João Paulo Cabeleira Marques Coelho Arquitecturas Imaginárias ...

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João Paulo Cabeleira Marques Coelho Arquitecturas Imaginárias. Espaço real e ilusório no Barroco português [volume I] Abril 2015 Universidade do Minho Escola de Arquitectura

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  • Joo Paulo Cabeleira Marques Coelho

    Arquitecturas Imaginrias.Espao real e ilusrio no Barroco portugus

    [volume I]

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    e I]

    Universidade do MinhoEscola de Arquitectura

  • Abril 2015

    Tese de DoutoramentoArquitectura / Cultura Arquitectnica

    Trabalho efectuado sob a orientao do Professor Doutor Joo Pedro Sampaio Xaviere co-orientao do Professor Doutor Jorge Manuel Simo Alves Correia

    Joo Paulo Cabeleira Marques Coelho

    Arquitecturas Imaginrias.Espao real e ilusrio no Barroco portugus

    [volume I]

    Universidade do MinhoEscola de Arquitectura

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    DECLARAO

    Nome:

    Joo Paulo Cabeleira Marques Coelho

    Endereo electrnico: [email protected]

    Ttulo tese:

    Arquitecturas Imaginrias.

    Espao Real e Ilusrio no Barroco Portugus.

    Orientadores:

    Professor Doutor Joo Pedro Sampaio Xavier

    Professor Doutor Jorge Manuel Simo Alves Correia Ano de concluso: 2015

    Designao do Ramo de Conhecimento do Doutoramento:

    Arquitectura/ Cultura Arquitectnica

    AUTORIZADA A REPRODUO INTEGRAL DESTA TESE/TRABALHO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAO, MEDIANTE DECLARAO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE;

    Universidade do Minho, 31/03/2015 Assinatura: ________________________________________________

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    DECLARAO DE INTEGRIDADE

    Declaro ter atuado com integridade na elaborao da presente tese. Confirmo que em todo o trabalho

    conducente sua elaborao no recorri prtica de plgio ou a qualquer forma de falsificao de

    resultados.

    Mais declaro que tomei conhecimento integral do Cdigo de Conduta tica da Universidade do Minho.

    Universidade do Minho, 31 de Maro de 2015

    Nome completo: Joo Paulo Cabeleira Marques Coelho

    Assinatura:

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    A quem chegou e a quem partiu

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    Agradecimentos

    Ao Prof. Arq. Joo Pedro Xavier, orientador da investigao, presente em todos os

    momentos e que desbloqueou a turbulncia inicial com o conselho mais til de todos: Vai ver. Foi a partir dessas palavras que percorri cidades, edifcios, museus, me afundei em documentos, gravuras e imagens que serviram seleco de hipteses, definio do mbito temtico e de possveis casos de estudo. Ao seu insubstituvel voto de confiana na investigao sobre um estimado objecto comum de interesse, a perspectiva

    Ao Prof. Arq. Jorge Correia, co-orientador e colega, pelas conversas aquando da clarificao na direco a prosseguir, e pelo permanente exame dos dados visando balizar a investigao dentro de limites exequveis e sintticos, mas tambm no sentido de esta ser operativa no mbito das minhas funes na EAUM.

    Elogio o contributo de colegas, esperando no incorrer em omisses, cujas conversas serviram a questionar e aprofundar condies de formalizao, objectivos e consideraes sobre a investigao. Ao Prof. Doutor Paulo Almeida (pelas conversas que antecederam a investigao aclarando possibilidade no mbito do desenho, perspectiva e imagem) Prof. Arq. Maria Manuel (apesar do conselho nunca acatado de expandir o estudo aos territrios ultramarinos, mas isso seria outro trabalho com distinta disponibilidade de tempo, suporte institucional e logstico), Dr. Paula Bessa (cujas conversas ajudaram na formulao de uma distino entre o mbito da histria de arte e da cultura arquitectnica).

    Gratifico-me com o entusiasmo do Prof. Doutor Lino Cabezas e Prof. Arq. Jos Calvo-Lopez, mediante a primeira apresentao de resultados da investigao no evento Nexus 2010, e que prontamente se disponibilizaram para conversar sobre a investigao. Kim Williams por aceitar a apresentao em dois eventos Nexus sucessivos e Sylvie Duvernoy pelas breves e pertinentes achegas no olhar para os erros da imagem. Dr. Mayer Mendona, que prontamente orientou o seu discurso sobre Landi em funo de questes pertinentes investigao. Ainda ao Dr. Nuno Saldanha e Dr. Henrique Leito cuja disponibilidade foi importante na definio de fontes.

    Dr. Giuseppina Raggi, cujas breves conversas e evidente entusiamos no tema incentivaram a prossecuo da abordagem do objecto sob o ponto de vista tcnico da perspectiva e concepo arquitectnica. Ao Dr. Magno Mello que, apesar de no conhecer pessoalmente, expressou na troca de mensagens a evidente partilha de excitao sobre casos de estudo coincidentes (a tratadstica de Vieira e a quadratura de Sena).

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    A todos aqueles que se disponibilizaram a abrir portas como o Dr. Marcos Loja (que me

    permitiu vislumbrar a vastido da quadratura em Santarm), Dr. Crmen Almada (pela partilha da sua experincia e conhecimento consequente s operaes de Restauro das obras do Menino-Deus, Cabo Espichel e S de Santarm), Dr. Margarida Tavares Da Conceio (que prontamente disponibilizou dados da sua investigao pertinentes ao mbito aqui explorado). Do mesmo modo dirijo-me Dr. Lurdes Adriano (da Biblioteca Municipal da Pvoa de Varzim), Dr. Paula Franco (da Biblioteca da Academia Militar de Lisboa), e, ainda que no individualizando, s tcnicas das salas de Microfilmes da Biblioteca Nacional (pela pacincia na recolha e reproduo dos documentos de Vieira) assim como do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

    Comisso Diocesana para os Bens Culturais da Igreja para a diocese de Santarm que, embrenhada no processo da Rota das Catedrais, se disponibilizou sem restries. Ao Padre Joaquim Ganho e Dr. Eva Neves que acolheram o pedido de acesso ao edifcio da S de Santarm, permitindo levar a cabo a complexa e morosa operao de levantamento. Aos mesmos agradeo o entusiamo demonstrado na investigao materializado no convite para a participao no colquio das comemoraes dos 300 anos do edifcio, permitindo contactar com investigadores que se debruavam sobre o mesmo conjunto ainda que a partir de objectos e campos disciplinares distintos.

    Ainda em relao ao processo de levantamento agradeo aos colegas de escritrio, como um reforado obrigado ao Arq. Antnio Madureira, no somente pelo seu incentivo e apoio, mas principalmente no questionamento e montagem de hipteses e estratgias na preparao do processo de levantamento.

    Por fim aos que me so mais prximos reconhecendo que quaisquer palavras sero sempre desajustadas merecida gratido. Aos amigos e familiares que confrontados com a indisponibilidade e oscilao de temperamento foram sempre insuperveis no apoio. Aos meus Pais, ao Quim e Mena, que acompanharam todos os momentos desta e outras provaes anteriores, e Natacha sempre prxima e convicta do bom porto.

    Mas a mais especial das gratides dirijo-a ao Gil, cujas brincadeiras, sorrisos, e fascnio na descoberta do mundo me permitiram embarcar no seu universo onrico de elefantes, crocodilos e lees.

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    Resumo

    Arquitecturas Imaginrias. Espao Real e Ilusrio no Barroco Portugus. Visando a observao da sistematizao terica levada a cabo pelo Padre Jesuta Incio

    Vieira e o engano do olhar potenciado pela quadratura do pintor Lus Gonalves Sena na abbada da capela-mor da igreja do Colgio jesuta de Nossa Senhora da Conceio em Santarm, a tese debrua-se sobre condicionantes terico-prticas da quadratura e suas potencialidades na interferncia sobre o espao construdo. Na linha de pensamento perseguida, subjacente ao domnio da arquitectura, a quadratura entendida sob a relao percepo/iluso tomada como mtodo de definio e especulao espacial. Assim, aos contedos do Tractado da ptica (1714) e do Tractado de Prospectiva (1716) de Vieira, nos quais se organiza o estado do conhecimento sobre a natureza e propriedades da vista, os enganos e desenganos da vista e os fundamentos da prospectiva, junta-se a sua expresso prtica por Sena, para avaliar as propriedades da imagem, confrontando a regra projectiva com a liberdade artstica e valorizao de factores perceptivos, e consequente induo de espao apontando metamorfose das aparncias.

    Uma anlise que exige revisitar simultaneamente a teoria e prtica desenvolvidas a partir da pennsula itlica e consequente aproximao contextura nacional, avaliando a evoluo da discusso da quadratura e arquitectura a partir dos contedos da ptica e perspectiva, tal como os desenvolvimentos na conformao do espao sensitivo barroco, seja por via da imagem ou da construo. Deste modo, poder-se- reconhecer o lastro cientfico na base dos manuscritos de Vieira, como reconhecer modelos, objectivos imagticos e habilidades na conformao do espao visual e interferncia sobre o espao construdo inerentes estrutura delineada por Sena. Da avaliao da quadratura propomo-nos discutir o seu processo compositivo, gesto da perspectiva e modos de projeco na abbada, ao mesmo tempo que se desconstri a imagem (por via da restituio perspctica e reabilitao da ideia arquitectnica), procurando alcanar as qualidades do organismo representado e suas relaes com o construdo.

    Os estudos no mbito da perspectiva e arquitecturas de quadratura tm vindo, no crculo das investigaes nacionais, a aprofundar a compreenso dos contedos cientficos, prtica artstica e pressupostos imagticos intrnsecos a este gnero pictrico e arquitectnico. Porm, no caso desta investigao o discurso orientado em funo do entendimento do binmio quadratura/arquitectura enquanto sntese entre espao concreto, o conformado pela construo, e ilusrio, definido a partir da representao, instituindo uma verdade aparente fundada nas potencialidades da perspectiva.

    Neste seguimento levantam-se questes relativas s condies cientifico-artsticas na base da quadratura, s interaces entre arquitectura e perspectiva, legitimao da quadratura como aco espacial e, logo, arquitectnica, bem como s circunstncias e procedimentos especficos inerentes produo quadraturista.

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    Abstract

    Imaginary Architectures. Real and illusory space of the Portuguese baroque. In order to observe the theoretical systematization carried out by the Jesuit Father

    Incio Vieira and the deception of the sight enhanced by the Lus Goncalves Senas quadratura painting in the main chapels vault in the Church of the Jesuit College of Our Lady of the Conception in Santarm, the thesis addresses over quadraturas theoretical and practical conditions along with its potential in the interference on the built environment. In the pursued line of thought, underlying the field of architecture, the quadratura is understood under the relation perception/illusion taken as a method of spatial speculation and definition. Thus, the contents of Tractado da ptica (1714) and Tractado de Prospectiva (1716) by Vieira, in which is organized the state of knowledge about the nature and properties of view, the mistakes and disappointments of the sight and the fundaments of perspective, are joined to its practical expression by Sena, to assess the properties of the image, in order to confront the projective rule with the artistic freedom and appreciation of perceptual features and consequent induction of space pointing towards a metamorphosis of appearances.

    An analysis that requires revisiting both theory and practice developments in the Italian peninsula and consequent approach to the Portuguese context, assessing the evolution of quadratura and architectural discussion from the contents of perspective and optics, such as advances in the conformation of the baroques sensitive space, either through image or construction. Thus, the scientific contents on the basis of Vieiras manuscripts may be recognized, as well as the models, imagery objectives and skills in shaping the visual space and interference with the built space inherent to Senas outlined structure. Through the quadraturas analysis we propose to discuss its compositional process, management of perspective and projection modes in the vault at the same time that the images deconstruction (via perspectival restitution and rehabilitation of the architectural idea), allow us to reach the qualities of the represented architectures and their relation with the built environment.

    Studies on perspective and quadraturas architectures have been, in the sphere of national investigations, seeking to understand the scientific thought, artistic practice and imagery assumptions intrinsic to this pictorial and architectural genre. However, this research is oriented towards the understanding of the binome quadratura/architecture while synthesis among physical space, shaped by construction, and illusory space, defined through representation, pursuing an apparent truth founded over perspectives potential.

    Following this positions questions are raised concerning to scientific and artistic conditions at the foundations of quadrature, to the interactions between architecture and perspective, to the legitimacy of quadratura as spatial action and, therefore, as architecture, as well as to the specific circumstances and procedures inherent to quadraturas production.

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    Resumo VAbstract VII

    SUMRIO

    INTRODUO

    Uma definio de quadratura. O Objecto de estudo. 5rea cientfica e estudos da matria. 9Procedimento metodolgico e estrutura da dissertao. 12Critrios do corpo documental em anexo, levantamentos e nomenclaturas usadas. 16

    01. CONTEXTO E CONCEITOS PARA A ILUSO Contextualizao

    Religio, Politica e Arte: imagem triunfalista do poder nos sculos XVII e XVIII. 23Escolstica & Revoluo Cientfica: verdade versus realidade. 26A problemtica do Barroco: a arte enquanto sistema imagtico. 29Para uma breve definio de retrica visual. 32

    Iluso espacial

    Realidade e iluso: a conceptualizao da imagem como representao ou facto. 39Sistemas de pensamento na construo da imagem do espao. 40Os limites da representao. Experincia perceptiva do espao perspctico. 45

    02. CORPO TERICO-PRTICO

    Perspectiva e quadratura

    Para uma breve definio de perspectiva aplicada quadratura. 61Anncio e polmica na representao espacial. 63A sntese da construo perspctica. 67Linguagem Matemtica e prtica artstica. 71A divergncia de pontos de vista. 74Inverso, curiosidade e magia perspctica. 80Ciso arte e cincia. 83As referncias prticas da quadratura. 89Arquitectura pictrica. 99Para uma breve definio de iluso e metamorfose de aparncias. 102A imagem do espao. 104Ruptura da superfcie. 112Jogo do espelho e da maravilha. 119Hegemonia da imagem sobre a construo. 128

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    ptica e arquitectura

    Para uma breve definio de espao perspctico ou ptico. 143Integrao da ptica na reflexo e crtica arquitectnica. 146A impossibilidade de uma verdade matemtica. 152O desenvolvimento de uma arquitectura ptica. 155Imagem construda. 158Contaminao da imagem no projecto. 164Imagem da Pedra. 169ptica na prtica da arquitectura imagem. 177Para uma breve definio de espao barroco: o Bel Composto. 180O tempo do Barroco. 182Reviso e inverso Clssica. 184Inveno ptica. 191Ornamento matemtico. 197Viso e correco. 201Construir o infinito. 206

    03. TEORIA PORTUGUESA. INCIO VIEIRA Geometria e perspectiva no barroco portugus

    Investigao, divulgao e ensino. Matemtica, ptica e perspectiva. 217O despontar da cincia arquitectnica e predecessores da perspectiva. 219Aco educativa Jesuta e a Aula da Esfera. 229Lies de Arquitectura. Formulao do desenho tcnico. 234Do panegrico pictrico prtica da perspectiva. 240Sistematizaes setecentistas. Pensamento antigo e moderno. 245

    Incio Vieira: teoria da quadratura

    A sistematizao e actualizao nos manuscritos de Incio Vieira. 259Tractado da ptica, 1714 (BN Cdice 5169). 263Tractado de Prospectiva, 1716 (BN Cdice 5170). 272

    Assimilao e traduo da Perspectiva de Andrea Pozzo. 306O contributo de Incio Vieira. 312

    04. PRTICA PORTUGUESA. LUS GONALVES SENA Construo e imagem do espao barroco portugus

    A construo do barroco portugus. 319Contraco e dilatao espacial, sobreposio tipolgica. 321Modelao murria e espacial. 328Pesquisa arquitectnica nas artes decorativas e efmeras. 335

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    Da Pintura Architecta. 343O aggiornamento da imagem do espao. 350Dois modos de integrao quadraturista e interveno espacial. 353Formao e produo portuguesa. 360

    A imagem de uma Prospectiva aedificandi. 367Inveno ptica 369

    Ruptura da superfcie: Igreja da Pena (1719-81). 372Ornamento matemtico. 375

    Jogo do espelho: Igreja do Menino Deus (1731). 378Viso e correco 383

    Hegemonia da imagem: Santurio do Cabo Espichel (1740-70). 385Construir o infinito. 389

    Lus Gonalves Sena: prtica da quadratura

    Cultura e imagem em Santarm. 397A introduo da Quadratura em Santarm por Simes Ribeiro. 404

    Lus Gonalves Sena. 416A Igreja do Colgio da Companhia de Jesus. 421

    O espao da imagem. Construo, cenografia e iluso. 426As fontes da imagem. 433Para alm do evidente: espao projectivo e estrutura perspctica 446

    Projecto e projeco do prottipo. 456Desvio e desajuste perceptivo. 473

    A desconstruo do espao imaginrio. 479Revelao arquitectnica 521

    05. CONCLUSO

    Consideraes Finais. 537

    Fontes e Bibliografia 555 ANEXOS

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    Arquitecturas Imaginrias. Espao Real e Ilusrio no Barroco Portugus.

    Todo ponto de viso um pice de uma pirmide invertida, cuja base indeterminvel.

    Damos comummente s nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noes do conhecido () Manufacturamos realidades. A matria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma.

    Fernando Pessoa: Livro do Desassossego.

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    Introduo

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    Uma definio de quadratura. O objecto de estudo.

    Infinito spazio ha infinita attitudine, ed in quella infinita attitudine si loda infinito atto di existenza

    Giordano Bruno, De linfinito, universo e mondi.

    noo de espao limitado, estvel e mensurvel do Renascimento a viso Barroca abre-se considerao do infinito. Esta abertura, simultnea expanso da realidade fsica - a amplitude proporcionada pelas descobertas e observaes astronmicas - e do conhecimento cientfico - substituindo-se a ideia de perfeio imutvel pelo questionamento do natural e sua volubilidade - coincide com a concepo de novos modelos artsticos e arquitectnicos que visam a diluio dos limites fsicos.

    Conduzindo o culto barroco do infinito superao dos constrangimentos tectnicos, por via da manipulao ptica, a atitude evidenciada na modelao da forma e imagem do espao. Neste sentido a representao perspctica da arquitectura extravasa o mbito estritamente pictrico ou conceptual, libertando-se da condio processual e instrumental na materializao e anteviso grfica da ideia arquitectnica, para se integrar no edificado unificando espao visto e habitado como entidade contnua e assumir-se como instrumento de aco espacial. Contudo, e de acordo com os objectivos da investigao, necessrio fixar uma definio de quadratura que evidencie as suas especificidades operativas e conceptuais, nomeadamente na distino desta para com outras modalidades de pintura mural de arquitecturas, a par da aco perceptiva entre construdo, representao e olhar.

    Assim sendo, a pintura mural de elementos arquitectnicos por ns circunscrita a representaes de deliberada inteno decorativa, preenchendo vazios e animando a superfcie tectnica, sendo desprovida de competncias na transformao do espao. Ao invs, com o termo quadratura identificamos as pinturas de perspectiva arquitectnica ao servio da caracterizao e transformao espacial, combinando conhecimentos, tcnicas e princpios da arquitectura e da pintura. Identificamo-la como Architectura ficta na qual se sintetizam Ars Pingendi e Scientia aedificandi.

    Transformando perceptivamente a imagem, forma e medida do suporte tectnico a quadratura ultrapassa a condio de representao para se afirmar como parte coerente do espao habitado. Sob este entendimento, 1 a prtica quadraturista coincide com a da arquitectura nos seus cdigos compositivos (regras, gramtica e ordens da tectnica a par das suas capacidades combinatrias) ou geomtricos (gesto perspctica da representao e reconhecimento das leis pticas), colocando-se no mbito da interveno espacial. Partindo dos mesmos procedimentos metodolgicos e instrumentais, fortemente firmados no desenho, a quadratura mostra-se ainda sensvel aos efeitos de luz, sombra e contraste inerentes s capacidades propositivas da imagem pictrica.

    1 O qual parte da enunciao de SJSTRM 1978, 11-16.

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    Nas Vite de Vasari (1550, 36) a expresso far di quadro remete tcnica do talhe de pedra cujas operaes assentam no uso do esquadro e compasso. Ainda que etimologicamente a expresso se aplique conformao tectnica, esta pressupe uma ideia coincidente com a prtica da quadratura: reconhecimento dos elementos arquitectnicos na sua configurao, medida e relaes proporcionais. Assim, o trajecto da expresso far di quadro ao termo quadratura (que adquire o actual significado em finais do sculo XVII)2 parece, ao extravasar o mbito estrito da construo, transportar consigo procedimentos da prtica do desenho que, coordenados sob regras da matemtica e geometria, servem a definio da forma/espao e consequente capacidade de transferncia para o suporte (a pedra no caso da tectnica, a superfcie pictrica no caso da quadratura).

    Simultaneamente o termo quadratura remete ao conceito de quadro (a moldura, relativa s experincias em que arquitecturas fictcias enquadravam cenas narrativas) e tambm de quadrettatura (quadrcula no suporte regulao, transferncia e ampliao de imagens). Esta ltima remete-nos, para alm do desgnio de esqueleto estrutural na organizao de um programa iconogrfico, s condies tcnicas da quadratura, seja na sua concepo (a malha reguladora da composio arquitectnica), ou execuo (a malha justaposta ao modelo e a ser projectada na superfcie de representao permitindo a transferncia da imagem mantendo relaes de proporo, posicionamento e distncia), tal como registado na tratadstica coeva especializada.3

    No Vocabulario Portuguez & Latino (1712-28), de Raphael Bluteau, o termo quadratura era associado ao seu mbito matemtico/geomtrico (na enunciao do problema clssico da passagem do quadrado ao crculo com reas equivalentes), ou astronmico (descrevendo alinhamentos de astros) sem fazer meno configurao de arquitecturas imaginrias. Somente no Dicionrio tcnico e histrico de pintura, escultura, architectura e gravura (1875), de Francisco de Assis, se extravasa a associao ao problema matemtico de reduco de uma qualquer figura a um quadrado de igual superfcie para lhe agregar a identificao de estruturas decorativas e cenogrficas. Contudo, referindo-se necessidade de conhecimentos em arquitectura, perspectiva e ptica, a par de destreza artstica na representao da luz, a atribuio do substantivo de architectos decoradores4 tende a aproximar a quadratura do mbito da arquitectura desvinculando-a da exclusividade da interveno pictrica.

    2 O termo fora aplicado noutro campo especializado: o desenho perspctico e proporcionado do corpo humano em que a figura decomposta em slidos regulares e articulados conforme apresenta Lomazzo no seu Trattato dellarte della pittura, scoltura et architettura, (1584). 3 Em Perspectiva pictorum et architectorum (1693, Roma) Pozzo identifica trs procedimentos para a projeco de imagens superfcie arquitectnica: Ricalcare (decalque e inciso do desenho tendo por base cartes escala da imagem pretendida), Spolverare (transferncia em que a partir de cartes se registam pontos do desenho no suporte pictrico) e Graticulare (mtodo de transferncia com base na projeco de quadrcula de referncia da imagem), sendo a partir deste ltimo que se estabeleceria o conceito de quadratura. 4 FRANCISCO DE ASSIS 1875, 134. Quadratura - S.f. do lat. Quadratus, quadrado, (geom.) reduco de uma qualquer figura a um quadrado de igual superfcie, cuja reduco nunca pde ser seno aproximativa, posto que daqui nasa a celebre questo da quadratura do crculo, de que Montuella nos deu uma descripo histrica conhecida com o ttulo de Histoire des recherches sur la quadr. Do circ., reimpressa em 1831 com as notas de Lacroix./ Os italianos chamam com pouca propriedade quadraturas e quadraturistas s pinturas de architectura e aos pintores que pintam a fresco molduras e ornamentos. FRANCISCO DE ASSIS 1875, 314.

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    Contudo, se o termo quadratura progressivamente aplicado para identificar uma rea especializada da produo imagtica poderemos levantar as seguintes questes: Seria a quadratura apenas um fim da decorao pictrica? Ou, ao invs, um instrumento de caracterizao espacial?

    Se a historiografia nem sempre foi clara na definio disciplinar da quadratura, esta desprende-se, pelo menos durante o barroco, de uma condio puramente decorativa para evidenciar aptides prprias da aco arquitectnica, interferindo e fundindo-se com os demais elementos definidores e caracterizadores do espao. Uma remisso da quadratura para o campo das artes decorativas, esvazi-la-ia das suas potencialidades operativas respeitantes interferncia na percepo das condies estruturais do espao construdo. Ainda que circunscrita a uma condio bidimensional e ao nvel estrito da especulao imagtica, a quadratura partilha aspiraes com a arquitectura debruando-se sobre o espao, a forma e a combinatria do vocabulrio arquitectnico controlados sob o exerccio do desenho e prxis projectiva. Sendo a imagem quadraturista destinada a integrar a construo escala do natural confronta-se, em igualdade de circunstncias, com a matria construda e o observador, manipulando a percepo deste ltimo atravs de uma consciente aplicao de procedimentos perspcticos de engano e desengano do olhar.

    Partilhando o objecto e propsito da sua prtica, arquitectura e quadratura distinguem-se por operar, respectivamente, ao nvel da organizao da realidade tridimensional, o da construo, e da organizao de um campo bidimensional que, regulado pelas leis projectivas, induz no observador a aparncia de factos tridimensionais. Por outro lado, se pintura mural de elementos arquitectnicos se atribui uma condio subsidiria da arquitectura, a quadratura assume-se como parte integrante e indissocivel do espao vivenciado. Como tal, sendo intrnseca quadratura a aparncia do quadro espacial habitado pelo Homem poderemos integra-la no campo disciplinar da arquitectura j que, e sem sombra de dvida, organiza, caracteriza e define espao fundando-se no poder da simulao perspctica, ultrapassando condies da natureza fsica da tectnica.

    Considerando a coerncia entre o tangvel (construdo) e o aparente (a sntese construo/representao) a experincia do espao reflecte uma vivncia hptica (em que o corpo reage simultaneamente ao tacto, rudo, luz, odor e reflexo sonora) e uma vivncia visual (o estmulo ptico) sendo esta ltima fortemente valorizada pelo modus operandi do sistema imagtico barroco. A integrao da quadratura no construdo sobrevaloriza o espao imaginado, firmando o olhar como centro e destino de uma particular mentalidade espacial j que nele que se processa a sntese entre concreto e ilusrio. Mais do que uma dimenso material, o espao regular-se em funo da medida e estrutura percebida de acordo com as potencialidades da simulao perspctica, elevando a quadratura a () homologia entre espao real e o pintado (). 5 Um processo em que a percepo determinam uma experincia contnua da imagem totalizante dos factos.

    5 PIGOZZI 2011, 58.

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    Referindo-nos transformao perceptiva do espao arquitectnico e incluso do observador conforme os enredos da retrica visual, os espaos simulados da quadratura geram novas dimenses e dinmicas no interior construdo. O concreto cede lugar a uma realidade aparente fundada na imagem que, reconhecendo os parmetros da viso (como se v e percebe o espao) interpretados pelas leis pticas e expressos graficamente pela geometria projectiva, conferem uma nova viso do mundo. Se a cultura arquitectnica moderna se movera inicialmente em torno da medida da construo, a progressiva assimilao da perspectiva linear nas metodologias de concepo e conformao da arquitectura revem categorias da prxis transferindo a importncia da medida do concreto para a do percebido. Ultrapassando a condio de anlise, suporte e anteviso do projecto, a quadratura desvincula os arquitectos barrocos da exclusiva concretizao do seu ofcio pela pedra passando a aceitar a imagem como parte integrante de um contnuo que amplia a sua capacidade interventiva: A realidade transforma-se num universo de representaes.6

    Ligando-se ao conceito de volubilidade perceptiva, a quadratura detm potencialidades de interpretao e interposio espacial numa declarada inteno transformadora, ainda que ilusria. Nesta linha, o alojamento da quadratura na construo no s transforma a relao do indivduo com o espao como oferece possibilidades ilimitadas de ensaio sobre as formas, articulaes, valores lumnicos, proporo e combinatria da gramtica arquitectnica. Comparativamente aco construtiva a quadratura oferece condies de experimentao e inveno livres dos constrangimentos da tectnica, transportando aptides de antecipao e ensaio inerentes ao desenho para o espao habitado e percebido. Revela-se assim como catalisador do ensaio e crtica projectual, em que o desenho extravasa para o espao habitado e para a experincia deste, confundindo estruturalmente construo/representao e determinando a imagem do espao total. Como tal, deveremos ter em ateno que a obra de quadratura tomada de dois pontos de vista simultneos: o da construo pelo arquitecto-quadraturista e o da recepo pelo observador. A cada um destes fazemos corresponder a quadratura, relativa operao cientfico-artstica em que reside a formulao da imagem arquitectnica, e a transformao espacial enquanto aco perceptiva desencadeada pelo olhar na sntese entre o construdo e representao.

    Os desenvolvimentos dos procedimentos perspcticos, em curso desde os alvores da modernidade, alteraram a concepo imagtica e espacial ocidental, sendo que aqui nos centramos nas potencialidades da imagem quadraturista num apuramento simultneo da forma construda e induzida. Se do exposto parece evidente uma coincidncia entre arquitectura e quadratura, no que se refere sua intencionalidade (transformao do espao e leitura da forma construda), elementos operativos (ordem e composio), procedimentos metodolgicos (o desenho) e disciplinas fundadoras da sua prtica (a matemtica e a geometria), poder-se-, ainda que desvinculada da tectnica, colocar a quadratura no campo da interveno arquitectnica.

    6 PREZ-GMEZ 1997, 75.

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    rea cientfica e estudos da matria. Ritengo che nessuno possa mettere in dubbio che larchitettura e la pittura, considerando i loro mirabili prodotti, siano da anteporsi a tutte le altre (...) la nobilt propria di ciascuna di queste arti e la loro preminenza devono attribuirsi alle discipline matematiche e soprattuto alla prospetiva (...)

    Guidobaldo del Monte, Perspectivae Libri Sex.

    Do ttulo Arquitecturas Imaginrias: Espao Real e Ilusrio no Barroco Portugus depreende-se o objecto (espaos cuja percepo condicionada pela representao quadraturista), contextura espacial (Portugal) e temporal (o perodo Barroco) a par do mbito disciplinar em que se move a investigao (cultura arquitectnica qual intrnseca o domnio e prtica da perspectiva).

    O objecto, a quadratura, analisado num mbito que, extravasando a sua condio pictrica, envolve as razes cientficas que o suportam a par dos argumentos construtivos e espaciais que lhe conferem valor arquitectnico. Reconhecendo-se a dualidade terico-prtica intrnseca quadratura, a anlise do estado do conhecimento e eleio dos casos de estudo decorre dessa simultaneidade. De um lado compreendemos a teoria presente nos tratados de perspectiva e arquitectura, testemunhando a concepo intelectual coeva relativa operao de imagem/espao, e do outro o seu ensaio e implementao prtica resultante da transmisso de tcnicas e experimentao imagtica. Como tal, a contextura em que incidimos balizada pela sntese terica setecentista do padre jesuta Incio Vieira (Tractado da ptica, Tractado de Prospectiva, Tratado de Catoptrica e Tractado de Diptrica), a par da operao espacial decorrente do exerccio empreendido por Lus Gonalves Sena (quadratura da Assuno da Virgem na capela-mor da Igreja do Colgio Jesuta de Nossa Senhora da Conceio, Santarm).

    A eleio destes casos prende-se com a sua exemplaridade no contexto nacional, revelando a absoro de modelos internacionais e consequente capacidade de adaptao e resposta especificidade do contexto em que se integram. Se, por um lado, a tratadstica de Incio Vieira sistematiza e cita directamente as maiores autoridades na matria, ainda que se restringindo produo interna Companhia de Jesus, tambm a quadratura de Sena evidencia a assimilao de modelos e modus operandi procedentes do mesmo crculo.

    O legado de Vieira afigura-se como caso de estudo terico incontornvel, enquanto a eleio da obra de Sena no to imediata, malgrado a sua intrnseca qualidade imagtica. Em ambos encontramo-nos perante a adopo de um mesmo modelo fortemente condicionado e institucionalizado pela Casa Professa e que no necessariamente cnsono com a prtica quadraturista mais difundida em territrio nacional. Por outro lado, a opo por estes casos consequente falta de, no caso da obra de Vieira, um exame das fontes e contedos projectivos a comunicados a par de, no caso da obra de Sena, ser externa aos crculos de produo quadraturista mais citados e, simultaneamente, por resultar de

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    encomenda da Casa Professa alinhando-se com os modelos projectivos difundidos por Vieira, apesar do arco de trinta anos que os separa.

    Se evidente que o objecto e a nossa viso sobre este parte do domnio cientfico da arquitectura apontando particularmente geometria (no que se refere aos princpios pticos, matemticos e consequente transposio grfica na representao do espao e interferncia sobre o construdo), a investigao toca em estudos dos campos da histria da arte e da cincia, a par da pintura e geometria, que nos informam acerca dos autores e agentes, cincia matemtica e geomtrica, produo imagtica e seus instrumentos.

    Os precedentes historiogrficos da quadratura em Portugal remontam ao estudo de Reynaldo dos Santos (1962) que toma Pozzo como fonte exclusiva do gnero pictrico, circunscreve a prtica primeira metade do sculo XVIII e considera as imagens produzidas como incapazes de furar o tecto (SANTOS 1962, 176). Os estudos so retomados por Ayres de Carvalho (1980) que estende a prtica segunda metade do sculo XVIII e considera a influncia de Bibiena na transferncia prtica nacional a actualidade da escola de Bolonha. Neste mbito o autor estuda as obras de Azzolini e Piolti que, nos projectos cenogrficos e decorativos dos palcios de Belm, Ajuda e Mafra, perpetuam o legado emiliano e fecham o ciclo nacional da pintura de quadratura.

    Sendo a quadratura includa nos estudos do Barroco portugus esta apontada por Serro (1975, 1978, 1997, 2003), Saldanha (1994) e Moura Sobral (1996) no mbito da produo pictrica e no da caracterizao dos espaos barrocos. Porm, a partir das investigaes de Mello (1998, 2003) e Raggi (2004) que se desbrava a inventariao do acervo quadraturista montando a teia de relaes entre autores, patronos, modelos, contedos iconogrficos e simblicos a par da valorizao da autonomia do gnero. Simultaneamente, os dois investigadores exploram os fenmenos de recepo e absoro da quadratura e sua expanso a todo o territrio segundo ramificaes regionais que chegam, inclusivamente, ao espao colonial. Mais recentemente, e j no domnio da teoria da imagem, o estudo de Reis (2006) aborda relaes entre a experincia perceptiva e intelectual do espao a par do prodgio metafsico na relao entre observador e representado.

    No seguimento destas, Trindade (2008) abre caminho anlise de contedos da geometria, sendo esta linha continuada por Santos (2014). Contudo, ressalta destas investigaes uma abordagem vocacionada leitura da quadratura enquanto gnero pictrico em detrimento de valncias arquitectnicas nomeadamente de contedos de composio arquitectnica ou da sntese percebida (entre construdo e representado) averiguando interferncias da imagem sobre a apreenso do espao. Ainda no domnio da geometria, mas a partir da arquitectura, a investigao tem ganho avanos significativos por Joo Pedro Xavier (2005), Vtor Murtinho (2002) e Manuel Couceiro (1992), seja na explorao da perspectiva do ponto de vista historiogrfico ou simblico, seja da sua intrnseca relao processual com o projecto,

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    Porm, permanecem lacunas num reconhecimento mais profundo da geometria em Portugal, e em particular da perspectiva, quer no campo do desenvolvimento terico, quer no relativo sua aplicao prtica e consequente reconhecimento do legado patrimonial. Como tal, em Arquitecturas Imaginrias. Espao Real e Ilusrio no Barroco Portugus pretende-se colmatar uma lacuna temtica no campo da investigao em arquitectura (interferncia da quadratura na percepo global do espao, e suas potencialidades ensasticas) e em geometria (averiguando-se procedimentos terico-prticos na delineao e composio da imagem quadraturista) reconhecendo a quadratura como matria da arquitectura.

    A estes campos deveremos considerar ainda os estudos relativos produo espacial e artstica do momento histrico em anlise. Se os primeiros estudos da arquitectura Barroca em Portugal ganham forma atravs de autores estrangeiros como Bazin (1950), Smith (1949, 1968) ou Kubler (1969, 1972), deveremos mencionar o seu aprofundamento atravs de Frana (1965), Ayres de Carvalho (1962), e das sistematizaes de Varela Gomes (1987), Pereira (1986, 1992) e Serro (2003). Por outro lado assomam-se estudos que estruturam o barroco a partir de ordens temticas, como o debate em torno da planta central por Varela Gomes (2001) ou da produo circunscrita a crculos de aco ou autores particulares como os estudos sobre Canevari por Pereira (1991, 1997), Gimac por Moreira da Rocha (2004, 2006), Andr Soares por Pires de Oliveira (2011), do barroco joanino por Bonifcio (1990) e Berger (1990), a Real Obra de Mafra por Pereira (1992) ou Pimentel (1990), os mestres arquitectos bracarenses por Moreira da Rocha (1994, 1996, 2007, 2008), e ainda a abordagem da arquitectura dos colgios jesutas por Fausto Sanches (1994). A estes dever-se-o acrescentar as incurses na anlise da sumpturia barroca, Bebiano (1987), da cenografia de Bibiena, Janurio (2006, 2007), e a organizao extensiva do campo das artes decorativas nomeadamente por Natlia Ferreira Alves (2001, 2003) e Joaquim Ferreira Alves (2007) em relao produo nortenha, e por Coutinho (2010) e Ferreira (2009) em relao produo lisboeta no perodo de 1670-1720 ou incidindo especificamente sobre a produo de autores como Landi, Mayer (2003), ou Nasoni, Frias (2005).

    Dado o campo em que nos movemos, interessar-nos-o ainda os estudos que no mbito da histria da cincia nacional permitiram consolidar a compreenso da contextura cognitiva que envolve os desenvolvimentos da perspectiva, vias de divulgao e centros de ensino. Da se revela a importncia do trabalho que Leito (2002, 2004, 2005, 2007) desenvolve na inventariao e sistematizao da tratadstica cientfica em depsito na Biblioteca Nacional, nomeadamente o acervo da Aula da Esfera do Colgio Jesuta de Santo Anto em Lisboa, ou ainda os estudos de Albuquerque (1972, 1985), que iniciaram a interpretao desse mesmo esplio, ou os de Baldini (2004) e Mota (2008) que ajudam a clarificar acerca do ensino das cincias matemticas a par do valor epistemolgico e objectivos coevos da cincia.

    Retomando os estudos especficos acerca da quadratura, deveremos evidenciar que aqueles realizados no mbito da histria da arte no incluem a anlise de procedimentos projectivos nem as propriedades das obras ao nvel da sua integrao na construo e

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    composio espacial, consequentes valorizao da quadratura enquanto instrumento da arquitectura. Por outro lado, os estudos da teoria da imagem e pintura, ainda que avancem no reconhecimento de princpios projectivos, deixam de lado a instrumentalizao da perspectiva aco espacial nomeadamente sntese entre obra construda e representada. Deste modo, e indo de encontro s questes que nos movem, pretende-se agregar a teoria perspctica arquitectnica, conforme implcito aos principais modelos quadraturistas. Como tal, interessam-nos modos de pensar e conceber a espacialidade barroca assimilando-se competncias da ptica, geometria e teoria arquitectnica nos processos de definio de uma espacialidade induzida aos sentidos.

    Neste sentido a investigao vai de encontro, alm do aprofundamento de temas decorrentes da prtica pedaggica da geometria, valorizao de contedos inerentes relao percepo/iluso entendido como mtodo projectual e a sua evoluo no progresso dos conhecimentos tericos e aco prtica da interveno espacial. Premissas que verificamos encontrarem-se alinhadas com as que orientaram Camerota (1994), De Carlo (1999), Carlevaris (1999), Farnetti (2002), citando exemplos do crculo das investigaes italianas, ou, no caso portugus, por Xavier (2003) e ainda Couceiro (1992). A opo pelos espaos ilusrios da quadratura barroca expressa, mais do que o deslumbre sensitivo pelas obras, ensejos de especulao espacial, subjacente aco do projecto, integrando contedos projectivos, fenomenolgicos e da cultura cientfica e arquitectnica.

    Procedimento metodolgico e estrutura da dissertao

    E come a i quattro sensi considerati anno relazione i quattro elementi, cos credo che per la vista, senso sopra tutti gli altri eminentissimo, abbia relazione la luce, ma con quella proporzione d'eccellenza qual tra 'l finito e l'infinito, tra 'l temporaneo e l'instantaneo, tra 'l quanto e l'indivisibile, tra la luce e le tenebre.

    Galileu Galilei, Il Saggiatore. O entendimento do binmio quadratura/arquitectura pressupe o cruzamento entre

    sistemas tericos (relativos cincia projectiva e teoria da arquitectura) e modus de implementao prtica e resoluo emprica (procedimentos relativos concepo, produo e projeco da imagem a par do entendimento de relaes com o suporte construdo e assimilao dos fenmenos perceptivos).

    A metodologia seguida rene duas vertentes omnipresentes na gnese da quadratura: uma relativa a motivaes terico-matemticas (espelhada na tratadstica coeva em que se explora, desenvolve e sistematizam os contedos relativos cincia projectiva e cultura arquitectnica); outra de ndole prtico-emprico na resoluo da imagem do espao (relativa aos problemas da concepo da imagem, projeco e resoluo/ajuste a condicionantes

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    perceptivas e espaciais). Sendo que a primeira assenta no cruzamento da tratadstica coeva, a segunda, que incide directamente na obra de quadratura, reclama sua interpretao processos do desenho (cognitivo e representativo) atravs dos quais se exploram qualidades estruturais e projectivas da imagem, a par da proposta espacial e vnculos entre construdo e representado. Constri-se um lastro terico crtico capaz de suportar o exame e desmontagem de representaes que se impem como arquitecturas.

    Ora, nesta lgica, tambm o objecto de estudo funda-se nessa dualidade. Do objecto decorre a obra manuscrita do matemtico jesuta Incio Vieira, na qual se sistematiza o suporte cientfico operao quadraturista, e a obra pintada por Gonalves Sena, a qual responde a encomenda da comunidade inaciana de Santarm evidenciando a assimilao e manipulao de modelos e procedimentos.

    Os Tractado da ptica (1714) e Tractado de Prospectiva (1716) de Vieira so analisados sob uma sequncia que pretende reconhecer em profundidade os seus contedos e relao com a produo e temticas coevas. Assim considera-se a obra a partir do seu contexto cientfico, analisando os textos e divulgao da perspectiva em Portugal, ao mesmo tempo que se reconhece a sua estrutura e mbitos temticos de modo a identificar contedos e sua organizao. Paralelamente detectam-se as fontes da obra, nomeadamente dos modelos e principais autoridades nas matrias, sejam citados directamente ou implcitos de acordo com os contedos expostos. Passando considerao da matria dos tratados explora-se a sequncia de procedimentos e sua expresso grfica, ao mesmo tempo que se detectam comentrios e notas pessoais produo coeva. Uma leitura que pressupe a desmontagem da obra e seus objectivos seja no mbito estrito da comunidade inaciana, ou junto de arquitectos, pintores e cengrafos que procuravam a aula de Vieira para aprofundar conhecimentos.

    Paralelamente a avaliao da quadratura do mestre escalabitano Lus Gonalves Sena, a Assuno da Virgem (1754) na abbada da capela-mor da Igreja do Colgio de Nossa Senhora da Conceio em Santarm, parte do reconhecimento da obra sob o binmio quadratura/arquitectura, espao induzido e transformao do suporte tectnico. sua avaliao interessa enquadrar a obra a partir da produo quadraturista coeva, nacional e local, detectando-se filiaes tericas e prticas que a alimentam atravs de modelos projectivos e estratgias de composio arquitectnica ou imagtica. A partir da, e sustentando-nos no levantamento por ns levado a cabo do espao construdo e imagem pintada, importa reconhecer a estrutura espacial com que a obra interage, identificando propriedades do espao e superfcie projectiva, a par da definio do esboo perspctico. Dissecando-se a estrutura perspctica da quadratura de Sena -nos permitido avaliar caractersticas relativas aos modus empregues na projeco da imagem como de ajustes operados face a circunstancialismos perceptivos. Somente sob esta sequncia se chega apreciao do espao imaginrio, nomeadamente no que diz respeito s apetncias da imagem na transformao do suporte e conformao de um espao sensitivo, visando expor o sistema espao/imagem da quadratura.

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    Seguindo estas sequncias na abordagem do objecto (a dimenso terica de Vieira ou prtica de Sena) dever-se- ter presente que na anlise e avaliao interferiro circunstncias do nosso olhar. Ainda que tendamos a uma abordagem do objecto e respectivos casos na sua circunstncia histrica, esta no corresponde mera transposio de um repositrio fixo, mas a um processo de interpretao transformado pela contextura presente. 7 Contudo, sendo nosso objectivo operar reinterpretaes e apropriao do saber intrnseco ao objecto em investigao a partir das concepes prprias do seu contexto histrico, a investigao abre com uma caracterizao sumria da contextura envolvente, definida a partir de trs reas temticas, qual acresce a definio de retrica visual, enquadrando propsitos fundamentais do objecto em consonncia com o quadro cultural da sua produo. Das reas temticas a primeira relativa a Religio, Poltica e Arte: imagem triunfalista do poder nos sculos XVII e XVIII (abordando-se o panorama das transformaes polticas e religiosas que instrumentalizam a quadratura), outra relativa a Escolstica & Revoluo Cientfica: verdade versus realidade (evidenciando as linhas gerais do conhecimento e questionamento cientfico coevo) e, por fim, A problemtica do Barroco: a arte enquanto sistema imagtico (explorando-se as premissas da produo artstica, nomeadamente as referentes configurao do espao e da imagem no sistema barroco).

    No captulo da Iluso Espacial considera-se o binmio material/iluso inerente ao espao percebido a partir do pensamento setecentista sendo os valores da resultantes tambm considerados luz das cincias cognitivas contemporneas, nomeadamente as relativas fenomenologia da imagem e do espao. Neste ltimo aspecto, ainda que os dados sejam extemporneos ao arco temporal em estudo, expem-se factores de ponderao sobre a impresso visual presumivelmente intudos pelos autores no condicionamento de procedimentos e resoluo da imagem.

    Os dois captulos seguintes expem o Corpo Terico-Prtico reflectindo o debate que envolve a criao da imagem do espao e do espao da imagem. Partindo de registos escritos e grficos coevos organiza-se a Perspectiva e Quadratura, abordando teoria da perspectiva e prtica da quadratura, e a ptica e Arquitectura, que considera a teoria da arquitectura no que esta assimila da ptica e sua transposio construo. Dentro de cada um dos temas, teoria e prtica so, por questes metodolgicas, apresentadas separadamente sendo que a opo do seu encadeamento no corresponde a uma aco consequncia entre teoria e prtica. Alis, conforme menciona Raggi (2004, 51), opo na qual nos revemos, a construo terica da perspectiva consequente prtica, definindo-se os processos abstractos a partir da multiplicidade de experincias artsticas.

    7 Worringer (1912) impe a ideia de no podermos conceber e apreciar os acontecimentos passados do seu ponto de vista j que a construo sempre realizada a partir de ns. Da que a abordagem da histria seja um processo dependente da interpretao transformado pela contextura presente. Nesta linha Radford (1997) refere que mesmo o maior esforo em renunciar aos conhecimentos actuais para ver o passado no teria sucesso pois qualquer ensaio est sempre condenado a transportar concepes contemporneas. Ora, seguindo a lgica de Barbin citada por Bagni (1998, 153), cada leitura supe uma reinterpretao e cada ensaio pressupe uma reapropriao de ideias e conhecimento.

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    Caminhando para o mbito mais concreto do espao/tempo do objecto em anlise, o captulo referente Cincia no Barroco Portugus debrua-se sobre os centros de estudo e divulgao cientfica nacional, a par da formao de um corpo especializado de arquitectos. Expe-se a produo terica nacional, destacando-se o papel assumido pela Aula da Sphera no seio da qual emerge a figura de Incio Vieira. Com direito a captulo autnomo a obra de Vieira, sintetiza os contedos tericos em circulao em Portugal nos incios de setecentos. Em Incio Vieira: Teoria Da Quadratura abordam-se os manuscritos do autor que se reportam directamente ao mbito do nosso estudo: Tractado da ptica (1714 - BN Cdice 5169), Tractado de Prospectiva (1716 - BN Cdice 5170), Tratado de Catoptrica (1716 - BN Cod 5165/1), e Tractado de Diptrica (c. 1717 - BN Cdice 5165/2). Nestes consolida-se a interpretao geomtrico-matemtica e consequente converso grfica das cincias da viso. O simulacro ptico e resoluo grfica da perspectiva gerem-se em funo de potencialidades inventivas e propositivas determinadas a interferir na percepo do natural, teatralizando a experincia visual do espao e estendendo ao limite capacidades de iluso.

    Em A Experincia Barroca Portuguesa: Construo e Imagem do Espao passa-se ao campo do ensaio plstico e imagtico, logo o campo operativo do espao que se fixa como cerne do discurso. Aponta-se paralelamente experincia construtiva a interferncia de gneros pictricos assumidos como instrumento de transformao de superfcies e capacitados como agentes de caracterizao e definio arquitectnica, metamorfoseando a espacialidade barroca. H aqui um paralelo entre construo e imagem aferindo contaminaes entre territrios operativos e evocao de casos cuja simultaneidade entre tectnica e imagtica se sintetizam fundando um espao perceptivo.

    a partir da abordagem da experincia barroca nacional que chegamos ao caso de estudo prtico, uma obra de quadratura com evidentes apetncias de transformao do suporte construdo e induo de espao. Em Lus Gonalves Sena, Prtica da Quadratura a ateno direcciona-se quadratura do autor escalabitano avaliando-se a produo imagtica da contextura prxima (nomeadamente o papel de Simes Ribeiro na introduo e maturao do gnero em Santarm), o seu autor (reconhecendo o seu percurso e aptides cientficas e artsticas), e espao de suporte (a igreja do colgio jesuta e o domnio do bel composto na teatralizao do espao), avanando-se na apreciao da imagem e espao sugerido pela quadratura de acordo com os modelos imagticos detectados, estrutura perspctica (avaliando possveis procedimentos de implementao prtica) e consequente desconstruo do espao (nas suas valncias compositivas) visando o confronto entre espao sugerido e base tectnica na lgica da retrica do bel composto artstico. precisamente na anlise deste caso que se impe o desenho cognitivo fundamentado no reconhecimento e avaliao do objecto especulando acerca dos procedimentos que o estruturam e ideia de espao a expressa.

    Assomando ento as concluses acerca da quadratura e especificidades relativas aos casos de estudos, organizando-se ainda as fontes bibliogrficas e corpo documental em anexo.

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    Critrios do corpo documental em anexo, levantamentos e nomenclaturas usadas

    Neste ponto interessa-nos esclarecer a estrutura do corpo documental anexo, a par de

    critrios na anlise e transcrio de fontes primrias manuscritas, referenciao de imagens, processos de levantamento arquitectnico e nomenclaturas adoptadas.

    Dado o campo especializado em que se move a investigao a anlise do estado do conhecimento relativo cincia perspctica e cultura arquitectnica, essencialmente filolgica, tentamos sempre que possvel aceder s edies originais e atender s especificidades da terminologia aplicada. Neste recurso s fontes primrias (no essencial tratados de perspectiva e arquitectura) estas dividem-se entre fontes publicadas e manuscritas sendo que das ltimas foi necessria a transcrio da estrutura e contedos referentes ao mbito da investigao. Possibilitando-se a explorao da tratadstica na sua lngua original, permite-se aceder terminologia coeva, ao mesmo tempo que se aferem filiaes e intenes dos seus autores enquadrando-os na discusso global em torno da representao e imagem da arquitectura. Como tal, as citaes provenientes destas fontes so sempre em lngua original traduzindo-se apenas as citaes correspondentes a ensaios ou investigaes de autores contemporneos.

    Nesta procura de coincidncia e respeito para com as fontes, as transcries contidas no Apndice documental (nomeadamente dos documentos de maior vulto para a investigao como os tratados de Incio Vieira e a traduo annima da obra de Pozzo) procuram aproximar-se o mais possvel do original. Ainda que permanecendo fiis grafia dos manuscritos originais introduziram-se pequenas alteraes visando uma maior fluidez da leitura dos documentos: abriram-se abreviaturas (devidamente identificadas entre parntesis rectos), e estabeleceu-se distino entre v e u. Nas mesmas transcries so ainda anotadas atravs de (?) dvidas acerca do termo transcrito, ou de [?] termos e expresses indecifrveis. Contudo, mantiveram-se inalteradas a pontuao original anotando-se ainda a numerao relativa a pargrafos ou flios do documento original.

    Em relao s imagens empregues para aclarar o discurso da investigao estas so identificadas em relao ao seu autor, obra e ano. No que se refere aos elementos grficos dos tratados (obtidas por via dos documentos originais consultados maioritariamente em suporte digital) estas correspondem s edies identificadas na bibliografia. Tambm os esquemas provenientes de ensaios e investigaes de outros autores includos na investigao so identificados segundo a norma aplicada s citaes escritas, enquanto todas as fotos e esquemas originais, da nossa autoria, se encontram devidamente identificados pela sigla (JC). Todas as demais fotos, de espaos ou obras so provenientes das obras consultadas e Web.

    A anlise do caso de estudo exige um levantamento das suas propriedades geomtricas, resultando o seu processo da reunio de dois elementos chave sintetizados no Apndice iconogrfico: um relativo ao reconhecimento das caractersticas formais e mtricas do espao fsico; outro relativo ao reconhecimento dos parmetros delineados na quadratura aferindo-

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    se os seus vnculos ao suporte e espao em que esta se integra. Da pesquisa de arquivo resulta que alm das plantas seiscentistas do templo escalabitano, existe apenas uma planta escala 1/100, propriedade da DGEMN (integrando o processo do edifcio, PT031416210009), no havendo peas relativas a seco longitudinal ou transversal do templo que permitam caracterizar os seus alados internos ou configurao de tectos. Realizada por ocasio da reviso de pavimentos e eliminao de elementos mveis (o coro e balaustrada que envolve a zona de assembleia) entre 1954-56, a informao ajusta-se aos objectivos da interveno no edifcio. No seu processo de digitalizao procedeu-se verificao de medidas, introduzindo acertos e acrscimos de informao, delineando-se a partir da mesma o perfil longitudinal do edifcio. Perante isto, foi necessrio executar um levantamento exaustivo do espao em que a obra se integra, a capela-mor da igreja do Colgio de Nossa Senhora da Conceio em Santarm, delineando plantas e seces verticais com alados internos onde se regista todos os elementos fixos relativos configurao espacial, programtica e ornamental, deixando de lado estruturas mveis de apoio litrgico.

    O levantamento do espao e da quadratura executado a partir de sistemas de rede de triangulao, triangulao bipolar, registo de coordenadas ortogonais a partir de um eixo fixo (nomeadamente no perfil de elementos ornamentais) a par de verificao fotogramtrica e restituio perspctica (servindo confirmao de dados obtidos por triangulao, ou a obteno da medida em elementos de acesso impossvel). A sua aco consertada pretende confirmar dados, fixando-os no desenho tendo em vista as necessrias projeces ortogonais.

    Relativamente a desenhos de interpretao e anlise aplicam-se nomenclaturas adoptadas s especificidades da quadratura de sotto in s. Por exemplo, na identificao dos traos dos planos aplica-se ta. A adopo da nomenclatura decorre da dissociao das relaes espaciais cannicas da perspectiva comum onde, sendo o raio visual principal paralelo ao geometral e perpendicular ao quadro frontal ao observador, os planos identificam-se por trao horizontal (ha), interseco com o geometral, e vertical (va), interseco com o quadro. Perdendo-se a referncia do geometral detemos apenas trao dos planos no prottipo (plano da seco do cone visual onde se resolve a imagem perspctica), que no caso de estudo horizontal e logo perpendicular a raio visual principal agora definido verticalmente. Simultaneamente consideram-se todos os planos identificados pelos seus traos como perpendiculares ao prottipo, consequente especificidade e condies estruturais do espao representado. Do mesmo modo aquando da identificao de rectas e pontos distinguiremos a sua perspectiva (r e A, respectivamente) da sua projeco no plano do prottipo (r e A) ou ainda da sua projeco em plano lateral (r e A) e transversal (r e A) como no caso das projeces necessrias definio dos alados. Todas as demais situaes so esclarecidas aquando da sua aplicao.

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    01. CONTEXTO E CONCEITOS PARA A ILUSO.

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    Contextualizao

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    Religio, Poltica e Arte: imagem triunfalista do poder nos sculos XVII e XVIII.

    & sono tanto semplici gli huomini, & tanto ubbidiscono le necessita presenti che colui che inganna, troverra sempre chi se lascera ingannare.

    Niccol Machiavelli, Il Principe. O optimismo e estabilidade intelectual renascentista que colocaram o homem perante o

    problema do livre arbtrio cedem lugar dvida da liberdade humana erguida por Erasmo, Lutero e Calvino. Rapidamente o mundo unificado e definido desintegra-se perante a diviso da igreja, a contestao ao poder papal, a contra-reforma, o aparecimento dos estados absolutos e do mercantilismo a par de uma progressiva pluralidade filosfica e cientfica que questiona estruturas estabelecidas. Apesar desta desfragmentao poder-se- considerar a idade barroca como poca unitria, Com isto no invocamos nem um esprito mstico da poca, nem nos referimos a uma simples unidade estilstica. Temos antes em mente aquela atitude humana fundamental, que prevalece no obstante as diferentes escolhas, lesprit de systme para usar o termo de dAlembert.1 Um sistema onde hierarquias csmicas, polticas e teolgicas constroem uma tessitura complexa.

    Sob os ataques doutrina, a partir dos movimentos reformadores, a Igreja catlica reafirma o seu poder atravs do catecismo dos laicos, da educao dos agentes da igreja e controlo das ideias e produo humana. Esse controlo afecta todos os campos da produo humana pretendendo eliminar o paganismo renascentista a par das ofensivas aos dogmas catlicos. Assim, a um perodo caracterizado pela valorizao da arte e dos seus agentes, do ferico e do profano, sucede-lhe um outro austero, anti-humanista, de forte furor religioso e inclusivamente antiartstico. Contudo, esta ideia de antiartstico no leva revogao da produo plstica mas sua instrumentalizao no apoio ortodoxia catlica.

    Do debate do Conclio de Trento (1545-1563) definem-se as funes da arte resumidas em trs grandes advertncias: claridade, simplicidade e compreensibilidade da obra (combatendo a retrica iconoclstica dos reformadores); Interpretao realista (abandonando-se o idealismo em favor de uma iconografia regulada pela doutrina catlica); Estmulo sensvel piedade (expresso e explorao de valores emotivos).

    Se a reforma luterana rejeitava as artes figurativas, a ofensiva contra-reformista reafirma o culto da imagem fortalecendo a mensagem doutrinria sob demonstraes visuais e assumindo a arte como forma tangvel do dogma imprescindvel misso apotetica do poder.2 Porm, () o modo para exalt-la numa linguagem artstica de fora expressiva s poderia ser resolvido pelos artistas.3

    Nesta linha as Instructiones fabricae et supellectillis (1577) que Carlo Borromeo dirigira sua diocese acabam por se difundir pelo espao catlico expondo, falta de norma mais

    1 NOBERG-SCHULZ 1971, 6. 2 ARGAN 1989 (1964), 17. 3 WITTKOWER 1979, 22.

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    explcita, recomendaes para a construo de edifcios religiosos. Indicaes como a localizao sobranceira, elevao do templo sobre plinto de 3 a 5 degraus, isolamento face envolvente, dimensionamento para as massas (especificando-se uma rea por pessoa), visam a valorizao da representatividade da Igreja na urbe. Por outro lado, admitindo a multiplicidade de esquemas organizacionais, Borromeo d prioridade ao plano em cruz latina e enfatiza a fachada cuja decorao e iconografia devem reflectir o orago do templo.

    Se o primeiro perodo da contra-reforma assenta na rigidez dos modelos, na linha dos fundamentos espirituais de exame de conscincia, meditao, contemplao e orao expressas nos Esercizi Spirituali (1538) de Loyola, sucede-lhe um perodo, consequente s canonizaes (1622) dos santos regeneradores da igreja (Santo Incio, Santa Teresa, So Filipe Nery e So Francisco Xavier) e o pontificado de Urbano VII (1623/44), em que a igreja retoma a liberdade e grandeza artstica proporcionada pela maturidade barroca de Maderno, Bernini e Borromini. Sob o lema In majorem Dei et Ecclesiae gloriam, o mundo tetraliza-se numa esfera de fausto em que a arte enquadra triunfalmente a doutrina.4

    Neste contexto a Companhia de Jesus assume, de entre as congregaes fundadas no processo contra-reformista (Jesutas, Teatinos e Oratorianos), um papel de destaque no combate aos sintomas de mal-estar espiritual e correco dos erros de interpretao doutrinria. Na sua dinmica extravasa a batalha Bona fide do plpito e confessionrio para a sala de aula, o laboratrio e o observatrio, alm do salo e da academia. A Casa Professa transformaria a cultura devocional, intelectual e artstica da Europa e () imiscuir-se-ia nas sucessivas controvrsias da reforma, da construo dos imprios, do iluminismo e da revoluo.5 No seu percurso, o sentimento antiesttico da contra-reforma militante (condicente aos votos de pobreza, castidade e obedincia) cede lugar apreciao da qualidade artstica, concomitante s orientaes da corte papal e das monarquias absolutas.6 O processo de propaganda reforado pela arte expressando temas evanglicos e acontecimentos milagrosos sublimando a fora de uma Igreja triunfalista e apologtica em que o poder de persuaso combina dois mundos expondo aos fiis uma indissolvel continuidade entre cu e terra: o tangvel e mundano funde-se com o fantstico e transcendente. A imagem assimila a retrica do discurso assumindo-se como fenmeno de transubstanciao (hoc est corpus meum) dos factos da doutrina. Contudo, no se pode falar de uma arte prpria das ordens reformistas, Em realidade, as instituies religiosas aceitaram tudo o que os artistas eram capazes de oferecer.7

    Apesar do domnio romano sobre as artes, que irradia a partir do crculo da corte papal e sedes das ordens ps-tridentinas, a supremacia artstica de Roma posta em causa por Paris. Sob a autoridade de Lus XIV a arte instrumentaliza-se em Frana, em muito atravs da formao Acadmica fomentada e controlada pela coroa, no sentido de ampliar o 4 TAVARES 2004, 11. 5 WRIGHT 2005, 15. 6 Operao que ocorre durante o sculo XVII sob os generais Muzio Vitelleschi (1615/45), Vincenzo Caraffa (1645/49) e Giovan Paolo Oliva (1664/81). 7 WITTKOWER 1979, 138.

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    prestgio do monarca e de desenvolver o mito da dignidade rgia ao mesmo tempo que intensifica o esplendor da corte enquadrando o domnio do Rei. Se a sumpturia desenvolvida pela Igreja assumida pelas cortes absolutistas (Paris e Versalhes de Lus XIV, Viena dos Ausburgo, Turim dos Sabia, Npoles dos Bourbon e a Florena dos Mdicis), dever-se- ter em conta que a arte que sustenta o triunfo do poder temporal configura-se de modo necessariamente distinto da arte religiosa. Evidenciando a extenso do poder Real sobre os sistemas da nao (o cosmos do estado que integra sectores to vastos como a cincia, a literatura, as belas-artes ou at a religio), a arte serve a construo da imagem do estado absoluto. Teatralizando e ritualizando o quotidiano, cada indivduo desempenha no sistema barroco um papel preciso, sendo que a participao pressupe contudo a imaginao, uma faculdade que se educa por meio da arte,8 tendo sempre em conta que o monarca se assume como primeiro destinatrio da obra do estado.

    As imagens construdas em funo do poder legitimam o brilho dos seus protagonistas servindo de espelho s suas ambies, correspondendo formao do Eu, a figura do Rei que se confunde com o Estado.9 O espelho expe uma desejada simetria entre o mundo dos factos e o mundo idealizado em que a imagem do poder temporal constri-se num balano entre a legitimao do poder perante Deus, o Rei surge como prolongamento do culto do Divino, da sua glorificao poltica e militar, colocando-o ao lado dos heris clssicos, e ainda a exaltao das suas virtudes a par do domnio sobre a produo e as artes, personificadas pelos deuses pagos. Nesta complexa teia o Poder, o olho que visto, triunfa pela imagem a partir do olhar que v e presencia o seu triunfo.

    O que daqui interessa reter que a finalidade da produo artstica que gravita em torno do poder eclesistico e temporal coincidente, ainda que sob variaes nos temas e concepo ou aco artstica. Funda-se uma Iconocracia,10 onde a quadratura participa na construo de uma imagem triunfalista do espao habitado exibindo ao observador a materializao do transcendente ou o engrandecimento dos seus governantes.

    Em Portugal o sistema barroco assume-se em moldes idnticos, coexistindo no seu interior o esprito tridentino (concretizado sob a aco jesutica), e a elaborao de uma imagem triunfante da coroa ao servio do processo de Restaurao da independncia, afirmao e legitimao da casa de Bragana e do poder absoluto. Apesar das convulses do reino aps a Restaurao, o perodo consequente assinatura da paz de 1668 permite uma gradual estabilidade interna que, associada descoberta de ouro no Brasil, recompe o reino sob uma prosperidade ilusria. O perodo marcado pela importncia nacionalista e simblica do reinado de D. Joo IV, os reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II em que se procura manter a independncia, proteger o imprio ultramarino, restabelecer o prestgio internacional e reorganizar as estruturas governativas do reino sob traos absolutistas da figura do Rei, amplamente concretizados pelo projecto magnificente de D. Joo V.

    8 NOBERG-SCHULZ 1971, 8. 9 Uma abordagem da arte como espelho explorada por Lacan (1949), Massey (2007) e Raggi (2011). 10 CASALE (2002, 214).

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    Quando o magnnimo sobe ao trono (1706-1750), este contraria a partilha de poderes com a nobreza e, apesar dos esforos diplomticos romanos no processo de legitimao do pas e da coroa, coloca a Igreja sob sua autoridade atravs do beneplcito rgio (implicando a confirmao pelo Rei de bulas, breves e decretos do Papa) conduzindo ao corte de relaes com a Santa S (1728-37). Paralelamente, a dinamizao cultural e proteco das artes e das cincias so tomados como imperativo poltico ao servio da legitimao e confirmao da imagem magnnima do Rei, contrapondo-se ao isolamento cientfico e artstico que caracteriza o domnio Filipino. A emergncia de uma elite poltica e econmica encaminha abertura e aceitao de novos modelos, em muito fundada na encomenda directa ao estrangeiro integrada na aco diplomtica do Rei. Em simultneo promove-se a formao artstica, sob proteco da coroa, enviando bolseiros para Roma e constituindo-se a Accademia della Sacra Corona di Portogallo (1720-1760), ao mesmo tempo que o mecenato rgio s universidades (Coimbra e o sonho das Reais aulas de Mafra) financia impressionantes ncleos bibliogrficos, observatrios e laboratrios.

    A este perodo de encomenda e empreendedorismo no suporte imagem ulica, sucedem-se os reinados de D. Jos e D. Maria I em que crise do estado se associa uma tendncia anti Escolstica (quebra de prestgio da Companhia que culmina na expulso de 1759) e anti Barroca (consequente ao novo esprito e cultura espacial decorrente do ps-terramoto) transformando o absolutismo de D. Joo V no despotismo das luzes concretizado pelos ministros do reino (Marqus de Pombal e o Intendente Pina Manique).

    Escolstica & Revoluo Cientfica: verdade versus realidade

    La filosofia scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico l'universo), ma non si pu intendere se prima non s'impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne' quali scritto. Egli scritto in lingua matematica, e i caratteri son triangoli, cerchi, ed altre figure geometriche, senza i quali mezi impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi un aggirarsi vanamente per un oscuro laberinto.

    Galileu Galilei. Il Saggiatore.

    Durante a idade barroca o conhecimento cientfico organiza-se segundo dois modelos antagnicos: a escolstica fundada na sntese de S. Toms de Aquino entre a filosofia aristotlica e a teologia crist; a revoluo cientfica preconizada pela filosofia racionalista de Descartes e pelas concepes empiristas de Bacon fortemente fundadas na problematizao do natural da cincia de Galileu. Neste confronto entre a expanso do intelecto e a compresso da tradio, as querelas cientficas modernas no devero ser entendidas sob o pressuposto exclusivo da coliso com os dogmas da Igreja, mas pelo confronto entre o status quo cientfico e as inovaes que refutam determinaes prvias. Neste mbito, ainda que a Igreja tenha interesses na perpetuao da filosofia aristotlica o

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    () aparente conflito entre cincia e religio acaba por se revelar um conflito entre nova cincia e a cincia consagrada da gerao anterior.11

    Perdurando at finais do sculo XVIII, sob o projecto apologtico da contra-reforma, a escolstica subordina o conhecimento cincia antiga legitimada por concepes teolgicas e interpretaes da Bblia. Assentando na demonstrao de uma verdade lgica e retrica explica os fenmenos de forma encerrada segundo mecanismos conceptuais e metodolgicos que citam continuamente as sagradas escrituras e os autores clssicos sem os problematizar ou confirmar experimentalmente.

    A dicotomia entre verdade e realidade, na base da disputa entre antigos (a escolstica fundada nas fontes literrias) e modernos (a cincia experimental) conduzir ao abandono de um discurso cientfico puramente retrico aproximando a sua linguagem da matemtica e eliminando a maleabilidade do discurso filosfico. De facto, sobre a matemtica recair uma confiana dogmtica na compreenso e expresso da ordem natural estabelecendo () um modo de representao que poderia reclamar simultaneamente uma total independncia e, ao mesmo tempo, ser aplicado universalmente.12 Ultrapassa-se a discusso sobre a legitimidade cientfica da matemtica, renegada pelo modelo cientfico aristotlico,13 e que por consequncia arrastara a ptica e perspectiva enquanto possibilidade de racionalizar a realidade sensvel. A consagrao do carcter ecumnico da matemtica conduziria a uma ordem csmica fundada no poder da geometria como cognio do natural retomando o entendimento do mundo material segundo a chora platnica, a prima matria (a matemtica e a geometria como essncia e matriz csmica).

    Partindo da realidade sensvel, fora da qual a ideia no existe, a escolstica constri-se sobre uma tendncia unidade edificada sob Cristo (verbo) e Deus (verdade). A revoluo cientfica rompe com este determinismo conferindo ao Homem capacidade de intervir no seu destino, seja ele relativo ao conhecimento ou transformao do mundo. Neste contexto, a contestao Igreja no se verifica na dimenso da f, mas da sua autoridade sobre o conhecimento, bloqueadora dos interesses cientficos. Aquilo a que se assiste uma subverso da ordem tradicional que, colidindo com os dogmas da f, se pode individualizar em trs momentos:14 a revoluo cosmolgica (que altera a imagem dos cosmos, seu significado e papel desempenhado pelo homem); a revoluo mecanicista (que reforma o conceito de natureza e da relao do homem com a mesma); e a revoluo epistmica (altera o conceito de cientificidade abrindo caminho a novas teorias). Deste modo Francis Bacon (1561-1626) defende que a tentativa de compreenso dos fenmenos pela cincia no se deve distrair pelas consideraes metafisicas dos fenmenos pelo que a unicidade csmica da escolstica contrariada por Ren Descartes (1596-1650) que organiza a realidade entre res extensa (corpo) e res cogitans (pensamento).

    11 BROOKE 2003, 35. 12 VESELY 2004, 176-177. 13 A quaestio de certitudine mathematicarum analisada por MOTA 2008, 4. 14 Organizao proposta por MONTEIRO 2004, 44.

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    O maior desafio da cincia setecentista deriva do Discours de la mthode (1637) que contrapondo a ideia s formas (situando as primeiras acima das aparncias) afere a incoerncia entre imagem e objecto, postulando a ciso entre o domnio da percepo e o do intelecto negando o axioma aristotlico-cristo nada existe no intelecto que no tenha estado antes nos sentidos (nihil est in intellectu quod non prius in sensu). Afirmando que os dados sensitivos no so mais verdadeiros que os sonhos, Descartes debate-se com a falsidade do sensvel que a ser julgado sob argumentos objectivos da razo cientfica deita por terra interpretaes msticas dos fenmenos. Constri assim um pensamento que () no se quer mais assombrar no visvel e decide reconstru-lo segundo um modelo que estabelece para si.15 Da, aplica o seu mtodo geomtrico cincia universal, fundando o entendimento do mundo na ordem e medida matemtica rejeitando tudo o que proviesse dos sentidos e da tradio.

    No confronto entre percebido e natural tudo colocado em dvida (tanto os sentidos como as demonstraes da matemtica), fazendo tabula rasa de preconcepes estabelecidas. O Homem sado da revoluo cientfica passa a entender-se como o incio de todas as coisas, o imperium hominis de Bacon, sendo o sujeito um agente determinante na configurao e entendimento do mundo livre de dogmas, projectando modelos que problematizam o natural permitindo a conquista do conhecimento. Com Eu duvido, logo penso, logo existo Descartes exprime a inquietao da razo humana perante o cosmos e a apreenso da ordem natural, acentuada por Blaise Pascal (1623-1662) que posiciona o Homem no meio de um infinitamente grande e infinitamente pequeno. Simultaneamente, a revoluo cientfica anula a necessidade das causas finais aristotlicas (que servia de referncia ao raciocnio escolstico e sem as quais nenhuma explicao estaria completa), consideradas como estril problema sem resultados prticos por Francis Bacon, e das quais Descartes se afasta para se concentrar nas causas mecnicas dos fenmenos naturais.

    Contudo, a cincia um lugar de conflitos e transformaes ideolgicas onde a par do natural, () os problemas teolgicos so tratados como metafsicos e eventualmente como fsicos ou naturais, culminando na transformao da teologia natural.16 Por exemplo, a distino cartesiana entre res cogitans e res extensa reunificada pelo filsofo francs Nicolas Malebranche (1638-1715) que postula a reconciliao entre a mente humana e o mundo exterior atravs de Deus: toda a ideia se encontra em Deus, e somente Nele poder a mente humana compreender o Seu trabalho. O homem no perceberia as coisas mas antes a sua ideia que se encontravam necessariamente em Deus. A mesma linha desenvolvida em Placita Philosophica (1665) de Guarino Guarini (1624-1683) em que se procura sintetizar os fenmenos percebidos com a geometria tida como cincia prottipo do universo, comprimindo todas as dimenses do pensamento e aco humana, capaz de chegar verdade atravs de argumentao intelectual baseada em relaes e

    15 PONTY (2007-1960) 33. 16 VESELY 2004, 193-194.

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    combinaes precisas.17 Se o conhecimento se atingia pela apreenso das ideias de Deus, em ambos os casos a f confirma-se no conhecimento matemtico do cosmos, pelo que a manipulao da matemtica parece regressar explicao da presena de Deus.

    O mesmo paradoxo desponta nos protagonistas da revoluo cientfica, que longe do discurso laico da cincia contempornea relacionam a mecnica do natural com os conceitos de actividade divina. Marin Mersenne (1588-1648) promove uma verso mecanicista como forma de defesa do prodigioso; Descartes mecaniza toda a criao animal como modo de enfatizar a peculiaridade espiritual da humanidade; Robert Boyle (1627-1691) compara o mundo fsico a um relgio operado por Deus; Issac Newton (1643-1727) descobre nas suas leis a prova de uma constante presena de Deus no mundo.18 Deste ponto de vista Kepler (1571-1630) no tinha a preocupao de expor a luz matematicamente mas de demonstrar a sua natureza enquanto o veculo da mathesis universalis, a ligao entre os mundos corpreos e espirituais. Do mesmo modo Newton expe a criao em correspondncia com a sua Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687), segundo um empirismo que no nega a vontade divina e sua presena no natural, a filosofia natural de Newton abre contudo lugar rejeio da tradicional ligao entre razo humana e divina, rejeitando todas as hipteses e autoridade dos textos antigos e visando a verdade como objectivo da experincia.

    A problemtica do Barroco: a arte enquanto sistema imagtico.

    Je me suis tellement accoutum ces jours passs dtacher mon esprit des sens, et j'ai si exactement remarqu qu'il y a fort peu de choses que l'on connoisse avec certitude touchant les choses corporelles, qu'il y en a beaucoup plus qui nous sont connues touchant l'esprit humain, et beaucoup plus encore de Dieu mme, qu'il me sera maintenant ais de dtourner ma pense de la considration des choses sensibles ou imaginables, pour la porter celles qui, tant dgages de toute matire, sont purement intelligibles.

    Ren Descartes. Discours de la mthode.

    O problema do Barroco, quer falemos do sistema poltico, filosfico, cientfico ou artstico, advm da procura comum de ordem e certeza num ambiente dominado pela fragmentao, relativismo de valores e cepticismo. No campo da conceptualizao e realizao artstica essa procura corresponde reflexo sobre a experincia clssica que se revela em posies extremadas entre a rigorosa manuteno de procedimentos antigos e a capacidade crtica e criativa operando profundas transformaes no referente. Por outro lado, dever-se- observar a diversidade de entendimentos do Barroco de acordo com as condicionantes da sua encomenda e produo, sendo que o dos crculos catlicos e cortes 17 PREZ-GMEZ 1983, 89. 18 BROOKE 2003, 114.

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    absolutistas apresenta j diferenas que se revelam mais acentuadas quando se redirecciona a ateno burguesia protestante do norte da Europa.

    O termo Barroco foi aplicado pela crtica artstica setecentista, nomeadamente por Milizia no seu Dizionario delle belle arti del disegno (1797), na defesa das regras clssicas por oposio s imaginativas transmutaes formais operadas por Borromini (erradas distores de uma prtica perfeita). Um modus operandi em que a relatividade e liberdade no uso do referente clssico rompe com o carcter fechado, em que os elementos seriam interdependentes e consequentes a uma lgica clara, para exprimir uma impresso de incompletude e desconexo formal que parece continuar para alm dela prpria.19

    Porm, nem toda a prtica artstica do sculo XVII corresponde s exuberantes qualidades frequentemente associadas ao termo barroco, que se tornou na anttese, o estilo anticlssico. Simultaneamente, muitos autores () participam e continuam o revivalismo da antiga cultura greco-romana associada ao termo renascena.20 Como tal, a arte deste perodo no detm um temperamento estilstico uniforme, sendo ao mesmo tempo naturalista e fantstica, clssica e anticlssica, sinttica e excessiva, racional e emotiva.

    Passando o termo Barroco a designar a arte italiana tida como irregular e ausente de normas, subsequente ao Renascimento (que permanecia como modelo insupervel de perfeio intelectual e artstica), a historiografia do sculo XIX associa-o decadncia poltica e ideolgica sem que tal corresponda necessariamente avaliao das suas qualidades intrnsecas. O espirito anti barroco, negando todo um sistema do qual a arte parte indissocivel, consequente emergncia do iluminismo que () no soube compreender do barroco o valor de pesquisa e de afirmao da liberdade do homem, no soube distinguir no seu interior aquilo que era um passivo reflexo da inrcia moral e da vontade de evaso das classes dominantes, daquela que era aberta rebelio da parte dos artistas aos valores constitudos, s interpretaes unvocas da experincia e da histria.21

    Das hipteses de interpretao artstica que cabem dentro do conceito de barroco estas parecem organizar-se num equilbrio dialctico entre as contradies humanas, confrontando razo e emoo, que os mecanismos de poder religioso e temporal instrumentalizam para mergulhar o Homem numa desejada imagem do mundo.

    Neste mbito a paixo Barroca, gerida espiritualmente em redor de Deus e temporalmente volta do Prncipe, exprime uma reaco ao outro em que o Homem constri uma imagem de si, o espelho, a ser vista pelo outro e integrada na teatralizao do mundo. Na construo imagtica que sustenta o sistema Barroco funda-se o conceito de bel composto, unificando as artes numa concepo totalizante da obra que integra o espectador dentro de si a ponto de o confundir na continuidade e veracidade dos factos exibidos

    19 Hauser (1997, 32) aplica arquitectura o termo a-tectnica, revelando essa liberdade e carcter aberto da construo por oposio perfeio absoluta e encerrada da obra renascentista. 20 HARRIS 2005, XXIII. 21 PORTOGHESI 1966, 1

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    (realidade e iluso, mundano e transcendente). Como tal, a caracterizao do espao barroco decorre da formulao de uma imagem plena de retrica.

    Enquanto os espaos renascentistas resultavam de um contnuo uniforme, o espao barroco integra foras qualitativas diferenciadas como movimento/esttico, abertura/fecho, ambiguidade/definio. Assim, o Barroco funda-se sobre a ideia de movimento que dissolve modelos e tipologias para, no que se refere articulao espacial, transformar a evidncia de uma matriz-geometria absoluta e esttica em funo de dinmicas que, no avano e recuo dos elementos da construo, valorizam o percurso e visualizao espacial pelo espectador. Como refora Martin Jay (1988) o Barroco ope-se lucidez, linearidade, estabilidade, planimetria e forma encerrada da Renascena, sendo pelo seu carcter pictrico (na exacerbada valorizao da imagem) ambguo, mltiplo e aberto.

    Por oposio racionalizao renascentista, o barroco procura o controlo ptico do espao incluindo imagem e percepo do construdo como factos estruturais da concepo arquitectnica. Esta explorao de um espao perceptivo, questionando a verdade tectnica, incorporada nas inquietaes projectuais de Borromini, Bernini, e Cortona, ou, no exterior do crculo romano, de Guarini, Vittone e Vanvitelli, verificando-se ainda na esttica da grande cidade, que reconfigura as capitais europeias ordenando o sistema urbano a partir das relaes visuais e valores simblicos que afectam a sua imagem.

    O ilusionismo espacial advm como um dos factores distintivos do barroco, onde a perspectiva proporciona instrumentos de engano do olhar fazendo ver, de modo verosmil, o que no existe. Se ao Renascimento implcita a ideia de imagem perspctica como manifestao material de conceitos intelectuais, no Barroco a imagem extravasa os seus limites reverberando sobre o espao habitado. A imagem repercute-se no indivduo e consequentemente na realidade capturada, tendendo a quadratura a confundir-se com o mundo. Um cosmos assente na apreenso visual e estruturado a partir de interpretaes passionais e intelectuais que atrasam a separao corpo/razo do pensamento cartesiano.

    No contexto da contra-reforma e revoluo cientfica a interpretao da luz, conhecida como perspectiva naturalis ou ptica, vista como chave da cosmologia, pelo que a perspectiva se converte em forma privilegiada de simbolizao.22 Da, importncia da perspectiva como ideia arquitectnica vitruviana, acresce a sua instrumentalizao possibilitando prticas de visualizao que revelam ao observador verdades divinas ou a imagem magnnima dos governantes. Deste modo a perspectiva () acabaria por tornar possvel o controle e explorao da realidade fsica pelas artes do sculo XVII, () ainda preocupadas com a revelao de um cosmos ordenado e transcendente () a perspectiva geomtrica permitiu construir e habitar em lugares propcios, alterando a realidade da natureza.23 Caramuel v na matemtica uma linguagem universal, cujo potencial incorporado pela arquitectura. Porm, uma vez que ao contrrio de Descartes no a separa

    22 VESELY 2004, 6; PREZ-GMEZ 1997, 57 23 PREZ-GMEZ 1997, 58

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    do mundo sensorial do intelecto, a sua arquitectura reflecte a mesma postura ao deformar as formas em funo de uma verdade aparente da construo.

    De facto o dualismo Homem/Cosmos, Sujeito/Objecto poder-se- transpor para o espao barroco na oposio entre o espao habitado pelo corpo (o construdo) e o espao habitado pelo olhar (o percebido). Neste sentido a aparncia gerada pela quadratura, includa entre os instrumentos de devoo e seduo da igreja da contra-reforma, ou de afirmao triunfalista do poder, no dever ser reduzida funo de criar uma mera aparncia das coisas ou de preenchimento de espaos vazios. Apesar de as representaes religiosas terem, acima de tudo, um sentido catequtico e devocional, no poderemos confundir a sua funo iconogrfica com funo espacial. O que aqui nos orienta a espacialidade estruturada, ainda que plena de motivaes e afirmaes absolutistas e teolgicas, num () dilogo inconclusivo entre os princpios da legitimidade construtiva e a inesgotvel riqueza do mundo fenomenolgico.24 A compreenso do poder da imagem artstica conduz adeso da concepo da arte como espectculo onde a perspectiva Barroca () no faz mais do que ultrapassar a si prpria, quebrando a estrutura de formas fechadas, quase indicando uma busca em direco inteligibilidade do infinito.25

    Para uma breve definio de retrica visual.

    () as palavras ouvem-se, as obras vem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.

    Padre Antnio Vieira. Sermo da Sexagsima. Numa considerao ampla do conceito, a retrica integra todo o universo cultural seja

    directa ou indirectamente articulado pela linguagem, incluindo-se a a geometria a par da dimenso comunicativa, simblica e relacional do espao. Enquanto qualidade intrnseca dos diferentes nveis do conhecimento e produo humana, a retrica no foi apenas uma disciplina de persuaso mas, de facto, o gnio construtivo da cultura barroca.26

    24 VESELY 2004, 166. 25 DI STEFANO 2011, 12 26 O estudo da retrica visual parte dos cnones da retrica clssica para os verter imagem. No domnio da linguagem, a retrica envolve trs elementos, Logos, Pathos e Ethos (logos: uso do raciocnio, indutivo e dedutivo, para construir argumentos; pathos: recurso ao apelo emocional conduzindo o ju