João Nota - Antologia

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Antologia de poemas João Tiago Nota

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Selecção de poemas - João

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Antologia de poemas

João Tiago NotaNº 12 10º F

Introdução

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É muito difícil fazer uma antologia de poemas. Principalmente dos nossos poemas preferidos. Os poemas que se podem encontrar nesta antologia são aqueles que me marcam neste momento ou que já me marcaram.

Para esta antologia tentei escolher o máximo de autores possível, tentando não ir além de dois poemas por autor. Esta tarefa foi-me algo complicada, pois apesar de conhecer poesia, tive de reflectir bastante até encontrar todos os poemas. No final da selecção, contudo, tive que escolher entre vários, pois a inspiração já me tinha atingido.

Escolhi estes poemas por uma série de razões: a mensagem que transmitem; o seu aspecto visual; o terem-me sido transmitidos por pessoas da minha família; etc.

Tentei que estes poemas fossem variados, por isso juntei poetas como Camões com poetas contemporâneos como António Gedeão e também letras de músicas de grupos e cantores portugueses, brasileiros e britânicos. Outra parte importante desta selecção é também os poemas com versões declamadas por João Villaret. Mais uma vez a música volta a ter lugar de destaque nesta antologia. Foi também o conhecer os poemas declamados por João Villaret que me levou a escolhê-los (entre outros factores). Um último aspecto interessante desta antologia é a forma como diferentes facetas do amor são retratadas nos poemas nela contidos.

Como nota final, explico que o índice encontra-se organizado não por autor, mas por ordem alfabética do nome dos poemas. Deste modo tentei evitar uma aglomeração de poemas por autor.

Amor é um fogo que arde sem se ver,

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Amor é um fogo que arde sem se ver,É ferida que dói e não se sente;É um contentamento descontente;É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem-querer;É um andar solitário entre a gente;É um nunca contentar-se de contente;É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade,É servir a quem vence o vencedor,É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favorNos corações humanos amizadeSe tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

Anti-Anne Frank

Esta criança esquálida,de riso obsceno e olhares alucinados,

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nunca apertou nas mãos a fria face pálida,nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam ,nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,nem rastejou num sótão,nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,nem despertou o amor dos editores piedosos.Nunca estendeu as mãos em transes dolorososa não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.

E ela, raivosa e pálida,morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!Até no sofrimento é preciso ter sorte.

António Gedeão

De Tarde

Naquele piquenique de burguesas, Houve uma coisa simplesmente bela, E que, sem ter história nem grandezas, Em todo o caso dava uma aguarela.

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Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grão-de-bico Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos, Nós acampámos, inda o Sol se via; E houve talhadas de melão, damascos, E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde

Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-laQuando passa aromática e normal,Com seu tipo tão nobre e tão de sala,Com seus gestos de neve e de metal.

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Sem que nisso a desgoste ou desenfade,Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,Eu vejo-a, com real solenidadeIr impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:O seu ar pensativo e senhoril,A sua voz que tem um timbre de oiroE o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…E é, na graça distinta do seu porte,Como a Moda supérflua e feminina,E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,Britânica, e fazendo-me assombrar;Grande dama fatal, sempre sozinha,E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;Como um florete fere agudamente,E afaga como o pêlo de um regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,O modo diplomático e orgulhosoQue Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,Sem sorrisos, dramática, cortante;Que eu procuro fundir na minha chamaSeu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, Milady, não se afoite,Que hão-de acabar os bárbaros reais;E os povos humilhados, pela noite,Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,E sob o cetim do Azul e as andorinhas,Eu hei-de ver errar, alucinadas,E arrastando farrapos – as Rainhas!

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Cesário Verde

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,Bem que duas gamboas lhe lobrigo;Dá leite, sem ser árvore de figo,Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro.

Verga, e não quebra, como o zambujeiro;Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;Brando às vezes, qual vime, está consigo;Outras vezes mais rijo que um pinheiro.

À roda da raiz produz carqueja:Todo o resto do tronco é calvo e nu;

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Nem cedro, nem pau santo mais negrejai

Para carvalho ser falta-lhe um u:Adivinhem agora que pau seja,E quem adivinhar meta-o no cu.

Bocage

Eu estou bem

Ele fez-me rirEle fez-me chorarEle fumava na camaMas eu estou bemEu estou bemJá antes estive sóPedi ao rapaz algumas palavras simpáticasEle deu-me um romance em trocaMas eu estou bemEu estou bemJá antes estive sóEstá bem, está okEra errado de qualquer modoEu só queria dizerNão é muito divertido quando estás a beber só para um

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Ele ficou bêbedo Ele caiuEle atirou algumas das minhas coisasMas eu estou bemEu estou bemJá antes estive só

Gostava de acreditar que é fácil deixarMas tenho de me aperceberQue onde quer que estejas, ainda guias o meu carroPaus e pedras partem-me os ossosMas as lágrimas não deixam marcasPor isso estou bemEu estou bemJá antes estive só

Mmm…Eu estou bemEu estou bemEu estou bemEle jogava Solitário na camaFazia bolhas de sabão na camaEla cantava músicas de Natal na cama

Madeleine PeyrouxTradução de Ana Paula Gomes

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Suponho que devia contar as minhas bênçãosPara algo jovem o meu mundo não é muito mauTenho uma janela, um lugar com uma almofada e um amigo ou doisMas desde que vi a cara dele naquela manhãNada mais tem tido o mesmo brilho de VerãoIrá ele reparar que os meus olhos se tornaram tão sós?Ele pode não ser o tal mas eu quero-o para mim e eu sei

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Talvez eu soe como uma bebé mimadaMas eu sei que há algumas que têm tudoQuero juntar-me a elas, sentir aquele brilho à minha voltaQuero-o mais a cada dia, pois ele nunca olha para mim e eu sei

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Se alguma vez nos encontrássemos juntos

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Posso prometer que te amaria todos os diasMas tenho um pressentimento que ver é crerNunca fazes uma jogada por isso eu quero-te mais do que posso dizer

Sophie Ellis-Bextor Tradução de Ana Paula Gomes

Já te Falei

Já te faleiOuvi dizer por aíJá gritei, telefonei, cantei por toda a cidadePelo beco, pelo meio da Avenida Central no jardimJá divulgueiAnunciei por aíPor e-mail, por correio veio toda a verdadeJá mandei no megafone pra toda a gente escutar Notícia que se espalhaPaira em qualquer lugarLi no outdoor, pus na canção, deu no cinemaQue a vida vale a penaNa matinê, no botequim, na madrugadaVida que vale a penaJá escuteiE repeti por aíColoquei cartazes nos murais

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de toda a cidadeJá berrei no microfone a todo o volume no arPalavra que se espalhaPluma no vendavalVi no gibi, foi por aí, li num poemaQue a vida vale a penaLi no jornal, vi na TV, foi pela antenaQue a vida vale a penaNo futebol, no carnaval, na batucadaVida que vale a pena

Rita Lee

Leilão

Leilão!Leilão para acabar;Leilão por qualquer preço;Leilão de mim.Quem que comprar um peito nuAberto a todos os olhares?Olhares curiosos, ávidos, perversos… E no meio do peito, Hasteada a bandeira de cor toda vermelhaCom as seis letras da praxe todas brancas:L-E-I-L-Ã-O!Leilão destes meus olhosQue abertos viram tudo(Até quando fechados).Que tanta vez disseram(Até sem eu saber muita coisa que eu próprio ignorava!).Que tanta lágrima alegre e triste já choraram.Quem quer comprar o meu olhar vazio?Quem o compra afinal por qualquer preço?Quem quer comprar o olhar de um fracassado?...Leilão!Leilão da minha boca!Leilão destes meus lábios que tanto amor gritaram,Que tanto ódio calaram

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E onde tanta poesia ardeu em chama.Meus lábios, pobrezinhos,Agora quase friosE onde nenhum só já chora Ou clama.Leilão… Leilão de duas mãos que abertas deram tudo:Carícias de Sol e de veludo E gestos de renúncia e de perdão.Quem quer comprar as minhas mãos vaziasQue hoje dizem o último adeus a acenar.Quem é que as compra?Quem as quer ainda?Leilão!Leilão de mim, da minha vida!E para acabar, a peça principal:O meu coração.Quem quer comprar um coração vazio Que viveu a pulsar cheio de amor.Onde todos os pecados demoraram,Desde o mais torpe ao mais sublime;Onde todos os vícios ficaram,Desde a renúncia até ao próprio crime… Meu coração foi maior que a EstrelaE bem menor que um sorriso vulgar da multidão.Quanto é que vale?Quanto é que dão ainda?!Ninguém dá nada por este vil despojo?Se até eu próprio dele sinto nojo.Leilão!Leilão…

João Villaret

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Menina Gorda

Esta menina gorda, gorda, gorda,Tem um pequenino coração sentimental.Seu rosto é redondo, redondo, redondo;Toda ela é redonda, redonda, redonda,E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar.

É menina e moça. Terá quinze anos?Umas velhas amigas de sua mamãeDizem sempre que a encontram, num êxtase longo:“Como esta menina está gorda, bonita!”“Como esta menina está gorda, bonita!”E ela ri de prazer.

Seu rosto redondoEsconde os olhinhos no fundo, a brilhar.Às vezes no quarto,Diante do espelho;Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãeE também num rapazQue a olha sorrindo,Quando toda manhã ela vai para a escola:“– Ele gosta de mim… Ele gosta de mim.Eu sou gorda, bonita…”E os dedos gordinhos pegando nas trançasTêm carícias ingénuasDiante do espelho.

Couto Ribeiro

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Não posso ter tudo

digo a mim mesma que não te posso ter, é algo que vou ignorar, digo a mim mesma que não te preciso, mas caio caio outra vez e todos os dias é mais difícil erguer o meu coração, digo-o uma vez e outra, tu não podes ter tudo não podes ter tudo, sonho que me trazes o teu amor, só nos meus sonhos não chega, continuo a dizer a mim mesma a dizer a mim mesma não posso ter não posso ter tudo, não posso ter tudo, continuo a dizer a mim mesma, não posso ter tudo, não te posso ter e agora estou a aprender a viver, a aprender a viver, estou a aprender a viver sem ter o teu amor em troca não posso ter tudo mas tudo o que quero és tu, tu permaneces no crepúsculo, com olhos que olham mas não vêem, como eu sou um livro aberto, e tu um cadeado sem chave, desejo todas as manhãs que a dor por ti já não seja, não posso ter tudo és tudo o que eu quero, porque não ouço quando os ouço a dizer ‘estás melhor sem um coração que está a partir-se’, embora seja tola para amar quando não me queres sou sábia para saber que vais sempre assombrar-me

Sophie Ellis-Bextor

Tradução de Ana Paula Gomes

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O GÉNESIS 

Jeová por alcunha - o Padre Eterno,Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:Pôs-se a esgravatar co’o dedo no nariz,Tirou desse nariz o que o nariz encerra, Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.Em seguida tirou da cabeça o chapéu.Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o céu.Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente Era um velho penante, um penante indecente,Já muito carcomido e muito esburacado,E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.Depois o Criador (honra lhe seja feita!)Achou a sua obra uma obra imperfeita,Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,Que nem um aprendiz de Deus assinaria,E furioso escarrou no mundo sublunar,E a saliva ao cair na Terra fez o mar.Depois, para que a igreja arranjasse entre os povosCom bulas da cruzada, alguns cruzados novos,E Tartufo pudesse inda dessa maneiraJejuar, sem comer de carne à sexta-feira,Jeová fez então para a crença devotaA enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.Em seguida meteu a mão pelo sovaco,Mais profundo e maior que a caverna de Caco,E arrancando de lá parasitas estranhos,De toda a qualidade e todos os tamanhos,Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonteFez ele o megatério e fez o mastodonte.Depois, para provar em suma quanto podeUm Criador, tirou dois pêlos do bigode,Cortou-os em milhões e milhões de bocados,(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)Dispersou-os no globo, e foi desta maneira

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Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira...............................................................................Por fim com barro vil, assombro da olaria!O que é que imaginais que o Criador faria?Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao caboO pobre Criador sentindo-se já fraco,(Coitado, tinha feito o universo e um macacoEm seis dias!) pensou: Deixemo-nos de asneiras,Trago já uma dor horrível nas cadeiras,Fastio... Isto dá cabo até de uma pessoa...Nada, toca a dormir uma sonata boa! -Descalçou-se, tirou os óculos e o chinó,Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,Abriu, para cair num sono repentino,O alfarrábio chamado o livro do Destino,E enflanelando bem a carcaça caduca,Com o barrete azul-celeste até à nuca,Fez ortodoxamente o seu sinal da cruzComo qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,E de pança pró ar, num repoiso bendito, Espojou-se, estirou-se ao longo do infinitoNum imenso enxergão de névoa e luz doirada.E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.

Guerra Junqueiro

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O MELRO

          O melro, eu conheci-o: Era negro, vibrante, luzidio,           Madrugador, jovial;           Logo de manhã cedo Começava a soltar, dentre o arvoredo, Verdadeiras risadas de cristal. E assim que o padre-cura abria a porta           Que dá para o passal, Repicando umas finas ironias,           O melro; dentre a horta,           Dizia-lhe: "Bons dias!"           E o velho padre-cura Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado, Malicioso, alegre, prazenteiro; Não tinha pombas brancas no telhado,           Nem rosas no canteiro: Andava às lebres pelo monte, a pé,           Livre de reumatismos, Graças a Deus, e graças a Noé. O melro desprezava os exorcismos           Que o padre lhe dizia: Cantava, assobiava alegremente;           Até que ultimamente           O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito! este ladrão           Dá cabo dos trigais!           Qual seria a razão Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

          E o melro entretanto,           Honesto como um santo,           Mal vinha no oriente           A madrugada clara, Já ele andava jovial, inquieto, Comendo alegremente, honradamente, Todos os parasitas da seara Desde a formiga ao mais pequeno insecto. E apesar disto, o rude proletário,           O bom trabalhador, Nunca exigiu aumento de salário.

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Que grande tolo o padre confessor!

          Foi para a eira o trigo;           E, armando uns espantalhos,           Disse o abade consigo: "Acabaram-se as penas e os trabalhos." Mas logo de manhã, maldito espanto!           O abade, inda na cama, Ouvindo do melro o costumado canto,           Ficou ardendo em chama;           Pega na caçadeira,           Levanta-se dum salto, E vê o melro, a assobiar, na eira, Em cima do seu velho chapéu alto!

          Chegou a coisa a termo Que o bom do padre-cura andava enfermo;           Não falava nem ria, Minado por tão íntimo desgosto; E o vermelho oleoso do seu rosto Tornava-se amarelo dia a dia. E foi tal a paixão, a desventura (Muito embora o leitor não me acredite),           Que o bom do padre-cura           Perdera  o apetite!

Andando no quintal, um certo dia, Lendo em voz alta o Velho Testamento, Enxergou por acaso (que alegria!           Que ditoso momento!) Um ninho com seis melros, escondido           Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido; Esse fruto era minha sementeira:           Era o pão, e era o milho;           Transmitiu-se o pecado. E, se a mãe não pagou, que pague o filho. É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,           Soltava exclamações:           "É uma praga. Malditos! Dão me cabo de tudo esses ladrões! Raios os partam! Andai lá que enfim"

E deixando a gaiola pendurada,

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Continuou a ler o seu latim,           Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa; E caía por sobre a natureza Uma serena paz religiosa,           Uma bela tristeza Harmónica, viril, indefinida.           A luz crepuscular Infiltra-nos na alma dorida Um misticismo heróico e salutar. As árvores, de luz inda doiradas, Sobre os montes longínquos, solitários, Tinham tomado as formas rendilhadas           Das plantas dos herbários. Recolhiam-se a casa os lavradores. Dormiam virginais as coisas mansas:           Os rebanhos e as flores,           As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade; A sua negra, atlética figura, Destacava na frouxa claridade,           Como uma nódoa escura. E, introduzindo a chave no portal,           Murmurou entre dentes:

          "Tal e qual tal e qual! Guisados com arroz são excelentes."

          * * * * * *            Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos Tinham o brilho meigo, aveludado, Do sorriso dos mártires, dos justos. Um eflúvio dormente e perfumado Embebedava as seivas luxuriantes. Todas as forças vivas da matéria Murmuravam diálogos gigantes           Pela amplidão etérea. São precisos silêncios virginais, Disposições simpáticas, nervosas, Para ouvir falar estas falas silenciosas           Dos mundos vegetais. As orvalhadas, frescas espessuras, Pressentiam-se quase a germinar. Desmaiavam-se as cândidas verduras Nos magnetismos brancos do luar. .................................................. ..................................................

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E nisto o melro foi direito ao ninho. Para o agasalhar, andou buscando Umas penugens doces como arminho, Um feltrozito acetinado e brando.           Chegou lá, e viu tudo. Partiu como uma frecha; e, louco e mudo, Correu por todo o matagal; em vão! Mas eis que solta de repente um grito Indo encontrar os filhos na prisão.

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho, Todo tremente, murmurou então:

"Foi aquele homem negro. Quando veio, Chamei, chamei Andavas tu na horta Ai que susto, que susto! ele é tão feio! Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta E esconde-nos debaixo da tua asa! Olha, já vão florindo as açucenas; Vamos a construir a nossa casa           Num bonito lugar Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas           Para voar, voar!"

          E o melro alucinado           Clamou:

                         "Senhor! senhor! É porventura crime ou é pecado           Que eu tenha muito amor           A estes inocentes?! Ó natureza, ó Deus, como consentes Que me roubem assim os meus filhinhos,           Os filhos que eu criei! Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,           Quanta noite perdida           Nem eu sei...           E tudo, tudo em vão!           Filhos da minha vida           Filhos do coração!!! Não bastaria a natureza inteira, Não bastaria o Céu par voardes, E prendem-vos assim desta maneira!           Covardes! A luz, a luz, o movimento insano, Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa           Encarcerar a asa É encarcerar o pensamento humano. A culpa tive-a eu! Quase à noitinha

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          Parti, deixei-os sós A culpa tive-a eu, a culpa é minha,           De mais ninguém! Que atroz!           E eu devia sabê-lo! Eu tinha obrigação de adivinhar Remorso eterno! eterno pesadelo! .................................................

Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera           Ser abutre ou fera Para partir o cárcere maldito! E como a noite é límpida e formosa!           Nem um ai, nem um grito Que noite triste! oh, noite silenciosa!"

E a natureza fresca, omnipotente,           Sorria castamente Com o sorriso alegre dos heróis.           Nas sebes orvalhadas, Entre folhas luzentes como espadas,           Cantavam rouxinóis.

          Os vegetais felizes Mergulhavam as sôfregas raízes A procurar na terra as seivas boas, Com a avidez e as raivas tenebrosas Das pequeninas feras vigorosas Sugando à noite os peitos das leoas. A Lua triste, a Lua merencória,           Desdémona marmórea, Rolava pelo azul da imensidade, Imersa numa luz serena e fria,           Branca como a harmonia,           Pura como a verdade. E entre a luz do luar e os sons das flores, Na atonia cruel das grandes dores,           O melro solitário Jazia inerte, exânime, sereno, Bem como outrora o Nazareno           Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual,           Logo de madrugada O padre-cura foi para o quintal, Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.           Antes de dizer missa, O velho abade inevitavelmente           Tratava da hortaliça E rezava a Deus Padre Omnipotente           Vários trechos latinos,

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Salvando desta forma, juntamente, As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

                                 "Olé!           Dormiram bem? Estimo           Eu lhes darei o mimo, Canalha vil, grandíssima ralé! Então vocês, seus almas do Diabo, Julgam que isto que era só dar cabo           Da horta e do pomar, E o bico alegre e estômago contente, E o camelo do cura que se aguente, Que engrole o seu latim e vá bugiar! Grandes larápios! Era o que faltava           Vocês irem ao milho,           E a mim mandar-me à fava! Pois muito bem, agora que vos pilho Eu vos ensinarei, meus safardanas! Vocês são mariolões, são ratazanas, Têm bico, é certo, mas não têm tonsura E, nas manhas, um melro nunca chega Às manhas naturais de um padre-cura. O melhor vinho que encontrar na adega É para hoje, olé! Que bambochata! Que petisqueira! Melros com chouriço!           E então a Fortunata Que tem um dedo e jeito para isso! Hei-de comer-vos todos um a um, Lambendo os beiços, com tal gana enfim, Que comendo-vos todos, mesmo assim Eu fico ainda quase em jejum! E depois de vos ter dentro da pança,           Depois de vos jantar, Vocês verão como o velhote dança, Como ele é melro e sabe assobiar!"

Mas nisto o padre-cura, titubeante,           Quase desfalecendo, Atónito de horror, parou diante           Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,           Despertou da atonia, Lançando-se furioso contra a grade           Do cárcere. Torcia, Para os partir os ferros da prisão, Crispando as unhas convulsivamente           Com a fúria dum leão.

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Batalha inútil, desespero ardente! Quebrou as garras, depenou as asas           E alucinado, exangue,           Os olhos como brasas, Herói febril, a gotejar em sangue, Partiu num voo arrebatado e louco,           Trazendo, dentro em pouco, Preso do bico, um ramo de veneno. E belo e grande e trágico e sereno, Disse:           "Meus filhos, a existência é boa Só quando é livre. A liberdade é a lei, Prende-se a asa mas a alma voa Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" –

E mais sublime do que Cristo, quando Morreu na Cruz, maior do que Catão, Matou os quatro filhos, trespassando Quatro vezes o próprio coração! Soltou, fitando o abade, uma pungente Gargalhada de lágrima, de dor, E partiu pelo espaço heroicamente, Indo cair, já morto, de repente Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d'espanto,           Exclamou afinal: "Tudo o que existe é imaculado e é santo! Há em toda a miséria o mesmo pranto E em todo o coração há um grito igual. Deus semeou d'almas o universo todo. Tudo que o vive ri e canta e chora Tudo foi feito com o mesmo lodo, Purificado com a mesma aurora. Ó mistério sagrado da existência,           Só hoje te adivinho, Ao ver que a alma tem a mesma essência, Pela dor, pelo amor, pela inocência, Quer guarde um berço, quer proteja um ninho! Só hoje sei que em toda a criatura, Desde a mais bela até à mais impura, Ou numa pomba ou numa fera brava, Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! ............................................................ Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"

E quedou silencioso. O velho mundo, Das suas crenças antigas, num momento, Viu-o sumir exausto, moribundo,           Nos abismos sem fundo

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Do temeroso mar do Pensamento. E chorou e chorou A Igreja, a Crença, Rude montanha, pavorosa, escura, Que enchia o globo com a sombra imensa Dos seus setenta séculos d'altura; O Himalaia de dogmas triunfantes, Mais eternos que o bronze e que o granito, Onde aos profetas Deus falava dantes, Entre raios e nuvens trovejantes, Lá dos confins sidéreos do infinito; Esse colosso enorme, em dois instantes Viu-o tremer, fender-se e desabar           Numa ruína espantosa, Só de tocar-lhe a asa vaporosa Duma avezinha trémula, a expirar! ................................................. ................................................. E, arremessando a Bíblia, o velho abade Murmurou:                 "Há mais fé e há mais verdade,           Há mais Deus com certeza Nos cardos secos dum rochedo nu Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza, A única Bíblia verdadeira és tu!..."

Guerra Junqueiro

 Os Balõesinhos

Esta é a história de dois garotos que todas as tardes compravam dois balõesinhos cor-de-rosa numa rua popular de um bairro de Lisboa:

Dois miúdos,Ele e Ela,Durante dois ou três VerõesAquilo era de tabela:À tardinha, DoisBalões.Mas que coisa mais jeitosa,Vê-los na rua depois

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Com dois balões cor-de-rosaÀs marradinhas os dois.Balãosinho, balãosinho,Não há graça como a tua.Balãosinho, balãosinhoRedondinho como a Lua.Lá casaram certo dia.Estive meses sem os ver;O parzinho não saía, Por ter muito que fazer…Tempos depois, quando os vi,Acenei-lhes com carinho.Ela cora,Ele sorri:Já se vê um balãosinho…Balãosinho, balãosinho,Não há graça como a tua.Balãosinho, balãosinhoRedondinho como a Lua.

João Villaret

Pequena Morte

Morrer de amor, morrer devagarE ressuscitarMorrer um pouco, nascer outra vezReviver talvez

Fala comigo desconhecidoTão diferente e tão parecido

Filme de amor com beijo no fimEm Technicolor

Último aviso, partida iminenteFrio Morno QuenteÚltimo embarque rumo ao ParaísoPrimeiro dente do siso

Não me abandones nesta margemEu sou parte da viagem

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Morrer de amor, morrer devagarE ressuscitar

Morrer um pouco, nascer outra vez Reviver talvez

Fala comigo desconhecidoTão diferente e tão parecido

Perto de mim, mais longe do corpoNo lugar do morto

Vira-me do avesso, amorCorta-me aos pedaçosEu cresço e desapareçoSeguindo os meus próprios passosEu cresço e desapareçoNão me abandones nesta margemEu sou parte da viagemCapitão Coração Sempre fora de mão

Morrer de amor, morrer devagarFilme de Amor com beijo no Fim Em Technicolor

Clã

Procissão

Vou-vos dizer “Procissão”, festa na aldeia:

Tocam os sinos na torre da igreja,Há rosmaninho e alecrim pelo chão.Na nossa aldeia que Deus a proteja!Vai passar a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,De fardas novas, vem o solidó.Quando o regente lhe acena com o braço,Logo o trombone faz pó-pó-pó, pó-pó-pó-pó!

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!Que se houver fogo vai tudo num fole.Trazem ao ombro brilhantes machados,E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,Há rosmaninho e alecrim pelo chão.

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Na nossa aldeia que Deus a proteja!Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!Muito solenes nas opas vermelhas!Ninguém supôs que nesta aldeia haviaTantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!Com que cuidado os vestiram em casa!Um deles leva a coroa de espinhos.E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,Há rosmaninho e alecrim pelo chão.Na nossa aldeia que Deus a proteja!Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,As colchas ricas, formando troféu.E os lindos rostos, por trás das mantilhas,Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior vai aflito.E o povo ajoelha ao passar o andor.Não há na aldeia nada mais bonitoQue estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,Há rosmaninho e alecrim pelo chão.Na nossa aldeia que Deus a proteja!Já passou a procissão.

António Lopes Ribeiro

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Saluti a Vincenzo

Isto de a gente sorrir, de cabeça inclinadasobre o ombro direito,para uma tela sarapintadasem forma nem jeito,só porque tem luz,só porque tem cor,é signo de graça,é sinal de amor.

António Gedeão

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Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob serviaLabão, pai de Raquel, serrana bela;Mas não servia ao pai, servia a ela,E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,Passava, contentando-se com vê-la;Porém o pai, usando de cautelaEm lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganosLhe fora assim negada a sua pastora,Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,Dizendo: - Mais servira, se não foraPara tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões

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Toada de Portalegre

Em Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercadaDe serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;Morei numa casa velha,Velha, grande, tôsca e bela, À qual quis como se fôraFeita para eu morar nela…

Cheia dos maus e bons cheirosDas casas que têm história,Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memóriaDe antigas gentes e traças,Cheia de sol nas vidraças E de escuro nos recantos,Cheia de mêdo e sossego,De silêncios e de espantos, - Quis-lhe como se fôra Tão feita ao gôsto de outroraComo ao do meu aconchêgo.

Em Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercadaDe montes e de oliveiras,Do vento suão queimada,(Lá vem o vento suão!,Que enche o sono de pavores,Faz febre, esfarela os ossos,Dói nos peitos sufocados,E atira aos desesperadosA corda com que se enforcam Na trave de algum desvão…)

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Em Portalegre, dizia,Cidade onde então sofria Coisas que terei pudor De contar seja a quem fôr,Na tal casa tôsca e belaÀ qual quis como se fôra Feita para eu morar nela,Tinha, então,Por única diversão,Uma pequena varandaDiante duma janela.

Tôda aberta ao sol que abraza, Ao frio que tolhe e gelaE ao vento que anda, desanda,E sarabanda, e ciranda Derredor da minha casa, Em Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercada De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;Era uma bela varanda,Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,Vagas e azúis da distância,Azúis, cinzentas, lilases,Já roxas quando mais perto,Campos verdes e amarelos,Salpicados de oliveiras,E que o frio, ao vir, despia,Rasava, uniaNum mesmo ar de desertoOu de longínquas geleiras,Céus que lá em cima, estrelados,Boiando em lua, ou fechadosNos seus turbilhões de trevas,Pareciam engulir-me Quando, fitando-os suspensoDaquele silêncio imenso,Sentia o chão a fugir-me,- Se abriam diante delaDaquelaBelaVarandaDaquela MinhaJanela,Em Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercada De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;

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Na casa em que morei, velha,Cheia dos maus e bons cheirosDas casas que têm história,Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memóriaDe antigas gentes e traças,Cheia de sol nas vidraças E de escuro nos recantos,Cheia de mêdo e sossego,De silêncios e de espantos,À qual quis como se fôraTão feita ao gôsto de outroraComo ao do meu aconchêgo…

Ora agora,Que havia o vento suãoQue enche o sono de pavores,Faz febre, esfarela os ossos,Dói nos peitos sufocados,E atira aos desesperadosA corda com que se enforcam Na trave de algum desvão, Que havia o vento suão de se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,Cidade onde então sofria Coisas que terei pudorDe contar seja a quem fôr,Que havia o vento suão De fazer,Senão trazerÀquela MinhaVarandaDaquelaMinhaJanela,O documento maiorDe que DeusÉ protectorDos seusQue mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,Onde uma cepa cansadaMal dava cravos sem vida,Poisou qualquer sementinhaQue o vento que anda, desanda,E sarabanda, e cirandaAchara no ar perdida,Errando entre terra e céus…,

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E, louvado seja Deus!,Eis que uma fôlha miüdinha Rompeu, cresceu, recortada,Furando a cepa cansadaQue dava cravos sem vidaNaquelaBelaVarandaDaquelaMinhaJanelaDa tal casa tôsca e belaÀ qual quis como se fôra Feita para eu morar nela…

Como é que o vento suão Que enche o sono de pavores,Faz febre, esfarela os ossos,Dói nos peitos sufocados,E atira aos desesperadosA corda com que se enforcam Na trave de algum desvão, Me trouxe a mim que, dizia,Em Portalegre sofria Coisas que terei pudorDe contar seja a quem fôr,Me trouxe a mim essa esmola,Êsse pedido de pazDum Deus que fere… e consolaCom o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudorDe contar seja a quem fôrMe davam então tal vidaEm Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercada De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;Me davam então tal vida- Não vivida!, sim morridaNo tédio e no desespêro,No espanto e na solidão,Que a corda dos derradeirosDesejos dos desgraçadosPor noites do tal suãoJá várias vezes tentaraMeus dedos verdes suados…

Senão quando o amor de DeusAo vento que anda, desanda,E sarabanda, e ciranda,

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Confia uma sementinhaPerdida entre terra e céus,E o vento a traz à varandaDaquelaMinhaJanelaDa tal casa tôsca e belaÀ qual quis como se fôra Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro, que eu tinha,Onde uma cepa cansadaMal dava cravos sem vida,Nasceu essa acàciazinha Que depois foi transplantada E cresceu, dom do meu Deus!,Aos pés lá da estranha casaDo largo do cemitério,Frente aos ciprestes que em frenteMostram os céus,Como dedos apontadosDe gigantes enterrados…

Quem desespera dos homens,Se a alma lhe não secou,A tudo transfere a esperança Que a humanidade frustrouE é capaz de amar as plantas,De esperar nos animais,De humanizar coisas brutas,E ter criancices tais,Tais e tantas!,Que será bom ter pudor De as contar seja a quem fôr!

O amor, a amizade, e quantosMais sonhos de oiro eu sonhara,Bens deste mundo!, que o mundoMe levara,De tal maneira me tinham,Ao fugir-me,Deixado só, nulo, vácuo,A mim, que tanto esperaraSer fiel,E forte,E firme,Que não era mais que morteA vida que então vivia,Auto-cadáver…

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E era então que sucediaQue em Portalegre, cidadeDo Alto Alentejo, cercada De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;Aos pés lá da casa velhaCheia dos maus e bons cheirosDas casas que têm história,Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memóriaDe antigas gentes e traças,Cheia de sol nas vidraças E de escuro nos recantos,Cheia de mêdo e sossego,De silêncios e de espantos,- A minha acácia crescia.

Vento suão!, obrigadoPela dôce companhiaQue em teu hálito empestado,Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novoQue a tenra acácia deitava,Será loucura!..., mas eraUma alegriaNa longa e negra apatiaDaquela miséria extremaEm que vivia,E vivera,Como se fizera um poema,Ou se um filho me nascera.

José Régio

Vamos Esta Noite

Page 36: João Nota - Antologia

Vamos

Para a Montanha-RussaVamosAo CarrosselVamosSubir o Pão de AçúcarVamos juntosLamber o Céu

VamosDançar até cair, irJuntos vamosMorrer de rir

Esta noite é só pra nósHoje não terá depoisHoje não terá porquêsEsta noite é pra vocêsVirem comigo Até ao fim Para o fim do Mundo

Vamos Perder a hora certaVamos Pisar no chãoVamos Deixar a porta abertaJuntos vamosPara Plutão

Hoje não terá amanhãHoje o Mundo é nosso clãHoje não terá talvezEsta noite é pra vocêsVirem junto Até ao Fim do Fim de tudo

Clã

Vou dar de beber à dor

Foi no domingo passado que passeiÀ casa onde vivia a Mariquinhas.Mas está tudo tão mudado

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Que não vi em nenhum lado,As tais janelas que tinham tabuinhas.Do rés-do-chão ao telhadoNão vi nada, nada, nadaQue pudesse recordar-me a Mariquinhas.E há um vidro quebrado e isoladoOnde havia as tabuinhas.

Entrei e onde era a sala agora estáÀ secretária um sujeito que é lingrinhas.Mas não vi colchas com barra,Nem viola nem guitarra,Nem espreitadelas furtivas das vizinhas.O tempo cravou a garraNa alma daquela casaOnde às vezes petiscávamos sardinhas;Quando em noites de guitarra e de farraEstava alegre a Mariquinhas.

As janelas tão garridas que ficavamCom cortinados de chita às pintinhas,Perderam de todo a graçaPorque é hoje uma vidraçaCom cercaduras de lata às voltinhas.E lá p'ra dentro quem passaHoje p'ra ir aos penhoresEntregar ao usuário umas coisinhas.Pois chega a esta desgraça toda a graçaDa casa da Mariquinhas.

P'ra terem feito da casa o que fizeram,Melhor fora que a mandassem p'rás alminhasPois ser casa de penhorO que foi viveiro de amor,É ideia que não cabe cá nas minhas.Recordações de calorE das saudades o gostoEu vou procurar esquecer… Numas ginjinhas. Pois dar de beber à dor é o melhor Já dizia a Mariquinhas.

Alberto Janes

Conclusão

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Estes foram os poemas que escolhi. Embora alguns deles possam ser lugares-comuns, gosto deles devido à visão que dão sobre alguns factores da vida; da própria vida e de simples acontecimentos.

Tal como tinha dito na introdução, quando terminei esta selecção de poemas, tinha já poemas a mais seleccionados, por isso tive que optar. Os outros, ficam para outra antologia.

Índice

Introdução

1.Amor é um fogo que arde sem se ver2.Anti-Anne Frank

Page 39: João Nota - Antologia

3.De Tarde4.Deslumbramentos5.É pau, e rei dos paus, não marmeleiro6.Eu estou bem7.Eu não sou boa a não ter aquilo que quero8.Já te Falei9.Leilão (Reformatação)10.Menina Gorda (Reformatação) 11.Não posso ter tudo12.O Génesis13.O Melro14.Os Balõesinhos (Reformatação)15.Pequena Morte16.Procissão (Reformatação)17.Saluti a Vincenzo18.Sete anos de pastor Jacob servia19.Toada de Portalegre20.Vamos esta noite

Poema Bónus:21.Vou dar de beber à dor (Reformatação)

Conclusão