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JOÃO BÉNARD DA COSTA NO MEU CINEMA

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  • JOÃO BÉNARD DA COSTAN O M E U C I N E M A

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    OUTROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI

    SINOPSEUma homenagem ao cinema a pretexto da extraordinária vida de João Bénard da Costa, diretor da cinemateca portuguesa durante 18 anos mas também actor, cinéfilo, escritor inspirado e leitor criativo. Esta é uma inusual biografia que conta a vida do homem através dos seus amores, medos e contemplações, impressas na arte da pintura, do cinema e literatura. Da pintura barroca à literatura de Borges, JOÃO BÉNARD DA COSTA: OUTROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI é o amado diário de um homem universal.

    NOTA DO REALIZADOREu segui o caminho das suas memórias e encontrei o seu amor pela pintura, pelas igrejas, por Proust e Musil, por Itália, Cinema, Mozart e os seus amigos. Mas o que eu realmente queria era tornar presente o homem, de carne e osso, cheio de contradições, um homem livre.Este é um filme-baú onde habitam algumas das maravilhas pessoais e universais que João Bénard da Costa amou. Desde os clássicos aos santos da casa, as árias do catálogo – de Nick Ray e Manoel de Oliveira, de mãos dadas à Fotografia e a Lubitsch, ao encontro de Raoul Ruiz, Verdi, Dreyer, Sophia, a Pintura e a Arrábida. A família...Todos estes e muitos mais o moveram e comoveram e com a franqueza própria do idealista, dedicou a sua vida à transmissão do que outros, mortos e vivos, criaram de belo.O Cinema gosta de fantasmas e João Bénard também. Por isso aqui se fala do que foram os seus tempos passados, presente e futuro – do que ele gostava de mundano, sagrado e profano.A tarefa foi a de abrir o baú e vós ouvintes, videntes e amantes das coisas várias e do mundo uno, estão convidados a fazer o próprio filme – pois mais do que biografia, mais do que homenagem, este é o manifesto vivido de que as obras pertencem a quem as ama.Não coube tudo neste filme, mas talvez o que coube ganhe mais algum tempo de vida.

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    JOHHNY GUITARUma homenagem ao cinema a pretexto da extraordinária vida de João Era inevitável. Tinha que ser. Se escrevo sobre «os filmes da minha vida», como podia ficar de fora «o filme da minha vida», my Johnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia supor que um dia destes – mais cedo ou mais tarde – o Johnny Guitar não enchia esta página.Faz parte das minhas lendas – como essa de dizer-se que eu sabia o Larrousse de cor aos sete anos – atribuírem-me centenas de visões do Johnny Guitar. Num caso como noutro há exagero. Só vi o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez.Como género, é classificado entre os westerns. Estreou-se na América, a 27 de Maio de 1954, sob o signo dos Gémeos. É um filme de Nicholas Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite dessa estreia. Na filmografia do autor inciada em 1948 é o «opus 9». Depois dela assinou mais 13 longas-metragens, até morrer, «lightning over water», num filme de Wim Wenders, em 1979.Johnny Guitar foi feito para uma pequena companhia – a Republic – e custou pequeno dinheiro. A crítica americana tratou-o com os pés («the silliest film of the year»), mas o público, sem que ninguém conseguisse explicar porquê, encheu as salas meses a fio. Herbert J. Yates, produtor da obra, abarrotou os bolsos. Quando o filme chegou à Europa – em 1955 – as posições críticas extremaram-se. Alguns – poucos – apanharam o micróbio a que há mais de 30 anos dou casa e pucarinho. A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta podia gostar. Eu e mais alguns passámos vexames, quando a polémica chegou a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o senso-comum acaba sempre por levar mais do que dá.Só que, no caso de Johnny Guitar, vivi o bastante para ver o mundo dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o filme para a Gulbenkian, num ciclo de cinema americano dos anos 50, a enchente foi tal que teve que haver bis. Depois, de cada vez que o filme passa na Cinemateca (e tenho-o programado com razoável frequência), não cabe um alfinete. Uns milhares de portugueses vão hoje por Nick Ray. Aconteceu o mesmo por toda a parte. «La Belle et La Bête du western», como à época escreveu Truffaut, transformou-se na própria definição de cult movie.Nick Ray, que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, adiantou um dia algumas razões para explicar este fenómeno: 1) foi a primeira vez num western, que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; 2) é um filme cheio de luz e de calor. Opunha-se ao estilo do «cinema negro» que predominava nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potenciar ao máximo a imagem.Não sei eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época das que mais serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres ( Joan Crawford

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    e Merces McCambridge), acharam a cor (um processo chamado trucolor) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima. Por mim acho que não vale a pena explicar. De Johnny Guitar só sou capaz de falar delirando. Deus e tantos – amigos e inimigos – sabem como é quando me largam…Disse-se, por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da história do cinema (eu, pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por esse lado e recordo programas de cineclubes, ou artigos de revistas, que publicaram aquele famoso encadeado de perguntas e respostas, entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna ( Joan Crawford) quando começam a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao saloon de Vienna. É quando ele lhe pede para ela dizer «something nice», quando ele lhe pede para ela lhe mentir. «Tell me you love me like I love you». Mas, reduzido a escrito [e] a seco, o diálogo é confrangedoramente banal. Se as pessoas ficam com tal memória dele é pelo concerto das vozes – raspante, a de Crawford, átona a de Hayden – que se ouve no filme e pela associação dela à fabulosa partitura de Victor Young. É pelo modo como a câmara e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos encarnados, dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu e casa de feitiços.Muitas vezes ouvi a banda sonora de Johnny Guitar sem ver as imagens. Tudo vem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irredutível mise en scène.Rever as imagens (ou os sons) do Johnny Guitar é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever que se trata. Porque todos os personagens – os doze actores principais, cada um deles essencial – não fazem outra coisa.Quando o filme começa – na tarde em que mataram o irmão de Emma (Mercedes McCambridge) – Johnny Logan, que se irá chamar Johnny Guitar, volta para o pé de Vienna, de quem se separou há cinco anos. Porque se separaram? Porque o mandou chamar ela? Porque volta ele? Nunca, no filme, nos são dadas respostas a tais perguntas. Também nunca sabemos o que com cada um deles se passou nesses cinco anos em que não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora (desse hotel, sim, se fala no filme) e a tarde em que Johnny regressa. Mas nesses cinco anos se fabricou o sentimento dominante de cada um dos protagonistas: a amargura de Vienna, o cansaço de Johnny, o ódio de Emma, ou o amor por Vienna daquele miúdo loiro que acaba com o pescoço rasgado, no cavalo e na forca, a pedir que cumpram a promessa que lhe tinham feito de o salvar.Johnny Guitar é um filme construído em flash-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come back?Ou será que é tudo a mesma coisa?Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontra-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa para o que se está a viver.Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: «Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin.» No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: «Keep the film spinning. I like to see it spin.» Tanto, tanto.

    João Bénard da Costa

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    U SAMOGO SINEGO MORYA

    À BEIRA DO MAR AZULBORIS BARNET

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    À BEIRA DO MAR AZULEm 1987 a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, deu a ver em Portugal, pela primeira vez, filmes de Boris Barnet: A Rapariga do Chapéu de 1927 e Okraina de 1933. Em 1994 e 1995, respectivamente, vimos a obra genial que hoje voltamos a exibir e vimos Miss Mend (1926), primeiro dos trabalhos que assinou em colaboração com Fedor Ozep. Nessa altura, formulámos votos para um Ciclo Barnet, uma “integral”.

    Os votos cumpriram-se em 1996 e essa Retrospectiva permitiu descobrir o mais intimista e o mais requintado dos cineastas soviéticos e, em certo sentido, o mais marginal também.

    Só nos anos 80, a descoberta da obra de Barnet deu clamor no ocidente europeu. Em 1980, o National Film Theatre organizou-lhe uma integral em Londres. Em 1982, o acontecimento repetiu-se em La Rochelle. Em 1983, foi a vez de Locarno, que editou, também, nesse ano, o primeiro livro em língua ocidental consagrado ao cineasta, com notáveis colaborações de Ian Christie, Noel Burch, Barthélemy Amengual e Bernard Eisenschitz (livro que em 1996 traduzimos em português como catálogo do Ciclo Barnet). Generalizou-se então a convicção de que Barnet era um “cineasta da família de Vigo, de Renoir e de Rossellini, nem mais nem menos moderno do que os grandes construtores, como Lang e Hitchcock” (Michel Ciment). E foi também por esses anos que à paixão de alguns por A Rapariga do Chapéu, (onde Barnet descobriu a grande Anna Sten que Hollywood dez anos depois trucidou) se veio juntar a paixão de outros por À Beira do Mar Azul. Entre esses outros, lugar de relevo para Serge Daney que, nos seus últimos textos, voltou obsessivamente a este filme, sobretudo por causa da “morte” e da “ressurreição” da fabulosa Elena Kuzmina (a Macha do filme), que na vida real foi mulher de Mikhail Romm e já tinha sido a protagonista da Nova Babilónia e de Okraina.

    A propósito de À Beira do Mar Azul, muitos falam de comédia. Confesso a minha surpresa. Este melodrama jamais me faz rir e, desde o início, sinto que o que está em causa é algo que torna esta obra muito mais próxima de alguns filmes de amor da nouvelle vague (Adieu Philippine, Jules et Jim, Une Femme est une Femme, Lola) de que qualquer dos exemplos mais ou menos sofisticados da comédia americana.

    Vamos mesmo ao princípio e a esse fabuloso plano do mar e das ondas (dos mais belos planos de mar e de ondas que já vi) donde emergem, brevemente, as cabeças dos dois náufragos. Um intertítulo (e este filme que tão sábio uso faz da música está ainda muito ligado à estética do cinema mudo) diz-nos que “eles lutaram dois dias contra a morte”. Ainda nada sabemos deles, para que essa luta de uma cabeça loura ou de uma cabeça morena nos possa apaixonar. Mas aquele mar é tão desmedidamente sensual, são tão desmedidamente sensuais os numerosíssimos planos de nuvens, sol, crepúsculos, auroras, noites e dias, que nos fixamos naqueles vultos como imagens transfiguradas por uma inexplicável irrealidade e o sol do Cáspio no

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    Azerbeijão começa a invadir-nos e a contaminar-nos.

    Se é prodigiosa a fotografia de Kirilov, ela é também dos melhores exemplos que se pode dar de uma fotografia rigorosamente submetida a uma visão que a ultrapassa. Um só plano “bilhete postal” e tudo estaria perdido. É porque a ordem de beleza nunca é essa, mas a do abraço telúrico de elementos e homens, que esses planos iniciais nos perturbam tanto, como se aqueles vultos (apenas duas vezes vistos) viessem de um fundo mítico semelhante ao de mares e céus, náufragos eternos, de quem fossemos seguir - agora - uma outra e particular história.

    E, depois desses minutos inebriantes de cinema, novo intertítulo nos prepara para a “história”: “Era uma vez, uma ilha”. E os dois homens - um louro e outro moreno - já estão a salvo, dormindo um contra o outro, de tronco nu, no fundo de uma barcaça. Vão ser conduzidos a novas formas (“as mulheres”) mas, antes de as vermos, já se selou a aliança entre os dois protagonistas, aliança que nada nem ninguém - nem uma mulher como Macha - poderá destruir.

    E o que se segue é a fabulosa história de amor dos dois amigos um pelo outro e dos dois por Macha, que nos surge no primeiro grande plano do filme como se fosse a personificação do espírito do lugar. Vemo-la, depois vemos os dois rapazes, depois há um sorriso dela, depois um sorriso deles. Uma série de campo-contra-campos perfeitos e depois a canção belíssima que fala da gaivota que ela também é, sinal de dias claros e da turbações escuras.

    A partir daí - e depois de se falar do medo das mulheres - a narrativa avança suspensa das mais belas elipses. O colar oferecido a Macha e o plano - misteriosíssimo e secretíssimo - em que as pérolas se desfiam, uma a uma, apagando-se no chão o seu brilho, como se fossem estrelas cadentes, tilintando contra o solo. Depois, a sequência que Daney tanto amou. E era Daney quem dizia que só queria falar dela contando-a, como se a oralidade se juntasse à única beleza das imagens. “Lembras-te como é tão bonito quando o mar enche a tela toda; lembras-te quando ela ainda não percebeu que estão todos a chorar porque julgam que ela morreu, e quando ela começa a rir com os dois rapazes? Lembras-te quando eles começam a dançar?”. Lembras-te? é a pergunta que apetece fazer a propósito do milagre único dessa sequência, desde que os dois amigos a vêem ao longe, nas ondas, e percebem que ela ainda vive, até à chegada dos três - como se viessem da morte, mas plenos de vida, de juventude e de inocência - ao velório onde os velhos choram. E não há maior milagre como quando ela pergunta “quem morreu?” e a resposta é a mais bela dança que me lembro de ter visto em cinema. Nunca, talvez, como nessa fabulosa sequência, o cinema tenha estado tão perto de nos dar a ver o que é a alegria. E nunca, a não ser em Ordet de Dreyer, o triunfo dos corpos ressuscitados foi tão físico e tão anímico, tão carne e tão espírito.

    Depois, é a invenção de uma fotografia para que os corpos não entristeçam e para que todos possam sorrir melhor uns para os outros. Depois, é o pedido permanente do amigo “escuro” para que não lhe façam cócegas. Depois, é, de novo, e sempre, o mar, as ondas, o vento sossegado. Como se viéssemos de um sonho ou a um sonho regressássemos.

    Este é um dos filmes mais bonitos que jamais se fizeram.

    João Bénard da Costa

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    FERAS HUMANASFRITZ LANG

    MAN HUNT

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    FERAS HUMANASPrimeira obra de temática anti-nazi da obra de Lang, Man Hunt é o filme dos espaços cerrados e dos sons abafados, lugar da música de Newman, dos muito lentos avanços da câmara (ou para a câmara) da seta “in the wrong heart” (ou “in the right?”), de Joan Bennett “straight and shining” na primeira das suas quatro aparições no mundo de Lang. É o filme que faz tanta pena, o filme das muitas saudades. É Fritz Lang a dizer (falando de Joan-Jenny): “I must admit she had all my heart” (...) “This love affair - in those days you could still say love without being laughed at - the tenderness of it”.

    Lang deu-nos algumas vezes mulheres assim: Lil Dagover (Der Müde Tod), Madeleine Ozeray (Liliom), Sylvia Sidney (You Only Live Once), Lilli Palmer (Cloak and Dagger), Gloria Grahame (The Big Heat); mas nenhuma teve “so much on her” como este incrível personagem que o Código Hays e Zanuck estiveram quase a censurar (a máquina de costura, em evidência, no quarto de Jenny, foi lá posta - contou Lang - para disfarçar a sua profissão, a tal que se diz ser a mais antiga do mundo). E a inenarrável sequência da ponte de Londres, talvez a mais bela cena de amor da história do cinema (entenda-se a mais bela em sentido godardiano) esteve quase para não existir porque Zanuck a achava ridícula (“Quando uma pega faz de pega diante do homem que ama - não pode ser trágica. Só quando uma rapariga séria – ‘a decent girl’ - faz de pega, é que pode haver tragédia”. Terá havido alguma vez uma “decent girl” como Jenny?

    Fritz Lang, na entrevista a Bogdanovich, fala dela durante páginas. Apetecia-me segui-lo. Falar, por exemplo, da sequência da primeira noite de Jenny e Thorndike e - cito Lang - “da rapariga que chora como uma criança porque o homem que tanto quer (‘she wants so very much’) não vai para a cama com ela. Há tanta coisa nisso: vergonha ‘talvez não esteja à altura dele’- desejo ‘porque é que o não posso satisfazer?’”. Falar dos sorrisos que se seguem a essas lágrimas. Falar do fabuloso plano, que precede essa noite, quando Walter Pidgeon está à janela. Falar da sequência da compra da seta. Falar da elipse que se segue ao genial contracampo, quando Jenny chega a casa e descobre “a espera” (“recusou-se a dizer-nos o que quer que fosse”). “The death of a girl like that can be no loss at all”. A girl like that…

    Mas não tenho páginas e páginas e há outras coisas quase tão importantes como Bennett neste filme fundamental.

    Vou pôr ordem nisto. Para começar, recordarei que o primeiro filme anti-nazi de Lang não foi uma escolha deste. O magnífico argumento de Dudley Nichols (baseado no romance de Geoffrey Household, Rogue Male, o que literalmente quer dizer “O Safado”) já estava nas gavetas da Fox, quando Lang foi escolhido para o filmar, substituindo John Ford em quem Zanuck inicialmente pensara. Só que um argumento (Nichols o disse) é um borrão e o que Lang fez dele é que é Man Hunt.

    Continuo, discutindo a caracterização “filme anti-nazi”. Se o contexto é

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    inegável, já me parece discutível que o cerne do filme seja esse.

    Vamos ao princípio: numa fabulosa floresta (que podia vir dos anos 20 alemães) a câmara avança em travellings muito lentos até descobrir uma pegada, e depois outra (grandes planos). Só depois vemos (em plano americano) o dono desses pés: Walter Pidgeon. Tudo o caracteriza como um caçador (espingarda, chapéu tirolês). Não há música e há um vago vento. Depois vemo-lo deitar-se no chão e preparar a arma (grande plano do regulador, intercaladamente repetido). Até que vemos o que ele vê. No ponto de mira da objectiva telescópica, Adolf Hitler. Pidgeon visa bem, tem Hitler bem no centro dos seus e nossos olhos e prime devagar o gatilho. Mas não há bala. Só depois a mete no carregador e volta a apontar. É tarde de mais. Os homens das S.S. já lhe caíram em cima.

    Porque é que Pidgeon não meteu logo a bala no carregador e perdeu tanto tempo? A Quives-Smith dirá (no interrogatório inicial) que não vinha para matar Hitler, e que nesse momento o que quis foi saborear o prazer da caça, o prazer de ter a presa (e que presa!) à sua mercê. Quives-Smith, também caçador (o tema do “most dangerous game” domina este filme) percebe-o mas duvida. O espectador também. E contudo é misterioso porque é que Thorndike não disparou. Por “necessidade do argumento” (o filme acabaria ali)? Por “verosimilhança histórica” (em 41, o Führer estava bem vivo)? Não são explicações plausíveis, porque era sempre possível movimentar Hitler inesperadamente, de modo a que o atentado falhasse.

    Quando Bogdanovich lhe fez essa pergunta, Lang classificou-a de “muito inteligente” e observa que se tinha esquecido disso (“Talvez seja um lapso freudiano - não sei” (...) “Quando revi o filme tive a mesma sensação, mas não posso - em verdade - dizer-lhe que o facto dele não disparar foi qualquer coisa subconsciente em mim”. Não vou ser mais papista que o papa: mas esse lapso inicial de Thorndike, é o prenúncio do comportamento em lapso do personagem, ao longo de quase todo o filme. Nunca sabemos se Pidgeon actua deliberadamente, ou se o seu comportamento é fruto de circunstâncias. Se é um caçador, se é um resistente. O que é sintomático é que na última caçada (em que se transforma de presa em caçador), a do arco e flecha, dentro do buraco, Thorndike repita a Quives-Smith a versão inicial, para dizer a seguir, que agora e só agora (quando sabe da morte de Jenny) o “jogo” se vai transformar em luta de morte. Onde eventuais razões colectivas não funcionaram, funciona uma razão pessoal: Thorndike vai vingar a morte de Jenny. Essa é a diferença entre o início e o fim do filme. No princípio Thorndike é, pelo menos, indeterminado. No fim, sabe precisamente o que quer. E no avião vemos pela última vez a seta, que começara por ser enfeite de Jenny, passou depois a signo substituitivo dela, (é Pidgeon quem as identifica no “straight and shinning”), volve-se em sinal de morte e, por fim, em instrumento de vingança, em arma cravada no “right heart” (Quive-Smith). A seta é a imagem que atravessa o filme, mais do que fetiche, símbolo, ou qualquer outra explicação pacificadora.

    Ao longo da obra (mas não se chama ela Man Hunt?) o tema da caçada prevalece. É um filme de sucessivas emboscadas e de sucessivos ardis (o “acidente” na Alemanha, o metropolitano de Londres - fabulosa sequência com o portentoso Carradine - o covil final).

    Em Man Hunt perfila-se sempre uma estrutura lúdica (o ludus, associado à morte como forma suprema de prazer), dominado, quase desde o início, pelo contraste de claros e escuros (xadrez) que acompanha o primeiro encontro entre os dois caçadores.

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    Permanentemente a descoberto e permanentemente cobertos (da floresta, ao barco e ao esconderijo, da casa de Bennett ao metropolitano, do covil à fresta exterior) os protagonistas da caçada (ou os seus sequazes) vão descendo aos seus próprios abismos, numa progressão magistral: da floresta sombria e do gabinete de Sanders passa-se para a “queda” cada vez mais subterrânea: alçapão do barco, metro, para tudo acabar num buraco, com cerco completo feito em torno de Pidgeon. O que o salva é um imponderável chamado mulher. A “intromissão” feminina na caça de homens dita-lhe o desfecho, introduzindo a dimensão que, viril e impotentemente, se haviam recusado a admitir em toda a sua verdadeira grandeza.

    E o jogo-caça dos personagens é “emoldurado” como em tantos outros filmes de Lang, por o absurdo dum “jogo social” (a sequência da casa do diplomata) que impõe os códigos que só Joan Bennett - sempre ela - desarruma e desarticula, perante a complacente incompreensão de Pidgeon, demasiado metido neles para lhes descortinar o alcance. Entre Thorndike e Jerry, interpõe-se não só o jogo mas a ordem (outra forma de afirmar o mesmo) como é visível na sequência da ponte em que a intervenção do polícia (entre o nevoeiro e o candeeiro) não quer dizer outra coisa.

    Como entre Thorndike e Quives-Smith (personagens de certo modo contrapolares, duplos um do outro, pelo seu estatuto social e pelo seu estatuto lúdico) se interpõe a necessidade de quebrar a regra do jogo. “Desde que atravessou a fronteira, tornou-se um assassino inconsciente”, diz Quives-Smith a Thorndike no início. Efectivamente, Thorndike só atravessa a fronteira, quando sabe da morte de Jenny. E só nessa altura é um assassino consciente. “A girl like that” diz Sanders; “your little Caesar”, diz Pidgeon. Ambos menosprezam o valor das presas. Só no fim, a caça passa a chamar-se guerra. E a dimensão colectiva - donde o fundo documental das sequências finais - sobrepõe-se - definitivamente - à dimensão individual que até às suas “morte” e “ressurreição” sempre fora a de Pidgeon.

    Mas para passar de uma a outra teve que realizar a inversão dos seus códigos morais (em função de Bennett) e a inversão dos seus códigos de combate (a assunção da primitividade no fundo do buraco). Teve, ele também, que dar razão a Sanders: “O homem é o mais perigoso dos animais”. Sobretudo quando está ferido.

    João Bénard da Costa

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    UM CASO DE VIDA OU DE MORTEMICHAEL POWELL E EMERIC PRESSBURGER

    A MATTER OF LIFE AND DEATH

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    UM CASO DE VIDA OU MORTEMichael Powell sempre disse que A Matter of Life and Death era o seu filme favorito. Hesito mais eu, sobretudo quando penso em I Know Where I’m Going, Black Narcissus ou Gone to Earth. Mas está com certeza entre os filmes de Powell que mais amo e que levaria para a tal ilha deserta.

    Para mim, A Matter of Life and Death é sobretudo o filme de uma lágrima. A lágrima menos furtiva da história do cinema, porque fica “em paralítico”, escorrente na cara de Kim Hunter, durante todo o tempo que dura o juízo de David Niven. Só quando esse julgamento acaba, a lágrima volta a escorregar, para o triunfo do amor sobre a morte. Tudo ficou suspenso de uma lágrima, tudo ficou suspenso numa lágrima.

    O tempo dessa lágrima (tanto tempo, tempo nenhum) é o tempo da visitação do Além, neste filme de mortos e vivos (de mortos-vivos e vivos-mortos) que é sem dúvida uma das mais surpreendentes digressões sobre o espaço que noutro filme situado em tais paragens que em Heaven Can Wait de Lubitsch (1943), Laird Cregar (Sua Excelência, o Diabo) chamou, com algum desprezo, above.

    Na história do cinema, e depois de vivos e mortos já terem coexistido em Körkarlen de Viktor Sjöström (1920) – tudo começou em A Morte Cansada de Fritz Lang (1921) e os décors de Warm, Herlth e Rohrig. Provavelmente (Langlois aventa essa hipótese) essa equipa inspirou-se em encenações teatrais de Max Reinhardt (“O Milagre”) ou nos ensinamentos de Gordon Craig. Sabe-se que Hollywood, através de Douglas Fairbanks, mandou o grande decorador Cameron Menzies estudar atentamente essa lição. E muitos dos décors metafísicos de A Morte Cansada (as escadas que “ligam” o céu à terra, por exemplo) passaram da Alemanha de Lang para a América de Walsh no filme The Thief of Bagdad (1924), décors de Menzies.

    O mesmo Menzies, mais tarde, “aperfeiçoou” e estilizou esses décors em duas obras capitais, uma virada de novo para os espaços siderais (The Garden of Eden de Lewis Milestone, em 1928) e outra de “ficção científica” (Things to Come em 1936, de que Cameron Menzies foi simultaneamente art-director e realizador).

    Things to Come, no seu assumido futurismo, teve enorme impacto. À época, filiou-se essa “visão do futuro”, no Metropolis de Lang (27). Talvez seja curioso aproximá-la de outro filme de Lang, apenas um ano anterior: Liliom de 1934, feito em França, com décors de Colin e Renoux. Liliom, foi o primeiro filme a propor do céu (em sentido literal e metafísico) uma visão tecnológica e “electrónica” com computadores para cada alma, e câmaras de televisão em circuito fechado que projectam, para os utentes em flash back, a vida chamada terrena.

    E, sob a influência directa desses filmes dos anos 30 (Things to Come e Liliom) e a remota matriz das obras evocadas do cinema mudo, sucederam-

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    se até aos anos 50, visões celestiais em que, curiosissimamente, a “última morada” é um espaço semelhante ao da ficção científica, tecnocrático, com equipamento sofisticadíssimos e legiões de funcionários que cumprem com inexcedível zelo burocrático a sua missão de guardas dos ficheiros eternos.

    Para apenas citar alguns exemplos, recordo A Guy Named Joe (Victor Fleming, 40), The Devil and Miss Jones (Sam Wood, 41), Here Comes Mr. Jordan (Alexander Hall, 41), Heaven Can Wait (Lubitsch, 43) ou The Horn Blows at Midnight (Raoul Walsh, 45). Em todos esses filmes - anteriores ao que vamos ver - o décor - seja céu, seja inferno - corresponde à ordem de imaginário enunciada. O além é uma espécie de super General Motors, de eficiência a toda a prova e dispondo da mais ultra-moderna rede de comunicações. Quem quiser ser maldoso, pode dizer que é o céu em hipóstase capitalista. Mas prefiro deixá-lo a pensar noutras hipóstases (e são muitas) para tão singular visão.

    Sintomaticamente, ao longo de todos esses filmes (a que se vem juntar A Matter of Life and Death) o décor, propriamente, não varia muito. A componente dominante é neo-clássica (do Grande Teatro do Mundo dos anos 30 e de Salzburgo), com elementos surrealistas a partir dos anos 40, elementos que o grande Alfred Junge (o art director de A Matter of Life and Death) ele próprio um alemão, antigo colaborador do Staadt Theater e da Staadt Opera de Berlim, e de filmes de Jessner e Paul Leni, foi acentuando quando iniciou, com The Life and Death of Colonel Blimp (43) a sua colaboração com Powell e Pressburger.

    Se repararem bem (sobretudo na portentosa sequência do desfile das estátuas, quando se trata de escolher um juiz para Niven) o classicismo fragmenta-se e muitos apontamentos (relógio, colunas pintadas) apontam para mundos próximos dos de Dali ou Chirico.

    Mas A Matter of Life and Death (sempre prosseguindo esta pista que me parece, pessoalmente, a mais fascinante) introduz algumas inovações de tomo face aos filmes precedentes. Limito-me às três que considero mais surpreendentes:

    a) a opção pelo “preto e branco” para o Além, reservando para este mundo as cores. Eis uma insólita aposta que inverte a perspectiva tradicional, deixando ao planeta que habitamos a glória da beleza technicolorida e reservando para o “espaço da suprema felicidade” um tom cinzento e tristonho.

    Os dois exemplos mais flagrantes ocorrem quando David Niven prolonga nas areias a sua (indevida) existência terrestre. As cabras, aquele jovem pastor, a suprema harmonia e a suprema beleza dos enquadramentos aproximam-se de facto da visão tradicional do Éden, do “jardim do paraíso” constituindo um colossal contraste com o “céu” que antes víramos (a preto e branco) enorme “hangar” onde “desembarcam” multidões pardas, friamente recebidas por “anjos” de aspecto severo, sob a égide de um gigantesco relógio.

    Por outro lado, é quando “descem” à terra que os habitantes do Além ganham cor, o que é particularmente impressionante no grande “juízo final”.

    b) essa visão de “cima” “someone is watching you”- com que se inicia o filme, no fulgurante passeio pelas estrelas - é expressamente associada à visão cinematográfica através do personagem do Dr. Reeves. Este, não só é psicanalista (ou psiquiatra) como entretém os seus ócios, numa câmara donde vê (omnivisão semelhante à do além) tudo o que se passa na

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    cidadezinha em que habita. Como vê demais, não admira que morra, mas é fulgurante que venha a ser o escolhido (ele, o homem de cinema, ele o homem da omnivisão, ele, o que tudo e todos observava) para advogado de defesa de Niven nesses matter of life and death, literal e metafisicamente.

    E aqui surge uma das mais prodigiosas apostas dos dois PP. Quando Niven passa para “o outro lado”, quando Niven está no reino dos mortos, o cinema pára e a imagem volve-se em paralítico. Aposta introduzida desde a da primeira aparição do Guia 71 (fabuloso Marius Goring, com o seu inglês afrancesado, misto de vítima da Revolução Francesa e homossexual) é levada às últimas consequências na sequência do jogo de “ping-pong”, quando todo o movimento, todo o fluir, é parado e no tal fabuloso plano da lágrima.

    c) em coerência com a mais remota origem do “género” (A Morte Cansada, de que comecei por falar) qual é o grande valor da terra, dos homens, por oposição ao céu, aos anjos e aos deuses? O amor. Ao contrário de todos os ensinamentos teológicos, no céu não há amor, nem há lugar para ele. É o reino da justiça e do direito, não do amor. Isso é coisa de humanos e a grande tarefa de Roger Livesey contra Raymond Massey é convencer os Altíssimos que Niven - como Orfeu - merece a vida porque encontrou Euridice (Kim Hunter) na passagem entre a vida e a morte. A verdade desse amor permite-lhe salvar-se, isto é viver. Mas esse amor só se prova quando Kim Hunter (como a Lil Dagover da Morte Cansada) aceita morrer em vez de Niven. A prova da morte é a prova do amor.

    O espaço e o tempo estão-se-me a acabar e ainda falta tanto e tanto para falar neste filme de todas as surpresas. Nem sequer falei no que era suposto ser o essencial e determinou a encomenda e aprovação deste filme: um filme que contribuísse para melhorar e desenvolver as relações anglo-americanas, outro “caso de vida ou de morte” em 1946, quando, após a guerra, havia que manter a unidade entre os dois povos face ao já presente futuro inimigo.

    A leitura política do filme dá pano para mangas que nunca mais acabam. Um revolucionário francês convoca um revolucionário americano (morto pelos ingleses) para defender o piloto da RAF. Este recusa-se e o defensor volve-se acusador. Quem escolhe para júri? Um francês, um russo, um chinês, um indiano, todos vítimas da opressão inglesa. Mas, por um passe de mágica (um efeito especial do homem do cinema) seis jurados, volvendo-se em americanos com essas origens ( a América como lugar de convergência de todas as pátrias) perdem essas raízes e na nova galáxia são os herdeiros dos valores saxónicos, transmitidos pela Inglaterra à América. São os símbolos do mundo livre incorporando os dois povos, contra a visão reaccionária de Massey e conquistando a simpatia do Juiz (um inglês). É só com essa união, essa aliança que o céu volta a ser amor e o amor volta a ser céu. E é nesse jogo (“Peter, don’t forget your books”) que Niven consegue ganhar, ele que se apaixonara por a “good american girl”, essa fabulosa Kim Hunter que aqui nasceu para o mundo do cinema.

    Até que ponto funciona esta metáfora política na alucinante reflexão sobre o espectáculo que A Matter of Life and Death sobretudo é ? Essa é a questão que desde a estreia do filme mais obcecou a crítica, a ponto de se dizer que Powell e Pressburger quiseram “curto-circuitar” no espírito do público toda a reflexão sobre o “conteúdo” do filme.

    Se, pessoalmente, acho que essa parábola desequilibra o filme (mas todas as obras de Powell e Pressburger vivem do desequilíbrio e dele retiram o seu poder de fascinação e singularidade) não deixa de ser verdade que ela

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    lhe reforça o irrealismo. A Matter of Life and Death só pode ser visto como um filme delirante, partindo de uma situação delirante (a queda do avião de Niven e o amour fou que pela rádio o liga aos belíssimos grandes planos de Kim Hunter) e em que a única lógica que prevalece é a lógica do delírio. A metafísica, como a política, são equívocos, apenas pontos de partida (talvez os mais adequados) para esse delírio. Nesse sentido, Raymond Durgnat tem razão quando compara esta obra com a Alice no País das Maravilhas, aliás o livro de cabeceira de quase todos os positivistas lógicos. Por que dizer que tudo é delirante equivale a dizer que nada é delirante, por que dizer que tudo é irreal equivale a dizer nada é irreal.

    Acima de tudo, A Matter of Life and Death é um filme sobre essa aparente contradição: um filme sobre o non-sense, construído com todo o sentido. E “the most wonderful conjuring trick to get handed” (Powell). E a lágrima, a lágrima.

    João Bénard da Costa

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    O RIO SAGRADOJEAN RENOIR

    THE RIVER

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    O RIO SAGRADODe The River se tem dito e redito que é o mais belo filme do mundo. Ninguém, que não seja cego, recusará essa alucinante beleza. E, no entanto, os mais fervorosos renoirianos raramente o citam entre os seus preferidos. Lembramos Renoir e vem à memória La Règle du Jeu, La Carrozza d’Oro, La Nuit du Carrefour, Le Crime de Monsieur Lange, Diary of a Chambermaid, Eléna et les Hommes, Le Testament du Dr. Cordelier. Depois diz-se e é verdade, The River.

    The River está assim para a obra de Renoir um pouco como as Afinidades Electivas para a de Goethe, a Mensagem para a de Pessoa, a Vénus (de Dresde) para a de Giorgione, A Clemência de Tito para a de Mozart. São coisas muito grandes, muito belas, mas que parecem pouco características, onde só com alguma dificuldade encontramos o que mais nos fascina nesses autores. Ninguém diz que é secundário, mas fica como um parêntesis.

    Dar a palavra a Renoir talvez seja a melhor maneira de explicar o mistério do Rio.

    Renoir associou sempre este filme à Idade Média: “O que me permitiu perceber um bocadinho o que pode ter sido a arte da Idade Média, foi a minha estada na Índia, na altura do Rio. Na Índia, há ainda artes não difundidas, que são arte da maior, juro-lhes. Há ainda na Índia cantores e bailarinos que correspondem ao que devem ter sido os trovadores e os baladeiros na Idade Média. Um trovador não difundia nada. Espalhava-se a si próprio. Ia até às quintas, aos castelos, às praças públicas. Como não havia difusão, não havia especialização (...). Hoje vivemos numa época em que a arte se tornou puramente subjectiva, perdeu o sentido do concreto, se refugiou no espiritual inacessível e gelado.

    Tive uma conversa a propósito disto com Dali que me disse uma coisa inteligentíssima. Disse-me: ‘No princípio, os artistas olhavam o mundo de muito longe. Representavam grandes batalhas, três mil cavalos, árvores pequenas, céus infinitos, cidades, fortificações. No Renascimento, aproximaram-se. Passaram a fazer retratos. E depois aproximaram-se ainda mais. Agora, já estamos do outro lado do olhar. Os temas não estão diante dos olhos, mas atrás deles’”.

    É extremamente curioso que Renoir aproxime esta conversa com Dali de The River. E é-o, porque a obra imediatamente anterior - esse fabuloso e misterioso The Woman on the Beach, - já reflecte essa visão, esse “outro lado do olhar”. Quem tiver visto esse filme, lembrará que nunca vemos nele os quadros pintados por Charles Bickford, o marido cego de Joan Bennett, nem sequer o retrato dela. Literalmente, nessa obra os temas não estão diante dos olhos (ocultados sempre à nossa visão e à visão do cego) mas por detrás deles.

    Mas se The Woman on the Beach é um filme “inacessível e gelado”, The

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    River não o é. Atenuou-se o pessimismo do autor, tão sublinhado nos seus desesperados filmes americanos? Renoir, numa entrevista, falou em duas vertentes da sua obra: a vertente pessimista e a vertente de compreensão. E disse: “O meu pessimismo provem do facto de sentir a amargura que pesa sobre a civilização que deu homens como Mozart, ou como o meu pai, mas a minha compreensão (‘bienveillance’) provem de estar convencido que, apesar de tudo, os homens vão descobrir uma maneira. Uma nova tentativa de construção da Torre de Babel (...) Dirigimo-nos a um mundo essencialmente instável, nós próprios somos instáveis. Evidentemente temos o direito de ser pessimistas, mas há momentos de grande confiança, por exemplo a confiança que tive quando filmei O Rio (...), a compreensão do que Melanie chama ‘consentir’ quando explica os seus problemas ao americano ferido e nervoso”.

    The River é o filme desse consentimento que se pode ler também etimologicamente. É voltar a olhar para as coisas de muito longe, é o regresso ao que Renoir chama a visão medieval. E, embora nunca talvez obra sua tenha sido tão marcada pela pintura do pai, não há aí qualquer contradição. O consentimento consente tudo: a integração de Harriet, Valerie e do Capitão John no mundo de Melanie e dos seus deuses índios, a integração da pintura de Renoir na arte ainda não especializada da civilização indiana, a integração dum progresso numa tradição. Donde a harmonização total, donde a beleza total, donde a paz total.

    Saudados no início (actores e espectadores) pelo sinal com que são saudados os visitantes (na Índia), Renoir começa logo por nos recordar essa situação, dele e nossa. Não se pretende fazer passar por um autóctone, por alguém que nuns meses tenha assimilado a visão indiana. É, como nós somos, um visitante. Ou seja, alguém que vem para ver. E para ouvir a história dum primeiro amor, igual a tantos outros, diferente de tantos outros. Pelo olhar de Renoir (um visitante de 56 anos) e pela voz duma adolescente (Harriet) estamos na Índia e no Rio.

    Os barcos, os templos, uma família de 5 pessoas, uma criada, amigos hindus. E uma árvore, essa portentosa árvore e que, do início ao fim, sem folhas e sem flores, ou coberta delas (nos fantásticos planos encarnados finais, pintados à mão por Jean Renoir e por Claude Renoir) irá, como no rio, ser o centro da narrativa, o sinal do permanente e do efémero.

    O rio como a árvore são grandes símbolos femininos e este é mais um filme feminino de Renoir. Há o pai, há o irmão mais novo, há o miúdo que depois genialmente introduzirá a morte nesta história, mas faltava o homem “ponte para a vida”, aquele que transforma os sonhos em realidade e a realidade e o sonho. E o homem chega, Mr. John, Captain John, personagem dividida, sinal de conflito, introdutor dos conflitos. Amado por Harriet, por Valerie, por Melanie, na difícil aprendizagem do consentimento. Com ele chega a festa mas a árvore também se torna (com ele) árvore do bem e do mal. Ao contrário do mito do Génesis (genial inversão de Renoir), o homem é quem permite o conhecimento dum e doutro, o fruto proibido.

    Todo o universo é Deus, e desse universo faz também parte Kali, e deusa da destruição (como a família aprenderá explicitamente com a morte do miúdo) mas que implicitamente surge associada a tudo o que divide as pessoas: os ciúmes, os segredos (o espantoso esconderijo de Harriet), o tempo sentido como perda e não como ganho. Não é por acaso que Kali é deitada ao rio na sequência do primeiro cigarro fumado por Valerie, sob o olhar ciumento da irmã e veladamente triste de Melanie.

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    Mas tudo faz parte do mesmo mundo identificado a Deus. Tal como não há pessoas feias (como a mãe explica a Harriet), tal como há pessoas sem lugar (o capitão), tal como a noite se sucede ao dia, as estações umas às outras e um nascimento a uma morte (e quando nasce o bébé, caiem as três cartas e tudo o mais deixa de ser importante). “Só peixes, só pássaros, só mulheres”.

    Não se acabava se se quisesse enumerar todas as coisas belíssimas deste filme. Mas não resisto, para além do muito já referido, a chamar a particular atenção para duas: as duas sequências do papagaio (“and he was closer to me”, com o céu, árvores e a panorâmica pela árvore acima) e a sequência da cerimónia nupcial, que, de certo modo, concentra todo o filme, com a sequência paralela do enterro no rio.

    O visitante Renoir olhou tudo com igual atenção e em igual beleza. Sabendo que “a meditação é um vasto mundo” e que ele próprio (“jamais contemplativo”) só podia ir, através do olhar, ao fundo do mundo que via. O mundo humano onde tudo passa (os pequenos e grandes sofrimentos, as pequenas e grandes alegrias) e o mundo que rodeia os humanos e, para além deles continua, como o rio, onde jamais nos podemos banhar duas vezes nas mesmas águas.

    Entre as sestas, os balouços, as fugas e os regressos, o “amor ocidental”, associado à morte: “Captain John, I Love You”.

    João Bénard da Costa

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    UM VERÃO DE AMORINGMAR BERGMAN

    SOMMARLEK

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    UM VERÃO DE AMORSommarlek est le plus beau des films”. O axioma é de Godard e figura no famoso artigo “Bergmanorama” publicado no nº 85 dos “Cahiers du Cinéma”, em Julho de 1958, pouco depois da estreia do filme em Paris. Godard defendia que, na história do cinema, havia cinco ou seis filmes (cita o Tabu de Murnau, a Viagem a Itália de Rossellini, a Comédia e a Vida de Renoir) “que apetece criticar apenas com as palavras: É o mais belo dos filmes!” E conclui um longo parágrafo explicativo desse desejo, dizendo: “Cinco ou seis filmes disse eu, + 1. Porque Sommarlek é o mais belo dos filmes”.

    Quarenta e nove anos depois, continuo tentado a dar-lhe razão. Tanta quanta cabe noutra frase: Sommarlek é o mais belo dos Bergman. Com a condição de lhe acrescentar (só em Bergman) + cinco ou seis: Persona, Luz de Inverno, A Hora do Lobo, Face a Face, O Silêncio, Em Busca da Verdade, Saraband.

    Bergman não gostou do artigo de Godard. Achou que ele mistificava, ou, para ser mais exacto, que apresentava as coisas magicamente (o que é verdade). E devolveu-lhe o elogio: “É exactamente o que ele próprio faz, feiticeiro vítima do seu próprio feitiço. Nesse artigo estava a escrever sobre ele, não sobre mim”.

    Mas Bergman - nesta fase de “infantaria” da sua obra - para recordar termos dele próprio, colocou também, sempre, Sommarlek em lugar muito especial: “Pela primeira vez” - disse - “senti que estava a funcionar independentemente, com um estilo só meu, a fazer um filme só meu, com uma especificidade particular que era só minha e que ninguém podia imitar”. E, se acusou Godard de falar dele (Godard) em vez de falar do filme, também disse que Marie era ele (Bergman). “Há uma enorme quantidade de coisas minhas em Marie. Marie, o director do ballet e o medíocre e indolente jornalista - são, os três, projecções minhas. O estudante, por outro lado, é só um cabide. Nunca me interessou muito”.

    Marie era um conto de Bergman, antes de ser o filme Sommarlek. Um conto que ele tinha escrito em 1937, aos 19 anos, “sobre umas férias de verão nas rochas e O Primeiro Grande Amor”. Apesar de dizer, depois, que a história não valia grande coisa (“na verdade, não estava a escrever história nenhuma, estava a jogar um jogo com pérolas brilhantes - um jogo de verão”) sabe-se que foi o primeiro projecto que tentou levar ao cinema e chegou a anunciá-lo após a estreia de Kris, seu primeiro filme como realizador em 1945, sob o título “Viagem Sentimental”.

    Não o pôde fazer e, quando voltou a pegar na história, submeteu-a ao juízo do seu amigo Herbert Grovenius. “Para meu grande espanto” - escreveu - “apercebi-me então quão bela e límpida era a primeira versão. Tratava-se apenas de a restaurar e ordenar sob a rigorosa supervisão de Grovenius”.

    A íntima e oculta emoção de Sommarlek - a íntima e oculta emoção que

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    Sommarlek provoca - vem certamente desse lado autobiográfico e da proximidade e da distância com que o realizador conseguiu abordar o primeiro Verão de amor de dois adolescentes. Só quem sabe que “nunca mais” haverá aquela luz, que “nunca mais” se comerão aqueles morangos, que “nunca mais” se verá o mar e as rochas com os mesmos olhos, pode dar a ver tudo isso, assim, enfeitiçado, exactamente como Bergman dizia de Godard. Mas também só quem já não tinha 19 anos, mas 33, podia ter o recuo suficiente e necessário - não mais não menos - para não tropeçar em qualquer sentimentalismo e para olhar os seus personagens - seus reflexos - com tal amor e com tal limpidez.

    Apesar - ou por causa - do happy end (happy end sobreposto a um unhappy end) Sommarlek é um filme de dôr e de nostalgia, um filme de luto. As palavras do director do ballet - sintomaticamente vestido de palhaço, de Copellius, o que rigorosamente se ajusta ao ballet de Delibes que a companhia vai estrear - nessa sequência, especular, para lá de todos os adjectivos, no teatro vazio do tanto medo - são as palavras de um sage, mas não anulam, na sua exortação à vida, o apelo de morte que ficou da sombria sequência em casa de Erland ou da aparição da tia de Enrik, imagem da morte. Quando a vemos cruzar-se com Marie - ainda não sabemos quem é nem como o seu terrível voto se cumpriu - sabemos que ela (de guarda-chuva) oferece a Marie essa máscara, a mesma que, na prodigiosa elipse, lhe oferecera o tio, com o seu cinismo. Erland oferece-lhe um “muro” e promete ajudá-la e ensiná-la a “murar-se” contra o mundo e contra a “criação do diabo”. A tia de Henrik oferece-lhe a existência de fantasma, cancerosa a si própria sobrevivida. O palhaço propõe-lhe a aceitação. Nunca mais as coisas se repetem, e é por isso que devem ser repetidas. Nunca mais voltará “o esplendor das rochas” mas tudo o que podemos fazer é arrancar as máscaras. Assumir a nudez da cara com que ficámos e assumir a nudez da imagem que o espelho nos devolve dessa cara.

    O grande prodígio - um dos grandes prodígios - de Sommarlek é a completa ausência de “literatura” num filme em que cada imagem tem uma razão de ser e uma justificação dramática. Bergman caminha do mais complexo para o mais simples, conseguindo fundir as duas ordens, tal como se fundem presente e passado, a noite do ensaio e do “cheiro esquisito” com o flash-back que constitui 3/4 do filme. Se há obra de dissolução, Sommarlek é-o.

    Pelo tempo - as badaladas do relógio - começa o filme, fundindo-as com girassóis e pássaros, barcos e mar. Do tempo, passamos ao templo - a ópera, o bailado - e ao Diário de Henrik devolvido, tantos anos depois, a Marie. Tocam todas as campainhas, e, num plano especular, o espectáculo vai começar. O bailado mágico de Delibes, magicamente interrompido por “um problema eléctrico”. Fala-se da velhice (caras de 45 anos, corpos de 18) e começam os grandes planos tácteis do rosto de Maj-Britt Nilsson, talvez, ela também, a mais mágica de todas as actrizes de Bergman.

    E os sinais acumulam-se cá fora. A zanga com David, o padre de bicicleta e o regresso de Marie, treze anos depois, à ilha do passado, com o vento na banda sonora (muito vento) e uma nuvem negra cobrindo o sol. E a já falada aparição da velha atira-a e atira-nos para o flash-back e para a história de Henrik.

    É a história de frutos e flores, de sol e águas transparentes. É uma história de sítios secretos, de pássaros de verão, e de nuvens e rochas cujo sentido ainda nos escapa mas onde paira o pressentimento. Pavões, Chopin, a casa dos tios, a primeira noite de amor, uma bola de sabão, restos de histórias antigas (a mãe e o tio) numa profundidade de campo ilimitada e numa paz

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    mizoguchiana. E, sobre tudo e todos, a afirmação carnal, irradiante, dos jovens corpos de Maj-Britt Nilsson e Birger Malmsten, inocentes e culpados. Tão depressa tudo se ilumina, como tudo se obscurece, manchas de adultos e claridades de adolescentes, pegando-se e despegando-se.

    Mas do que eu mais gosto é dessa passagem do flash-back ao “presente”, quando Marie volta a entrar na casa de verão, agora deserta e de móveis cobertos com panos, ouvindo o mesmo Chopin ouvido na primeira noite. E as mãos são belas e horríveis. Tudo é belo e horrível. Das mãos do tio às de Henrik.

    Mas do que eu mais gosto é da sequência dos discos de 78 rotações e dos desenhos animados, é do fecho dessa sequência com o beijo, na última noite. Os anéis, as juras, “tremer de frio e de medo”.

    E se é portentosa a elipse da queda (e da morte) de Henrik, só o é porque tanto tempo Marie fica junto ao corpo dele no hospital, até o médico lhe fechar os olhos e até essa revolta rouca que a censura cortou, num plano fixo, de duração infinita. E é o fim do filme e não o fim do filme.

    O resto vimo-lo num espelho. Tudo se passa entre o “Lago dos Cisnes” e “Copélia”. Entre dois bailados, duas danças. E tudo é tudo. Ou como Godard dizia “I’éternité au secours de l’instantané”.

    Sommarlek est le plus beau des films. Sabe tão bem poder voltar a dizê-lo. Como os “Cahiers” tinham razão em 1958.

    João Bénard da Costa

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    SENSO

    SENTIMENTOLUCHINO VISCONTI

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    SENTIMENTOHá cerca de cinquenta anos ( ), eu escrevi que insistia em considerar Senso um dos cinco ou seis maiores filmes da história do cinema. Ainda persisto. As razões podem não ser exactamente as mesmas, mas no fundo, estava e estou certo. Cada nova visão só mo confirma. Só que cada vez que o vejo me apetece puxar por um momento diferente.

    Desta vez, foi a sequência dos Fondamenti Nuova (quantas vezes não calcorreei eu Veneza a tentar repetir o trajecto de Livia e Franz?) após a terceira aparição da misteriosa “voz off” de Alida Valli. Na imagem, vemos um casal de Veneza com uma gôndola, enquanto Alida Valli nos diz que Franz alugara um quarto onde se encontravam. A câmara, que já domina o canal dessa altura onde quase sempre está, entra por uma janela aberta dum andar muito acima do nível das águas. Farley Granger está à janela e tudo nele e na luz indica a hora de depois do amor. E diz para Alida Valli (off): “In questa camera, c´è sempre un piccolo rumore”. Depois, fala do esvoaçar de uma cortina, do caruncho, de um moscardo contra o vidro. “Avevve mai notato?” Sempre “off”, Alida responde: “No, Franz”. Este continua “Se nota soppratutto, più tarde, in riccordo”. “Davero Franz?” pergunta Alida Valli, deitada na cama, semi-coberta pela lençol, de colo e costas nuas, tendo no olhar o brilho do que aconteceu antes. Franz senta-se ao lado dela e começa a falar-lhe de recordações, das coisas a que na altura se não deu importância e, depois de passadas, tiveram tanta, de pormenores, de detalhes. “Un detaglio. Cosi importante? Importante quanto?” “Quanto a cor e o perfume dos teus mórbidos cabelos espalhados sobre a almofada”.

    Tudo isto é dito ao som do “Scherzo” da 7ª de Bruckner, que se ouve muito, muito devagarinho. E é o único momento do filme em que Alida Valli (para a qual não há “antes”, como na mesma sequência ironiza Farley Granger) parece deter o comando da situação, ou seja, parece estar mais livre dessa relação do que Farley Granger. Poucos momentos depois, dá-lhe o medalhão com uma madeixa dos tais cabelos e Franz fica muito mais embevecido com a jóia do que com o “riccordo”. Foi certamente o mais perfeito momento que ambos viveram e talvez Alida Valli se vá lembrar sempre muito mais desse ruído, desse detalhe, do que o tenente austríaco. Mas, expressamente, nessa sequência, é trazido ao primeiro plano, o tema do passado, da saudade, tema que, em surdina, confere a este filme a sua suprema ordem de beleza e a sua suprema razão de ser. O que nela emerge - e talvez por isso ela nos fique menos na memória do que outras sequências - não é a tensão paroxística de corpos e almas, ou a sua explosão, mas o invisível, o inaudível elemento de que se formam e em que se tecem tais tensões e tais explosões. Provavelmente “l’ onda de’ suoni mistici” “gioie di casto amore” que Leonora e Manrico, os protagonistas de “Il Trovatore” de Verdi, evocam no primeiro plano do filme, quando estão à varanda de Castellor. Pouco depois - corre ainda o genérico - Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam para lhe queimar a mãe. E este arranca-se dos braços de Leonora e vem cantar o “Di quella pira” precisamente no momento em que a câmara, até aí fixa sobre a cena da ópera, o acompanha no seu movimento e nos descobre o teatro,

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    da plateia à geral, em amplos movimentos concêntricos que conduzem a representação a outra representação (da ária do tenor, para a manifestação política).

    Se Senso é o filme que melhor abordou o espaço cénico (neste caso, espaço fílmico) como totalidade melodramática, como drama per musica (no sentido literal da ópera) é-o porque funda nele três instâncias de representação: a representação do passado (e a “voz off” confere a todo o filme essa dimensão, recordando-nos a sua origem literária, adaptação de uma novela de Boito, libretista de Verdi, embora vá lembrando – a quem quiser pensar nisso – que a Condessa sobreviveu e recuperou o seu estatuto); a representação do presente (e, esquecidos da voz, tudo se passa para nós, exactamente como para os protagonistas, na Primavera e no Verão de 1866, entre a proclamação de La Marmora e a derrota de Custoza, em sucessão de quadros vivos); e a representação do futuro (contida tanto no trágico desfecho da história dos amantes, como nos amanhãs que não cantaram da forma que os insurrectos do Veneto esperaram que cantassem).

    E estas três ordens de representação são ordenadas segundo as convenções das três grandes artes cénicas (ópera, teatro e cinema) para buscar a equivalência com uma ordem literária, ou, melhor dizendo, com uma ordem romanesca. Nesse sentido, Senso (obra em que Tennessee Williams parece ter sido pouco tido ou achado, já que se limitou a supervisionar os diálogos ingleses e a dicção de um Farley Granger de que não gostou nada e, à última hora, substituiu o previsto Marlon Brando) é um filme williamsiano, ou melhor é um filme paradigmaticamente revelador dessa literária procura de um passado que, via Tchekov e Stanislavsky, tanto o Método como Visconti procuraram trazer para o mundo dos palcos.

    Só que Visconti era homem de outra paixão (além do teatro e do cinema) e essa outra paixão - a ópera - permitiu-lhe a solução do problema que, apesar de tudo, ficou em suspenso na dramaturgia americana dos “forties” e dos “fifties” e no cinema americano dos “fifties” e dos “sixties”. Porque, ao contrário do teatro, e em comum com o cinema (pelo menos, com o cinema post-Griffith) a ópera (na sua grande tradição novecentista, quer alemã, quer italiana) tinha vivido também do passado que conferia aos seus personagens e que era mesmo, neles, a dimensão mais evidente como o drama lírico pedia. O que se trata em Visconti é de operatizar os personagens, mais do que as situações, e fazê-los representar no excesso, em conjugação com um décor igualmente de excesso, quer seja Veneza, que seja Lonedo (a casa de campo, o mais antigo projecto conhecido de Palladio para uma habitação desse género) quer seja Verona, no final. E, em oposição a esse excesso, o extremo realismo da reconstituição histórica, patente sobretudo nas celebérrimas sequências das batalhas.

    Quando se estreou, Senso deu origem a duas reacções que correspondem a outras tantas armadilhas. Houve aqueles que, conhecendo a posição ideológica do autor (então muito próximo do P. C.) e vendo o labor da reconstituição histórica (com grande lugar dado ao povo, às massas, lugar, de resto, só não maior devido a algumas “tesouradas” da censura) falaram do filme como de um vasto fresco dedicado ao “Risorgimento” e à luta pela emancipação das gentes. Nem faltaria uma dialéctica fácil: como herói positivo o Marquês Ussoni, como herói negativo o Tenente Mahler e dividida entre eles - presa da sua “condição de classe” - a Condessa Serpieri. O diálogo em que Franz, em Verona, se despede do mundo que está a acabar e se confessa desinteressado do mundo futuro, “o mundo do teu primo”, seria exemplar. A convulsão de sentimentos era apenas o reflexo da convulsão política.

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    Outros, pelo contrário, fascinados pela densidade stendhaliana da relação Franz-Livia, acentuaram exclusivamente esse lado romanesco, vendo todo o resto como bonita paisagem ou bonita moldura.

    Uns como outros, fiéis a uma visão unívoca , esqueceram que num melodrama essa oposição não tem razão de ser. As óperas de Verdi puderam ser - e foram-no - bandeira do “Risorgimento” e teatro de explosões eróticas. Mas o que vive nelas, finalmente, e exaustivamente por essa inserção coral, são os dramas singulares. Escamotear qualquer das dimensões é perder o acesso à ópera, lugar geométrico, por excelência, de errados amores e justas causas.

    Em Senso não se canta e só se ouve ópera nos primeiros dez minutos? À letra é bem verdade, mas metaforicamente - e num mundo de metáforas estamos - nada de mais falso. Porque, nos seus “duetos” ou “árias” (e haverá outro termo para nos referirmos aos passeios de Franz e Livia pelas ruas de Veneza, à noite de amor em Lonedo, à noite em Verona, aos grandes movimentos de Alida Valli, quer quando vai buscar o dinheiro dos patriotas, quer quando grita por Franz nas ruas de Verona?) o que os personagens dizem é sustentado a Bruckner (quer pelo “adagio” para os momentos de intimidade, quer pelo “scherzo” para os momentos de paixão) e as vozes são tão inseparáveis dessa música, como na ópera o são. Depois de se ter visto Senso nunca mais se pode ouvir a 7ª de Bruckner sem “sentir” que lhe falta essa dimensão de vozes ou sem a ouvir como música de “acompanhamento”. Mas é igualmente impossível pensar neste filme sem “ouvir” Bruckner ou pensar este filme, sem banda sonora.

    Muitos outros se fizeram e farão em que essa impossibilidade também existe, mas não conheço nenhum outro em que a sobreposição de música e vozes (sobreimpressas e justapostas) tenha conferido um tal relevo aos personagens, que nela encontram (simultaneamente) a sua própria razão de ser. Muitos tem havido que têm dado tal lugar à voz; muitos outros deram esse lugar à música (pense-se apenas na Morte a Venezia do mesmo Visconti). Mas nunca, como aqui, ambas foram forçadas até esse exacerbamento, num filme cuja estrutura não é “musical” nem a “de o musical”, mas, pelo contrário, profundamente literária.

    Mas se alguma vez houve um “filme-ópera” ele chamou-se Senso. E não deixa de ser um dos grandes paradoxos deste filme e do seu autor que a descendência a que deu lugar não seja cinematográfica, mas operática, Se quiserem pensar numa posteridade de Senso, ela não se encontra em nenhum filme, mas nas encenações - ainda de 54, ou de 55 - que Visconti fez para o Scala de Milão e que revolucionaram todos os caminhos da encenação operática do século passado. E se quisermos pensar numa posteridade de Alida Valli (ela também, segunda escolha e só chamada porque Rossellini teve ciúmes e não deixou Ingrid Bergman fazer o papel), o nome com que nos encontramos é o da mulher para a qual Visconti fez as referidas encenações: Maria Callas.

    Entre o ponto limite das encenações propostas pelos autores do Método e o início da revolução operática da era Callas, ficou, como ponto de confluência e como ponto de divergência, este filme chamado Senso. Filme que tanto representa o apogeu de uma certa ideia de “mise-en-scène” como o ponto de partida para a desconstrução dela em que, de resto, ainda se não avançou muito mais do que tudo que está nos dez minutos iniciais no “La Fenice” ou nos minutos que decorrem entre Farley Granger falar a Alida Valli dos 3.000 florins e esta lhos trazer. Depois de atravessar, correndo, as sete portas de toda a história da perspectiva e da humana perdição nos meandros dela.

    João Bénard da Costa

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    SENSO

    SENTIMENTOLUCHINO VISCONTI

    AU HASARD BALTHAZAR

    PEREGRINAÇÃO EXEMPLARROBERT BRESSON

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    PEREGRINAÇÃO EXEMPLAROs seis primeiros filmes de Bresson podem esquematicamente reduzir-se à “vitória” duma personagem, singularmente bafejada por aquilo que em termos bressonianos se pode chamar a Graça. A Anne-Marie de Les Anges, a Agnès das Dames, o Padre de Ambricourt do Journal, o Fontaine do Condamné, o Michel do Pickpocket, a Jeanne do Procès são - todos - seres escolhidos, sobre os quais “o vento soprou” e que, devido a essa escolha e a esse “sopro”, triunfam - misteriosamente - das circunstâncias e pessoas que se lhes opõem. Arrastam tudo com eles e compreendem - no fim - o “drôle de chemin” (como se diz no Pickpocket) que os levou a ganhar (mesmo que, como é o caso para Anne-Marie ou Joana d’Arc, essa vitória seja a morte pois que para Bresson a morte não é o fim, mas o sinal da ressurreição). Idêntico é o caso do Padre da Aldeia de Ambricourt, na adaptação de Bernanos. Julgo que todos esses filmes, parafraseando o título da penúltima obra de Bresson, se podiam chamar “Dieu, probablement”, pois que, provavelmente é devido à intervenção divina que essa série de protagonistas alcança o que a outros não foi concedido. O famoso acaso de Bresson pode bem ter o nome divino, já que em termos pascalianos (e Pascal é uma das grandes admirações de Bresson) o Acaso é sempre um outro nome de Deus.

    Mas a partir de Jeanne d’Arc, ao que creio, embora seja opinião pessoal, o que Bresson nos vai sobretudo mostrar é o contrário desse acaso, que se exprime em termos de necessidade. Acaso e necessidade são dois lados da mesma predestinação, mas enquanto o primeiro actua (na obra de Bresson) para a conquista da liberdade, a segunda intervém para tapar as saídas. A necessidade é o outro nome do mal (o diabo, provavelmente) que, tão inexplicavelmente como o bem, se abate, nos últimos sete filmes, sobre as personagens do realizador para não lhes deixar quaisquer saídas. A Marie de Au Hazard Balthazar como Mouchette, como a “femme douce”, como a Marthe das Quatre Nuits, como Lancelot, como o Charles do Diable, como o protagonista de L’Argent, são pessoas sem saída, presas dum destino que não lhes dá qualquer “chance”, submergidas num plano de fundo colectivo marcado pelo mal (e nisso ainda se distinguem dos “heróis” dos primeiros filmes, cuja individualidade se sobrepunha ao grupo e o arrastava para a mesma vitória). No Condamné, Fontaine diz a Jost qualquer coisa como “não percebes que já não podes escolher”, ou seja “tens que me seguir e vencer comigo”. Nos últimos sete filmes, a escolha é igualmente impossível, mas em sentido inverso: mergulhados num “universo de mal”, os personagens têm necessariamente que ser abatidos por ele (donde os suicídios dos últimos filmes de Bresson).

    Au Hasard Balthazar parece-me ser o ponto de viragem desse acaso (“hasard”) para essa necessidade. Se assim for, compreende-se um dos motivos porque a personagem central deste filme não é uma pessoa, mas um animal, mais concretamente um burro (um burro com nome de pessoa). Porque ele é (embora baptizado e marcado com o sal da sabedoria, na espantosa sequência inicial), o ser passivo, a vítima privada da liberdade sobre a qual se abatem os vícios dos homens (muito precisamente os sete

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    pecados mortais do catecismo católico). Balthazar vai não só assistir como sofrer (a história deste filme é a história duma paixão), sem poder fazer nada nem para contrariar o seu destino, nem o dos seus sucessivos donos, imolados ao orgulho, à avareza, à inveja, à ira, à gula, à luxúria e à preguiça. Pois, se é possível identificar as personagens deste filme (o pai, o negociante, a mãe, o professor, Arnold, Gérard, Jacques) com cada um desses “pecados”, é mais certo dizer-se - e por isso se falou de “imolados” - que eles são as suas vítimas, sendo o olhar do burro (vítima, por sua vez, de todos eles) o único que o sabe, não o sabendo. Daí advém o peso obscuro da sequência central do filme, uma das mais misteriosas da obra de Bresson, a do circo, em que perante olhares iguais (os das feras), o burro plenamente manifesta o seu medo e depois a sua revolta (face a Arnold). Daí advém o peso não menos obscuro da sequência final, quando, na morte, o burro encontra a paz das ovelhas. Burro que se move literalmente ao acaso, mas movido pela mesma necessidade (vide sequência da nora) que esmaga Marie, Arnold e os outros. Por isso o filme é a história dele (começa com o seu baptismo, termina com a sua morte) na curta duração (sublinhada por Bresson na insólita legenda “os anos passam”) da vida do animal. Fora dessa vida, o que acontece aos homens já não tem sentido e é por isso elidido. Ele é o lugar geométrico de tudo.

    Há assim neste filme uma série de linhas divergentes (as várias histórias das várias pessoas) e uma convergência em Balthazar, numa estrutura muito diversa e muito menos rectilínea do que a que caracteriza as anteriores obras de Bresson. O burro (sinal dessa convergência) é também o sinal da perplexidade. Figura de Cristo (a paixão, a subida ao Calvário - o que por alguns foi julgado fortemente blasfematório) é figura dum divino sem poder (“quis um burro preto, meio funcionário, meio padre”, disse Bresson), de certo modo, figura também do ordenador que o realizador quer ser (“O burro sou eu” - também disse Bresson). É dele que vem a mise-en-ordre, que dispõe as peças soltas desta insólita narrativa (tão soltas que algumas há - como a conversa dos pintores sobre a cascata - que parecem não ter qualquer articulação com o resto). É dele que vem a carga mítica desta obra, polarizando num erotismo latente (referência à mitologia quando Gérard insinua uma relação burro-Marie), que não é dos seus múltiplos e complexos aspectos (inesgotáveis numa folha) nem o menos inquietante nem o menos ambíguo.

    Ao avançar sob o signo do acaso para um mundo cada vez mais determinado (“um script sobre as forças que dominam o homem moderno”), Bresson abandonou um certo rigor e um certo despojamento (sobretudo, o dos quatro filmes imediatamente anteriores) para buscar, sob formas mais complexas, outra ordem de austeridade. Neste filme, esse caminho é acompanhado por uma grande melancolia (Schubert, em vez de Mozart ou Lully, na banda sonora) e talvez seja esse o sentimento dominante, no termo da visão desta obra.

    Quanto ao resto, será redundante dizer que pela sua narrativa, construção e montagem, Au Hasard Balthazar é um filme ímpar, não só na filmografia do autor, como em qualquer obra do cinema sua contemporânea. Busquem-se-lhe todos os sentidos - pode-se sempre encontrar mais um.

    João Bénard da Costa

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    SENSO

    SENTIMENTOLUCHINO VISCONTI

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    FOR EVER MOZART

    PARA SEMPRE MOZARTJEAN-LUC GODARD

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    PARA SEMPRE MOZARTForever Mozart é o último filme de Jean Luc-Godard. É curioso notar que a ideia inicial para este filme, partiu do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. Godard pensou primeiro em adaptar o Livro do Desassossego ao cinema. E há até uma passagem no filme em que Pessoa ainda é expressamente citado quando Vitalis, realizador no filme, o cita e diz: Eu sou a cena viva onde passam diversos actores representando diversas peças. Há muitas citações neste filme como nos filmes da grande época de Godard. E exactamente a quase citação que não há é a de Mozart. De tal modo que nos podemos perguntar, porque é que o filme se chama Para Sempre Mozart. Mozart só aparece um bocadinho de nada no princípio do filme, no fragmento do concerto para piano, e um bocadinho no fim do filme. De resto, não vemos Mozart. Fala-se muito de Marivaux, de Musset, On ne badine pas avec l’amour à Sarajevo - a ida para Sarajevo, os cinemas vazios- desertados por espectadores que vão ver o Terminator, a sala de concerto no final, a casa em ruínas, a Bósnia... E tudo isto deu a muita gente, àquelas pessoas que embirram com o cinema de Godard, a ideia de que tudo isto era uma enorme confusão, uma grande mistura e que faltava aqui um sentido. Pelo contrário, a mim parece-me que este é o filme que melhor reúne o sentido profundo do cinema de Godard desde o príncipio. Ou seja, partir de toda a ruína de uma época, dos restos de uma época, e de uma cultura que está a acabar, dos restos dessa época e dessa cultura, dos restos de uma beleza que se perde e com isso ir procurar, mais uma vez, onde há ainda uma possível harmonia, onde há ainda uma possivel salvação. E são esses fabulosos planos do mar que atravessam o filme de vez em quando. É essa cena espantosa na praia do ensaio com a actriz vestida de encarnado. Ou são exactamente esses bocadinhos em que aparece a música de Mozart. Mozart que mais do que todos os criadores no Ocidente conseguiu o milagre dessa reconciliação. E quando Godard chama ao seu filme Forever Mozart, talvez seja esse sinal de reconciliação que ele acima de tudo procura. Isso ou aquilo que aparece várias vezes no filme citado e que é uma citação que também vem de um português, vem de Manoel de Oliveira, e em que Godard numa entrevista, num diálogo que teve com Manoel de Oliveira no Libération e em que Manoel de Oliveira fala do cinema como uma saturação de sinais magníficos cuja luz provém da sua própria ausência de explicação. Não é por acaso que Godard cita este frase no filme e não é por acaso que ela tão profundamente se adequa a esta obra. O que vamos ver através de todos os seus momentos e em que vem também todo o passado de Godard. A casa, por exemplo, é a casa dos avós de Godard, é a casa da infância de Godard. O que vamos ver dessa casa, ao cinema, à música, à Bósnia, é essa saturação de sinais magníficos e o que nos perturba é essa ausência de explicação. A ausência de explicação ou a explicação possível no totalmente inexplicável. O mar. Mozart. Forever Mozart.

    João Bénard da Costa

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