Joan Miró

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RETRATO, A SUA MANEIRA (João Cabral de M elo Neto) Magro entre pedras Calcárias possível Pergaminho para A anotação gráfica O grafito Grave Narr poema o Fêmur fraterno Radiografável a Olho nu árid Como o deserto E além Tu Irmão totem aedo Exato e provável No friso do tempo Adiante Ave Camarada diamante! Vinicius de Moraes JOÃO CABRAL DE MELO NETO OBRA COMPLETA Edi çã o organizada por Marly de Oliveira com assistência do autor RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUI LAR S.A., 1994

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João Cabral de Melo Neto. Joan Miró.

Transcript of Joan Miró

  • RETRATO, A SUA MANEIRA (Joo Cabral de M elo Neto)

    Magro entre pedras Calcrias possvel Pergaminho para A anotao grfica

    O grafito Grave Narr poema o Fmur fraterno Radiografvel a

    Olho nu rid Como o deserto E alm Tu Irmo totem aedo

    Exato e provvel No friso do tempo Adiante Ave Camarada diamante!

    Vinicius de Moraes

    JOO CABRAL DE MELO NETO

    OBRA COMPLETA

    Edio organizada por Marly de Oliveira com assistncia do autor

    RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILAR S.A., 1994

  • PROSA / )OAN MIRO

    Mais do que uma poca fecunda em pinturas, o Renascimento criou a pintur-a. Fixou a arte que chama-mos hoje pintura. At o Renascimento, o objeto pintado no esta-va em nenhuma relao com os limites da superfcie que o continha. Estava to solto no espao como uma esttua qualquer. A parede da caverna ou a madeira do retbulo eram mais bem o vazio. Eram como um elemento neutro, cuja funo estava unicamente, em conter, suportar a figura pintada. Paralelamente, a superfcie - definida por seus li-mites - existia, como elemento essencial, em outro tipo de arte: na decorao. Na pintura decorativa, o objeto (quando acontece, ou aparece; quando no se esvazia em sua estilizao, quando no se apaga em fa-vor da superfcie) no pretende agir por si, como o bizonte ou o santo do primitivo. Ele se anula na sintaxe onde se inscreve, na superfcie ativa ao servio da qual o puseram. Pode-se dizer que o Renascimento associou esses dois tipos de arte, de funes. Associou o objeto, isto , a representao utilitria, ou a utilidade da representa-o, superfcie decorada, isto , utilidade da con-templao. Dessa associao nasceu a pintura, o que tem sido para ns a pintura, o quadro. A partir de en-to, j uma superfcie ativa onde se inscreve, tambm ativo, um bizonte. Dessa associao, nasceu um gnero novo, mais gil do que a escultura (j que trazia a cor, j que se libertava das leis do mundo fsico que pesavam demais sobre a pedra); uma espcie de escultura mais rica de possibilidades para o crescente esprito cientfico de ento (que, em arte, ia mais e mais esgotando os graus da aparncia); uma escultura mais fcil de ser produzi-

    As pinturas pr-

    Renascentistas

    A criao da pintura

  • Terceira dimenso e estatismo

    JoAo CABRA L DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    da e, portanto, mais apta a satisfazer as necess_idades do consumidor individual de obras de arte, entidade que se ia cristalizando naquela poca de expanso e de fer-mentao. . Contudo, nessa associao, a presena do objeto representado parece ter sido violenta demais para per-mitir um equilbrio de foras. A presena intelec-tual do objeto desenvolveu-se custa da utilizao sensorial da superfcie. Porque o aperfeioamento na representao do objeto terminaria por passar ~o de-sejo de obter a iluso do relevo desse mesm~ objeto -j lograda, alis, anteriormente ao Renascimento -ao desejo de obter a iluso do ambiente em que ele se situava. Isto : a pintura desenvolveu-se em outra dimenso. Em profundidade (o que mais do que re-levo). Desenvolveu-se em profundidade: esse aparente enriquecimento da superfcie vinha, na realidade, limi-t-la. Por exigncias da terceira dimenso se anulava na superfcie a possibilidade de receber o tempo ou uma grafia qualquer que exigisse para sua contemplao um ato no esttico do espectador. A terceira dimenso em pintura anula a existncia do dinmico (essa riqueza da antiga pintura decorati-va) porque para ser percebida, em sua iluso, exige a fixao do espectador num ponto ideal a partir do qual, e somente a partir do qual, essa iluso forne-cida. Essa iluso s pode ser apreendida enquanto con-junto. E esse ponto terico, onde devem deter-se os dois ou trs segundos iniciais da ateno do especta-dor, que so o essencial de sua contemplao (j que a apreciao do detalhe se d independentemente da apreenso do conjunto), importantssimo. Esse ~onto o nico em que, as trs dimenses, por se reumre1? em sua mnima medida material, podem ser apreendi-das simultaneamente. Essa iluso fornecida atravs de certas convenes lgicas e para ser recebida necessita que o espectador ~e submeta a uma conveno - a uma posio - preli-minar. Desse modo, o enriquecimento trazido pela in-veno dos meios de reproduzir a terceira dimenso priva o espectador de usar livremente de sua ateno.

    PROSA / JOAN MIRO

    E, noutra ordem de fenmenos, ela significa o abandono do ritmo pelo equilbrio. Equilbrio e rit-mo: dois empregos possveis da superfcie, anulado o ltimo quase completamente (ou at um ponto de di-fcil reconhecimento) pela pintura criada com o Re-nascimento. , portanto, fcil de compreender aquilo para que tende sempre a composio de tal pintura. Ela busca fazer instantnea a contemplao do quadro e obrigar a ateno a deter-se naquele ponto ideal de onde possvel a apreenso das trs dimenses, a iluso de profundidade. Nela por isso, essencial, a idia de equilbrio. Equilbrio significa estabilidade obtida por meio de uma correlativa distribuio de foras. Num tipo de ar-te que pede a fixao da ateno fcil de compreender como qualquer fora excessivamente poderosa, por atra-la, por impor-lhe mobilidade, seria fatal ordem do conjunto. Mais do que ordem: existncia desse conjunto como expresso de um mundo em profun-didade. E ao equilbrio que se confia a misso de de-fender aquele ponto terico, chave dessa iluso. A busca de equilbrio , assim, subjacente a todas as leis que constituem o bem-compor renascentista -ainda o nosso bem-compor. E no somente, quelas que constituem o equilbrio teorizado nas preceptivas. So consideraes de equilbrio que existem no fundo de princpios como proporo, destaque, contraste e, inclusive, no fundo da prpria eleio da anedota. In-clusive, so submetidos s razes de estado do equil-brio, ou plasmados por ele, os dbeis movimentos que as preceptivas denominam ritmos: permitidos apenas enquanto contribuam para realar essa estabilidade geral ou enquanto no a perturbem nem a ameacem. Da mesma maneira que a contemplao esttica, instantnea, a conveno a que se submete o contem-plador desta pintura, o estatismo, nascido daquela conveno, o que se poderia chamar seu estilo, o esp-rito de sua organizao. A princpio cientificamente elaborada, depois obscuramente obedecida, uma ar-quitetura abstrata existe sempre por detrs das obras executadas nestes sculos de pintura ocidental - pos-

    Compor como equilibrar

    Mais sobre o equilbrio

  • O estatismo como estilo

    )OO CABRAL DE MELO NETO / BRA COMPLETA

    teriores ao Renascimento - assegurando uma ordem esttica anedota aparente, mesmo quando essa ane-dota pretende uma significao de movimento. . Esse estatismo, imposto pela presena e pelos inte-resses da terceira dimenso, define a pintura renas-centista, que (ao menos a chamamos), hoje, a Pintu-ra. Parece inclusive contribuir para a definio da idia de beleza da poca (pensemos nas palavras que nos acostumamos a associar a essa idia: serenidade, impassibilidade. Baudelaire, um dos autores qu~ mais violentamente subverteram esse mesmo conceito de beleza, a faria chamar-se reve de pierre), que como marcada pelo desejo de construir um tipo de universo que, depurado da realidade, habitasse uma dimenso de serenidade e afastamento do ambiente. Idia de beleza que ainda nossa, embora j no seja a nossa (e por isso, palavra beleza preferimos poesia - com seu sentido extrado de no sei que perturbadora at-mosfera metafsica).

    PROSA I )OAN MIRO

    Seria possvel outra forma de composio? Seria possvel devolver superfcie aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimenso destruiu completamente? A pintura de Mir me parece respon-der afirmativamente a esta pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar superfcie seu antigo papel: o de ser receptcu-lo do dinmico. Ela me parece uma tendncia para li-bertar o ritmo do equilbrio que o aprisiona e que apri-siona toda a pintura criada com o Renascimento. A partir desse ponto de vista, examinaremos o sen-tido em que Mir fez explodir as normas da composi-o renascentista. O sentido e a histria dessa exploso: a histria de sua luta contra o esttico e, assegurada sua vitria sobre este, a maneira como se entregou s possi-bilidades de um ritmo livre de qualquer limitao. Os primeiros passos da originalidade de Mir e do que, a meu ver, significa a revoluo que sua pintura trouxe Pintura, so comuns aos primeiros passos de muitos contemporneos seus. Em relao a alguns, at posteriores. Entretanto, Mir - ao contrrio de mui-tos deles - levou mais ao extremo o caminho iniciado. Este no fixar-se numa soluo para convert-la em maneira, este saber-passar permanente de uma a outra soluo impediu qualquer estagna~o no artista. Foi esse saber-no-chegar que lhe permitiu dar a sua obra uma continuidade que nada tem a ver com a versatili-dade de muitos de seus contemporneos. H em sua obra- a partir do momento em que aboliu de sua pintura a terceira dimenso - um ca-minho. Mas esse caminho tem um sentido: Mir, co-locado diante da superfcie, comeou a fazer, em sentido inverso, o caminho que a superfcie havia per-corrido at que pudesse conter aquela terceira dimen-so imaginria.

    Mir contra a pintura

    Mir e seus contemporneos

  • Sua histria: abandono da terceira dimenso

    Sua histria: uma composio descontnua

    JOO C ABRAL DE M ELO N ETO / BRA COMPLETA

    importante assinalar sua sensibilidade para com-preender o que em cada nova soluo conduz solu-o seguinte. Mir no era o primeiro pintor do mun-do a abandonar a terceira dimenso. Mas talvez ele tenha sido o primeiro a compreender que o tratamen-to da superfcie como superfcie libertava o pintor de todo um conceito de composio. contra o conceito limitado de compor (compor como equilibrar) que Mir empreende ento sua luta obscura. Como fcil de se compreender, essa liberta-o, por no se dar com bases em princpios tericos, no se processa bruscamente. A composio renascen-tista em Mir no bruscamente destruda. Aquela li-bertao se exprime em luta, numa luta lenta, em que o novo tipo de economia se vai fazendo mais e mais pre-sente em cada quadro, e esses quadros mais e mais nu-merosos dentro da obra do pintor. Os primeiros passos de Mir contra a composi-o renascentista se do a partir dos quadros de 1924. neles que Mir abandona a terceira dimenso e toda a slida estrutura que se pode notar em sua primeira fase. Estrutura esta, absolutamente clssica, ou renas-centista, dentro da qual esse ps-cubista se ocupa-va em criar variaes to seguras. Variaes, jogos te-ricos de composio, que estavam a denunciar nele muito mais do que a existncia de um simples dom-nio instintivo. Embora poucos tenham se detido a falar disso, j que a crtica prefere realar, em tal primeira fase, seus dons de colorista e de lrico, a verdade que quadros como La Masa apresentam uma estrutura to cerra-da, uma ordenao to firmemente estabelecida, que no seria demais defini-los como obra de um pintor essencialmente marcado pela preocupao de cons-truir. Um quase Lhote. Nos quadros que realizou a partir daquele ano, Mir comeou a pintar aquelas figuras simplificadas, verdadeiras cifras da realidade, que para muita gente constitui, ainda hoje, e somente, a maneira Mir. Essas figuras, alis, atravessaro quase toda sua fase de pes-quisa. Essa simplificao da realidade, essa estilizao sada da realidade mais imediata porm levada a um

    PROSA / JOAN MIRO

    ponto de abstrao sempre crescente, tem mesmo uma importncia primordial: foram elas que lhe permiti-ram desvencilhar-se da terceira dimenso, j que tudo ficava colocado como que num primeiro plano abso-luto. Nessas figuras ntidas e recortadas, mesmo a sen-sao de relevo era anulada. O abandono da terceira dimenso foi seguido do abandono, quase simultneo, da exigncia de centro do qua_d_ro. Mir que, ao desenhar cada uma das figu-ras estilizadas de seus quadros de ento continuava obediente s propors e aos ritmos renascentistas (isto , individualmente em cada uma das figuras) , lan-a-se contra qualquer hierarquizao de elementos de seu quadro. idia da subordinao de elementos a um ponto de interesse, ele substitui um tipo de com-posio em que todos os elementos merecem um igual destaque. Nesse tipo de composio no h uma orde-nao em funo de um elemento dominante, mas uma srie de dominantes, que se propem simultanea-mente? pedindo do espectador uma srie de fixaes sucessivas, em cada uma das quais lhe dado um setor do quadro. Isso no significa que Mir haja abandonado com-pletamente, desde ento, a preocupao de equilibrar. o equilbrio que preside construo de cada um desses quadros inscritos num quadro, cada um por si uma pequena estrutura clssica. O que Mir parece ter pretendido ser impossvel dizer. O que Mir obteve foi uma desintegrao da unidade do quadro. Essa fragmentao do quadro tambm no cons-titui descoberta de Mir. Alis, esse tipo de compo-sio apenas superficialmente vai de encontro ao es-tatismo renascentista. Ele multiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma srie de atos instantneos, a uma contemplao descon-tnua. Mas, em sua natureza, a composio esttica continua inaltervel. Aquele tipo de composio, ainda hoje caro a al-guns pintores, principalmente queles que, realizan-do uma pintura em duas dimenses no se podem so-correr da profundidade para ajud-los a organizar superfcies muito grandes, no o seduziu muito. Pou-

    Sua histria: ainda o

    discontnuo

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  • Sua histria: o objeto e a moldura

    Sua histria: o falso dinamismo

    JOO CABRAL DE M ELO NETO / BRA COMPLETA

    co depois, Mir abandona essas superfcies como em ebulio para abordar composies de estrutura me-nos complexa. Quadros menores, apresentando obje-tos individuais ou pequenos grupos de objetos. Suas cifras se fazem talvez mais hermticas; sua anedota mais pobre: sintomas que se poderiam interpretar como de uma maior preocupao de construir. Neste seu passo - e este Mir o deu sozinho - o pintor ainda est longe de sua posterior inveno. Mas ele constitui sua primeira incurso fora do estatismo. O s abandono da terceira dimenso e do conceito de centro do quadro, na evoluo deMir, tem um senti-do, hoje, porque o pintor no permaneceu a; a aboli-o da terceira dimenso e do centro de interesse se no se acompanhava do abandono de todo aparato compositivo criado para ela, pouco, ou nada significa-va em favor da superfcie. Esse primeiro ataque direto contra o estatismo vai dirigido contra leis em que este se apoiava essencial-mente: aquelas que determinam a situao de um ob-jeto na superfcie: a relao entre o objeto e a moldura. Da mesma maneira como se pode dizer que o traba-lho de composio do pintor renascentista busca che-gar a um ponto focal principal, se pode dizer, que esse trabalho parte do limite (a contemplao far, poste-riormente, o caminho contrrio: ela se concentra nesse ponto focal j estabelecido e se vai diluindo at a beira da supe~fcie pintada), isto , da moldura do quadro. a contar da que se estabelece a situao daquele ponto e, posteriormente, os pesos desse jogo de equilibrar. Poui:o interessado em equilibrar, em fixar, as ex-perincias que Mir realiza nessa poca parecem bus-car uma medida fora daquela medida fatal, por meio da qual se obtm o equilbrio slido e no ameaado da pintura nascida no Renascimento. Nessa poca, ainda distante do dinamismo posterior, o que Mir explora no um ato temporal do espectador. mais bem uma forma de energii, at ento no descoberta: a que pode advir da colocao de uma figura numa posio tal, dentro da superfcie, que produz no es-pectador uma sensao de que ela se vai precipitar, mudar de lugar.

    PROSA / JOA N MIRO

    Essa energia, evidentemente, uma iluso. A um olho no automatizado, no acostumado inconscien-temente s propores e ao equilbrio que se adquirem na contemplao de museus e reprodues, ou me-lhor, a um olho selvagem, virgem dessas formas com as quais o hbito visual amoldou nossa contemplao, essa energia imperceptvel. Sempre que no se d a tendncia espontnea de todo olho, de colocar a coisa onde se acostumou a ver as coisas colocadas, essa ener-gia, essa sensao de coisa que se precipita e quer bus-car sua prpria estabilidade, ser imperceptvel. Mir parece haver conseguido essa libertao da moldura nos quadros que pintou antes da guerra de i939. Essa libertao no assinalada por uma exclusi-vidade da maneira dentro de suas obras dessa poca, e sim, pela freqncia sempre maior que se nota no em-prego dessa liberdade. uma libertao no sistemti-ca, interrompida por outras experincias contrrias, em que o artista parece medir-se.

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    Mir no-gramatical

    Mir anti-gramatical

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    Esse aspecto da evoluo da pintura de Mir - na qual distingo urna continuidade coerente, embora nem sempre uma exclusividade absoluta dentro das fa-ses que constituem a histria de seu estilo - me parece perfeitamente compreensvel se se tem em conta o ca-rter no terico do artista. Mesmo em sua ltima fase, quando parece estar mais seguro de sua composio, se observaro no conjunto de seus quadros essas oscila-es, normais num trabalho que no se baseia em siste-mas, isto , em algo preiso e inaltervel. Mir no realizou um sistema de composio. No existe uma gramtica Mir. Mais ainda: Mir no s no a formulou jamais como, e estou seguro disso, no possui um conceito exato do que tecnicamente, ou esteticamente, pode constituir sua maneira atual de compor. Mais ainda: creio que, mesmo sumariamente, o que constitui sua maneira de compor no pode ser re-duzido a leis. Seno a leis negativas. Mas a indicao das leis tradicionais que em tal ou qual quadro ele de-sobedece, ter alguma utilidade? Para os que acredi-

    . tam que sim, deixo a sugesto, sem acompanh-los porm no exerccio, que, de resto, no oferece nenhu-ma dificuldade. Eu, por mim, creio que no. Mir no aborda as leis da composio tradicional para combat-las. Mir no busca construir leis contrrias, uma nova preceptiva paralela dos pintores renascentistas. O que Mir pa-rece desejar desfazer-se delas, precisamente porque so leis. Livrar-se, lavar-se delas, coisa a meu ver abso-lutamente diversa da atitude de substitu-las ou de us-las pelo avesso. Dito de outra maneira: Mir parte de uma atitude psicolgica. E da mesma maneira como a ela se deve atribuir as causas de sua inveno - e isso ser o obje-to da segunda parte deste ensaio - a ela que se deve

    PROSA / JOAN MIRO

    atribuir o desenvolvimento conseqente que se obser-va na evoluo do estilo de Mir. Na qual, apesar da-queles recuos aparentes e da coexistncia de maneiras dentro dos quadros de uma mesma poca, existe como que uma luta oculta, mas constante, entre a velha ma-neira de compor e certos elementos perturbadores que a vo corroendo internamente. Luta que se resolve pela vitria posterior desses elementos, que acabam por se tornar predominantes nas obras que o artista pintou nestes ltimos anos.

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    Aparece o dinamismo

    O que o dinamismo de Mir

    JOO CABRAL DE M ELO NETO / BRA COMPLETA

    libertao da moldura como ponto de partida do trabalho de compor, seguir-se-ia, na pintura de Mir, a explorao - e a consolidao - das possibilidades dinmicas da superfcie. Historicamente, creio que ela data de sua volta Espanha, durante a ltima guerra europia, e de seu isolamento em Maiorca. Ali, Mir parece haver encontrado uma disposio de esprito favorvel a um demorado dilogo com sua pintura. Demorado e tranqilo. Mantido nesse plano simples do fazer, artesanal, em que a mo fabricadora, por no estar dissociada da inteligncia fabricadora, no ne-cessita criar expresso terica para sua norma. (Apesar da impossibilidade de haver uma gramti-ca Mir, creio que possvel esboar, atravs de seus resultados objetivos, o que se pode chamar a constante dinmica que vemos hoje predominar nos quadros do mais recente Mir. Essa constante dinmica se expres-sa por um crescente poder da linha e pelo desejo de obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das limitadas melodias admitidas pela pintura funda-da no Renascimento. Antes porm de estudar esses aspectos objetivos do dinamismo de Mir, deve salientar-se que o artista no parece jamais interessado em realizar quadros obedien-tes a um plano geral de circulao, grandes painis em que o percurso do olho espectador seja cuidadosamen-te previsto e controlado. O dinamismo dessa sua pintu-ra mais recente se caracteriza bem mais pela presena de pequenas melodias dentro do quadro, que o olho aborda por onde melhor lhe parece. Esses quadros no impem ao espectador um movimento continuado e nico, como nico e exclusivo o ponto a partir do qual pode ser abordada a composio esttica.) O que caracteriza seu trabalho, a partir de i940, um crescente poder da linha. Uma mancha de cor, uma superfcie dentro de outra superfcie pertencem

    PROSA/ JOAN MIRO

    categoria do esttico. A ateno, para apreend-las, no obrigada a realizar um ato temporal. Uma linha, pelo contrrio, pertence categoria do dinmico e exi-ge, para ser percorrida, um movimento do espectador. O corpo de uma linha pode ser mesmo, a expresso de um movimento. Nesta composio, a linha no um elemento peri-goso como se d com a composio tradicional, onde ela, se no est dominada, um elemento dissociador. Nesta composio, a linha a mola. no somente o que contemplar, mas a indicao, o guia, a norma da contemplao. Ela vos toma pela mo, to poderosa-mente, que transforma em circulao o que era fixa-o; em tempo, o que era instantneo. A, agora, j o dinamismo no ilusrio como no caso daquela energia que Mir se dedicou a criar, ao propor ao olho automatizado, relaes contrrias a seu automatismo. Trata-se, agora, de uma sensao real, que pode ser verificada. O que essas linhas vos do, no uma iluso de movimento. Elas vos im-pem um verdadeiro movimento. Evidentemente, esta pintura que exige um discor-rer da ateno sobre a superfcie, isto , que exige um novo tipo de contemplao, necessita assegurar-se de que as linhas em que ela se baseia so poderosamente fortes para impor circulao. Porque em caso contr-rio, isto , se essas linhas no so suficientemente for-tes como guia, e no obrigam ao espectador esse dina-mismo visual, todo o edifcio dq quadro desmorona. Na composio esttica renascentista, a linha est deliberadamente empobrecida. Porque sua natureza essencialmente dinmica, isto , inimiga, a linha eli-minada ou anulada. Basta pensarmos no que os pre-ceptistas chamam ritmo. Esse mnimo de movimento estabelecido segundo minuciosa polcia e autorizado apenas em algumas poucas formas, simples e dbeis, j montonas. Isto : o ritmo permitido apenas en-quanto no ameace o esttico ou enquanto seja manti-do como um elemento acessrio, margem da iluso de profundidade. Se pode mesmo afirmar que naquela composio se permitem unicamente as linhas plasmadas pelas

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    Importncia da linha

    A linha na estrutura esttica

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  • Alinha na pintura deMir

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    exigncias do esttico. So geralmente formas simples de base geomtrica, curvas que sempre se voltam so~ bre si mesmas, em desenvolvimentos harmnicos que asseguram seu prprio equilbrio. Isto : so formas em que se anulou, completamente, qualquer excitao ao dinmico. Quer por se haverem anulado, criando sua prpria estabilidade e repouso, quer por se entre-garem ao espectador, desde seu primeiro movimento. Portanto, linhas capazes de ser apreendidas ins-tantaneamente. No primeiro caso, porque, havendo criado seu prprio equilbrio se revelam ao espectador mais como massa ou superfcie do que como linha; e no segundo porque o olho, que as adivinha desde o primeiro momento, nada encontra que o obrigue a percorr-las completamente. A datar desses quadros que pintou na Espanha, vemos que Mir vai abandonando as pobres e repeti-das melodias da linha renascentista. J no com a li-nha elegante ou harmoniosa, formas plasmadas pelas necessidades do equilbrio, que ele conta. Ele tem de reencontrar a funo da linha. Tem de abandonar as linhas onde a contemplao permanece estagnada e entregar-se criao de novas melodias. Mir parece haver compreendido perfeitamente a fora de sua linha. Observemos os quadros que pintou a partir dessa poca. Veremos como so mais fre-qentes neles essas linhas soltas, colocadas pelo pintor em posio essencial dentro da obra. Observemos suas formas, essas manchas to simples - to limitadas como vocabulrio, como literatura - luas, estrelas, circunferncias. Podemos notar como se vai fazendo mais e mais poderoso, nelas, seu contorno, sua linha. Essas formas, que em seus quadros antigos eram de-senhadas quase geometricamente, ou melhor, dentro do esprito harmnico da linha renascentista, em sua verso atual incitam a que as exploremos completa-mente, em todos os milmetros de sua fisionomia e de seu contorno, mesmo quando no existentes como li-nhas em si, mas como limite de uma figura e de uma mancha. A, ainda, uma luta contra o esttico da ateno que vemos em Mir: uma dupla luta, contra o esttico prprio da cor e contra o esttico prprio da

    PROSA I JOAN MIRO

    contemplao de figuras conhecidas e aprendidas de memria. a esse exerccio que Mir parece entregar-se. Em l seus quadros dessa poca, suas linhas aparecem com uma liberdade de destinao que nosso olho desco-nhecia. Mais do que a uma linha, isto , em lugar da-queles organismos harmnicos e frios, sobre os quais nossa ateno deslizava meio indiferente, que nos agradavam precisamente pela indiferena com que podamos executar nelas melodias conhecidas, o que nos parece assistir, diante de suas obras dessa poca ao prprio crescimento de um organismo. Assistimos, temos a iluso de assistir, ao nascimento dessa linha, que parece estar crescendo a nossos olhos, acabada de nascer com mil reservas de surpresa. O que chamei surpresa nelas essencial. Sua linha, a partir dessa poca se vai estabelecendo medida que a contemplais. Vosso olho no pode prever, absoluta-mente, a seguinte direo de qualquer desses organis-mos. Eles parecem recomear a cada momento um novo caminho. Parecem burlar-se de vossos olhos automatizados, parecem interessados em livrar-se do caminho fatal que vosso olho automatizado, ou vossa mo automatizada de pintor deseja para eles, ao qual deseja conden-los. Atravs dessa luta entre vosso costume e sua sur-presa essencial, de cada milmetro, essas linhas se apoderam de vossa ateno. Elas sujeitam vossa aten-o, acostumada a querer adivinhar as linhas, e a mantm presa atravs de uma srie ininterrupta de pequenas e mnimas surpresas. Aqui, vossa memria no ajuda vossa contemplao, permitindo-vos adivi-nhar uma linha da qual apenas prcebestes um pri-meiro movimento. Aqui no podeis adivinhar, isto : dispensar, nada. O percurso tem de ser feito, e isso s pode realizar-se dinamicamente.

    O segredo de sua linha

  • PROSA / JOAN MIRO

    II

    Os primeiros pintores do Renascimento - in-ventores do que hoje a Pintura - eram obrigados a um trabalho de criao eminentemente intelectual.

    Em teoria, podemos imaginar esse tipo de artista. Ele estava colocado diante de um problema permanen-te que resolver. O mnimo detalhe de sua composio significava problema. Que resolver cientificamente (Para ele, as idias de cincia e de arte no se tinham dissociado como poste-riormente, at se tornarem antagnicas) . A criao de uma pintura coincidia ento, com a criao da Pintura. Ele ainda no dispunha de uma arte - de uma tcnica - e, muito menos, de memria. Era, a sua, uma pes-quisa de cada minuto, num campo desconhecido, lci-da e intelectual. Era ainda, e essencialmente, inveno. Posteriormente, passaria a ser descoberta. A inteligncia, eminentemente pragmtica, resolve cada problema de uma vez por todas. Mata cada pro-blema ao resolv-lo. Anula o que pesquisa, conver-tendo resultados em leis, isto , em receitas. Depois, o sistema dessas leis, dessa experincia, pas-sou a poder ser transmitido. O pintor j possua ento a sua arte. O trabalho de criao era reduzido, da pes-quisa de uma soluo conveniente, para a aplicao do que se sabe ser a soluo conveniente. A lei desintelec-tualiza o trabalho de criao, j que foi formulada para que esse trabalho no tivesse de se repetir sempre. O pintor que j no criava uma lei mas aplicava uma experincia recebida de outro, o pintor j artista, vai-se tornando cada dia menos intelectual. Ele, nessa poca, j o era, apenas, parcialmente: apenas enquan-to a manipulao dessas solues artsticas continham esforo, aprendizado. Mas medida em que essas so-lues foram sendo mais dominadas, em que o con-

    Quando a estrutura foi

    pesquisa

    Quando a estrutura foi

    gramtica

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    Quando estrutura instinto

    )OO CABRAL DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    junto de regras se foi fazendo instinto e habilidade, sua desintelectualizao se foi acentuando. Evidentemente, no existiu aquele pintor inicial, colocado diante de todo um gnero a criar. Mas o ar-tista daquele tempo - e tanto mais quanto recuamos dentro do Renascimento - era obrigado a um traba-lho de criao lcido e minucioso, que exigia a parti-cipao inteira de sua personalidade, mobilizada -pelo esforo - no que ela possua de melhor e mais potente. Com o tempo, no s o nmero de cadveres de problemas, tanto vale dizer: de problemas resolvidos, de leis, foi aumentando, como tambm a freqn-cia na manipulao dessas solues. E por esse moti-vo se foi criando o hbito dos resultados dessas solu-es, seu automatismo. Com o tempo, a transmisso do conjunto de leis que constitua a arte da pintura se foi fazendo menos e menos terico. Isto : mais e mais intil. Talvez o mal das academias, hoje, no esteja na mutilao que possam representar para a livre expres-so da personalidade. Talvez seu mal maior esteja em sua meio ridcula inutilidade. escola substituiu o museu; ao trabalho intelec-tual, a criao intuitiva; inteligncia, a memria. quele tipo de pintor intelectual, mais ou menos inte-lectual segundo sua prtica ou sua poca, obediente ao terico no pelo gosto da limitao - como se d com o acadmico - e sim porque somente atravs do te-rico lhe podiam chegar as solues que o problema de seu trabalho lhe propunha, substituiu um tipo de pin-tor que, sem conhecimento do terico, com desprezo dele ou mesmo voltado contra ele, termina sempre por encontrar-se com os mesmos resultados. Um tipo de pintor integrado numa tradio, isto , num automa-tismo, que lhe advm da impregnao desses sculos de arte anterior contemplados. Evidentemente, a atitude da pintura posterior ao Renascimento no tem sido, sempre, uma atitude con-formista. Nela, atitudes as mais violentamente anti-renascentistas se podem apontar: quanto ao tratamen-to da cor, ou da luz, dos valores, da matria. (Isto : tem havido momentos, na histria da pintura, em que

    PROSA / JOAN MIR

    ela se manifesta estranhamente sensibilizada em rela-o a um desses aspectos particulares da tradio rece-bida. Ela ento expulsa todos os cadveres venerveis relacionados com tal ou qual aspecto e se entrega, por um momento, a um trabalho de criao absoluta.) Mas no que diz respeito estruturao do quadro, nenhu-ma transformao se verificou. Mais ainda: at o ad-vento dos cubistas todas as transformaes tm acon-tecido absolutamente margem dos problemas que com ela se relacionam. No me parece simpls coincidncia o fato de haver permanecido inaltervel, debaixo das transformaes mais violentas, o esqueleto da construo renascen-tista. A automatizao daquela composio no ad-quirida, unicamente, pela repetio de maneiras de fa-zer. No s o costume que adquire a mo, ao fazer e refazer um gesto, mas o hbito de aparncias cons-trudas de maneira uniforme, verdadeiras fmeas mol-dando a viso do homem. , sobretudo, uma automa-tizao da sensibilidade. Isto : ela se processa num plano estranho ao dos elementos anedticos de um quadro, sobre os quais o espectador exerce normalmente sua anlise. A com-posio um elemento oculto no quadro; sustenta a aparncia mas se apaga nela. Serve aparncia. A composio no existe para ser analisada. Teoricamen-te, a composio s deve propor-se ao espectador atravs de seus defeitos: quando esteja imperfeitamen-te realizada. Portanto, a composio recebida sem que a aten-o se d conta. nesse plano, em que a inteligncia no se d conta, que ela se cristaliza em hbito. E des-se plano obscuro de memria, como instinto, que ela se impor ao pintor de hoje quando ele dispuser sobre a tela os elementos de sua obra. Porque nesse trabalho no uma frmula terica que dirige o pintor integra-do na tradio. a busca de uma harmonia, de um equilbrio conhecido, que ele no sabe definir e sim, reconhecer. Ao qual ele chegou pela sensibilidade. Que ele no inventa, descobre. Esse elemento, a composio, que deve ter exigido dos criadores da pintura renascentista um mximo de

    709

    A estrutura inaltervel

    Porqu da estrutura

    inaltervel

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    elaborao intelectual, terminou por ser o mais instin-tivo dentro dos diversos componentes da pintura. Pode-se mesmo dizer que em todo quadro h boa com-posio, isto , composio renascentista, equilbrio; e que a presena dessa composio que d, normal-mente, a um quadro, a categoria de pintura. Ela um elemento que o espectador, mesmo o menos informa-do, pressupe, obscuramente. . Afirmar isso no significa afirmar que todos os pm-tores tm sabido, ou sabem, jogar com as possibili-dades desse mesmo elemento (como Rafael, Seurat, Lhote). Sim, que existe sempre, mesmo naqueles que no tomam as regras do jogo como ponto de partida, um certo instinto do quadro, um mnimo de composi-o capaz de assegurar a estabilidade do olho especta-dor exigida pela iluso de terceira dimenso.

    PROSA / JOAN MIRO

    Seria possvel a existncia de uma atitude criadora contrria a essa? Seria possvel uma pintura voltada contra essa intuio, contra essa memria obscura que parece fazer inevitveis os gestos da pintura contem-pornea? A obra de Mir me parece uma resposta a essa pergunta. Ela me parece nascer da luta permanente, no traba-lho do pintor, para limpar seu olho do visto e sua mo do automtico. Para colocar-se numa situao de pu-reza e liberdade diante do hbito e da habilidade. Mir parte, portanto, de uma atitude psicolgica. Se conseguimos entend-la, teremos, a meu ver, a ex-plicao de sua originalidade em relao pintura posterior ao Renascimento. E, sobretudo, a explica-o do processo atravs do qual essa originalidade se foi consolidando, apesar das oscilaes prprias a um trabalho que no quer apoiar-se no terico, e ad-quiriu uma continuidade perfeitamente conseqente. Em todo caso, absolutamente distinta do simples e ocasional abandono deste ou daquele princpio com-positivo tradicional (como em Bonnard, Matisse, Chagall). Em Mir, mais do que em nenhum outro artista, vejo uma enorme valorizao do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer. um meio para chegar a um quadro, para realizar a exprsso de coisas ante-riores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Mir, um pretexto para o fazer. Mir no pinta quadros. Mir pinta. Essa valorizao do trabalho de criar implica, for-osamente, deixar em plano secundrio tudo aquilo que - assuntos, anedota, intenes - constitui nor-malmente o mvel, e a justificao, desse trabalho. Em Mir, isso muito fcil de ser comprovado. H em toda sua obra um absoluto desinteresse pelo tema, ex-pressado na limitao e mnima variao de sua lin-

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    Psicologia de sua composio

    O gosto pelo fazer

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    O fazer como ponto de partida

    JOO CABRAL DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    guagem simblica e, sobretudo, no esvaziamento desse mesmo simblico. Uma estrela ou uma lua, num quadro, podem per-tencer ao domnio do idiomtico ou do caligrfico. Mesmo em pocas em que parece mais interessado em fazer uma pintura literria (isto , em empregar um idioma) fcil constatar como o pintor vai corroendo internamente seu vocabulrio - essa lua ou essa es-trela - at deix-lo inteiramente vazio de qualquer valor semntico. No sei se tm pensado nisso os que propem para essa obra chaves de decifrao, como se se tratasse de um volapuque lrico. Essa valorizao do trabalho criador como pura ati-vidade implica, forosamente tambm, em deixar a iniciativa ao que possa surgir dessa.luta entre a mo fabricadora e a matria dura e irredutvel. Aqui est a razo do que se poderia chamar seu experimentalismo, de suas cuidadosas pesquisas com a matria e, princi-palmente, de sua curiosidade - e capacidade de adap-tao - s tcnicas grficas mais diferentes. Mas sobretudo, essa valorizao do fazer, esse colo-car o trabalho em si mesmo, esse partir das prprias condies do trabalho e no das exigncias de uma substncia cristalizada anteriormente, tem, na expli-cao da obra de Mir, uma outra utilidade. Esse con-ceito de trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permite, ao artista, o exerccio de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mnimo resultado a que seu trabalho vai chegando. ' Talvez pudssemos chamar a isso, o intelectualismo de Mir, aproveitando o que na palavra possa indicar uma atitude de vigilncia e lucidez no fazer, e, ao mes-mo tempo, de contrrio ao deixar-se fazer e ao saber fazer, ou por outra, ao espontneo e ao acadmico.

    PROSA/ JOAN MIRO

    Esse conceito do trabalho de criao, que acaba resultando, essencialmente, em uma luta contra o ins-tintivo, coloca a obra de Mir numa posio muito es-pecial em relao aos surreali~tas a que esteve asso-ciado em determinado momento. Especial: porque se oposta, essencialmente, ao automatismo psquico que os surrealistas apontavam como norma de criao, evidente que Mir no pare-ce haver sido estranho ao programa daqueles mesmos surrealistas, de buscar uma arte que pudesse atingir, e revelar, um fundo existente no homem por debaixo da crosta de hbitos sociais adquiridos, onde eles locali-zavam o mais puro e pessoal da personalidade. A originalidade de Mir em relao a eles est em que buscaria realizar de maneira inteiramente diferen-te essa proposio inicial. A Mir, a seu esprito arte-sanal, quase, haveria de soar estranhamente a esttica antiplstica dos surrealistas, que pareciam interessados em criar um tipo de arte superior e independente dos gneros de arte, pairando independente da realizao objetiva de uma obra e, s vezes, capaz de existir apesar de uma obra. Se essa esttica - ou mais justamente: essa tica -termina por significar um enorme desprezo pela for-ma, isto , pela presena objetiva de uma obra, o meio que ela prope, esse automatismo psqujco, signifi-ca - e a isso Mir haveria de ter sido mais sensvel - um desprezo absoluto pelo fazer, pelo trabalho de criao da obra. Que o surrealismo tenta anular, redu-zir ao mximo, submetendo-o ao ditado do espont-neo; ou menosprezar completamente, admitindo o frio e amaneirado registro de estados psicolgicos ou vises onricas, realizado posteriormente, dentro do clima de academia. A Mir, to pintor, isto , to unicamente pintor, ou pintor to pouco literrio, esses tipos de

    Mir eo Surrealismo

    Entendimento do Surrealismo

  • 714

    Ainda o Surrealismo

    )OO CABRAL DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    antipintura no devem ter absolutamente interessado. Ele aceitou aquela proposio inicial do surrealismo, mas transformou-a num outro sentido. Ele entendeu- no como a introduo do subjetivo e do psicolgico como assunto da pintura de seu tempo. O que ele aceitou foi a idia de levar at o campo mais profundo do psicolgico a busca de renovao formal a que a pintura se entrega h um sculo, com uma intensidade somente interrompida nos anos de ascendncia dos pintores surrealistas. Assim, ao automatismo psquico Mir ops o que havia em seu esprito de mnimo e minucioso, de arte-sanal. anulao da razo como caminho para aquele autntico humano, preferiu o excesso de razo, de tra-balho intelectual, na luta pelo autntico. Uma atitude de luta, a sua, absolutamente contrria atitude de abandono dos surrealistas que, entregues ao puro ins-tintivo, foram encontrar, mais intensos, os hbitos vi-suais armazenados, a memria. Contrariamente tambm aos surrealistas, no uma pintura psicolgica, de tema ou de tese, de ane-dota psicolgica, que Mir realiza. Mir sempre quis, e quase sempre o conseguiu, realizar pintura. Essa ati-tude psicolgica, a partir da qual ele empreende sua aventura, informa apenas seu trabalho criador, seu processo mental de criao. H quem imagine que Mir pinta vises ou regis-tra, plasticamente, estados psicolgicos. J se tem fa-lado at de psicografia, a respeito de sua obra. Entre-tanto, essas pessoas no se do conta de que Mir tem pintado, somente, o que at hoje tem sido objeto de representao pela pintura. O que acontece que ele apresenta esses objetos num estado de criao e de in-veno que no conhecamos. Aquela lua ou estrela no so jamais luas metafsicas ou luas de sonho. So luas e estrelas pintadas absolutamente puras de outras representaes de luas ou de estrelas.

    PROSA/ )OAN MIRO

    O trabalho criador do pintor catalo, que tento me representar tanto quanto esboar, traz consigo um problema especial. Sua conscincia, seu rigor, no se apia num elemento concreto: a lei, a norma exterior. Quando este elemento est presente, o trabalho da conscincia se exerce no sentido, apenas, de uma fisca-lizao de resultados. E o rigor dessa conscincia estar em eliminar ou ajustar tudo o que no se adapte a essa regra ou idia, slida, externa ao artista e para ele uma realidade precisa, inaltervel. E a qualidade do artista estar na maior ateno com que exera essa polcia e em sua capacidade de aceitar os despojamentos a que ela o obrigue. Inegavelmente esse tipo de trabalho pode evitar o espontneo e o no autntico. Mas somente at um certo momento. Porque a verdade que essas formas exteriores, intelectuais apenas enquanto se opem a uma fcil manipulao, podem ser prontamente trans-formadas em hbito. Elas acabam mesmo, sempre por perder esse carter inicial de disciplina e se transfor-mam em excitante do espontneo e do instintivo. possvel a uma pessoa acostumar-se a conversar em sonetos camoneanos como foi possvel ao olho ociden-tal acostumar-se com as sutis e complicadas propor-es da pintura nascida com a explorao da terceira dimenso. No trabalho de Mir, essa norma fixa de julgamen-to no existe. Nada existe exterior sua atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, ne-nhuma frmula qual ele deixe a misso de buscar tal soluo, com a qual ele compara sua criao. Ser a sua uma espcie de criao absoluta, em que cada mnimo passo tem de ser realizado? O trabalho de criao de Mir, eu o imagino como o de um homem que para somar 2 e 2 contasse nos dedos. No por ignorncia de sua tabuada - como se d com a pintura infantil. Mas

    Continua a psicologia

    de sua composio

    Intelectualismo deMir

  • 716

    Ainda seu intelectualismo

    JOO CABRAL DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    - e nessa capacidade de esquecer sua tabuada est uma das coisas mais importantes de sua experincia -pelo desejo de colocar seu trabalho, permanentemente, num plano de inveno da aritmtica. Se verdade que a lucidez da criao de Mir no se apia em leis ou elementos tericos - a que obedecer ou desobedecer - verdade tambm que seu julga-mento - e a lucidez no mais do que o uso de um estado de julgamento permanente - no pode dis-pensar uma base, um critrio de escolha e apreciao. Mir, e nisso ele se assemelha ao artista automatizado de seu tempo, usa, tambm, o critrio de seu gosto, a reao de sua sensibilidade. Mas somente nessa atribuio, que ambos fazem sensibilidade, da misso de apreciar. Porque enquanto o pintor integrado na tradio trabalha em sua linha at chegar a reconhec-la, at dar-lhe tal aparncia que ele no sabe porque chega a satisfazer-lhe, at coloc-la na linha da tradio e da memria, Mir luta para que, em nenhum momento, possa vir a reconhecer, na sua, harmonias obscuramente aprendidas. Isto : em Mir, no coincidem seu gosto e seu impulso obscuro; o gos-to no nele expresso de cultura, de hbito visual. Assim, o processo mental dessa conscincia de Mir essencialmente negativo. No o rigor para reproduzir o visto, para criar variaes novas dentro de harmonias vistas, mas uma depurao de todo cos-tume. a expresso dessa luta que aparece no quadro de Mir. Sua pintura a expresso desse fazer com luta, desse fazer em luta. Jamais fceis criaes de um homem que tenha anulado em si todo o costume e a memria. No ser difcil compreender-se a natureza doloro-sa de um trabalho dessa ordem. Para o artista contem-porneo que imaginamos, integrado nessa tradio e aceitando-a inconscientemente, haver luta e esforo, apenas, enquanto no houver domnio e habilidade. Para Mir, essa luta ser permanente. Trabalhar con-tra seus hbitos visuais no significa anul-los. Esse esforo para venc-los ter de renovar-se cada dia. O mnimo gesto criador ser, necessariamente para ele, uma luta aguda e continuada.

    PROSA I )OAN Mmo

    Nesse trabalho, no h, assim, momentos de facili-dade em que as coisas se resolvem ajudadas por uma descoberta anterior. No h solues que signifiquem uma vitria mais longa que a de um momento. Cada milmetro de linha tem de ser avaliado. No h, como no trabalho de certos poetas, o equivalente daquela primeira palavra, fecunda de associaes e desenvolvi-mentos, que contm em si todo o poema. A luta, aqui, se d na passagem de uma a outra palavra e se uma dessas palavras conduz uma outra, em lugar de aceit-la em nome do impulso que a trouxe, essa conscincia lcida a julga, e ainda com mais rigor, precisamente por sua origem obscura. Essa atitude equivale a colocar-se, permanentemen-te, no diante de um quadro a criar mas diante da pin-tura a criar. uma aspirao a colocar-se num ponto anterior primeira grafia pelo abandono de toda expe-rincia que significa a pintura que tem existido at ele. No por desprezo dessa experincia ou de seu valor. Apenas, para encontrar e explorar em sua obra, a vir-gindade do homem anterior ao primeiro quadro, que podia traar sua linha em condies de absoluta liber-dade. Criao, portanto, como equivalente de inveno e no de descoberta. Equivalente a uma inveno per-manente. Porque o rigor dessa conscincia, a nica tal-vez que conseguiu passar da luta contra o ponto de partida da regra, levando-a mais longe, luta contra o resultado da regra assimilado a ponto de hbito, exer-ce-se tanto contra esse mesmo hbito como contra a soluo ou a maneira por meio da qual, um momento atrs, ele conseguiu criar margem do ostume. Colocado - pela permanente depurao de seus hbitos visuais, atravs da luta contra o hbito e a habi-lidade - nesse ponto anterior pintura, Mir refez a sua em sentido diverso do que realizou a pintura poste-rior ao Renascimento. No se pode dizer que Mir te-nha desejado - nem mesmo que ele tenha uma cons-cincia terica disso - realizar aquele tipo de pintura para o qual tentei oferecer uma teoria na primeira par-te deste trabalho. O trabalho de Mir busca simples-mente outra coisa: a validade de seus resultados. O que

    717

    Um rigor sempre

    mais agudo

    Criar como inventar

  • Sentido do vivo"

    ) OO CABRAL DE M ELO N ETO / BRA C OMPLETA

    acontece que nossos hbitos visuais estavam molda-dos por mil maneiras de composio esttica e fugir a eles significou, simplesmente, fugir ao estatismo. Na curta conversa de Mir, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar qual-quer incurso ao plano do terico, onde jamais se sente vontade. Vivo parece valer ora como sinnimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expresso de qualida-de. Essa palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa sensao de vivo o que existe de mais oposto sensao de har-mnico ou de equilibrado. Ela nos dada precisamen-te pelo que sai desse harmnico ou desse equilibrado, diante do qual nossa sensibilidade no se sente ferida, mas adormecida. a esse vivo que parece aspirar a pintura de Mir. Isto , a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hbito e a algo que v, por sua vez, romper, no espectador, a dura crosta de sua sensibilidade acos-tumada, para atingi-la nessa regio onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o indito, o no-aprendido. A descoberta desse territrio livre, onde a vida instvel e difcil, onde o direito de permanecer um minuto tem de ser duramente conseguido e essa per-manncia continuadamente assegurada, no tem uma importncia psicolgica em si, independente do que no campo da arte ela pudesse ter produzido?

    PROSA/ )OAN MIRO 719

    P. S.

    A obra de Mir significa, para a pintura, muito mais do que a apartao de um estilo pessoal; muito mais do que o enriquecimento - afinal relati-vo, por estagnado - -que pode advir, pintura, da inveno de um for-malismo a mais. Ela tambm isso; e, infelizmente, isso, o que nela existe de estilo individual, que tem levado os crticos a valoriz-la. Entretanto, ela tambm outra coisa. Por debaixo do conjunto de ma-neiras pessoais que constituem a frmula-Mir, h uma luta que transcen-de o limitado alcance de uma exclusiva busca de expresso original. H uma luta contra todo um conjunto de leis rgidas que vem estruturando a pintura posterior ao Renascimento e que est presente, sem exceo, por debaixo das frmulas individuais mais contraditrias, exploradas por pin-tores de hoje. A obra de Mir , essencialmente, uma luta para devolver ao pintor uma liberdade de composio h muito tempo perdida. No uma liberda-de absoluta, nem uma anglica liberao de qualquer imposio da_ reali-dade ou da necessidade de um sistema para abordar a realidade. E sim, uma luta para libertar o pintor de um sistema determinado, de uma arqui-tetura que limita os movimentos da pintura. Essa luta d histria do pintor Mir a continuidade de um sistema e explica certas questes que algumas pessoas conhecidas do pintor no se podem deixar de propor. Explica, por exemplo, porque este homem, em cujos comeos se notava to grande amor realidade, e em quem se nota, ainda hoje, to desmedido amor por esse outro tipo de realidade- os ma-teriais humildes de sua arte, do quais sempre parte - foi levado a um ponto extremo de estilizao, de abstrao. De certa maneira, se pode dizer que o abstrato est nos dois plos do trabalho de representao da realidade. abstrato o que apenas se balbu-cia, aquilo a que no se chega a dar forma, e abstrato o que se elabora ao infinito, aquilo a que se chega a elaborar to absolutamente que a realidade que podia conter se faz transparente e desaparece. No primeiro ca~o, ~ fi-gura abstrata por ininteligvel; no segundo, por disfarada. No pnme1ro, se permanece aqum da realidade; no segundo, se nega a realidade. O movimento que me parece haver determinado na obra de Mir o que se poderia entender como um desejo de dar caa realidade, no me pare-

  • 720 )OAO CABRAL DE MELO NETO/ BRA COMPLETA

    ce poder enquadrar-se nessas duas formas de dio ou desprezo. Nesse ho-mem to prximo ao que h de mais concreto na natureza e em seu traba-lho, nesse slido arteso da Catalunha, impossvel seguir o rastro de qual-quer idealismo. No h nele nenhuma inteno de expulsar o assunto. (Ele poder, mesmo, vos decifrar qualquer das manchas de seu quadro; ele at parece se manifestar surpreendido de que no as possais decifrar imediata-mente.) Melhor se definir seu caso dizendo que, interessado em criar uma di-nmica para seu quadro - embora nem sempre se tenha dado conta disso - Mir teve de ir simplificando, a um ponto de puros esquemas, o assun-to de seus quadros. A estilizao abstrata na obra de Mir est determinada pela luta de lograr uma mecnica diferente para a pintura; est determina-da pelas exigncias desse trabalho que se poderia chamar terico. esta inteno e, principalmente, os resultados objetivos a que ela che-gou, que salvam sua obra de ser um formalismo a mais. No necessrio que o pintor, agora seguro de sua mecnica, inicie a volta a um assunto e a uma pintura mais largamente humana, independente de tudo o que, por excesso de valorizao do indivduo, mantm a arte - e as artes - estag-nada e sem sada possvel. Com sua nova mecnica, e com a liberdade de composio que logra em sua obra, Mir ter aberto uma perspectiva. E a pintura, quando se lance numa nova histria, mais arejada e menos fecha-damente individualista, quando empreenda a sntese dos elementos tcni-cos positivos que h em tal ou qual pintura de hoje, que h nas pinturas de hoje (no foi, na verdade, a pinturas diferentes, a gneros de pintura dife-rentes que nos conduziu o formalismo atual?), saber aproveitar o exem-plo e os ensinamentos do pintor de Barcelona.

    FIM DE "JOAN MIRO"

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