Joao Saldanha Cap12

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JOÃO SALDANHA 281 omingo, 24 de agosto de 1969, foi um dia especial. Eu tinha nove anos e morava no Grajaú, Zona Norte do Rio. Era a primeira vez que eu ia ao Maracanã – e logo a uma partida de seleção brasileira. Um jogo com Pelé, Tostão & Cia. Demais! Naquele domingo, só houve futebol de rua pela manhã. Foi a nossa con- centração. Depois do almoço, seguimos todos para o Maracanã. A expectativa era tão grande que me lembro de que, a cada bairro que passávamos, era como se vencêssemos um obstáculo para alcançar o grande objeto de desejo. Saí do Grajaú, cruzei o Andaraí, Vila Isabel e a Tijuca, e final- mente chegamos – eu e Mauricio, meu pai – às cercanias do Maior do Mundo. No caminho, um desfile de bandeiras saindo das janelas dos ônibus e carros. Muita gente, torcedores de todos os grandes clubes: Flamengo, Vas- co, Botafogo, Fluminense, até Bangu e América (que tinha um bom time e um camisa 10 baixinho e muito habilidoso, Edu Antunes Coimbra, irmão de Zico, futuro ídolo rubro-negro). Quando descemos do ônibus 422, linha Grajaú–Cosme Velho, eram mi- lhares de pessoas chegando de todos os lados. Havia mais bandeiras dos CAPÍTULO XII 1969: “Eu topo!” D 05 saldanha FINAL.indd 281 05 saldanha FINAL.indd 281 10/16/07 11:46:08 AM 10/16/07 11:46:08 AM

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Capítulo 12 do livro "João Saldanha: uma vida em jogo"

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omingo, 24 de agosto de 1969, foi um dia especial. Eu tinha nove anos e morava no Grajaú, Zona Norte do Rio. Era a primeira vez que eu ia ao Maracanã – e logo a uma partida de seleção brasileira. Um

jogo com Pelé, Tostão & Cia. Demais!Naquele domingo, só houve futebol de rua pela manhã. Foi a nossa con-

centração. Depois do almoço, seguimos todos para o Maracanã.A expectativa era tão grande que me lembro de que, a cada bairro que

passávamos, era como se vencêssemos um obstáculo para alcançar o grande objeto de desejo. Saí do Grajaú, cruzei o Andaraí, Vila Isabel e a Tijuca, e fi nal-mente chegamos – eu e Mauricio, meu pai – às cercanias do Maior do Mundo.

No caminho, um desfi le de bandeiras saindo das janelas dos ônibus e carros. Muita gente, torcedores de todos os grandes clubes: Flamengo, Vas-co, Botafogo, Fluminense, até Bangu e América (que tinha um bom time e um camisa 10 baixinho e muito habilidoso, Edu Antunes Coimbra, irmão de Zico, futuro ídolo rubro-negro).

Quando descemos do ônibus 422, linha Grajaú–Cosme Velho, eram mi-lhares de pessoas chegando de todos os lados. Havia mais bandeiras dos

CAPÍTULO XII 1969:“Eu topo!”

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clubes e muitas do Brasil. Nos vários botecos em torno do Maraca, os mais velhos já faziam o aquecimento para o jogo. Ouviam-se de longe os gritos de guerra de cada time. Vascaíno, eu não gostava muito de ter que escutar “Mengo!”, “Nense!”, “Fogo!” – mas valia tudo para entrar no Maracanã e ver o Brasil jogar. O inimigo era a Venezuela.

Cruzamos as roletas de entrada (passei por baixo, para não pagar). A rampa de acesso às arquibancadas estava tomada. Torcedores, bandeiro-nas e vários instrumentos de bateria. Samba, cerveja e muita alegria.

Subimos, e, enquanto meu pai comprava uma Antarctica estupidamente gelada, eu via os preparativos de um sorveteiro. Era um negão de boné do Flamengo, arrumando os picolés na caixa de isopor da Kibon. Lotou a caixa

e cobriu os sorvetes com gelo seco e jornal. Aquilo me chamou a atenção, pois saía fumaça do gelo. Ao fundo, os degraus da arqui-bancada vistos por trás. Um radinho de pilha, amarrado ao iso-por, sintonizava uma voz que depois eu reconheceria de longe: a do locutor Jorge Cury, da Globo. E a vinheta do rádio ecoava e se repetia em milhares de outros radinhos no Maracanã: “Brasil!”

Pegamos o corredor que sobe para a arquibancada. Meu co-ração bateu forte. O som ritmado da torcida aumentava a cada metro. Passamos espremidos pelos torcedores, entre as paredes de cimento pichado. De repente, abriu-se o céu, e vi o verde do gramado. Que emoção! A arquibancada lotada. As charangas fa-zendo a festa. O surdo marcando o ritmo. “Brasil! Brasil! Brasil!”

Em frente ao túnel à direita das cabines de rádio, dezenas de repórteres esperavam pela entrada da seleção em campo. Sentamos atrás do gol à direita daquelas cabines – espaço tradicional da torcida do Vasco. Fiquei atento a todos os detalhes.

Dos alto-falantes, veio o anúncio da Administração dos Estádios da Guanabara:

– A Adeg informa…Seguiu-se um rufar de tambores.– …a escalação do time do Brasil.Novo rufar, redobrado, e um grito coletivo. Só quem já foi a estádio sabe

que som é esse, um “Ehhh!!!” muito próprio.A maior parte da torcida estava de pé, olhando para o túnel do Brasil, já

cercado por jornalistas, fotógrafos, cinegrafi stas, radialistas, compadres e penetras.

Página 280Havelange e João saindo de reunião na CBD, 12 de fevereiro de 1969Página ao ladoPelé e Tostão no inesquecível Brasil 6 x 0 Venezuela, Maracanã, 1969

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– Número 1: Félix.A torcida festejou.– Número 2: Carlos Alberto.Aplausos e vaias. Perguntei a meu pai por que vaiavam.– É o pessoal do Flamengo que queria o Murilo na seleção – respondeu.Murilo era um lateral direito cujo apelido era Pardal.– Número 3: Djalma Dias… Joel… Piazza… Rildo…Quando o locutor, lentamente, disse os nomes de Jairzinho e Gérson, foi

uma loucura: os botafoguenses explodiram em aplausos e gritos, mas os demais vaiaram. Aqueles dois craques estavam no auge da forma e haviam massacrado os demais clubes no campeonato carioca de 1968. Na fi nal, o Bota arrasara o Vasco por 4 a 0, e os cruzmaltinos choravam de raiva.

Tostão recebeu aplausos unânimes, e, quando o locutor disse “Pelé”, a arquibancada tremeu.

Foi uma festa. E eu, claro, vibrando.– E número 11: Edu…Em seguida, uma explosão de fogos, tambores, bandeiras, papel picado:

entrava em campo a seleção brasileira. A torcida, eufórica, gritava o nome de cada jogador.

Depois, uma vaia humilhante para os venezuelanos. Deu pena deles.Pena muito maior sentiríamos após o jogo, se é que se pode chamar de

jogo uma partida em que só uma equipe jogou. Foi uma vitória impressio-nante do Brasil. Aula de futebol. Tudo bem, o adversário era fraco, mas a seleção jogava um futebol alegre, aberto, bonito de ver. Não há como es-quecer aquele futebol, nem compará-lo ao praticado hoje.

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Os lançamentos de Gérson, calculados, precisos, deixavam Tostão, Jairzinho e Pelé sempre em condições de fi nalizar ou de preparar para o gol. Edu estava endiabrado: o ponta-esquerda do Santos, negro simpático e risonho, era um driblador sensacional, que desconcertava qualquer lateral. Ele e Jairzinho bailavam pelas pontas. Tostão provava que era o dono da camisa 9. E Pelé era soberano.

Uma orquestra.No fi nal, com a goleada de 6 a 0, ouvi pela primeira vez um nome na voz

dos torcedores: “Saldanha! Saldanha!”– Quem é Saldanha? – perguntei.– João Saldanha – respondeu meu pai. – É o nosso técnico. Foi ele quem

criou as “feras”, o apelido que deu aos nossos jogadores.A torcida, eu no meio, saiu cantando e gritando: “Brasil! Brasil! Brasil!”

Um carnaval em pleno agosto. Alguns mais afoitos gritavam: “Tricampeão! Tricampeão!”

Quando cheguei em casa, não tive dúvida: meu time de bo-tão de galalite ganhava novo treinador. Fiz João treinador da mesma forma que se faziam os goleiros de time de botão naque-la época: em caixa de fósforos. Recortei uma foto dele publica-da no Jornal dos Sports (aquele diário carioca cor-de-rosa),

colei na caixinha e cobri com durex. O meu João fi cava ali, ao lado da mesa de botão, dando ordens.

– E esse aí do lado? Vai entrar em campo? – perguntavam-me.Eu respondia:– Se precisar, entra. Ele é uma fera!Depois daquela goleada, descobri que João Saldanha era o melhor co-

mentarista esportivo do rádio brasileiro. Quando algum torcedor queria entender o futebol ou saber se seu clube tinha chance de vencer um jogo duro ou virar uma partida, ouvia João, no radinho ou no Transglobe Philco, quase um caixotinho, que só funcionava com seis pilhas grandes. Os torce-dores se acostumaram a seus comentários inteligentes e bem-humorados.

E não só eles.– Eu já vi treinador, na boca do túnel do Maracanã, fazendo mudanças tá-

ticas e trocando jogadores depois de ouvir o comentário do Saldanha pelo rá-dio – disse o jornalista Pedro Costa, que trabalharia com ele na Rádio Tupi.

João Saldanha era uma espécie de bússola, um consultor público de futebol. Acreditem: muita gente saía do Maracanã antes de terminado o

Página ao ladoO Brasil de João jogava com duas feras nas pontas: Jairzinho e Edu

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jogo porque João já fi zera sua análise e apontara o fi nal da partida, pois ele era meio vidente e difi cilmente errava um prognóstico.

Só não conseguiu prever como seria seu reinado na seleção. Nem sequer imaginara que o convidariam para dirigi-la, logo ele, notório comunista e maior crítico dos dirigentes e do trabalho da CBDCBD.

Tudo isso também passava longe do meu conhecimento. Na época, eu sabia apenas que a seleção estava arrebentando e que o treinador era legal. Como ele chegara lá e por que sairia, só fui tentar entender muito depois.

João Havelange, presidente da CBDCBD e principal dirigente esportivo bra-sileiro, tinha um sonho: queria dirigir a Fifa. As críticas de João Saldanha à preparação de nosso selecionado para a Copa do México e aos cartolas pela desorganização e corrupção no futebol caíam como uma bomba sobre as pretensões de Havelange, o qual precisava aparecer como competente homem do esporte.

Aí, estranhamente, Havelange, aliado dos sucessivos governos brasi-leiros, incluídos os militares, resolveu convidar João para dirigir o escrete canarinho. Segundo João, o primeiro convite fora formulado em 1958, e o segundo, dez anos depois. Ele não aceitara nenhum dos dois.

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Em 1969, aumentava a crise na seleção, que sofria com a desesperança que tomara conta da torcida após o fi asco da Copa de 1966.

Foi quando, para surpresa geral do país, Havelange convidou João para o cargo. Muito se especula, mas só o próprio Havelange sabe como se deu essa escolha. Sua resposta é:

– Quando tivemos de compor a comissão técnica da CBDCBD para preparar a seleção, como presidente dei a chefi a ao dr. Antônio do Passo que teve a liberdade de fazer a escolha dos elementos que iriam compô-la. Portanto, quem fez o convite ao sr. João Saldanha foi o dr. Antônio do Passo.

João Havelange também nega ter feito qualquer consulta ao governo militar antes do convite a João Saldanha:

– Como presidente da CBDCBD nunca tratei de qualquer questão política e, como tal, não haveria porque intrometer-me quanto a participação de qual-quer elemento da CBDCBD, como fi liado de qualquer agremiação política. De outra parte, não havia porque consultar o governo militar, primeiro como presidente da CBDCBD e, segundo, como homem público.

Luiz Mendes tem uma teoria sobre o convite:– Quando escolheu o Saldanha, João Havelange o fez talvez por ser fã

de Getúlio Vargas, porque era Getúlio que chamava os inimigos para o go-verno dele. João Saldanha era um crítico voraz da seleção brasileira desde 1966. Pois Havelange colocou justamente o inimigo no poder, tirou desse inimigo o poder de fogo. E todos da imprensa não contestaríamos a esco-lha de um companheiro nosso, que tinha um currículo de técnico e havia sido campeão pelo Botafogo em 57. Não dava para a gente contestar isso.

Nas páginas do Globo, Nelson Rodrigues profetizou o caminho que João teria de trilhar:

Estranho mundo, em que não se dá um passo sem esbarrar, sem tro-

peçar, sem pisar nas víboras inumeráveis. Tudo começou quando João

Havelange teve a grande coragem de escolher o João Saldanha para trei-

nador da seleção. Pela primeira vez, o escrete passava a ser um proble-

ma estritamente técnico e nada político. O presidente da CBDCBD não quis

agradar a A ou B, mas juntar os melhores. Já sabemos que a competên-

cia é amargamente antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito:

a competência tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveita-

dores vorazes. Eles fi cam sem ter o que fazer e o que dizer. Vagam pelas

esquinas e pelos botecos, sem função e sem destino.

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Na noite de 4 de fevereiro de 1969, no apartamento de João, em Ipane-ma, Antônio do Passo apresentou a vontade da cúpula.

João gostava de recontar o diálogo: – Isto é uma sondagem ou é um convite?– Um convite – respondeu Passo.– Eu topo!Passo disse que estava autorizado por Havelange. Não se falou de di-

nheiro. Mais tarde, acabaram acertando um salário de 12 mil cruzeiros novos. O equivalente a cerca de 50 mil reais mensais.

Assim que Passo saiu do apartamento, João chamou Thereza e os fi lhos e anunciou:

– Fui chamado para ser técnico da seleção. Eu queria saber o que vocês acham.

Segundo Thereza, João só estava fazendo charme, porque já se decidira, mas ela gostou do gesto. E todo o mundo disse:

– Nós achamos ótimo! Tem mais é que ser você mesmo!O ano de 1969 fi cou marcado na vida de João: foi quando ele enfrentou

seu maior desafi o e seu maior confl ito. Posteriormente, diria que pensou no momento político antes de aceitar o cargo, nestes termos: “Tem tor-tura, gente sumindo. Posso ser mais útil neste cargo. Útil para o futebol e para a política”.

João pretendia continuar denunciando, agora com mais repercussão, o que estava acontecendo no país. A polícia invadia residências sem manda-do, à margem da lei. Quase sempre chegava em peruas Veraneio, a maioria sinistras, de cores sombrias: marrom, cinza, verde-musgo. Mas também usava os prosaicos Fuscas, em comboios de dois ou três. Revirava as casas de esquerdistas e supostos esquerdistas em busca de provas de militância, de nomes de integrantes, de pistas sobre as organizações. Recolhiam-se livros de economia, de sociologia e, claro, os autores vermelhos – Marx, Engels, Lenin, Mao, Trotski. Alguns eram levados como prova do crime de subversão, o resto era destruído.

O Brasil era governado pelo general Arthur da Costa e Silva, o segundo presidente militar desde o golpe de 1964. Foi ele quem baixou o AIAI-5, senha para o terror liberado e ofi cializado.

Em 1968, como parte do pacote de medidas autoritárias, o governo proi-biu eleições em cidades supostamente estratégicas, de segurança nacional. E trabalhava diariamente para desestruturar todos os tipos de organização

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da sociedade civil que tivessem participação dos comunistas ou que pos-sibilitassem a realização de debates. Não era permitido reunir-se nem cri-ticar. Na verdade, nem pensar. Muita gente foi presa ou teve a residência arrombada só por ser amigo ou conhecido de algum militante de esquerda.

O PCBPCB e o PCPCdoB (dissidência do PCBPCB fundada em 1962 e alinhada com a China) atuavam na clandestinidade, e vários de seus quadros já haviam caído nas mãos da polícia. Foi um período de violência de ambos os lados, uma época de perseguição, irracionalidade e provocação.

Quando 1969 começou, direita e esquerda deram continuidade a suas estra-tégias. A direita apostava no uso da força e na restrição da liberdade. A pres-são sobre jornalistas e artistas era grande. Censurado e vigiado, o compositor Chico Buarque saiu do Brasil e foi morar em Roma. Caetano Veloso e Gilberto Gil também foram obrigados a deixar o país, seguindo para Londres.

A fúria dos quartéis só fez aumentar quando o capitão Carlos Lamarca desertou e fugiu de um regimento de infantaria em Quintaúna (SPSP) para juntar-se à guerrilha da Vanguarda Popular Revolucionária (VPRVPR), levando dezenas de fuzis, mais munição. Essas e outras ações semelhantes leva-ram ao acirramento da repressão.

O clima entre os esquerdistas era de medo, mais da tortura que do con-fronto. Medo da dor e da possibilidade de entregar companheiros nos in-terrogatórios.

Nas redações e no partido, João vivia esse clima. Os companheiros que passavam necessidade, ele os ajudava dando dinheiro do próprio bolso. E conspirava pela derrota do regime. Com esses antecedentes e aquela conjun-tura, não era fácil assimilar o convite para que dirigisse o time brasileiro. A tese de que a ditadura estaria separando o futebol da política e admitindo que precisava de João por seus méritos profi ssionais era de difícil aceitação.

Tratava-se do maior posto que um técnico de futebol pode desejar. Além das glórias, o cargo dava ao titular o poder de falar diariamente a milhões de brasileiros pelo rádio e televisão. Se bem trabalhado, era um poderoso instrumento de formação de opinião. E João era um craque da fala. Conhe-cia os atalhos para chegar ao radiouvinte e ao telespectador.

O comentarista esportivo Juca Kfouri, amigo de João, tem uma tese:– Ele era o cara que, de alguma maneira, podia reunir de novo a con-

fi ança da torcida, absolutamente desmoralizada depois do fi asco de 1966. Diante da desmoralização geral, o Havelange, que, independentemente de posições políticas, sempre foi esperto, faz o convite ao João como uma ma-

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neira de, no mínimo, dividir a porrada. Deve ter pensado: “Quem é o cara que pode trazer uma onda de otimismo, de confi ança, que é popular, que é querido e que me deixa um pouco na sombra? O João Saldanha”. Naquele momento, para ter o seu sossego, ele deu menos importância a qualquer confusão política que poderia advir dali.

Já Bebeto de Freitas, sempre próximo do tio, nunca entendeu exata-mente porque o chamaram: para que ele deixasse de ser crítico? Ou para que se desmoralizasse efetivamente como crítico?

Na época, o jornalista Maurício Azêdo fazia a cobertura esportiva para a revista Realidade. Ele se recorda do momento de desgosto com o time brasileiro, antes do convite a João.

– A seleção estava desacreditada. Era programado um jogo para o Ma-racanã, e, se desse 20 mil, 30 mil pessoas, já seria um público extraordiná-rio, porque ela havia chegado a um ponto muito baixo.

O Brasil e, principalmente, a CBDCBD e Havelange precisavam que o selecio-nado voltasse a despertar a emoção do torcedor. Recuperar a auto-estima, ganhar prestígio e, se possível, calar a boca de João Saldanha. Se Havelan-ge desacreditou da competência de João e apostou em seu fracasso como técnico, jogou mal. Mas, se pensou que os resultados seriam ótimos e que os nervos de Saldanha o derrubariam, pensou bem.

Feliz com o novo desafi o, João omitiu o convite até dos amigos de tra-balho na Última Hora.

A expectativa era grande, e a imprensa em peso estava na porta da sede da CBDCBD, na rua da Alfândega, no centro do Rio: após muitos boatos, a enti-dade anunciaria o nome do novo técnico. João lembraria:

– Entrei no carro da Última Hora, e o fotógrafo me disse: “Vou à CBDCBD fotografar o novo técnico. Quem você acha que é?” “Sei lá”, respondi.

Com a sala lotada de repórteres, fotógrafos, fi os e microfones, Have-lange anunciou o homem que fi caria exposto em vitrine para os olhares, críticas e elogios de milhões de brasileiros: João Saldanha.

Enquanto os jornalistas olhavam uns para os outros, sem acreditar, João falou pela primeira vez como treinador do selecionado. E soltou logo uma bomba: já escalara o time titular e o reserva. Surpresa geral, inclusive para Havelange e Passo, que não gostaram da atitude.

João tirou do bolso um pedaço de papel e apresentou a lista.Titulares: Félix; Carlos Alberto, Brito, Djalma Dias e Rildo; Piazza, Gér-

son e Dirceu Lopes; Jairzinho, Tostão e Pelé.

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Reservas: Cláudio; Zé Maria, Scala, Joel Camargo e Everal-do; Clodoaldo, Rivellino e Paulo César; Paulo Borges, Toninho Guerreiro e Edu.

Detalhe: os dois times escalados num 4-3-3. – Meu time são onze feras dispostas a tudo. Irão comigo até

o fi m. Para a glória ou para o buraco. A decisão de chamar de feras os jogadores foi dele, para atiçar os brios.

João queria garra. Num momento posterior, ele explicaria:– A seleção estava precisando de impacto, e aquilo era uma tentativa

de transmitir otimismo. Sem um contato maior com o povo, sem o povo refl etir isso, ia ser difícil. Havia aquele negócio de canarinho, “os onze ca-narinhos”, mas eu achava meio fraco para os objetivos.

Algumas vezes, João também diria que, com “fera”, ele queria botar meia-sola na palavra “cobra”.

– Cobra estava barato demais. Porque a maior fera é o homem. E, para ganhar a Copa, é preciso ter homens. Minha seleção tem onze feras.

Admirado por João e admirador do comentarista desde que começou a jogar profi ssionalmente, Tostão credita a ele a reversão do clima de baixo-astral que tomara conta da imprensa e da torcida após a Copa da Inglaterra.

– O João criou as feras, um discurso otimista, que o Brasil tinha que jogar o seu futebol, de suas raízes, e não copiar o estilo europeu. Ele der-rubou aquela história de que o futebol-arte tinha chegado ao fi m, de que o

João Saldanha em reunião com Havelange (na cabeceira da mesa) na sede da CBD: a seleção sob novo comando, 4 de fevereiro de 1969

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tempo era do futebol-força. Nelson Rodrigues chegou a chamar de “idiotas da objetividade” os que defendiam a velocidade burra. João provou que o futebol brasileiro, de toques, dribles, cadenciado, ainda tinha espaço.

Enquanto João dizia que não pensava em ser o técnico, Zagallo só pen-sava nisso. Em excursão ao México com o Botafogo, time no qual era trei-nador campeão, ele também foi pego de surpresa pela notícia de que João comandaria o selecionado brasileiro:

– O jornalista João Areosa chegou para mim e falou assim: “Sabe quem é o técnico? O João Saldanha”. Eu digo: “Não acredito”. Porque João era o comentarista da Continental, trabalhava na TVTV Rio, era colunista de jornais. Quer dizer, jamais eu poderia acreditar. “Verifi ca e me concretiza isso.” Na-quela época, a tecnologia demorava quatro dias para fazer a informação chegar de volta… Até que houve o retorno, e o Areosa disse: “Olha, foi con-fi rmado”. Eu disse: “Bom, é vida que segue”.

Quatro décadas depois, Zagallo conta que a notícia marcou sua vida. Ele também reconhece um fator defi nitivo para que João conquistasse a boa vontade e o apoio do torcedor:

– João era um comunicador fora de série. E o povo gostava dele, todo o mundo gostava dele, pela maneira de ser.

Na época, Havelange foi muito solicitado a manifestar-se sobre o novo técnico. Numa dessas ocasiões, disse o seguinte:

– Saldanha tem muitos conhecimentos técnicos, revelados através de sua vida jornalística. Fala cinco idiomas. As viagens, quase cinqüenta, o atualizaram. Conheço-o desde rapaz. Ele está dando dimensão e dinâmica às suas funções, e 85% da torcida está a seu favor.

Ninguém precisava ensinar João Saldanha a identifi car um craque. Ele conhecia todas as manhas dentro e fora das quatro linhas e convocou o que de melhor havia jogando na época das eliminatórias. A base eram o Santos, o Cruzeiro e o Botafogo. As feras restantes vinham de outros clubes: Fluminense, Atlético Mineiro, Grêmio, Internacional, São Paulo, Corinthians e até Bangu (o ponta-direita Paulo Borges). João escolheu os jogadores um a um, sem interferência de natureza política ou comercial. Convocou quem quis.

Foi uma atitude inteligente? Para aquele momento, sim. Para o futuro e a estabilidade no cargo, não. Sem querer, fi cou isolado: o time era só dele. Estava, portanto, vulnerável a críticas da comissão técnica. O dr. Lídio Toledo, chefe do departamento médico da CBDCBD, por exemplo, poderia vir a

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