João Quartim de Moraes, “Sobre as ‘Origens da dialética do trabalho’”

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    D O C U M E N T O S

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    Nmero 4 / mayo 2016

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    Sobre as (*)1

    (*) Origens da Dialtica do Trabalho, So Paulo, Difuso Europeia do Livro, 1966.

    Joo Quartim de Moraes

    Como ajustar contas com a dialtica? Pelo fato mesmo de se propor este objetivo emOrigens da Dialtica do Trabalho, o prof. Giannotti obrigou-se a definir um mtodo de estudo domtodo dialtico. Embora nossa inteno seja realizar uma anlise histrica, norenunciaremos ao estudo sistemtico da questo. Se passamos pela histria porque... cumpreestabelecer... como Marx, no incio de sua atividade cientfica, encaminhou o problema2. Eledistingue, portanto, um projeto maior, de dar um balano geral da dialtica marxista3 e umainvestigao histrica exigida no pela natureza mesma deste projeto mas porque existe umaradical oposio epistemolgica entre os textos de juventude e os da maturidade4.

    Assim, o fato contingente da oposio entre o jovem Marx ainda um tanto hegeliano e ovelho Marx j plenamente marxista que parece tornar necessria uma digresso histricapreliminar ao trabalho de sistematizao da dialtica. muito a contragosto5 que o prof.Giannotti se resigna a esse rodeio.

    Mas essa digresso histrica seria realmente necessria? Na verdade, a oposio radicalentre o Marx dos Manuscritos e o do Capital, em vez de obrigar o estudioso a passar peloprimeiro para chegar ao segundo, deveria, ao contrrio, dispens-lo desse esforo. Com efeito,a sistematizao de um pensamento s depende de um trabalho prvio de reconstituiohistrica, quando no possvel determinar com segurana as diferentes fases de sua trajetria. o que ocorreu, por exemplo, com os filsofos gregos, a respeito dos quais foi necessriodiscutir se o conjunto da obra de cada um deles poderia ou no ser considerado como

    representando ummesmosistema. Mas quando se sabe que um determinado grupo de escritosno corresponde ao pensamento acabado do autor, mas a uma fase posteriormente superada,quando portanto possvel separar com segurana os escritos de juventude dos escritosdefinitivos, porque ir buscar naqueles os germes ainda mal desenhados da teoria que estesexibem clara e distintamente? Se meu projeto ler O Capital, mais razovel abrirdiretamente O Capital que ir decifrar seus prenncios nos Manuscritos. Se o prof.Giannotti preferiu ou foi levado a estudar o jovem Marx, sua deciso se prende no constatao alis banal de que em Marx como em Plato, Aristteles, Kant e empraticamente todos os filsofos a obra de maturidade no est para a obra de juventudeassim como um texto definitivo est para o seu rascunho, mas h uma dificuldade muito maisradical que pe em questo a possibilidade mesma de uma dialtica marxista, seja ela primitiva

    ou definitiva: a noo de materialismo dialtico no em si uma contradio?Frequentemente ouvimos dizer que coube a Marx, a tarefa de retirar o contedoreacionrio do mtodo revolucionrio e inverter o procedimento de Hegel, pondo a matria no

    1 Teoria e Prtica, n.3, 1967, p. 83-102. (So Paulo/ Brasil).2 Origens da Dialtica do Trabalho, So Paulo, Difuso Europeia do Livro, 1966, p. 10.3 Ibidem, p. 10.4 Ibidem, p. 10.5 Ibidem, p. 10.

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    lugar do esprito. Basta entretanto atentar aos problemas para os quais a dialtica foidesenvolvida para convir na enorme dificuldade desta tentativa. Como possvel pensar umaforma de investigao independente de seu contedo quando se visa precisamente confluncia de ambos?1 Esta a verdadeira razo da opo metodolgica do prof. Giannotti.No a ausncia de continuidade entre os Manuscritos e O Capital que h de colocar

    problemas de mtodo para o marxista ou marxlogo. Porque ou seu projeto descrever atrajetria intelectual de Marx, e ento caber analisar as teses do jovem Marx, e mostrar comoo Marx dos Manuscritos se converte no Marx de O Capital, ou ento sistematizar.Evidentemente, tal sistematizao no precisa ser a do Marx definitivo; tambm o jovem Marx sistematizvel. Mas preciso optar por um dos dois Marx (e o prof. Giannotti desde o incioadmite que h dois), se o que se pretende fazer obra de sistematizao. Ora, o projeto doprof. Giannotti de sistematizar; seria pois de esperar que ele optasse ou pelo sistema dojovem Marx ou pelo sistema do Marx definitivo. Consciente porm de que todo discurso sobreMarx ser ideolgico se no partir da explicitao do mtodo marxista, ele adia a tarefa desistematizao para e aui (sic, aqui) que no mais o seguimos recolocar o problema dahistriadas ideias filosficas de Marx, quando a nica questo prvia ao estudo do sistema era adascondies depossibilidadedo materialismo dialtico.

    Claro que o prof. Giannotti poderia responder que o estudo destas condies depossibilidade inseparvel da anlise da dialtica primitiva, tal como vem exposta nosManuscritos. Admitamos, para argumentar, que este ponto de vista seja verdadeiro. Noseria possvel definir com rigor o materialismo dialtico ou mais genericamente, a dialticamarxista sem estudar os textos de juventude. Mas qual seria o resultado deste estudo? Se bemsucedido, proporcionar-nos-ia uma definio do materialismo dialtico na obra dejuventude; semal sucedido, concluiria negativamente, decidindo que o jovem Marx nada mais fez quemisturar a certas opes polticas revolucionrias, um jargo tomado de emprstimo filosofiada moda, o hegelianismo. Em qualquer um dos dois casos, nenhum passo efetivo teria sidodado no sentido da explicitao do mtodo de O Capital. Porque, como insiste o prof.Giannotti, os Manuscritos e O Capital pertencem a universos diferentes do discurso,

    existindo entre ambos radical oposio2. Assim, ainda na hiptese favorvel de que asistematizao dos Manuscritos conduza a uma formulao rigorosa de materialismodialtico, este materialismo dialtico ser no o de O Capital, mas o dos Manuscritos, enossa ignorncia de O Capital continuar praticamente a mesma.

    Colocar a questo crtica sobre a possibilidade de uma dialtica materialista comomtodo de O Capital implica em:

    1) definir o que significa em geral um mtodo dialtico(tarefa bem mais difcil do que a demostrar, como fez Sartre em Materialismo e revoluo, o queno dialtica);

    2) explicitar o mtodo efetivode O Capital (que Marx chama repetidas vezes de mtododeanlise);

    3) decidir se essemtodo efetivodialtico.Ora, a posio do prof. Giannotti com relao a esta tarefa, ambgua. Movido, de um

    lado, por uma exigncia de rigor cientfico cuja presena se faz sentir do comeo ao fim deOrigens da Dialtica do Trabalho, ele insiste na prioridade da questo crtica. Mas de outro lado, ao

    1 Ibidem, p. 9.2 Ibidem, p. 10.

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    faz-la depender de um prvio exame da dialtica primitiva, ele d a impresso de quererconciliar a todo custo a necessidade que sentem os marxistas e progressistas do mundo inteirode procurar a legitimao terica da prtica do marxismo1 com um desgnio tcnico euniversitrio de resolver definitivamente a questo jovem Marx2.

    Esta ambigidade de projeto ser responsvel pela ambiguidade do mtodo. Com

    efeito, num estudo histrico, no se pergunta pelas condies de possibilidade de todomaterialismo dialtico que venha a se apresentar como cincia. O historiador da filosofia temde partir dofato de que Feuerbach e o jovem Marx se propuseram a elaborao de umadialtica concreta, tentando fazer os predicados emergirem das relaes concretas entre oshomens3 e promovendo a volta ao sujeito vivo e ao concreto imediato4. Cabe-lhe entomostrarcomose desenvolveu este projeto. nesse sentido que a histria da filosofia consisteemrepetira filosofia. No no sentido de parafrase-la, masexpondoas articulaes lgicas que ofilsofo deixou implcitas, recompondo a totalidade bem organizada e coerente que chamamosteoria, de maneira a atualizar aquilo que nela permanecera virtual. Tal a tarefa que h de se terproposto o prof. Giannotti ao afirmar a inevitabilidade do rodeio histrico.

    Mas incessantemente remetido do estudo sincrnico e arquitetnico (dasdoutrinasdeFeuerbach e do jovem Marx) diacronia (crtica dessas doutrinas luz da elaboraoprogressiva do materialismo dialtico), o prof. Giannotti no trabalha apenas como historiadorda filosofia. Ao criticar, por exemplo, o modo de objetividade que o jovem Marx empresta realidade econmica5ele ultrapassa os limites desta disciplina, que se define pela busca dacoerncia do autor consigo mesmo. Mostrando como a teoria do preo natural no jovem Marxconsidera o trabalho como provindo de uma atividade atemporal que funda, por sua vez todaa historia6, ao passo que em O Capital, preo e valor definem-se no interior das relaeseconmicas7, ele se move no terreno fronteirio entre a histria da filosofia e a filosofia toutcourt (quase diramos filosofia da histria) posto que julga o conceito de preo no jovemMarx em funo do processo objetivo de constituiodateoria do valor.

    1 Ibidem, p. 10.2 Que um estudo diretodo mtodo de O Capital seja possvel, provou-o a equipe dirigida por Louis AlthusseremLireleCapital (op. cit.). Se pessoalmente, e por razes que no caberiam numa resenha crtica, formulamosreservas com relao a vrias das concluses deste trabalho, (em particular no referente ao estatuto da prxis), nopodemos deixar de reconhecer a importncia do caminho percorrido na elucidao das questes difceis eurgentes da metodologia marxista tais como elas se apresentam em O Capital. Ora, esse sucesso parcial teriasido impossvel sem a deciso de colocar o problema da filosofia marxista em funo da obra de maturidade. No pois o projeto do prof. Giannotti que criticamos, no sua estratgia global de fazer aparecer a filosofiaimplcita do marxismo mas sim sua ttica, de proceder por via gentica ou histrica de qualquer modo indireta quando tinha os recursos (sabemo-lo todos aqueles que, como ns, fomos seus alunos) para atacar diretamenteO Capital. Que o leitor no espere portanto ver colocados emOrigens da Dialtica do Trabalhoos problemascentrais do materialismo dialtico (se por esta expresso entendermos a epistemologia do marxismo). O sistemaacabado s ser invocado para elucidar as tentativas incompletas de sua realizao (p.181); buscar-se- nele a

    chave das primeiras doutrinas (ib.). Prudentemente porm: tudo o que for dito a seu respeito ter apenas umcarter alusivo (ib.). Mas mesmo essa prudncia ambgua: embora obrigando a descartar uma srie de questesfundamentais (ib.) (em vez de descartas uma srie de questes suprfluas...), ela no chega a impedir que selevantem certos problemas cuja soluo urgentemente reclamada por todos aqueles que pretendem pensar omarxismo como filosofia viva (ib.).3 Origens da Dialtica do Trabalho, So Paulo, Difuso Europeia do Livro, 1966, p. 18.4 Ibidem, pp. 20-21.5 Ibidem, p. 105 e segs.6 Ibidem,111-112.7 Ibidem, 181.

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    A ambigidade do projeto tornara ambguo o mtodo; vejamos agora como aambigidade do mtodo torna ambguo o tratamento do tema. Origens da Dialtica do Trabalhodedica um captulo a Feuerbach (A dialtica contemplativa de Ludwig Feuerbach, pp. 31-75),dois ao jovem Marx (Primeira Crtica da Economia Poltica, pp. 76-114, e A NegatividadeHistrica do Trabalho, pp. 115-180), reservando o captulo final, bem como a concluso

    (Novas Perspectivas, pp. 181-245 e A Dialtica Redentora) discusso crtica, em que setrata de procurar no marxismo adulto a chave das primeiras doutrinas1. (TP, p. 87)O domnio a ser estudado deixa-se circunscrever sem dificuldade; ele abrange a crtica

    materialista a Hegel e a elaborao de uma antropologia humanista e dialtica. Enquantohumanista, esta antropologia edifica-se contra a Teologia Hegeliana, mas enquanto dialtica, elaprocura tirar partido deste mtodo revolucionrio2.

    Em que consiste tal mtodo? Que condies mnimas deve ele apresentar para serefetivamente um mtododialticoe no um mtodo qualquer? O prof. Giannotti, para manter-se fiel sua opo histrico-gentica, no se prope a defini-las fora de um contexto filosficobem particularizado, daquilo que Michel Foucault chama de um ensemble sign. Paradeterminar quais os requisitos essenciais do mtodo dialtico ser ento preciso que nosconfiemos s passagens em que se examina a dialticahegeliana:

    1) Tudo j fica dado no incio, de modo que a anlise se limita a encontrar a mediaodesse imediato ocasional, a suprimir a unilateralidade das primeiras determinaes.

    2) O finito, produto da conciliao de inconciliveis, resulta necessariamente de umadupla negao, consiste por isso numa idealidade e numa espiritualidade. , em suma,o prprio infinito no modo de sua auto-determinao3.

    Assim, impossvel separar o movimento ternrio do conceito, a infinidade dasubstncia e o carter inovador da negao da negao4. Em texto anterior, em que se resumiua teoria hegeliana do conhecimento (o conhecimento perfeito no consiste na representaode uma objetividade distante e sempre alheia, mas demanda de um lado a supresso das

    limitaes da conscincia individual, e de outro, a anulao das particularidades do objeto,transformado num momento do universal5) vm expostas duas condies da estruturaoternria do conceito:

    a) A singularidade totalizante (isto , a unidade espiritual que supera acontradio entre universal e particular) no suprime os dois opostos totalizados, masse nutre continuadamente da contradio. A identidade (resultante do movimentodialtico) sempre supe a passagem do universal ao particular e a deste ao singular,que recupera de modo mais rico o ponto de partida. Da o conceito inexistir se notranspassar pela triplicidade6.

    b) Uma concepo muito peculiar da finitude. Com efeito, Hegel pretende

    levar s ltimas conseqncias o carter mvel, precrio e perecvel da finitude. Todoobjeto finito limitado, e s existe enquanto limitado. Ser uma coisa determinada no

    1 Ibidem, p. 181.2 Ibidem, p. 9.3 Origens da Dialtica do Trabalho, pp. 28-29.4 Ibidem, p. 29.5 Ibidem, p. 25.6 Ibidem, p. 25, cf. p. 28, a nova noo de singularidade postulada pelo hegelianismo.

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    ser todas as outras coisas. Essa limitao no se apresenta apenas como resultado dajustaposio espacial, i. e., o limite no consiste somente em que a rea da cadacoisa mero recorte na superfcie do todo, mas tambm e principalmente nocarter transitrio de sua existncia. Esse mesmo espao que cada uma delas ocupaser logo mais preenchido por outra; o ovo torna-se galinha e a semente, rvore. Seja,

    portanto, qual for o objeto de que partimos, se explorarmos suas determinaescontraditrias, se descobrimos o traado de sua morte, desembocaremosirremediavelmente no absoluto.1

    Se estas so as condies da estrutura ternria do conceito e se tal estrutura (cf.acima) inseparvel da infinidade da substncia, que pensar da possibilidade de uma dialticamaterialista? A pretenso desta ltima justamente de salvaguardar a estrutura lgica ( omovimento ternrio do conceito) e a lei do movimento (a negao da negao) da dialticahegeliana, abandonando seu suposto metafsico (a substncia infinita). Afirmando porm que aestrutura lgica e a lei do movimento so inseparveisdesse pressuposto2, o prof. Giannotti negaexplicitamente a possibilidade de uma dialtica materialista. Claro que se poder sempre falarem materialismo dialtico, em dialtica tout court, em movimento dialtico, etc., mas estas

    expresses tero j perdido todo e qualquer parentesco com o mtodo descoberto por Hegel.Quando pois ele pergunta como possvel imaginar uma dialtica materialista, sua questoest j respondida; no possvel imaginar uma dialtica materialista, posto que impossvelseparar ... a infinidade da substncia e o carter inovador da negao da negao3. Emconsequncia, examinar como a dupla negao manter sua imprescindvel funo inovadorase partimos da natureza e do positivo 4ser tarefa intil. pois sem surpresa que nosinteiramos, nas ltimas pginas de Origens da Dialtica do Trabalho5 de que a noo decontradio dialtica ficou (no materialismo dialtico) irremediavelmente comprometida; asubstncia sefurta radical oposio, o objeto finito passa a possuir uma determinao de persi, a saber, um ncleo perdurvel na qualidade de substrato das determinaes, de sorte queno h lugar no seu ntimo para a infinidade. Os contraditrios, em suma, so radicalmente

    distendidos. A dialtica concebida como gnero do qual a hegeliana, a feuerbachiana e amarxista seriam espcies, pois, uma expresso equvoca.A pergunta pela possibilidade de uma dialtica materialista nasce portanto, j efmera

    dessa equivocidade. Antes de nos mostrar o resultado do esforo feito por Feuerbach e pelojovem Marx no sentido de elabor-lo, o prof. Giannotti mostra claramente que por mais bemsucedido que ele seja, nunca realizar o impossvel, isto , guardar o mtodo revolucionrio,rejeitando o contedo reacionrio. Eles podero, no mximo, elaborar, sob a sugesto dafilosofia hegeliana, um novo mtodo, que chamaro dialtico em funo de algumas analogiassuperficiais portanto epistemologicamente irrelevantes com o mtodo hegeliano.

    Como porm compreender que o prof. Giannotti tenha articulado seu estudo sobre umfalso problema? A resposta simples: Origens da dialtica do trabalho no searticulaem torno daquesto crtica. Ou melhor, ele se interessa por essa questo, mas no a desenvolveexplicitamente por causa da necessidade artificial segundo pensamos em que se v, deefetuar um rodeio pela histria.Origens da dialtica do trabalho ao mesmo tempo um trabalho de

    1 Ibidem, p. 27; cf. ibidem, pp. 25-28 e sobretudo pp. 26-28, a bela anlise da finitude em Hegel.2 Ibidem, p. 21.3 Ibidem, loc. cit.4 Ibidem, loc. cit.5 Ibidem, p. 246 e segs., especialmente 240.

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    histria da filosofia (porque se prope a restituir a articulao de dois sistemas filosficos), defilosofia tout court (porque se preocupa com um tema preciso, a saber, a dialtica materialista)e da filosofia da histria (porque estudo a evoluo da ideia de dialtica). Por isso, a questoquecoloca sobre a possibilidade da dialtica ser respondida de tantas maneiras quantas foremas perspectivas em que se situa ao coloc-la. Enquanto historiador da filosofia ele examinar

    como Feuerbach e o jovem Marx encaminharam o projeto de constituio de uma dialticamaterialista; mas enquanto filsofo, ele opor a cada um desses dois filsofos a ideia de umadialtica consequente consigo mesma; esse o sentido de sua crtica do carter noconstitutivo da prxis em Feuerbach1. Ainda enquanto filsofo, ele colocar certas questes deepistemologia das cincias humanas (anlise e estatuto dos conceitos de propriedade privada,de valor natural, de sociedade civil, de prxis) estudando o funcionamento de diferentesmtodos e categorias, discutindo-lhe a eficcia, o alcance, o grau de preciso e os domnios doreal de que so ou no so capazes de dar conta. Finalmente, enquantofilsofo da histria dacincia, ele descrever a evoluo da ideia de dialtica desde sua elaborao primeira porFeuerbach, at sua transformao (se que se pode falar em transformao) no materialismodialtico. (p. 91).

    essa pluralidade de intenes que d ao leitor a impresso de falta de unidade, que ofaz perguntar se realmente era preciso discutir Feuerbach no captulo inicial para poderexaminar e criticar nos captulos finais a economia do jovem Marx luz da teoria de OCapital. Pessoalmente, no fomos capazes de superar a ideia de que a estrutura literria deOrigens da dialtica do trabalho artificial e de que em funo do projeto maior de encontrar ofundamento filosfico do marxismo, algumas de suas anlises so gratuitas. (TP, p. 91)

    Mas que o leitor no veja nisso uma condenao por atenuada que seja docontedodeOrigens da dialtica do trabalho. Ao contrrio, estamos absolutamente convencidos de que estetrabalho constitui a primeira contribuio importante que se fez, em portugus, teoriamarxista. Sobretudo porque esclarece, precisa e desenvolve uma srie de conceitos cujacomplexidade vem sendo at agora responsvel por toda sorte de deformaes que servemaos idelogos das classes dominantes como pretexto para negar os fundamentos cientficos do

    marxismo. nossa inteno passar em revista tais conceitos, na medida em que so estudadosporOrigens da dialtica do trabalho.

    1. O conceito marxista de Histria.

    Conhecida a polmica que divide marxistas e marxlogos sobre as relaes entreteoria e histria no marxismo. No faltam aqueles e pensamos apenas nos autorescontemporneos, isto , posteriores a 1945 que inspirando-se nos Manuscritos para julgara filosofia definitiva de Marx, viram nela um humanismo. Um dos grandes mritos de Origensda dialtica do trabalho foi o de colocar este problema no nvel da epistemologia, mostrandocomo a ideologia que v a Histria como histria do desencontro e do reencontro dahumanidade consigo mesma substituda pelo conceitode modo de produo. J na IdeologiaAlem, Marx possui... o conceito de modo de produo que subverte por completo suasconcepes filosficas inicias2. Este conceito caracteriza-se:

    1) pela recusa intransigente de fundar a crtica histrico-econmica numa essnciagenrica do homem, i.e., a negao de toda antropologia fundante;

    1 Ibidem, p. 61-66.2 Ibidem, p. 183.

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    2) pela clivagem do processo histrico numa srie de sistemas que implica emdistinguir dois modos de explicao confundidos anteriormente: a explicaoestrutural ligada ao funcionamento do sistema e investigao propriamentehistrica que estuda como o sistema veio a ser1.

    A primeira caracterstica puramente negativa; os Manuscritos postulavam comomotor do processo histrico uma inadequao entre a natureza para o homem e suahumanidade como projeto2. Esta inadequao se concretiza na dialtica do carecimento. Por elacompreende-se a passagemda Natureza Histria3. Porque o carecimento do homem no apenas carecimento de alguma coisa mas fundamentalmente carecimento de carecimento4. Ohomem no apenas um ser natural, mas ser natural humano, i.e., ser que para si prprio5.Isto significa que eleproduze produz a si prprio; no trabalha unilateralmente e sob a pressoda necessidade fsica, como fazem os animais, mas genericamente, para si e para seusemelhante, sempre tendo em vista mediata ou imediatamente a coletividade6. No exatamente das coisas que o homem precisa, mas da coisa que o outro produziu. Orelacionamento do homem com a natureza pois mediatizado desdesemprepela sociedade, oumelhor, pela humanidade7.Assim, a passagemda Natureza Histria longe de ser, no jovemMarx, um problema terico, indica to somente a ausncia deste problema: humanidade ehistoricidade so para ele indissolveis e tudo que ele procura entender essaindissolubilidade8. A incluso de Lvi-Strauss na tradio rousseauista parece-meextremamente feliz. Tanto mais que o prprio Lvi-Strauss que vem confirm-la: Quandotiver terminado estes Mitolgicos, gostaria de voltar a Rousseau e refazer... uma leitura... queseria uma espcie de dilogo entre um etnlogo do sculo XVIII, ou aquilo que naquela pocacumpria esse papel, e um etnlogo do sculo XX (entrevista ao Novel Observateur, n. 115,25-31 janeiro 1967). Estado de natureza e estado civil em Rousseau se opem no sentido deque a passagem ao segundo se faz contra o primeiro. Embora Lvi-Strauss denuncie emTristes Tropiques o contra-senso que consiste em confundir a posio de Rousseau com onaturalismo de Diderot e de seus amigos, embora o objetivo de Rousseau no seja opor

    corrupo da sociedade o ideal idlico do homem natural, mas sim investigar as condiesefetivas da sociabilidade em geral, no h dvida alguma de que essa investigao procuraestabelecer um critrio abstrato para separa os dois elementos (a saber, a natureza e a cultura)9.Podemos completar a indicao do prof. Giannotti dizendo que este critrio abstrato serve nosomente para opor natureza e cultura como tambm, no interior da cultura, diferentes formassociais. O captulo Totem e Casta de Pense Sauvage um excelente exemplo.

    O jovem Marx, ao contrrio, pensa a oposio natureza-cultura no interiordo humano. Ohomem ao mesmo tempoum objeto natural e histrico e sua existncia imediata como anima ,a cada momento, negada por usa humanidade como projeto10. A Histria no se cinde em pr-

    1 Ibidem, ibidem.2 Ibidem, p. 130.3 Cf. Ibidem, p. 132-133.4 Ibidem, p. 132.5 Marx, K. Manuscritos, cf.Origensda dialtica do trabalho, p. 127.6 Origens da dialtica dotrabalho,p.128.7 Ibidem, pp. 130-131.8 Ibidem, p. 130. Ver tambm o interessante confronto entre Marx e Lvi-Strauss,pp. 129-130.9 Origens da Dialtica do Trabalho, p. 130.10Sobre os sentidos de Natureza no jovem Marx, cf. ibidem, pp. 133-134.

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    histria do homem natural e histria da natureza humana, mas desde o incio a histria daoposioentre o homem e a natureza.

    Tal a concepo da histria que Marx abandonar na Ideologia Alem, em proveito doconceito do modo de produo. O conceito de Histria definir-se- somente em funo danoo de produo, ideia reguladora das investigaes marxistas1. Mas a categoria da

    produo ... uma abstrao filosfica cujos componentes so da mesma ordem dasprotocondies da histria. Suas determinaes abstratas configuram... a srie de condiesnecessrias para pensar uma produo existente, mas de forma nenhuma, o conjunto decondies suficientes para que um sistema produtivo venha a existir.2 Como diz Marx naIntroduo de 18573, a produo em geral uma abstrao, mas uma abstrao racional, namedida em que salientando e precisando bem os traos comuns, ela nos evita arepetio.

    Se a noo de produo mera abstrao racional, ou como diz o prof. Giannotti, meraabstrao filosfica4, no exatamente em funo dela que se h de produzir o conceitocientfico de Histria. preciso dizer que assim como no h produo em geral, no htambm histria em geral, mas sim estruturas especficas dos diferentes modos de produo5.As abstraes filosficas, continua o prof. Giannotti, no so do tipo das abstraes daeconomia poltica; em virtude do formalismo e da exterioridade de seu processo constitutivo,as primeiras esto desprovidas de qualquer peso ontolgico, ao contrrio das segundas queexprimem universais-concretos cuja abstrao e generalidade provm do funcionamento dosistema produtivo, traduzem enfim foras determinantes e autnomas da prpria realidade6.Se as abstraes filosficas no tm peso ontolgico, e se a noo de histria (histria emgeral), do mesmo modo que a noo de produo (produo em geral), uma abstraofilosfica, o prof. Giannotti concorda com Althusser em que no h histria em geral,distanciando-se assim do humanismo historicista.

    Definir a histria pela produo, ou inversamente, permanecer no domnio dalinguagem e de suas abreviaes, como diz Marx. A noo de histria em geral, se utilizadacom outro fim que o da comodidade de linguagem ser to ideolgica quanto as de produoem geral, de trabalho em geral, de natureza humana em geral. No se faz nunca histria em

    geral, mas sempre a histria dequalquer coisa.7 O objeto da histria no o passado, nem opassar do tempo; a histria h de ser imediatamente histria de seu objeto e nesse sentido elainseparvel da teoria desse objeto; a anlise de Marx constitui seu objeto (as formasprodutivas) ao fazer a histria de suas formas sucessivas, i.e., das formas que ocupam um lugardeterminado na estrutura do modo de produo.8

    Esta reformulao do conceito de histria, que Marx inaugura na Ideologia Alemimplica em distinguir dois modos de explicao confundidos anteriormente9:

    1) Explicao estrutural do funcionamento do sistema;

    1 Origens da Dialtica do Trabalho, p. 191.2 Ibidem, p. 192.3 Cf. Contribuition a la Critiquedela EconomiePolitique, Paris, Editions Sociales, 1957, pp. 147-149 e o comentrio deE. Balibar,LireleCapital, II, pp. 325-332.4 Origens da Dialtica do Trabalho, p. 192.5Althusser, L.,Lirelecapital, Paris, Maspero, 1965, II, p. 59.6 Ibidem, ibidem.7 Balibar, E.,Lirelecapital,Paris, Maspero II, p. 243.8 Ibidem, p. 245.9 Origens da Dialtica do Trabalho, loc. cit., p. 183.

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    2) Estudo, propriamente histrico, do vir-a-ser do sistema.

    A reformulao do conceito de histria , pois, contempornea de uma delimitao de seudomnio; ao historiador humanista que via por toda parte o homem agindo e que consideravaos sistemas e instituies como meras cristalizaes deste agir, substitui-se um novo conceito,

    capaz de dar conta teoricamente da relao entre sistemas e histria. Vejamos em que consiste,tomando para isto o exemplo da categoria de valor.1

    A lei do valor aplica-se a modos de produo pr-capitalistas, mas desempenha papeisdiferentes conforme difiram os objetivos sociais destes modos. Somente no capitalismo ovalor vem a ser a categoria dominante a propor-se como o fim ltimo de toda atividadeprodutiva.2

    O sentido ltimo da lei do valor no pois legvel diretamente na lei ela mesma (i.e., nofato de que os produtos do trabalho se trocam por seus equivalentes), nem se infere do destinoque ela teve ao longo da histria (no a anlise emprica da funo da lei do valor entrefencios, cartagineses e romanos que nos ajudar a compreender este imenso acumulo demercadorias que a sociedade capitalista). Ao contrrio, no interior de um sistema como ocapitalista, inteiramente voltado para a produo do valor de troca, que a lei do valor se tornacompreensvel. Isto no quer dizer porm, que o modo de produo capitalista tenha produzidoa lei do valor; a relao entre ambos complexa; o sistema que d lei seu significado, massem a lei o sistema no existira. Como na noo aristotlica de forma, em que os nervos, acarne e o sangue so aquilo sem o que no existiria um organismo, mas o organismo queestipula como ho de se distribuir e funcionar cada um desses elementos, assim na noomarxista de modo de produo, a lei do valor, a fora de trabalho e a apropriao privada dosmeios de produo so aquilo sem o que no haveria capitalismo, mas o capitalismo queestabelece qual ser o alcance da lei do valor, a funo da fora de trabalho e as modalidades deseu consumo produtivo. (p. 95)

    Mas a oposio matria/ forma insuficiente para exprimir a complexidade desteprocesso. Porque ela apenas relativa. Aquilo que, comparando a uma totalidade mais

    complexa, faz figura de matria (assim os nervos relativamente ao organismo) , se comparadoa seus elementos componentes (assim os nervos relativamente aos tecidos nervosos) umaforma. Em Aristteles, os elementos de uma totalidade so tambm as totalidades de seuselementos. Enquanto que o elemento da totalidade marxista (por exemplo, a lei do valorrelativamente ao modo de produo capitalista) no por sua vez uma totalidade redutvel anovos elementos. Isso significa que o elemento pensadofora de uma totalidade perde suarealidade e se trona mera abreviao, mero recurso de linguagem. Assim, a lei do valor,pensada em abstrato, no elemento de sistema algum, mas apenas o enunciado das condiesmais gerais para que trocas quaisquer se realizem. A funo determinante do modorelativamente a seus elementos no advm de que ele neles j estava implcito, a organiz-lossecretamente, como a forma da rvore preside ao lento crescimento da semente.

    verdade que os elementos do sistema tm umahistriaanterior ao sistema (histriaque pensada do ponto de vista do sistema aparecer como sua pr-histria ), mas esta histriaoutra coisa no que o fato de terem eles pertencido aoutros sistemas. A clivagem do processohistrico numa srie de sistemas no interrompe o que se poderia chamar a continuidadeabstrata das categorias ou elementos. Mas, e nisso que reside a novidade da ideologiaAlem, essa continuidade apenas abstrata. Falar do trabalho humano, da apropriao da

    1 Ibidem, p. 195.2 Ibidem, p. 195.

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    natureza, dos tipos de dominao, implica em recair na iluso eternitria que Marx denunciarana economia clssica. Mas evidente, por outro lado, que toda sociedade supe trabalho,organizao das foras produtivas e dominao.

    Tal o tema do conceito de reposio dos pressupostos: todo sistema supe paraconstituir-se como tal, certas condies, das quais algumas so absolutamente genricas, como

    as acima mencionadas, e outras especficas, como para o capitalismo a acumulao primitiva.Desde logo se percebe, porm, que o estudo do capitalismo enquanto modo de produo, emais genericamente, enquanto sistema, no inclui o estudo desta acumulao primitiva, queintegra apenas o vir-a-ser do sistema. Este vir-a-ser constitui o segundo dos dois tipos deexplicao introduzidos pela Ideologia alem. Como tal, ele se subordina ao primeiro; , comefeito, luz do modo de produo capitalista que se pode dizer que um acmulo de dinheirofoi acmulo de capital e no um simples entesouramento. Isso porque uma totalidade possuipressupostos de seu vir-a-ser, mas tais pressupostos somente atuam no sistema se foremassumidos por ele, se forem repostos no processo atual de sua efetuao.1

    Nem todos os pressupostos do vir-a-ser do sistema so repostos nosistema. Assim aacumulao primitiva e a fuga dos servos para a cidade. A gnese do sistema capitalistatransformar a massa de dinheiro que certos indivduos entesouraram em capital e os foragidosdo campo em proletrios. o ciclo de acumulao do capital e a apropriao do sobre-trabalho que sero repostos pelo sistema.

    luz do conceito de reposio dos pressupostos, os sistemas nos aparecem,portanto, como totalidades dinmicas reabsorvendo e confirmando incessantemente ospressupostos que lhes so essenciais, e a Histria como desintegrao e reintegrao dascategorias. Com tal conceito, o prof. Giannotti ajusta contas no somente com a dialtica (seupropsito global), mas tambm com um certo estruturalismo que ele critica no momentomesmo em que define a reposio dos pressupostos. preciso... precaver-se e no identificar,de um lado, histria contempornea, sistema, com estrutura sincrnica e de outro lado,histria propriamente dita com um processo apenas diacrnico2. Isso porque, como vimos,as categorias em geral conservam traos histricos. Muitos conceitos do sistema capitalista

    desempenham, com efeito, papeis diversos em diferentes modos de produo3. Os conceitosde sincronia e de diacronia exprimem uma temporalidade abstrata, um nada mais sendo que apresena imvel do presente e outro a continuidade sem repouso da sucesso. Ora, nem osistema purasincronia, nem a histria pura diacronia; o presente do sistema carregado depassado (as categorias conservam traos histricos) e seu vir-a-ser um processo com ritmoprprio de sucesso, que no coincide com a linearidade do tempo abstrato. No pois aoposio sincronia-diacronia que substituir, no discurso cientifico inaugurado pela IdeologiaAlem, o lugar deixado vazio pela ideologia humanista dos Manuscritos, mas sim o conceitode reposio dos pressupostos, que longe de opor atualidade do sistema e sucesso da histria,reintegra-os numa totalidade mais ampla, o materialismo histrico.

    O sistema no , pois, um ponto de vista abstrato que recorta na sociedade sempre em

    movimento um presente imaginrio e meramente terico. Seu funcionamento o de umprocesso dinmico que, como vimos, reabsorve e confirma incessantemente suas condies depossibilidade. Do mesmo modo, a histria no o catico suceder-se de eventos no-teorizveis, mas integrao, desintegrao e reintegrao seletiva das categorias. O conceito dereposio dos pressupostos apresentaria assim a dupla vantagem de pensar o sistema em

    1 Ibidem, p. 195.2 Ibidem, p. 194.3 Ibidem, pp. 194-195.

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    termos de dinamismo e a histria em termos de reorganizao sucessiva dos elementos dossistemas, superando a oposio abstrata entre estrutura e acontecimento. Resta saber seefetivamente ele apresenta estas vantagens e se elas no so contrabalanadas por desvantagenssimtricas.

    Acabamos de ver que a aceitao do conceito de reposio dos pressupostos implica

    em rejeitar do marxismo as categorias de sincronia e diacronia, em proveito das defuncionamentoe devir-a-serdo sistema. No sistema, as categorias dominantes e mais simples, representantesde foras autnomas a atuarem na sociedade, formam o ponto de partida da exposio e doprocesso dialtico de constituio do concreto. Como pressupostos da essncia do sistema soa todo momento repostas por ele...1. Porque se no forem a todo momento por ele repostas,essas categorias no sero pressupostos do sistema, mas apenas de seu vir-a-ser; ospressupostos somente atuam no sistema se forem assumidos por ele2. A condio de que ocapitalista deve trazer para a circulao valores criados por seu prprio trabalho... tal condiofaz parte das condies antediluvianas do capital, de seus pressupostos histricos, que comopressupostos histricos so passados e pertencem histria desua formao, mas de maneiraalguma sua histria contempornea, a saber no pertencem ao sistema real do modo deproduo dominado por ele3. Nestes trs textos que acabamos de citar fica bem claro que atotalidade marxista um sistema real, que assumealguns de seus pressupostos histricos,convertendo-os ento em pressupostos de sua essncia, de maneira arep-los a todo momento.Sistema ope-se a sincronia no somente como o dinmico ao esttico, mas como o real aoabstrato, como o atualmente eficaz ao inoperante; entre o sistema marxista (sempre dinmico eeficaz) e o ponto de vista sincrnico (sempre esttico e inoperante) h pois incompatibilidade.

    Mas nesse caso como conceber a operao terica pela qual se define um modo deproduo? Ao contrrio do que afirma Origens da Dialtica do Trabalho4 o ponto de partida daexposio a definio do sistema, de seus diferentes modos, das relaes de eficcia e dedeterminao recproca entre seus diferentes nveis. Ora, tal ponto de partida h de sersincrnico, como sincrnica a noo de estado de variao de que se serve. E Balibar 5para definir o conceito de modo como um sistema de formas que representa um estado de

    variaodo conjunto dos elementos que entram necessariamente no processo considerado. Estadefinio... vale para todos os modos e requer sempre suas coisas: a enumerao dos lugares(oufunes) apresentados pelo processo em questo, e a determinao ocupando estes lugares. E,em seguida, ele enumera os elementos que constituem o mododeproduo:

    1) O trabalhador (a fora de trabalho);

    2) Os meios de produo a) objeto do trabalho;

    b) meio de trabalho;

    3) o no-trabalhador, apropriando-se do sobre-trabalho:

    a) relao de propriedade (explorao da fora de trabalho);

    1 Ibidem, p. 196.2 Ibidem, loc. cit., p. 195; somos ns que sublinhamos.3 Ibidem, p. 194.4 Ibidem, cf. loc. cit., p. 196.5LireleCapital,Paris, Maspero, 1965, II, p. 204.

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    b) relao de apropriao real (organizao da produo)1.

    Claro que tal definio no dinmica. Mas, como lembra Spinoza, o conceito de cono late. Por isso, temos a impresso de que a rejeio da categoria de sincronia encobre umaambigidade, na medida em que supe no haver diferena entre o conceito do sistema (ouseja, sua definio) e o sistema real. Esta impresso confirmar-se- se atentarmos para o fato deque areposio dos pressupostos pretende cumprir uma dupla funo:

    1) mostrar que entre histria e sistema no h heterogeneidade de domnio;cada sistema confirma (repondo) ou rejeita (no repondo) os elementos do sistemaanterior. Considerando relativamente a esta funo, o conceito da reposio dospressupostos ilumina e precisa um tema essencial do materialismo histrico.

    2) esboar a teoria marxista da abstrao. certo que a anlise marxista nopretende... construir um modelo conceitual cujos termos no tivessem peso ontolgicoalgum2. Certo portanto que o conceito abstrato corresponde a uma fora ou uma

    tendncia real cuja autonomia do mesmo grau do conceito

    3

    , donde o paralelismoentre a ordem de determinao do real e a ordem dedutiva da exposio4. Mas atonde vai este paralelismo? Como reproduzir o conceito a dinmica concreta doprocesso real? No basta, para determinar as relaes entre o pensamento e a realidade,assegurar que de forma alguma o processo de constituio categorial o processo denascimento do concreto5, (sabemos todos que Marx no idealista), nem lembrar queo concreto-pensado no o concreto real6. Na verdade, a reposio dos pressupostos um conceito vlido para o materialismo histrico mas indevidamente transposto aomaterialismo dialtico. Como muitos descobridores, o prof. Giannotti deixou-se levarlonge demais por sua descoberta, e em vez de restringi-la ao domnio em que ela incontestvel ( explicao de como, ao longo de sua histria, as categorias se integram,para reintegrarem-se ou serem rejeitadas pelos sistemas subsequentes) ele pretendefaz-la explicar a relaoentre sistema pensado e o sistema real. Compreende-se assimsua preocupao em rejeitar a sincronia, que um ponto de vista apenas terico ecompreende-se igualmente porque essa rejeio no convincente como a rejeio dadiacronia(que para a direita estruturalista Michel Foucault por exemplo no senoo nome que se d tese fascista da irracionalidade da histria). Com efeito, a anlise dovir a-ser do sistema um instrumento capaz de desmistificar o mito (para no dizer amistificao) do evento solitrio em que se originariam os sistemas7.

    Mas ela s o consegue na medida em que distingue cuidadosamente a histria concretada histria pensada. O vir-a-ser dos sistemas e o deixar-de-ser do sistema anterior soteorizveis, mas seguro que na passagem de um a outro, haja um mnimo de

    indeterminao provocada pela complexidade e riqueza de determinaes do evento social. por ter aplicado com discernimento o princpio do paralelismo entre teoria e concreto que o

    1 Cf. Ibidem, pp. 204-210 e segs.2 Origens da Dialtica do Trabalho, p. 193.3 Ibidem, ibidem.4 Ibidem, ibidem.5 Ibidem, ibidem.6 Ibidem, ibidem.7 Cf. Foucault, Michel.Lesmotset les choses, Paris, Gallimard, 1966.

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    prof. Giannotti pde produzir um conceito capaz de dar conta da mudana dos sistemas. Aocontrrio, por insistir em demasia no elemento de gratuidade presente na origem de todosistema (seja ele terico ou prtico), portanto, por no distinguir adequadamente a teoria daorigem das epistemai do evento real dessa origem, que Foucault levado a descrev-la emtermos irracionalistas1. A crtica de uma diacronia que se confunde facilmente com o

    irracionalismo pois inteiramente legtima. Mas ao tentar fazer a crtica complementar,dissolvendo o ponto de vista sincrnico na dinmica tensa do processo real, o prof. Giannottideixa de ser convincente, e aquele lcido racionalismo que lhe permitira recusar umaconcepo puramente diacrnica da histria, passa a fazer figura de um simples postulado deparalelismo integral entre pensamento e realidade, negando ou escamoteando a especificidadedo modo de ser terico. Se o sistema no deve ser concebido como mero modelo terico maisou menos aproximado da realidade social, evidente que ele no tambm a prpriarealidade.Por isso dizer que as categorias econmicas exprimem universais-concretos cuja abstrao erealidade provmdo funcionamento do sistema produtivo, traduzemenfim foras determinantesautnomas da prpria realidade2, jogar com a equivocidade dos verbos provir etraduzir. Esta mesma equivocidade se encontra logo a seguir, quando se afirma que a foradeterminante da categoria exprimeum impulso real autnomo3. Porque todo o sistema domaterialismo dialtico justamente de saber como se efetua esta traduo ou expresso.Sobre esta questo, o caminho mais acertado no consiste em rejeitar a sincronia em nome deum paralelismo que ningum nega, mas que insuficiente para constituir uma teoria marxistada abstrao (que s pode se compreender no exterior de uma teoria da produo cientfica emgeral), mas em distinguir com rigor o objeto da cinciado objeto real. Porque, aquilo que visado pela sincronia nada tem a ver com a presenatemporaldo objeto como objeto real, masconcerne ao contrrio um outro tipo de presena temporal do objeto concreto ... mas apresenado objeto deconhecimento da prpria anliseterica, a presena do conhecimento. O sincrniconada mais portanto que a concepo das relaes especficas existentes entre os diferenteselementos e as diferentes estruturas da estrutura do todo, o conhecimento das relaes deindependncia e de articulao que fazem dele um todo orgnico, um sistema. Osincrnico a

    eternidadeno sentido spinozista, ou conhecimentoadequado deumobjeto complexo peloconhecimento adequadodesua complexidade 4.

    1 preciso no esquecer que a epistem no apenas condio de possibilidade dasteoriasque nela se fundam.Com efeito, numa cultura e num momento dados, h somente uma epistem, que define as condies depossibilidade de todo o saber. Seja aquele que se manifesta numa teoria, ou o que silenciosamente investidonuma prtica. A reforma monetria prescrita pelos Estados Gerais de 1575, as medidas mercantilistas ou aexperincia de Law e sua liquidao possuem o mesmo embasamento arqueolgico que as teorias de Davanzatti,de Bouteroue, , de Petty ou de Cantillon (p. 179). Foucault, Michel,Les Mots et Les Choses.2 Origens da Dialetica do Trabalho, p. 192; somos ns que sublinhamos.3 Ibidem, p. 193.4Althusser, Louis,LireleCapital, Paris, Maspero, 1965, II, p. 57.