João Paulo Chelotti Benefícios previdenciários por ... · disciplina da legislação...

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João Paulo Chelotti Advogado atuante em SP. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista UNIP. Pós-graduado lato sensu em direito processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMINAS Benefícios previdenciários por incapacidade e o princípio da congruência no Direito Processual Civil brasileiro Elaborado em 01/2011 INTRODUÇÃO O ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com as conquistas teóricas do direito na pós- modernidade, protege o indivíduo contra as investidas arbitrárias do Estado e, também contra os abusos dos particulares. Entretanto, além dos direitos de liberdade outorgados ao indivíduo, o Estado deve atuar, no sentido de proporcionar condições de vida mais dignas, em respeito aos comandos constitucionais que consagram os denominados "direitos sociais". Os direitos sociais são, por seu turno, a demonstração do dever do Estado de proporcionar ao indivíduo melhores condições de vida. Entretanto, para que tal desiderato seja alcançado, o Estado deve utilizar-se de políticas públicas, inclusive com a colaboração de toda a sociedade. Faceta importante dos direitos sociais é a previdência social que tem por finalidade, atenuar os percalços da vida do trabalhador, tais como, por exemplo: desemprego, morte, maternidade, velhice, doença etc. Risco social, por excelência, protegido pela previdência social, a doença ou lesão que gera a incapacidade para o exercício das atividades laborativas, acomete número expressivo de segurados do sistema previdenciário, com impossibilidade de auferição de renda para seu próprio sustento e de sua família. Em decorrência, o segurado, incapacitado para exercer suas atividades, requer junto ao órgão gestor da previdência social, o Instituto Nacional de Seguro Social, benefício previdenciário por incapacidade, dentre as três modalidades existentes no direito brasileiro: aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e auxílio-acidente. Mas, por motivos vários e de forma injustificada, o Instituto Nacional do Seguro Social, após avaliação médica, nega o benefício pleiteado, sob fundamento de inexistência da alegada incapacidade laborativa. A solução encontrada pelo segurado é o ingresso em juízo, pois há proibição de os indivíduos resolverem seus conflitos com as próprias mãos (autotutela) [01] , porquanto o Estado atribuiu para si a função de resolver o conflito de interesses existente, solucionando definitivamente a lide, pacificando socialmente o conflito e aplicando o direito de modo imperativo [02] . De forma que, o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (promulgada em 05 de outubro de 1988) garante a todos, o direito de defenderem

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  • Joo Paulo Chelotti

    Advogado atuante em SP. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista UNIP. Ps-graduado lato sensu em direito processual pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais - PUCMINAS

    Benefcios previdencirios por incapacidade e o princpio da congruncia no Direito

    Processual Civil brasileiro

    Elaborado em 01/2011

    INTRODUO

    O ordenamento jurdico brasileiro, de acordo com as conquistas tericas do direito na ps-modernidade, protege o indivduo contra as investidas arbitrrias do Estado e, tambm contra os abusos dos particulares. Entretanto, alm dos direitos de liberdade outorgados ao indivduo, o Estado deve atuar, no sentido de proporcionar condies de vida mais dignas, em respeito aos comandos constitucionais que consagram os denominados "direitos sociais".

    Os direitos sociais so, por seu turno, a demonstrao do dever do Estado de proporcionar ao indivduo melhores condies de vida. Entretanto, para que tal desiderato seja alcanado, o Estado deve utilizar-se de polticas pblicas, inclusive com a colaborao de toda a sociedade.

    Faceta importante dos direitos sociais a previdncia social que tem por finalidade, atenuar os percalos da vida do trabalhador, tais como, por exemplo: desemprego, morte, maternidade, velhice, doena etc.

    Risco social, por excelncia, protegido pela previdncia social, a doena ou leso que gera a incapacidade para o exerccio das atividades laborativas, acomete nmero expressivo de segurados do sistema previdencirio, com impossibilidade de auferio de renda para seu prprio sustento e de sua famlia.

    Em decorrncia, o segurado, incapacitado para exercer suas atividades, requer junto ao rgo gestor da previdncia social, o Instituto Nacional de Seguro Social, benefcio previdencirio por incapacidade, dentre as trs modalidades existentes no direito brasileiro: aposentadoria por invalidez, auxlio-doena e auxlio-acidente.

    Mas, por motivos vrios e de forma injustificada, o Instituto Nacional do Seguro Social, aps avaliao mdica, nega o benefcio pleiteado, sob fundamento de inexistncia da alegada incapacidade laborativa.

    A soluo encontrada pelo segurado o ingresso em juzo, pois h proibio de os indivduos resolverem seus conflitos com as prprias mos (autotutela) [01], porquanto o Estado atribuiu para si a funo de resolver o conflito de interesses existente, solucionando definitivamente a lide, pacificando socialmente o conflito e aplicando o direito de modo imperativo [02]. De forma que, o art. 5, inciso XXXV, da Constituio Federal (promulgada em 05 de outubro de 1988) garante a todos, o direito de defenderem

  • seus interesses perante um rgo previamente institudo por lei e de forma imparcial, denominado "Poder Judicirio", in verbis:

    A lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito.

    Entretanto, o juiz, ao analisar o pedido formulado pela parte, concede benefcio por incapacidade diverso do pleiteado. A situao acima exposta decorre do fato de a prova pericial realizada nos autos comprovar que o benefcio por incapacidade devido diverso do pretendido. Aps anlise perfunctria, vislumbra-se que a deciso judicial que concede benefcio por incapacidade diverso do pretendido, em consonncia com a prova pericial produzida, supostamente extrapola os limites da pretenso das partes.

    De acordo com o princpio da congruncia, o juiz, em sua deciso, deve ficar adstrito ao pedido formulado e a fundamentao das partes, sob pena de a deciso proferida ser anulada pelo juzo ad quem. Tal posicionamento correto, porquanto a deciso judicial que extrapola os limites da demanda ofende os princpios da ampla defesa e do contraditrio. A parte atingida por decises judiciais que extrapolaram os limites da demanda, julgando pedido no requerido, apreciando fundamento no suscitado por qualquer das partes, ou no apreciando fundamento suscitado pelas partes, teve seu direito ampla defesa e ao contraditrio substancialmente violados, pois no participou da construo do provimento judicial, garantido pelos modernos sistemas constitucionais democrticos.

    No presente caso, a deciso judicial que concede benefcio previdencirio por incapacidade diverso do pretendido pelo autor, aparentemente, extrapola os limites do pedido, pois, ao conceder benefcio diverso, o juiz estaria concedendo coisa diversa da pretendida pelo demandante, com a consequente supresso da possibilidade do demandado exercer seu direito ao contraditrio, garantido constitucionalmente.

    Por outro lado, vislumbra-se a situao do demandante e de seu advogado que no tm conhecimentos tcnicos para aferir, com exatido, o benefcio por incapacidade devido, pois falta a eles formao tcnica especfica (conhecimentos em medicina). Por isso, indubitvel a necessidade da produo de prova tcnica para, somente aps, o magistrado poder decidir com segurana, concedendo o benefcio por incapacidade devido. Portanto, de acordo com tal perspectiva, haver o correto dimensionamento do benefcio por incapacidade devido, aps a produo de prova pericial que aferir as reais circunstncias que norteiam a incapacidade do segurado.

    Portanto, a presente questo tem interesse prtico, pois existem muitas aes visando concesso de benefcio por incapacidade, distribudas pelo territrio nacional, nas quais o advogado contratado, na petio inicial, requereu benefcio por incapacidade determinado, mas aps a produo da prova pericial, constata-se ser devido benefcio por incapacidade diverso do pretendido e, consequentemente, o juiz concede o benefcio por incapacidade conforme concluso do laudo tcnico.

    Ademais, os tribunais brasileiros, em algumas decises proferidas, demonstram insegurana ao lidar com a questo, pois ora declaram a nulidade da deciso que concede benefcio por incapacidade diverso do pleiteado, por ultrapassar os limites do pedido, ora declaram no haver qualquer vcio que possa inquinar o ato judicial praticado.

    A situao de decises contraditrias fomenta a desconfiana dos cidados para o Poder Judicirio, contrariando, por consequncia, a busca da paz social que deve nortear todas as decises judiciais. Nesse caso, vislumbra-se insegurana jurdica em torno da questo.

  • De todo o exposto, vislumbra-se a necessidade de aprofundamento na pesquisa para se saber se a deciso judicial que concede benefcio previdencirio por incapacidade diverso do pretendido extrapola os limites da pretenso das partes, afrontando o princpio da congruncia, com o escopo de contribuir para a soluo da questo.

    O que se prope, primeiramente, a anlise do conceito de incapacidade, para depois, investigar a estrutura dos benefcios previdencirios por incapacidade em espcie, que so: aposentadoria por invalidez, auxlio-doena e auxlio acidente, de acordo com a disciplina da legislao previdenciria em vigor no ordenamento jurdico brasileiro.

    Analisar-se-o, ainda que de forma sucinta, as decises judiciais no direito brasileiro, seu conceito, suas espcies, seus requisitos ou elementos, mister se faz, aps essa anlise, estudar o princpio da congruncia da deciso judicial com a demanda. Analisar-se-o, ademais, com certa profundidade, as decises judiciais que extrapolam os limites do pedido ou da fundamentao das partes (decises judiciais ultra e extra petita), alm da anlise das decises que no apreciam toda a demanda ou a fundamentao das partes (deciso citra petita).

    1 - BENEFCIOS PREVIDENCIRIOS POR INCAPACIDADE

    1.1 CONSIDERAES INICIAIS

    Na sociedade contempornea, as Cartas Magnas dos Estados consagram inmeros direitos fundamentais [03]. Os direitos fundamentais so os resultados do embate de foras entre a classe dominada e a classe dominante, em um determinado perodo histrico, em que a classe dominada, embora subjugada pela classe dominante (pois a classe dominante se utiliza dos instrumentos de coero do Estado), consegue garantir um mnimo existencial em face dessa classe, no caso, representada pelo Estado. A doutrina, por sua vez, classifica os direitos fundamentais em geraes [04].

    A primeira gerao de direitos fundamentais consiste, basicamente, na defesa das liberdades do indivduo frente ao Estado, ou seja, "so direitos e garantias individuais e polticos clssicos (liberdades pblicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Charta" [05].

    A segunda gerao consagra a defesa dos direitos econmicos, sociais culturais e coletivos. Nas palavras de Temstocles Brando Cavalcanti:

    O comeo do nosso sculo viu a incluso de uma nova categoria de direitos nas declaraes e, ainda mais recentemente, nos princpios garantidores da liberdade das naes e das normas da convivncia internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistncia, o amparo doena, velhice etc. [06].

    Por fim, so direitos da terceira gerao: o direito ao desenvolvimento, o direito paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimnio comum da humanidade e o direito de comunicao [07]. Em outras palavras, a terceira gerao abarca os denominados direitos de solidariedade e fraternidade [08].

    A diferena existente entre as geraes dos direitos fundamentais reside no fato que os direitos fundamentais de primeira gerao foram estatudos para proteger o indivduo

  • contra o Estado, em contrapartida, os direitos fundamentais de segunda e terceira geraes necessitam, para serem concretizados, de uma prestao por parte do Estado. Nesse caso, o Estado deve atuar de forma a garantir ao indivduo a possibilidade de fruio dos direitos que elenca na Constituio Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988.

    Em suma, os direitos fundamentais de primeira gerao garantem o indivduo face s investidas arbitrrias do Estado, seja por meio de lei, ou por meio de atos concretos [09]. Os direitos fundamentais de primeira gerao so os direitos clssicos de liberdade, tais como, por exemplo: direito vida, direito igualdade, direito liberdade de pensamento etc. J os direitos fundamentais de segunda e terceira geraes so caracterizados pelo dever por parte do Estado em praticar atos tendentes a garantir a exequibilidade dos direitos, podem ser citados, por exemplo, os seguintes direitos: direito sade, direito seguridade social, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado etc. No primeiro caso, o Estado deve omitir-se, j no segundo caso, o Estado deve agir.

    Por seu turno, o Poder Constituinte originrio inseriu na Constituio Federal de 1988, alm dos tradicionais direitos de liberdade (denominados, como se viu, de primeira gerao), outros direitos que necessitam, como se viu, de prestaes positivas por parte do Estado (so os direitos fundamentais de segunda e terceira geraes).

    Nesse sentido, os direitos sociais, de maneira mais especfica, o direito seguridade social foi inserido na CF, no ttulo VIII, captulo II, sendo logo conceituado no art. 194, caput, in verbis:

    A seguridade social compreende um conjunto integrado de aes de iniciativa dos Poderes Pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade, previdncia e a assistncia social.

    Fbio Zambitte Ibrahim, ao conceituar a seguridade social, salienta, em conformidade com os ditames da CF, o estabelecimento de aes positivas por parte do Estado, em prol de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, in verbis:

    A seguridade social pode ser conceituada como a rede protetiva formada pelo Estado e por particulares, com contribuies de todos, incluindo parte dos beneficirios dos direitos, no sentido de estabelecer aes positivas no sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manuteno de um padro mnimo de vida [10].

    Ademais, a prpria CF elenca os princpios norteadores da seguridade social, in verbis:

    a) universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, pargrafo nico, I);

    b) uniformidade e equivalncia dos benefcios e servios s populaes urbanas e rurais (art. 194, pargrafo nico, II);

    c) seletividade e distributividade na prestao de benefcios e servios (art. 194, pargrafo nico, III);

    d) irredutibilidade do valor dos benefcios (art. 194, pargrafo nico, IV);

    e) equidade na forma de participao e custeio (art. 194, pargrafo nico, V);

    f) diversidade da base de financiamento (art. 194, pargrafo nico, VI);

  • g) carter democrtico e decentralizado da administrao, mediante gesto quadripartite, com participao dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos rgos colegiados (art. 194, pargrafo nico, VII).

    Por seu turno, o direito seguridade social subdivide-se em: direito sade, direito assistncia social e direito previdncia social.

    A sade, ramo da seguridade social, disciplinada pela CF, nos arts. 196 a 200. A CF define, no art. 196, a sade, in verbis:

    A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao.

    Caracterstica fundamental do direito sade a universalidade do atendimento. A sade direito de todos, independendo de contribuies ou comprovao de falta de recursos financeiros, ou seja, qualquer pessoa pode valer-se da rede pblica de sade mesmo que, comprovadamente, tenha recursos para patrocinar seu prprio atendimento mdico [11].

    A sade garantida por meio de polticas pblicas, ressaltando o carter prestacional do citado direito [12], visando implementar:

    a) medidas preventivas que procuram evitar que a contingncia ocorra. Fazem parte das inspees mdicas peridicas, profilaxia contra surtos endmicos e epidmicos, assim como medidas de higiene e profilaxia individual e coletiva; b) medidas curativas que restabelecem a sade alterada do indivduo para que volte a ter completo controle fsico e mental. Compreendem servios mdicos gerais e especiais, geritricos internao hospitalar, fornecimento de medicamentos, quer dizer, tudo que for necessrio para recuperar o estado de bem estar que implica a sade; c) medidas reabilitatrias quando a doena deixar sequelas, com o objetivo de que o afetado recupere, na melhor condio possvel, seu estado de sade anterior doena. Compreendem aparelhos de prteses e ortopedia, sua manuteno e reposio, assim como sistemas de reabilitao e recuperao [13].

    Em suma, o direito sade universal, independente de contribuio por parte dos beneficirios, visa prevenir doenas, recuperar a sade e reabilitar o beneficirio, em caso de sequelas deixadas por doena ou leso.

    Por outro lado, a assistncia social, ramo da seguridade social, disciplinada nos arts. 203 e 204 da CF, garantida aos hipossuficientes, independentemente de contribuio (art. 203 da CF).

    Marly Cardone define a assistncia social como a:

    (...) forma de cobertura estatal das necessidades decorrentes da realizao de uma contingncia humana s pessoas no ligadas ao sistema de previdncia social, mediante a avaliao da ausncia de recursos do atingido pela contingncia [14].

    O propsito da assistncia social o de colmatar lacunas deixadas pela previdncia social, tendo por beneficirias as pessoas que no tm condies de arcar com suas necessidades bsicas em no sejam seguradas obrigatrias da previdncia social. Por isso, vislumbra-se o carter de complementaridade da assistncia social perante a previdncia social.

    No mesmo sentido o entendimento de Fbio Zambitte Ibrahim:

  • O segmento assistencial da seguridade tem por propsito nuclear preencher as lacunas deixadas pela previdncia social, j que esta, como se ver, no extensvel a todo e qualquer indivduo, mas somente aos que contribuem para o sistema, alm de seus dependentes [15].

    A assistncia social atua, provendo as necessidades bsicas da pessoa que se encontra em estado de pobreza por meio de: servios assistenciais e prestaes pecunirias.

    O art. 23 da Lei federal n 8.742 de 07 de dezembro de 1993 (que dispe sobre a organizao da Assistncia Social) define o que se deve entender por servios assistenciais:

    Entendem-se por servios assistenciais as atividades continuadas que visem melhoria de vida da populao e cujas aes, voltadas para as necessidades bsicas, observem os objetivos, princpios e diretrizes estabelecidas nesta Lei.

    Portanto, servios assistenciais devem ser entendidos como atividades exercidas pelos agentes pblicos, por meio de polticas pblicas, e de toda a comunidade com vistas melhoria das condies de vida das pessoas que no possuam renda suficiente para a manuteno prpria e de sua famlia.

    Dentre as prestaes pecunirias assistenciais, destaca-se o benefcio de prestao continuada institudo pela Lei 8.742/93 que disciplinou os requisitos para sua concesso [16].

    Por fim, a previdncia social, ramo da seguridade social, de cunho, eminentemente, contributivo, tem por finalidade proteger os segurados e seus dependentes contra as contingncias sociais que impeam ou diminuam a capacidade de prover a prpria subsistncia e de sua famlia. A CF disciplina a previdncia social nos arts. 201 a 202.

    Nesse diapaso, Simone Barbisan Fortes e Leandro Paulsen conceituam a previdncia social como:

    (...) um grande sistema de seguro social gerido pelo Poder Pblico, destinado a dar cobertura, mediante contribuio (presumida ou efetiva), prioritariamente aos trabalhadores do setor privado, do campo e da cidade, mas tambm aos servidores pblicos no cobertos por regime previdencirio diferenciado e aos cidados que no se enquadrem em nenhuma das hipteses referidas, mas desejem filiar-se mediante contribuio [17].

    A CF disciplina dois regimes de previdncia social, a saber: regime geral de previdncia social e os regimes prprios de previdncia do servidor pblico.

    O regime geral de previdncia social, institudo pela Unio e gerido pelo Instituto Nacional de Seguro Social, autarquia federal, destinados aos trabalhadores urbanos e rurais, autnomos, servidores pblicos no abrangidos pelo Regime de Previdncia Prprio etc.;

    Os regimes prprios de previdncia social, institudos pela Unio, Estados-membros e Municpios, destinados aos servidores pblicos efetivos.

    Duas caractersticas so os traos marcantes da previdncia social no ordenamento jurdico brasileiro, a saber:

    a) O carter contributivo do sistema previdencirio brasileiro;

  • b) A compulsoriedade das contribuies.

    O art. 201, caput, da CF, ressalta as caractersticas acima mencionadas, in verbis:

    A previdncia social ser organizada sob a forma de regime geral, de carter contributivo e de filiao obrigatria, observados os critrios que preservem o equilbrio financeiro e atuarial, e atender, nos termos da lei, (...).

    Basta que os trabalhadores rurais ou urbanos e os demais contribuintes obrigatrios (empresrios, advogados autnomos, mdicos autnomos etc.) exeram suas atividades para que a contribuio ao sistema previdencirio seja devida e, em contrapartida, os trabalhadores urbanos e rurais, exceto os contribuintes individuais, estaro automaticamente segurados contra os riscos sociais que eventualmente venham a impossibilitar ou diminuir a capacidade de auto-sustento. Como exceo ao princpio da vinculao compulsria ao regime, no ordenamento jurdico brasileiro existe categoria de segurados que no est, automaticamente, vinculada ao regime previdencirio e, por consequncia, no obrigada a verter contribuies, so os denominados segurados facultativos, citem-se, como exemplos: o estudante, a dona de casa etc.

    Portanto, o regime geral de previdncia social necessita, para o seu regular funcionamento, de contribuies a serem vertidas por todos os segurados.

    A previdncia social diferencia-se da assistncia social e da sade. Nesse diapaso, a previdncia social abarca nmero limitado de pessoas, pois depende, para a concesso de benefcios e a prestao dos servios catalogados, de contribuies vertidas pelos segurados ao regime, assemelhando-se a um seguro de direito privado. Por seu turno, a assistncia social e a sade independem de quaisquer contribuies de seus beneficirios. Em suma, a previdncia social exige o recolhimento de contribuies ao sistema dos seus segurados, enquanto que a assistncia social e a sade no exigem qualquer contribuio por parte de seus beneficirios, para lhes conceder benefcios pecunirios ou prestar-lhes servios mdicos ou assistenciais.

    O art. 1 da Lei federal n 8.213 de 24 de julho de 1991 (Lei que instituiu os planos de benefcios da previdncia social) traa como finalidade da previdncia social assegurar aos seus beneficirios (segurados e dependentes) meios indispensveis para a sua manuteno contra a incapacidade, desemprego involuntrio, idade avanada, tempo de servio, encargos familiares, priso ou morte, tais situaes so denominadas de "riscos ou contingncias sociais".

    Fbio Zambitte Ibrahim conceitua risco ou contingncia social como:

    (...) todo o evento coberto pelo sistema protetivo, com intuito de fornecer ao segurado algum rendimento substituidor de sua remunerao, como indenizao por sequelas ou em razo de encargos familiares. [18]

    Portanto, os riscos ou contingncias sociais so eventos que impossibilitam (de forma real ou presumida) o segurado e seus dependentes de exercerem atividades que lhes garantam o sustento prprio e de sua famlia.

    A previdncia social atua, nesse caso, de forma a amparar o segurado e seus dependentes face s contingncias sociais. A atuao da previdncia d-se de duas maneiras: prestaes previdencirias (de natureza pecuniria) e servios (reabilitao profissional e servio social).

  • Os servios prestados pela previdncia social so disciplinados nos arts. 88 a 93 da Lei 8.213/91 e tm por finalidade orientar o beneficirio soluo de problemas pessoais e familiares e a adaptao do beneficirio para o reingresso no mercado de trabalho.

    Por outro lado, as prestaes previdencirias, de carter pecunirio, so devidas aos segurados e seus dependentes no caso de deflagrao do risco ou contingncia social. Nesse caso, a previdncia social obrigada, aps a comprovao da ocorrncia do risco ou contingncia social, a conceder um benefcio pecunirio, dentre os arrolados na lei, ao segurado.

    1.2 - DA INCAPACIDADE

    Como se viu no tpico anterior, o risco ou contingncia social todo evento, previsvel ou imprevisvel, protegido pelo sistema previdencirio, que impossibilita ou diminui a capacidade do segurado ou de seus dependentes em auferir renda para manuteno da prpria subsistncia.

    Entretanto, para alguns riscos ou contingncias sociais, a impossibilidade ou diminuio de auferio renda presumida, o caso, por exemplo: do benefcio previdencirio aposentadoria por tempo de contribuio disciplinado nos arts. 52 a 56 da Lei 8.213/91.

    Por outro lado, risco ou contingncia social que, de fato, gera a impossibilidade de o segurado sustentar-se pelo seu prprio trabalho a incapacidade decorrente de doena ou leso. A incapacidade, risco social por excelncia, pode tanto impossibilitar o segurado de exercer suas atividades, como reduzir sua capacidade laborativa.

    1.2.1 - CONCEITO

    Provisoriamente, a incapacidade, no direito previdencirio, pode ser conceituada como a inaptido do segurado em exercer atividades que lhe garantam a subsistncia ou que lhe impea o exerccio de suas atividades habituais, em decorrncia de doena ou leso.

    A incapacidade pode ser para o trabalho, nos casos de segurados empregados, ou para atividades habituais, nos casos de segurados individuais e facultativos. Nesse caso, a incapacidade no , somente, a incapacidade para exercer atividades laborativas, porquanto, existe, no direito brasileiro, uma categoria de segurados que no exerce atividade remunerada vinculada a qualquer regime previdencirio, mas pode filiar-se ao Regime Geral de Previdncia Social [19]. So os denominados "segurados facultativos".

    Por no se enquadrarem em nenhuma categoria referente aos segurados obrigatrios, os segurados facultativos podem optar pela filiao junto ao Regime Geral de Previdncia Social, citem-se como exemplos: a dona-de-casa, o estudante, o presidirio que no exera atividade remunerada etc. Neste caso, excepcionalmente, a filiao decorre de ato de vontade do sujeito e no da lei.

    Por isso, ao conceito de incapacidade, devem agregar-se as atividades no profissionais que, por consequncia, no geram renda para a subsistncia do segurado, ou seja, a incapacidade para a sua vida diria.

    Ademais, para se aferir a incapacidade do segurado, algumas decises judiciais [20], de forma acertada, consideram, no s aspecto fsico da doena, mas outras circunstncias que influem, substancialmente, na caracterizao da incapacidade. Nesse caso, para a caracterizao da incapacidade, devem-se considerar, alm da doena, a situao scio-

  • cultural do segurado, tais como: seu grau de escolaridade, sua idade, atividade desenvolvida etc.

    Portanto, o magistrado, ao decidir, deve considerar, no somente o laudo pericial juntado aos autos, mas, tambm as condies scio-culturais do segurado.

    Por todo o exposto, pode-se conceituar, modernamente, a incapacidade como a inaptido do segurado para o exerccio de atividade laborativa que lhe garanta a subsistncia ou para sua vida diria, em decorrncia de doena ou leso, conforme a circunstncias scio-culturais imanentes ao segurado.

    1.2.2 CLASSIFICAO

    A incapacidade pode ser classificada com relao ao seu grau, sua durao e atividade desenvolvida pelo segurado.

    Quanto ao grau a incapacidade pode ser parcial e total.

    Incapacidade parcial a incapacidade que permite que o segurado ainda desempenhe sua atividade, sem, entretanto, exerc-la conforme exercia anteriormente leso ou doena.

    Incapacidade total a incapacidade que gera a impossibilidade de exerccio das atividades at ento exercidas pelo segurado, anteriormente leso ou doena.

    Quanto durao, a incapacidade pode ser temporria ou permanente.

    Incapacidade temporria a incapacidade para a qual pode se esperar a recuperao do segurado dentro de prazo previsvel.

    Incapacidade permanente aquela insuscetvel de recuperao em prazo previsvel com os recursos mdicos disponveis.

    Quanto atividade desenvolvida, a incapacidade pode ser uniprofissional, multiprofissional e omniprofissional.

    Incapacidade uniprofissional a incapacidade que alcana uma atividade especfica.

    Incapacidade multiprofissional a incapacidade que alcana diversas atividades.

    Incapacidade omniprofissional a incapacidade que abrange toda e qualquer atividade.

    1.3 APOSENTADORIA POR INVALIDEZ

    O benefcio previdencirio aposentadoria por invalidez disciplinado pela Lei 8.213/91, nos arts. 42 a 48.

    A aposentadoria por invalidez benefcio de trato sucessivo devido ao segurado que for considerado incapaz de exercer suas atividades laborativas ou para a vida diria (segurados facultativos) insuscetvel de reabilitao profissional. Por isso, a aposentadoria por invalidez benefcio previdencirio tpico, porquanto, sua concesso decorre, inexoravelmente, de contingncia social totalmente imprevisvel invalidez para o

  • trabalho ou para sua vida diria. Nesse sentido, Wladimir Novaes Martinez define o presente benefcio:

    Aposentadoria por invalidez benefcio substituidor dos salrios, de pagamento continuado, provisrio ou definitivo, pouco re-editvel, devido ao segurado incapaz para o seu trabalho e insuscetvel de reabilitao para o exerccio de atividade garantidora de sua subsistncia [21].

    Pela definio acima exposta, possvel concluir que aposentadoria por invalidez devido ao segurado que esteja totalmente incapacitado para quaisquer atividades laborativas ou para sua vida diria, porquanto, caso o segurado for suscetvel de reabilitao profissional, a incapacidade no ser considerada total e, por isso, o benefcio aposentadoria por invalidez no ser devido [22]. Ademais, a incapacidade ensejadora do benefcio deve ser permanente. Entretanto, no se deve confundir permanncia da incapacidade com impossibilidade de recuperao. Nesses casos, a recuperao incerta [23].

    O segundo requisito para a concesso da aposentadoria por invalidez a carncia. Portanto, exige-se um perodo de carncia de doze contribuies mensais, exceto quando se est diante de acidente de trabalho ou o segurado contrair alguma doena constante de lista elaborada pelos Ministrios da Sade e Previdncia Social. Nesses casos, o segurado fica isento de carncia, bastando o exerccio das atividades para o segurado empregado e o recolhimento da primeira contribuio dos segurados individuais e facultativos.

    O art. 24, caput, da Lei 8.213/91 conceitua, por seu turno, carncia, in verbis:

    Perodo de carncia o nmero mnimo de contribuies mensais indispensveis para que o beneficirio faa jus ao benefcio, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses subsequentes de suas competncias.

    O art. 25 da Lei 8.213/91 disciplina o perodo de carncia exigido para os benefcios previdencirios em espcie. O inciso primeiro do citado artigo determina o perodo de carncia de, no mnimo, doze contribuies mensais:

    Art. 25. A concesso das prestaes pecunirias do Regime Geral de Previdncia Social depende dos seguintes perodos de carncia, ressalvado o disposto no art. 26:

    I - auxlio-doena e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) contribuies mensais;

    Entretanto, o art. 26 da Lei 8.213/91 arrola os casos que independem de carncia, in verbis:

    Art. 26. Independe de carncia a concesso das seguintes prestaes:

    I (...);

    ........

    II - auxlio-doena e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doena profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, aps filiar-se ao Regime Geral de Previdncia Social, for acometido de alguma das doenas e afeces especificadas em lista elaborada pelos Ministrios da Sade e do Trabalho e da Previdncia Social a cada trs anos, de acordo com os critrios de estigma, deformao, mutilao, deficincia, ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que meream tratamento particularizado;

    http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.htm#t3_cp2_s2_art26#t3_cp2_s2_art26

  • Ademais, caso o segurado filie-se previdncia social portador de doena ou leso no ter direito ao benefcio por incapacidade. Entretanto, o benefcio devido quando a incapacidade sobrevier por motivo de progresso ou agravamento da doena ou leso (art. 42, pargrafo 2 da Lei 8.213/91).

    A renda mensal inicial do benefcio ser de 100% (cem por cento) do salrio-de-benefcio, inclusive se a aposentadoria por invalidez decorrer de acidente de trabalho (art. 44, caput, da Lei 8.213/91). Caso o segurado necessite de assistncia permanente de terceiro, ao benefcio sero acrescidos 25% (vinte cinco por cento), situao que poder acarretar uma renda mensal superior ao teto estabelecido pelo Instituto Nacional de Seguro Social. Entretanto, o acrscimo supracitado desaparecer com bito do segurado, no se incorporando penso por morte, eventualmente, devida aos seus dependentes.

    A aposentadoria por invalidez ser devida a partir do dia imediato ao da cessao do auxlio-doena (art. 43, caput da Lei 8.213/91). Entretanto, como a lei no exige a precedncia de auxlio-doena, pode ocorrer que o benefcio aposentadoria por invalidez seja concedido em momentos distintos.

    A aposentadoria por invalidez ser devida ao segurado empregado, comprovadamente incapacitado, a contar do dcimo sexto dia de afastamento da atividade, ou a partir da entrada do requerimento, se entre o afastamento e a entrada do requerimento decorrer mais de trinta dias. Os quinze primeiros dias de afastamento do segurado empregado, no presente caso, ficam por conta da empresa.

    Ao segurado empregado domstico, trabalhador avulso, contribuinte individual, especial e facultativo, a contar da data do incio da incapacidade ou da data do requerimento, se entre essas datas decorrer mais de trinta dias.

    Questo interessante diz respeito aos efeitos da aposentadoria por invalidez sobre o contrato de trabalho do segurado.

    O art. 475 do Decreto-lei 5.452, de 1 de maio de 1943 (Consolidao das Leis do Trabalho) determina a suspenso do contrato de trabalho do aposentado por invalidez, entretanto, remete s leis previdencirias o prazo de tal suspenso. Em decorrncia, o art. 47 da Lei 8.213/91 elabora o seguinte esquema:

    Caso o segurado, aposentado por invalidez, recupere a capacidade, observar-se- o seguinte:

    I) quando a recuperao ocorrer dentro de cinco anos, contados da data do incio da aposentadoria por invalidez ou do auxlio-doena que a antecedeu sem interrupo, o benefcio cessar:

    a) de imediato, para o segurado empregado que tiver direito a retornar funo que desempenhava na empresa quando se aposentou, na forma da legislao trabalhista, valendo como documento, para tal fim, o certificado de capacidade fornecido pela Previdncia Social; ou

    b) aps tantos meses quantos forem os anos de durao do auxlio-doena ou da aposentadoria por invalidez, para os demais segurados;

  • II - quando a recuperao for parcial, ou ocorrer aps o perodo do inciso I, ou ainda quando o segurado for declarado apto para o exerccio de trabalho diverso do qual habitualmente exercia, a aposentadoria ser mantida, sem prejuzo da volta atividade:

    a) no seu valor integral, durante seis meses contados da data em que for verificada a recuperao da capacidade;

    b) com reduo de cinquenta por cento, no perodo seguinte de seis meses;

    c) com reduo de setenta e cinco por cento, tambm por igual perodo de seis meses, ao trmino do qual cessar definitivamente.

    Verifica-se, pois, que o aposentado por invalidez, dentro dos primeiros cincos anos de afastamento, caso recupere sua capacidade, teria direito a retornar atividade que desenvolvia anteriormente na empresa. Entretanto, se empregado recuperar a sua capacidade aps o perodo de cinco anos ou for considerado apto para exercer funo diversa da que exercia na empresa, o empregador no teria obrigao de admiti-lo.

    Arnaldo Sussekind tem esse entendimento, in verbis:

    Se a recuperao no for total ou o segurado for declarado apto apenas para o exerccio de trabalho diverso do habitualmente realizava na empresa, o empregador no ter obrigao de readmiti-lo, porquanto o correspondente contrato de trabalho, mesmo quando no extinto pela fluncia dos cinco anos, concerne ao exerccio de uma funo para a qual o trabalhador permanece incapacitado. Tambm, quando a recuperao, embora total e para o prprio servio que executava na empresa, verificar-se aps o decurso do quinqunio de concesso de benefcio por incapacidade (somados os perodos de auxlio-doena e de aposentadoria por invalidez), nenhuma obrigao ter o empregador, visto que o respectivo contrato de trabalho se extingue pelos simples implemento dos cinco anos de concesso dos aludidos benefcios por incapacidade [24].

    Ocorre que a interpretao dada pela doutrina equivocada.

    O direito previdencirio brasileiro exige, para a manuteno do benefcio por incapacidade, exames mdico-periciais peridicos, para a verificao da permanncia da incapacidade do segurado, por isso, no seria consentneo com os postulados de proteo ao trabalhador, estipular prazo, no presente caso, para a extino do contrato de trabalho, porquanto, caso o trabalhador recupere sua capacidade aps o decurso de cinco anos de afastamento, de acordo com o posicionamento de Arnaldo Sussekind acima exposto, o empregador no teria obrigao de readmiti-lo e, pior, no poderia ser compelido a pagar qualquer indenizao.

    Entretanto, para sepultar a controvrsia, o TST editou o enunciado n 160, com o seguinte teor:

    Cancelada a aposentadoria por invalidez, mesmo aps cinco anos, o trabalhador ter direito de retornar ao emprego, facultado, porm, ao empregador, indeniz-lo na forma da lei.

    Portanto, o contrato de trabalho, em caso de concesso de aposentadoria por invalidez, ficar suspenso ad infinitum, extinguindo-se apenas em caso de morte do trabalhador. Por isso, caso o trabalhador recupere a capacidade para o trabalho, mesmo aps os cinco anos de afastamento, ter direito a retornar s suas atividades na empresa, tendo, porm, o

    http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.htm#t3_cp2_s5_sb1_art47_i#t3_cp2_s5_sb1_art47_i

  • empregador opo de rescindir o contrato de trabalho, pagando indenizao correspondente.

    1.4 AUXLIO-DOENA

    O auxlio-doena benefcio previdencirio devido ao segurado que, depois de cumprido o perodo de carncia exigido pela lei, ficar incapacitado para seu trabalho ou atividade habitual. A disciplina legal encontra-se nos arts 59 a 64 da Lei 8.213/91.

    O risco social coberto pelo benefcio ora em comento a incapacidade para o trabalho ou para vida diria (segurados facultativos) decorrente de doena ou leso. Entretanto, o que diferencia o auxlio-doena da aposentadoria por invalidez a perspectiva de recuperao. Em outros termos, enquanto a aposentadoria por invalidez induz a definitividade da incapacidade, (definitividade no quer dizer impossibilidade de recuperao da capacidade, mas sim, recuperao improvvel), o auxlio-doena concedido ao segurado que esteja, temporariamente, incapacitado, com possibilidade de recuperao [25].

    O auxlio-doena no devido ao segurado que se filiar ao Regime Geral j portador da doena ou leso invocada com causa para o benefcio. Entretanto, o benefcio ser devido caso a incapacidade sobrevier por motivo de progresso ou agravamento da doena ou leso. Nesse caso, o segurado, ao filiar-se ao Regime Geral, era portador da doena ou leso, mas, ainda, no estava incapacitado para atividades laborativas ou para vida diria (segurados facultativos).

    Ademais, o auxlio-doena exige um perodo de carncia de, no mnimo, doze contribuies mensais, exceto se decorrer de acidente de trabalho, em conformidade com o art. 25, inciso I e art. 26, inciso II, da Lei 8.213/91, in verbis:

    Art. 25. A concesso das prestaes pecunirias do Regime Geral de Previdncia Social depende dos seguintes perodos de carncia, ressalvado o disposto no art. 26:

    I - auxlio-doena e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) contribuies mensais;

    Art. 26. Independe de carncia a concesso das seguintes prestaes:

    I (...);

    .............

    II - auxlio-doena e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doena profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, aps filiar-se ao Regime Geral de Previdncia Social, for acometido de alguma das doenas e afeces especificadas em lista elaborada pelos Ministrios da Sade e do Trabalho e da Previdncia Social a cada trs anos, de acordo com os critrios de estigma, deformao, mutilao, deficincia, ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que meream tratamento particularizado;

    O benefcio ora em apreo ser devido ao segurado empregado, exceto o domstico, a partir do dcimo sexto dia, porquanto os quinze primeiros dias ficaro a cargo do empregador. Para os demais segurados, o benefcio ser devido a contar da data da incapacidade. Entretanto, caso o auxlio-doena seja requerido aps trinta dias do afastamento do segurado, ser devido a partir do requerimento administrativo.

    http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.htm#t3_cp2_s2_art26#t3_cp2_s2_art26

  • O STJ entendeu que o auxlio-doena requerido por segurado no empregado, ser devido a partir do incio da incapacidade laborativa, no caso de no haver requerimento administrativo, da data da juntada do laudo pericial aos autos do processo [26]. Entretanto, o entendimento esposado pela Corte de Justia no o mais correto, pois, caso no for possvel determinar a data de incio da incapacidade, nada mais razovel que fixar tal data a partir da citao [27] do Instituto Nacional de Seguro Social. o entendimento de Fbio Zambitte Ibrahim:

    No razovel presumir-se que o segurado somente incapacitou-se aps o ingresso em juzo. Se ingressou com demanda judicial, natural que j estivesse incapacitado para o trabalho. No mnimo, se o laudo pericial no conseguiu fixar a DII, deve esta ser a da citao, que seria equivalente a DER [28].

    O valor do benefcio auxlio-doena ser de noventa e um por cento do salrio-de-benefcio.

    Em decorrncia do carter temporrio do benefcio em apreo, o segurado ter que se submeter a tratamento ambulatorial visando recuperao de sua capacidade. Entretanto, o segurado no est obrigado a submeter-se a interveno cirrgica ou tratamento que coloque sua vida em risco, caso em que, o benefcio dever ser mantido, ou concedido aposentadoria por invalidez [29].

    Ademais, o segurado, em gozo de auxlio-doena, insuscetvel de recuperao para sua atividade habitual, dever submeter-se a processo reabilitao profissional, visando adaptar-se a novas funes que lhe garantam o sustento [30]. Mas, caso se considere o segurado no recuperado, o Instituto Nacional do Seguro Social conceder o benefcio aposentadoria por invalidez.

    Quando o segurado exercer mais de uma atividade abrangida pela previdncia social, o auxlio-doena ser devido no caso da incapacidade abranger apenas o exerccio de uma das atividades. Ademais, caso o segurado se incapacite definitivamente com relao a apenas uma das atividades, dever o auxlio-doena ser mantido indefinidamente, at que a incapacidade definitiva estenda-se para as demais atividades, caso que ser devida aposentadoria por invalidez.

    Ademais, imprescindvel a anlise do art. 118 da Lei 8.213/91, in verbis:

    O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mnimo de doze meses, a manuteno do seu contrato de trabalho na empresa, aps a cessao do auxlio-doena acidentrio, independentemente de percepo de auxlio-acidente.

    No caso em epgrafe, o segurado que auferir o benefcio previdencirio auxlio-doena decorrente de acidente de trabalho ou doena profissional que lhe equiparada [31], ter direito a permanecer na empresa, por um perodo de doze meses, aps a cessao do benefcio, independentemente da percepo de auxlio-acidente. Tal situao denominada garantia de emprego ou estabilidade provisria.

    Para Maurcio Godinho Delgado, garantia de emprego ou estabilidade provisria :

    (...) a vantagem jurdica de carter transitrio deferida ao empregado em virtude de uma circunstncia contratual ou pessoal obreira de carter especial, de modo a assegurar a manuteno do vnculo empregatcio por um lapso temporal definido, independentemente da vontade do empregador [32].

  • Basta ao segurado auferir o benefcio auxlio-doena acidentrio por, apenas, um dia, para fazer jus estabilidade provisria insculpida pelo art. 118 da Lei 8.213/91. Ou seja, os quinze primeiros dias de afastamento ficam a cargo do empregador, a partir do dcimo sexto dia, caso a incapacidade decorrente de acidente de trabalho persista, o segurado deve ser encaminhado percia mdica do Instituto Nacional de Seguro Social, caso comprove a persistncia da incapacidade, mesmo que seja por um dia apenas, o segurado ter a garantia do emprego, por doze meses aps a cessao do benefcio.

    Por fim, o auxlio-doena cessa pela recuperao da capacidade para o trabalho, em caso de transformao em aposentadoria por invalidez ou auxlio-acidente.

    1.5 AUXLIO-ACIDENTE

    O auxlio-acidente benefcio previdencirio, de carter indenizatrio, devido ao segurado, aps consolidao das leses decorrentes de acidente de qualquer natureza, desde que tais leses impliquem reduo da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. O benefcio tratado pelo art. 86 da Lei 8.213/91.

    O risco social protegido pelo benefcio ora em comento a reduo da capacidade laboral do segurado, decorrente de acidente de qualquer natureza que lhe deixou sequelas por causa das leses sofridas. Nesse caso, o legislador presume que o segurado que perde parte de sua capacidade laborativa, venha auferir remunerao menor, em decorrncia dessa reduo. Ou seja, auxlio-acidente indenizao ao segurado pela reduo de sua capacidade para o trabalho em decorrncia de acidente de qualquer natureza.

    o entendimento de Fbio Zambitte Ibrahim:

    O segurado tem uma sequela decorrente de acidente que reduziu sua capacidade laborativa da presume o legislador que este segurado ter uma provvel perda remuneratria, cabendo ao seguro social ressarci-lo deste potencial dano. Como a concesso do auxlio-acidente independe da comprovao da real perda remuneratria, evidencia-se sua natureza indenizatria, pois a indenizao paga, em geral, baseada em prejuzos presumidos, como o caso [33].

    De acordo com o art. 18, pargrafo 1, da Lei 8.213/91, somente os segurados empregados (exceto o empregado domstico), o trabalhador avulso e o segurado especial podero ser beneficirios do auxlio-acidente.

    Ademais, o valor do auxlio-acidente ser de cinquenta por cento do salrio-de-benefcio, e ser devido a partir do dia seguinte ao da cessao do auxlio-doena, independentemente de qualquer remunerao ou rendimento auferido pelo segurado. Entretanto, caso o auxlio-acidente no seja precedido de auxlio-doena, aquele devido desde a data do requerimento administrativo, ou desde a citao, caso postulado judicialmente, sem prvio requerimento administrativo. O Superior Tribunal de Justia firmou entendimento em sentido contrrio, in verbis:

    PREVIDENCIRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. BENEFCIO ACIDENTRIO. NEXO CAUSAL E INCAPACIDADE LABORATIVA DEMONSTRADOS. REVERSIBILIDADE DA MOLSTIA. IRRELEVNCIA. AUXLIO-ACIDENTE. TERMO INICIAL DO BENEFCIO. AUSNCIA DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO OU DE CONCESSO DE AUXLIO-DOENA. JUNTADA DO LAUDO PERICIAL AOS AUTOS. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO. [34]

  • O auxlio-acidente pode ser cumulado com qualquer remunerao ou benefcio previdencirio, exceto a aposentadoria ou outro auxlio-acidente.

    Por fim, cessa o auxlio-acidente por morte do beneficirio ou pela concesso de qualquer espcie de aposentadoria. Ademais, o Decreto n 3.048 de 06 de maio de 1999 (que aprovou o regulamento da Previdncia Social), em seu art. 129, extrapolando sua competncia regulamentar, instituiu nova causa de extino do auxlio-acidente, in verbis: O segurado em gozo de auxlio-acidente, auxlio-suplementar ou abono de permanncia em servio ter o benefcio encerrado na data da emisso da certido de tempo de contribuio.

    2 - DA DECISO JUDICIAL NO DIREITO BRASILEIRO

    2.1 CONSIDERAES INICIAIS

    O Estado, ao assumir a responsabilidade de dirimir os conflitos entre os indivduos, criou mecanismos aptos para tal desiderato. Para tanto, o Estado exerce to importante mister, por meio do Poder Judicirio, rgo investido da funo jurisdicional (funo de dizer o direito). Entretanto, o Estado no pode dirimir os conflitos existentes, atuando de maneira arbitrria, causando instabilidade e insegurana, da a necessidade de o juiz e as partes se subordinarem a um mtodo de atuao, denominado processo [35].

    Processo a relao jurdica de direito pblico geradora de direitos e deveres entre as partes e o juiz, com a finalidade de obter a declarao ou a atuao da vontade concreta da lei, vinculando, dessa maneira, a esse provimento, em carter definitivo, todos os sujeitos da relao processual [36].

    Ademais, processo no se confunde com procedimento. Processo relao jurdica geradora de direitos e deveres entre os sujeitos processuais, por outro lado, procedimento o modo como o processo se desenvolver, a sequncia ordenada de atos desenvolvidos em juzo.

    O processo tem a funo de resolver a lide [37], dando oportunidade s partes manifestarem-se sobre todos os atos praticados no decorrer do procedimento. Entretanto, o processo no pode existir indefinidamente, pois, nesse caso, colocam-se em risco a paz social e a segurana jurdica, to almejadas pela sociedade. Da, o juiz tem o dever de solucionar a controvrsia posta ao seu crivo, apurando os fatos e aplicando o direito ao caso, num tempo razovel. Ademais, o juiz antes de decidir, resolvendo as questes colocadas sob anlise, deve dar oportunidade para as partes manifestarem-se sobre os argumentos aportados e provas produzidas, com real possibilidade de influir no convencimento do julgador, sob pena, da deciso judicial proferida fora dos moldes acima colocados, ser considerada nula, por afrontar os princpios do contraditrio e da ampla defesa, garantidos constitucionalmente

    A deciso judicial, fruto do dilogo entre os sujeitos do processo (partes e juiz) e que resolve a questes relacionadas direta ou indiretamente com a lide, ser analisada nos tpicos seguintes.

    2.2 CONCEITO

    A Lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (que instituiu o Cdigo de Processo Civil), em seu art. 162, arrola os atos praticados pelo juiz no processo, so eles: sentenas, decises interlocutrias e despachos.

  • As sentenas so definidas no pargrafo 1 do art. 162 do CPC, in verbis: "Sentena o ato do juiz que implica alguma das situaes previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei".

    A deciso interlocutria o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questo incidente (art. 162, pargrafo 2 do CPC).

    Por fim, so despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofcio ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei no estabelece outra forma (art. 162, pargrafo 3, do CPC). Nas palavras de Ernane Fidlis dos Santos, "os despachos so provimentos do juiz, sem cunho de deciso propriamente dita. O despacho ordena o processo, d-lhe andamento, sem solucionar nenhuma questo" [38].

    Entretanto, os despachos, por no terem cunho decisrio, no so considerados deciso judicial, pois visam, apenas, dar impulso ao procedimento, no resolvendo qualquer questo e, portanto no causando qualquer prejuzo s partes envolvidas.

    Portanto, deciso judicial, de acordo com o ordenamento jurdico brasileiro, o ato pelo qual o juiz resolve uma questo, analisando ou no o mrito, extinguindo ou no o procedimento.

    Interessante notar que o fator determinante para se considerar o ato praticado pelo juiz como deciso judicial, a resoluo ou no de uma questo. Nesse caso, o juiz, ao enfrentar uma questo, resolvendo-a, estar proferindo deciso judicial, caso contrrio, estar praticando ato distinto como, por exemplo: despacho.

    Portanto, torna-se imprescindvel, para a presente pesquisa, a anlise do conceito de questo.

    Questo a afirmao de uma das partes no processo, que foi contrariada pela parte contrria, dependente de deciso por parte do juiz. Egas Dirceu Moniz de Arago define "questo" da seguinte maneira, in verbis: Os litigantes formulam no processo afirmaes, que constituem "pontos" a examinar. Se uma dessas afirmaes (ponto) contrariada pelo antagonista de quem a formulou, surge a questo, que , portanto, o "ponto controverso" [39].

    Questo , portanto, o ponto em que as partes se controvertem, dependendo, por isso, de deciso do juiz.

    As questes so de duas ordens: questo incidente e questo principal [40].

    A questo incidente o antecedente-lgico da questo principal, pois o juiz deve resolv-la antes de resolver o mrito da causa. Nesse caso, o juiz no decide sobre a questo incidente, apenas a resolve, abrindo caminho para se decidir sobre a pretenso deduzida em juzo pelo demandante. Ela (questo incidente) objeto de conhecimento do juiz, mas no compe o objeto de julgamento, por isso a questo incidente resolvida insere-se entre os fundamentos da deciso. O art. 458, inciso II, do CPC, que trata dos requisitos da sentena, corrobora esse entendimento [41].

    Por outro lado, questo principal a prpria pretenso jurdica deduzida em juzo pelo demandante na sua petio inicial e controvertida pela parte contrria, sobre a qual, necessariamente, haver deciso por parte do juiz. Diferentemente, da questo incidente, a questo principal o pedido da parte, por isso, o juiz, alm de conhec-la, dever decidir, podendo recair sobre tal questo a imutabilidade da coisa julgada material. Por isso, a

  • questo principal insere-se no dispositivo da deciso, de acordo com o art. 458, inciso III, do CPC [42].

    Ademais, no se deve confundir objeto litigioso do processo com objeto do processo. O objeto litigioso a prpria pretenso da parte deduzida em juzo, sobre o qual juiz proferir deciso, ou seja, o objeto litigioso sinnimo de questo principal. Nas palavras de Jos Rogrio Cruz e Tucci, o objeto litigioso "identifica-se com a circunstncia jurdica concreta deduzida em juzo in status assertionis, que aflora individualizada pela situao de fato contrria ao modelo traado pelo direito material [43]".

    Por outro lado, o objeto do processo, por ser mais amplo, abrange, alm da questo principal (objeto litigioso), as questes incidentes. o entendimento esposado por Sidney Sanches, in verbis:

    Por a se v que o objeto do processo no apenas o pedido do autor, ou sua pretenso processual, mas tudo aquilo que nele (processo) deva ser decidido pelo juiz. No s o objeto do judicium, mas tambm da simples cognitio. Enfim, todas as questes de fato, ou de direito, relacionados ou no, com o mrito, com o incio, o desenvolvimento e o fim do processo [44].

    As decises judiciais, ao resolverem as questes (incidentes ou principais), no direito brasileiro, podem extinguir o procedimento ( o caso de julgamento de improcedncia da pretenso do autor que j no caiba mais recurso); no extinguem o procedimento ( o caso de deferimento ou indeferimento da antecipao dos efeitos da tutela); podem resolver o mrito (julga procedente o pedido do demandante); no resolvem o mrito (falta de pressupostos processuais).

    Portanto, as decises judiciais (sentenas e decises interlocutrias), por tudo o que ficou assentado, tm por finalidade resolver as questes que decorrem, direta ou indiretamente, da pretenso das partes deduzida em juzo, extinguindo ou no o procedimento, resolvendo ou no o mrito.

    2.3 PECULIARIDADES DAS DECISES JUDICIAIS NO DIREITO BRASILEIRO

    No direito brasileiro, as decises judiciais so subdivididas em: deciso interlocutria e sentena, em primeiro grau de jurisdio (art. 162, caput, do CPC). Nos tribunais ou turmas recursais o julgamento pelo rgo colegiado recebe a denominao de acrdo (art. 163, do CPC), ademais, denomina-se deciso monocrtica aquela proferida pelo relator ou pelo Presidente ou Vice-Presidente do tribunal [45]. Por sua vez, a deciso monocrtica pode ser interlocutria ou final. Haver deciso monocrtica interlocutria quando o pronunciamento no tiver aptido para por fim ao procedimento naquela instncia, exemplo: quando o relator deferir, em antecipao dos efeitos da tutela, total ou parcialmente, a pretenso recursal (art. 527, inciso III do CPC). Por seu turno, haver deciso monocrtica final quando o pronunciamento tiver aptido para, por fim ao procedimento naquela instncia, exemplo: o relator do recurso agir em conformidade com o art. 557, caput, do CPC: "O relator negar seguimento a recurso manifestamente inadmissvel, improcedente, prejudicado ou em confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior".

    Passam-se, por conseguinte, anlise da deciso interlocutria e da sentena, espcies de deciso judicial no direito processual brasileiro.

  • De acordo com o art. 162, pargrafo 2 do CPC (dispositivo no alterado pela lei 11.232 de 22 de dezembro de 2005): "deciso interlocutria o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questo incidente".

    Como visto, a questo incidente o antecedente-lgico da questo principal, o juiz, ao resolver a questo incidente, passa a anlise da questo principal. Ademais, a questo incidente, depois de resolvida, passa a integrar a fundamentao da sentena e, por isso mesmo, no transita em julgado, podendo se rediscutida em outro processo, com as mesmas partes, mas com objeto distinto.

    O legislador, ao conceituar deciso interlocutria, considerou o seu contedo, por isso, deciso interlocutria, de acordo com o art. 162, pargrafo 2, do CPC, aquela que aprecia questo incidente. Entretanto, a deciso interlocutria no aprecia, apenas, questo incidente. Veja-se, por exemplo: o juiz ao deparar-se com pedido de antecipao de tutela, em que parcela do pedido se mostrar incontroversa no decorrer do processo (no caso em que o ru, em sua resposta, concordar com parte do pedido do autor) [46], o magistrado antecipar os efeitos da tutela, analisando parcela do mrito da causa, ou seja, nesse caso, o magistrado estar analisando a prpria questo principal. Por isso, o magistrado, por meio de deciso interlocutria (pois a deciso foi proferida no curso do procedimento) analisou o prprio mrito da causa, ou seja, a prpria questo principal, prosseguindo o procedimento para a anlise da parcela do pedido que se tornou controversa com a resposta do ru.

    O legislador, no art. 162, pargrafo 2 do CPC, disse menos do que queria, pois, de acordo com uma interpretao sistemtica do CPC e com a disciplina dispensada aos recursos, conclui-se que as decises interlocutrias apreciam tanto questes incidentes quanto questes principais, pois tais decises no tm aptido para encerrar uma fase do procedimento.

    Sabe-se que da deciso interlocutria cabe recurso de agravo e da sentena recurso de apelao. Ora, se no se tratar de deciso interlocutria o ato judicial que aprecia parcela do pedido que se tornou incontroversa (questo principal) sem, no entanto, encerrar uma fase do procedimento, seria sentena, com cabimento de recurso de apelao? Mas, como admitir o cabimento de apelao nesse caso, porquanto os autos devem permanecer em primeiro grau para a soluo da parcela do pedido que se tornou controversa, apelao por instrumento? Nesse caso, estar-se-ia afrontando o princpio da tipicidade dos recursos que determina que os recursos devam ser criados por lei e, no presente caso, a legislao no criou o recurso de apelao por instrumento. Portanto, o ato judicial que aprecia questo principal, sem, no entanto, encerrar uma fase do procedimento, a deciso interlocutria.

    Por isso, deciso interlocutria o ato judicial que aprecia tanto questo incidente, quanto questo principal, sem, no entanto, encerrar uma fase do procedimento.

    A sentena, de acordo com a antiga redao do pargrafo 1 do art. 162 do CPC, era conceituada como ato do juiz que pe termo ao processo, decidindo ou no o mrito da causa.

    Com acerto, Marcus Vincius Rios Gonalves situou bem a problemtica, in verbis:

    A lei no levava em considerao o contedo do ato para conceitu-lo como sentena, mas sim sua finalidade, No era relevante que o juiz tivesse apreciado o mrito, bastando que extinguisse o processo. Com isso, ficavam superadas as notrias dificuldades do CPC de 1939,

  • que utilizava como critrio o contedo do ato. Como este gerava frequentes divergncias, eram comuns as dificuldades em relao ao recurso apropriado [47].

    Entretanto, o legislador ordinrio, por meio da Lei n 11.232/05, modificou o pargrafo 1 do art. 162, do CPC, para conceituar sentena da seguinte maneira: "Sentena o ato do juiz que implica alguma das situaes previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei".

    Interessante notar que com a antiga redao do pargrafo 1 do art. 162, do CPC, para se conceituar sentena, adotava-se o critrio finalstico, ou seja, deciso que punha termo ao processo, com ou sem julgamento de mrito, era considerada sentena. Em outros termos, para a redao antiga do pargrafo 1 do art. 162 do CPC, sentena punha fim ao processo, independentemente, de se analisar o mrito da causa.

    Mas, com a mudana legislativa ocorrida por meio da lei 11.232/05, sentena passou, aparentemente, a ser definida pelo seu contedo. Sentena, ento, a deciso que implica em uma das situaes previstas nos artigos 267 e 269, do CPC.

    O art. 267, do CPC elenca, em seus incisos, as causas de extino do processo, sem resoluo de mrito [48]. J o art. 269, modificado pela Lei 11.232/05, indica, em seus incisos, as causas que se resolvero o mrito, entretanto sem fazer meno extino do processo.

    Antes da modificao acima citada, o art. 269 do CPC fazia meno ao julgamento de mrito com a consequente extino do processo.

    A modificao da redao do art. 269, caput, do CPC, teve por finalidade, em homenagem aos princpios da celeridade e economia processuais, deixar claro que no se extingue mais o processo, depois de proferida sentena que analisou o mrito, pois se passa imediatamente fase executiva, dentro da mesma relao jurdica processual, fenmeno denominado pela doutrina de "sincretismo processual" [49]. Por isso, a sentena que julgar procedente o pedido do autor no mais extingue o procedimento, pois d ensejo a imediata execuo do julgado, dentro da mesma relao jurdica processual, independente da propositura de nova ao visando satisfao do direito reconhecido na fase de conhecimento.

    No outro o entendimento de Fredie Didier Jnior, Paula Sarno Braga e Rafael de Oliveira, in verbis:

    O objetivo da alterao do texto foi ressaltar que a sentena no mais extingue o processo, tendo em vista que toda sentena de prestao (sentena que reconhece a existncia de um direito a uma conduta material consistente num fazer, no-fazer, na entrega de coisa ou pagamento de quantia) agora d ensejo execuo imediata, sem necessidade de instaurao de um outro processo (de execuo) com esse objetivo. por isso que tambm foi alterado o art. 463 do CPC, para retirar a meno que se fazia ao "encerramento da atividade jurisdicional" com a prolao da sentena. De fato, proferida a sentena, o juiz no mais encerra a sua atividade jurisdicional, pois dever continuar a atuar, s que agora na fase executiva [50].

    Entretanto, a mudana legislativa que ocorreu, por intermdio da Lei 11.232/05, induziu alguns doutrinadores a conceituarem sentena pelo seu contedo. Posiciona-se nesse sentido Marcus Vincius Rios Gonalves, in verbis:

  • A sentena volta a ser conceituada pelo contedo, e no pela aptido de encerrar o processo em primeiro grau. Sempre que o juiz examinar algum dos pedidos formulados na inicial, ele sentenciar, ainda que o processo prossiga em relao aos demais [51].

    Ora, se toda deciso judicial que implicasse uma das situaes mencionadas pelos arts. 267 e 269, do CPC fosse sentena, da deciso que examinasse parcela do pedido que se tornasse incontroversa, seguindo-se o processo at o final para a soluo da parcela do pedido que se tornou controversa ou que exclusse litisconsorte por ilegitimidade ad causam, caberia qual recurso: apelao ou agravo?

    Marcus Vincius Rios Gonalves, adepto da corrente que entende ser a sentena conceituada pelo seu contedo, tenta solucionar a presente questo, in verbis:

    O que traz perplexidade que o recurso cabvel continua sendo a apelao. Se o juiz julgar um dos pedidos, a parte inconformada teria que apelar, mas os autos no poderiam subir, pois o processo deve prosseguir em primeiro grau, para o exame dos demais. Para que no haja problemas processuais insolveis, melhor que se considere cabvel a apelao apenas contra sentena que efetivamente ponha fim ao processo em primeiro grau de jurisdio; contra as que no o faam, isto , que julguem um dos pedidos sem encerrar o processo, continuar cabvel o agravo [52].

    Entretanto, para a correta interpretao de um determinado instituto jurdico, deve-se ter em conta o sistema em que tal instituto esteja inserido. No presente caso, as decises judiciais so estruturadas de acordo com o sistema recursal, pois da sentena caber apelao (art. 513 do CPC) e da deciso interlocutria caber agravo (art. 522 do CPC).

    Por isso, as concluses do autor acima citadas so equivocadas, porquanto inimaginvel reconhecer que da sentena caberia recurso de agravo. O texto do art. 513 do CPC claro ao afirmar que da sentena caber apelao.

    Ademais, de acordo com o princpio da unirrecorribilidade das decises judiciais, cada deciso deve ser atacada por um nico recurso. E, no presente caso, da sentena proferida nos autos, cabero duas espcies de recurso, dependendo do momento em que for proferida. Caso proferida no decorrer do procedimento caber agravo, entretanto, se proferida ao final da fase de conhecimento, caber recurso de apelao. Situao insustentvel face ao sistema processual civil brasileiro, como visto.

    Portanto, nesse caso, sentena toda deciso judicial que encerra uma fase do procedimento, independentemente do seu contedo.

    O art. 267, do CPC arrola as causas em que o juiz no analisa a pretenso do demandante. Entretanto, deve-se fazer distino entre a deciso que extingue o processo da que no extingue o processo. Nesta, o juiz acolhendo o argumento da falta de pressuposto processual ou condio de ao, profere deciso, mas, ao contrrio da redao do art. 267, caput, do CPC, no extingue o processo, por exemplo: excluso de litisconsorte por ilegitimidade ad causam, nesse caso, o processo seguir com relao ao litisconsorte no excludo. Por outro lado, acolhendo o argumento da falta de pressuposto processual ou condio da ao, profere deciso com aptido para extinguir o processo, por exemplo: quando o juiz acolher alegao de coisa julgada, pois, nesse caso, o processo, caso no interposto recurso no prazo legal, ser extinto sem julgamento de mrito.

    No primeiro caso, a excluso do litisconsorte por ilegitimidade ad causam dar-se- por meio de deciso interlocutria, pois a deciso judicial, nesse caso, no tem o condo de

  • extinguir o processo. Por outro lado, a deciso que acolhe a alegao de coisa julgada, com aptido de extinguir o processo sem resoluo de mrito, considerada sentena.

    Portanto, nesse caso, somente ser sentena a deciso judicial que tiver aptido para extinguir o processo sem resoluo do mrito. Caso a deciso no tiver aptido de encerrar o processo, tal ato ser considerado deciso interlocutria.

    Por isso, diferentemente do que preceitua o pargrafo 1 do art. 162 do CPC, modificado pela Lei 11.232/05, nem todo o ato do juiz que implica uma das causas elencadas pelo art. 267 do CPC pode ser considerado sentena, pois caso a deciso no tenha aptido para extinguir o processo ser considerada deciso interlocutria.

    Nesse caso, sentena toda deciso judicial que, acolhendo uma das causas elencadas pelo art. 267 do CPC, tem aptido para extinguir o processo, sem a anlise do mrito.

    Firmadas essas premissas, a sentena pode ser conceituada, de acordo com a nova sistemtica, como a deciso judicial que, analisando ou no o pedido do demandante, em conformidade com os arts. 267 e 269 do CPC, encerra uma fase do procedimento com a anlise do mrito, ou extingue a prpria relao jurdica processual sem resoluo de mrito, em primeiro grau de jurisdio.

    2.4 ELEMENTOS DA DECISO JUDICIAL

    2.4.1 CONSIDERAES INICIAIS

    Analisar-se- a deciso judicial sob dois aspectos: o material e o formal.

    O aspecto material diz respeito ao ato de inteligncia praticado pelo magistrado, tambm denominado estrutura lgica. Por seu turno, o aspecto formal relaciona-se com as partes que compem a deciso judicial.

    Passa-se anlise do aspecto material da deciso judicial.

    Teori Albino Zavascki preceitua que:

    (...) o fenmeno da atuao das normas no plano social comporta trs momentos bem distintos: primeiro, o da formulao abstrata dos preceitos normativos; segundo, o da definio da norma para o caso concreto; e terceiro, o da execuo da norma individualizada [53].

    A formulao abstrata da norma monoplio do Estado-legislador. A definio da norma ao caso concreto e sua consequente execuo podem dar-se de forma voluntria ou coercitiva. Caso as partes envolvidas no se entendam quanto norma a ser aplicada para aquele caso concreto, ou com respeito prpria execuo da norma individualizada, o Estado chamado a intervir, por meio da funo jurisdicional [54].

    A deciso judicial o instrumento pelo qual o Estado, na sua funo jurisdicional, tem disposio, para declarar a norma individualizada.

    Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael de Oliveira entendem, por isso, que a sentena

    (...) um ato jurdico que contm uma norma individualizada, ou simplesmente norma individual, definida pelo Poder Judicirio, que se diferencia das demais normas jurdicas (leis,

  • por exemplo) em razo da possibilidade de tornar-se indiscutvel pela coisa julgada material [55].

    Por ser a sentena (deciso judicial em geral) um ato de inteligncia, o magistrado deve seguir um caminho, antes de encontrar a norma individualizada que disciplinar a relao jurdica controvertida. Primeiramente, o juiz deve analisar os fatos alegados pelas partes (neste caso, o magistrado deve valorar as alegaes de acordo com as provas que foram produzidas em contraditrio), depois, deve encontrar a norma jurdica abstrata aplicvel aos fatos alegados e provados e, por fim, subsumir os fatos alegados e provados norma jurdica abstrata, com o escopo de disciplinar a relao jurdica deduzida em juzo. Arruda Alvim denomina tal fenmeno de "estrutura lgica da sentena" (deciso judicial em geral), in verbis:

    A sentena assenta-se em fato ou fatos, dando aos mesmos uma significao no universo jurdico, com base em valores contidos na lei. Assim, temos, fundamentalmente, de uma perspectiva lgico-formal, na sentena, a sequncia silogstica da norma, do fato e da concluso decorrente da subsuno do fato norma (primria) e da sucessiva aplicao da norma (secundria) ao fato. Por isso, se diz que o processo judicial tem estrutura lgica. exatamente neste instante em que proferida a sentena que tal atividade lgica assume o momento fundamental de sua aplicao, no campo do processo [56].

    Entretanto, no basta que o juiz, simplesmente, subsuma os fatos alegados e provados lei aplicvel, pois toda norma jurdica deve estar em conformidade com a CF, nesse caso, fala-se em supremacia da Constituio sobre a legislao infraconstitucional. De acordo com o postulado de direito constitucional, a supremacia da Constituio decorre do fato de as Constituies organizarem os poderes do Estado, inclusive o Poder legislativo que compete promulgar as leis que disciplinaro as relaes jurdicas dos indivduos e do prprio Estado e, ademais, consagram, tambm, os direitos e garantias fundamentais do homem. Portanto, a legislao infraconstitucional deve estar conforme a Constituio, caso contrrio, o juiz, no caso concreto, poder afastar a aplicabilidade da lei por inconstitucionalidade decorrente da falta de simetria entre esta e a Constituio, por meio do controle difuso de constitucionalidade.

    Em suma,o juiz deve fazer o controle de constitucionalidade das leis, antes de aplic-las ao caso concreto, alm da observncia da regra da proporcionalidade em caso de conflito entre direitos fundamentais. Eis a lio de Luiz Guilherme Marinoni, que corrobora esse entendimento, in verbis:

    Se nas teorias clssicas o juiz declara a lei ou criava a norma individual a partir da norma geral, agora ele constri a norma jurdica a partir da interpretao de acordo com a Constituio, do controle de constitucionalidade e da adoo da regra do balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais no caso concreto [57].

    Portanto, de acordo com as premissas firmadas neste tpico, mais conveniente falar em subsuno dos fatos ao direito, pois "direito"tem conotao mais ampla, no ficando restrito ao conceito de lei, abrangendo, por conseguinte,todo o sistema jurdico vigente em um determinado lugar, num determinado perodo histrico.

    Passa-se agora anlise do aspecto formal da deciso judicial no direito brasileiro.

  • O art. 458 do CPC preceitua que a "sentena" composta por trs partes. Entretanto, apesar de referir-se somente sentena, aplica-se o dispositivo ora em comento a toda e qualquer deciso judicial.

    Art. 458. So requisitos [58] essenciais da sentena:

    I o relatrio, que conter os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do ru, bem como o registro das principais ocorrncias havidas no andamento do processo;

    II os fundamentos, em que o juiz analisar as questes de fato e de direito;

    III o dispositivo, em que o juiz resolver as questes, que as partes lhe submeterem.

    Portanto, a deciso judicial compe-se de, em regra, relatrio, fundamentao ou motivao e dispositivo.

    2.4.2 RELATRIO

    O primeiro elemento da deciso judicial o relatrio onde o juiz descreve, de modo resumido, o que se passou no procedimento. O relatrio exigido nas sentenas e nos acrdos, pois, de acordo com o art. 165 do CPC, dispensado nas decises interlocutrias. Ademais, o art. 38 da Lei federal n 9.099 de 26 de setembro de 1995 (que instituiu os Juizados Especiais Cveis e Criminais) dispensou o relatrio nas sentenas proferidas naquele procedimento [59].

    O relatrio conter os nomes das partes, o resumo da pretenso do autor e seus fundamentos, a defesa do ru, alm das principais ocorrncias havidas no processo. O juiz deve demonstrar, por meio do relatrio, que, ao decidir, teve conhecimento de todas as alegaes das partes do processo. Nas palavras de Marcus Vinicius Rios Gonalves, o relatrio consectrio da garantia do devido processo legal [60].

    A falta de relatrio, nos casos em que este exigido, acarreta a nulidade da deciso judicial.

    2.4.3 - FUNDAMENTAO

    de conhecimento geral que a natureza humana limitada e, portanto, no se pode buscar, por meio de qualquer ato humano, em especial, por meio da deciso judicial, a verdade material ou absoluta. Busca-se, por consequncia, a verdade que seja a mais prxima da verdade material, verdadeiro juzo de verossimilhana (semelhana da verdade). Eis o entendimento de Carlos Alberto lvaro de Oliveira:

    A tendncia atual inclina-se, decididamente, no sentido de libertar o juiz das cadeias formalsticas, tanto na avaliao da prova quanto na investigao dos fatos da causa, facilitando, a formao de sua convico com a verdade possvel, prpria da condio humana, que ganha no domnio processual a dimenso de pura verossimilhana [61].

    Da vislumbra-se a necessidade de fundamentao das decises judiciais, pois, por meio da motivao, as partes envolvidas, que sofrero os seus efeitos, podero, caso no se conformarem, recorrer s instncias superiores. Nesses casos, a fundamentao ter funo endoprocessual. Esse entendimento esposado por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, in verbis:

  • (...) fala-se numa funo endoprocessual segundo a qual a fundamentao permite que as partes, conhecendo as razes que formaram o conhecimento do magistrado, possam saber se foi feita uma anlise apurada da causa, a fim de controlar a deciso pro meio dos recursos cabveis, bem como para que os juzes de hierarquia superior tenham subsdios para reformar ou manter as decises [62].

    Alm da funo endoprocessual acima descrita, a fundamentao exerce funo exoprocessual. A funo exoprocessual refere-se, essencialmente, ao controle difuso da deciso judicial feito pelo povo, de acordo com o sistema democrtico adotado pela CF. Vejam-se as lies de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira:

    Fala-se ainda numa funo exoprocessual ou extraprocessual, pela qual a fundamentao viabiliza o controle da deciso do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo nome a sentena pronunciada. No se pode esquecer que o magistrado exerce parcela do poder que lhe a atribudo (o poder jurisdicional), mas que pertence, por fora do pargrafo nico do art. 1 da Constituio Federal, ao povo [63].

    Por isso, a CF, em seu art. 93, IX, determina a fundamentao de qualquer deciso judicial, cominando pena de nulidade para o caso de descumprimento de tal preceito. O art. 93, inciso IX da CF tem natureza jurdica de direito fundamental. No somente a falta de fundamentao que acarreta a nulidade, equipara-se falta de fundamentao a motivao deficiente, vaga etc.

    Entretanto, o art. 165 do CPC admite fundamentao das decises interlocutrias de forma concisa.

    O art. 458, inciso II do CPC, determina que nos fundamentos, o juiz analise as questes de fato e direito.

    Primeiramente, o magistrado analisar as questes processuais, tais como: condies da ao, pressupostos processuais etc. Caso o processo esteja regularmente constitudo, as partes sejam legtimas, haja interesse de agir, o pedido seja juridicamente possvel, o magistrado passar a analisar os fundamentos da demanda e da defesa; caso contrrio, o juiz dever proferir sentena que ponha fim relao jurdica processual sem a anlise do mrito.

    Para a anlise dos fundamentos da demanda e da defesa, o magistrado dever imiscuir-se nas provas carreadas aos autos do processo pelas partes ou de ofcio pelo prprio julgador [64].

    Nesse caso, o juiz deve analisar todos os fundamentos da demanda e da defesa, sob pena de nulidade da deciso. De acordo com a funo endoprocessual da fundamentao, visto acima, as partes podem, ao ter conhecimento dos motivos que levaram o magistrado a julgar desta ou daquela forma, recorrer s instncias superiores, por isso, o magistrado analisar todas as provas produzidas, alm de indicar por que as alegaes da parte derrotada no foram suficientes para lhe formar o convencimento a seu favor [65].

    Entretanto, no necessrio que o juiz, toda vez, aprecie todos os fundamentos da demanda e da defesa suscitados. o caso, por exemplo, de o pedido do autor basear-se em dois fundamentos distintos; caso o juiz acolha um dos fundamentos e julgue procedente o pedido, no precisar analisar o outro fundamento, mas somente poder julgar improcedente o pedido caso aprecie e repila os dois fundamentos alegados [66]. Aplicam-se tais lies aos fundamentos suscitados pela defesa.

  • Cumpre salientar que as questes analisadas na motivao da sentena ou acrdo no transitam em julgado, podendo ser rediscutidas em outro processo, com as mesmas partes, mas com objeto distinto. o que preceitua o art. 469 do CPC, in verbis:

    Art. 469. No fazem coisa julgada:

    I os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentena;

    II a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentena;

    III a apreciao da questo prejudicial, decidida incidentemente no processo.

    Por fim, a deciso judicial no fundamentada ou com fundamentao deficiente ser passvel de anulao, por conter vcio de forma insanvel (error in procedendo).

    2.4.4 DO DISPOSITIVO

    A parte dispositiva da deciso judicial ondeo juiz, aps a fundamentao, analisar o objeto do processo (questes incidental ou principal). O dispositivo , por seu turno, o terceiro elemento da deciso judicial, onde o magistrado poder resolver, em carter definitivo, a pretenso formulada pelo demandante. Nesse caso, no cabendo mais de recurso, a parte dispositiva ficar acobertada pela coisa julgada nos limites das questes decididas (art. 468, do CPC).

    De acordo com Marcus Vincius Rios Gonalves, referindo-se especificamente sobre a sentena, o dispositivo:

    (...) a parte final da sentena, em que o juiz responde ao pedido formulado pelo autor, acolhendo-o ou rejeitando-o. Quando a sentena meramente terminativa, o magistrado pe fim ao processo sem apreciar o mrito, isto , sem analisar o pedido do autor, seja porque o processo no cumpriu os requisitos indispensveis para seu desenvolvimento regular, seja por que faltava uma das condies para o exerccio do direito de ao [67].

    Ou seja, no dispositivo da sentena ou do acrdo pode o juiz tanto acolher ou rejeitar o pedido formulado pelo autor, como pode emitir provimento meramente terminativo, deixando o objeto litigioso intocado, extinguindo, por consequncia, o processo, sem resoluo do mrito. No primeiro caso, recair sobre a parte dispositiva, caso no caiba mais recurso, a imutabilidade da coisa julgada; j no segundo caso, a questo poder ser apreciada noutro processo.

    No dizer de Humberto Theodoro Jnior, "no dispositivo, o juiz poder, conforme o caso: anular o processo, declarar sua extino, julgar o autor carecedor da ao (ilegitimidade ad causam), ou julgar o pedido procedente ou improcedente" [68].

    H, ainda, as decises interlocutrias que, na sua parte dispositiva, o magistrado analisar tanto questo incidente como a questo principal, como visto. No primeiro caso, no h que se falar em coisa julgada, pois a questo poder ser rediscutida em outro processo; j no segundo, o dispositivo fica acobertado pela coisa julgada, em caso de no interposio do recurso cabvel.

    O ato praticado pelo juiz sem a parte dispositiva, ao contrrio do relatrio e da fundamentao, uma no deciso (deciso inexistente), pois no h, no caso, preceito

  • emanado pelo Estado, regulando a relao jurdica entre as partes. Nesse caso, o objeto litigioso poder ser discutido em outro processo, independentemente de interposio de recurso. Portanto, h denegao de justia, pois o magistrado deixou de apreciar a pretenso formulada pela parte.

    2.5 DAS DECISES ULTRA PETITA, EXTRA PETITA E CITRA PETITA

    2.5.1 INTRODUO

    O art. 2 do CPC determina que "nenhum juiz prestar a tutela jurisdicional seno quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais". Do citado artigo decorre o principio da demanda que significa que a jurisdio s atuar em caso de provocao da parte interessada, ou seja, o magistrado no poder agir de ofcio. Humberto Theodoro Jnior assevera que o princpio:

    (...) se inspira na exigncia de imparcialidade do juiz, que restaria comprometida caso pudesse a autoridade judiciria agir por iniciativa prpria na abertura do processo e na determinao daquilo que constituiria o objeto da prestao jurisdicional [69].

    Como corolrio do princpio da demanda (tambm denominado de princpio da inrcia da jurisdio), o magistrado dever decidir de acordo com o pedido formulado pelas partes. Em outros termos, a deciso judicial dever corresponder, exatamente, quilo que as partes formularam nos autos do processo. Est-se diante do princpio da congruncia.

    O CPC, arts. 128 e 460, refora a ideia de que defeso ao juiz proferir deciso em desconformidade com as pretenses das partes, em simetria com o princpio da congruncia, in verbis: "Art. 128 O juiz decidir a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questes, no suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. Art. 460 defeso ao juiz proferir sentena, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o ru em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado."

    O princpio da congruncia deita suas razes na fase em que o individualismo reinava em todo mundo civilizado, pois, neste perodo, existia o postulado da mnima interveno estatal que consistia, basicamente, na impossibilidade do Estado intervir nos assuntos que diziam respeito aos particulares. Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, em breve sntese, informam a origem histrica do princpio ora em comento, in verbis:

    Em que pese deitar suas razes no Direito Romano, foi a partir do chamado Estado liberal que esse princpio ganhou maior nfase, em funo da supervalorizao do princpio dispositivo, do qual corolrio. O individualismo ento reinante se contrapunha ideia de intervencionismo estatal, razo por que o juiz, como longa manus do Estado, costumava ser, por dever e ideologia, um sujeito inerte e passivo, a quem competia sempre aguardar a provocao da parte para praticar atos no processo [70].

    A falta de correspondncia entre a pretenso das partes e a deciso judicial viola os princpios da ampla defesa, contraditrio e dispositivo. Marcus Vincius Rios Gonalves adota idntico posicionamento ao asseverar que, "a ausncia de estrita correspondncia entre a deciso e o pedido, com seus fundamentos, ofende o princpio da ampla defesa, do contraditrio e o dispositivo" [71].

    Com referncia ao princpio do contraditrio, vejam-se os ensinamentos de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael de Oliveira:

  • O princpio da congruncia , tambm, uma consequncia do contraditrio: a parte tem o direito de manifestar-se sobre tudo o que possa interferir no contedo da deciso; assim, o magistrado deve ater-se ao que foi demandado exatamente porque, em relao a isso, as partes puderam manifestar-se [72].

    Portanto, a falta de congruncia entre a demanda e a deciso judicial ocorrer, em sntese, quando no houver correspondncia entre o que foi alegado e discutido pelas partes no processo e o que foi apreciado pelo magistrado no momento de decidir. Pois, em conformidade com o princpio democrtico, para que a deciso judicial seja legtima, as partes devem participar da construo dos provimentos judiciais.

    2.5.2 DECISO ULTRA PETITA

    Como visto no tpico anterior, de acordo com o princpio da congruncia, corolrio do princpio da demanda, a deciso judicial deve manter correspondncia com a pretenso das partes. Entretanto, em no raros casos, o juiz, ao decidir, extrapola os limites do pedido ou da fundamentao suscitada, causando prejuzo s partes.

    Dessa forma, o magistrado, ao analisar o pedido e a fundamentao de fato suscitada pelas partes, pode conceder mais que o pedido, alm do pedido ou menos que o pedido. Nesses casos, as decises judiciais so denominadas, respectivamente, de ultra petita, extra petita e citra petita.

    A deciso ultra petita quando o juiz concede mais que o pleiteado pelo demandante, ou quando, alm de apreciar fundamento de fato alegado, aprecia outro fundamento no suscitado pelas partes.

    Para Marcus Vincius Rios Gonalves, a sentena (deciso) ultra petita quando "o juiz aprecia o pedido e os fundamentos apresentados, mas concede quantidade superior postulada" [73].

    Nesse caso, o magistrado, alm de conceder o que fora pleiteado pelo demandante, concede algo mais, um plus. Ou seja, o juiz concede o que foi pedido pela parte, de acordo com o princpio da congruncia, mas concede, tambm, o que no foi pleiteado, por exemplo: o autor pleiteia indenizao por danos materiais no importe de cem mil reais e o juiz concede, na sentena, a ttulo de indenizao, o montante de cento e cinquenta mil reais.

    A deciso ultra petita relaciona-se tanto ao pedido imediato quanto ao pedido mediato.

    Para Moacir Amaral Santos, "o pedido imediato consiste na providncia jurisdicional solicitada: sentena condenatria, declaratria, constitutiva ou mesmo providncia executiva, cautelar ou preventiva", por outro lado, "o pedido mediato a utilidade que se quer alcanar pela sentena, ou providncia jurisdicional, isto , o bem material ou imaterial pretendido" [74].

    O pedido imediato a prpria providncia jurisdicional pretendida pelo demandante. No ordenamento jurdico brasileiro, as providncias jurisdicionais possveis so: as decises declaratrias, constitutivas, condenatrias, mandamentais e executivas "lato sensu". A deciso ultra petita exurge do pedido imediato quando, por exemplo: a parte pede a declarao de um direito, e o juiz, alm de declarar, condena [75]. Nesse caso, a deciso ultra petita, porque o juiz concedeu alm da tutela pretendida pelo autor, em detrimento da parte r.

  • J o pedido mediato o prprio bem da vida disputado pelas partes, seja ele material (automvel) ou imaterial (crdito). Por seu turno, a deciso ultra petita exsurge do pedido mediato quando, por exemplo: o demandante pede indenizao por danos materiais no importe de cem mil reais, e o magistrado concede, a ttulo de indenizao, a importncia de cento e vinte mil reais, conforme visto acima, em detrimento da parte contrria.

    Entretanto, no se considera deciso ultra petita aquela que aprecia pedidos denominados "implcitos" [76]. Nesse caso, o juiz, ao apreciar o pedido implcito, no estar proferindo deciso ultra petita, pois o dever de analis-lo decorre diretamente da lei, independendo da vontade do demandante. Portanto, o pedido implcito exceo ao princpio da demanda. Cite-se, como exemplo, o seguinte caso: o juiz, ao condenar o ru ao pagamento de uma dvida qualquer, condena, tambm, por fora de lei, ao pagamento dos juros legais [77].

    Alm do mais, a deciso ultra petita quanto o magistrado analisa, alm da fundamentao de fato alegada pelas partes, fundamentao de fato no suscitada pelas partes e no cognoscvel de ofcio.

    Os fundamentos de fato compem a causa de pedir [78].

    Os fatos ao darem suporte s pretenses podem, por um lado, constituir o direito do demandante ou, por outro, podem impedir, extinguir ou modificar esse mesmo direito. Ou seja, dos fundamentos de fato o juiz extrair a consequncia jurdica determinada pela norma aplicvel ao caso concreto. Por isso, os fatos devem ser alegados e provados pelas partes. Caso o juiz, ao decidir, considere, alm dos fatos alegados e provados, fatos outros provados nos autos, mas no suscitados pelas partes e no cognoscvel de ofcio, a deciso, assim proferida, considerada ultra petita. Porquanto, se ao decidir, o juiz considera fatos, apesar de provados, no alegados pelas partes e no cognoscvel de ofcio, o magistrado estar ofendendo os princpios do contraditrio e da ampla defesa.

    A afronta aos princpios do contraditrio e da ampla defesa patente, pois o magistrado, ao decidir de determinada forma, a