Joazinho questoes psicologia

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REVISTA “NOVA ATENAS” DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA REVISTA ELETRÔNICA DO DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTES – BIOLOGIA - SEGURANÇA DO TRABALHO Volume 8, Número 02, jul/dez/2005 (Disponibilizado em dezembro de 2006) QUESTÕES PSICOLÓGICAS DO ESPORTE João Batista Freire www.decorpointeiro.com.br Um circo de horrores Um dos acontecimentos decisivamente marcantes da história do Brasil foi uma inconfidência, a mineira, que sacrificou Tiradentes, mas não a idéia de independência. Inconfidência quer dizer infidelidade, deslealdade, alguma coisa que nunca deveríamos praticar. No século XVIII, no entanto, a deslealdade à Coroa portuguesa foi a maneira mais digna de se assumir brasileiro para os conjurados de Vila Rica. Por tudo o que tem acontecido ultimamente, dentro e fora dos campos esportivos, o esporte está morrendo. A liberdade de ser autônomo, justo, emancipado, inteligente, solidário, feliz tem sido tolhida em cada atleta, em cada torcedor. Há excesso de fidelidade aos desmandos do esporte; faltam inconfidentes. Fôssemos mais inconfidentes e a cortina de ferro que envolve os bastidores dos treinamentos esportivos teria sido rompida. Muito se fala à boca pequena, mas pouco é dito publicamente sobre as práticas obscuras de técnicos e dirigentes, particularmente no que se refere aos métodos de preparação para a obtenção de grandes performances. Sobre a prática de corrupção, das federações aos comitês olímpicos, até que alguns crimes têm sido denunciados ultimamente. Os atletas que se tornam vítimas de tais métodos, incluindo da tortura à chantagem, confidenciam a amigos os abusos sofridos, mas não se rebelam contra eles, não dizem publicamente o que sabem, não praticam inconfidências contra o poder que os maltrata. São calados pelo dinheiro recebido ou

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REVISTA “NOVA ATENAS” DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA REVISTA ELETRÔNICA DO DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTES – BIOLOGIA - SEGURANÇA DO TRABALHO

Volume 8, Número 02, jul/dez/2005 (Disponibilizado em dezembro de 2006)

QUESTÕES PSICOLÓGICAS DO ESPORTE João Batista Freire

www.decorpointeiro.com.br

Um circo de horrores

Um dos acontecimentos decisivamente marcantes da história do Brasil

foi uma inconfidência, a mineira, que sacrificou Tiradentes, mas não a idéia de

independência. Inconfidência quer dizer infidelidade, deslealdade, alguma coisa

que nunca deveríamos praticar. No século XVIII, no entanto, a deslealdade à

Coroa portuguesa foi a maneira mais digna de se assumir brasileiro para os

conjurados de Vila Rica.

Por tudo o que tem acontecido ultimamente, dentro e fora dos campos

esportivos, o esporte está morrendo. A liberdade de ser autônomo, justo,

emancipado, inteligente, solidário, feliz tem sido tolhida em cada atleta, em

cada torcedor. Há excesso de fidelidade aos desmandos do esporte; faltam

inconfidentes. Fôssemos mais inconfidentes e a cortina de ferro que envolve os

bastidores dos treinamentos esportivos teria sido rompida. Muito se fala à boca

pequena, mas pouco é dito publicamente sobre as práticas obscuras de

técnicos e dirigentes, particularmente no que se refere aos métodos de

preparação para a obtenção de grandes performances. Sobre a prática de

corrupção, das federações aos comitês olímpicos, até que alguns crimes têm

sido denunciados ultimamente.

Os atletas que se tornam vítimas de tais métodos, incluindo da tortura à

chantagem, confidenciam a amigos os abusos sofridos, mas não se rebelam

contra eles, não dizem publicamente o que sabem, não praticam inconfidências

contra o poder que os maltrata. São calados pelo dinheiro recebido ou

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prometido, ou pelas ameaças esplícitas ou veladas de punição e de ruína de

suas carreiras esportivas.

Quantas vezes, enquanto fui técnico desportivo, recebi confidências de

atletas drogados por seus técnicos ou torturados em treinamentos

absurdamente exaustivos; no entanto, quando lhes perguntava se diriam aquilo

em público, eles respondiam que não. Durante anos, aguardei algum tipo de

inconfidência, pelo menos daqueles que amadureceram e deixaram de ser

atletas, mas isso nunca aconteceu. Um exemplo marcante? Provavelmente

nunca saberemos exatamente o que ocorreu com os jogadores de futebol da

seleção brasileira durante as horas que antecederam a final contra a França,

na Copa do Mundo de 1998. Mesmo aqueles que já deixaram o futebol

dificilmente falarão publicamente o que sabem.

Quem esquecerá a imagem da pobre garota brasileira da ginástica

olímpica, que, após um gesto arriscado, arrebentou a perna às vésperas de

uma olimpíada? Fadiga de material! Os ossos e tendões não suportaram. Mas

ela não se queixou publicamente, não denunciou ninguém, não praticou a

inconfidência que tanto aguardei. Não há inconfidentes no esporte. O pacto de

silêncio é tão forte que um ou outro conjurado causa assombro, de tão raro.

Ninguém quer passar pelo sofrimento pelo qual passou Aurélio Miguel, um dos

poucos que já se atreveram a enfrentar os coronéis do esporte. Ainda se

poderia citar o dr. Sócrates, mas a insubmissão dele também direcionou-se

contra os coronéis, cujo dossiê, em parte, foi levantado pela CPI do futebol.

Entretanto, neste texto, darei preferência ao que ocorre na prática do

treinamento desportivo, hoje em dia, impropriamente chamado treinamento

científico. Mais especificamente quero me referir às chantagens praticadas por

técnicos e dirigentes para que os atletas treinem mais, aos excessos de

treinamento, aos absurdos dois turnos adotados por quase todos os esportes.

A imprensa registrou casos de treinamentos de voleibol que chagavam a oito

horas diárias de práticas. A especialização precoce no esporte é uma crença

nacional, como se a alta performance dependesse sempre do sacrifício da

infância.

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Nosso atletas de alto nível, não raro, são arrancados de suas infâncias e

adolescências, chegam a alguns grandes resultados e se tornam doentes,

vítimas dos excessos de treinamentos, às vezes das drogas ou do isolamento

social. Faço coro às críticas do professor Manuel Sérgio, registradas em um de

seus últimos trabalhos:

Quando se proclama, por aí, com muita irresponsabilidade

à mistura, que o desporto dá saúde – importa salientar a

que desporto nos referimos, pois as vedetas do desporto

de alta competição findam, quase sempre, as suas

carreiras desportivas com deficiências físicas, decorrentes

de uma prática que os instrumentalizou. Ninguém faz este

desporto para Ter saúde; fá-lo porque tem saúde. (1)

Se perguntarmos a esses jovens atletas em plena ascensão por que se

submetem a isso, ouviremos deles, com freqüência, que estão fazendo o que

mais querem fazer na vida. Esse argumento é esgrimido como justificativa dos

desmandos contra essas crianças, como se, na infância, fossem capazes de

definir com absoluta segurança seus rumos de vida, quando nem nós, adultos,

o sabemos. Tanto não sabem sobre o crime praticado contra eles, porque são

crianças, que, se tentarmos retirar dos monturos meninos e meninas catadores

de lixo, também eles se recusarão a sair. Quem não conhece outras opções,

quem teve seu universo de possibilidades limitado a esse ponto, não tem

escolha. Fica fácil para quem dirige atletas argumentar com o discurso dos

próprios atletas.

Esse é o quadro atual do esporte que tanto aplaudimos. Esse é o circo

de horrores no qual são produzidos os feitos heróicos de boa parte dos nossos

ídolos esportivos. Vale a pena fazer esporte dessa maneira? De minha parte,

estou convencido que não e, se dependesse de mim, isso terminaria. Assim

como a justiça não aceita confissões sob tortura, também os resultados

esportivos sob tortura não deveriam ser aceitos. Muitos sabem que isso

acontece, mas quase todos se calam. Não é estranha a ausência de denúncias

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de abusos na imprensa esportiva? Não é estranho o silêncio dos técnicos mais

famosos, nas várias modalidades esportivas, quanto ao uso de drogas, por

exemplo?

Qual o sentido de um esporte cruel como o que aplaudimos? Preferiria

que ele não existisse. A continuar desse jeito, será cada vez menos jogo e

mais trabalho. Até que se extinga de vez, transformado em rotina exaustiva,

que fará expectadores dormirem nas arquibancadas ou diante das telas de TV,

tal a sua monotonia. O esporte só faz sentido porque é jogo, porque mobiliza

nossa dimensão lúdica. Quando deixar de ser assim, e isso está próximo, que

sentido terá para nós? A não ser, talvez, a violência, por motivos obscuros,

sempre preservada; violência intolerável por vários de nós, mas lúdica, sim,

porque o jogo não é feito só de virtudes.

Antes, porém, de nos conformar com a atual situação, podemos pensar

se o esporte não poderia ser feito de outro jeito. A única forma de fazer esporte

seria essa, estúpida, que transforma jogadores em trabalhadores forçados,

crianças em miniaturas de adultos, divertimento em rotina de trabalho? A arte

corporal do esporte só pode ser conseguida com torturas, com drogas, com

doses cavalares de creatina? Um jovem precisa transformar-se num monstro

para ser atleta? O esporte tem mesmo de consolidar-se como um circo de

horrores? Claro que não, e os exemplos contrários a isso são fartos em nosso

país, para quem quiser ver.

Em seu bairro, no Rio de Janeiro, durante muitos anos Mané Garrincha,

brincando, aprendeu a arte de jogar futebol de uma maneira inigualável em

todo o mundo. Mesmo depois de se tornar profissional, continuou brincando

pelos campos de nosso País, até que a violência consentida do esporte acabou

com a arte que maravilhava nossos olhos. Também não foi repetindo as rotinas

estúpidas de uma escolinha de futebol que Pelé aprendeu a jogar, mas

brincando com uma bola na várzea de Bauru. E assim aconteceu com grandes

craques do futebol brasileiro, do basquetebol nos Estados Unicos, do hóquei no

Canadá. Portanto, há uma outra maneira, sim, de fazer esporte. Nossos

“cientistas” do esporte, com suas creatinas e outros suplementos alimentares,

tornaram-se cegos para a pedagogia.

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Aspectos psicológicos do esporte

O argumento científico é muito forte. Tão forte como foi o argumento

religioso, séculos atrás. Uma certa ciência convenceu-nos amplamente de que

esporte só pode ser feito da maneira como é feito, transformando-o num circo

de horrores em que pessoas são drogadas, torturadas e submetidas a

trabalhos forçados, em que dirigentes corrompem e são corrompidos, e o único

norte a orientá-lo chama-se dinheiro. Corpos são vendidos como mercadorias

baratas ou caras, como se fazia nos mercados de escravos ou como ainda

acontece nas zonas de prostituição. Porém, essa ciência está errada, ou mal-

intencionada. Ela deixou, por exemplo, de considerar o mais forte dos

argumentos: o esporte é uma manifestação de jogo, portanto, deve ser

praticado como jogo, como brincadeira, diversão, risco. Por suas

características, o esporte opõe-se ao trabalho, sem eliminá-lo. Em várias

modalidades esportivas, encontramos técnicos que desenvolveram verdadeira

aversão ao jogo, chegando ao ponto de não admitir em seus times jogadores

que se atrevem a jogar.

Portanto, não é a ciência, de modo geral, que se opõe ao esporte,

substituindo-o por um trabalho semi-escravo, mas uma certa ciência, uma

determinada idéia de ciência, que se desumanizou e não leva em conta a

subjetividade do pesquisador ou do sujeito pesquisado. (2) Sem dúvida, há

outras maneiras de fazer esporte, porem, menos convincentes, porque não

usam o argumento financeiro como o decisivo. Tal esporte vemos nascer em

todos os lugares em que há crianças brincando e cidadãos comuns se

divertindo. Esse esporte, que manifesta tão bem o espírito do jogo, tem sido o

nascedouro, ainda hoje, de grandes artistas em todo o mundo.

Muito se poderia falar, tanto sobre os equívocos dos tais cientistas do

esporte que estou reprovando como sobre as alternativas a essa ciência.

Porém, o tempo e o espaço são curtos e tenho de me ater a um tema

específico. Do tanto que se poderia dizer, fico com uma das possíveis questões

psicológicas do esporte que me ocorrem, de modo a encaminhar alternativas

ao circo de horrores que mencionei: a inteligência do esporte.

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A inteligência humana

Não há questão humana que não seja também psicológica. Nenhum de

nós tem o poder de, repentinamente, determinar que essa ou aquela questão

deixou de ser psicológica porque é eminentemente lógica. Sequer sabemos se

o mundo que vemos é, em si, exatamente como o vemos ou se o que

constatamos é apenas produto de nossas representações. Não é espantoso

verificar que um mesmo acontecimento apreciado por uma multidão de

pessoas é descrito por cada uma delas de forma completamente diversa?

Deixo claro, portanto, desde o início, que não acredito haver alguma

questão no esporte que não seja, inclusive, psicológica. Convencionemos, pois,

que, nesse caso, vamos realizar uma abordagem sem reportá-la diretamente a

outras dimensões e vamos chamar de psicológico aquilo que é também

intelectual, físico ou social.

Não sendo psicólogo de formação, tendo apenas realizado meu

doutorado em psicologia, tornei-me, entre outras coisas, um interessado nos

estudos sobre o desenvolvimento da inteligência. Se posso contribuir nesse

debate, portanto, o farei naquilo que se refere ao exercício da inteligência no

esporte, não sem antes ter declarado minha descrença em relação ao embuste

praticado por todos os que, dizendo-se investigadores, realizam os desmandos

já apontados neste artigo, e faço coro, nesse caso, a diversos outros autores

mais competentes que eu.

Escolhido esse caminho, crio, de saída, para mim, e talvez para o leitor,

um outro complicador, pois as pessoas, de modo geral, acostumaram-se às

explicações. Talvez elas busquem encontrar neste texto, mais que qualquer

outra coisa, algumas explicações sobre o que vem a ser inteligência, mas isso

não tenho. Posso buscá-las às dúzias em diversos autores, mas creio que

seriam todas inúteis. Reparem que não falei em compreensão, mas em

explicações. Quanto à compreensão, quem não a tem? O que não sabemos

fazer direito é explicar as coisas, mesmo podendo compreendê-las; o que não

conseguimos é colocar para fora o produto de nossa compreensão, uma vez

que é extremamente difícil transformar em palavras o que sabemos, pois o que

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sabemos não tem, dentro de nós, a ordem linear de palavras e frases faladas

ou escritas. A explicação é uma espécie de prestação de contas que se faz de

uma compreensão; ela dirige-se ao mundo exterior, objetivo. Nem sempre

conseguiremos explicar o que compreendemos e julgo mesmo que a melhor

maneira de fazer o outro compreender é, em vez de explicar-lhe alguma coisa,

dialogar com ele, argumentar.

Se a nossa questão central pudesse ser resumida a um conjunto de

explicações, eu começaria pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, farto

nelas. Posso encontrar ali, por exemplo, que a inteligência é a “capacidade de

resolver problemas e empenhar-se em processos de pensamento abstrato” (3)

Poderia também recorrer à biologia, sendo curto e grosso: “A inteligência é

uma adaptação”. (4) Ou ainda, segundo Piaget, “Afirmar que a inteligência é

um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é

essencialmente, uma organização e que a sua função consiste em estruturar o

universo tal como o organismo estrutura o meio imediato”. (5) De que valeria

repetir o que tão freqüentemente é dito sobre a inteligência, ou seja, que ela é

uma capacidade de resolver problemas?

Por mais que eu transcrevesse aqui explicações sobre a inteligência,

isso pouco nos ajudaria. Assim, o caminho deve ser outro, no caso, o da

argumentação e o da descrição. Além do mais, não podemos esquecer o nosso

problema específico – a inteligência no esporte - , ainda que sejam

consideradas suas relações com o mundo além do esporte.

O objeto central de investigação na minha tese de doutoramento foi a

relação entre as dimensões sensível e inteligível do ser humano. Teria sido por

demais longo e exaustivo examinar as relações entre todas as dimensões

humanas (estética, afetiva, lúdica, entre outras). (6) A dificuldade maior, em

uma tarefa como essa, seria estudar as relações do sujeito com ele mesmo,

pois os nomes dados a certas manifestações do ser humano são designações

diferentes para a mesma coisa, uma coisa de muitas faces.

Eventualmente, em determinadas circunstâncias, dizemos, por exemplo,

que uma pessoa está alegre, que está brincando. Percebemos nela um traço

lúdico que se sobrepõe, naquele momento, aos demais. Há um instante

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registrado por nossa percepção em que observamos um sujeito lúdico. E o

sujeito inteligível, ou o sujeito ético: onde estariam eles? Sem dúvida, não se

ausentaram, são todos o mesmo sujeito, apenas ocorreu que, naquela

circunstância, a face lúdica transpareceu mais do que as outras.

Em outro momento, a face crispada de uma pessoa, o seu olhar

ensandecido indicam que ela está com raiva. Suas palavras denotam

desequilíbrio e ela, como se diz, perde a cabeça e comete desatinos. Temos aí

um sujeito emocional. O que houve, nesse momento, com o homem racional?

Ele continua ali, apenas não tem o predomínio. As circunstâncias do momento

mobilizaram a dimensão emocional mais que qualquer outra, porém, por menos

que o faça, a dimensão racional mantém seus traços, de modo a não fazê-lo

perder-se na raiva que o acomete. Da mesma maneira, o pesquisador, à frente

do quadro repleto de cálculos, não abandonou suas outras dimensões,

continua sendo o mesmo diferente, tanto lúdico quanto estético ou social, a

depender das circunstâncias de sua vida.

Retomando o tema central deste texto, julgo que ser inteligente implica

ser capaz de tornar inteligível para si, e eventualmente para outros, o mundo

de acontecimentos, tanto externos quanto internos. Somente quando me faço

inteligível, posso me entender e ser entendido, de modo que a inteligência

incumbe-se de colocar minimamente em ordem todas as coisas que ocorrem

dentro e fora de mim, não importa como as chamemos, desde os mais

elementares impulsos aos mais complexos fenômenos sociais e naturais. Uma

criança com três anos de idade pode apavorar-se com o escuro de seu quarto

e chorar, o que não mais ocorrerá quando tiver instrumentos para tornar

inteligível o quadro que até então a apavorava.

Assim, pode-se afirmar que as designações com que procuramos

nominar cada parte do ser humano por nós definida, não são apenas nomes

diversos de uma mesma coisa, mas também consistem em dimensões diversas

de um todo interpenetrando-se e concorrendo para uma atividade humana justa

e equilibrada. Se, em uma mulher encarregada das poderosas decisões

econômicas de um organismo financeiro internacional, as dimensões da

emoção, da sociabilidade, do lúdico, da ética não concorrerem para equilibrar

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os desígnios da razão, o resultado de suas decisões poderá ser desastroso.

Um adolescente raivoso que não receber o devido socorro da razão poderá

perpetrar atos ruinosos.

Tais argumentos esvaziam o sentido das tentativas simplistas de

explicações sobre o que é inteligência, por muito tempo aceita como referindo-

se apenas a operações lógico-matemáticas. Reduzir o conceito de inteligência

a um simplismo tão grosseiro parece, à primeira vista, um equívoco primário de

pessoas pouco instrumentalizadas. Porém, numa análise mais extensa, tal

redução condenou populações inteiras a uma forma hedionda de educação que

permanece até hoje. Como resultado, testemunhamos a existência de um

mundo às voltas com um grande número de problemas gravíssimos, sem saber

a maneira de solucioná-los, deixando a cargo dos que alcançaram o poder

político a tarefa cotidiana de fingir soluções sociais, quando não fazem mais

que resolver seus particulares problemas políticos e financeiros.

O tema da inteligência é excessivamente longo para ser esgotado num

texto curto como este. Neste espaço reduzido, um recorte faz-se necessário,

limitando a discussão às aplicações da inteligência no esporte.

A inteligência no esporte

Em hipótese alguma uma pessoa que faz esporte deveria desenvolver

sua inteligência apenas nesse campo. É absurdamente injusto, apesar de

ocorrer com exagerada freqüencia, praticantes do esporte terem seu universo

inteligível reduzido aos limites do campo esportivo. A vida deveria ser, para

todos, mais que uma quadra de voleibol, uma pista de atletismo ou um tablado

de ginástica olímpica. Não sei por que razão a nossa sociedade, que rejeitou

tão fortemente a ditadura militar instalada no Brasil em 1964, é tolerante com

as ditaduras esportivas.

Quando um atleta brasileiro sagra-se campeão em alguma modalidade

esportiva, a imprensa, por exemplo, tece elogios indiscriminados à conquista,

sem dar-se ao trabalho de verificar como ela foi conseguida. Às vezes, o feito

esportivo foi obtido sob tortura, como ocorre, com tanta freqüência, no voleibol

ou na ginástica olímpica, para ficar apenas em dois exemplos. No caso dessa

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última, técnicos e técnicas exibem com orgulho os depoimentos de suas

crianças e adolescentes campeões. Geralmente os pequenos atletas eximem

de culpa os seus torturadores, dizendo que renunciam aos brinquedos, aos

namoros, aos passeios, à vida pessoal, porque estão convictos de que treinar

para serem campeões é o que mais querem na vida.

As possibilidades de ser inteligente, para qualquer um de nós, são

ilimitadas, se pudermos viver intensamente situações diversificadas e

motivadoras. No caso da excessiva exposição aos treinamentos de alto nível,

há pelo menos duas agravantes quanto ao desenvolvimento da inteligência. A

primeira é a redução da diversidade de situações, pois o praticante realiza um

excesso de uma coisa só. A segunda é o aprofundamento cada vez maior

nessa única coisa, uma superespecialização, reduzindo inclusive as

possibilidades de desenvolvimento daquilo que representava o objetivo mais

específico da preparação esportiva.

O que se poderia fazer, então? Haveria outro caminho a seguir no

desenvolvimento esportivo que não esse percorrido tradicionalmente, que

inclui, nos casos extremos, especialização precoce, contusões, limitações da

inteligência, excessos de treinamento e uso de drogas? Claro que há e, como

já afirmei aqui, ele foi seguido por vários excepcionais atletas do futebol, entre

eles, Garrincha, Pelé e Maradona, que aprenderam enquanto brincavam, como

qualquer criança de vida normal. Fossem nossos técnicos esportivos melhores

observadores, encontrariam nesses fenômenos esportivos a orientação mais

segura para suas pedagogias.

Refiro-me, mais especificamente, à educação esportiva, essa coisa que

tem sido tão bem feita pela cultura popular em algumas modalidades esportivas

e que os “gênios” do nosso esporte teimam em não reconhecer. A educação

esportiva sistematizada em centros esportivos, escolas e clubes teria a

incumbência de fomentar o exercício e o desenvolvimento da inteligência,

particularmente para as situações do esporte e no contexto mais geral da

sociedade, pois de nada vale saber esporte se nada soubermos da vida.

Reporto-me à inteligência como a ação de tornar inteligíveis as coisas, para si

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e para os outros, ou seja, como um arranjo particular de produções, desde os

impulsos mais primários às mais delicadas percepções estéticas.

Sendo muito amplo o tema, abordarei apenas alguns itens, possíveis

neste texto, julgando-os, nesse momento, os mais importantes, de acordo com

a linha de raciocínio que estou seguindo. Quero apenas mostrar a existência de

outros caminhos para se desenvolver a prática esportiva, além do comum e

tradicional, que tem gerado tanta estupidez.

O jogo deve ser jogado

Esse título serviu-se daquilo que, há muito tempo, vem dizendo a

sabedoria popular. Existe uma certa ordem em todas as coisas e em

conformidade com o contexto em que elas se inserem. Estar de acordo com

essa ordem é dar à ação uma simetria, uma estética, que a torna inteligível.

Esporte é jogo, é manifestação de jogo, como também o são outras

manifestações – as brincadeiras, lutas danças e ginásticas, entre diversos

outros exemplos possíveis. O conceito de jogo engloba muitas manifestações,

várias delas descritas em um trabalho recentemente publicado. Tive a

oportunidade de afirmar, entre outras coisas, que:

Resta, portanto, buscar o significado do jogo, não mais na

caracterização infindável de partes que o compõem, mas

sim na identificação dos contextos em que ocorre.

Seguramente há um nicho ecológico que acolhe o jogo e

lhe permite se manifestar, o único ao qual ele se adapta.

É nesse ambiente que temos que penetrar para tentar

compreender o fenômeno do jogo. (7)

Compreende-se, por conseguinte, que, sendo o esporte uma

manifestação de jogo, ao se dedicar às práticas, o esportista penetra nesse

ambiente, habita um contexto que, embora integrado por elementos também

presentes em outros meios, forma naquele momento um arranjo particular

caracterizado como jogo. Assim, para sair-se bem, para dar conta da situação

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lúdica específica naquele instante, ele tem que ser capaz de jogar, sem

confundir isso com outras situações não lúdicas.

A confusão que se faz é freqüente: os orientadores (técnicos, dirigentes,

preparadores físicos) confundem jogo com trabalho. Ao contrário do que era

permitido a jogadores como Pelé, Garrincha e Maradona, no futebol de tempos

atrás, esses profissionais impõem rotinas exaustivas que poucos trabalhadores

suportariam, descaracterizando o jogo. O resultado final é uma prática de

pseudojogadores que se aborrecem com o que fazem, não alcançam o nível da

arte em suas performances, perdem qualidade nos movimentos realizados e

deixam escapar a idéia mais geral do contexto de jogo. Se conseguem se sair

bem, é apenas porque os demais jogadores das outras equipes também são

orientados da mesma maneira, tornando, portanto, menor a qualidade do jogo

praticada em todas as equipes.

Alguns resultados desse conceito imposto ao jogo, pelos capatazes do

esporte, são recentes e evidentes. Na Copa do Mundo de 1994, a seleção

brasileira de futebol, de baixíssimo nível técnico, foi a vencedora de um grupo

especialmente típico de seleções de péssima qualidade. Realizou-se um

campeonato de trabalho, e não de jogo, em que os operários da seleção

brasileira, à exceção de um ou outro jogador, estavam lá para cumprir rotinas

de trabalho, em vez de práticas de jogo. Na atual seleção brasileira de futebol,

que vai à Copa de 2002 (escrevo antes do início da Copa), é nítida a

preferência do técnico por atletas pouco criativos, menos jogadores e mais

operários Poucas vezes, jogadores do nível de um Denilson ou um Romário

poderão Ter lugar entre os 11 titulares – eles brincam, e isso é proibido. Ainda

assim, se houver lá entre eles, algum que saiba brincar, isso fará a diferença.

Trabalho e jogo inevitavelmente se confundem. No esporte, contudo,

predomina o jogo sobre o trabalho; caso contrário, não é jogo. No jogo, ser

inteligente é jogar.

O jogo coletivo deve ser jogado coletivamente

Boa parte dos esportes conhecidos é coletiva. Deixar predominar em

sua prática atitudes individuais é contrariar a inteligência do jogo. No jogo

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coletivo, ser inteligente é ser coletivo, o que não significa abrir mão da

individualidade, pois o coletivo integra diferenças. De nada valeria que todos

fossem iguais, pois não haveria trocas. O segredo está na harmonia da

integração.

Alguns esportes, como o voleibol, em especial seus treinamentos,

embora pareçam cada vez mais uma linha de montagem fabril, tal a

mecanização das rotinas, caracterizam-se por um formidável esforço coletivo.

No último campeonato brasileiro de futebol, muitas pessoas se surpreenderam

com o êxito de equipes consideradas menores (em relação a campeonatos

brasileiros), entre elas, o São Caetano e o Atlético Paranaense. Não

perceberam, porém, que nessa época de ausência de jogadores talentosos,

tais times conseguiram compensá-la pela dedicação coletiva. Ora, se o esporte

é coletivo, a equipe que se comporta mais coletivamente tem aumentadas as

chances de êxito. Nesse caso, uma inteligência para a cooperação é

especialmente requerida.

A abertura de possibilidades

A crença na superespecialização instalou-se na nossa sociedade e

parece que veio para ficar por muito tempo. O esporte não escapou a essa

crença. Mesmo consagrado, o excesso de especialização parece que leva as

produções a um beco sem saída. Há uma crise de criatividade em todos os

setores. Amontoam-se os graves problemas na sociedade global, sem que

apareçam soluções criativas. Pouco se faz além da repetição das velhas

fórmulas produzidas pela hiperespecialização.

O esporte segue a mesma regra, e de tal maneira que poucos se

lembram dos heróis das últimas Olimpíadas. É mais comum as pessoas

recordarem os nomes de atletas como Jesse Owens, da década de 30, do que

do campeão dos 100 metros rasos da olimpíada realizada recentemente na

Austrália. O esporte tem corrido atrás somente do dinheiro, um Deus que exige

sacrifícios permanentes de almas. Poucos atletas escapam ao seu altar de

sacrifícios. Praticam uma monotonia sem fim, que faz dormir os expectadores

mais insistentes.

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Recentemente, milhões de brasileiros passaram meses aguardando que

a seleção brasileira despertasse, finalmente, para a arte, que sempre marcou

nosso futebol. Chamou mais atenção a comissão parlamentar que investigava

a corrupção na CBF do que a modorrenta campanha dos comandados de

Luxemburgo, Leão e Luis Felipe Scollari, o trio que parecia estar representando

o nada, aquela peste que ameaçava de extinção o mundo de fantasia, no livro

A História Sem Fim. (8) A monotonia, a falta de criatividade, a

superespecialização estéril tem seus vícios fundados na raiz do conceito atual

do esporte, tanto na sua aprendizagem como na consolidação das grandes

equipes.

Alguns esportes, como o voleibol, insistem nas velhas fórmulas de fazer

a iniciação dos jovens nas suas próprias equipes. Realizam triagens, escolhem

os mais altos e os colocam nos trabalhos de formação de base. Poucos

professores, nesse nível, são capazes de ir além do exaustivo exercício de

repetir interminavelmente gestos absolutamente descolados do contexto do

jogo. Outras modalidades, como o futebol, recrutam seus quadros entre os

jovens que aprenderam, nas brincadeiras, a dominar a arte desse esporte. Mas

apesar desse privilégio, depois do recrutamento, o talento desses jovens

costuma ser extinto nos grandes clubes, dando lugar à grotesca performance

de zagueiros e meio-campistas constituindo mais uma divisão de “panzers” que

um time de futebol.

Não é assim que se formam as coisas na natureza. Claro está que

nosso meio ambiente não é natural, mas cultural. Não obstante, nenhum de

nós está aqui para contrariar as leis que regulam todas as coisas do universo.

A natureza se forma na diversidade; por que motivo os seres humanos

deveriam aprender na especialidade? Na formação de base, todas as coisas

devem ser aprendidas por experiências as mais diversificadas possíveis. Para

argumentar a favor dessa idéia, pode-se recorrer às obras de estudiosos da

área da física, por exemplo, como Stephen Hawking, (9) que, em seu admirável

livro O Universo Numa Casca de Noz, desfila uma monumental coleção de

argumentos. Ou pedir ajuda a outro brilhante pensador, do campo da biologia,

o professor Jacques Monod. (10) Sem muito esforço, aprenderíamos com ele a

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respeito da diversidade como fundamento da formação das coisas mais

básicas da natureza.

Entre tantos investigadores de peso, a obra que mais me chamou a

atenção a esse respeito é um dos últimos trabalhos publicados por Piaget, O

Possível e o Necessário. (11) Segundo esse autor, qualquer ação, antes de ser

realizada, deve ser tornada possível. Em outras palavras, quando uma criança,

por exemplo, tem que lançar uma bola na direção da meta de futebol ou de

handebol, antes de fazê-lo, por um processo que geralmente lhe escapa à

consciência, cria um leque de hipóteses. Em seguida, uma dessas hipóteses

será testada, levando ao êxito ou ao fracasso. Ou seja, a necessidade de

realizar uma ação torna-se responsável pela criação de várias ações possíveis.

A ação escolhida entre todas as outras para realizar o objetivo da criança

poderá levar ao êxito, e nesse caso ela será reforçada, ou ao fracasso, criando

nessa situação outro tanto de possibilidades, caso ela tente realizar novamente

a ação.

Na busca de argumentos a favor dessa tese, tive a oportunidade de,

junto com um colega de pesquisas, observar crianças dando fartas evidências

de que, antecedendo uma determinada ação, criavam diversos possíveis (não

importa se motores ou mentais, porém, o que nos ficava visíveis eram os

sintomas motores). Nós as colocávamos diante da tarefa de pular corda. Nessa

brincadeira, elas tinham de entrar na corda já em movimento e realizar quantos

saltos quisessem. Para fazer isso, os filmes e gráficos decorrentes o

demonstram, vários gestos semelhantes ao pêndulo da corda eram realizados

por seus segmentos corporais antes de elas se lançarem à ação pretendida.

(12)

Imaginemos, a partir daí, que, para aprender a jogar um esporte

qualquer, uma criança tenha a oportunidade de experimentar um número

grande de situações. Cada situação dessas será responsável pela abertura de

um grande número de possibilidades, sendo que cada possibilidade dessas,

quando for experimentada, poderá abrir outras tantas. Ao final de um longo

processo, o acervo de possibilidades motoras, intelectuais, sociais, morais, e

assim por diante, disponível no jovem que se formou nesse esporte, será

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imensamente mais amplo que no jovem formado em uma equipe ou escolinha

que lhe impôs um sistema de superespecialização.

Do ponto de vista do desenvolvimento da inteligência para o esporte, o

primeiro jovem contará com recursos bem mais amplos que o segundo.

Fazendo uma tosca comparação, examinemos os perfis do jogador Pelé e o de

um jogador de precárias qualidades técnicas, que não nomearei para não ser

indelicado. Pelo fato de ter se formado no interior de Minas Gerais e de São

Paulo, experienciado um número enorme de situações lúdicas – entre elas,

jogar futebol – e, mais tarde, poder jogar com liberdade no Santos Futebol

Clube, Pelé formou um número enorme de possibilidades de realizar seu jogo.

Além disso, a riqueza de experiências proporcionada pelas suas brincadeiras

na rua propiciou-lhe possibilidades de alta qualidade. Por fim, já que possuía

possibilidades fartas e boas, adquiriu a liberdade e a competência de escolher,

entre elas, a melhor para cada situação.

Já o nosso jogador de precárias qualidades, formado em uma escolinha

de futebol, dessas que existem aos milhares por aí, viveu poucas experiências,

formando, conseqüentemente, um leque pequeno de possibilidades. Repetindo

sempre as mesmas situações, acabou por ter alternativas de pouca qualidade

e, tendo poucas e más qualidades, não aprendeu a diferenciá-las e a

selecioná-las. Resumindo, Pelé teve muitas e boas possibilidades, e sabia

eleger a melhor delas de acordo com a situação, ao passo que o outro jogador

teve poucas e más possibilidades, além de não saber escolher bem. Quanto ao

jogo de futebol, Pelé era o mais inteligente dos dois.

A parte não gera o todo

Existe também a crença geral no esporte de alto rendimento, atrelada a

diversas outras crenças esclerosadas, de que é possível ensinar esporte a

alguém, ensinando cada parte separadamente e, ao final, juntá-las num todo

harmonioso. O resultado é que os atletas formados nesse conceito até

conseguem mostrar habilidades específicas para controlar os gestos

esportivos, porém, fracassam quando o jogo começa. Anos atrás, assisti a um

jogo de futebol entre garotos japoneses e brasileiros da categoria infantil.

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Durante o aquecimento, observando as duas equipes, não percebi grandes

diferenças no controle da bola: os japoneses eram tão hábeis quanto os

brasileiros nos chutes, embaixadas e cabeceios. Minutos depois o jogo

começou e, então, tudo ficou diferente. Os meninos brasileiros venceram o jogo

com enorme facilidade. Outro exemplo interessante é ainda o de Pelé. Na

seleção brasileira, formada naquele tempo por muitos craques, ele não era o

melhor chutador, nem o melhor driblador, nem o melhor cabeceador e

tampouco era o melhor lançador – só era o melhor jogador.

A alternativa a essa pedagogia da hiperespecialização, das rotinas

exaustivas, da repetição infindável, da segmentação do gesto é o ensino

contextualizado. A regra, no meu entender, deveria ser: futebol se aprende

jogando futebol, basquetebol se aprende jogando basquetebol, e assim por

diante. Os exercícios para corrigir gestos, aperfeiçoá-los, lapidá-los não

deveriam constituir a tônica de nenhum treinamento, mas ocupar um tempo

sempre menor que o de jogo. Além disso, com a regra de aprender a jogar

jogando, poderiam ser criados inúmeros jogos para ensinar, por exemplo, a

jogar handebol. Quantos pequenos jogos de futebol existem na cultura popular

para as crianças aprenderem esse esporte? Se o professor quer ensinar

determinado conceito – o de passar a bola, por exemplo -, por que não recorrer

a um pequeno jogo? Dessa maneira, ele não retira o aluno do contexto do jogo,

impedindo que ele perca a noção do todo na hora de aperfeiçoar uma parte

específica.

Não por coincidência, textos de autores notáveis, em áreas diversas do

conhecimento, reforçam minhas afirmações anteriores a respeito da

aprendizagem e da formação da inteligência dessa maneira contextualizada.

Relembrando os tormentos passados na aprendizagem da gramática e da

anatomia, Bateson sugere que, “Podiam-nos ter dito qualquer coisa sobre o

padrão que liga: que toda a comunicação necessita de um contexto, que sem

contexto não há significado, e que o contexto confere o significado porque há

uma classificação de contextos.” (13)

Em Terra Pátria, Morin e Kern alertam sobre a necessidade de uma

reforma do pensamento:

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Devemos pensar em termos planetários a política, a

economia, a demografia, a ecologia, a salvaguarda dos

tesouros biológicos, ecológicos e culturais regionais – por

exemplo, na Amazônia, ao mesmo tempo as culturas

indígenas e a floresta -, das diversidades animais e

vegetais, das diversidades culturais – frutos de

experiências multimilenares que são inseparáveis das

diversidades ecológicas etc. Mas não basta inscrever

todas as coisas e os acontecimentos num “quadro” ou

“horizonte” planetário. Trata-se de buscar sempre a

relação de inseparabilidade e de inter-retro-ação entre

todo fenômeno e seu contexto, e de todo contexto com o

contexto planetário. (14)

Eu ainda acrescentaria: e o esporte.

Pensar fazendo, fazer pensando

Por último, quero falar de um dispositivo, observável especialmente em

alguns grandes atletas que caracterizam uma determinada maneira de ser

inteligente no esporte. Mais forte que minhas palavras seria mostrar as ações

de um atleta, como o americano Magic Johnson, do basquetebol. Ao decidir-se

por uma jogada, ele realizava com tanta precisão e rapidez o que pretendia,

que era difícil dizer se estava pensando no que fazia enquanto executava a

ação.

Vou mencionar de memória o que li do técnico americano de

basquetebol Phill Jackson, pois não tenho à mão o seu livro Cestas Sagradas.

Ele afirma que, ao se decidir pela jogada, o jogador deve parar de pensar, deve

jogar. O observador desavisado poderia interpretar mal essas palavras, pois

Jackson não propõe que o esporte seja praticado sem pensamento, mas traduz

com perfeição a idéia de que o grande jogador funde de tal maneira

pensamento e ação, que é impossível observar um destacado do outro.

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Comparando jogadores iniciantes, ou maus jogadores, com grandes

craques do esporte, pode-se verificar nos primeiros uma boa distância entre

pensar e fazer ou, ao contrário, entre fazer e pensar. À medida que a qualidade

desportiva cresce, o jogador diminui a distância entre as duas ações, até que

elas praticamente se fundem. Nós, expectadores e críticos, temos todo o tempo

do mundo para pensar o que foi feito em um jogo ou o que deverá ser feito no

próximo jogo. Não há uma urgência nos cobrando uma realização imediata.

Acontece, porém, que as situações mais decisivas são sempre

emergenciais. Uma cortada no voleibol, uma assistência no basquetebol, um

chute a gol numa área cheia de zagueiros no futebol exigem ação

extremamente rápida. E essa ação será tanto mais eficaz quanto mais

inteligível for, mais bem coordenada, não apenas nos gestos motores entre si,

como também entre eles e os pensamentos. É por isso que, dentro da área – o

espaço mais vital do futebol -, Romário é um rei, o jogador mais inteligente do

Brasil. Nele, pensamento e ação não se separam. Basta um átimo de tempo

para ele decidir uma partida.

Essa forma de ser inteligente, tão presente em Romário e em vários

outros craques da bola, é educável, como tantas outras formas específicas de

inteligência, e, conseqüentemente, pode ser transferida a uma inteligência mais

geral. Ora, para dar conta de problemas críticos, emergenciais, temos de fazer

nossos alunos experimentarem situações emergenciais. Que a criatividade do

professor seja capaz de utilizar-se do jogo para criá-las.

Há uma tradição em nossa civilização de não reconhecer inteligências

não coincidentes com a inteligência do intelectual, do cientista. Por isso, para

muitos, Garrincha, no seu tempo, era “burro”, quando, de fato, dentro do

campo, naquele contexto, ele era o mais inteligente. Esse conceito opõe-se

radicalmente à maneira de pensar de muitos técnicos, para os quais a

inteligência deve ficar no banco, do lado de fora do campo, isto é, neles, ao

passo que aos jogadores cabe participar apenas com o físico. A distância entre

pensamento e ação torna-se, no caso, tão grande, que raramente algum

jogador será capaz de realizar as ações que decidirão o jogo.

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Referências Bibliográficas:

(1) SÉRGIO, M. Algumas teses sobre o desporto. Lisboa: Compendium, 2001.

(2) MORIN, E. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1982.

HOUAISS, A. & VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio

de Janeiro: Objetiva, 2001.

(3) PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar,

1978.

(4) Ibid.

(5) SILVA, J.B.F. O sensível e o inteligível: novos olhares sobre o corpo.

(Tese de Doutorado, São Paulo: Instituto de Psicologia/USP, 1991).

(6) FREIRE, J.B. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados,

2002.

(7) ENDE, M. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes/Presença, 1985.

(8) HAWKING. S. O universo numa casca de noz. São Paulo: Mandarim, 2001.

(10)MONOD, J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1989.

(11)PIAGET, J. O possível e o necessário: a evolução dos possíveis na

criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, v.1.

(12)FREIRE, J.B. & BARROS, R.M.L. Análise quantitativa e qualitativa dos

sintomas de antecipação nas ações motoras de crianças. Revista

Brasileira Ciência e Movimento, 8 (2): 19-24, 2000.

(13)BATESON, G. Natureza e espírito. Lisboa: Publicações Dom Quixote,

1987.

(14)MORIN, E. & KERN, A.B. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.