JOAQUIM POPULISMOS É FOAi4A ELEGANTE DE NÃO … · A Universidade era muito retrógra-da, o tipo...

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História 01-02-2017 ENTREVISTA DIZER JOAQUIM "POPULISMOS" É FOAi4A ELEGANTE DE NÃO QUERER D "FASCIVLOS" lextosde Pedro Olavo Simões Fotagralosde RuiOliveira/ Globallmagens

Transcript of JOAQUIM POPULISMOS É FOAi4A ELEGANTE DE NÃO … · A Universidade era muito retrógra-da, o tipo...

História

01-02-2017

ENTREVISTA

DIZER JOAQUIM

"POPULISMOS"

É FOAi4A

ELEGANTE

DE NÃO QUERER

D "FASCIVLOS" lextosde Pedro Olavo Simões

Fotagralosde RuiOliveira/ Globallmagens

ENTREVISTA

Algarvio com sangue portuense, quase to-da a vida passada em Coimbra, onde nos recebeu. Joaquim Romero Magalhães, catedrático jubila-

do da Faculdade de Economia da mais antiga Universidade portuguesa, é um homem de paradoxos, mas não de con-tradições. O antipraxista que foi pre-sidente da Académica, o homem que não é fanático pela cidade mas coman-dou a Assembleia Municipal durante 12 anos, o laico que faz pausa na conver-sa para partilharmos um monástico li-cor de Singeverga. Referência maior no estudo da Época Moderna, o historiador que presidiu à Comissão dos Descobri-mentos é, também, um homem político - milita no PS, foi secretário de Estado em governos de Mário Soares e foi depu-tado constituinte - sem discurso politi-queiro. Fala claro e não se perde em con-versa fiada.

Quem olhar para o seu percurso, da ju-ventude à maturidade, vê um cidadão irrequieto, ou inquieto. Essa inquieta-ção é a chave para compreendermos a sua vida pública? Sim, há uma certa inquietação, que sempre tive, mas a minha vida, sobre-tudo a parte pública, também tem sido muito fruto do acaso, sendo o acaso um cruzamento de linhas que nós não do-minamos, mas que estão lá. Fui secre-tário de Estado porque o [Mário Sot-tomayorl Cardia me escolheu, e esco-lheu-me porque eu tinha estado com ele na Assembleia Constituinte, e antes disso tinha estado aqui, quando ele veio expulso para cá. Há um cruzamento de acontecimentos... Fui para a Comissão dos Descobrimentos porque o [Antó-nio Manuel] Hespanha era meu amigo e achou que eu poderia dar continuidade àquilo que ele tinha feito. Enfim, há uma certa inquetação, sim, mas também o acaso. E, talvez também por isso, eu vá-rias vezes fui, sem me preocupar muito com as consequências. Avancei sem me preocupar muito com o que isso trazia, embora eu seja cauteloso.

O avanço parte do pressuposto de ha- ver, pelo menos, uma convicção? Sim, sim. e sempre tive o gosto de fazer.

Desde novo. Chegoua serpresidenteda Associação Académica de Coimbra...

Fui, em 64...

-. em 64. Foi esse o início da sua vida pública? Foiatéantes disso, pois fui presidente do Teatro de Estudantes, em 1962 e 1963.

Essa necessidade de intervir vem-lhe do facto de ser neto de dois fervorosos republicanos, João da Rocha Vieira Ma-galhães e Santiago Formosinho Rome-ro? Estava a assumir a sua matriz ge-nética? Sim, mas não tanto dos meus avós como do meu pai, embora o meu pai não tenha tido o percurso de que, provavelmen-te, gostaria. Mas também aceitava desa-fios com facilidade. E também teve uma trajetória engraçada. Tripeiro, foi para o Algarve e lá se fixou e, depois, dali, ir-radiou, com uma ação cultural bastante interessante. Mas sempre tripeiro. En-tão ao telefone, era impressionante. Fa-lava como se estivesse na Rua de Cimo de Vila, onde nasceu.

Tripeiro sempre, tal como o Prof.Rome-ro se manteve sempre algarvio. Mas eu também sou um algarvio mui-to especial. Gosto muito do Algarve e sou muito algarvio em muitas coisas, mas vim para Coimbra, depois fui pa-ra o Porto, onde fiz uma carreira no en-sino liceal, de que gostei muito, e de-pois voltei para cá e acabei por me fixar aqui, talvez um pouco também por aca-so, embora a minha mulher seja aqui da região. Mas não sou assim fanático por Coimbra... E fui presidente da Assem-bleia Municipal durante 12 anos!

Nasceu e cresceu num Algarve alheio àquele que conhecemos, profunda-menteaiterado pelo turismo. Esse tem-po que ali testemunhou foi importante para adquirira sua consciência cívica e construir a sua sensibilidade política? Sim, sim. O Algarve era uma terra mui-to pobre, que só como turismo se desen-volveu. Em Faro, no centro da cidade, andei numa escola onde boa parte das crianças que andavam comigo iam des-calças, porque não tinham sapatos e não por gosto, como os meus netos, que che-gam aqui e se descalçam logo.

Acaba o liceu e vem para Coimbra. En-controu uma diferença muito grande entre os "reinos" de Portugal e dos Al-garves? Não era assim tanto. O que me tocou

mais em Coimbra foi a chuva, não estava habituado a tanta chuva. Era muito mau mesmo e, depois, também não tinha re-cursos. Não era um indigente, mas tam-bém não tinha sapatos para mudar a to-da a hora conforme a água que apanha-va. O estar fora de casa é algo diferente, mas é muito bom. Felizmente que não havia universidades regionais nesse tempo.

Mas foi benéfico elas serem feitas en-tretanto, não? Sim, sim, sim... mas eu acho que devia ser um pouco como era no serviço mi-litar obrigatório: fazer girar os moços.

Como sucedia com os magistrados. Sim, e por aí fora. Para não ficarem sem-pre agarrados à mesma coisa.

Para rasgarem horizontes? Exato.

A sua presidência da Associação Aca-démica de Coimbra ocorreu entre as fa-mosas crises académicas lisboeta, em 1962, com Jorge Sampaio, e coimbrã, em1989, comAlberto Martins. O asso-ciativismo estudantil estava necessa-riamente politizado, apesar da repres-são? Estava, claro. Eu vivia numa república, e eram as repúblicas que, em geral, di-namizavam as eleições para a Associa-ção Académ ica. A lista era mesmo apre-sentada como do Conselho das Repú-blicas. E era, obviamente, de oposição. Nunca topei que fosse do setor A, B, ou C. Mais tarde, sim, mas nesse tempo era simplesmente de oposição.

Havia a unidade de um objetivo co-mum? Uma unidade relativa. lá nessa altura, naturalmente, havia partidos que pro-curavam puxar a brasa à sua sardinha, mas, em geral, a gente entendia-se. Era oposição, simplesmente, e esse objetivo comum tornava tudo mais fácil.

De que formas é que os jovens estu-dantes de Coimbra conseguiam ser oposição? Muito difícil, muito difícil... Fazia-se, so-bretudo, através das manifestações cul-turais que nós conseguíamos pôr de pé. Dos conferencistas que convidávamos, das peças de teatro que procurávamos fazer, dos filmes que organizávamos em ciclos para os estudantes... E também, e

"A UNIVERSIDADE

ERA MUITO

RETRÓGRADA.

O TIPO DE ENSINO

ERA SEBENTEIRO, E

NOS REAGÍAMOS UM

BOCADO A ISSO"

ENTREVISTA

nessa altura houve uma certa pressão nesse sentido, nas questões pedagógi-cas. A Universidade era muito retrógra-da, o tipo de ensino era sebenteiro, e nós reagíamos um bocado a isso. As organi-zações estudantis, no sentido de alte-rar as formas da pedagogia e da didáti-ca, eram fortes, e isso era também uma forma de oposição a uma Universidade que era estatal e bem ligada ao Estado.

Estatal e estática... E estática, completamente.

AAcadémica e as associações em geral assumiam o papel de abrir horizontes que caberia à própria Universidade? Tentávamos. Repare que como gran-de associação só havia esta, porque em Lisboa nem todas as faculdades tinham associação de estudantes (havia as pró--associações, que funcionavam mais ou menos clandestinamente) e no Por-to creio que erasó a da Faculdade de Far-mácia, não havia mais nenhuma.

E a Associação Académica de Coimbra, viabilizada pelo Estado, conseguia ser do contra? A Associação Académica de Coimbra, dos anos 30 e 40 e até à presidência do Salgado Zenha, foi muito governamen-tal, mas depois libertou-se. Claro que, de vez em quando, eles ganhavam as eleições...

Era um espaço onde havia democracia, coisa rara. Havia, havia... Mas, em qualquer caso, era tudo gente capaz.

"AS ESTRUTURAS

PARTIDÁRIAS

FICARAM UM POUCO

ANQUILOSADAS

E TORNARAM

DIFÍCIL A

ASCENSÃO.

AS MÁQUINAS

DOMINARAM"

proa que tinham. O Partido Socialista levou toda a velha oposição republica-na. O Vasco da Gama Fernandes, o Antó-nio Macedo, que era o presidente dopar-tido e uma pessoa fantástica, o Alcides Monteiro, o Alvaro Monteiro, de Viseu, o Teófilo Carvalho dos Santos, o Tito de Morais... eu sei lá a quantidade de gen-te muito boa. E depois, gente mais nova, muito nova. Eu era dos mais novos, mas havia ainda mais novos do que eu.

Avancemos até ao pós-25 de Abril, quando o encontramos como constru-tor do Estado democrático, ou seja, de-putado à Assembleia Constituinte. Fo-ram tempos muito intensos? Se foram! Estive na Constituinte de ju-lho a abril, e era dos que não faltavam. Estava lá sempre e era um chato, porque fazia perguntas e queria saber o que es-tava a votar. Há uns deputados que es-tão lá só para se levantarem e sentarem, mas não era o meu caso. Asvezes, o Hen-rique de Barros, presidente, chateava--se comigo e dizia "esteja lá calado"...

O que mudou na atração das elites para a vida política? Na altura não havia os chamados quadros partidários, é isso? Não havia, não havia... Vamos lá ver. As estruturas partidárias ficaram um pou-co anquilosadas e tornaram difícil a as-censão. As máquinas dominaram, pra-ticamente, e a gente vê isso, nuns parti-

É verdade que, nesse tempo, as pes-soas mais valorosas estavam lá? Era um conjunto apreciável de pessoas que sabiam o que estavam a fazer. Os par t idos fizeram avançar as figuras de

dosmais do que noutros. Nuns é possível, ainda, partir as máquinas. Foi o caso do que o António Costa fez, há dois anos. Noutros, vamos a ver se há alguém que consiga partir a máquina ao Passos Coe-lho. Não quero dizer que seja mau ou bom, não estou a fazer juízos de valor.

Mas há, de um modo geral, um poder instalado. Acho que sim. Aliás, já houve uma análise do Pacheco Pereira, aqui há tempos, sobre isso, que me pareceu muito sensata.

Esteve nos dois primeiro governos constitucionais, liderados por Má-rio Soares, e, como governante, to-mou parte numa das mais importan-tes revoluções dentro da Revolução, que foi a reforma e a massificação do

ensino. Como foi isso? Foi terrível, pois foi tudo precipitado. Não havia estruturas que aguentas-sem aquilo. O desejo legitimo de demo-cratização, no sentido de alargamento e universalização, era extremamente difícil, por falta de gente, mas lá se con-seguiu, lá se foi conseguindo. Só houve uma coisa que me ficou engasgada pa-ra sempre: é que não foi possível lançar o pré-escolar. Aliás, só foi possível com o Marçal Grilo e com o Guterres, vinte e tal anos depois.

Olhando para o estado do ensino, hoje, de uma forma geral. Era aqui que que-ria chegar? Sim e não. Sim, porque me parece que as estruturas estão muito mais atuali-zadas e modernizadas. Eu vejo, sobre-

tudo pelo meu neto mais velho, que eles já não têm aquele ensino estereotipado, velho e obsoleto que nós tivemos. Aqui há tempos, olhando para um programa de Física, do meu tempo, cheguei à con-clusão de que aquilo era Física do século XVIII. Eu, no século XX, estudei uma Fí-sica do século XVIII. Isto é um exemplo, mas podia dar muitos. É claro que houve um momento, nos anos 80 e 90, em que parecia que ia ser bastante melhor, so-bretudo, a formação dos professores. Is-so é que me parece que hoje está a preci-sar de ser revisto. Mas tenho uma certa fé neste jovem ministro que lá está.

Concorda que, ao longo dos anos, a ne-cessidade política de apresentar resul-tados quantitativosdesucessolevouao nivelamento por baixo da exigência?

"A SOCIEDADE

PORTUGUESA ESTÁ

A FICAR, TALVEZ,

UM BOCADO

OTIMISTA DE MAIS,

MAS ESTÁ

A FICAR OTIMISTA,

E ISSO É DOM"

Não. Todas as exigências que têm sido feitas, em matéria de exames, de afe-rições, etc., têm puxado bastante pe-los moços. Eu vejo pelo meu neto de seis anos, que foi agora para a escola primá-ria (está no ensino oficial, os meus ne-tos estão todos no ensino oficial), chega a casa e tem trabalhos para fazer todos os dias. Há ai uma exigência que eu pen-so que está a correr bem.

Sublinhou o facto de os seus netos es-tarem no ensino oficial. Como vê a rela-ção entre público e privado, no ensino? Houve uma certa facilitação, uma aber-tura excessiva ao privado. O privado tem o seu papel, isso é i negável, mas é preciso que seja com conta, peso e me-dida. E não foi. De maneira que agora, como se estão a repor as coisas nos ei-xos, naturalmente que quem se sentiu afetado chiou.

Há muitos interesses em jogo? Há interesses... Acredito que haja por ai bons colégios, mas quem quer ter lá os filhos paga. Não tenho nada contra. Re-conhecem-se-lhe os exames, reconhe-cem-se-lhe as notas, reconhece-se tudo isso, pelo que nãovejo que haja qualquer tipo de discriminação.

E o Estado... O Estado só tem depagar o que é público.

Mas perguntava eu se o Estado, en-quanto garante do acesso ao ensino, deve ser o promotor desse mesmo en-sino. Deve, deve, claro que sim. É uma tare-fa democrática. sem qualquer espécie de dúvida.

A delegação dessa missão pública em privados leva a uma subversão? Não penso isso. Há privados bons e maus, mas isso tudo tem de ser devida-mente regulamentado, de modo a que não haja abusos.

Como vê, hoje, o caminho que está a ser seguido pela nossa democracia? Eu confesso que sou muito partidário e, portanto, não enjeito a minha perten-ça a um partido político, e o que vejo é que este jovem primeiro-ministro, que eu conheço desde que ele tinhal4 anos...

Ai sim? Sim, quando eu era secretário de Esta- do, este menino assustava-me porque

me fazia entrevistas. Ele estava ligado a um programa de televisão, que tinha como consultora a Maria Alberta Mené-res, uma mulher notabilíssima, e o ami-go António Costa aparecia-me... Tinha 14 anos. mas eraterrível. Assustava-me, aquilo, porque o tipo puxava por mim e queria saber coisas que não devia, etc.

Como é que ele era? Bom. ele era um jovem associativo, e acompanhei-o mais ou menos, e de-pois, quando era, julgo eu, ministro dos Assuntos Parlamentares, o Guterres de-legou nele a missão de despachar com a Comissão dos Descobrimentos. Por-tanto, voltei ala lidar com ele. Admiro-o muito. E o que me parece que ele conse-guiu agora introduzir - vamos lá ver se isto dá certo - é um certo otimismo que não havia. Penso que asociedade portu-guesa estáa ficar, talvez, um bocado oti-mista de mais, mas está a ficar otimis-ta, e isso é bom, tem aspetos muito po-sitivos.

Antes otimista dogue pessimista... Antes isso, antes isso, antes isso...

O fado português não existe? O fado... Eu não sou nada para o fado... E não sou grande apreciador.

O seu partido está no Governo, apoiado, de forma inédita, à esquerda. Estamos a ganhar com isso? Sim. Eu, pelo menos, tenho perdido me-nos na minha pensão de reforma, o que já me satisfaz alguma coisa (risos). Ago-ra, a sério, a gente vê que os resultados não são maus e há, de facto, um certo oti-mismo nas coisas. E tenho uma grande fezada, falando assim, no trabalho da minha colega de faculdade, e minha vi-zinha, a Maria Manuel Leitão Marques, que tem tido uma ação notável na re-forma do Estado. Serena, mas a trans-formar as coisas. E isso é qualquer coi-sa de extremamente importante. Não só as grandes reformas, que se possa dizer "mudou tudo" (e não mudou nada), mas ir mudando as coisas.

É possível reformar sem fazer sangue? Exato. E ela está a trabalhar muito bem.

Num momento em que, no mundo, as-sistimosà ascensão da extrema-direi-ta e de populismos de ordem diversa, Portugal continua a ser um oásis? Quanto a isso dos populismos, tenho as

minhas dúvidas. Isso de dizer 'populis-mos' é uma forma elegante de não que-rer dizer 'fascismos', que é o que é.

Então, se eu reformular a pergunta, usando fascismos, pioro ainda o cená-rio. E Portugal é ou não um oásis, ao não ter uma extrema-direita expressiva? Oásis não. Apesar das dificuldades e de tudo o que tem passado, a França ain-da está à esquerda. A Bélgica tem uma composição que também puxa para es-se lado. A Itália também estava no mes-mo caminho... A Europa é muito varia-da, são vinte e tal estados.

Retiro, então, a palavra "oásis", que pressupõe um caso isolado... É minoritário, isso sim, é minoritário, neste momento. Mas, também, noutros momentos tem sido majoritário, aque-les anos áureos do Mário Soares, do Bru-no Kreisky, do Olof Palme, dessa gente toda. Do Willy Brandt, do Miterrand...

Asgrandessociais-democraciaseuro-peias, que parecem ter desaparecido... Mas repare que é muito engraçado. Veja a grande social-democracia alemã, por exemplo, que empurrou, e a gente sabe que empurrou, para as medidas terrí-veis que foram tomadas aqui em Portu-gal. No entanto, para eles próprios, não alteram as coisas que têm. Eles mantêm as estruturas sociais-democratas a fun-cionar.

Somos, quase 43 anos depois do 25 de Abril, um povo com maturidade políti-ca? Acho que sim. Há uma coisa que me pa-rece evidente e, até, fácil de analisar. Tirando raríssimas exceções, as maio-rias políticas mudam. Isso é um sinal de saúde.

De leitura da situação por parte dos ci-dadãos. É, é... Eu sei que foi preciso mudar a le-gislação municipal e obrigar aos três mandatos, mas não eram muitos os que estavam eternamente. E não me faz confusão nenhuma que, numa deter-minada cidade, que esteve durante 20 anos nas mãos de um partido, venha ou-tro. Isso é normal e é saudável.

Se tivesse de se definir numa palavra, o que escolhia:professorou historiador? Historiador. Professor já fui, já aca-bou. Mas gostei muito de ser professor.

E mais: gostei de dar aulas na Universi-dade, sim, mas o verdadeiro gozo de dar aulas é nos liceus.

Fale da sua experiência no então liceu

de D. Manuel li, no Porto. Eu estive lá de 1970 a 1973, três anos le-tivos.

Saiu, antes do 25 de Abril, de uma es-

cola que veio a ser das mais agitadas no

período revolucionário... Depois foi, mas na altura só houve para láumsarrabulhoqualquer, não me lem-bro de quê, mas sem importância.

Mas em que é que essa experiência o

marcou tanto? Ensinar é ver crescer e é proporcionar o crescimento. Isso, nosecundário,vê-se, sente-se, apalpa-se. No Superior não. A gente dá as aulas e os tipos que estudem, se quiserem. É completamente diferen-te. Ali, não: ali acompanha-se, e isso dá um certo gozo.

Foi professor liceal, por exemplo, do

historiador Luís Miguel Duarte...

Fui sim senhor. Eu tinha uma turma ter-rível. Essa turma ia dando cabo de mim, porque eles eram absolutamente in-críveis. Sabiam, estudavam e procura-vam apanhar-me. Davam cabo de mim, mas num sentido estimulante. No final do primeiro ano em que dei aulas a es-ses meninos, fui à cama. com uma gri-pe, mas a gripe era mais do que isso (ri-sos). Uns tipos fantásticos!

Enquanto docente universitário, Coim-

bra foi a sua pátria, embora tenha já di-

to que não encarna totalmente o espíri-

to coimbrão. É verdade. Não sou um fanático de Coimbra e não alinho naquele fadinho habitual, sobretudo dos estudantes que passaram por aqui sem terem feito grande coisa. Também já sei isso. O que fica muito saudoso é aquele que nunca fez nada. Gosto de Coimbra, sem dúvi-da, mas o Ensino Superior é um ensino frio, distante. Não tem a mesma pressão que tem o Ensino Secundário.

A propósito de Coimbra, como se en-

quadra na capítulo das ditas tradições

académicas? Fui sempre antipraxista e não vou mu-dar agora. Sempre, sempre, sempre...

Dói-lhe observar alguns comporta-

"ENSINAR É VER

CRESCER E É

PROPORCIONAR O

CRESCIMENTO. ISSO

NO SECUNDÁRIO

VÉ-SE, SENTE-

SE, APALPA-SE. NO

SUPERIOR NÃO"

"FUI SEMPRE

ANTIPRAXISTA

E NÃO VOU MUDAR

AGORA. GUANDO

VEJO ESSE GOZO

COM OS CALOIROS,

IRRITO-ME"

mentos no espaço da Universidade?

Sim. Quando vejo esse gozo com os ca-loiros, irrito-me, mas calo-me, porque a gente não se pode meter com eles. Mas isso lembra-me uma coisa engraçada. O meu pai foi aluno da Faculdade de 1.e-tras do Porto, da primitiva [nota: funcio-nou de 1919 a 19311, do Leonardo Coim-bra, Teixeira Rego, etc. E o meu pai con-ta, num livro que estou a lançar agora,

com as cartas dele - reuni cartas do meu pai,170 peças, enfim. a que chamei "Uma escrita na primeira pessoa" - e o meu pai conta, dizia, que, sendo caloiro da Faculdade de Letras, em1927, foi con-vocado para uma reunião de caloiros, ainda antes de começarem as aulas. E, então, o que era? Eram os veteranos que queriam discutir com os caloiros como é que lhes haveriam de fazer a receção. E quem presidiu à reunião foi nada me-nos que o Agostinho da Silva, que disse: "Nada de praxes à coimbrã: vamos mas é fazerumbaile!". Eareceção foi um bai-le. Isto em 1927!...

Enquanto docente universitário, foi,

também, uma espécie de trota-mun-

dos. Deu aulas em Yale (nos Estados

Unidos), em Paris, São Paulo...

Gostei muito disso, em part icular de Ya-le, que foi urna experiência extraordi-nária.

Porquê? Porque as condições de trabalho são ótimas. Primeira coisa: poucas aulas. Deixa-se aos estudantes espaço para que possam trabalhar. Aqui, não. Aqui enfardam-se os estudantes com vin-te e tal horas por semana e outras coi-sas. Lá, não. Depois: livros à disposição com toda a facilidade. Não há aquilo que aqui acontece, nas nossas biblio-tecas, quando nos dizem que está para restauro ou para encadernação e é so-negado. Isso em Yale não há. Pode estar preso por um fio, e eles dizem-nos para ter cuidado e não estragar, mas não ne-gam o acesso. Depois, urna vida cultu-ral de uma densidade e de uma inten-sidade como aqui nem podemos pen-sar. Em Yale - eugosto muito de música clássica e sou melómano -, havia con-certos quase todos os dias. Orquestras, pequenos grupos de câmara, recitais de solistas, etc. Teatro, muito teatro. Passavam lá as companhias, porque, nos Estados Unidos, as grandes com-panhias fazem digressões e vão a de-terminadas terras onde sabem que têm público. E New Haven, que é a cidade onde está Ya le, é urna dessas terras. Eu vi uma encenação do Peter Hall que vi-nha de Londres. Foi uma experiência muito rica, apesar de eu só lá ter estado um semestre, em 2003.

Nunca sentiu a tentação de largar isto e

partir para outras paragens?

Não, nunca.

Nos anos 60, a verdadeira aprendizagem tinha de ser feita fora dos bancos da Faculdade

"OS PROFESSORES

ERAM SERVENTUÁRIOS

DO REGIME"

O Direito foi a sua primeira opção uni-versitária, porque não queria ser pro-fessor. Foi uma experiência curta. A História falou mais alto? Não queria ir para professor, porque o meu pai era professor... Não foi propria-mente a História que me.chamou, mas achei o Direito horrível. As aulas, na Fa-culdade de Letras, eram muito más, mas na Faculdade de Direito eram horríveis. Era uma chatice, aquilo! Não era para mim. No Natal, eu já nem queria voltar para Coimbra.

Era demasiado técnico ou burocrático? Não posso dizer isso, não cheguei a tal. Eu andava ali no Direito Romano, na História do Direito Português, que era muito chato, como Braga da Cruz...E um tal Pires de Lima, que eram uma seca horrível, as aulas do homem... Definiti-vamente, aquilo não era para mim.

Em Letras, as aulas também não eram propriamente estimulantes, certo? Sim, embora tenha tido um ou outro professor muito bom, mas corno ex-ceções.

Costuma dizer que a sua formação não foi feita na faculdade, mas depois, cri-ticando o tipo de ensino que encontrou nos anos 60. Isto mudou muito, nas suas quatro décadas de docência? Mudou mesmo muito. A qualidade dos professores de hoje é muito superior. Não tem comparação possível. Naque-le tempo, os professores eram serven-tuários do regime, na maior parte. Não eram propriamente investigadores, ou, se o eram, ensinavam cada dispara-te, cada baboseira que não havia gosto possível para aquilo. É claro que apare-cia, por exemplo, uma Maria Helena da Rocha Pereira, um Silvio Lima... Apare-ciam assim umas figuras, mas, repito, como exceções.

Esses professores acabavam por ser, assim, figuras autoreprimidas? Não creio... Eram pessoas que não eram do contra. Mas sabiam ser investigado-res a sério.

Falando em investigadores a sério: foi a atração pela Época Moderna que o le-vou a Vitorino Magalhães Godinho, ou foi ele que o empurrou para lá? Fui eu, fui eu. O Magalhães Godinho foi a minha tábua de salvação, mas eu é que fui à procura dele.

E verdade que foi atrás dele para a praia? Fui, fui... fui atrás dele para Albufeira e apanhei-o. Por um acaso, uma amiga minha era colega, em Medicina, da filha mais velha dele, e disse-me que elesiam para Albufeira. Quando soube, fui à pro-cura dele. Ele era muito generoso. Quem queria trabalhar podia estar à vontade com ele. Agora, para quem não quises-se trabalhar era muito complicado, isso era. Não era uma pessoa fácil...

E como é que, estando numa Univer-sidade tão fechada, o aceitaram como seu orientador? Aceitaram perfeitamente. O responsá-vel pelo seminário, nessa altura, era o doutor Salvador Dias Arnaut, com quem eu tinha uma excelente relação pessoal. Falei-lhe que tinha esta hipótese, e ele disse logo: "Aproveite, aproveite". De-pois, também disse ao Manuel Lopes de A lmeida, que tinhasido um ferozminis-tro da Educação, em 1962, mas que tam-bém achou muito bem. Eles nunca pen-saram em mim para o Ensino Superior, portanto tanto se lhes fazia.

Vitorino Magalhães Godinho não era uma pessoa apreciada pelo regime... Ele estava expulso!... Mas eles respeita-vam-no como historiador. Talvez não o citassem nem aconselhassem muito as coisas dele, mas respeitavam-no. O Lo-pes de Almeida, em especial, respeita-va-o muito.

Naquele tempo, Magalhães Godinho seria uma raridade em Portugal, no que respeita a horizontes historiográficos. Era incomparável. Não tinha nada a ver com o que havia aqui. As conversas com ele eram muito estimulantes, e a biblio - grafia que facultava era espantosa. Eu ia a casa dele, em Lisboa, e saia de lá carre-gado de livros. 'linha de ir de táxi, o que não era muito agradável para mim, pois tinha de pagar, mas não podia transpor-tar aquilo tudo de outra maneira.

Nunca fez isso aos seus alunos, enchê--los de bibliografia? Assim tanto, não. As coisas são diferen-tes. As aulas que eu dei na Universidade, a partir de 73, 74 eram completamente abertas, não tinham nada a ver com an-tigamente.

Quando se abalançoua fazer o doutora-mento, a História económica e o Algar-

ve foram escolhas naturais? Tinha de ser. Foi o Magalhães Godinho que me empurrou. Ele já me tinha em-purrado para fazer a licenciatura sobre o Algarve do século XVI, que fiz, e de-pois queria que eu fizesse sobre o En-tre Douro e Minho. Ora, o Entre Dou-ro e Minho era uma loucura de traba-lho. A quantidade de freguesias que ali há é urna coisa que nunca mais acaba. Não dava. Então, assentei com ele fazer a continuação, de certo modo - os sécu-los XVII e XVIII -, para o doutoramen-to.. E havia já, nessa altura, coisa que não havia para o século XVI, dados quanti-tativos, e o Magalhães Godinho estava nessa altura muito focado nas quanti-ficações. Portanto, pude avançar nisso.

Nunca deixou de ter a costela algarvia na sua produção historiográfica? Não tanto assim. Mas sou chamado muitas vezes. Ainda agora vou fazer lá a apresentação do livro do meu pai, mas também vou fazer uma coisa no arqui-vo de Loulé, que é um belíssimo arqui-vo, talvez do melhor que há em arqui-vos municipais - tirando o do Porto, cla-ro, mas melhor do que o de Lisboa. Sou realmente chamado ao Algarve, mas eu já reuni as coisas algarvias num vo-lume. De algum modo, sou um filho da terra que fica bem na fotografia. Mas gosto muito de trabalhar nos "Anais do Município de Faro", porque, de fac-to, com grande espanto meu, tem apa-recido muita gente a querer colaborar. Claro que sou historiador e não posso ignorar essa minha qualidade, mas te-nho procurado que as pessoas escre-vam memórias. A memória não é Histó-ria, é aquilo de que a gente se lembra. E têm aparecido coisasmuito engraçadas. Vou-me divertindo.

Está a produzir fontes para o futuro? Sim, também, talvez...

A História de Portugal dirigida por José Mattoso foi um marco na historiogra-fia, tendo então cabido a si a coorde-nação do volume dedicado essencial-mente ao século XVI. O que represen-tou, para si, esse trabalho? Um esforço absolutamente medonho, porque foram para aí dois anos de mui-to trabalho, porque os prazos eram pa-ra cumprir... No dia em que tinha de es-tar pronto, estava. Houve apenas uma alteração, não me lembro já se foi comi-go, na ordem dos volumes que saiam.

i:

Em termos historiográficos, apresentá-mos uma estrutura totalmente diferen-te do habitual. O que tínhamos atrás de nós era o Damião Peres, a História dita de Barcelos, que é uma bela obra, nas-cida da Faculdade de Letras do Porto. Mas era uma coisa dos anos 20. Fazer al-go nos anos 90 era um grande desafio, muita coisa tinha mudado em 70 anos. No meu volume, o que fiz foi dar tam-bém uma volta à ordem natural das coi-sas. A demografia, por exemplo, apare-ce no capítulo quinto e não no primeiro, como era habitual, e a geografia... O ar-ranque foi com as formas políticas e, de-pois, foi por aí adiante, até à sociedade, que é o culminar, o fechar, mas a socie-dade vista sob o ponto de vista cultural, coisa que nos anos 90 também tinha al-guma novidade. Mas já lá vão quase 30 anos. Quando, há dois anos, o Círculo de Leitores reeditou a obra, queriam que se atualizasse, e eu recusei.

Tinha de fazer um volume novo...

Era outra coisal... Acho que ninguém, dos autores originais, esteve disposto a fazer isso. Era impossível.

Os descobrimentos e a expansão por-

tuguesa continuam a ser o cerne da mi-

tologia nacional (ou nacionalista)?

Nacionalista, com certeza. Nacional... eu penso que bem, pois trata-se de um período interessante, de grande esforço de atualização. Os homens de quatro-centos e de quinhentos esforçaram-se para dominar a natureza e consegui-ram-no, foi formidável. É extraordiná-rio pensarmos que os tipos saíam nuns barquitos, verdadeiras cascas de noz -mesmo as naus do Vasco da Gama são umas coisas pequeninas -, para a Índia, ou atravessavam o Atlântico Sul. Penso eu que as grandes dificuldades que eles tiveram são as dificuldades normais do homem perante a doença. Toda a equi-pagem do Vasco da Gama morre no Índi-co, no regresso, como escorbuto e aque-las trapalhadas todas.

Embora a investigação tenha ultrapas-

sado isso, o senso comum está muito

agarrado a chavões como o de a expan-

sãotersido feita para "irradiara fé ais-

tã".Como é que isso se combate?

Só há uma forma de o combater: com a ciência. Não é a religião, pois a religião é mais do que legitima, mas aquilo a que os franceses chamam "bigoterie" só po-de ser combatido com a ciência. Não ve-

jo outra maneira... Embora a minhamu-lher seja sobrinha-neta do Tomás da Fonseca, portanto, de um ambiente an-ticlerical. (risos)

Estudar essa época abriu-lhe caminho

a novas paixões, como o Brasil ou Ma-

cau, numa fase posterior...

Sim, sim, mas não tanto Macau como o Brasil.

Compreender o império é essencial pa-

ra a compreensão de Portugal?

É, claro. Na minha opinião, há três gran-des mestres nesta coisa. É o Godinho, obviamente, Charles Boxer e um autor que pouca gente estuda, que é lohn Ho-race Parry, um inglês que foi professor em Harvard e andou, exatamente. na navegação e na História da ciência. Com esses três mestres, a gente vai lá. Todo o trabalho que essa gente fez (conheci dois deles, o Boxer não muito bem, mas o Godinho sim, de forma muito próxi-ma) e, também, as vias que eles abriram são fundamentais para a gente perce-ber isso.

A Comissão dos Descobrimentos foi

um espaço de realização ou foi uma

missão política? Não, não, nada de missão política. Nin-guém me exigiu nada, ninguém me pe-diu nada. Tive uma relação muito agra-dável, sempre, com o António Guterres, que eu já conhecia de outras lides, e dei-xou-me sempre à vontade. Não tive tan-to dinheiro como precisava, para fazer o que queria, mas, mesmo assim, ter nas mãos um instrumento daqueles dá um grande prazer a quem gosta de fazer coi-sas. Poder dinamizar isto e aquilo, um congresso, um encontro, uma viagem...

Conseguiu fazer coisas bonitas?

Uma ópera, uma óperal... Trouxe "O Guarani" [obra do compositor brasilei-ro Carlos Gomes] a São Carlos. Acabei com um concerto da Orquestra Metro-politana de Lisboa a tocar a sinfonia "A Pátria", do Vianna da Moita, e com a ba-lada para piano, como Artur Pizarro... coisas que nunca tinha pensado fazer.

Quando deu à estampa o livro "Vem aia

República", que descreveu como a sua

própria proclamação da República,

quis fazerjustiçaa um regime mancha-

do por décadas de propaganda hostil?

Entre outras coisas, foi por esse moti-vo, mas resultou, também, de uma ne-

cessidade que eu tinha de perceber aquilo. Acho uma coisa absolutamen-te extraordinária como é que um regi-me político com sete séculos cai. Havia qualquer coisa que era preciso estudar. Para mim, pelo menos, consegui ver o percurso decadente da monarquia, até cair. E nisso, para além de todas coi-sas, houve um guia fantástico, chama-do João Chagas, sobre quem também es-crevi um livrinho. Uma figura absoluta-mente central nisto tudo, não depois de 1910, mas antes de 1910.

O centenário da República propiciou

uma atividade historiográfica muito

intensa... Sim, e ainda não se conhece tudo o que estava programado. Houve atrasos, e certas obras, se calhar, nunca sairâo... Mas, honra lhes seja, houve duas figuras centrais por trás de todo esse trabalho: Artur Santos Silva, que, enquanto pre-sidente da Comissão das comemora-ções, foi de uma correção e capacidade de iniciativa fantásticas, e a atual secre-tária de Estado do Ensino Superior, Ma-ria Fernanda Rollo.

Tanto conhecimento ajudou o país a fa-

zer aspazes com esse período?

Talvez, mas ainda há o Vasco Pulido Va-lente, o Rui Ramos e outros quejandos, que continuam a dizer o mesmo e que estão na continuidade do salazarismo, sem qualquer dúvida.

Esse livro, "Vem aia República", abre

com uma nota prévia datada de 31 de

janeiro de 2009. Foi coincidência, ou

quis homenagear os revoltosos de

1891? Foi de propósito, sim. (risos) Mas tive mais prazer em assistir ao que se pas-sou no dia 31dejaneiro de 2010, no Porto, com o arranque das comemorações do centenário. Foi uma belíssima jornada.

Nuncaa historiografia portuguesa teve

tanta visibilidade como hoje. Publica-

-se muito. Quantidade e qualidade an-

dam de mãos dadas?

Há muito boa qualidade, sim senhor. Embora me pareça que estão melhor as partes medieval e contemporânea do que aparte moderna.

De facto, apesar de na Época Moderna

termos a Expansão, essas cronologias

aparentam sempre estar pouco estu-

dadas, em relação às que as precede-

ram e às que lhes sucederam. O que é que causa isso? Não sei. Simplesmente, não sei.

Escreveu que não alinha em colocar a historiograf ia em gavetas, velha ou no-va, convencional ou positivista... Não, não. Ou é boa ou é má.

Boa e má. E orgulha-se do seu ecletis-mo, que, presumo, tem a ver com a acei-tação do que de bom há em cada corren-te.Ao marcar essa posição, está a dizer que também há historiadores que só conseguem afirmar-se rompendo com os que os antecederam? Sim, sim. Mas essas ruturas fazem parte de um certo progresso aparente...

As famosas mudanças de paradigma... De paradigma, pois... Nós, aqui, gramá-mos com o pós-modernismo. A certa al-tura, na Faculdade de Economia, toda a gente falava no pós-moderno, e eu nun-ca percebi bem o que é que isso era ou o que eles queriam. Não vale a pena...

Consegue encontrar um pragmatismo associado à História, como ferramen-ta para perspetivar o futuro e ler o pre-sente, ou as pessoas teimam em não aprender com o passado? Que aprendem mal é verdade!Mas tam-bém é verdade que invocam muitas ve-zes. A gente ouve, muitas vezes, "por-que não sei quê..." e é História, normal-mente mal contada. Mas é. É claro que os tempos mais recentes não têm sido muito propensos à divulgação de uma boa História, mas, apesar de tudo, vai lá, porque há muita gente a trabalhar. É uma verdade a quantidade de gente no-va que publica, que apresenta teses...A1-gumas são más, mas são.

Não deixa de ser curioso, tratando-se de um ofício que não traz fortuna... Exato... E há muita gente nova boa. É for-midável.

Escreveu que a História é "uma narra-tiva, um ato literário que deve agradar ao escrevente e ao leitor". Comunicar ao maior público que consiga alcançar é uma preocupação sua? Sim. A História não faz sentido se for hermética, se for mal escrita, se for enigmática, nada disso. Tem de ser urna coisa corrida, fácil, acessível... Fácil na forma, mas não no conteúdo. Comple-xa, quantas vezes, mas de forma sim-

"OS TEMPOS MAIS

RECENTES NÃO

TÊM SIDO MUITO

PROPENSOS À

DIVULGAÇÃO DE

UMA BOA HISTORIA,

MAS, APESAR DE

TUDO, VAI LÁ"

"A HISTÓRIA

É SEMPRE

PARA

OS OUTROS,

PARA TODA A

GENTE. E ISSO

INCLUI TAMBÉM OS

HISTORIADORES"

pies. Nada de complicar. Claro que há autores barrocos que são bons, não du-vide disso, mas uma escrita complica-da, normalmente, encobre deficiências.

Encontra-se muito disso no meio aca-démico? Muito, muito, infelizmente. Mas a culpa disso é dos que deixam passar.

A importância de escrever para os pa-res antes de o fazer para o público, até por questões de progressão na carrei-ra, penalizou a escrita da História? Penalizou e muito. Há um autor inglês, não sei agora quem, que diz que há a His-tória para os historiadores e a História para os outros. E isso é verdade. Eu sou dos que acham que a História é sempre para os outros, para toda a gente. E cla-ro que isso inclui também os historia-dores.

Procurou desenvolver um estilo que o distingue? Procu rei, sim. O meu estilo, se é que o posso caracterizar, é, sobretudo, assen-te no ritmo. Pelo menos, é isso que eu penso.

Herdou essa preocupação com a escri-ta do seu pai, Joaquim Magalhães, um homem da literatura? Sim e não. Nunca falei disso com o meu pai, mas ele era de uma fluência fantás-tica, e eu não sei se era trabalhada ou não.

Já falou do livro que acabou de lançar com cartas do seu pai. Que revelações encontramos ai? É, sobretudo, o percurso íntimo. As cartas que o meu pai escreveu duran-te toda a vida do meu avô. O meu pai nasceu em 1909, e a primeira carta de-le que eu tenho é de 1918. Urna criança que agradece ao seupai ter-lhe manda-do os parabéns. Nesse período, prova-velmente por causa do Sidónio Pais e das complicações no Porto, o meu avô mandou a minha avó e os filhos para casa da mãe, no Marco de Canaveses, na beira-Douro, e o meu pai fez lá o exa-me da terceira classe. Depois, volta pa-ra o Por to e, claro, deixa de haver car-tas para° pai, mas, a partir do momento em que se licencia, em 1931, no último curso da Faculdade de Letras do Porto, vem aqui para Coimbra fazer o estágio e, a partir daí, escreve ao pai com mui-ta frequência. Consegui reunir uma

mo o seu, o de Álvaro Garrido...

O Álvaro é o meu discípulo!...

E o seu mestre foi, já o sabemos, Vito-

rino Magalhães Godinho. Fale-nos de

outras referências portuguesas com

que se construiu como historiador.

Talvez me tenha marcado também, em termos de perceção da História da cul-tura, a Maria Helena da Rocha Pereira, que eu respeito e admiro muito. Mais ninguém assim marcante.

Tudo o resto é do seu tempo ou veio de-

pois de si?

Sim, mas no liceu tivegrandes professo-res, aí sim. Eu tive excelentes professo-res no liceu e não na Universidade...

E as referências de ler, internacionais?

Eu sempre fui omnívoro, no que respei-ta à leitura. O Fernand Braudel, claro... Quando o Magalhães Godinho, no ve-rão de 64, numa esplanada em Albufei-ra, me disse "Você tem de ler isto, aqui-lo e aqueloutro", deu-me para ali uma bibliografia a que eu, nem que vivesse cem anos, conseguia chegar, e estava lá o Braudel, claro. Eu nem sabia como se escrevia o nome. Nunca tinha ouvido falar em tal sujeito. Mas cheguei cá e fui à Faculdade de Letras, que tinha uma biblioteca notável. Havia praticamente tudo aquilo de que se precisava. E eu re-quisitei o Braudel [nota: "O Mediterrâ-neo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe Tive o Braudel, na tradu- ção espanhola, porque era o que havia (a segunda edição francesa é posterior e a tradução espanhola é dos anos 50), e

boa quantidade. Não todas. As do meu avô, provavelmente, estão no espólio do meu pai, na Universidade do Algar-ve. Depois, há cartas para mim, que es-tava a sair para Coimbra, e por ai fora. Há ainda um conjunto de cartas mui-to interessantes para o Adolfo Casais Monteiro. Foram colegas na faculdade e, aqui em Coimbra, no estágio, e fica-ram amigos. Isso está no espólio do Ca-sais, na Biblioteca Nacional. Para o filó-sofo, para o Alvaro Ribeiro, há também alguma coisa.

Muita gente não saberá, mas é ao seu

pai que Portugal deve a descoberta e a

publicação do António Aleixo...

O meu pai foi um grande divulgador cultural, sobretudo no Algarve, embo-ra tenha corrido um pouco o país a fa-zer conferências. E a invenção do Alei-xo é uma coisa fundamental. Quando o meu pai o conhece e, depois, consegue publicá-lo. Há uma correspondência muito interessante com o Casais Mon-teiro, que mostra que o meu pai tentou que fosse uma grande editora, em Lis-boa, a publicar o Aleixo, mas não con-seguiu. Eu acompanhei esse processo, mas não tenho coisa nenhuma dessas, apenas um volume que o Aleixo ofere-ceu ao meu pai, e é engraçado que é um livro da esquerda, do período da guer-ra. quando ele estava aqui no sanatório, em Coimbra. Eu falei disto ao neto, que é o atual presidente da Câmara de Loulé, que também associa a vinda do av6 para Coimbra a uma esquerdização dos ver-sos que fazia.

Por falar em guerra: escapou à Guerra

Colonial?

Escapei, fiquei em Espinho. E gostei muito de viver ali. Aliás, sou um algar-vio que gostou muito de viver no Norte. Os meus filhos nasceram no Porto, na Ordem do Terço.

Pois, quando deixou Coimbra para ser

professor liceal...

A verdade é que os tipos não me quise-ram. Na Faculdade de Letras, nem pen-sar. porque aquilo era só padres e bea-tos. Na Faculdade de Economia, quan-do eu quis ir para lá, responderam-me que não ia haverHistória económica pa-ra ninguém...

Mas isso mudou, e associam-se à Fa-

culdade de Economia de Coimbra no-

mes importantes da historiografia, co-

"A INVENÇÃO DO

ANTÓNIO ALEIXO

É UMA COISA

FUNDAMENTAL:

QUANDO O MEU

PAI O CONHECE E,

DEPOIS, CONSEGUE

PUBLICÁ-LO"

t rouxe para casa, para o quartinho onde vivia, os dois volumes, e tive-os lá du-rante um ano, porque ninguém preci-sou deles!... Está tudo dito em relação ao que era a Faculdade de Letras.

Outros nomes que lhe encham as me-didas?

O Duby, por exemplo. É um grande es-critor. O "La vie des campagnes" é mui-to bom. Mais do que as outras coisas, até. O Le Roy Ladurie, outro historiador de topo. O próprio Lucien Fèbvre continua a ser uma referência. Ainda outro dia fui fazer uma conferência sobre Histó-ria e Geografia e lá fui ler o Febvre. Ah, e a historiografia espanhola. Sobretu-do, na altura, estava muito na berra o Vi-cens Vives, catalão, que me serviu de muito. Depois, mais tarde, o Antonio

Domínguez Ortiz e toda essa gente que eu trabalhei muito bem.

Os anglo-saxónicos revelaram-se posteriormente? Sim, isso veio depois. Ainda li alguns, mas não me formaram como formaram os franceses.

Agora, por os jovens não aprenderem a língua, os franceses estão a tornar-se inacessíveis? Sim, é verdade. E os ingleses estão a simplificar demasiado as coisas. Aque-las pequenas teses, muito rápidas, mui-to feitas à pressão, segundo os prazos. Claro que o trabalho francês, nas gran-des teses de Estado, era impossível de manter. Veja lá, 20 anos a fazer uma te-se! Isso também não pode ser.

ENTREVISTA

Historiador e cidadão inquieto

Perfil

IFfalta-lhe a aura mediática que torna alguns dos pares mais reconhecidos pelo cidadão comum, mas não é justo. A dimensão de Joaquim Rome-ro Magalhães não se confina à de notável his-toriador, na medida em que. desde muito no-vo, foi um cidadão empenhado em causas, o que lhe tem valido ocupar posições de grande des-

taque: enquanto profissional, é uma referência incontorná-vel no estudo da Época Moderna em Portugal: enquanto cida-dão, éassumidamente alinhado e orgulhoso da sua militancia no Partido Socialista. que lhe abriu as portas da Assembleia Constituinte e, também. de funções governativasnos primei-ros dois executivos liderados por Mário Soares.

Filho de loaquim Magalhães, o professor de literatura por-tuense, radicado no Algarve, que descobriu e deu a conhecer António Aleixo, o historiador nasceu em Loulé. em abril de 1942. Deixou o Algarve na hora de ir para a Universidade, on-de acumulou desilusões, embora o destino de então.Coimbra. tenha vindo a ser o de quase toda a vida. As desilusões conta--as ele nesta entrevista. Salvou-se, enquanto historiador, fo-ra da Universidade, procurando, por conta e risco, numa ida à praia, o seu verdadeiro mestre, Vitorino Magalhães Godinho.

Foi Godinho, proscrito do salazarismo e caso excecional de vanguardismo na historiografia portuguesa, quem o enca-minhou e lhe proporcionou a formação que na Universida-de não existia. Unia Universidade que tolerava este desvio à ortodoxia porque não contava com ele. Assim começou um percurso profissional iniciado no ensino liceal (esteve dois anos a lecionar no Porto, no então D. Manuel II) e entrecortado pela experiência política. Tudo mudou com a chegada da Li-berdade, em 1974, e, um ano depois, vamos encontrar Rome-ro Magalhães como um dos mais jovens deputados à Assem-bleia Constituinte. Depois, vemo-lo como secretário de Es-tado da Orientação Pedagógica. num gabinete chefiado por SottomayorCardia. E só em 1985 assistimos ao doutoramento. em Coimbra, com uma dissertação intitulada "Algarve Eco nómico -1600-1773".

Embora tenha tido convites de outras instituições, fez da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra a sua principal casa, daí partindo para pontuais experiências em universidades estrangeiras. sendo a Yale University (Ncw Haven, Connecticut, EUA) a que mais o fascinou. Especialista consagrado na época áurea do passado português, liderou, de 1999 a 2002, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

Todo o percurso público deste homem transmite urna per-manente inquietação, um desejo de fazer coisas. Do tempo em que, enquanto estudante. presidiu à Associação Académica até ao momento em que, para dissipar as dúvidas que o assal-tavam, decidiu estudara fundo a I República. nunca deixou de se reinventar.