Jo Goodman - [JARDIM MÁGICO] - O cesto mágico (PtBr)

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O cesto mágico O cesto mágico O cesto mágico O cesto mágico Jo Goodman Clássicos Históricos Especial nº 240 3 histórias: A Laranjeira Mágica Linda Madl O pomar mágico Hannah Howell O cesto mágico Jo Goodman Este Livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua comercialização é estritamente proibida.

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O cesto mágicoO cesto mágicoO cesto mágicoO cesto mágico

Jo Goodman

Clássicos Históricos Especial nº 240

3 histórias:

A Laranjeira Mágica Linda Madl

O pomar mágico

Hannah Howell

O cesto mágico Jo Goodman

Este Livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.

Sua comercialização é estritamente proibida.

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Copyrigh 2002 by Joanne Dobrzanski / Hannah Howell / Linda Madl Originalmente publicado em 2002 pela Kensington Publishing Corp.

Título original: Magically Delicious Kisses

2006 Editora Nova Cultural Ltda.

DIGITALIZAÇÃO : PALAS ATENÉIA

REVISÃO: PALAS ATENÉIA

Ao ser chamada à isolada casa nas montanhas, Abby não esperava encontrar o vigoroso Dylan derrubado numa cama, abatido e sem forças. E

somente ela tinha o conhecimento necessário para preparar a infusão de ervas que poderia curar Dylan… e conquistar seu coração!

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Capítulo I Janeiro, 1867 Dover Falls, Virgínia Ninguém o conhecia. Não de verdade. Em alguns lugares, isso serviria de

freio para os mexericos, mas não em Dover Falls, onde a gente da cidade compensava a ignorância por meio de invenções. As histórias que contavam sobre ele eram inofensivas, embora, no início, houvessem corrido rumores de que assassinara a esposa numa cidade ao norte. Os comentários haviam circulado e cessado de repente.

Se fosse menos reservado, não teria dado origem a nenhum boato. Seu pecado imperdoável fora o de evitar a companhia de outras pessoas e não perturbar ninguém. Ao contrário daqueles que moravam nos arredores da cidade ou mais longe, no campo, não era sociável quando ia ao armazém comprar suprimentos.

Não perguntava pela saúde da sra. Fitch, quando todos se preocupavam se ela iria sobreviver ao parto de gêmeos; não perguntava sobre a recuperação do sr. Kinsey da gota de que sofria e não se interessava em saber a quantas andava o levantamento de fundos para a nova casa paroquial.

Se ocorresse a alguém que ele não conhecia a sra. Fitch ou o sr. Kinsey, e que nem mesmo sabia da existência do projeto para construir a casa paroquial, isso só teria sido mais uma prova de que era um estranho entre eles. De fato, acentuaria a opinião geral de que não fazia nenhum esforço para integrar-se na comunidade.

Naturalmente, haviam tentado uma aproximação. O reverendo fizera a jornada para Sperry Gap a fim de apresentar-se ao forasteiro. Antes de alcançar a cabana, porém, fora expulso por uma criatura feroz que ele garantia ser mais lobo que cão. O fato do pastor ter feito essa declaração com a mão sobre a Bíblia, concedera à história a credibilidade que faltava para alguns dos poucos céticos que ainda tinham dúvida quanto à veracidade do episódio.

A srta. Florence Henry, professora da escola de Dover Falls desde antes da guerra, também se aventurara para os contra-fortes da cordilheira Blue Ridge a fim de se informar se o recém-chegado tinha filhos em idade escolar. Deparou-se com o mesmo cão-lobo mencionado pelo pastor e retornou à cidade sem a resposta que fora buscar.

A última pessoa a percorrer a trilha para a cabana fora o sr. Imans. Em sua posição de proprietário do único banco da cidade, assumira o dever de assegurar e proteger os investimentos do forasteiro, presumindo-se que existissem. Conseguiu ir mais longe que o reverendo Pritchard e a srta. Henry, chegando até o caminho de pedra que levava à entrada da cabana. Ao avistar a porta aberta, sua expectativa era de receber a boa acolhida adequada a seu status, não deparar com uma fera à solta que lhe arreganhou os dentes, pronta para saltar em seu pescoço.

Sabia-se apenas que era um ianque e que se chamava Kincannon, pois ele informara o nome ao sr. Winslow na ocasião em que abrira uma conta de crédito no armazém, com a naturalidade de quem tivesse vivido em Dover Falls por toda a vida em vez de apenas nos últimos seis meses.

A sra. Winslow contou às amigas que o sr. Kincannon provinha de algum

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lugar ao norte da linha Mason-Dixon, como era denominada a fronteira entre a Pensilvânia e Maryland. Antes da Guerra Civil, em 1861, era uma linha simbólica de distinção entre os Estados sulinos nos quais ainda se usava mão-de-obra escrava e aqueles onde a escravidão fora abolida. Após a guerra, em 1865, permanecera simbólica da divisão entre os Estados que requeriam segregação racial e os que não requeriam.

A sra. Winslow presumia que ele fosse de Boston, a julgar pelo sotaque arrastado, igual ao dos soldados das tropas inimigas que em junho de 1862 haviam atravessado Dover Falls a caminho de Port Republic. O sotaque nortista não despertava a simpatia da sra. Winslow, mas dinheiro era sempre bem-vindo, de qualquer freguês.

Abby Winslow sabia algo mais a respeito do forasteiro, mas, ao contrário da tia e do tio, não divulgava os pormenores. Não era difícil guardar esses segredos. Ninguém suspeitava que ela estivesse a par de algo por eles desconhecido.

Ela sabia, por exemplo, que seu nome de batismo era Dylan. Havia visto as letras DK estampadas na sacola de couro que ele usava para carregar as compras quando ia ao armazém. Os moradores de Dover Falls teriam ficado surpresos com sua temeridade ao fazer as perguntas. Na verdade, ela própria ficara surpresa, pois não tinha nada de atrevida. Se houvesse alguém mais no armazém, ela não teria perguntado nada tão diretamente. Mas havia ficado sozinha com ele, enquanto o tio enchia uma saca no quarto dos fundos, e o silêncio se tornara pesado.

— E Douglas? — ela perguntara. O rapaz piscara. Por um momento seus cílios escuros cobriram os olhos

cinza-esverdeados, e quando se ergueram não havia nenhuma hostilidade em sua expressão. Ao contrário, ele parecia levemente divertido.

— Douglas? — repetiu. Abby lembrava-se de haver apontado para a sacola que ele segurava.

Era de couro marrom macio, embora arranhada e surrada, e desbotada para um tom amarelado nos cantos arredondados. A longa correia da sacola pendurada em seu ombro estava menos gasta e dava uma idéia de como o couro fora quando novo. Havia um bojo na parte de baixo, mas não dava para saber o que havia dentro.

— D.K. — Abby leu as iniciais em voz alta. — Ah — murmurou ele. — Quer saber se o D é de Douglas? Não, não é. Abby sorriu sem jeito e virou-se para se afastar. Da cozinha, no andar de

cima, o aroma de pão assando havia chamado sua atenção e, de algum modo, ele já havia respondido à pergunta que ela fizera.

— Feiticeirinha! Abby nunca havia sido chamada assim antes, pelo menos não que ela

soubesse. “Diferente” era o adjetivo usado com mais freqüência. Algumas vezes comentava-se que ela era um pouco esquisita. As pessoas mais francas diziam que havia algo errado com ela, embora não chegassem a ponto de considerá-la anormal.

Apesar de não serem descrições elogiosas, não eram proferidas com intenção de magoar, apenas de buscar uma definição para algo que ninguém sabia ao certo o que era mas que, fosse o que fosse que a tornava “diferente”, não representava perigo de contaminação.

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Nessas ocasiões Abby exibia um sorriso tímido e inseguro, e ali, diante do forasteiro, sua reação não foi diferente das outras vezes. Não tinha certeza se o comentário fora feito com intuito de elogiar ou de criticar. A expressão do rapaz era indecifrável, pois o ar divertido que ela vislumbrara pouco antes havia desaparecido, e ele estudava seu rosto com intensidade, como se pretendesse gravar seus traços na memória.

Abby retribuiu o olhar atento, sem se dar conta de que o estava encarando nem de que o queixo erguido lhe conferia uma atitude de desafio juvenil. Então, ela inalou fundo.

— Meu pão! — exclamou, levantando as saias de chita e correndo para os fundos do armazém.

— Dylan! Abby não parou nem se virou para dar a entender que ouvira o nome,

mas mais tarde, ao retornar e presenteá-lo com dois pães quentes de milho e melaço, a verdade transparecia em seu olhar tímido.

Dylan desviou o olhar do rosto de Abby para os pães. Sentiu o cheiro do trigo e do melaço e inspirou profundamente o aroma que o fazia lembrar a cozinha de sua mãe.

— Este pão é da Nova Inglaterra — constatou. — Sim. — E você o fez para mim. Abby anuiu com um gesto de cabeça. — Mas não sabia que eu viria para cá hoje. Abby sabia, mas não queria que ele já começasse a pensar que ela era

estranha, por isso apenas sorriu. Dylan pegou os pães, aproximou-os do nariz e colocou-os sobre o balcão

com o restante de seus suprimentos. — Pão de milho e melaço. Sabia que sou de Massachusetts?

— Ouvi falar, sim. De Boston, dizem. — Framingham. Abby sorriu. Framingham. Era delicioso pronunciar esse nome. Tinha

algo de musical, como também o nome dele. Dylan Kincannon. Dylan Kincannon, de Framingham. Nesse momento ela concluiu que a fera sobre a qual todos falavam não tinha nada a ver com aquele homem.

— Acho que ele não virá — comentou Geórgia Winslow, passando a mão com força sobre a manta riscada, estendida sobre a mesa, alisando-a e preparando-a para cortá-la. Pegou a tesoura, verificou a lâmina e examinou as marcas sobre o tecido. — Acho melhor você levar os pães de volta para a cozinha — acrescentou sem erguer a vista. — Podemos comê-los junto com o ensopado.

Abby olhou para os pãezinhos de batata que havia preparado naquela tarde, prevendo a chegada do sr. Kincannon. Dourados e ainda quentes, estavam acomodados na cesta de vime. Ela desdobrou uma toalha xadrez azul e branca e a colocou, com cuidado, sobre as crostas.

— Pensei em levá-los para Sperry Gap — informou. Geórgia quase cortou a ponta do dedo com a tesoura bem-

amolada. Levantou a cabeça, com uma ruga na testa. Era óbvio que sua sobrinha acabava de ter uma de suas idéias estranhas.

— Para Sperry Gap? Está se referindo à cabana de Tucker?

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— É onde o sr. Kincannon mora, não é? — Você sabe que é. — Geórgia apertou e torceu os lábios numa

expressão severa. — Um ianque na cabana de Tucker Maddox! — Abanou a cabeça como se aquele fosse um fato difícil demais de ser assimilado. — Tucker deve estar se revolvendo no túmulo. Seu tio não vai permitir, Abby. Não é seguro. Não agora.

— Por causa do tempo? Chovia desde a manhã anterior e, dada a altitude de Sperry Gap, devia

haver neve lá em cima. — Não, não é por causa do tempo — disse Geórgia em voz pausada,

como se Abby não fosse capaz de entender se ela falasse de modo normal. Usava a cadência que se usava ao tentar explicar algo a uma criança, ou a uma pessoa mentalmente retardada, e embora soubesse que a sobrinha não era criança nem retardada, seu argumento não foi convincente. — É por causa do lobo.

Abby mordeu o lábio. — Não acredito nessa história de lobo — disse por fim. — Pois acredite, porque a srta. Henry viu, o sr. Imans e o reverendo

também. Não me diga que não acredita no reverendo. Antes que Abby pudesse dizer algo, Geórgia acrescentou: — Há quem diga que o sr. Kincannon é o lobo. Havia pessoas, em Dover Falls, que ainda acreditavam que o mundo era

plano. Mas, por prudência, Abby refreou-se de lembrar esse fato à tia. Ela já ouvira histórias sobre lobisomens, mas achava que se destinavam a pôr medo em crianças para garantir que não se atrevessem a ultrapassar limites perigosos. Sperry Gap era um desfiladeiro estreito, propenso a deslizamentos de pedras e avalanches, sujeito aos caprichos da natureza, e representava um obstáculo ameaçador, exceto para os mais intrépidos. Abby já havia considerado que o sr. Kincannon podia estar encurralado em sua cabana. Se esse fosse o caso, não haveria como lhe entregar os pãezinhos de batata até o tempo melhorar.

— De qualquer modo, eu gostaria de ir. — Abby pegou a cesta de vime e apoiou a alça no antebraço.

— Seja sensata, Abby. Leve os pães para o sr. Malley. Ele lhe ficará grato e pagará na entrega.

— Não fiz estes pães para o sr. Malley. — Abby abanou a cabeça. — Não seria apropriado para ele. Eu o fiz para o sr. Kincannon.

Geórgia suspirou. Para Abby, cada pão que ela assava era apropriado à pessoa à qual se destinava. Aliás, essa era uma de suas peculiaridades. “Só para mim?” perguntavam as pessoas, ao receberem um pão de canela ou de noz peca, ou um pão preto. E quando Abby confirmava que havia feito especialmente para eles, falava em sentido literal. Não havia ninguém em Dover Falls que não apreciasse o pão feito por Abby. Várias pessoas haviam sugerido que ela abrisse um negócio vizinho ao armazém do tio, para poder vender seus pães e doces e obter lucro em vez de apenas se contentar em recuperar os custos. Abby sempre ouvia com polidez as sugestões e sempre declinava da idéia de pô-las em prática. Nunca funcionaria, ela explicava paciente, pois alguém poderia escolher o pão errado. Quando Geórgia ouvia a sobrinha falar desse jeito, costumava sorrir com tolerância e revirar os olhos

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de leve. Era uma maneira de deixar claro a todos que não era, de modo algum, responsável pelas opiniões incomuns de Abby. Tendo deixado sua posição clara, retornava tranqüila a qualquer mexerico que a interessasse. Nos últimos tempos o assunto habitual girava ao redor de lobos e ianques estranhos.

— Está me dizendo que também não podemos ficar com os pães? — indagou Geórgia. — Você sabe que seu tio gosta deles.

— Não ia gostar destes — Abby explicou à tia. — Pus sementes de cominho. As sementes não combinam com ele.

Isso era verdade. Seu marido ficaria acordado a maior parte da noite com indigestão. Geórgia não queria isso, mas não lhe agradava a idéia do pão ser desperdiçado. Ela não estava fazendo caridade, ainda que abrisse crédito a todos os seus clientes.

— Muito bem. Pergunte a seu tio se você pode ir. — Abby não esperou Geórgia terminar a frase e saiu correndo.

— E arrume o cabelo! Não suporto… Ela não completou a sentença. Abby já estava fora do alcance de sua

voz. A noite estava caindo quando Abby partiu para Sperry Gap. Seu tio não

fora inteiramente a favor da jornada, mas tampouco se empenhara em dizer não. Pensou bastante antes de concordar. Em seguida fizera mil recomendações, que Abby ouvira pacientemente em virtude de um profundo respeito pelo tio.

Edward Winslow era irmão de seu pai e agora seu único parente vivo. Ele não havia hesitado em ir buscá-la ao saber da morte do irmão e da cunhada. A última epidemia de gripe, antes da guerra, os havia levado, e quando Abby foi removida da quarentena, Edward viajara até Richmond para buscá-la. Muitas pessoas na cidade haviam ficado apreensivas por ele levá-la para lá, mas o tio os havia ameaçado de cobrar suas dívidas e mudar seu armazém de cidade. Isso fora oito anos antes, quando Abby só tinha doze anos, e marcara a última vez em que um habitante de Dover Falls discordara seriamente de Edward Winslow. Três meses depois da chegada de Abby ele fora eleito prefeito e ainda continuava no posto.

Por insistência do tio, Abby usava um impermeável sobre o vestido e um par de galochas sobre sapatos mais delicados. Não precisava fazer a viagem a pé. Iria num pequeno coche aberto, de quatro rodas e sem molas, puxado por uma égua malhada. O tio a ajudara a carregar os suprimentos que o sr. Kihcannon costumava adquirir em suas visitas quinzenais à cidade.

Quando ele a ajudava a subir no veículo, perguntara mais uma vez se ela tinha certeza do que estava fazendo. Mas Edward já conhecia a resposta, claramente estampada na expressão séria do rosto, nos olhos violáceos solenes e penetrantes e no modo como apertava os lábios. Abby tinha pouca semelhança física com o pai, pois herdara quase todos os traços da mãe.

Rosalie possuíra conhecimento sobre uma porção de coisas. Algumas pequenas, outras importantes. Era seu dom e sua maldição, e também a razão que a levara a fugir para Richmond com o marido. Rosalie escreveu ao cunhado contando que ela e Samuel já estariam mortos quando ele lesse sua carta. Abigail sobreviveria, havia contado, e ela confiava em que ele fosse buscar a sobrinha e a criasse como se fosse sua filha.

Mais tarde, Edward ficara sabendo que Rosalie havia escrito a carta antes

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de Sam ou ela apresentarem os primeiros sinais da doença. Tentara entender o que isso significava, mas acabara aceitando que não havia explicação. Rosalie previra seu futuro e tomara providências com relação a Abby. A menina, como Edward havia muito tempo suspeitava, não era tão diferente da mãe, e a tentativa de Rosalie de proteger a filha, entregando-a a seus cuidados, nada mudava.

Da varanda do armazém, Edward Winslow observou a sobrinha soltar o freio do coche e estalar as rédeas uma vez. Ficou junto aos degraus enquanto Geórgia se colocava atrás dele na porta. A chuva molhava suas botas e às vezes caía com força sobre seu avental de tela. Voltou para dentro de casa somente quando Abby desapareceu na neblina que começava a se adensar no fim da lamacenta rua principal.

Abby sabia que o tio já estava lamentando por tê-la deixado partir. Era especial para ele, não era diferente nem estranha. Edward nunca revirava os olhos ao ouvir o que ela dizia nem sugeria que abrisse sua própria loja. Quando ela lhe comunicara que “precisava” ir, não perguntara por que, apenas quisera certificar-se de que ela voltaria em segurança, e a isso Abby pudera responder com um inequívoco “sim”.

— Está preocupado com o lobo? — ela perguntara. — Acho que não há lobo nenhum. Acho que as pessoas estão imaginando coisas.

Edward não tinha tanta certeza. — Bem, há lobos… e lobos — comentara com expressão contrafeita,

lembrando-se do interesse ostensivo de Kincannon por Abby. — Veja se percebe a diferença.

Deixando Dover Falls para trás, Abby não tinha certeza se havia entendido o que o tio quisera dizer.

Dylan Kincannon levantou os olhos de sua leitura e virou a cabeça para um lado. Cobriu a orelha, tentando perceber de onde vinha o som e o que significava.

Abaixou o jornal e levantou-se da cadeira de balanço, quase caindo para frente ao apoiar o peso do corpo no pé direito. Segurando-se na mesa ao lado, firmou-se no pé esquerdo e pegou a bengala de cerejeira que ele mesmo fizera. A madeira acetinada, marrom-avermelhada, era morna e macia e ele confiava em sua resistência para ajudá-lo a chegar à janela.

A lua estava cheia, mas caía uma espessa cortina de neve que dificultava avistar mais de dez metros além da varanda da cabana. O solo coberto também abafava o ruído da aproximação de uma visita, embora o ritmo regular sugerisse tratar-se de algo mecânico e, portanto, de origem humana.

Dylan apoiou a bengala na parede e encolheu-se em seu casaco de couro. Não o abotoou, apenas levantou a gola forrada de pele, protegendo as pontas encaracoladas e úmidas dos cabelos cor de ébano. Depois de pegar o rifle na prateleira, abriu a porta e pisou cauteloso na varanda. Só deu alguns passos. Não fazia sentido permitir a alguém perceber que estava mancando.

A distância, percebeu o arco de uma lanterna balançando. Movia-se para frente e para trás, entre as árvores. De início, supôs que alguém a estivesse segurando, mas depois percebeu que estava muito longe do chão. Então identificou o chiado intermitente de uma roda.

Um veículo? A idéia de alguém ousar chegar a duzentos metros da cabana de Tucker Maddox após a partida acelerada do banqueiro era

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surpreendente. E que alguém viesse após o cair da noite era ainda mais inesperado. Primeiro fora o pároco, depois a professora e, por último, o banqueiro. Dylan abanou a cabeça. Se tivesse sabido que aquele lugar iria atrair tanta curiosidade quanto um espetáculo de circo, teria ficado em Framingham. Lá, ao menos, sua família conteria os visitantes.

Ele ouvia o arfar do cavalo enquanto arrastava o veículo pela trilha. Ainda não era possível distinguir quem era o visitante.

Talvez, pensou, não fosse um morador de Dover Falls, mas apenas alguém passando pelo caminho e que fora atraído pelas janelas iluminadas da cabana. Isso fazia sentido, embora a razão de um viajante estar fora, tão tarde, num tempo como aquele, fosse incompreensível.

Dylan apoiou o rifle sob o braço. O cano estava voltado para baixo, mas, se necessário, poderia ser levado depressa a mirar o veículo. Com sua visão periférica, ele percebeu Ulysses se aproximar sossegado pelo canto da varanda e subir os três degraus com um único salto. O cão rodeou as pernas de Dylan duas vezes, como se desculpando por faltar a seus deveres, depois se sentou e ganiu pedindo atenção, ignorando por completo a iminente chegada de alguém.

— Por onde andou, rapaz? — perguntou Dylan, passando a ponta dos dedos na cabeça de Ulysses. — Caçando cervos? Quatis? Não viu que temos visita?

Ulysses afundou o focinho atrás do joelho de Dylan com pressão suficiente para fazer sua perna vergar.

— Ei! Pare com isso! — exclamou Dylan, ralhando com o cão. — Você vai me fazer cair! — Ele apoiou o ombro contra a porta, tentando recuperar o equilíbrio. — Por que não sai correndo lá para fora? O que há de errado com você?

Ulysses encostou o focinho frio contra a perna de Dylan outra vez e choramingou.

Dylan olhou para o cão e abanou a cabeça. O veículo ia chegar a qualquer momento e Ulysses continuava indiferente. Não havia tempo para descobrir se estava doente ou se, de fato, aquilo era um sinal de que não havia problemas à frente. Dylan não relaxou nem a guarda nem a posição do rifle.

— Alto lá! — gritou, levantando a voz para ser ouvido acima do som das patas do cavalo e das rodas do veículo. Apertou os olhos e viu que a lanterna parará de se mover. Havia apenas uma silhueta esguia no assento do coche. — Por que está vindo para cá?

Antes que houvesse uma resposta, Ulysses saiu em disparada em direção ao veículo.

— Traidor — murmurou Dylan zangado. Quase perguntou ao forasteiro o que havia feito com seu cão. Onde fora

parar o rosnado com os dentes à mostra que fizera o reverendo Pritchard sair correndo? Ou o rosnado que ameaçara a srta. Henry? O que havia acontecido ao predador que armara um bote contra o sr. Imans e o fizera fugir assustado?

Dylan observou horrorizado Ulysses saltar para o banco do coche e aninhar-se junto ao forasteiro.

— Venha já para cá, Ulysses! O cão ganiu, mas obedeceu. Voltou para a varanda e ficou aos pés de

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Dylan. — É um animal nobre — disse Abby. — Você lhe deu esse nome por

causa do herói épico de Homero? Depois do comportamento estranho de Ulysses, Dylan achava que não se

surpreenderia com mais nada naquela noite. Olhou mais de perto a figura curvada no alto do pequeno coche.

— O nome vem do general. — Oh. Bem, é melhor não contar isso para ninguém. O pessoal daqui

não vê o general com bons olhos. Não era de estranhar a antipatia dos sulistas pelo general Ulysses S.

Grant, pois ele comandara as forças vitoriosas da União no final da Guerra de Secessão dos Estados Unidos em 1865.

— Vou me lembrar disso — declarou Dylan. — Posso levar meu veículo até a varanda? — perguntou Abby. — Trouxe

seus suprimentos. Ele ficou em silêncio. — Sou eu, sr. Kincannon, Abby Winslow, do armazém… Dylan transferiu

uma parte do peso para o pé machucado. A conseqüência foi como uma pinçada em todos os nervos, desde o

calcanhar até o quadril. — Minha nossa! O que está fazendo aqui, srta. Winslow? — Já não disse? Trouxe seus suprimentos.—Abby levantou a lanterna e a

aproximou de seu rosto. — Consegue me ver, sr. Kincannon? — Posso vê-la. — Ele não a convidou para se aproximar da cabana. —

Não lhe pedi para vir aqui. — É claro que não. Como poderia? O tom de voz prático o fez piscar. Ela falava como se suspeitasse que ele

é que não fosse bom da cabeça. Claro que ele não contaria que logo depois de chegar a Dover Falls, haviam lhe contado que ela era a excêntrica da cidade. Recebera essa informação adicional ao perguntar a moradores da cidade como chegar ao armazém.

— De fato — disse por fim, secamente. — Como poderia? — Dylan virou o cano da espingarda para o chão. — Pode trazer o coche para cá.

Abby puxou as rédeas, e a égua obedeceu ao comando, movendo o veículo para frente. Chegando junto à varanda, Abby parou, e Ulysses saiu em disparada, correndo em círculos à volta do coche, esperando ansioso que Abby saltasse.

— O que você fez com meu cão? — Dylan decidiu perguntar, afinal. Abby desceu do coche e entrou na varanda. Inclinou-se e afagou a

cabeça de Ulysses, que se prostrou feliz a seus pés. Sorridente, ela olhou para Dylan Kincannon.

— Dei algo para ele comer — explicou ela. — Deu-lhe o quê? — Dylan ergueu as sobrancelhas escuras. — Um biscoito. — Endireitando-se, Abby deu de ombros. — Um biscoito? — Na verdade, vários biscoitos. Dylan olhou para a parte de trás do coche, onde seus suprimentos

estavam cobertos por um grande pano encerado. — Você deu a Ulysses meus biscoitos?

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— Oh, não… — Então? — Fiz biscoitos para ele. — É claro. — Ele não iria gostar dos seus — explicou ela. Seu chapéu de feltro, de

aba larga, havia se inclinado um pouco, revelando uma franja de cabelos dourados na testa.— Quer que eu coloque seus suprimentos na varanda ou posso levá-los para dentro?

— Srta. Winslow — Dylan mostrava uma paciência que estava longe de sentir. — Seus pais sabem que está aqui?

— Não. — É o que imaginei. Você… — Eles morreram. — interrompeu ela, fitando-o. Um vinco marcava de

leve sua testa. — Mas há quem diga ser impossível calcular aquilo que os mortos sabem. Acredita nisso?

Dylan não pretendia iniciar uma discussão filosófica na porta da frente de sua cabana.

— Ponha as coisas na varanda. — Ele a observou virar-se, ignorando o tom de ordem em sua voz ou o fato dele não ir ajudá-la. — Venha já para cá, Ulysses. Saia do caminho!

A última coisa que Dylan precisava era da srta. Abby Winslow tropeçando e caindo de bruços sobre os degraus. Ganindo, Ulysses obedeceu. Abby soltou as cordas que prendiam o encerado no lugar e o removeu. Estava tudo seco. Ela arrastou uma saca de farinha para a beira do veículo, agarrou-a pelas pontas, virou-a de lado e balançou-a de modo a fazê-la cair suavemente no chão. Depois pegou outra saca e repetiu o movimento.

Observando-a, Dylan ficou tocado pelo ritmo fácil de seus movimentos, pela graça natural inerente em cada torção e em cada virada. Ela não parecia esperar que ele a ajudasse. Nenhuma mulher de suas relações, a começar pelas próprias irmãs e mãe, trabalharia com tanta disposição. Não havia desamparo fingido nem timidez afetada. Mesmo em Framingham, as mulheres sabiam como dissimular ser o sexo frágil. Pelo jeito isso não interessava à srta. Winslow.

Uma saca de feijões secos caiu no chão da varanda, despertando Dylan de seu devaneio.

— O que os Winslows são seus? — Tios — respondeu Abby sem parar de trabalhar. — E eles sabem que você está aqui? — Sim. Era difícil acreditar nisso, mas ela não parecia uma pessoa propensa a

mentiras. Retirou o cesto de vime do veículo e o colocou na varanda. — O que há aí? — Pãezinhos de batata. — Não são de milho e melaço? — Não. — Por que não? — Você está mal-humorado. O pão de milho é adocicado. — Abby subiu

atrás do coche para retirar três pequenas pipas e dois volumes embrulhados em papel pardo e amarrados com barbante. — Haveria uma briga em seu

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estômago. — Uma briga? — repetiu ele, abanando a cabeça como se tentasse

entender. — Não estou mal-humorado. — Suspeito que seja porque você está sentindo dor. — A luz da lanterna

banhava os traços de Abby com um brilho dourado. Dylan tinha certeza de não se ter denunciado. Abby Winslow o fitou

apenas. Após um momento, saltou com agilidade para a varanda. A bainha de seu vestido ondulou um pouco, revelando a orla franzida de sua anágua e suas botas grandes demais. Ela arrumou depressa a capa impermeável e juntou os pés.

— Essas galochas são suas? — indagou Dylan. Ela sacudiu a cabeça. — Mas são de seu tamanho? — Sim. Ele quase sorriu ante a gravidade de seu tom de voz. Ela ignorava que

ele estava brincando. Como estava de mau humor, isso não o surpreendeu. — Você vai partir agora. — Não era uma pergunta. Não havia inflexão

amigável. — Se quiser. — Quero. Abby olhou os suprimentos que havia descarregado. Não cometeu o erro

de oferecer-se para carregá-los para dentro. Ajeitando o chapéu, cumprimentou-o com uma breve inclinação de cabeça. Subiu outra vez no coche e pegou as rédeas.

— Cuidado, srta. Winslow. — Boa noite, sr. Kincannon. — Ela se preparou para soltar o breque. — Espere um minuto. — Ele deu um passo com cuidado para frente e

conseguiu não estremecer. — Como sabia que eu não iria à cidade amanhã para pegar esses suprimentos?

— Amanhã o desfiladeiro vai estar fechado. Seria difícil viajar pelo caminho alternativo. — Abby hesitou, incerta se devia dizer mais. Provavelmente, já havia falado além do que devia.

— Difícil de viajar, por quê? — Por causa de seu ferimento. — Meu ferimento? — Seu pé direito. — Como sabe disso? — perguntou Dylan, engolindo em seco. — Você não se apoiou nele. — Até um momento atrás eu não me havia mexido! — É curioso, não acha? Você saiu para confrontar um invasor e não deu

um passo sequer fora da porta. Não me ajudou a descarregar e nem saiu do caminho para me deixar colocar seus suprimentos dentro da cabana. — Embora Abby falasse com alguma segurança, acabou ficando um pouco ofegante. E acrescentou outra observação: — Desde que abaixou seu rifle, ficou se apoiando nele.

— Então não foi uma premonição? — Dylan franziu a testa. — Premonição? — repetiu Abby. — Intuição? — É o que você ouviu contar a meu respeito? Era uma das coisas que lhe tinham contado. Dylan se sentiu tolo sendo

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confrontado por Abby Winslow tão diretamente. — Disseram que você tem um lobo aqui — contou Abby. — Várias

pessoas dizem que você é um lobo. Idéias peculiares se propagam com facilidade em Dover Falls.

— E é por isso que gosto daqui, de Sperry Gap — disse ele, acreditando em tudo o que ela dissera.

— Sozinho. — Sim. — Ele não pretendia se desculpar por isso. Viu-a levantar as

rédeas. — Só mais uma coisa, sita. Winslow. — Como sabe que o desfiladeiro vai ficar fechado amanhã?

— Oh. Isso foi uma premonição. — O sorriso de Abby era radiante. Dylan estremeceu, quase perdendo o equilíbrio. Antes que pudesse

chamá-la, ela já havia soltado o breque e estalado as rédeas. Abanando a cabeça, confuso, até um pouco encantado, Dylan Kincannon a observou partir.

A primeira indicação de que havia algo errado foi a inquietação de Ulysses. No início, Dylan supôs que isso se devia ao fato do cão sentir falta de Abby Winslow ou de seus biscoitos ou talvez de ambos. O cão jamais se afeiçoara tão depressa a um estranho. Ele chamou Ulysses e afagou-lhe as orelhas. Em vez de se deitar, Ulysses ia e voltava pela sala, inquieto, e em seguida ganiu longamente.

Quando o cão começou a ir da cadeira para a janela e voltar, inúmeras vezes, Dylan resolveu olhar para fora. A neve estava caindo mais pesada do que antes e os poucos raios do luar apenas iluminavam uma cortina impenetrável.

— Não está nada bom, menino. Não enxergo nada. Então Dylan sentiu. O chão começou a rolar sob seus pés e ele vibrou

com a força. As paredes da cabana oscilaram com estrépito, enquanto a estrutura estremecia. Panelas penduradas balançavam em suas alças. No fogão, a concha caiu dentro da panela. A escada para o sótão saiu do lugar. Uma vela ficou inclinada sobre o castiçal. O quadro acima da lareira de pedra caiu sobre o consolo.

Terminou em alguns segundos. Dylan afastou-se da janela, examinou a cabana, depois olhou para Ulysses. Praguejando baixinho, passou a mão pelos cabelos escuros.

— Você sabia o que ia acontecer, não é? Ulysses foi direto para a porta e começou a dar patadas na madeira. — Acho que sabia. Vou pegar meu casaco. Mesmo tomando muito cuidado, Dylan sentia o pé e o tornozelo

latejando ao sair. O ar frio o fez esquecer da dor por um momento, mas ela voltou redobrada enquanto ele encilhava Pedro. Ulysses só fazia perturbar e o cavalo estava inquieto quando Dylan montou-o muito tenso.

Segurando uma lanterna numa das mãos e as rédeas na outra, Dylan partiu para o desfiladeiro. Ulysses acompanhou-o saltando à frente. Dylan não tentou mantê-lo próximo. Ulysses parecia saber tanto a direção como a urgência de sua missão, mas não estava disposto a abandonar seu dono.

Às vezes, os pinheiros e outras árvores protegiam Dylan e Fedro da neve caindo pesadamente. De vez em quando se avistava a lua cheia. Dava para entrever apenas uma claridade atrás das nuvens espessas. Fedro continuava na trilha, embora o caminho não estivesse mais claramente marcado. Dylan

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segurava a lanterna erguida para seu próprio uso, não para benefício da montaria. Mesmo olhando com muita atenção, era difícil distinguir as marcas do veículo de Abby Winslow. Ele não queria pensar na possibilidade delas desaparecerem por completo.

Isso não chegou a acontecer. Ulysses a encontrou primeiro e passou a latir excitado, correndo de um lado para outro para garantir que Fedro o seguiria.

Dylan avistou o coche parado cerca de vinte metros antes da parede de neve e pedras. Por causa de um eixo quebrado e de duas rodas espatifadas, o veículo estava inclinado num ângulo de quarenta e cinco graus. Uma enorme pedra estava ao lado do coche, e fragmentos das rodas estavam espalhados ao redor.

Dylan pensou que Abby havia morrido, atingida por detritos ou talvez por uma pancada da mesma pedra que destruíra o pequeno coche. Ela não estava deitada de bruços na neve, a alguns metros de distância do veículo ou congelada para sempre com um ricto de dor no rosto indicando o último suspiro.

Nada disso. Ela estava apenas dormindo. Abby Winslow havia sobrevivido à avalanche que abalara a fundação da

cabana, a oito quilômetros de distância, e agora corria o perigo de ficar congelada até a morte. Ela havia improvisado um abrigo razoável no lugar protegido do coche inclinado, mas exagerara em relação à capacidade do encerado de protegê-la contra o frio. O pano que protegera os suprimentos servia de forro e coberta para Abby. Ela estava deitada encolhida, com o queixo e os joelhos próximos ao peito. Parecia pequena e vulnerável na sombra lançada pelo veículo contra a luz da lanterna.

Ulysses atirou-se no chão ao lado de Abby, aquecendo-lhe o corpo com seu calor. Dylan fez Fedro se aproximar o máximo possível antes de desmontar. Colocou a mão sobre o ombro de Abby e a cutucou de leve.

— Sita. Winslow? — Ela se mexeu, mas não abriu os olhos. Ele deu-lhe um tapinha na face fria com os dedos indicador e médio. — Srta. Winslow?

Como um gatinho à procura de carícias, ela se mexeu, levantando o rosto e aninhando a face na palma da mão.

Dylan tocou-a outra vez, no ombro. Cutucou-a com mais insistência que antes. Desta vez ela abriu os olhos, levantou o queixo acima do oleado e deu-lhe um sorriso sonolento.

— Então, veio à minha procura. — Outra premonição? — Não — negou Abby com um gesto de cabeça. — Esperança. Esperança era algo que Dylan não se permitia ter havia tanto tempo que

não lhe ocorrera que ele próprio a daria a outros. Apoiou a lanterna no chão e o círculo de luz se espalhou sobre a neve.

— Você devia ter sentido esperança por alguém melhor do que eu — disse ríspido. — Consegue se levantar?

— Sim. É claro — concordou Abby mais alerta do que momentos antes. Endireitou-se sozinha e afastou o oleado. Mordeu os lábios tentando

impedir que ele ouvisse seus dentes batendo de frio. Funcionou, embora o resto de seu corpo estremecesse. Ao lado dela, Dylan Kincannon resmungou desaprovador, percebendo sua tentativa.

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Abby afastou o resto do pano e se ajoelhou. O frio fazia seus ossos doerem e tornava seus movimentos muito lentos. Dylan apoiou-se na beira do coche para oferecer a mão livre a Abby.

— Segure — disse ele ao vê-la hesitar. — Isso eu posso fazer. Receosa de ofendê-lo, Abby deu-lhe a mão enluvada. Foi levantada com

tanta rapidez e facilidade que receou cair em seus braços. Ela conseguiu deter-se um pouco antes disso acontecer, ficando em pé muito perto dele. Quando Dylan soltou sua mão, Abby se abraçou, apesar do calor peculiar que começava a se irradiar em seu corpo.

— Consegue montar? Abby anuiu. Antes ela havia desatrelado a égua do coche, mas o animal

continuava por perto. — Sally ficou arisca depois do deslizamento. Mas vai me deixar montar. Dylan aceitou esta explicação sem comentário. Havia se perguntado por

que ela não tentara voltar para sua cabana. Apanhou a lanterna e a levantou para enxergar melhor a pedra e a neve que bloqueavam o desfiladeiro. Estava claro por que Abby não havia tentado atravessá-lo. Havia um amontoado de pedras enormes e fendas cheias de neve. Ainda havia movimento nas paredes. Surgiu uma fissura e as rochas soltas rolaram para baixo numa chuva de rangidos até aterrissarem no chão, não muito longe de onde ele e Abby estavam.

— Não foi você que provocou isso, foi? — perguntou, lançando um olhar de suspeita na direção de Abby.

— Essas últimas pedras? — indagou ela apertando os lábios ante o absurdo da pergunta. — Ou você está se referindo a toda a encosta?

Dylan percebeu o sarcasmo na voz da moça. Abaixou a lanterna e a fitou pensativo.

— Você me contou que esperava que isso acontecesse. — Sim. Amanhã… — Já é amanhã — corrigiu Dylan. — Oh! — E aqui está você. — Sim… estou. Mas eu esperava já estar do outro lado. — Abby sentiu

Ulysses esfregar-se em sua perna. Inclinou-se e afagou a cabeça do animal. — Seu cão não tem medo de mim.

A observação fez Dylan piscar, pois era clara a alusão de que o mesmo não se aplicava a ele. Isso o irritou. Estava a ponto de garantir que não sentia nenhum medo, mas ela o fitou e, apesar de seu ar inocente, era claro que ela sabia muito mais do que ele. Dylan desistiu de falar. Em vez disso, virou-se e montou em Fedro, contente por Abby não poder perceber a expressão de dor em seu rosto.

Abby pegou o encerado e o dobrou com cuidado para utilizá-lo como forro sobre o dorso de sua égua malhada. Não esperou nem pediu ajuda para montar, mas acalmou Sally afagando seu pescoço e sussurrando palavras tranqüilizadoras em seu ouvido. Segurando os arreios, levou a égua para o coche e usou uma das rodas quebradas para ajudá-la a ficar mais alta. Depois de montar, espicaçou Sally para frente.

Dylan observou tudo sem dizer palavra. Pretendia ajudá-la a montar em Fedro depois de ele próprio se acomodar. Nesse momento, o autodomínio da

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moça o fez hesitar. Que tipo de mulher se permitia sentir esperança de que ele viria socorrê-la, mas não esperava nada mais dele?

Assim que Abby se aproximou, Dylan puxou as rédeas e Fedro avançou, escolhendo seu caminho ao redor das rochas espalhadas. Cavalgaram sem falar, mesmo depois de um segundo enorme ruído fazer a terra estremecer. Dylan imaginou o abrigo de Abby no pequeno coche sendo esmagado sob o peso das rochas e da neve. Quando a olhou de relance, sua palidez deixava claro que ela estava imaginando a mesma coisa.

Ao chegarem à cabana, Abby passou na frente de Fedro e pegou a lanterna de Dylan. Ela o observou desmontar penosamente, mas em silêncio.

— Vou cuidar dos cavalos. Antes que Dylan pudesse refutar, Abby apeou de Sally, colocou a

lanterna na escada e levou os dois cavalos na direção do estábulo. Dylan só entrou quando ela retornou. Abriu a porta e esperou que ela

entrasse na cabana antes de fazer o mesmo. — Dê-me seu casaco — pediu. — Depois vá se aquecer junto ao fogo. Abby tirou a capa e as luvas e as estendeu para ele. Já havia dado um

passo em direção à lareira quando ele tirou o chapéu de aba larga de sua cabeça. Sua trança espessa se soltou e os cabelos caíram sobre as costas. Abby alisou a coroa dos cabelos louro-avermelhado antes de afastar as mechas soltas que haviam caído sobre seu rosto.

Consciente do olhar de Dylan, ela se aproximou rápida da lareira e estendeu as mãos. Sentiu as pontas dos dedos formigarem ao se aquecerem. Ulysses aproximou-se dela, caindo no tapete com um suspiro de contentamento.

— Ele fez seu trabalho — comentou Dylan secamente. — E está contente.

Terminou de tirar o casaco e o pendurou. Sua bengala estava no chão. Abaixou-se para apanhá-la e avaliou suas chances de chegar na cadeira de balanço sem uma queda vergonhosa.

— Posso ajudar? Dylan estava distraído e demorou a registrar as palavras da pergunta.

Assentiu e estendeu o braço, levemente inclinado, para se ajustar ao redor dos delicados ombros. Abby parecia frágil, mas era resistente e o amparou sem dificuldade.

Depois de mancar até a cadeira, Dylan deixou-se afundar agradecido no assento gasto e se recostou. Abby ajoelhou-se e empurrou o banquinho forrado sob o pé machucado. Quando ela o fitou, era visível a expressão de dor em seu rosto.

— Eu devia cortar sua bota — comentou ela. — Nunca. A resposta não fora inesperada. Ele estava usando um par de botas de

couro de qualidade, muito confortáveis. Gotas de gelo derretido ainda estavam no calçado.

— Muito bem. Vai tirar sozinho ou prefere que eu as tire? — Farei isso. — Dylan não queria tirá-las de modo algum. Pelo jeito essa

não era uma escolha que ela ia dar-lhe. Abby sentou-se e observou-o retirar a bota bem devagar. Declinou

qualquer ajuda, e Abby entendeu a razão. Ele não queria aumentar a pressão

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contra o calcanhar e o tornozelo mais do que o mínimo necessário e quando ela viu o tamanho da inchação, entendeu. Pegando o calcanhar com a palma da mão, ela o abaixou com delicadeza de volta ao banco. Depois enrolou para cima a bainha da calça e removeu a meia.

Abby esperava uma ferida, mas o que viu foi mais do que a lívida descoloração de uma torcedura. Havia cortes profundos na pele, acima do tornozelo e ao longo do lado do pé. A remoção da meia havia reaberto algumas feridas, que estavam sangrando. O espaço entre os cortes, sua forma e tamanho, contavam a Abby o que havia acontecido com tanta clareza como se Dylan tivesse explicado.

Ela olhou para a bota que ele havia tirado. Não havia nenhum arranhão no couro polido.

— Você não estava usando essa bota quando pisou na armadilha — constatou.

— Infelizmente não — contou ele. — Teria doído muito menos. Eu estava com botas de camurça.

— Então é de se maravilhar que você ainda tenha um pé — surpreendeu-se Abby.

Dylan olhou para o pé ferido. Embora estivesse apoiado sobre o banco, Abby ainda o segurava entre as mãos. Latejava com força.

— Uma maravilha — escarneceu ele. Olhou para Abby e enfrentou o olhar questionador da moça. — Diga-me, srta. Winslow, já assistiu uma amputação?

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Capítulo II Abby fitou Dylan por um longo momento, depois olhou para seu pé. A

pergunta não era de humor negro. Estava, de fato, pensando em amputar uma parte da perna. Abby apertou os lábios enquanto pensava nas conseqüências de tal perda.

Desde a guerra, ela havia visto vários homens perderem um braço ou uma perna. O sr. Malley não tinha nada abaixo do joelho direito e Brenton Harris, que possuía um empório, perdera um braço na altura do ombro. Homens atravessavam Dover Falls procurando trabalho, apoiados numa muleta ou usando uma tipóia e esforçando-se para provar que ainda podiam ser úteis. Durante algum tempo, seu tio havia empregado um jovem cuja mão havia sido esmagada por uma bola de chumbo, na batalha de Cross Keys, em 1862, mas ele havia se mudado quando Abby recusara sua proposta de casamento pela terceira vez.

Alguns homens haviam mantido a saúde mental após uma mutilação. Haviam feito as pazes com a perda e seguiam em frente, porque a vida, em sua opinião, significava viver e nenhuma outra escolha lhes restava. Outros homens se transformavam. A mudança acontecia primeiro em suas mentes e depois no modo como eram considerados. Prosseguiam como alvo de piedade, pois não faziam objeção ao fato de serem dignos de pena. Finalmente, havia aqueles que ficavam presos entre a amargura, a raiva e, às vezes, o ódio e permaneciam entre os vivos como almas penadas.

Abby se perguntou que tipo de homem era Dylan Kincannon, pois isso importava para saber que tipo de homem se tornaria. Ficou surpresa quando sugeriu a amputação. Ela o havia imaginado tão teimoso que jamais lhe ocorreria colocar-se sob a serra de um cirurgião.

— Nunca ajudei numa cirurgia — contou ela. — Nunca? Eu achava que os soldados confederados recrutavam a

maioria dos habitantes de Dover Falls para ajudar os feridos. Houve luta por aqui, não foi? Em Cross Keys?

— Sim e em Port Republic — disse ela. — Nossos homens e rapazes lutaram e nossas mulheres e moças ajudaram, mas auxiliar feridos não é o mesmo que participar de uma amputação. Não recebi permissão para entrar na tenda de cirurgia. — Abby hesitou, incerta se seria prudente discordar dele. No entanto, algumas coisas deviam ser ditas, pois se relacionavam a orgulho próprio. — Não fomos recrutadas. Fomos voluntárias.

Dylan a olhou intrigado. Apreciou o fato de ela não se ter esquivado a sua pergunta.

— Peço desculpas — pediu ele afinal. — Você está certa. Nunca faltaram voluntárias. — Mesmo no fim, lembrou-se, elas vinham de todas as partes do Sul, algumas com apenas onze e doze anos. Chegavam, apesar de seus pais e irmãos terem morrido a sua frente. Algumas vezes vinham porque os pais e irmãos não haviam retornado.

Havia tristeza no olhar e na voz dele e parou de falar. — Você assistiu a muitos combates? — indagou ela. — Não, não do modo como você imagina — respondeu após uma pausa. Abby o olhou paciente, esperando uma explicação melhor.

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— Vi as conseqüências — contou ele afinal. — Em Buli Run. Em Antietam. Em Chancellorsville. — Abby franziu a testa, sem entender. Seus olhos violáceos se escureceram por um momento. Depois ficaram claros outra vez quando ela entendeu.

— Você é médico — disse Abby. — Tempo verbal errado. Eu era um médico. Abby fitou a perna machucada, depois olhou para Dylan. — Um

cirurgião? — perguntou. — Quando eu precisava ser. — Ele começou a afastar o pé do ninho

macio das palmas das mãos da moça, detendo-se ao sentir seus dedos apertarem-lhe o calcanhar e o tornozelo. — Srta. Winslow, o pé ainda me pertence. Gostaria que o soltasse.

— Quer dizer que vai cortá-lo. — Nada mudou no aperto de Abby. — Não exatamente agora. — Ele sorriu sardônico. — Você não pode. — Abby não compartilhou seu humor negro. — Provavelmente não. Ao menos não com facilidade. É por isso que você

talvez tenha de fazer isso. — Ele não pronunciou essas palavras para fazê-la soltar o pé, mas foi esse o efeito. Liberto das mãos dela, Dylan apoiou o pé com cautela no chão e começou a se erguer. A dor cortava sua respiração.

— Sente-se — mandou Abby. Ele atendeu à ordem. Abby pegou o calcanhar outra vez e o apoiou no banco. — Tem algum compromisso urgente, sr. Kincannon? O tom de leve sarcasmo de Abby quase foi perdido por Dylan, que estava

sentindo agulhadas no pé e ao longo da perna. — O prazer de uma dança consigo? — Mal acabou de falar, percebeu que

Abby ficara aborrecida. Ele resolveu desfazer o mal-estar que provocara. — Eu ia colocar mais lenha no fogo, sita. Winslow. Está tremendo.

Abby não se havia dado conta do leve tremor nas mãos. Sua mandíbula doía pelo esforço de impedir os dentes de baterem e os ombros estavam tensos pelo mesmo esforço.

— Vou pegar a lenha — avisou ela. Levantando-se com o máximo de dignidade possível, foi até à lareira e colocou dois troncos sobre as brasas incandescentes. Ficou junto ao calor até sentir a pele dos tornozelos e joelhos aquecida. Quando sentiu o calor finalmente penetrar em seu corpo, ela se virou. Dylan Kincannon a observava. Teria sido razoável fingir que o enrubescimento em sua face tinha algo a ver com o fogo, mas Abby suspeitava ser difícil enganar esse homem.

— Está me encarando, sr. Kincannon. — Sim, estou — concordou ele, sorrindo pela franqueza da jovem. Dylan não se desculpou nem se desconcertou por isso. Abby ficou ainda

mais corada. Estava acostumada a ser olhada por outras pessoas, mas sempre de modo camuflado e Dylan Kincannon a estava fitando abertamente. Os olhares de relance que a seguiam em Dover Falls costumavam ser de esguelha. As pessoas não eram tão impolidas a ponto de encararem abertamente. Eles a observavam esperando que se comportasse de modo peculiar e faziam isso com o canto dos olhos. Ela fingia não perceber os olhares sorrateiros. Na situação em que se encontrava nesse momento era difícil agir desse modo.

— Talvez não lhe tenham contado que é indelicado encarar alguém —

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comentou ela. — Ensinaram-me. Abby sentiu-se incerta. Não sabia o que responder. Fitou-o por sua vez. O leve sorriso brincando na boca de Dylan se aprofundou e, por um

momento, a sombra de dor desapareceu de seus traços. — Sorte sua, srta. Winslow. Embaraçada, mas, ao mesmo tempo, lisonjeada, Abby ficou contente

pela aproximação de Ulysses, que rolou de costas e mostrou a barriga. Ela se inclinou e afagou o pastor alemão.

— Vai me permitir cuidar de seus ferimentos, sr. Kincannon? — Qual sua experiência nessa área? — perguntou ele, embora sua

vontade fosse negar o pedido. — Não recebi formação especial. — Não é o que perguntei. — Sei alguma coisa sobre cura. Era evidente para Dylan que havia muito mais por trás de suas palavras.

Preferiria que ela parasse de brincar com Ulysses e o olhasse outra vez. Por sua expressão poderia avaliar o que ela estava pensando.

— Tem em mente salvar minha perna, srta. Winslow? — Sim se for por onde devo começar — respondeu ela fitando-o. O aroma da massa de pão despertou Dylan de seu sonho. Sentiu as

cobertas serem afastadas devagar de seu rosto. Virou-se para se afastar da língua úmida e áspera em sua face.

— Ulysses! — Dylan tocou o focinho frio do cão. — Saia já daí. O pastor sentou-se e colocou as patas dianteiras sobre o peito de Dylan,

prendendo seu dono na cama dobrável. Dylan ouviu a risada melodiosa vinda da cozinha. De início, I o som o

desorientou, como o aroma quente do pão; depois se lembrou de que ambos estavam relacionados. Ele olhou para a janela. Ainda não havia clareado de todo, mas a aurora estava surgindo entre os galhos das árvores.

— É uma madrugadora, sita. Winslow. Abby passou a mão enfarinhada sobre seu avental e contornou o canto

da mesa. — Pode me chamar de Abby. Não há mais razão para formalidades. — Muito bem… Abby. — Dylan afastou Ulysses de seu peito e virou-se

de lado. Apoiou-se sobre um cotovelo e olhou sua hóspede com os olhos semicerrados. Acordado, ele sentia o latejamento lento de seu ferimento. Doía um pouco menos do que antes de ter adormecido. Não mantinha nenhuma expectativa de encerrar o dia com menos dor do que em seu início.

— Achou a cama confortável? — indagou ele. — Sim. Obrigada. — Abby lançou um olhar para o sótão. — Foi muito

gentil em cedê-la. O sorriso de Dylan parecia mais uma careta. Não havia feito a oferta por

cavalheirismo. Subir ao sótão era difícil em sua condição e Abby sabia disso. Seu agradecimento parecia enganoso.

— Se prefere acreditar que foi galanteria, não faço nenhuma objeção — comentou ele.

Abby suspirou. Pelo jeito Dylan não estava de bom humor esta manhã. Não valia a pena discutir.

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— Posso? — Abby atravessou o aposento e ajoelhou-se aos pés de Dylan.

Ele deu de ombros. Considerando a resposta como um sim, Abby dobrou as cobertas para

trás. A bandagem que ela havia aplicado na noite anterior ainda parecia em ordem. Não havia evidência dos ferimentos terem vazado durante o sono e nenhum odor de putrefação. Desdobrou a faixa de tecido com cuidado, depois examinou a área lesada. Alguns dos cortes menores estavam apenas rosados nas bordas onde a pele havia começado a fechar. Abby levantou-se e pegou uma bacia com água fresca.

— Pode continuar deitado — declarou ela. — Sinto-me desajeitada quando você olha.

Tanto quanto ele se lembrava, na noite anterior Abby não fizera um único gesto que não fosse gracioso. Todos os seus atos haviam sido executados com propriedade. Era sóbria e prática, tão gentil ou firme quanto necessário. Mulheres com seus talentos eram poucas nos hospitais do exército. Na área de batalha, praticamente não existiam.

Dylan deitou-se, pois era uma posição mais confortável. Antes que ele apoiasse a cabeça no travesseiro Abby sorriu. Devia estar achando que se deitara atendendo a seu pedido. Não era nada disso. Mas resolvera não falar nada, pois lhe agradava ver o sorriso da moça.

Dylan fechou os olhos. Ela levantou seu pé e o colocou em seu colo e começou a limpar os ferimentos. Vários deveriam ter sido costurados e ela não entendia por que ele não o fizera. Com certeza devia possuir habilidade para tanto.

— Você me deixaria fechar dois dos cortes mais profundos? — Não me importo com a cicatrização — negou ele, abanando a cabeça. Pelo jeito Dylan tampouco se importava de perder uma boa porção de

sua perna. Ela começou a secar o pé. — Você fez muitas amputações no campo de combate? — Fiz a parte que me cabia. Tanto quanto os outros que faziam

amputações. — Dylan cerrou os dentes. Continuou de olhos fechados. — Então salvou muitas vidas. — É um modo de ver. Abby sentiu que o assunto estava encerrado. Terminou de secar o pé e

aplicou o ungüento de casca de salgueiro que havia trazido de casa. Ele estremeceu ao sentir o medicamento frio tocar sua pele, mas depois relaxou. Ela continuou seu trabalho, apreciando o fato de Dylan estar cooperando mais esta manhã do que na noite anterior. Devia ter ficado tranqüilo por compreender que ela não lhe faria mal algum.

— Parece que não está fazendo efeito — comentou ele. — Você precisa optar por uma das duas coisas — retrucou Abby. — Não entendi o que você está dizendo. Abby se sentou e desenrolou uma bandagem nova. — Quero dizer que você precisa decidir se tem mais medo de morrer em

minhas mãos ou de viver graças a elas. Ontem à noite não queria que eu aplicasse o ungüento e esta manhã está se queixando de que ele não o ajudou.

— Você deve achar que não sou razoável. Abby reprimiu a vontade de dar risada. Aplicou a nova bandagem,

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amarrou-a com delicadeza, depois se levantou. — Quer que eu o ajude a se erguer? Dylan abriu os olhos e avistou a mão estendida da jovem. — Pode deixar, eu consigo. Ela anuiu e afastou a mão. Virando-se de costas para ele, pegou a bacia

e o ungüento e foi para a cozinha, deixando-o fazer o esforço por conta própria. Lavou as mãos e voltou sua atenção ao pão. Removeu a toalha xadrez sobre a bacia, pegou a massa e a trabalhou sobre a tábua enfarinhada. Quando Dylan passou capengando a seu lado, a caminho do toalete, ela não se distraiu de sua tarefa, mas sorriu, pois Ulysses trotava atrás dele. Quando retornaram, ela havia eliminado as bolhas de ar da massa e a estava colocando próxima à lareira para crescer outra vez.

— Café? — ofereceu ela. — Sim, está no… — Sei — interrompeu ela. Vi quando estava pegando o que precisava

para fazer o pão. — Dylan continuava perto da mesa. — Pode se sentar. Sua perna deve ficar levantada — acrescentou ela.

— Só voltei para cá para pegar minhas botas. Preciso ir buscar mais lenha.

— Farei isso. — De modo algum. — Farei isso. — Abby pegou seu casaco do cabideiro junto à porta e se

apressou para fora. Ouviu Dylan chamá-la, mas o ignorou. Ao lado da cabana havia uma pilha de lenha e ela pegou uma braçada. Dylan a aguardava de pé, junto à porta, com expressão ameaçadora.

— Se pretende abusar de minha hospitalidade, então pode partir e encontre seu caminho ao redor ou através daquela maldita avalanche, pois nesses termos não é bem-vinda aqui. — Ele pronunciou essas palavras em tom seco e enérgico, depois pegou a pilha de madeira dos braços dela. Andou até a lareira com dificuldade, mas conseguiu chegar.

Abby entrou, tirou o casaco e foi depressa para a cozinha. Gostaria de ter outra porção de massa para sovar. Teria sido uma atividade muito gratificante. Em vez disso, precisou se ocupar em preparar o café e cortar fatias dos pães de batata que havia assado no dia anterior. Passou manteiga derretida sobre o pão aquecido e depois um pouco da geléia de amoras feita pela tia.

Quando o café ficou pronto, encheu duas xícaras e colocou-as sobre a mesa junto com o pão. Não convidou Dylan para se juntar a ela, mas sentou-se e imaginou que ele ia acabar chegando à idéia de se aproximar da mesa por conta própria.

Ulysses chegou primeiro, acomodando-se embaixo da mesa, a seus pés. Abby empurrou as pontas de seus sapatos para baixo da barriga peluda para se aquecer. Sentiu-se contente até Dylan Kincannon chegar e sentar-se. Sua satisfação deu lugar a embaraço.

— Este café está bom — concedeu ele de má vontade. Abby aceitou o elogio com frieza.

Olhou para ela sem tentar disfarçar, mas Abby continuou a ignorá-lo. A seu modo, estava curando as próprias feridas e ele ficou impressionado com sua sensibilidade.

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— Quando eu reagir com exagero — disse ele em tom casual — você deve se defender. Ela refletiu sobre o conselho, mas sua expressão e seus olhos violáceos continuaram abaixados e impenetráveis. Dylan abaixou a xícara de café e pegou uma fatia de pão quente. Mordeu-a e logo percebeu os sabores distintos da manteiga e da geléia, a sugestão de batatas, melaço, cominho e… e algo mais que ele não sabia como definir.

— Um sabor dos céus. — Abby aceitou o elogio com tranqüilidade. Devia estar acostumada a esse tipo de reconhecimento. — Já lhe contei o quanto gostei do pão de milho?

— Não. — respondeu Abby. — Nunca me contou. — Então fui negligente. — Você voltou ao armazém de meu tio — comentou ela dando de

ombros de leve. — Eu precisava de suprimentos. — Dylan percebeu os cantos dos lábios

de Abby se moverem para cima, como se quisesse sorrir. Tinha segredos, essa Abby Winslow. — Esperava que eu voltasse, não é?

— Você comeu o pão. A conexão entre uma coisa e a outra não era tão clara na mente de

Dylan como na de Abby. No entanto, ele deixou passar sem comentário. Acabou de comer o pão e pegou outra fatia.

— Precisamos conversar sobre como vamos fazer para você voltar a Dover Falls. Provavelmente a cidade está organizando um grupo de busca por você.

— Não, eles não estão. — Outra premonição? — Bom senso. Disse a meu tio que eu voltaria em segurança. — Espera que ele aceite isso depois de não ter retomado ontem à noite? — É claro. Ele vai precisar convencer tia Geórgia e talvez alguns outros

que queiram montar uma busca, mas vai conseguir. Poderiam fazer pouca coisa. A neve vai dificultar qualquer viagem e o deslizamento das rochas torna o desfiladeiro intransitável. Meu tio não permitirá que ninguém arrisque sua vida, pois sabe que estou em segurança deste lado.

— Extraordinária. — Estava claro que Abby sabia como acabar com o entusiasmo de alguém.

— Hum? — murmurou ela. — Eu estava pensando que você é extraordinária — explicou ele que

sequer se havia dado conta de ter falado em voz alta. Abby ficou em silêncio por um momento, pensativa. — É melhor ou pior do que ser peculiar? Ele quase engasgou. Para se prevenir, acabou de engolir o pão e tomou

um gole de café. — Acho que deve ser melhor — disse ele afinal. — Embora tudo dependa

da perspectiva de quem ouve. Há coisas piores do que ser peculiar. — Oh, sei disso. Na verdade não me importo. Acho até que há algumas

vantagens. As pessoas esperam somente que eu faça algo estranho de vez em quando. Pelo jeito sou ótima nisso. A tia Geórgia diz que serei a excêntrica da cidade se não mudar meu jeito de ser. — Abby olhou Dylan com franqueza. — No entanto, ela não mencionou isso desde que você veio para Dover Falls.

— E isso me qualifica para a posição de excêntrico da cidade? —

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perguntou Dylan brusco. — Não tenho certeza — comentou Abby pensando com seriedade por

um momento. — Talvez seja apenas por você ser um ianque. — Isso é apenas um problema de geografia. — Você é reservado. — Sim. — Ele fez uma pequena pausa. — Embora, pelo jeito, eu esteja

mudando. — As pessoas dizem que é assim porque você matou sua esposa. —

Abby corou e abaixou os olhos para o prato. Dylan não havia percebido o latejamento de seu pé desde que começara

a comer o delicioso pão de Abby. Seu prato estava vazio e lamentou isso, pois a dor na região inferior da perna tornou-se agonia pura.

— E eles contam como eu a matei? — Estrangulamento. Resmungando baixinho, Dylan usou seu pé sadio para afastar a cadeira

da mesa. Levantou-se, depois saiu mancando em direção à cadeira de balanço junto ao fogo e sentou-se. Logo levantou o pé ferido e o colocou sobre o banquinho.

Abby ergueu-se, encheu outra xícara de café para Dylan e a levou para ele.

— Alguns dizem que você a empurrou do alto da escada de sua casa em Beacon Hill.

— Entendo. E eu fiz isto porque…? — Você queria o dinheiro dela. — Então ela era rica. — E o que dizem. — Achei que seria porque estava me traindo. — Não — comentou Abby contente. — Foi porque tinha dinheiro. — Ela

voltou à mesa e começou a limpá-la. — Mas essa história já foi abandonada por outra.

— É mesmo? — indagou Dylan secamente. — Agora falam sobre seu lobo. Ulysses estava sentado sob a mesa. A cabeça estava apoiada nas patas e

seus olhos estavam fechados. — Esse lobo? — Dylan apontou para o cão. — Suponho que sim — concordou Abby. — O reverendo Pritchard, a sita.

Henry e o sr. Imans, todos disseram que foram atacados por um lobo. As pessoas não conseguem decidir se ele lhe pertence ou se é você o lobo.

— E essa mesma gente diz que você é peculiar. — Dylan abanou a cabeça desalentado.

— Sim. — É difícil saber qual atitude tomar diante disso. — Não é mesmo? — Ela sorriu. Dylan guardou a lembrança dos lábios de Abby por muito tempo depois

que ela se afastou. Sua boca era bela. Como não havia percebido isso logo de início? Quando ele a avistara em pé, nos fundos do armazém do tio, tentando criar coragem para se aproximar, os olhos dela haviam chamado sua atenção. Ora tímidos, ora diretos, ela tentara observá-lo sem ser percebida. Não fora possível. Se Abby não tivesse vencido a timidez, ele falaria com ela para se

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certificar de que era real. Abby Winslow tinha um pouco de uma fada mágica. É o que a mãe dele

teria afirmado e ele era propenso a acreditar nela em relação a assuntos sobrenaturais. Sabia tudo sobre duendes e os danos que podiam provocar. Dylan crescera ouvindo os contos e expandindo-os, às vezes, para benefício das irmãs, quando a mãe se cansava de contar. Ele tinha doze anos quando confrontara a mãe sobre a crença em contos de fadas, mas, ao procurar o pai, este confirmara tudo o que a mãe dissera.

— Você está sorrindo — notou Abby. — Estava? — Dylan piscou. — Hum. Abby voltou a seu trabalho. Enquanto ele estivera devaneando, primeiro

concentrado na forma de sua boca e depois em todo o resto, ela havia buscado água para lavar a louça e agora estava guardando as canecas e os pratos na prateleira acima do fogão.

— Adormeci? — Só um pouquinho — confirmou ela. — Desculpe-me. — Ele não se lembrava de nada. — Não há razão para se desculpar. O sono cura. Quantas vezes ele havia

dito essas palavras a seus pacientes? Sempre estivera tão convencido disso que prescrevia láudano para

auxiliá-los a dormir. — O que você colocou em meu café? Abby apoiou devagar a tigela com a massa crescida sobre a mesa. — Por que você acha… — Ela parou de falar porque Dylan a olhava

intrigado e com uma expressão cética. Estava claro que ele esperava extorquir-lhe a verdade. Ela ia lhe dar o que queria, decidiu, mas não esperava que ele acreditasse. — Nada, não coloquei nada em seu café.

Ele continuou franzindo a testa. Abby ficou desapontada com essa reação e resolveu mentir. — Um pouquinho de papoula esmagada. — Por quê? — Dylan sentiu-se relaxar. Abby pegou a massa e começou a separá-la para assar o pão. — Você não dormiu bem ontem à noite. Eu o ouvi se virando. Seu

ferimento não vai curar se não descansar. Era tudo verdade, mas não era uma explicação fácil de digerir. — Devia ter-me contado. Abby apenas assentiu. Colocou a massa numa forma de pão untada e a

levou ao forno. Usando o avental como luva, abriu a porta quente e colocou a forma dentro.

Era mais do que competente na cozinha. Sentia-se à vontade. Isso não condizia com a paz de espírito dele.

— Quando acha que vai conseguir voltar a Dover Falls? Abby ignorou a rudez da pergunta e se concentrou apenas no conteúdo.

— Acho que depende. Você quer que eu parta esta tarde ou quando houver o degelo?

Ele olhou para fora da janela. Estava começando a nevar outra vez. — É claro que não espero que você parta hoje. — Então depende.

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— De quê? — De quando houver o degelo. Ele rangeu os dentes. A dor invadira até os dedos dos pés. — Parece que está querendo praguejar, sr. Kincannon. — É a pura verdade. Sorrindo, Abby virou-se e procurou outra tarefa. Dylan olhou o fogo na lareira e observou as chamas se elevarem dos

troncos colocados por último. Colocar a lenha fora a última coisa que Abby havia feito antes de subir a escada para o sótão. Ela estava em cima, preparando-se para dormir na cama dele. Nas últimas noites, vinha pensando nisso. Ela estava dormindo em sua cama. Tinha quase certeza de que conseguiria subir a escada se ela o convidasse. No entanto, não o havia convidado. Não parecia ter consciência de si própria como mulher ou ao menos como uma mulher que ele poderia desejar. Não havia sequer tentado flertar com ele. Os sorrisos ocasionais ou sub-reptícios em sua direção não contavam, embora ele tentasse provocar essas respostas. Dylan achava seu sorriso impressionante.

Abby Winslow era uma raridade. Nos dez dias desde sua chegada inesperada, ele não havia mudado de opinião a esse respeito. O pouco que havia conhecido sobre ela o fazia querer saber mais. Era uma pessoa deixada à própria sorte numa cidade cheia de bisbilhoteiros. Ela estava a par do fato de estar isolada ou de correr o perigo de se tornar a excêntrica da cidade, mas não dava atenção a isso. Até parecia se divertir. A cidade sempre a mantivera afastada, segundo ela lhe havia contado, por causa de quem era. Isso levantava a questão sobre o tipo de pessoa que provocava os mexericos, mas Dylan não perguntou. Dava mais importância a sua própria opinião do que a mantida coletivamente em Dover Falls.

Abby era modesta, educada e paciente em demasia. Mesmo quando ele estava de péssimo humor, não se perturbava. Havia aprendido a defender sua posição e a revidar. Mais importante ainda, sabia reconhecer quando a retirada era a melhor estratégia. Sua capacidade para avaliar a disposição dele, bem como seu estado mental era impressionante.

Ocorreu-lhe que ela tinha algo de feiticeira e, quando lhe contara isso, ela dera risada. Essa era a reação que ele esperava e queria.

Dylan ficou deitado de costas e aninhou a cabeça entre as mãos. Fitou o teto da cabana, mas em sua mente estava no sótão, com Abby, sentado ao pé da cama enquanto ela completava seus rituais para dormir. .

Ele conhecia sua rotina, havia-a memorizado no curso das noites sucessivas. Tirava o vestido e as meias. Imaginava-a colocando tudo com cuidado nas costas da cadeira, verificando se havia manchas ou algo rasgado antes. Ficava em pé, de camisola, abraçando-se contra o frio antes de virar o acolchoado ou afofar o travesseiro. Depois escovava os cabelos e os prendia numa trança. Somente então se deitava na cama.

Será que dormia de lado? Gostava de imaginar que sim. Era mais fácil imaginá-la emaranhada nele nessa posição, os seios pequenos pressionando-lhe as costas, as pernas envolvendo as suas. Talvez ela o enlaçasse com o braço ao redor da cintura ou insinuasse seu joelho entre os joelhos dele. Sua respiração devia ser quente e seus lábios… seus lábios doces.

Dylan inclinou a cabeça para trás para ver o sótão. A luz do candelabro

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estava prestes a se apagar. Ele conhecia toda a sua rotina. Isso deveria fazê-lo sorrir. Mas não fazia.

Então resolveu que ela devia partir. Desde sua chegada Abby estava fazendo algo a ele, não apenas a seu

ferimento, mas com ele. Seria bom compreender melhor, pois conseguiria detê-la nisso. Ele viera à cabana de Tucker Maddox, em Sperry Gap, para ficar sozinho e Abby o estava fazendo acreditar que talvez ele desejasse outra coisa. Abby Winslow o irritava. Ele já lhe contara isso. Em vez de ficar ofendida, ela sorrira e o olhara de lado. Até parecia esperar esse tipo de comentário.

Uma vez ocorreu-lhe que as mudanças que ela produzia tinham algo a ver com o que assava no forno. Fazia pão todos os dias, pequenos filões, em geral, o suficiente apenas para ele comer nas refeições. Algumas vezes era de milho e melaço e o aroma familiar de sua juventude enchia a cabana. Fazia pão de trigo, centeio e canela. Ou de nozes, erva-doce e sementes de girassol. Ele observava tudo o que ela fazia, procurando pelo ingrediente especial, secreto, que tornava seu pão diferente de tudo o que já havia saboreado, mas jamais a vira acrescentar algo de inusitado.

Lembrava-se da primeira manhã em que dormitara após o café. Achara que ela havia colocado algo na bebida, mas agora não tinha mais certeza. Procurara papoula esmagada entre os condimentos que ela usava e não encontrara. Estava claro que Abby havia lhe contado o que esperava ouvir, pois a verdade era mais difícil de ser digerida.

Ele precisava admitir a possibilidade de que Abby não havia colocado nada em seu café para levá-lo a adormecer. O que quer que fosse, havia sido feito ao pão e isso não fazia nenhum sentido. O pão que comera, na primeira manhã, fora trazido para Sperry Gap antes de Abby saber que ele estava ferido.

Se não havia nenhuma explicação plausível, então Abby Winslow devia ser algum tipo de bruxa.

Dylan virou-se de lado de novo, desta vez de costas para o fogo. Fechando os olhos, considerou estar tomando a decisão correta. Ia fazê-la partir.

— Está curando — afirmou Dylan. Ele enfiou a meia de lã de novo e removeu o pé do banco onde Abby o estivera examinando. — Já consigo me apoiar sobre ele.

Abby nada disse. A cor do pé era saudável e até os cortes mais profundos apresentavam cicatrizes começando a fechar. Mas Dylan havia se encolhido quando ela o tocara e esse não era um bom sinal. Será que podia mesmo apoiar seu peso sobre 0 pé ou era apenas o que ele queria fazê-la acreditar?

Dylan levantou-se da cadeira de balanço e ficou em pé. Mudou o peso de uma perna para a outra para provar que conseguia. Abby não observava seu pé, mas prestava atenção em seu rosto, procurando a careta ou o leve estreitamento dos olhos que o denunciariam.

— Vê? — Hum. — Achei que ia ficar mais impressionada. — Hum.

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— De fato, achei que ia dizer alguma coisa. — Hum. — Abby levantou-se e voltou à mesa, onde estava cortando

batatas e cebolas para o ensopado de carne de caça. Ela pegou a faca e retomou o trabalho. Seus movimentos eram calmos e

equilibrados. Era um prazer observar suas mãos se moverem com graça. — Você poderia me ajudar e trazer a carne do abrigo onde está sendo

defumada? — perguntou ela sem parar nem olhar para cima. Era a primeira vez que ela lhe sugeria para fazer algo fora da cabana.

Até então a discussão diária dizia respeito a poupar seu pé ferido. — Tudo bem. — Era algum tipo de teste, mas quando ele estava junto à

porta e se virou, ela não o estava olhando. Continuava concentrada em sua tarefa.

Tão logo ele saiu, Abby foi à janela e observou o progresso de Dylan na varanda até ele sair do alcance de sua vista. Ulysses fez o melhor possível para fazer seu dono tropeçar, enroscando-se em suas pernas e atrapalhando seu caminho. Dylan não deu nenhum passo em falso nem quando Ulysses se prostrou a seus pés e ganiu, querendo brincar. Dylan fez uma bola de neve e a atirou para longe, para Ulysses sair correndo e deixá-lo em paz, pelo menos nos próximos dez metros.

Quando Dylan retornou, Abby estava junto à mesa. Indicou onde ele devia colocar a carne. Seu silêncio o irritou, pois, a seu ver, não havia nenhuma razão para isso.

— Está zangada? Isso a fez levantar a cabeça. A surpresa em sua voz era genuína. — Não, por que acha isso? — Você parece suspeitar de algo. — Oh. Bem, sim. Suspeito mesmo. — Então…? — São coisas diferentes. — Ela franziu a testa. — Você falou muito pouco sobre minha recuperação. — Acho que já me expliquei. Sinto suspeita. — De meu pé? — Dificilmente. — De mim, então. Ela levantou as mãos, palmas para cima. — Você é que sabe onde coloca o pé. — Sem rodeios, sei onde coloco o pé. — Dylan deu risada. — Pode se

alegrar com isso. Posso escoltá-la para ir embora de Sperry Gap. Abby nada disse enquanto se esforçava para manter uma expressão

neutra. Se abrisse seu coração para ele de nada adiantaria. Ainda não lhe havia ocorrido que era exatamente isso o que ele esperava. Era honesto o suficiente para ter consciência de que a desejava em sua cama e cavalheiro o suficiente para querer que ela partisse por causa disso. Ele devia ter lutado muito com sua consciência na noite passada.

— Você não precisa me acompanhar. Posso encontrar meu próprio caminho. Sempre pude.

Isso não significava que não seria perigoso. — Não a deixarei ir sozinha. — Você vai se mostrar difícil a esse respeito? — Espero que sim. E você?

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— Sim. Acredito que sim. Ele a olhou irritado. Encontravam-se num impasse e ambos percebiam

isso. Se insistisse em acompanhá-la, ela encontraria um meio para partir sozinha, sabendo que ele não conseguiria alcançá-la. Abby o estava provocando a reconhecer que sua perna ainda doía. Se não quisesse que fosse embora sozinha, não poderia deixá-la partir, ao menos enquanto o caminho não fosse muito mais seguro.

—Tudo bem — concordou ele mal-humorado. — Pode ficar. Abby recomeçou a cortar os legumes. Resmungando baixinho, Dylan deixou de fingir que estava em boa

condição física e mancou até a porta da frente para deixar Ulysses entrar. Se tivesse olhado para trás, teria visto o sorriso satisfeito de Abby. Ele o imaginou, de qualquer modo.

— E sua vez. — Dylan estava impaciente. Parecia-lhe que ela estava demorando muito tempo para fazer sua jogada.

— Sim, eu sei. — Então? — Estou pensando — Abby arrumou outra vez as cartas na mão,

recontou mentalmente o naipe de trunfo que já havia sido jogado e escolheu o quatro de copas para colocar no topo de suas cartas de mão.

— Estou pronta. — Sim — resmungou ele. Abby ignorou o tom de voz e a expressão de Dylan como vinha fazendo

desde o começo da partida. No início do anoitecer o humor dele mudara. Se ele pudesse andar à vontade pela cabana, estaria fazendo isso. Como não era possível, havia sugerido jogarem cartas. Mas o jogo não o ajudava a liberar a energia acumulada.

Ela percebia estar sendo observada por ele. Seu olhar era intenso, quase predatório e, mais de uma vez, ficou imóvel, alerta e até um pouco assustada que qualquer movimento de sua parte o fizesse saltar. Nesses momentos até acreditava na verdade do que todos, em Dover Falls, diziam sobre ele.

— É sua vez. — O tom de voz rabugento assustou Abby e ela se sobressaltou. Ela não é tão controlada, pensou Dylan, sem perceber o perigo que ele representava para ela. Uma mulher mais experiente teria batido em retirada para a escada ou, simplesmente, se oferecido a acabar com sua miséria. Abby Winslow não fez nenhuma das duas coisas. Apenas ficou sentada à mesa, manuseando as cartas, preocupada com a próxima jogada. Já havia estado em bordéis onde nenhuma prostituta chegava aos pés da srta. Winslow no que se referia à capacidade de sedução.

Abby pegou uma carta e a colocou virada para baixo. O pequeno vinco entre suas sobrancelhas se aprofundou quando ela percebeu Dylan franzindo a testa.

— Fiz uma má escolha? — perguntou ela. Estava aprendendo o jogo com ele. Pelo jeito, fora um passatempo favorito entre os soldados, em seu acampamento, embora fosse inexplicável por que alguém o convidaria a jogar. — Acho que a gente devia…

— Parar? — interrompeu ele. — Não, não seria esportivo. Devo ter a oportunidade de recuperar meu dinheiro. — Dylan abaixou sua última carta. — Você ganhou essa rodada.

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Abby o observou anotar os pontos no bloco de papel a seu lado. —O dinheiro é todo seu — sentiu-se ela obrigada a observar. — O que você ganhou lhe pertence. — Sim, mas… — É seu — repetiu ele, fitando-a nos olhos. — A menos que você queira

jogar por alguma outra coisa? — Sem sombra de dúvida, seus olhos tinham um brilho de predador.

— Sim — concordou ela. — Acho uma boa idéia. — Você tem algo em mente? — perguntou surpreso, pela resposta. — Sim. — Abby contou com cuidado a quantia que ele lhe emprestara e

a devolveu. O restante guardou. — Se eu vencer a próxima partida você responderá uma pergunta minha.

Não era bem o que ele tinha em mente, mas Abby devia saber disso. Não era de todo ingênua, mas lhe atribuía qualidades de honra e cavalheirismo que ele não merecia nem queria.

— E se eu ganhar? — inquiriu ele. — Responderei a qualquer pergunta sua. Dylan achou a idéia interessante, talvez até divertida. Havia muito que

desejava conhecer detalhes sobre a sita. Abby Winslow. — Honestamente — alertou ela observando-o atentamente. —

Deveremos responder tudo com honestidade. Era estranho Abby ter adivinhado que ele estava pensando em fazer

exatamente o oposto. Dylan concordou de má vontade. — Você está valorizando demais a verdade. — Não acho. Dando de ombros, Dylan pegou as cartas e começou a embaralhar.

Distribuiu uma por vez, cinco cartas para cada um dos dois e para o morto. Ambos examinaram suas cartas por um momento antes de Abby fazer a primeira jogada. O morto fez o naipe vencedor.

— Acho que você não pensou no que faremos se o morto ganhar a rodada.

— Podíamos fazer a pergunta para Ulysses. — Abby sorriu. Dylan olhou para o pastor. Ulysses estava deitado junto à lareira, de olhos fechados. Estava feliz.

— Acho que você não espera que ele responda a coisa alguma — observou Dylan.

— Provavelmente não. — Ela abaixou uma carta para o morto e esperou Dylan jogar. Ela acabou pegando o naipe vencedor, mas Dylan pegou os próximos três e venceu a rodada. Abby sentiu o coração acelerar enquanto esperava pelas perguntas que ele ia lhe fazer. Ele não precisou de tempo para refletir. Já tinha as perguntas prontas.

— Como é que você conseguiu salvar minha perna? — Dylan sentiu-se gratificado ao observar Abby piscar. Ela não havia previsto essa pergunta. Era agradável perceber que não lia seus pensamentos afinal de contas.

— Não sei. Dylan pegou as cartas e abriu o baralho por um dos cantos com o

polegar. — Essa é uma resposta decepcionante para uma questão razoável. — É verdade. — Fui médico, Abby. Já vi muitos ferimentos em quantidade suficiente

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para saber o que me esperava. Estava preparado para fazer a amputação eu próprio, sem a ajuda de ninguém. Você mesma viu hoje que já consigo andar. — Ele levantou a palma da mão, num gesto para não ser interrompido. — Reconheço que exagerei, mas está claro que estou melhorando. Dentro de mais alguns dias não vou precisar fingir que consigo andar sem mancar. Se me contasse como conseguiu isso, ajudaria muito para você voltar a gozar de minhas boas graças.

Abby não percebera sequer que já gozara de suas boas graças. — Acho que você está me dando demasiado crédito por sua recuperação

— declarou ela. — A Providência tem muito a ver com o que aconteceu. — A Providência a enviou para cá. Acho que o que você fez é obra sua. — Realmente não sei responder a sua pergunta. — Ela suspirou. — É o pão, não é? — Por que você acha isso? — Porque é… — Ele abanou a cabeça. Abby o olhava, esperando que

terminasse de falar. — As pessoas já comentaram sobre isso antes. — Sim — confirmou ela. — Com freqüência. — E? — E é simples, de fato. Elas dizem que devo abrir minha própria loja. —

Abby indicou que ele devia distribuir as cartas da segunda rodada. — Isso não faz sentido.

— Por que não? — Dylan deu as cartas. — Como as pessoas iam saber quais pães servem para elas? — Como as pessoas iam saber… — Ele parou de dar as cartas e a olhou

por um longo momento. Abby pegou as cartas das mãos dele e as distribuiu. — Você pode ficar espantado, se quiser. É o que as pessoas costumam

fazer. Ele não ficou espantado. — Não importa se não compreendo — comentou ele sereno. — Você

merece mais do que isso. — Inclinando-se sobre a mesa, colocou sua mão sobre as mãos dela. — Esqueça do jogo, Abby. Pergunte-me o que quiser.

— Eu queria saber a respeito da sacola de alça que você carrega nos ombros. — Ela soltou o baralho.

Dylan olhou para a sacola, de alça pendurada ao lado de seu casaco. Nunca lhe ocorrera que ela sentisse curiosidade pelo conteúdo da sacola. — Você quer fazer alguma pergunta específica ou apenas gostaria de olhar o que há dentro?

— Posso olhar? Ele anuiu. Abby soltou as mãos e foi até a porta para pegar a sacola. Era mais

pesada do que imaginara e ela a pendurou no ombro do mesmo modo como o vira fazer.

— Você sempre a levava quando ia à cidade. — Sim. Ela a colocou sobre a mesa e começou a abrir o fecho. Dylan estava

sentado com os braços cruzados a sua frente. — Já pensou que, talvez, aí dentro estejam os restos de minha esposa?

— Ele deu risada ao vê-la arregalar os olhos. — Continue. Não há nada tão

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interessante aí. Abby colocou a mão dentro da sacola. Percebeu o que havia apenas pelo

toque. — Livros. — Desapontada? — De modo algum. — Ela tirou um livro para fora. — Acho que dá para

conhecer uma pessoa pelo que lê. — Hum. Abby olhou o volume fino, encadernado de couro, que estava em sua

mão. Não havia nada indicando o título ou o autor. Estava começando a abri-lo quando Dylan o tirou de suas mãos.

— Por que fez isso? — Eu disse que você podia ver o que está dentro de minha sacola. Não

fizemos nenhum acordo sobre o conteúdo deste livro. — Ele a observou pegar outro. — Nem sobre esse. — Ele estendeu a mão e Abby lhe entregou o volume com relutância. Ela continuou a tirar os livros e ele os pegava logo em seguida, até a sacola ficar vazia. Havia uma pilha de oito volumes a sua frente.

Abby sentou-se de novo e o fitou. Apoiou os cotovelos sobre a mesa e encostou o queixo nas mãos.

— Você deve se achar muito inteligente. — Estudei Medicina em Harvard. — Você ia amputar seu próprio pé — observou, erguendo as

sobrancelhas. Dylan sentia vontade de sorrir e isso foi uma surpresa para ele próprio. — Planeja me lembrar disso com freqüência? — Acredito que sim, pretendo. — Ela olhou para os livros. — Talvez se

você me deixasse… — Não — interrompeu ele. — São diários, não são? — Abby já esperava a recusa. — Sim. — Há quanto tempo você os vem escrevendo? — Quatro anos e meio. Contando para trás, mentalmente, nos dedos, Abby chegou ao ano em

que ele começara a escrever. Fazia um triste sentido para ela. — É claro — afirmou com suavidade. — Gettysburg. A cidade em que ocorreu uma vitória importante durante Guerra Civil, de

1 a 3 de julho de 1863, e que deteve a invasão do Norte pelas forças Confederadas dos estados sulistas, comandadas pelo general Robert E. Lee.

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Capítulo III Dylan olhou para Abby por um longo momento. Não estava mais

surpreso por ela ter ficado a par de um fato fundamental sobre sua vida. Ela sempre parecia conhecer os pensamentos que o preocupavam. O que o surpreendeu, mesmo, foi que, pela primeira vez em quatro anos e meio, ele queria compartilhar esses pensamentos com alguém.

Olhou para a pilha de diários à sua frente. Escolheu um cuja capa de couro gasta mostrava mais uso.

— Este é o primeiro — disse, empurrando o diário em sua direção. — Conte-me — pediu Abby, sem pegar o livro. Não era um pedido, não do modo como ela falava, no entanto Dylan

hesitou. Dizer as palavras em voz alta, revelar coisas que só havia colocado no papel, não tinha certeza se conseguiria fazer sua mente ou sua boca aceitarem essa idéia. Mas Abby o fitava com a tranqüilidade que lhe era típica e ele não ficou imune ao exame sereno de seus olhos violáceos.

Então Dylan falou sobre os canhões, a fumaça e o calor implacável. Descreveu os três dias de batalhas que começaram com bravatas, depois mudaram para apreensão e, finalmente, tornaram-se, para cada homem, um tumulto peculiar e vital de emoção, que alguns chamariam de coragem. Dylan parou de se importar com os homens quando partiam pela manhã. O dia, inevitavelmente, terminava em cirurgia, praticada por ele para um número demasiado grande. Aqueles que não podiam ser ajudados eram abandonados nos campos e florestas onde haviam caído. Homens com chance de sobrevivência eram trazidos às tendas onde os cirurgiões esperavam com serras e éter e, algumas vezes, somente com serras, para contar, àquelas almas desafortunadas, que ainda não haviam dado o suficiente, que outro sacrifício lhes seria requerido na forma de uma das mãos ou um braço, uma perna ou um pé. E, se não um desses membros, então a vida.

Os auxiliares não conseguiam remover os cotos ensangüentados com a rapidez necessária. O fogo dos canhões era uma distração pela qual eles se sentiam gratos porque, durante uns poucos segundos, seus projéteis estrondeavam em seus ouvidos, tornando-os surdos aos gritos dos feridos. Homens choravam, gemiam e oravam. Amaldiçoavam e se agitavam. Alguns se atiravam das padiolas ao perceberem o que os aguardava.

Não havia alívio. Nem silêncio. Nem fuga. Alguém sempre estava se movendo, se agitando, gemendo. O sono era raro e sempre provocado pela exaustão; no entanto, nunca suficiente para acalmar os gritos que ecoavam na mente dos cirurgiões que amputavam, dos auxiliares que transportavam e dos comandantes que iam ordenar a luta do dia seguinte.

Dylan encontrou Tucker Maddox na tarde do primeiro dia da batalha. O confederado estava com o Exército da Virgínia do Norte e foi uma das baixas em Cemetery Hill. Foi trazido ao hospital do campo ianque por um ordenança com mais compaixão do que bom senso e deixado aos cuidados de Dylan Kincannon. Maddox não requeria uma serra de cirurgião. Havia levado tiros no intestino e nenhum tipo de cirurgia poderia salvar sua vida. Ia morrer devagar e com mais dor do que qualquer homem agüentaria suportar. Em cada pausa de trabalho, Dylan ia até a cama de campanha de Tucker Maddox e ficava a

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seu lado, atraído para ali como se alguma força agisse sobre ele e o compelisse a permanecer por razões incompreensíveis.

Com a voz fraca, às vezes sussurrada, Tucker Maddox descreveu Dover Falls e sua cabana em Sperry Gap. Contou a Dylan que, antes da última geada, a primavera chegava nas montanhas e as árvores floresciam, como se não suportassem mais esperar pelo fim do inverno. Falou da solidão que um homem poderia usufruir se quisesse ficar sozinho e sobre a disponibilidade de companhia na casa de diversão da sra. Abernathy, quando ele assim desejasse.

Abby enrubesceu à menção de sra. Abernathy. — Acho que ele estava apaixonado pela viúva — comentou. Dylan suspeitava que se tratava mais de um arranjo entre os dois do que

de uma ligação romântica, mas não pretendia desiludir Abby. Ele não havia visitado a assim chamada Casa de Diversão desde sua chegada, mas tinha certeza de que Abby sabia disso. Era o tipo de assunto sobre o qual os moradores teriam tagarelado, em particular à luz dos boatos de que ele havia assassinado a esposa e era mais lobo do que humano.

— Você conhecia Tucker Maddox? — perguntou Dylan. — Todos o conheciam — contou Abby. — Era o excêntrico da cidade.

Tucker viveu aqui toda a sua vida, mas não ia à cidade com tanta freqüência quanto você. Ele era mais… — A voz de Abby sumiu e ela abaixou a cabeça, embaraçada por ter falado algo que talvez ele considerasse insultuoso.

— Auto-suficiente? Abby levantou a cabeça, viu que Dylan estava rindo e anuiu. — Você é um rapaz de cidade. — Dificilmente. — Não é um fazendeiro nem um caçador do tipo que usa armadilhas. — Certamente não sou um caçador desse tipo. — Debaixo da mesa,

Dylan mexeu os dedos do pé machucado. Seu sorriso se apagou. — E, certamente, não sou um rapaz.

Era estranho, pensou Abby, as coisas que a faziam sentir-se acalorada e as que não provocavam essa reação. Havia enrubescido ao pensamento de Dylan Kincannon deitando-se com a sra. Abernathy, mas quando ele a olhava como se ela fosse um pedaço de seu pão de milho, não ficava perturbada. De fato, sentia-se estimulada. Apenas devolvia o olhar, não como uma moça tímida flertando, mas como uma que se sentia curiosa por ser alvo da apreciação de um homem.

Dylan decidiu encerrar o assunto. Piscou uma vez e mudou de posição na cadeira.

— Ainda há um pouco daquele pão de mel que você fez à tarde? Abby sentiu o coração acelerar, mas logo voltou ao normal. Anuiu e

começou a se levantar. — Vou buscá-lo — decidiu Dylan. Ela não protestou, pois sentia os joelhos fracos. Se não tivesse tentado

se levantar talvez não se apercebesse disso. — Tucker Maddox nunca retornou — disse enquanto Dylan cortava uma

fatia do pão que sobrara. — Ninguém soube o que lhe aconteceu, mas imaginamos que tenha morrido na guerra. — Abby tocou a garganta com as pontas dos dedos para aliviar a dor que se instalara ali. Não era verdade que

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ninguém sabia do destino de Tucker. Ela tinha conhecimento, mas não seria bom explicar isso a Dylan nesse momento. — Ele foi enterrado na Pensilvânia?

— Sim, foi enterrado lá. — Ele parou de cortar o pão por um momento. Sua mão tremia de leve. — Eu assisti a seu fim. — Após uma pausa, terminou de cortar o pão.

— Foi generoso de sua parte — comentou Abby. Sua garganta parecia ter-se fechado. Ela seguiu o movimento da mão de Dylan antes de ele deixá-la cair para o lado. — Graças a você ele não ficou sozinho em seu fim.

— Não. Sentei-me a seu lado. Ouvi suas palavras. O capelão estava sempre ocupado e não era justo que ele morresse sozinho.

Tucker sucumbira no fim do terceiro dia aos graves ferimentos. Estava mais do que pronto para partir. Havia pedido, na verdade implorado a Dylan, para mostrar-lhe a mesma consideração que teria mostrado por um animal em sofrimento. Teria sido um ato de clemência ter cedido. Talvez até fosse mais fácil conviver com isso, mas não era algo que Dylan Kincannon, o curador, pudesse fazer. Tucker Maddox havia compreendido. Na verdade havia tido pena de Dylan e, quando o médico deu a mão para Tucker segurar, foi o moribundo quem ofereceu conforto ao médico.

— Ele me deu esta cabana — contou Dylan. — E sua terra. Disse-me que ninguém estaria muito interessado nela e que eu a teria de graça e livre de ônus. Ditou seu testamento para um ordenança e assinou diante de testemunhas. Eu não queria, mas aceitei porque ele era um homem bom e era importante fazer isso por ele, considerando que não atendi a seu último pedido.

— A gente da cidade não entendeu como você veio parar aqui. — Não sou um aproveitador. — A luz de tudo o que haviam dito dele,

Dylan imaginou que teriam acrescentado algo muito desagradável. — Nunca acreditei nisso. — Mas as pessoas pensaram. — Algumas. Isso o aborrece? — Um pouco mais do que pensarem que sou um lobisomem, mas não

tanto quanto pensarem que sou um assassino.—Dylan virou-se para espalhar geléia sobre o pão. — Quer um pouco?

— Não. É para você. Ele hesitou, mas decidiu comer. Abby sentia vontade de rir, mas se conteve. — Acho que Tucker ficaria contente por você ter vindo para cá. Ele devia

querer que você viesse ou não lhe teria dado a cabana. É um bom lugar para uma alma descansar.

— Acha que vim por isso? Por minha alma? — Não sei. É isso? — Sim — confirmou depois de um breve silêncio. — Exatamente isso. —

Mas seria ainda verdade? Não tinha mais certeza. — As coisas estão diferentes agora.

Dylan não disse que havia mudado, mas era isso o que queria dizer. Podia ter contado, mas Abby já parecia saber, pois o estava observando com aquele sorriso enigmático que pairava nos cantos de sua boca.

— Após a guerra voltei a Framingham — contou ele. — Minha família estava lá. Minha mãe e minhas irmãs. Minha noiva. Reabri meu consultório e o

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fechei de novo, após alguns meses. Não conseguia mais praticar medicina. Minha mãe entendeu. Minhas irmãs ficaram preocupadas comigo. Minha noiva se casou com um advogado. — Ele percebeu que Abby não estava mais sorrindo. — E não, não me senti inclinado a assassinar nenhum dos dois.

— Bom para você — brincou ela. Dylan sorriu, pois Abby tornava tudo fácil. Ele comeu um pedaço do pão

e saboreou o mel na ponta da língua. Teria a mesma sensação se beijasse Abby, pensou. Ela devia ser quente e doce. Ele tentou não pensar em sua boca contra a dele ou em suas línguas se tocando ou sua respiração se misturando.

— Tentei, durante algum tempo, abrir um negócio. Agricultura. Navegação. Estrada de ferro. Nada deu certo.

— E claro que não. É como usar os sapatos com os pés trocados. Dylan não teria descrito melhor. Concordou com um gesto de cabeça,

sem se surpreender em como Abby havia compreendido com rapidez o que para ele levara tanto tempo.

— Vim para cá tentar outro par de sapatos. Abby pensou que ele ainda levaria algum tempo para descobrir que só

tinha um par de pés. Seu olhar se voltou para os diários. — Você é escritor? — Talvez. — Um bom escritor? — Não sei. — Você deve ter certeza em relação a um par de sapatos. — Ela apoiou o

queixo nas mãos. — Já observei que não é possível domá-los, como se diz por aí. Um par desconfortável será sempre desconfortável. Eles é que acabam domando você.

— O que você está dizendo? — Dylan franziu a testa. — Hum. Talvez você não seja tão inteligente. — Talvez não. — Dover Falls precisa de um médico. — Não. — Você é médico. — Não mais. — É o que você diz. — Abby apontou para os diários. — Garanto que

esses escritos exprimem outra coisa. — Você não os está lendo agora. — Dylan não mordeu a isca. — Dover Falls não tem um médico desde que Doe Meriwether foi chutado

na cabeça pela mula do reverendo. Dylan percebeu que um médico, nessas paragens, tratava tanto das

criaturas de duas pernas como também as de quatro. — Na primavera vai fazer seis anos que Doe Meriwether parou de fazer

os partos de bebês. Ao perceber o tom melancólico na voz de Abby, Dylan estreitou os olhos. — Já fez partos de bebês? — perguntou ela. — Quando precisei. Abby ignorou a concisão da resposta e prosseguiu contente. — Já tratou de tifo e sarampo? — Sim. — Doenças do fígado e do coração?

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— Sim. — Pode tratar gota? O sr. Kinsey sofre de gota. — Sim para tudo, Abby. Gota. Catapora. Cálculos renais. Furúnculos.

Joanetes. Ossos. — E bebês. Não se esqueça dos bebês. — Dores de cabeça. Distúrbios do sono. Tuberculose. Pneumonia.

Caxumba. Febre. — Então você poderia ser nosso médico. — Não, não poderia. — Os olhos cinza-esverdeados de Dylan

escureceram. É por isso que você veio? A cidade inteira a incumbiu disso? — Ninguém me incumbiu de nada. — Mas é por isso que você veio. — Como eu poderia saber que você era médico? — Abby retrucou

paciente, percebendo que ele queria brigar. A pergunta o fez gelar. Na verdade, não havia uma resposta razoável.

Abby Winslow não podia ter sabido. No entanto, tendo aprendido bastante sobre sua hóspede desde que ela se instalara sob seu teto, Dylan hesitou em acreditar que se tratava de um assunto estritamente retórico.

— Como você sabe das coisas? — resolveu perguntar. — Vai jogar outra partida? — Abby pegou as cartas e começou a

embaralhá-las. — As mesmas apostas? — indagou ele. — Se eu ganhar, você

responderá minha pergunta? Abby havia distribuído as cartas com destreza. De repente, ficou

desajeitada. Um terço do baralho escapou de suas mãos e se espalhou sobre a mesa. Juntou as cartas depressa, consciente do olhar de Dylan, mais interessado do que antes.

— Acho que vou jogar paciência. — Covarde. — Sim — concordou ela, nada ofendida. — Às vezes sou. Não havia nada a dizer sobre isso. Dylan nunca havia encontrado alguém

tão difícil de ser provocado. Dando de ombros, colocou os diários outra vez em sua sacola. Levantou-se e a levou à porta, onde a trocou pelo casaco.

— Ulysses precisa sair. Abby virou-se um pouco e anuiu. O cão havia deixado seu lugar junto à

lareira no mesmo momento em que Dylan se encaminhara à porta. Ulysses começou a passar o focinho atrás dos joelhos de Dylan, urgindo-o a se mover mais depressa. Abby esperou até eles saírem. Parou de desembaralhar as cartas e se levantou. Colocou as migalhas do pão de Dylan na palma de sua mão e as levou à lareira. As migalhas lançaram faíscas em tons de azul, verde e dourado ao serem atingidas pelas chamas ainda no ar.

Pó de fadas, como seu tio costumava dizer. Abby foi acordada pelo grito. Sentou-se e saiu da cama. Já estava na

beira do sótão, as mãos sobre a escada, ao se dar plena conta do que estava fazendo. Embaixo, distinguia o corpo de Dylan encolhido em frente à lareira. Estava de costas para o fogo, por isso seu rosto estava na penumbra. Não fazia diferença ela não poder enxergá-lo com clareza. Seu gemido baixo exprimia dor.

Abby desceu depressa a escada, perdendo o passo no último degrau.

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Tropeçou e quase caiu de cabeça ao lado dele. Conseguiu se ajoelhar, machucando o joelho esquerdo numa prancha empenada no chão. Em outras circunstâncias ela poderia ter praguejado, mas nestas condições, quando estava concentrada no sofrimento de outra pessoa, sequer percebeu o próprio machucado.

Aproximando-se furtivamente, de joelhos, Abby colocou a mão sobre o ombro de Dylan. Pronunciou o nome dele com suavidade e esperou alguma resposta a sua voz. Não houve nenhuma. Ele se desvencilhou de sua mão e afundou mais sob as cobertas. Abby tocou sua testa com os dedos e constatou que a pele estava fria e seca. Ele pronunciava palavras ininteligíveis.

Ela repetiu seu nome, com mais firmeza. Seu tom de voz se parecia com o que a srta. Henry usava na sala de aula com alunos indisciplinados.

Abby levantou a coberta para examinar o pé machucado. Não era essa a origem da dor. Em poucos dias Dylan estaria apto a apoiar todo o seu peso sobre o pé, sem precisar fingir que ele não o perturbava. A cor estava boa e até os ferimentos que ele não lhe permitira costurar estavam cicatrizando. Cobriu-lhe os pés outra vez e se moveu para seu lado. Não tentou acordá-lo, mas deitou-se, aninhou-se confortavelmente em seu corpo e puxou a coberta até a altura de seus quadris. Pegou o braço dele, puxou-o para sua cintura e o manteve ali, ficando próxima a ele para aquecê-lo. Sentia o ruído surdo e pesado do batimento de seu coração contra suas costas e o calor de sua respiração na nuca.

O corpo de Dylan estava tenso pelo frio; Abby o aproximou mais, de modo a acomodar a cabeça sob seu queixo. Pegou suas mãos e entrelaçou seus dedos nos dele.

— Você está muito desafinado, Dylan Kincannon. Completamente desafinado — sussurrou, tanto para si própria como para ele.

Na curva de seu corpo, ela sentiu a força da excitação de Dylan. Estava claro que nada havia de errado com ele.

Abby era tão flexível quanto Dylan imaginara. Virou-se com facilidade em seus braços e apoiou a cabeça em seu pescoço. Sua boca se ergueu e os lábios se apartaram. Ele estava ansioso por sentir seu gosto de mel e sua língua em movimento lento.

Ela roçou os seios pequenos contra o peito dele. Os bicos estavam intumescidos através da fina camisola.

Dylan estava entre suas pernas, os quadris presos no berço que ela fizera paia ele. Havia necessidade pairando no ar. De ambos. Era inegável que o desejo era mútuo.

Dylan ouviu-a murmurar seu nome e fitou-a. Os centros escuros dos olhos violáceos eram grandes e seu olhar não se concentrava em nada em particular. Abby tinha consciência dele de tantas maneiras que não tinham nada a ver com a visão que precisou de alguns momentos para orientar essa nova sensação.

— Abby… o que você está fazendo aqui? Era a mesma pergunta que ele havia feito quando Abby chegara na

soleira da porta de sua cabana. Ela quase respondeu do mesmo modo, mas um resto de bom senso a alertou de que ele não ia achar graça. Não estava zangado com ela, ao menos não ainda. Abby achou melhor não provocar a fera.

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— Você teve um pesadelo — explicou. — Gritou durante o sono e me acordou. Vim ver se estava bem e fiquei, pois você não estava.

— Devia ter me acordado. — Tentei, mas não consegui. Você estava com frio, por isso deitei-me a

seu lado. Dylan resmungou baixinho, tanto de frustração como de descrença. — Há outras cobertas no baú do outro lado. E há bastante lenha no fogo. — Eu também estava com frio. — Tudo isso era verdade. Dylan fechou os olhos por um momento. Abby estava se entregando. Ele

sentia a suave distância entre suas pernas e o leve arco de seus quadris. — Abby… — Hum? — Era difícil pensar quando tudo o que ela queria era apenas

sentir. Como poderia ser diferente para ele? — Abby, se você não me pedir para parar, vou… Dylan não terminou de falar, pois ela estava se aproximando ainda mais.

Somente nesse momento ele percebeu que tal coisa era possível. O toque de sua boca foi tímido de início, tal como seu sorriso, mas essa hesitação desapareceu logo e Abby o beijou como se tivesse estado esfomeada por ele toda a sua vida. Mordiscou seu lábio inferior e passou a língua ao longo do lado interno macio até sentir que ele não apenas se entregava como passava a assumir o controle.

Abby foi invadida por alegria pura. Sua respiração se acelerou e uma bolha de prazer explodiu em sua garganta e correu ao longo de suas costas. Ela estremeceu em seus braços, não porque sentisse frio, mas porque não sentia. Dylan a beijava intensa e profundamente, sem intenção de jamais terminar.

Abby arqueou o pescoço enquanto a boca de Dylan explorava a linha de seu pescoço, depois os seios, para em seguida invadir lentamente seu corpo, lançando-a numa espiral de prazer. Minutos depois, Abby tomou primeiro consciência de coisas fora de si própria, como o batimento pesado do coração de Dylan, o modo como ele a observava com olhos que eram espelhos escuros e a boca que se curvava de leve nos cantos, mas não chegava a ser um sorriso. Depois ouviu o crepitar do fogo, Ulysses fungando junto à porta, o vento penetrando através de uma fresta e levantando as bordas da cortina na janela.

— Em que está pensando? Abby envolveu seu pescoço com os braços. — Em nada — respondeu serena, um suave sorriso mudando a forma de

seus lábios. — Não estou pensando em nada. Era verdade. Esse senso difuso de paz era algo totalmente desconhecido

para ela. Não era sempre que Abby se sentia tranqüila. A novidade de sentir-se plena era algo para ser saboreado nesse momento.

Sua boca estava úmida e um pouco inchada pelos beijos. Dylan inclinou a cabeça e tocou seus lábios. Ele estava pensando apenas nisso. Em sua necessidade de beijá-la outra vez, de tocar sua boca orvalhada e saber que ela era real e que nada do que acontecera era a mera extensão de um sonho complicado e muito satisfatório.

Dylan apoiou o peso em seus antebraços. Passou as pontas dos dedos pelos cabelos desalinhados de Abby, acariciando as mechas sedosas ao redor

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das orelhas e da curva do pescoço. Seu toque suave a fez estremecer. Seu abdome se retraiu quando ela prendeu a respiração. Ela se moveu debaixo dele.

— Não se mexa — murmurou ele. — Acho que não posso… Tudo em Abby se imobilizou, exceto a boca. — É sua perna? Seu pé? Será que eu… Dessa vez o beijo teve um objetivo diferente. Abby ficou quieta e um

pouco atordoada quando Dylan terminou. — Não há nada errado com minha perna — contou ele. — Nada. Abby não acreditou e franziu a testa preocupada. — Não devia duvidar disso — disse ele, tocando sua testa. — Você é a

responsável. — Não. Não sou. Dylan afastou-se de Abby e rolou de costas. Não precisou pedir-lhe para

mudar de posição e se aninhar na curva de seu corpo. Ela fez isso sem demora, acomodando-se com naturalidade. Apoiou a cabeça em seu ombro e deslizou um braço ao redor de sua cintura. Ergueu o joelho para se apoiar em sua perna. Dylan puxou as cobertas até os ombros nus de ambos. A respiração de Abby era mais quente em sua pele do que o fogo na lareira.

— Quem é você? — indagou ele sereno. — Você sabe. Sou Abby Winslow. — O que você é? — Dylan reformulou a pergunta. — O que acha que sou? — Ela virou a cabeça uma pequena fração para

trás para poder enxergar seu perfil. — Uma fada… uma criatura enigmática. — Então não sou uma bruxa? Era o que você pensava antes. — Ela riu. — Uma bruxa bondosa. — É tão difícil assim acreditar que sou apenas uma mulher? — Mas não uma mulher qualquer. — Ninguém é uma pessoa qualquer — Abby ralhou, sorridente. — Tucker Maddox contou-me sobre seu pão. — Ele contou? — Você esperava esse comentário. — Algo no tom de voz de Abby o fez

suspeitar que ela já sabia disso. — Você me disse que muitos de seus últimos pensamentos foram sobre

Dover Falls. Ele gostava muito de meu pão. — Contou que não conseguia esquecê-lo. — Assei muito pão com alho e cebolinha para ele. Tucker gostava muito. — Isso explica tudo. — Dylan sorriu. A palma da mão dele estava sobre a

curva de seu quadril e ele passou o polegar de leve para cima e para baixo sobre sua pele. — O que explica o que você fez comigo?

— Não sei o que está querendo me dizer. Dylan não acreditava nela. — Uma vez eu lhe perguntei se você pretendia salvar minha perna e

você disse: “Se é por onde devo começar…” — E? — Abby ergueu a cabeça e o fitou. — E acho que você sabia, desde o início, que eu não estava perturbado

apenas por meus ferimentos na perna. — É verdade. Era algo difícil de esconder.

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— De você, talvez. Nem todo mundo vê o que você enxerga. — Meu tio via — Abby deixou a cabeça pender outra vez sobre o ombro

de Dylan. — Ele achava que eu devia vir para cá. Edward Winslow parecia uma pessoa muito boa, segundo Dylan, mas era

uma surpresa saber que ele compartilhava alguns dos segredos mágicos de Abby.

— Então ele a enviou. — Não, é claro que não. A escolha foi minha. Eu queria vir e… Após alguns momentos de silêncio, ele a instigou. — E? — E você precisava de mim. Se ela lhe tivesse contado isso, com tanta franqueza, no primeiro dia, ele

não a teria deixado entrar, mas agora ele reconhecia que era verdade. — Há algo mais? — É claro que há — anuiu Abby fracamente. — Você nunca deveria

duvidar que eu também necessitava de você. Dylan não conseguiu assimilar essa idéia pela razão, mas seu coração a

aceitou de imediato. Ela se havia tornado parte dele de uma maneira difícil de explicar. A atração entre ambos era tão mágica como a descrita pelos poetas e pelos místicos.

— Talvez você possa retornar a Dover Falls dentro de uma semana — disse Dylan.

— É provável. — As pessoas vão esperar que nos casemos. — Algumas vão. — Com espingardas de caça? — Não muitas. — Abby sorriu. — Acho que gostaria de me casar com você, Abby Winslow. — Avise-me quando tiver certeza. Abby acariciou-lhe a mão e suas pálpebras se fecharam sonolentas. No dia seguinte, Abby assou pão de quatro grãos e laranja. Dylan se

sentou à mesa, observando-a misturar as farinhas de centeio, cevada, aveia e trigo com o melaço aquecido. Ela polvilhou a mesa com uma fina camada de farinha, depois fez o mesmo com as palmas das mãos. Finalmente amassou a mistura, fez uma bola e a pôs para crescer. Olhando na direção dele, afundou as mãos na massa e a enrolou.

— Você está me observando! — Sim. — Ainda acha que há algo no pão que faço? — Sim, mas mudei de idéia quanto ao que seja. — Oh? — Abby o fitou curiosa. Dylan consentiu, mas não explicou. Após um momento, Abby retomou a tarefa e acabou se esquecendo de

sua presença. Dobrou a massa, virou-a e a amassou outra vez. Havia ritmo no modo como ela amassava, dobrava e virava. A atividade dava brilho a seus traços. Seus olhos violáceos escureciam como num sonho encantado. Sentia-se relaxada e absorta no que estava fazendo. Dylan observou tudo isso e foi assim que chegou, afinal, a compreender a natureza do pão feito por Abby.

O ingrediente intrínseco era Abby.

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Dylan esperou enquanto ela colocava a massa coberta para descansar. Encostou-a na mesa enfarinhada, levantou suas saias e aquietou sua risada com os lábios. Abby deixou uma trilha de impressões digitais brancas sobre a camisa dele e depois sobre o botão do cós de sua calça. A excitação de Dylan era visível.

A mesa balançava, mas agüentava o peso de ambos. As pernas da mesa arranhavam o chão desigual, mas o som se perdia perto dos outros que eles produziam. Abby riu outra vez e o som melodioso fez Dylan esquecer de tudo o mais. Desta vez ele não tentou aquietá-la, mas deixou-se engolfar pelo som e pela adorável mulher em seus braços.

— É você — disse ele. Dylan a havia puxado para o chão porque, no fim, suas próprias pernas

se mostraram menos confiáveis do que as da mesa. Apoiou-se contra a parede e Abby se sentou entre suas pernas abertas, descansando as costas contra seu peito. Seus braços a enlaçavam abaixo dos seios. A fragrância da massa crescendo impregnou o ar no interior da cabana, mas não foi isso que chamou a atenção de Dylan. Foi o perfume do cabelo de Abby com seu suave toque de lavanda.

— Eu? — ela se espantou. — Sim. Observei. Você faz o pão. — É claro que faço. — Não — disse Dylan. — Você faz o pão. — Ah. — A voz dela era suave, seu sorriso delicado. — Você o faz… diferente. Algo mais do que ele é. — Dylan fez uma

pausa, ouvindo as palavras em voz alta pela primeira vez. — É isso que você fez para mim, não é?

— Se lhe agrada pensar assim… A resposta enigmática o fez virar o rosto para poder ver sua expressão.

Sem sombra de dúvida, era o olhar de sublime satisfação. Dylan riu e beijou-lhe os cabelos.

— Não sei por que Dover Falls necessita de um médico quando eles têm você para qualquer doença que os aflija.

Abby endireitou-se e se moveu para um lado, ajoelhou-se e o olhou de frente. Não permitiu que Dylan pegasse seu cotovelo, pois ele pretendia atraí-la de volta a seus braços.

— Não posso fazer o que você faz — declarou. Suas feições exprimiam sinceridade. Era importante que Dylan acreditasse no que ela estava dizendo. — O que conheço de tratamento médico não daria para encher um dedal. Mas fui honesta com você no início. Contei-lhe que sei algo sobre cura e é verdade. Sei quando um corpo necessita de um espírito em paz. Você deixou seu espírito com Tucker Maddox, em Gettysburg, ou talvez ele o tenha roubado, mas você estava caminhando ferido muito antes de seu pé ficar preso na armadilha.

Era verdade. Dylan estivera andando ferido. Abby o fitava em atitude quase de desafio, ousando-o a negar. Dylan simplesmente a encarou e nada disse.

— Minha mãe tinha o dom de conhecer coisas — contou Abby com serenidade. — Ela fugiu de Dover Falls com meu pai, acreditando que podia deixar esse dom para trás. Nasci em Richmond, que foi o lugar mais longe

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aonde ela achou que deveria ir. Tio Edward veio me buscar quando meus pais morreram e ele precisou enfrentar a cidade inteira para fazer isso. Houve ocasiões em que ele pensou em partir, como minha mãe fez, embora eu não seja como ela. Disseram-me que não tenho o mesmo dom que outras pessoas da família.

Abby deu de ombros, como se não se importasse por ter sido isolada em sua própria família.

— Aprendi muito cedo que onde quer que eu vá, meu dom irá junto. Serei uma curiosidade em Richmond, Boston ou Atlanta como sou em Dover Falls. Tio Edward compreende um pouco melhor do que a maioria que esse é apenas meu jeito e não se importa muito. — Um dos cantos da boca de Abby se ergueu de leve. — Ele foi muito bom para minha mãe, segundo ouvi, ao menos é no que tia Geórgia acredita. Ela nunca deixa de observar isso quando acha que tio Edward está sendo indulgente comigo.

— Você ouviu muito isso? — Está me perguntando se meu tio é com freqüência indulgente comigo

e a resposta é sim. Ele não me impediu de vir para cá, por exemplo. Dylan ficou intrigado. Lembrava-se de Abby contar que o tio quisera que

ela fosse a Sperry Gap. Dissera que ele não a enviara, que a escolha fora sua, mas também que ele queria que ela viesse. Havia algo que Dylan não compreendia, disso ele tinha certeza, mas uma vida inteira na companhia de Abby não tornaria as coisas mais claras. Tinha certeza disso também.

— O que foi? — Nada — garantiu ele. — Não é nada. — Consciente do olhar

preocupado de Abby, a expressão divertida desapareceu do rosto de Dylan. Ela o olhou esperando mais. — Eu estava pensando que gostaria de passar uma vida inteira

decifrando você, Abby Winslow — explicou rindo. Abby sorriu e levantou-se para ir buscar o pão. — Diga-me quando tiver

certeza. O degelo do inverno chegou sem aviso e demasiado cedo para agradar

Dylan Kincannon. Ele olhou para o céu, preocupado, observando um grupo de nuvens se afastar para o norte e deixando atrás o céu azul e a luz do sol. Um dia era o que lhe restava, dois no máximo. Se queria que Abby ficasse, precisaria dizer isso. Não podia mais fingir que era demasiado perigoso ela viajar sozinha. Seu pé não o impediria de acompanhá-la, a menos que pisasse em outra armadilha.

Devia estar loucamente apaixonado para achar que essa era uma boa solução.

Antes de sair e bater a porta da cabana, Dylan pegou o casaco e murmurou algo sobre cortar lenha e Ulysses necessitar dar uma corrida. Não olhou para trás, para Abby, mas imaginou que ela estava achando graça, sabendo bem o que estava errado e esperando que ele se explicasse.

Dylan pegou o machado e escolheu um tronco para cortar. A atividade de dar pancadas e lascar não foi tão satisfatória como esperava. Escolheu outro tronco e baixou o machado outra vez, enquanto Ulysses perambulava ao redor, marcando seu território.

O trabalho fez-lhe bem. Alongou os músculos e aliviou sua mente. Os diários não vinham ajudando nos últimos tempos. Ele os relia à noite, depois

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que Abby adormecia. Não havia pensado em escrever outra vez. Apenas a leitura foi suficiente para ajudá-lo a fazer uma avaliação. Era um bom escritor, sabia disso agora, mas era melhor médico. Ao reler seus próprios pensamentos, sua miopia foi corrigida. Não tivera nada a ver com Abby.

Dylan brandiu o machado, sorrindo com certo pesar. Era verdade, pensou, que desta vez nem tudo era Abby. A seu modo, com serenidade, ela o havia desafiado a decidir como o sapato servia. Escrever, ele descobriu, era como um par de chinelos velhos, confortáveis e quentes. Mas não havia como se enganar que o conteúdo do que escrevia vinha de sua alma de curador. Até agora, havia esquecido que ser médico era sua essência, não apenas uma profissão. Podia desperdiçar a vida inteira tentando encontrar os sapatos certos e nunca se sentir confortável na própria pele.

Ou podia ficar descalço. Dylan deixou o machado apoiado sobre o tronco parcialmente cortado e

olhou para a cabana. Abby estava de pé na varanda, observando-o. Não parecia diferente da primeira vez que tivera coragem para falar com ele. O sorriso estava presente, embora não tão cauteloso como antes e os olhos violáceos eram atentos, mas não tímidos. Ela segurava uma cesta no braço direito, com a toalha azul e branca levantada num canto e ele sentiu o aroma do melaço e do fubá.

O pão de sua infância. Esperou, mas ela não se moveu, não ergueu a cesta para ele ou fez a

oferta com os olhos ou o levantar sutil do queixo. E, desta vez, Dylan soube que ela não faria isso. Tudo o que ele tinha de fazer era…

Dylan Kincannon tirou as botas e caminhou descalço através da neve que estava derretendo. Ele a fez saber que tinha certeza.

Casaram-se na igreja do reverendo Pritchard, ao lado do local onde sua

nova residência estava sendo construída. O bondoso pároco insistiu que Ulysses ficasse do lado de fora, mas todos os demais foram bem-vindos. Durante semanas, a união foi o assunto de conversa preferido da cidade, não apenas pela cerimônia, mas pelo modo como tudo havia acontecido. Ninguém perdeu a oportunidade de recontar a história, porque ninguém conhecia a verdade. Na bela tradição de Dover Falls, eles continuaram a fazer o mesmo de sempre, confiando na imaginação para suprir os detalhes que desconheciam.

Bastou a passagem de uma lua cheia e uma inspeção mais atenta de Ulysses para a cidade, afinal, abandonar o boato de que Dylan Kincannon era um lobisomem e, estranhamente, ninguém se lembrava de jamais ter pensado a sério que ele houvesse assassinado a esposa. Entretanto, ainda era um ianque, e eles consideraram esse fato com reservas até Dylan tratar com sucesso a gota do sr. Kinsey e curar a difteria de um dos gêmeos da sra. Fitch. Após o sucesso de Dylan no tratamento do lumbago da sra. Iman, o sr. Iman ofereceu-lhe um empréstimo para comprar uma casa, num quarteirão tranqüilo de Main Street, com espaço suficiente para consultório, sala cirúrgica e residência.

Quando o banqueiro mencionara a família estava claro que ele, como todos os demais na cidade, acreditava que Abby já estivesse grávida. Ela não

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estava, mas a prova disso viria após o casamento, quando a cidade inteira contava a passagem dos meses. Dylan podia esperar que os boatos cessassem, tal como Abby o aconselhara, pois eles iam tropeçar na verdade. Talvez, ao caírem, um ou dois narizes quebrassem. Tratá-los seria um prazer.

Dylan estava pensando nisso quando olhou acima das cabeças reunidas na congregação e as portas da igreja foram abertas. Abby entrou, de braço dado com seu tio Edward, e caminhou solene em direção a ele. Vestida de branco, lembrava uma fada, como que vindo até ele sem tocar o chão, impedida de flutuar mais alto apenas pela mão firme do tio.

Ela sorriu quando seus dedos se entrelaçaram. O aperto de mão de Dylan foi caloroso e seco e apenas um suave tremor exprimia que não estava tão calmo quanto aparentava.

Fizeram seus votos em voz alta, parando apenas quando o reverendo intervinha. As juras foram feitas com facilidade, pois eles já as haviam feito antes na cabana, em Sperry Gap, com uma cesta de pão de milho entre ambos. A mesma doçura estava presente agora, a mesma mágica, e ninguém que estivesse ali presente poderia duvidar de que era uma união extraordinária.

Mas por que, ninguém sabia explicar. Todos testemunharam o fato de que Abby Maddox Winslow fez o noivo

estremecer ao repetir seu nome de solteira. Não entenderam por que a surpresa no rosto do dr. Kincannon logo se transformou em estranho divertimento ou por que Abby observou seus traços com um sorriso de beleza beatífica, mas suspeitaram que aquilo tinha algo a ver com o nome Maddox.

Coisas desse tipo aconteciam quando as pessoas mencionavam algum Maddox. A mãe de Abby fora uma, todos se lembravam, mas seu tio Tucker também fora outro. Eles consideraram que ela tivera sorte por ter crescido sob influências mais estáveis, do lado Winslow, e observaram isso, entre si, ao sair da igreja para ver a partida dos noivos.

— Parecem um bando de marimbondos — sussurrou Dylan, ajudando Abby a subir no coche.

Ela riu, pois estava pensando a mesma coisa. — Estão falando sobre Tucker Maddox — comentou. — Tio Tucker. — Dylan entusiasmou os espectadores beijando sua noiva.

— Um parentesco que você esqueceu de mencionar. Abby, que ficara corada pelo beijo, empalideceu, mas a felicidade

manteve seus olhos violáceos brilhantes. Procurou pelos tios na multidão e acenou para eles. — Contei-lhe que meu tio queria que eu fosse até você.

— Você sabe muito bem que pensei que estivesse falando de seu tio Edward.

Abby o olhou de relance e sorriu. — Por que você imaginou, por um momento sequer, que eu poderia

saber o que você estava pensando? O olhar de Dylan exprimia descrença total. Suas sobrancelhas se

arquearam. — Por que eu… Ele se interrompeu, pois nada que fizesse sentido poderia resultar

daquela linha de perguntas e, além do mais, os convidados se preparavam para atirar arroz neles.

Page 46: Jo Goodman - [JARDIM MÁGICO] - O cesto mágico (PtBr)

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Dylan e Abby abaixaram a cabeça quando começou a primeira saraivada, mas o que foi atirado alto para o ar não foram minúsculos grãos brancos, e sim uma torrente cintilante em tons de azul, verde e dourado, faiscante ao sol alto do meio-dia, revolvendo-se ao redor dos recém-casados numa exposição pirotécnica de luz.

Dylan estendeu a mão para pegar a oferenda e examiná-la mais de perto. Ele a olhou e depois fitou Abby. Na verdade, nada mais voltaria a surpreendê-lo.

— Imagino que saiba o que é isto — disse, mostrando as migalhas de pão em sua palma.

— Pó de fadas — anuiu ela com um sereno movimento de cabeça.

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