DO SCULO I?

  • verdade, como os miticistas no deixam de destacar, que nenhum autor grego ouromano do sculo I menciona Jesus. Seria bastante conveniente para ns semencionassem, mas infelizmente no o caso. Ao mesmo tempo, isso tambm umfato um tanto irrelevante, j que essas mesmas fontes no mencionam milhes depessoas que efetivamente viveram. Nesse ponto, Jesus igual vasta maioria dos sereshumanos de pocas antigas.

    Alm disso, um erro argumentar, como s vezes faz um miticista ou outro, quealgum supostamente to espetacular quanto Jesus, que realizou tantos milagres e feitosfantsticos, decerto seria discutido ou pelo menos mencionado em fontes pags casotivesse realmente existido.30 Algum capaz de curar enfermos, exorcizar demnios,andar sobre a gua, alimentar multides com apenas alguns pes e ressuscitar os mortoscertamente seria alvo de comentrios! A falha nessa linha de raciocnio que noestamos nos perguntando se Jesus fez ou no milagres e, se os fez, por que eles (e ele)no so mencionados em fontes pags. Estamos nos perguntando se Jesus de Nazarrealmente existiu. Primeiro precisamos estabelecer que ele existiu, para s entoquestionar se ele realizou milagres. E, se decidirmos que ele realizou milagres, s entopodemos investigar por que ningum o menciona. No entanto, podemos igualmentedecidir que o Jesus histrico no foi um ser com poderes miraculosos, mas um simplesser humano. Nesse caso, no surpreende que as fontes romanas no o mencionem,assim como no surpreende que essas mesmas fontes no mencionem nenhum de seustios, primos ou sobrinhos, ou praticamente nenhum outro judeu de sua poca.

    Devo reiterar que totalmente mtica (no sentido dado pelos miticistas) a ideia deque os romanos mantinham registros detalhados de tudo e que, por consequncia,somos extraordinariamente bem informados sobre o mundo da Palestina romana. Oraciocnio se estende suposio de que deveramos, portanto, saber de algumcomentrio contemporneo sobre Jesus, se ele realmente existiu. Se os romanosmantinham tantos registros, onde esto eles? Ns certamente no temos nada. Bastaponderar tudo que no sabemos sobre a administrao de Pncio Pilatos comogovernador da Judeia. Temos conhecimento, por intermdio do historiador judeu Josefo,de que o governo de Pilatos durou dez anos, entre 26 e 36 EC. Seria fcil argumentarque ele foi a figura mais importante da Palestina romana durante toda a durao de seugoverno, mas que registros h daquela dcada, relativos a ele? Que registros romanostemos de suas grandes realizaes, sua rotina diria, os decretos que instituiu, as leisque promulgou, os prisioneiros que levou a julgamento, as sentenas de morte queassinou, seus escndalos, entrevistas, procedimentos legais? No temos nenhum.Absolutamente nada.

    A questo pode ser levada adiante. Que evidncias arqueolgicas temos do governode Pilatos na Palestina? H algumas moedas cunhadas durante seu governo (ningum

  • esperaria moedas de Jesus, j que ele no cunhou nenhuma) e um, apenas um,fragmento de inscrio descoberto em Cesareia Martima em 1961 indicando que ele erao prefeito romano. Nada mais. E quais os textos redigidos por ele que subsistiram? Nemuma nica palavra. Isso significa que ele no existiu? No, ele mencionado emdiversas passagens na obra de Josefo, nos escritos do filsofo judeu Flon de Alexandriae nos Evangelhos. Ele certamente existiu, embora, assim como Jesus, no haja escritosdele nem seus registros contemporneos. E o mais notvel que temos muito maisinformao sobre Pilatos do que sobre qualquer outro governador da Judeia no perodoromano.31 Assim, um mito moderno dizer que temos registros romanos abundantesda antiguidade, que certamente mencionariam algum como Jesus se ele tivesseexistido.

    Tambm vale ressaltar que Pilatos mencionado apenas de passagem nos escritos deTcito, o nico historiador romano que se refere a ele. Isso ocorre em uma passagemque tambm menciona Jesus (Anais 15). Se, nos textos gregos e romanos, essa a nicameno a um importante governador aristocrtico romano de uma provncia expressiva,quais as chances de um professor judeu de classe baixa (o que Jesus provavelmente era,segundo todos os que concordam que ele existiu) ser mencionado neles? Quasenenhuma.

    Eu ainda poderia acrescentar que nossa principal fonte de conhecimento sobre aPalestina judaica no perodo de Jesus o historiador Josefo, um destacado aristocratajudeu que tinha grande influncia nos assuntos sociais e polticos de sua poca. Equantas vezes Josefo mencionado nas fontes gregas e romanas de sua poca, o sculo IEC? Nenhuma.

    Podemos fazer uma analogia. Se daqui a sessenta anos um historiador fosse escrevera histria do sul dos Estados Unidos nos sculos XX e XXI, digamos, quais as chancesde ele mencionar Zlatko Plese? (Zlatko meu brilhante colega que leciona filosofiaantiga, gnosticismo, variantes do cristianismo primitivo e outros assuntos.)Praticamente nulas. O que isso prova? Tecnicamente falando, no prova nada. Noentanto, isso poderia sugerir que Zlatko nunca existiu ou que no teve grande impactona vida poltica, social ou cultural do sul dos Estados Unidos. Acontece que Zlatkoexiste sim (levei-o para jantar ontem noite). Portanto, se ele no for mencionado nahistoriografia futura do sul dos Estados Unidos, sem dvida ser porque ele no causougrande impacto na regio. Para provar que ele existiu, ser preciso procurar outrasevidncias, como cpias dos dois livros que ele escreveu. (Diferentemente de Jesus,Zlatko sabe escrever. E, diferentemente do sculo I, nossa poca dispe de produo edistribuio de livros em larga escala, alm de bibliotecas para guard-los.) O mesmoraciocnio se aplica ao caso de Jesus. O fato de ser raramente mencionado tem poucarelevncia para a questo de sua existncia. possvel que ele simplesmente tenha

  • causado pouco impacto, assim como a esmagadora maioria das pessoas que viveram noImprio Romano no sculo I. Muitos cristos no gostam de ouvir que Jesus noexerceu grande influncia no mundo em sua poca, mas isso parece ser verdade.Significa que ele no existiu? No, significa que, para estabelecer sua existncia, temosde procurar outros tipos de evidncia.

    TESTEMUNHAS OCULARES?

    Ainda em relao questo das evidncias que no temos, devo enfatizar que no hum nico registro escrito por uma testemunha ocular, seja pag, judia ou crist, do queJesus disse ou fez. Mas e os Evangelhos do Novo Testamento? Seus autores no sotestemunhas oculares? Embora os Evangelhos de Mateus e Joo fossem assimconsiderados no passado, atualmente no o que pensa a maioria dos historiadorescrticos, por uma boa razo.

    Segundo a tradio da igreja primitiva, os quatro Evangelhos do Novo Testamentoforam escritos por Mateus, Marcos, Lucas e Joo. Mesmo nessa tradio, Marcos e Lucasno foram testemunhas oculares da vida de Jesus. Marcos foi supostamente ocompanheiro (posterior) de Pedro, que o ouviu pregar sobre Jesus e reorganizou seusensinamentos em uma narrativa que veio a ser o Evangelho que leva seu nome. Mesmose aceitarmos a tradio de que foi realmente Marcos quem escreveu o Evangelho, eleno deixa de ter obtido suas informaes em segunda mo. Lucas era de um perodoainda mais tardio: era considerado um dos companheiros do apstolo Paulo, que no foium dos seguidores de Jesus em vida. Lucas foi supostamente um mdico gentio quepesquisou a vida de Jesus e depois escreveu sua narrativa. Se a tradio sobre Lucasestiver correta, estamos lidando com um autor que foi discpulo de algum que no foidiscpulo. Mateus, por outro lado, teria sido um dos doze discpulos, o cobrador deimpostos que Jesus chamou para ser um de seus seguidores (ver Mateus 9:9-13). Eacreditava-se que Joo fosse o misterioso discpulo amado do Quarto Evangelho (ver,por exemplo, Joo 19:26-27), identificado como um dos discpulos mais prximos deJesus, Joo, filho de Zebedeu.

    Hoje em dia, alm dos crculos fundamentalistas e evanglicos conservadores, osestudiosos so praticamente unnimes em afirmar que provavelmente todas essasatribuies de autoria esto erradas. Um aspecto importante a observar que nenhumdos autores dos Evangelhos se identifica pelo nome ou narra suas histrias sobre Jesusem primeira pessoa. Os Evangelhos so todos escritos anonimamente, e os autoresdescrevem os discpulos, inclusive Mateus e Joo, em terceira pessoa, falando sobre oque eles fizeram (no eu ou ns). Mais significativo ainda que os seguidoresdiretos de Jesus eram, como ele, camponeses de classe baixa em reas rurais da Galileia,falantes de aramaico. Seriam capazes de escrever Evangelhos?

  • Vrias pesquisas importantes sobre alfabetismo surgiram em anos recentesmostrando quanto seus nveis eram baixos na antiguidade. O estudo mais citado o doprofessor da Universidade de Columbia William Harris, no livro Ancient Literacy[Alfabetismo no mundo antigo].32 Analisando minuciosamente todas as evidnciasexistentes, Harris chega convincente, porm surpreendente, concluso de que, nosperodos mais alfabetizados do mundo antigo, apenas 10% da populao sabia leralguma coisa ou possivelmente copiar textos. Um nmero bem menor do que isso,obviamente, era capaz de redigir uma frase, e era ainda mais raro haver quem pudessecompor uma narrativa ou ainda um livro inteiro. Mas quem eram esses 10%? Eram aelite, que tinha tempo, dinheiro e lazer para obter uma educao. Essa no umadescrio muito precisa dos discpulos de Jesus. Eles no eram aristocratas ou membrosdas classes altas.

    Na Palestina romana, a situao era ainda pior. O estudo de alfabetismo na Palestinamais aprofundado o da professora de estudos judaicos da Universidade de LondresCatherine Hezser, que mostra que, na poca de Jesus, provvel que apenas 3% dosjudeus palestinos fossem alfabetizados.33 Novamente, estes seriam as pessoas quesaberiam ler e talvez escrever seus nomes e copiar palavras. Um nmero menor aindasaberia redigir frases, pargrafos, captulos e livros: mais uma vez, as elites urbanas.

    A questo fica ainda mais ntida a partir de outra considerao. A lngua nativa deJesus, de seus discpulos e da maioria do povo na Palestina era o aramaico. OsEvangelhos, porm, no foram escritos em aramaico, mas em grego. E grego de bomnvel, altamente proficiente. Os autores dos Evangelhos eram falantes e escritores degrego excepcionalmente cultos. Deviam ser de classes relativamente altas, quasecertamente de reas urbanas fora da Palestina. Em geral, os estudiosos concordam queesses textos datam do final do sculo I: o Evangelho de Marcos seria o mais antigo,provavelmente escrito por volta de 70 EC; os Evangelhos de Mateus e Lucas teriam sidoelaborados pouco depois, possivelmente entre 80 e 85 EC; e o de Joo seria o ltimo, noperodo de 90-95 EC. Os autores desses livros no eram os discpulos originais de Jesusou provavelmente nem mesmo eram seguidores dos doze discpulos diretos de Jesus.Eram cristos de pocas posteriores que ouviram as histrias sobre Jesus, disseminadasoralmente ano aps ano, dcada aps dcada, e finalmente decidiram escrev-las.

    possvel que os autores dos Evangelhos tenham se baseado em fontes escritastambm, alm de nas tradies orais, como veremos detalhadamente no prximocaptulo. Lucas afirma explicitamente que tem conhecimento de relatos anteriores sobrea vida de Jesus (1:1-4), e h boas razes para achar que tanto ele como Mateus tinhamacesso a uma verso do Evangelho de Marcos, do qual tiraram muitas de suas histrias.Ambos provavelmente tambm tiveram contato com um documento que os estudiososrotularam como Q (de Quelle, que significa fonte em alemo). Esse material no

  • chegou aos nossos dias, mas aparentemente existiu no passado, em grego, e consistia devrios ensinamentos e alguns feitos de Jesus. Ao lado desses dois documentos, Mateus eLucas podem ter utilizado ainda outras fontes para seus relatos; quanto a Marcos, nosabemos a quais fontes recorreu para suas narrativas. Joo um caso totalmentediferente, j que as histrias que ele narra sobre Jesus so bastante distintas dasencontradas nos Evangelhos sinticos de Mateus, Marcos e Lucas.34

    De todo modo, o que enfatizo aqui que os Evangelhos do Novo Testamento noforam escritos por testemunhas oculares da vida de Jesus. Nem os evangelhos que noconstam do Novo Testamento, dos quais ainda existem mais de 40, completos ou emfragmentos.35 Alis, no temos nenhum tipo de relato sobre Jesus de uma testemunhaocular, escrito na poca dele.

    Esse fato, porm, tambm no deve ser superestimado ao se considerar a questo daexistncia ou no de Jesus. A ausncia de testemunhas oculares seria relevante se, eapenas se, tivssemos razo para pensar que deveramos encontrar testemunhasoculares caso Jesus tenha realmente existido. Isso est longe de ser o caso, no entanto.Voltemos nossa comparao anterior com Pncio Pilatos. uma figuratremendamente importante, nos sentidos poltico, econmico, cultural e social, para ocotidiano e a histria da Palestina durante a vida adulta de Jesus (supondo que ele tenhaexistido). J indiquei que dificilmente havia algum mais importante. E quantos relatosde testemunhas oculares temos de Pilatos, de sua prpria poca? Nenhum. No h ums. Josefo est na mesma situao. E essas so figuras da mais alta projeo em suacontemporaneidade.

    Novamente, h uma ligao estreita entre esse quadro e o alfabetismo naquela pocae lugar. Quase ningum sabia escrever, e a maioria dos que sabiam no produziuescritos que tenham chegado at ns. O que to surpreendente quanto v