João carlos nobre leite “os dirigentes da guiné bissau não cuidaram de criar o estado”

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JOÃO CARLOS NOBRE LEITE: “Os dirigentes da Guiné-Bissau não cuidaram de criar o Estado” Escrito por António Monteiro, Expresso das Ilhas Poucos como João Carlos Nobre Leite estão melhor posicionados para avaliar o percurso dos 40 anos de independência da Guiné-Bissau que se assinalou ontem. O jovem engenheiro civil chegou a Bissau em 1973 e pôde assistir à entrada dos guerrilheiros na capital guineense e ao golpe de Estado em 1980 que pôs término ao projecto da unidade Guiné-Cabo Verde. Nomeado director geral das Obras Públicas logo após o fim da guerra, conservou-se no cargo até 1981, altura em que decide regressar a Cabo Verde. Nesta entrevista João Carlos Leite recorda alguns factos que na sua opinião conduziram este país africano à situação em que hoje se encontra. Expresso das Ilhas Como é que aparece na Guiné, em 1973? João Carlos Leite Eu apareço da seguinte forma: eu já era engenheiro nessa altura e chamaram-me para a tropa portuguesa. Então já tinha saído uma legislação a oferecer, a quem já tivesse um curso superior, a possibilidade de trabalhar civilmente numa repartição pública numa das então colónias. Aconteceu que eu estava nessas condições. Talvez seja importante explicar que com a guerra na Guiné, Moçambique e Angola o governo português tinha dificuldade em colocar civis nas repartições. Daí que criou essa possibilidade. Eu então fiz a instrução militar e meti o requerimento para vir para Cabo Verde para trabalhar na repartição das Obras Públicas e contaria como serviço militar. Mas como era cabo-verdiano atiram-me para a Guiné. Mediante uma guia de marcha, passei do ministério do Exército para o ministério do Ultramar. Assim fui para a Guiné como militar, mas a trabalhar na repartição das Obras Públicas. Não tinha uniforme, porque desliguei-me completamente da tropa, embora isso contasse para a reforma. Foi assim que eu comecei a trabalhar na repartição das Obras Públicas da Guiné. A comissão militar termina em que ano? A comissão era de dois anos, portanto terminaria em 1975. Mas em 1974 dá-se o 25 de Abril e antes da entrada do PAICG em Bissau, que foi a 18 de Outubro de 1974, o partido impôs como condição que a tropa portuguesa tinha que sair antes de entrarem. Então toda a tropa portuguesa tinha que sair, inclusivamente eu e os 11 militares portugueses que trabalhavam na repartição. Só que eu pensei e disse ‘não, não saio, porque sou cabo-verdiano’. Os 11 portugueses foram-se todos embora; eu fiquei e tomei conta da repartição das Obras Públicas que se transformou em ministério [Comissariado] das Obras Públicas e fiquei a tomar conta do ministério durante um ano, porque o ministro nomeado estava a terminar o curso na antiga Jugoslávia. Para o governo português fui considerado desertor porque não me apresentei em Lisboa. Tanto assim é que durante 20 anos não consegui o papel da tropa que contaria para efeitos de reforma, porque tinha sido considerado desertor.

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JOÃO CARLOS NOBRE LEITE:

“Os dirigentes da Guiné-Bissau não cuidaram de criar o Estado”

Escrito por António Monteiro, Expresso das Ilhas

Poucos como João Carlos Nobre Leite estão melhor posicionados para avaliar o percurso dos 40 anos de independência da Guiné-Bissau que se assinalou ontem. O jovem engenheiro civil chegou a Bissau em 1973 e pôde assistir à entrada dos guerrilheiros na capital guineense e ao golpe de Estado em 1980 que pôs término ao projecto da unidade Guiné-Cabo Verde. Nomeado director geral das Obras Públicas logo após o fim da guerra, conservou-se no cargo até 1981, altura em que decide regressar a Cabo Verde. Nesta entrevista João Carlos Leite recorda alguns factos que na sua opinião conduziram este país africano à situação em que hoje se encontra.

Expresso das Ilhas – Como é que aparece na Guiné, em 1973? João Carlos Leite – Eu apareço da seguinte forma: eu já era engenheiro nessa altura e chamaram-me para a tropa portuguesa. Então já tinha saído uma legislação a oferecer, a quem já tivesse um curso superior, a possibilidade de trabalhar civilmente numa repartição pública numa das então colónias. Aconteceu que eu estava nessas condições. Talvez seja importante explicar que com a guerra na Guiné, Moçambique e Angola o governo português tinha dificuldade em colocar civis nas repartições. Daí que criou essa possibilidade. Eu então fiz a instrução militar e meti o requerimento para vir para Cabo Verde para trabalhar na repartição das Obras Públicas e contaria como serviço militar. Mas como era cabo-verdiano atiram-me para a Guiné. Mediante uma guia de marcha, passei do ministério do Exército para o ministério do Ultramar. Assim fui para a Guiné como militar, mas a trabalhar na repartição das Obras Públicas. Não tinha uniforme, porque desliguei-me completamente da tropa, embora isso contasse para a reforma. Foi assim que eu comecei a trabalhar na repartição das Obras Públicas da Guiné.

A comissão militar termina em que ano?

A comissão era de dois anos, portanto terminaria em 1975. Mas em 1974 dá-se o 25 de Abril e antes da entrada do PAICG em Bissau, que foi a 18 de Outubro de 1974, o partido impôs como condição que a tropa portuguesa tinha que sair antes de entrarem. Então toda a tropa portuguesa tinha que sair, inclusivamente eu e os 11 militares portugueses que trabalhavam na repartição. Só que eu pensei e disse ‘não, não saio, porque sou cabo-verdiano’. Os 11 portugueses foram-se todos embora; eu fiquei e tomei conta da repartição das Obras Públicas que se transformou em ministério [Comissariado] das Obras Públicas e fiquei a tomar conta do ministério durante um ano, porque o ministro nomeado estava a terminar o curso na antiga Jugoslávia. Para o governo português fui considerado desertor porque não me apresentei em Lisboa. Tanto assim é que durante 20 anos não consegui o papel da tropa que contaria para efeitos de reforma, porque tinha sido considerado desertor.

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Quando é que é nomeado director geral das Obras Públicas?

Com a entrada do PAIGC em Bissau, fui imediatamente nomeado director geral das Construções. Fala das Obras Públicas, porque assim que era designado altura. Fico na repartição sozinho e ao mesmo tempo director geral e sem nenhum engenheiro a trabalhar comigo, porque na altura havia grande falta de quadros.

O que é que construíram nesse tempo?

No tempo da tropa portuguesa, quase que não saíamos de Bissau. Lembro-me de ter saído umas duas ou três vezes, mas o avião tinha que subir muito por causa dos mísseis dos guerrilheiros do PAIGC. Por isso limitávamos o nosso trabalho à construção de postos sanitários e pequenas obras de cariz social. Com a entrada do PAIGC o que mais me estranhou logo no início é que havia uma avenida, e há ainda ,que albergava vivendas para os chefes de serviço portugueses, porque contrariamente a Cabo Verde onde eram quase todos cabo-verdianos, na Guiné eram todos portugueses. Penso que a avenida chamava-se Arnaldo Schulz e tinha essas vivendas boas dos chefes de serviço. Então, quando os portugueses foram-se embora, o PAIGC entrou e os combatentes que foram ocupar essas casas não ficaram contentes com a arquitectura – queriam salas grandes e outras coisas do género. Lembro-me que havia umas vigas compridas que os batalhões colocavam para poderem passar riachos. Como a tropa portuguesa se foi embora e deixou muito desse material eu peguei dessas vigas para vencer aqueles vãos todos e criar aqueles salões. Até ficaram bem, só que eram vigas com resistência muito grande em relação àquilo que era necessário, mas era o que se tinha. Pensei para os meus botões: uns senhores que viviam em choupanas de palha e agora acham que têm de ter salões nas novas casas. Mas na altura, um jovem revolucionário entre aspas, eu estava disposto a tudo.

Assistiu à transição do aparelho colonial para o Estado pós-indepêndencia. Como foi esse processo? Pela minha maneira de ser, eu não gostei. Isso justifica os sucessivos golpes de Estado na Guiné-Bissau. Lembro-me de que quando recebi o gabinete do militar português que era chefe do serviço das Obras Públicas, havia um livro da autoria de António de Spínola [governador militar da Guiné-Bissau de 1968 a 1973] intitulado Portugal e o Futuro. Então, um ministro que foi ter comigo ao meu gabinete por uma razão qualquer, quando viu o livro ficou assustado. Ele perguntou-me como é que eu poderia ter aquele livro no meu gabinete. Quando ele pediu-me que retirasse o livro disse-lhe ‘camarada ministro, alto lá. Aqui você não manda. Como é que você quer conhecer a história se não ler tudo. Isso de ter o livro e de o ler, não quer dizer que sou spinolista. Agora, nós temos que saber tudo, de bem e do mal, para podermos ter uma opinião, temos de ler de um lado e do outro’. Ele não ficou contente comigo, mas eu tive sempre esse comportamento durante toda a vida: sou frontal e as coisas que eu tenho que dizer, eu digo. E tive muitas cenas desse tipo. Lembro-me também que na altura mandaram queimar o acervo do Centro de Estudos porque tinha documentos do tempo colonial. Até que alguém mandou parar com aquilo, mas ainda queimaram alguma coisa. Eu disse ‘isso é um grande erro não se queimam documentos só por serem do tempo colonial’. Com isso quero dizer que a actual situação da Guiné-Bissau resulta de todas as coisas que aconteceram e que não houve ninguém capaz de pôr ponto final. Compreende-se que durante uma revolução haja excessos, mas há que haver alguém para dizer basta.

Legitimidade versus capacidade A proclamação da independência, a 24 de Setembro de 1973, foi um dos primeiros da edificação da nação, pequena no tamanho e grande na fama. Terá essa grande fama contribuído para a situação que depois viveu o país?

Sim, e estavam convencidos de que, pelo facto de terem alcançado a independência, tudo seria fácil. O problema da Guiné é que não cuidaram de criar o Estado. Pegaram de alguns procedimentos e forma de tratar as coisas a nível de Medina de Boé com as infraestruturas mínimas de educação, saúde, etc. e introduziram na cidade. As coisas continuaram a ser

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tratadas em cima do joelho. Contrariamente a Cabo Verde, na Guiné os combatentes, sem terem a noção do que seja um Estado passaram a chefiar e não houve ninguém capaz de lhes dizer ‘camaradas, há regras que é preciso cumprir’. Com toda a fama e glória do PAIGC, o Estado não mereceu a devida atenção dos novos senhores, porque o partido é que era a luz e guia da nova nação. Daí o que se seguiu e que não aconteceu com Cabo Verde.

Há algum caso específico que possa assinalar como momento de viragem para o que depois seria e é hoje a Guiné-Bissau?

Não posso indicar assim nenhum momento especial. Eu assisti à entrada dos combatentes do PAIGC em Bissau. No meu caso, a repartição das Obras Públicas tomou logo conta do Batalhão de Engenharia portuguesa que passou a ser o Comissariado de Estado das Construções, Urbanismo e Habitação, ou outra coisa qualquer. Quer dizer, as coisas foram acontecendo, mas não houve nada de simbólico, como em Cabo Verde, que marcasse o fim de uma época e o princípio de outra. Até porque a proclamação de independência já tinha sido feita em Setembro de 1973 nas matas da Guiné. Portanto já havia o Estado da Guiné-Bissau e eles simplesmente entraram em Bissau e ocuparam aquilo que o exército português tinha ocupado. Houve, por assim dizer uma transição suave, como se não tivesse acontecido nada.

1980, o primeiro Golpe de Estado Ficou surpreendido com o golpe de Estado de Nino Vieira, em 1980?

De certa maneira não se surpreendeu e vou dizer-lhe porquê. Pelas coisas que eu ouvia, pelos contactos que tinha, do ambiente em que se vivia, sentia-se que havia algo que não estava bem. A forma como Luís Cabral governava [primeiro presidente da Guiné-Bissau, 1973, deposto em 1980] era, como disse Aristides Pereira certa vez, era jovial. A jovialidade de Luís Cabral. Luís Cabral tratava assuntos do Estado com muita jovialidade e muita superficialidade. Um exemplo. Houve uma altura em que era preciso fazer uma série de escolas. Não sei se o meu ministro ainda não estava, ou tinha viajado, mas o certo é que recebi um cheque dos Armazens do Povo ligado à segurança alimentar, vindo de um donativo estrangeiro. Com aquele dinheiro ordenaram-me para dar andamento a essas escolas. Na altura, não sei se o Luís Cabral é que me mandou chamar, ou se eu é que lá fui ter, eu disse ‘camarada presidente, esse dinheiro não é para construir escolas, porque foi ofertado para a segurança alimentar’. Ele disse-me ‘faz, faz, depois vai-se ver no futuro como é que é’. Isso é só para se ver a ligeireza no tratamento das coisas, justamente porque, durante todo esse tempo, não cultivaram o Estado da Guiné-Bissau. Quer dizer, não tiveram o cuidado de dar ao Estado a força que devia ter. Toda a força era canalizada para o PAIGC. Comigo aconteceram muitas cenas, porque não era, nunca fui e não sou do PAIGC. Mas tive algumas zangas entre aspas com determinados combatentes, porque exigiam-me coisas que não se pode exigir.

A Praça e o monumento de Pidjiguiti em homenagem ao 3 de Agosto foram feitos de urgência. Lembro-me que o monumento tinha uma mão negra feita em betão com uma altura razoável e coberta em ardósia. Ainda está lá, ficou uma coisa extraordinária. Eu lembro-me de ter trabalhado 24 sobre 24 horas. Fiz três turnos de 8 horas, porque tinha que ficar pronto no dia 3 de Agosto, e o mês de Agosto na Guiné, é um mês de chuvas. Era debaixo da chuva a fazer aquilo. Coisas da juventude e da revolução que um indivíduo fazia sem pensar nas consequências. Quando foi do golpe de Estado, houve um encarregado que se foi queixar ao Procurador da República alegando que tinha apanhado uma tuberculose por minha causa. Eu disse que todos estivemos à chuva. Isso é só para ver como se trabalhava na Guiné-Bissau.

Como viveu o golpe de Estado de Novembro de 1980 em que muitos cabo-verdianos se tornaram alvo dos novos senhores?

Quando se deu o golpe, eu estava numa reunião em Ziguinchor no Senegal. Regresso na mesma noite de carro de Zinguinchor para Bissau. Quando chego à cidade de Mansoa que fica antes de Bissau para quem vem do norte, eu vejo em barreira de tropa. Eu disse de onde vínhamos e passamos, mas não liguei ao incidente. Só de manhã é que eu soube pela rádio

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que tinha havido um golpe de Estado. O que acontece é que depois pessoas ligadas ao chamado movimento reajustador foram ter comigo à casa. Eu estranhei, apareceu lá um deles a dizer que era do movimento e eu perguntei o que eles queriam. Mas, talvez por ser a minha pessoa, eles tiveram o cuidado de me dizer que era para pedir o guindaste das Obras Públicas para recarregarem arroz de um barco que estava no porto para distribuírem à população. Eu disse ‘muito bem’. Então fui ao ministério dar instruções no sentido de darem o guindaste para eles poderem descarregar o arroz. Mas a vizinhança ficou preocupada, porque eles pensarem que eles me tinham levado para algum lado. Fiquei ainda mais um ano e eles nem queriam que eu viesse. Isto porque no Estado nunca confundo as coisas – como eu cumpro os meus deveres profissionais de uma forma frontal, doa a quem doer, mas sempre com correcção e com justiça, eu não tive problemas.

"Não tive problemas com os golpistas"

Nunca faço mal a ninguém, eu diria até, nunca faço bem a ninguém, de forma que uma pessoa do meu tipo não tem problemas. Eles não me chatearam, muito pelo contrário. Alguns colegas meus, também cabo-verdianos, que eram directores gerais até fugiram, ou ficaram no estrangeiro e não apareceram. Mas eu estava lá, mantive-me lá, e não quiseram que eu viesse. Nem o Nino quis que eu viesse. O Vasco Cabral que estava lá como ministro pediu que ficasse, mas eu disse-lhe ‘se a unidade Guiné-Cabo Verde já acabou, o que estou cá a fazer?’. Ou seja, se ficasse tinha que ficar como cooperante, mas isso não me interessava. Agora, antes eu tinha passaporte e era considerado cidadão guineense. Como já não era considerado cidadão guineense, eu não tinha que lá estar. Mas por causa das insistências fiquei ainda um ano depois do golpe. E nunca ninguém me chateou, porque eu nunca fiz nada para alguém me chatear em qualquer circunstância: nem lá, nem cá. Como já disse, sou do tipo de pessoas que não prejudica ninguém, diria que não faço bem a ninguém (risos) e limito-me a cumprir as leis. Portanto estive sempre numa situação em que ninguém me podia apontar o dedo. Aliás, depois de eu regressar o Nino elogiou-me publicamente. Porque quando se trabalha profissionalmente não interessa se é Guiné, se é Cabo Verde.

"Guiné, a minha segunda pátria"

Considero ainda a Guiné a minha segunda pátria, porque gostei de lá estar em todos os sentidos, mas em relação à população que é extraordinária. Os guineenses são extraordinários, o mal não está nos guineenses, estão nos dirigentes do país que até hoje não compreenderam a arte de governar.

Se os guineenses são pessoas extraordinárias e os dirigentes são todos guineenses, então deviam ser também pessoas extraordinárias. Como explica esta contradição? Isto deve-se à desorganização do Estado da Guiné-Bissau. E porquê? Porque muitos dos dirigentes que ocuparam cargos de chefia não estavam preparados para desempenharem essas funções. Lembro-me de um combatente que veio da luta e que foi nomeado director geral de uma empresa e que era analfabeto. Tiveram de lhe arranjar um director geral adjunto para poder assinar-lhe as coisas. É impossível trabalhar assim. Outra explicação é que os combatentes, pelo facto de terem lutado, ganharam legitimidade para dirigir o Estado da Guiné-Bissau. Esse é que é o problema. Tinham legitimidade, mas faltava-lhes formação para isso. O que é que aquilo pode dar? Não dá em nada. A função pública não funcionava. Havia, de facto, um secretário de Estado, ou ministro, ou equivalente da Administração Pública, mas era só isso. Isso acontece a nível da administração pública como a nível dos militares. Para mim todo o problema da Guiné-Bissau está nisto: é a legitimidade ganha na luta que se transferiu para o Estado e essas pessoas não têm formação para estarem aí. O que não aconteceu com Cabo Verde. Eu, por acaso, eles souberam aproveitar-se de mim. Pior seria se não tivessem aproveitado (risos). Não tinha nenhuma relação com o PAIGC; deverão ter sabido que eu era um indivíduo sério, trabalhador e eles nomearam-me, até sem me consultarem. Eu vi a minha nomeação no boletim oficial, sem ter sido convidado sequer para isso. Como interpreta a afirmação do chefe das Forças Armadas da Guiné-Bissau, António Indjai que ele enriqueceu-se, não como narcotraficante, mas quando era funcionário do ministério das Finanças?

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Isso diz tudo. Isso é um grande disparate. Mas ele diz isso, porque sabe que ele é que manda na Guiné-Bissau. E porque é que o diz só agora? Porque agora ele não é preso. Se fosse num outro país, em que um indivíduo declarasse que ele roubou em determinada altura, em determinado sítio, o ministério público teria que actuar imediatamente. E ele diz isso porque ninguém lá tem a coragem de actuar contra ele. É este o problema.

Quais as perspectivas futuras para o Estado da Guiné-Bissau?

Olhe, eu conheci muitos quadros jovens. A Guiné tem bons quadros, mas estão no estrangeiro. Agora imagine como é que um indivíduo que é um quadro e vai para lá e é dirigido por um ignorante. É impossível. Mesmo que ele tenha força política, não tem bagagem para estar a chefiar um quadro desses. A Guiné-Bissau tem condições, é um país rico. Mas os combatentes da liberdade da pátria têm de se retirar da política e entrar nos quartéis. Ainda eu vejo alguns combatentes já com cabelos brancos como eu a dirigir o país. Devem dar o lugar aos jovens. Eu até digo que quando desaparecer toda a geração dos combatentes da liberdade da pátria talvez a Guiné-Bissau venha a resolver os seus problemas. Enquanto essa gente que se julga com legitimidade para governar o país estiver no poder, vamos continuar a ter golpes de Estado, porque todos querem governar a Guiné-Bissau. É que todo o combatente da luta quer governar a Guiné. E tem-se de afastar um que já está no poder para tomar o lugar, vem o outro e afasta o outro. Ficamos neste círculo vicioso que nunca mais acaba.

Os militares guineenses transfiguram-se em instrumentos de tirania e delinquência, afirmou recentemente Pedro Pires. O porta-voz das Forças Armadas guineense respondeu que ele não sabe o que diz e não diz o que sabe. Que comentário?

Dos combatentes da liberdade da pátria há uma boa meia dúzia por quem tenho muita consideração e ele é um deles. Eu quase tenho a certeza que Pedro Pires sabe mais do que diz. Por razões várias ele não diz. Ele sabe muito mais, como eu também durante todo o tempo que estive na Guiné, por aquilo que me dizem a respeito dos combatentes, eu também sei muita coisa. Sei porque me contaram; estive em contacto com essa gente desde o período de Luís Cabral, depois do golpe de Estado.

Sabe da vala comum onde foram executados no tempo de Luís Cabral os soldados do comando africano e outros que eram contra o PAIGC?

Eu tinha um chefe de secção que pertencia à minha direcção geral que desapareceu. Mas quando foi da vala comum do golpe de estado ele estava na lista daqueles que foram executados na vala comum. De facto isso aconteceu, porque eles faziam justiça por conta própria, sem passar pelos tribunais e isto aconteceu de facto. Os combatentes sabem muito, Pedro Pires sabe e é natural que ele saiba muito mais do que aquilo que ele diz. Mas voltando à afirmação, eu acho que Pedro Pires poderia ter escolhido outra linguagem. A tirania não escolheria. Os militares são os manda-chuvas na Guiné-Bissau, porque as coisas foram conduzidas nesse sentido desde a luta de libertação. Quer dizer a responsabilidade era da chefia da luta que deviam ter conduzido melhor as coisas para que hoje não tivéssemos um António Indjai. Houve muita ligeireza, muitas facilidades na altura da entrada do PAIGC em Bissau, durante o período de Luís Cabral e mesmo depois. Deviam-se ter tomado muitas medidas e não se tomaram e deixaram que as coisas andassem. E hoje temos aquilo que temos.

Foi Luís Cabral um bom estadista?

Na minha opinião acho que não. Fui amigo dele, mas acho que ele não tinha perfil para ser chefe de Estado. Nestas coisas da luta de libertação as coisas vão sendo criadas e afuniladas e chega-se a um ponto em que não se vai buscar quem é o mais capaz, mas quem por qualquer razão, por volta das circunstâncias, chega ao topo. O homem é ele e as suas circunstâncias e ele aproveitou-se disso. Mas ele era uma pessoa muito boa, eu diria sem maldade. E um estadista não é isso. Um estadista tem que ser uma pessoa justa, rigorosa, disciplinada, organizada e exigente e ele não era nada disso. Era compreensivo, deixava que as coisas acontecessem, como é o caso das valas comuns, porque ele não tomou nenhuma atitude. E isso deu força à tropa e à segurança do Estado, porque não havia um presidente, ou

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um primeiro-ministro que pusesse ponto final, está claro que eles julgavam-se uns deuses. E continuam deuses até agora. Portanto a culpa é da direcção que não soube conduzir as coisas e não actuaram quando deviam ter actuado. Porque uma coisa é estar na guerrilha e outra coisa é o Estado. E eles não souberam dirigir o Estado. Se em Cabo Verde fez-se distinção entre o partido e o estado ainda que com pequenas coisinhas, na Guiné eles não fizeram distinção alguma. E agora dizem que a tropa é que está a mandar, mas está a mandar porque as coisas foram degradando…

Ou será porque a tropa é a única instituição que funciona na Guiné-Bissau?

Eu diria que nem funciona. É sim a única instituição com força. Agora que funciona tenho cá as minhas dúvidas. Porque a quantidade de marechais e generais disto e daquilo e de vez em quando é assassinado um, eu não vejo organização alguma. Eu vejo na tropa gente com força para impor o seu poder em determinado momento, até que apareça outro para lhe tomar o lugar. Agora, em termos de organização militar, duvido que também a Guiné-Bissau tenha organização.

Então não fica nada.

O que é que fica?