João José de Aguiar: o breve sopro da Escultura Neoclássica em Portugal

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    Joo Jos de Aguiar: o breve sopro da Escultura Neoclssica em Portugal

    Elsa Garrett Pinho

    Joo Jos de Aguiar (Belas, 1769 Lisboa, 1841) naturalmente o granderepresentante da produo escultrica neoclssica produzida em Portugal.Embora ainda envolta em algum mistrio, a sua figura fascinante poissintetiza, em 72 anos de existncia e quatro dcadas de trabalho, a ascenso eo lento definhar da nova maniera de fazer escultura, trazida de Itlia.

    Nascido em Belas, no ano de 1769, Aguiar era filho de um canteiro domonumento joanino. A proximidade fsica s grandes obras rgias de Mafra eQueluz parecia traar-lhe o destino.

    Com 13 anos de idade Aguiar segue para Lisboa, onde d entrada na Aula deDesenho da Casa-Pia do Castelo, criada pelo Intendente Diogo Incio de PinaManique. Anonimamente, passaria ainda pelas Aula Rgia e Aula Pblica deDesenho, numa altura em que a Escultura portuguesa era dominada pela figuratutelar de Joaquim Machado de Castro.

    Por motivos ainda hoje mal conhecidos, o jovem Aguiar beneficiou do interessee proteco do Intendente-Geral que em 1785 o envia como pensionista aRoma, por dar aquele mostras de aplicao e de viveza,enquanto dois jovense promissores aprendizes de Escultura, Barros Laboro e Faustino Rodrigues,seriam indicados apenas como substitutos.

    At conseguir ser aceite na oficina do grande mestre Antonio Canova, oportugus realiza estgios nos ateliers de Tomaso Labruzzi (desenho) eGiuseppe Angelini (escultura), onde aprende a desenhar, modelar e esculpir maneira antiga. Em 1792 ter realizado uma das duas primeiras obras, ummedalho com a efgie de Givanni Antinori, professor de Arquitectura na

    Academia Portuguesa em Roma que trabalhara na Casa do Risco na Lisboa dops-terramoto, cujo paradeiro se desconhece.

    Por volta de 1793-94, Aguiar realiza, a pedido do Intendente, a maquete para omonumento a erigir em homenagem rainha D. Maria I, segundo modelos deDomenico Pieri . Em bronze e mrmore de Carrara, esta maqueta um objetoque actualmente integra o acervo do Palcio Nacional de Queluz e fez parte dolote de bens levados pela Famlia Real para o Brasil, em 1807, sendo que atento se encontrava no quarto da prpria Rainha (fig. 1).

    Em Roma, entre 1794 e 1798, o escultor de Belas transps para mrmore ascinco esculturas que compem este monumento, que mais no do que um

    Comentrio [.1]: Fig.1

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    acto de auto-consagrao por interposto monarca. A rainha representada deacordo com a concepo clssica da deusa Minerva dominando as 4 Partes doMundo (natural aluso s possesses imperiais portuguesas), alegoricamenterepresentadas num nvel inferior. Nas faces laterais do robusto pilar,composies em baixo-relevo aludem Baslica da Estrela, Casa Pia e Marinha (fig. 2).

    Este trabalho, enviado para Portugal por via martima em 1802 ano dadissoluo da Academia Portuguesa de Roma -, traria a Aguiar oreconhecimento pblico e a garantia de uma carreira promissora no mbito dasmais prestigiadas instituies portuguesas da poca ligadas produo e aoensino da Escultura. Todavia, a obra conheceria um percurso acidentado atque em 1939 foi final e integralmente montado no largo fronteiro ao Palcio deQueluz: depositada no Palcio de Belm, transitou para a Ajuda entre 1828 e

    1830, dali saindo para a Estrela, de onde foi transferida para o MuseuArqueolgico do Carmo para, em 1898, os quatro Continentes serem expostosna recente Avenida da Liberdade, em Lisboa.

    Enquanto isso, e uma vez mais por intermdio de Pina Manique, o jovemAguiar d entrada na Fundio do Arsenal do Exrcito, onde dirige, entre 1802e 1804, o trabalho de fundio das banquetas e msulas da capela-mor e doSantssimo Sacramento, encomendadas pelo Prncipe Regente para oConvento de Mafra. So boas peas escultricas em metal fundido em moldede areia, com revestimento a folha de ouro, que revelam um apurado sentidocompositivo e a delicadeza de modelagem que lhes subjaz (figs. 3, 4 e 5).

    Um Decreto assinado pelo Prncipe Regente em 21 de Janeiro de 1802

    ordenava a reabertura da Obra da Ajuda, sendo Jos da Costa e Silva eFrancisco Xavier Fabri, homens da nova gerao neoclssica, ento nomeadosArquitectos da Obra. Ao mesmo tempo era aprovada a criao da Escola daAjuda, em cuja abertura os dirigentes do pas fundavam grandes esperanas.,sendo que a Escultura passava a ser dirigida por Joaquim Machado de Castro,secundado pelo assistente Carlos Amatucci.Em 1805, j sem o apoio de Pina Manique, entretanto falecido, Joo Jos de

    Aguiar ingressa no estaleiro do Novo Palcio por sugesto de Costa e Silva e,graas sua formao italiana e ao facto de ter estagiado com AntonioCanova, o maior estaturio hoje do Mundo nomeado mestre de obras notelheiro da Ajuda e substituto de Machado de Castro na direco da Escultura.

    A nomeao de Aguiar para um cargo de direco na Ajuda desagradouprofundamente ao velho Machado que pretendia ver Faustino Rodriguessuceder-lhe no cargo e para quem a nova maneira de fazer Escultura nadatinha de belo. Mas se o Neoclssico era o gosto vigente na Europa culta eevoluda, Neoclssico seria feito em Portugal.

    Entretanto a Obra de Ajuda encerrada por ordem do Conselho da Regncia,para reabrir apenas em Novembro de 1813.

    Comentrio [.2]: Fig. 2

    Comentrio [.3]: Figs. 3, 4 e 5)

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    Na sua Aula de Escultura, Machado de Castro trabalha em duas esttuas paraos nichos do trio nascente do Novo Palcio. E Aguiar, que faz? Hoje sabemo-lo ocupado com a sua obra maior: a esttua do Princpe D. Joo para oHospital Real da Marinha (fig. 6) .

    At h cinco anos atrs, os autores que se debruaram sobre esta esttua (emque nos inclumos) acreditavam ser uma obra realizada por Aguiar na segundadcada de Oitocentos. Seria o Contra Almirante Lus Roque Martins

    a publicarno n. 374 da Revista da Armada (Abril de 2004), que dirige, um documentoexistente no Arquivo Central da Marinha, que atesta a colocao desta esttuano nicho do trio do Hospital Real da Marinha uma hora da tarde do dia 15 deSetembro de 1814 (fig. 7) .

    Tenha o respectivo modelocujo paradeiro se desconhecesido ou no feito

    no perodo em que Aguiar esteve na Fundio do Arsenal, como pretendemalguns autores, a passagem a pedra s pode ter acontecido no estaleiro da

    Ajuda, onde o escultor se encontrava.

    Esta , sem dvida, a melhor escultura portuguesa deste perodo. Trata-se deuma escultura de corpo inteiro que representa o Prncipe Regente D. Joocomo o chefe supremo da Nao e do Imprio, apoiado no leme do governo evitorioso com a respectiva coroa de louros.

    Escultura delicada e de belas propores, a esttua mais no do que umpanegrico em pedra, em que os verdadeiros traos fisionmicos do futuro reiforam substitudos pela nobreza de feies e pela imponncia da pose. Pelaprimeira e nica vez Aguiar revela-se um verdadeiro discpulo de Canova,

    imprimindo esttua a virtude moral e a elegncia linear e grave que to bemtraduzem os princpios estticos do Neoclassicismo. A obra atinge momentosde grande percia tcnica e de elevado sentido esttico, expressosparticularmente na perfeita adequao da indumentria anatomia dogovernante, mas tambm nas diferentes texturas e no grau de polimento dapedra.

    Entretanto, impunha-se avanar com o programa escultrico delineado porMachado de Castro para os nichos do Novo Palcio.

    Enquanto Machado de Castro e seus discpulos ultimavam na Aula Pblica asduas primeiras esttuas de 10 palmos Gratido e Conselho -, Aguiarbeneficiava de uma Portaria exarada em seu nome que lhe concedia plenos

    poderes para exigir todos os recursos humanos e materiais que entendessenecessrios para a realizao das obras em que se ocupava.

    Coadjuvado pelo ajudante Severiano Henriques Pereira, sabemo-lo entoocupado a preparar as esttuas colossaisdestinadas a coroar os ticos, afigurar na escadaria e nas rampas da calada da Ajuda , ao mesmo tempo queeram concludas as panplias dos torrees (figs. 8, 9 e 10).

    Para os nichos do vestbulo nascente que viria a ser o frontispcio do NovoPalcioAguiar realizar onze esttuas alegricas, cuja leitura deve ser feita

    Comentrio [.4]: Fig. 6

    Comentrio [.5]: Fig. 7

    Comentrio [.6]: Figs. 8, 9 e 10)

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    luz de um programa iconogrfico que faz a apologia da monarquia, exaltandoas virtudes e qualidades morais do seu representante mximo.

    As duas primeiras esttuas alegricas que Aguiar assina para o trio nascenteso colocadas nos respectivos nichos no dia 13 de Maio de 1820, pelas quaisrecebeu 200.000 ris. Arriscamos afirmar que essas duas esttuas so as daJustia (fig. 11) e da Prudncia (fig. 12), hoje colocadas na escadaria deacesso Sala dos Archeiros, entrada do Museu e que, enquanto VirtudesMorais, surgem sempre associadas.

    Particular destaque merece a Prudncia (1820), pela elevada qualidadeplstica, sensual elegncia e beleza serena que a caracterizam. Distanciando-se das restantes criaes de Aguiar para o Novo Palcio, meros esteretipos

    em que a frieza neoclssica sinnimo de rigidez formal, face superioridadenarcsicae voluptuosidade que emanam desta esttua.

    J a Justia e a Lealdade (figs. 13 e 13A) no suscitam a menor emoo,talvez por se exporem frontalmente, limitando-se a existir.

    Tal como far nas demais esttuas alegricas, tambm nestas Aguiar optoupor reduzir ao mnimo o nmero de atributos para que estes no interferissemcom a representao da figura humana, a nica que verdadeiramente lheinteressava. Os assuntos para as esttuas eram distribudos aos escultorespelo Arquitecto Antnio Rosa, depois de debatidos em conferncia geral comtodos os responsveis pela Obra.

    De Aguiar chega-nos a imagem de um homem reservado, arrogante e de difciltrato, que se recusava a estar presente nas conferncias porque no queriamisturar-se com pedreiros e carpinteiros. Instado a ultimar duas novas esttuaspara o vestbulo do Palcio Aguiar insurge-se e agride fisicamente ManuelJoaquim de Barros, ento ocupado a trabalhar em modelos do seu prprio pai.Deste modo preteria o seu ajudante mais dotado em favor de Joo GregrioViegas, a quem reconhece o direito de co-autoria em trs das suas criaes:Clemncia(figs. 14 e 14A), Aco Virtuosae Constncia(figs. 15 e 15A).

    So deste perodo (1821-22)

    as piores esculturas de Aguiar para a Ajuda,como o caso deste Anuncio Bom (figs. 16 e 16A). Trata-se de um serhermafrodita, mas muito distante do ideal andrgino exaltado por Winckelmanncomo sinnimo de Beleza e de suprema graa. Aqui, as formas corpreas no

    so indefinidas por ocuparem um plano superior ao da matria, mas antes porno conseguirem libertar-se das limitaes que esta lhes impe.

    Bem pior a Aco Virtuosa (figs. 17 e 17A), cuja autoria partilhada comGregrio Viegas, uma escultura disforme, sem graa e que encerra inmeroserros tcnicos, nomeadamente ao nvel da anatomia.

    Como explicar a fraca qualidade destas obras? O anncio do regresso daFamlia Real a Lisboa fez apressar os trabalhos e o sub-inspector Rosa queria

    Comentrio [.7]: Fig. 11

    Comentrio [.8]: Fig. 12

    Comentrio [.9]: Figs. 13 e 13A

    Comentrio [.10]: figs. 14 e 14A

    Comentrio [.11]: Figs. 15 e 15A

    Comentrio [.12]: Figs. 16 e 16A

    Comentrio [.13]: Figs. 17 e 17A

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    ver terminadas no prazo de 15 dias as duas novas esculturas que estavam aser feitas para os nichos, enquanto Aguiar reclamava mais um ano.

    Por Portaria do Palcio da Regncia de 17 de Maro da 1821 a Escola deDesenho, Escultura e Pintura da Ajuda suprimida, para que houvesse umaumento do nmero de alunos nas Aulas Pblicas da Corte, onde seriamultimadas as esttuas do Pao da Ajuda.

    pois na Aula Pblica que os ajudantes de Aguiar passam a laborar sem aorientao directa do mestre, transpondo para o lioz os modelos que esteidealizara. Este mtodo de trabalho, j ento identificado como a principalcausas para muitas das imperfeies que as nossas esculturas apresentavam,

    justificar em parte os erros tcnicos e materiais que algumas das esculturasapresentam.

    A Clemncia, por exemplo, a nica das vinte e cinco esttuas do vestbulo daAjuda que apresenta patologia da pedra, que poder indiciar a inexperincia doajudante na escolha do bloco de pedra, sendo que o professor estava ausente.

    Tal como na esttua anterior, a Constncia retoma o modelo clssico ehiertico anteriormente adoptado por Aguiar e aqui concretizado por GregrioViegas que nesse mesmo ano de 1822 despedido por nao fazer prova da suarelao laboral.

    Enquanto isso, o italiano continua a laborar nos modelos nas esttuas deremate de fachada nascente, que sero apresentados em conferncia deSetembro de 1824. As imponentes esttuas que flanqueiam as armas reais

    portuguesas, ao centro do fronto inacabado (Fidelidade e Vitria), socitaes directas da obra canoviana, tanto escultrica como pictrica (fig. 18).

    A partir de 1823, um ano aps a morte de Machado de Castro, Joo Jos deAguiar conduzido no lugar de 1 substituto da Aula e Laboratrio deEscultura, contrariando as expectativas de Faustino Jos Rodrigues que, tendoexercido interinamente as funes, nomeado 2 substituto.

    Mas Aguiar mantm-se na Ajuda, praticamente sozinho e sob a dependnciahierrquica do sub-inspector Rosa, onde haveria de produzir mais quatromodelos para a esttuas alegricas do vestbulo nascente que os seusajudantes transpunham para o lioz.

    Considerao, a prxima esttua alegria sem dvida idealizada e modeladapor Aguiar em 1825, no est assinada (fig. 19), contrariamente s trs ltimas,realizadas em 1826, 1827 e 1830. So elas, respectivamente, a Providncia(figs. 20 e 20A), a Afabilidade (figs. 21 e 21A) e a Perseverana (figs. 22 e22A).

    Apesar de ter sido um dos subscritores do requerimento que visava prolongar aexistncia da Academia de So Miguel, com o encerramento desteestabelecimento Aguiar punha fim, em termos prticos, sua actividadeartstica e docente. De resto, em 1836 o seu precrio estado de sade impedia-

    Comentrio [.14]: Fig. 18

    Comentrio [.15]: Fig. 19

    Comentrio [.16]: figs. 20 e 20A

    Comentrio [.17]: figs. 21 e 21A

    Comentrio [.18]: figs. 22 e 22A

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    o de aceitar o cargo de mestre de Escultura na recm-criada Academia Real deBelas-Artes.

    O escultor acabaria a sua vida numa situao bastante precria, vindo a falecerno ano de 1841. Com ele extinguia-se a produo escultrica de pendorneoclssico italianizante, que em Portugal teve a durao exacta de uma vida.

    Que dizer, pois, da obra deixada por Aguiar na Ajuda? Inscrevendo-seformalmente num modelo neoclssico rgido e montono, estas esculturastraduzem uma modernidade artificial mais por vontade poltica do que porapreo esttico que dificilmente foi articulando com persistncias tardo-barrocas veiculadas por Machado de Castro e seguidores.

    Espartilhado por um programa iconolgico previamente definido e aprovado,

    mal aceite pelos seus pares que rejeitavam a nova esttica veiculada peloromano e se sentiam preteridos em ternos profissionais, Aguiar desenvolveuum modelo frio e hiertico, a que apenas os atributos recolhidos dos manuaisde Iconografia conferem individualidade.

    Com excepo de trs esculturas especficas em que as dificuldades tcnicasso notrias, todas as outras esttuas alegricas se caracterizam por umamontona mediania que se no desprestigiam o autor tambm no o tornaminesquecvel.