Jogo eletrônico, flow e cognição - PUC-SP · 2017. 2. 22. · theories from three different...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Mauricio Teixeira Piacentini Jogo eletrônico, flow e cognição MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, sob a orientação do Prof. Doutor Sérgio Roclaw Basbaum São Paulo 2011

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    Mauricio Teixeira Piacentini

    Jogo eletrônico, flow e cognição

    MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora

    da Pontifícia Universidade Católica de São

    Paulo, como exigência parcial para obtenção do

    título de MESTRE em Tecnologias da

    Inteligência e Design Digital, sob a orientação

    do Prof. Doutor Sérgio Roclaw Basbaum

    São Paulo

    2011

  • Banca examinadora

  • Para o Theo.

  • Agradecimentos

    Agradeço aos professores e colegas do TIDD pelas conversas e pela troca de experiências,

    sem as quais com certeza este trabalho não seria possível.

    Ao professor Jorge Albuquerque agradeço pelo bom humor, por sua imensa erudição

    e por sua generosidade em compartilhá-la.

    À professora Renata Gomes agradeço por aceitar o convite para a banca de qualifi-

    cação e por seu feedback precioso em relação às diferenças entre os pontos de vista do

    jogador e do game designer, entre outros. Agradeço também por sua tese de doutorado,

    uma das minhas leituras prediletas entre aquelas que compõem a bibliografia desta pes-

    quisa.

    Ao professor Luis Carlos Petry agradeço por seus insights sobre a ontologia dos jo-

    gos eletrônicos, e de maneira especial pela paixão compartilhada em relação aos games

    enquanto arte e experiência.

    À professora Lúcia Santaella agradeço pela oportunidade de trabalho em conjunto

    quando da elaboração do Projeto PAJÉ (Plataforma Aberta para Jogos Eletrônicos), e por

    ter aberto um espaço em sua agenda para participar da banca de qualificação, apesar de

    seus inúmeros compromissos. Suas observações em relação à obra de Frank Wilson, entre

    5

  • 6

    muitas outras, foram fundamentais para o resultado final desta pesquisa.

    Ao professor Sérgio Basbaum agradeço por me colocar em contato com a fenomeno-

    logia de Merleau-Ponty e com a obra de Varela, Thompson e Maturana; pelo grupo de es-

    tudos, pelos debates em aula e pela singular convergência de interesses e idéia. Agradeço

    também por sua elegante postura filosófica, e principalmente por colocar-se à disposição

    para orientar esta dissertação.

    Quanto aos meus colegas, seria injusto citar apenas alguns deles. É inegável, no

    entanto, que grande parte da experiência do mestrado se dá justamente na convivência

    antes, durante e depois das aulas e nos grupos de estudo, e por isso sou bastante grato

    àqueles que compartilharam estes espaços comigo.

    Deixo aqui um agradecimento especial à Edna Conti, que me orientou desde o nosso

    primeiro contato, por telefone, quando eu ainda lutava com a elaboração do projeto de

    pesquisa para ingresso no programa. Descobri, semanas depois, que aquele na verdade

    não havia sido nosso primeiro encontro: por uma destas fortuitas coincidências da vida ela

    já havia me conhecido quase quarenta anos atrás, na época em que eu era menino e meus

    pais frequentavam a PUC e o Tuca. Sua ajuda e orientação em relação aos procedimentos

    acadêmicos e as conversas agradáveis de meio da tarde foram fundamentais para que eu

    conseguisse concluir este trabalho tranquilamente.

    Por fim, agradeço à Maíra Scombatti pelos múltiplos apoios durante a elaboração

    deste texto, na forma de conversas, carinho, ideias, input pedagógico e uma enorme dose

    de compreensão e paciência. Sou especialmente grato pelas diversas leituras parciais que

    me ajudaram a descobrir o que eu queria realmente dizer, e também pela revisão detalhada

    desta versão final.

    Obrigado!

  • Resumo

    Essa pesquisa investiga a experiência do jogo eletrônico como uma interação sinesté-

    sica com um mundo codificado e proposto intencionalmente, que produz um impacto

    cognitivo específico. Neste percurso, pretende-se inicialmente identificar algumas das

    características que definem o jogo eletrônico e seus canais primários de acoplamento: a

    mão e o olho. Para isso, utilizaremos como guias a pesquisa de Frank Wilson e o con-

    ceito de tecnoimagem formulado por Vilém Flusser. Em seguida, consideramos a teoria

    da experiência ótima (flow) de Mihaly Csíkszentmihályi e suas implicações sobre o jogo

    eletrônico. O objetivo é entender como o jogar gera conhecimento no corpo que experi-

    menta, e portanto faz-se necessário definir o que é cognição, a partir de um levantamento

    fundamentado nas teorias de três escolas das ciências cognitivas: o Cognitivismo, o Co-

    nexionismo e a corrente Encenativa. Finalmente, discutiremos o jogar como conhecer e o

    papel do game designer como criador de experiências que carregam potencial cognitivo.

    Palavras-chave: Jogo eletrônico. Interatividade. Tecnoimagens. Cognição. Flow.

    Game design.

    7

  • Abstract

    This research investigates the videogame experience as a synesthetic interaction with an

    encoded and intentionally proposed world, which produces a specific cognitive impact.

    Following this path, we initiallly intend to identify some of the characteristics that define

    the electronic game and its primary coupling interfaces: the hand and the eye, guided by

    Frank Wilson’s research and the concept of technoimages formulated by Vilém Flusser.

    Then we will consider Mihaly Csíkszentmihályi’s theory of optimal experience (flow) and

    its implications on games. The goal is to understand how play generates knowledge in the

    body that undergoes experience, and for this we need to define what cognition is, based on

    theories from three different schools of cognitive science: Cognitivism, Conexionism and

    Enaction. Finally we will discuss playing as knowing and the role of the game designer

    as the creator of experiences with cognitive potential.

    Keywords: Electronic game. Interactivity. Technoimages. Cognition. Flow. Game

    design.

    9

  • Sumário

    Resumo 7

    Abstract 9

    Introdução 19

    1 Jogo tradicional e jogo eletrônico 23

    1.1 Sobre o jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

    1.2 Sobre o jogo eletrônico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

    1.3 Interação e feedback . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

    1.4 Input - Da mão para a tecla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

    1.5 Output - Da tela para o olho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

    1.5.1 Imagens e texto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

    1.5.2 Aparelho é caixa preta produzindo imagens técnicas . . . . . . . 39

    11

  • 12

    1.6 Jogo como sequência de interações possíveis . . . . . . . . . . . . . . . 42

    2 Jogo e flow 49

    2.1 Flow . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

    2.2 As condições para o flow . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

    2.3 Flow e games . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

    2.4 Gerando flow . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

    3 Jogo e cognição 67

    3.1 Os diferentes conceitos de cognição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

    3.1.1 A linha Cognitivista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

    3.1.2 A linha Emergente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

    3.1.3 A linha Encenativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

    3.2 Jogar e conhecer: diferentes perspectivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

    3.2.1 Jogo e Cognitivismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

    3.2.2 Jogo e Conexionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

    3.2.3 Jogo e Encenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

    4 O diálogo entre quem joga e quem programa o jogo 85

    4.1 Game design e imersão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

  • 13

    4.2 Game design e cognição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

    5 Considerações finais: o papel do game designer 95

    Referências bibliográficas 103

  • Lista de Figuras

    1.1 Imagem, ideograma e texto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

    1.2 Do código aos pontos que formam a imagem técnica em um computador

    pessoal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

    2.1 A zona da experiência ótima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

    2.2 Zona de flow - exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

    2.3 FlOw . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

    2.4 FlOw - nível avançado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    3.1 Parley: software no modelo flash card . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    3.2 Kanagram: jogo educacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    3.3 Tux of Math: jogo educacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80

    4.1 Zork . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

    4.2 Space Invaders . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

    15

  • 16

    4.3 Quake . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

    4.4 Halo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

    4.5 World of Warcraft . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

  • Lista de Tabelas

    1.1 Play em português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

    1.2 Elementos para a definição de jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

    3.1 As tradições da ciência cognitiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

    17

  • Introdução

    Desde muito cedo as questões relacionadas ao jogar fizeram parte de minha experiência

    pessoal. Lembro-me de passar longas tardes com meus primos e irmãos mergulhado em

    jogos de tabuleiro, de rua, de cartas. Naquela época, começo dos anos setenta, ainda não

    existiam para nós os jogos eletrônicos. O primeiro foi o Telejogo: me recordo do fascínio

    despertado em crianças e adultos por aquela bolinha em preto e branco atravessando a tela

    em uma simulação primitiva do jogo de tênis. Mas os jogos tradicionais ainda dominavam

    a experiência do dia-a-dia: futebol de botão, amarelinha, pega-pega. Pouco a pouco no

    entanto pude vivenciar a transição do brincar e do experimentar do mundo ”real” para o

    mundo eletrônico. Acompanhei a criação e evolução dos computadores pessoais, o apare-

    cimento dos primeiros videogames e finalmente a entrada da Internet no Brasil. E embora

    tenha me graduado em Comunicação Social (Rádio e TV) pela Escola de Comunicações

    e Artes da Universidade de São Paulo em 1990, minha atuação profissional nos últimos

    quinze anos se desenvolveu ao redor das teclas e telas dos computadores, como desen-

    volvedor e programador de jogos e software educativo. A escolha do jogo eletrônico e

    das questões relativas à cognição como temas para esta pesquisa de mestrado foi, então,

    algo natural, assim como a escolha do programa de Tecnologias da Inteligência e Design

    Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, por seu caráter inovador, multi

    e transdisciplinar.

    19

  • 20

    A hipótese central deste trabalho é que a experiência do jogo eletrônico, enquanto

    interação sinestésica com um mundo codificado e proposto intencionalmente, produz um

    impacto cognitivo específico. A experiência profissional deste pesquisador como game

    designer permite, acreditamos, que se assuma um ponto de vista privilegiado em relação

    às questões que cercam a criação do game. Temos então, como objetivos secundários, a

    intenção de investigar também o diálogo entre quem joga e quem programa o jogo, e o

    papel do game designer como criador de experiências carregadas de potencial cognitivo.

    No primeiro capítulo, Jogo tradicional e jogo eletrônico, delimita-se o nosso objeto

    de estudo. Um grande número de pesquisadores, tanto no Brasil como no exterior, têm se

    dedicado à tarefa de definir o que é o game. Para isso, muitas vezes emprestam-se concei-

    tos criados para estudo de outras mídias e campos do conhecimento, como a literatura, o

    teatro e a comunicação social. Optou-se por seguir, no entanto, um caminho paralelo, tal-

    vez devido à experiência deste pesquisador como designer de jogos. Vamos nos alinhar,

    então, com os ludologistas, a corrente de estudiosos que procura definir o jogo através

    de um referencial teórico próprio, nascente, em construção e por isso mesmo às vezes

    incompleto. Esse caminho permite chegar a uma definição estreita de jogo eletrônico que

    serve aos propósitos deste trabalho. Em seguida examinamos, a partir das teses de Frank

    Wilson e Vilém Flusser, a mão e o olho como os canais primários de acoplamento entre

    o jogador e a máquina. Por fim, vamos explorar o conceito flusseriano da caixa preta e

    a idéia de que o jogo de computador se desenvolve em um aparelho com possibilidades

    finitas de variação, onde todos os jogos possíveis de serem jogados estão codificados e

    limitados pelo campo de possibilidades do hardware e do software.

    No capítulo Jogo e flow é apresentado o trabalho de Mihaly Csíkszentmihályi. Este

    psicólogo americano identificou as bases para o que chamou de "Teoria da experiência

    ótima", em uma pesquisa com duração de mais de duas décadas que contou com a cola-

  • 21

    boração de centenas de milhares de voluntários e dezenas de assistentes espalhados em

    várias universidades ao redor do mundo. Demonstramos, então, as implicações desta te-

    oria nos games, examinando cada um dos componentes do enjoyment classificados por

    Csíkszentmihályi e sua relação com aspectos específicos do jogo eletrônico.

    As diferentes correntes das ciências cognitivas são analisadas no capítulo Jogo e cog-

    nição, onde buscamos uma resposta para a questão "o que é conhecimento e como o

    mesmo se dá?". Examinamos as diferenças entre as linhas cognitivista, conexionista e

    encenativa, a partir da pesquisa de Varela, Thompson e Rosh; e na sequência exploramos

    como o jogo eletrônico pode ser considerado gerador de conhecimento de acordo com

    cada um destes diferentes modelos de cognição.

    O capítulo seguinte, o diálogo entre quem joga e quem programa o jogo, examina

    como o game designer cria e codifica o mundo virtual onde a experiência do jogar se

    desenvolve. Neste percurso citamos alguns jogos clássicos a fim de observar como estes

    representam o avanço da tecnologia, além de identificar as particularidades envolvidas no

    processo de codificação e na interação entre o jogador e o código.

    Nas considerações finais, relacionamos a atividade de desenvolver jogos com a cri-

    ação de um repositório de conhecimento em potencial. Caracterizamos o designer como

    aquele que brinca com o software na tentativa de evocar uma experiência: o código em

    si carrega o potencial cognitivo, mas apenas no diálogo (no jogar) este potencial tem a

    chance de se realizar. Analisamos, então, o papel do game designer nesta construção de

    saberes, em uma sociedade onde a experiência do jogo eletrônico ocupa cada vez mais

    espaço, principalmente entre os mais jovens.

    Nota: no corpo deste trabalho optamos por colocar as citações em língua estrangeira

    traduzidas para o Português, a fim de facilitar o fluxo da leitura. Os textos na versão

  • 22

    original estão, no entanto, disponíveis como notas de rodapé. Todas as traduções, salvo

    indicação em contrário, foram feitas pelo autor.

  • Capítulo 1

    Jogo tradicional e jogo eletrônico

    The whole truth regarding play cannot be known until the whole truth regarding

    life itself is known1. — Lehman and Witty — Psychology of Play, Chapter 1. 1927.

    [SCHELL, 2008, p. 38]

    Esta pesquisa investiga algumas das questões relacionadas ao impacto cognitivo es-

    pecífico do jogo eletrônico, com ênfase no diálogo possível entre o game designer e o

    jogador. Faz-se necessário, antes de mais nada, definir então o que se entende por jogo e,

    mais especificamente, por jogo eletrônico.

    1.1 Sobre o jogo

    A definição de jogo foi objeto de estudo de dezenas de autores relacionados a linhas de

    pesquisas paralelas a esta, e parece ser um primeiro capítulo obrigatório em grande parte

    1A verdade completa a respeito do jogar não pode ser conhecida até que a verdade completa sobre aprópria vida o seja. [Tradução do autor]

    23

  • 24 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    dos trabalhos que se propõe a lidar com essas questões2.

    Este grande número de tentativas de conceituação reflete de certa forma a importância

    do jogo como fenômeno cultural e também a sua abrangência, fatores que tornam difícil

    a tarefa de buscar apenas uma definição exata. Alguns autores até mesmo desistem de

    procurar tal resposta:

    "A palavra [jogo] é usada para um número tão variado de atividades que não vale

    a pena insistir em uma definição proposta. No final das contas, este é um elemento

    lexicológico escorregadio, com muitos amigos e relações em uma ampla gama de

    áreas3". – David Parlett, The Oxford History of Board Games – [SALEM, 2004, p.

    71]

    É interessante notar, no entanto, que grande parte dos estudiosos deste campo escreveu

    suas obras em inglês, alemão ou francês, línguas onde os verbos play, spielen e jouer se

    aplicam tanto ao que nós nomeamos em português jogar como ao que nomeamos de

    brincar. O problema para estes autores é, então, ainda mais complexo do que para nós.

    Para começar, existe a necessidade de se distinguir entre estes dois estados primários

    (brincar e jogar), e Schell faz esse exercício de uma maneira bastante direta:

    "Um jogo é algo que você joga. Um brinquedo é algo com o que você brinca.

    [...] Um brinquedo é um objeto com o qual você brinca4."[SCHELL, 2008, p. 26]

    Essa questão linguística é uma primeira e importante distinção: observa-se que neste2Entre outros, recomenda-se a consulta de "Videogames: brinquedos do pós-humano" de Roger Tavares

    [TAVARES, 2006] e o capítulo "O conceito de jogo e jogos computacionais", de João Ranhel, parte dacoletânea "Mapa do Jogo". [SANTAELLA e FEITOZA, 2008, p. 3]

    3The word [game] is used for so many different activities that is not worth insisting on any proposeddefinition. All in all, it is a slippery lexicological customer, with many friends and relations in a wide varietyof fields.

    4A game is something you play. A toy is something you play with. [...] A toy is an object you play with.

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 25

    trabalho estamos falando sobre aquilo que, em português, denominamos naturalmente de

    jogo, utilizado com o verbo jogar. O que chamamos de brincar e o brinquedo não são

    objeto deste estudo. Da mesma forma, também não estamos falando de outras atividades

    que se encaixariam nos verbos play, spielen ou jouer para os estudiosos americanos e

    europeus, como a representação de um papel teatral ou a execução de uma música. A

    tabela 1.1 sumariza algumas destas múltiplas traduções para play:

    Inglês Português

    Play soccer Jogar futebol

    Play chess Jogar xadrez

    Play with a doll Brincar de boneca

    Play with my dog Brincar com meu cachorro

    Play a role Representar um papel

    Play music Executar música

    Tabela 1.1: Play em português

    Nota-se portanto que o universo linguístico já funciona como balizador: parece ser

    instintivamente mais fácil definir jogar em português do que em inglês, alemão ou francês,

    pois cada língua naturalmente delimita o seu campo de significados. Com o aprendizado

    da língua portuguesa aprende-se também o que é para nós o jogo, bastando identificar

    aquelas atividades culturais que utilizamos com o verbo jogar5.

    Por outro lado, a falta deste referencial, naturalmente enraizado em nossa estrutura

    linguística, fez com que os pesquisadores europeus e americanos tivessem que definir

    parâmetros mais exatos que podem ser utilizados para se dizer, em suas línguas natais,

    5Descarta-se aqui o uso do verbo jogar no sentido de arremessar, interpretação que não existe para osautores de língua inglesa, francesa e alemã

  • 26 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    quando uma atividade é um jogo ou não, diferenciando-a da brincadeira ou da represen-

    tação. Esse exercício contínuo levou a dezenas de definições acadêmicas para o conceito

    de jogo, nem sempre coincidentes e normalmente centradas na análise das característi-

    cas discretas que qualificariam o jogar. E o estudo dessas características básicas ajuda

    mesmo aqueles que falam o português a entender de forma analítica, e não apenas através

    das fronteiras da língua, os elementos constituintes das experiências que chamamos de

    jogar.

    A tabela 1.2 (baseada em [SALEM, 2004, p. 79]) mapeia os pré-requisitos para uma

    atividade ser considerada jogo para alguns dos principais pesquisadores da área. Para

    sua confecção os autores coletaram definições encontradas nas obras tanto de autores da

    primeira metade do século XX — Johan Huizinga e Roger Caillois, referências obriga-

    tórias neste campo de estudo — como também aquelas que aparecem em trabalhos mais

    recentes sobre jogos de tabuleiro, estrutura do jogo e do videogame publicados depois

    da década de 70 por psicólogos, acadêmicos e game designers (David Parlett, Clark Abt,

    Bernard Suits, Elliot Avedon, Chris Crawford e Brian Sutton-Smith).

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 27

    Parle

    tt

    Abt

    Hui

    zing

    a

    Caill

    ois

    Suits

    Craw

    ford

    Aved

    on/S

    utto

    n-Sm

    ith

    Procede através de regras

    que limitam os jogadores

    x x x x x x x

    Conflito ou competição x x x

    Orientado a um objetivo x x x x

    Atividade, processo ou

    evento

    x x x

    Envolve tomada de deci-

    são

    x x

    Não associado a ganho

    material

    x x

    Artificial / Seguro / Fora

    da vida comum

    x x x

    Voluntário x x x

    Faz de conta / Represen-

    tacional

    x x

    Tabela 1.2: Elementos para a definição de jogo - baseada em [SALEM, 2004, p. 79]

    Pode-se observar que alguns elementos se repetem com maior frequência, mas apenas

    um é citado por todos os autores examinados. A maioria dos pesquisadores identifica as

    características do jogo como uma "atividade, processo ou evento", que é normalmente

    "orientada a um objetivo". Todos, no entanto, consideram que esta atividade, para ser

    considerada jogo, "procede através de regras que limitam os jogadores". Estas três carac-

  • 28 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    terísticas básicas, portanto, formam a base do conceito de jogo utilizado no decorrer deste

    trabalho:

    O jogo é algo que se joga: uma atividade, orientada a um objetivo, que é limi-

    tada por regras previamente acordadas entre os jogadores.

    Esta definição é propositadamente estreita6, e apresentada como o recorte inicial sobre

    o qual enquadra-se o verdadeiro objeto de estudo deste trabalho: o jogo eletrônico.

    1.2 Sobre o jogo eletrônico

    Conceitua-se então o jogo eletrônico (ou game) como um jogo (conforme definido ante-

    riormente) que se desenvolve na interação entre um jogador humano e um outro jogador,

    humano ou não, mediada por um dispositivo de processamento digital, aqui chamado ge-

    nericamente de computador. Este é constituído por elementos físicos (hardware) e por

    um conjunto de instruções e procedimentos que determinam como estes elementos físicos

    podem ser ativados (software).

    O computador, portanto, mantém o estado do jogo, controla a ordem e o modo pos-

    sível de interação e calcula a produção de novo estado através de regras codificadas em

    seu programa de operação. Videogames, celulares, smartphones e, logicamente, os com-

    putadores pessoais, são exemplos de dispositivos atuais que possibilitam a execução de

    6Em especial, foram desconsideradas na elaboração desta definição as questões relacionadas aos elemen-tos estéticos e narrativos do jogo. Esta escolha intencional aproxima este trabalho das linhas de pesquisaidentificadas com a Ludologia, corrente que busca examinar os games como uma disciplina autônoma edesencoraja a adaptação de teorias desenvolvidas para outras áreas estabelecidas do conhecimento, comoa literatura e as artes visuais. Para uma análise mais abrangente desta questão sugere-se a leitura da seção"Narratologia X Ludologia". [GOMES, 2008, p. 28]

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 29

    jogos eletrônicos, mas a definição abrange também brinquedos com circuitos embarca-

    dos, robôs, relógios, calculadoras, caixas eletrônicos, set-top boxes e redes compostas por

    um ou mais dispositivos como a internet, o sistema de telefonia e as redes de TV digital.

    Embora o jogo eletrônico possa se desenvolver em qualquer um destes dispositivos, usare-

    mos neste capítulo o termo computador para nos referirmos de forma genérica ao aparelho

    eletrônico onde o jogo se desenvolve, e tomaremos como base para análise o exemplo do

    computador pessoal, constituído de unidade de processamento central, teclado, mouse e

    tela.

    1.3 Interação e feedback

    A experiência do jogar o jogo eletrônico é condicionada pela interface disponível entre

    o jogador e o dispositivo, e vem se alterando ao longo do tempo. O modo mais usual

    de interação com o jogo ainda é o apertar de teclas, sejam elas em um controle especial

    ou em um teclado comum. Videogames atuais utilizam também detecção de movimento

    e reconhecimento de formas através de câmeras e controles dotados de giroscópios e

    acelerômetros. É interessante observar que esta evolução na interface entre o homem e o

    dispositivo parece ocorrer primariamente em apenas uma direção, aquela que representa

    o fluxo de informação do jogador para a máquina, canal que chamamos de entrada de

    dados ou input. O fluxo no sentido contrário, output, permanece largamente inalterado:

    a comunicação do estado do jogo entre máquina e jogador continua centrada ao redor de

    uma tela, auxiliada por aúdio e controles que vibram suavemente.

    É importante ressaltar que essa separação clássica entre input e output diz respeito

    apenas à interface física entre homem e máquina, examinada a partir da situação do

    computador. Afinal, é assim que o computador funciona: recebendo informações através

  • 30 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    dos canais de input, processando-as linearmente e na sequência produzindo um novo es-

    tado nos canais de output. Essa separação não está necessariamente refletida na estrutura

    perceptiva ou cognitiva envolvida na experiência do jogar, ou seja: quando os mesmos

    componentes são examinados sob o ponto de vista do jogador, não podemos automati-

    camente admitir uma simples relação causal ou linear entre input e output. Um exemplo

    simples é o apertar de um botão, visto sob o ponto de experiência7 do jogador: este gesto

    produz um feedback táctil e neural que é intrínseco, mesmo que o computador esteja des-

    ligado. Entram em cena então as ciências cognitivas e a questão da percepção; novas

    relações se constroem, e estas podem ser circulares ou simultâneas, conforme o modelo

    cognitivo considerado. Essas relações, no entanto, serão objeto de análise mais detalhada

    no capítulos 3. Por agora é necessário indicar que estamos analisando inicialmente input

    e output sob a ótica da máquina, como processos discretos e sequenciados.

    1.4 Input - Da mão para a tecla

    O meio mais usual de entrada de dados para um jogo eletrônico ainda é o apertar de teclas,

    seja através de um teclado, mouse ou joystick. Alguns controles de videogame possuem

    uma quantidade fantástica de botões (12 ou mais), sem contar ainda as alavancas dire-

    cionais, normalmente acionadas pelos polegares. Os mais recentes controles8 permitem

    também a detecção da posição, velocidade e rotação das mãos, usando acelerômetros e

    giroscópios. A intenção é que o controle seja uma extensão natural da mão humana, e o

    jogo algo que possa ser tocado e apreendido através de nosso principal órgão tátil. Isso

    7Basbaum (2005), baseado na antropologia de Constance Classen, emprega a expressão "ponto de ex-periência"para falar de uma síntese perceptiva não exclusivamente visual.

    8Quando este texto estava sendo elaborado a indústria de jogos passava por uma fase de introdução denovos controles baseados na detecção de movimentos ou imagens, iniciada com o lançamento do wiimotepara o videogame Wii, da Nintendo, e seguida pelos lançamentos do Kinetic da Microsoft e do PlaystationMove, da Sony.

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 31

    não chega a ser uma surpresa: um dos marcos da evolução da espécie humana é justa-

    mente a habilidade no uso de ferramentas para a extensão das mãos, adquirida milhões de

    anos atrás e associada ao uso da postura bípede, que deixava estas mesmas mãos livres

    para explorarem e modificarem o mundo:

    "Agora parece que homens-macaco — criaturas capazes de correr mas não ainda

    de andar em duas pernas, e com cérebros não maiores do que aqueles dos grandes

    macacos de hoje — já tinham aprendido como fazer e usar ferramentas. Segue-se

    que a estrutura do homem moderno deve ser o resultado na mudança em termos de

    seleção natural que veio com a maneira de viver associada ao uso de ferramentas...

    No curto prazo, a estrutura humana faz com que o comportamento humano seja

    possível. Do ponto de vista evolucionário comportamento e estrutura formam um

    complexo que interage, cada mudança em um afetando o outro. O Homem começou

    quando populações de grandes macacos, cerca de um milhão de anos atrás, passaram

    a viver na posição bípede e a usar ferramentas9." Sherwood Washburn [WILSON,

    1998, loc. 384-390 10 ]

    Frank Wilson, em sua obra "The Hand: how its use shapes the brain, language and

    Human Culture" examina detalhadamente a história da evolução da mão humana, asso-

    ciada ao desenvolvimento da linguagem, da cultura e ao próprio aumento da capacidade

    cerebral da nossa espécie. É uma obra compreensiva cuja análise completa foge ao es-

    copo deste trabalho, mas cabe observar algumas das descobertas citadas, como a pesquisa

    9Now it appears that man-apes — creatures able to run but not yet walk on two legs, and with brainsno larger than those of apes now living — had already learned how to make and use tools. It follows thatthe structure of modern man must be the result of change in the terms of natural selection that came withthe tool-using way of life... From the short-term point of view, human structure makes human behaviorpossible. From the evolutionary point of view, behavior and structure form an interacting complex, witheach change in one affecting the other. Man began when populations of apes, about a million years ago,started the bipedal, tool-using way of life.

    10Citamos o localizador absoluto (loc) do texto nas obras consultadas em versão eletrônica (e-book), jáque a paginação varia conforme o tamanho da fonte.

  • 32 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    cognitiva de Merlin Donald:

    "Note-se que o controle da mão envolve, pela primeira vez na evolução, um en-

    contro de mecanismos de retorno (feedback) táteis, visuais e proprioceptivos (relaci-

    onados à consciência da posição e movimento do corpo no espaço) em um mesmo

    sistema de ação. O controle da Mão pode ser encarado como a passagem de um

    Rubicão11 biológico já que um sentido remoto dominante — a visão — assume o

    controle e a modulação direta das ações12."[DONALD, 1993, p. 147]

    O controle fino das mãos está, então, a serviço de e associado à visão e ao desenvolvi-

    mento cognitivo, construindo uma determinada experiência e visão integrada de mundo.

    Essa capacidade de representação espacial e cerebral (inclusive do self 13) é encontrada

    nos primatas apenas em chimpanzés e humanos, e estaria relacionada em parte à morfo-

    logia das mãos e ao seu uso como instrumentos de exploração espacial, direcionados pela

    visão.11O autor refere-se aqui à passagem do riacho Rubicão pelas tropas de Júlio César, evento que tornaria

    inevitável o conflito armado com o poder central romano. Essa expressão passou a representar o ponto apartir do qual não é possível um retorno.

    12Note that hand control involves, for the first time in evolution, a coming together of visual, tactile,and proprioceptive feedback on the same action system. Hand control may be regarded as the crossing ofa biological Rubicon in that a dominant distal sense — vision — comes to control and modulate actionsdirectly.

    13Existem múltiplos conceitos de self estabelecidos pela psicologia, filosofia e religião. O self de CarlJung, por exemplo, não é o mesmo self de David Hume, ou de Avicena.

    "A formulação primeira do self na psicologia moderna forma a distinção entre oself como Eu, o sujeito que conhece, e o self como Mim, o objeto que é conhecido".JAMES [1891] (The earliest formulation of the self in modern psychology form thedistinction between the self as I, the subjective knower, and the self as Me, the objectthat is known.).

    O conceito de Self utilizado ao longo deste trabalho está apoiado nesta definição inicial da psicologia, erefere-se ao indivíduo como observador e objeto de sua própria consciência, ou seja, nasce de um processoauto-reflexivo que nomeia aquilo que sustenta e unifica a consciência individual ao longo do tempo. Nestesentido nossa definição de self aproxima-se daquela utilizada por Eugene Halliday em seu livro "Reflexiveself-consciousness", sendo também compatível com o conceito utilizado por Mihalyi Csíkszentmihályi em"The evolving self" (CSÍKSZENTMIHÁLYI [1994]).

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 33

    Wilson, médico e cirurgião, elabora mais sobre essa hipótese. Escrevendo sobre uma

    pesquisa que relacionava a habilidade dos cirurgiões primariamente à acuidade de sua

    visão e capacidade de representação espacial, ele afirma:

    "Por razões não explicadas, eles [os pesquisadores] sugerem fortemente que a

    mão não tem nada a ver com a percepção visual. Isto é incorreto. Cada cirurgião que

    já viveu tem uma história de vida, começando no momento do nascimento, e esta

    história de vida registra um processo de aprendizado compartilhado do corpo — ele

    todo — e da mente. [...] Durante todos os anos [...] seu cérebro coletava informação

    através das mãos e olhos e ouvidos e língua e nariz, todos juntos, de maneira a fazer

    sentido do mundo. [...] [O cérebro] não mandava mensagens para as mãos para

    depois ignorar as mensagens que elas retornavam. [...] As mãos eram movidas,

    entre outras razões, para obter informação que somente poderia ser obtida ao se agir

    sobre o objeto que era segurado. A informação retornada ao cérebro era escrita na

    linguagem da manipulação tátil e cinestésica; e comparada com informações vinda

    do sistema visual, como parte de um processo através do qual o cérebro cria imagens

    visuoespaciais14."[WILSON, 1998, loc. 4996-5005 ]

    As mãos são, portanto, os pontos de acoplamento ótimos por excelência entre o ho-

    mem e o mundo dito físico ou material, e formam um sistema integrado com os aparelhos

    visual e cerebral, a partir do qual encadeia-se um sistema perceptivo que é indivisível15.

    14For reasons that they [the researchers] do not explain, they strongly imply that the hand has nothing todo with the visual perception. This is incorrect. Every surgeon who ever lived had a life history, beginningat the moment of birth, and that life history records a shared apprenticeship of the body — all of it — andthe mind. [...] During all the years [...] his or her brain was collecting information through the hands andeyes and ears and tongue and nose, all together, in order to make sense of this world. [...] [The brain] did notsend messages to the hand and then ignore the messages the hand sent back. [...] The hands were moved,among other reasons, to obtain information that could be obtained only by acting upon the object being held.The information returned to the brain was written in the tactile and kynesthetic language of manipulationand was compared with information coming from the visual system, as part of a process through which thebrain creates visuospatial images.

    15Este assunto será objeto de estudo mais detalhado no capítulo 3, seção 3.2.3

  • 34 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    Dada a importância da mão como instrumento primário de acoplamento, não é à toa

    que, com a evolução da tecnologia, pode-se observar uma tendência pela utilização de

    telas sensíveis ao toque na nova geração de equipamentos, dos celulares aos tablets. Em

    muitos destes aparelhos, além da capacidade de se medir a pressão a e duração de cada

    toque, é possível a detecção de gestos complexos feitos com as pontas dos dedos. Também

    reveladora é esta tendência natural de se acoplar input e output no mesmo dispositivo

    físico, a tela sensível ao toque, ou touchscreen (literalmente, tela-toque). Isto mostra de

    maneira bastante clara que os canais primários de interação nos dispositivos eletrônicos

    são realmente a mão que toca e o olho que decodifica a imagem na tela, e que a conexão

    destes órgãos ao computador é passo inicial para o mergulho completo na experiência do

    jogar.

    1.5 Output - Da tela para o olho

    A tela, como mostrado, carrega o resultado primordial do estado do jogo, aquele que

    normalmente não pode ser ignorado para que o mesmo continue. Em quase a totalidade

    dos jogos eletrônicos existem comandos para se desabilitar o aúdio e o feedback táctil na

    forma das vibrações emitidas pelos controles, e a remoção destes canais perceptivos não

    impede a continuidade do jogar.

    Essa tendência ocularcêntrica, ou seja, de privilegiar o sentido da visão na apreensão

    do resultado da experiência, parece estar na raiz do modelo perceptivo da nossa sociedade.

    David Levin nota a conexão entre este modelo e a história filosófica do Ocidente:

    "Para Descartes a escuridão é um pesadelo. Não a nada a ser aprendido ao se

    entrar em seu domínio. Ele é o filósofo obcecado com claridade e luz. Se o discurso

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 35

    em que a luz, a visão e suas diversas metáforas constituem a própria lógica pode ser

    chamado de ocularcêntrico, então seria difícil de negar que a filosofia de Descartes é

    um exemplo de ocularcentrismo16. " [LEVIN, 1993, p. 9]

    Basbaum em "O primado da percepção e suas consequências no ambiente midiático"

    (2005) explora com riqueza essa ligação entre nossa tradição filosófica fundada na tradi-

    ção helênica e o modo como percebemos o mundo ao redor e, em última instância, atribuí-

    mos sentido às coisas. É especialmente relevante para este trabalho a conexão identificada

    pelo pesquisador entre a percepção primariamente visual e a constituição de mundo, que

    remete aos mesmos conceitos de clareza e lucidez mencionados anteriormente:

    "Merleau-Ponty buscara um retorno ao percebido, mas dissera que só podemos

    constituir mundo a partir da visão e seu modo de apreensão do mundo - um campo

    visual, com limites indeterminados, mas, enfim, limites; em que, desde que esteja

    convenientemente iluminado, tudo tem formas definidas, contornos; aquilo que é vi-

    sível se apresenta com certa permanência, ao mesmo tempo em que é apreensível

    à distância; as coisas se apresentam ’claras’ e o pensamento pode ser ’lúcido’. A

    filosofia ergueu-se sobre esse olhar que constitui a paisagem calculável por uma ge-

    ometria capaz de sintetizá-la em formas (visuais) ideais, abstratas;.." [BASBAUM,

    2005, p. 77]

    Percorrendo o caminho indicado por Basbaum, chega-se a Merleau-Ponty, que em "O

    olho e o espírito" chega ao ponto central sem meias-palavras:

    “É preciso tomar ao pé da letra o que nos ensina a visão: que por ela tocamos o

    16For Descartes, darkness is a nightmare. There is nothing to be learned from entering its domain. He isthe philosopher obsessed with clarity and light. If a discourse in which light, vision, and its metaphorics areconstitutive of its very logic may be called ocularcentric, then it would be difficult to deny that Descartes’philosophy exemplifies ocularcentrism.

  • 36 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte, tão perto dos lugares distan-

    tes como das coisas próximas, e que mesmo nosso poder de imaginarmo-nos alhures

    [...] recorre ainda à visão, reemprega os meios que obtemos dela.” [MERLEAU-

    PONTY, 2004, p. 43]

    Cabe aqui ressaltar de que o posicionamento do olhar como o único modo de constituir

    sentido é questionado de maneira incisiva por Basbaum, que aponta numerosos exemplos

    de como os outros sentidos, e principalmente a interação entre eles, atuam na construção

    da experiência e do mundo vivido. O jogo eletrônico, no entanto, parece também neste

    quesito uma redução de escopo em relação ao jogo tradicional, como visto no capítulo

    anterior. Em um jogo de futebol no mundo "real" a experiência parece ser constituída

    em partes indivisíveis pela visão do campo, o contato com os adversários, o barulho da

    torcida, o cheiro da grama, o frio da chuva e o movimento de todo o corpo em busca do

    gol. Já no futebol de videogame o essencial da experiência é acompanhar o desenrolar de

    pixels na tela: todo o resto é opcional, os outros sentidos são auxiliares, e neste contexto

    a primazia do olhar é evidente.

    Ao jogar o jogo eletrônico, um outro mundo é experimentado. O acoplamento ao

    dispositivo eletrônico altera nossos canais de percepção e a relação entre eles:

    "Foi esta a tese a que Marshall McLuhan dedicou sua vida: dispositivos tec-

    nológicos externalizam funções do corpo - são ’extensões do homem’. Ao fazê-lo,

    modificam o corpo - pense-se no impacto do carro ou no uso de quaisquer ferramen-

    tas; intercedem no campo perceptivo, inaugurando modos de sentir e, se pensamos

    como percebemos - conforme temos sustentado -, a partir daí estabelecem-se por-

    tanto novos modos de dar forma ao pensamento, de exercê-lo e significar o mundo.

    Remodelam-se também as formas de interação social, as formas de comunicação,

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 37

    de organização do conhecimento, os modos de produção: transformam-se as per-

    cepções de tempo e do espaço - enfim, o mundo que se dá à percepção e as formas

    de percebê-lo. Emerge uma nova modalidade de experiência, caracterizada por uma

    específica configuração dos sentidos - ’interplay among the senses’, como já se disse

    há pouco - e define-se, enfim, um novo ’environment’ (’ambiente’) sociocultural, em

    que o mundo é vestido de uma nova significação." [BASBAUM, 2005, p. 111]

    Dentro do ambiente que emerge no jogar eletrônico as imagens são o ponto conver-

    gente da experiência, e constituem o feedback principal computado pela máquina para

    o jogador. Entender como nos relacionamos com as imagens produzidas por dispositi-

    vos eletrônicos, as tecnoimagens, é portanto essencial para a compreensão deste modo de

    jogar.

    1.5.1 Imagens e texto

    Parte-se então do pressuposto de que um computador é um aparelho produtor de experi-

    ências interativas, absorvidas primariamente através de uma sequência de tecnoimagens.

    Mas o que são tecnoimagens, ou imagens técnicas? Este conceito foi cunhado pelo filó-

    sofo Vilém Flusser na década de 1980. Para ele, tecnoimagens são superfícies de pontos

    dispersos que codificam imagens geradas e emitidas por um aparelho, de acordo com

    uma programação prévia:

    "As imagens técnicas são tentativas de juntar os elementos pontuais em nosso

    torno e em nossa consciência de modo a formarem superfícies e destarte taparem os

    intervalos. Tentativas para transferir os fótons, elétrons e bits de informação para

    uma imagem. Isto não é viável para mãos, olhos ou dedos, já que tais elementos não

  • 38 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    são nem palpáveis, nem visíveis, nem concebíveis. Logo, é preciso se inventarem17

    aparelhos que possam juntar ’automaticamente’ tais elementos pontuais, que possam

    imaginar o para nós inimaginável. E é preciso que tais aparelhos sejam por nós

    dirigíveis graças a teclas, a fim de podermos levá-los a imaginarem." [FLUSSER,

    2008, p. 24]

    Para melhor captar o conceito de imagem técnica em Flusser é vantajoso examinar o

    seu conceito de imagem tradicional. As imagens tradicionais são aquelas que capturam o

    mundo, fixando o ponto de experiência, "transformando a circunstância em cena [FLUS-

    SER, 2008, p. 16]". São construídas a partir de volumes: representam uma transformação

    do tridimensional em bidimensional. O artista que produzia imagens tradicionais em um

    primeiro momento o fazia como ato de "imaginação": transformação do multidimensio-

    nal indescritível em fixação de experiência subjetiva. Assim eram as pinturas nas paredes

    das cavernas e nas paredes de um templo babilônico.

    Em um segundo momento da evolução da cultura humana as imagens tradicionais co-

    lapsam em direção à unidimensionalidade. O desenho da árvore na parede é inicialmente

    codificado em um ideograma, ou hieroglifo. É a imagem que pode representar toda e

    qualquer árvore, "imaginando" o conceito. Mais adiante os desenhos são abstraídos para

    representar a fala, suas vogais e consoantes, na forma de letras. É a transformação das

    imagens em textos, que podem ser colocados em uma linha, de forma a serem contados e

    explorados linearmente. Temos então uma aparente redução de escopo: do mundo para a

    imagem (imaginação), e desta para o ícone e para o texto (Figura 1.1).

    17Optou-se por manter o texto original em todas as citações. Neste caso, a expressão "que se inventem"seria mais correta.

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 39

    Figura 1.1: Imagem, ideograma e texto

    Seguindo este caminho, o texto pode ser pensado como a imagem desenrolada na

    linha, de modo a ser decodificada de maneira previsível e linear. Esse movimento em

    direção à linearidade é acompanhado de um aumento da capacidade de abstração e da

    suposta reproducibilidade da experiência. O texto linear funda a própria noção de história,

    e é a base da cultura ocidental como hoje a conhecemos.

    Quanto mais o texto se torna linear mais se torna técnico, e mais se torna preciso. Essa

    tecnificação da linguagem busca retirar da mesma a ambiguidade da experiência do ser

    no mundo, e leva à linguagem científica, e mais tarde, à linguagem algorítmica, lógica,

    matemática18. O código de um programa de computador e a linguagem algorítmica são

    exemplos de precisão absoluta na descrição linear de uma experiência19.

    1.5.2 Aparelho é caixa preta produzindo imagens técnicas

    É dentro deste cenário que a sociedade ocidental científica e tecnológica finalmente pro-

    duz aparelhos que por sua vez produzem imagens técnicas. O primeiro deles é a máquina

    fotográfica, seguida pela câmera cinematográfica, pela televisão, pelo computador, pela

    máquina de fotografia digital, pelos celulares. Vivemos em uma sociedade de teclas e18Esta tese é de Horst Ruthrof (1997), conforme discutida por Basbaum em aula.19Quanto mais perto chegamos deste limite de exatidão e previsibilidade na linguagem mais distantes

    estamos dos objetos do mundo que iniciaram este mergulho. Parece ser o preço que se paga pela extremaprecisão e controle, uma questão em aberto para ser investigada no futuro.

  • 40 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    de telas, de imagens imaginadas, codificadas, armazenadas, transmitidas e experimenta-

    das através de aparelhos de imaginação. O observador casual poderia considerar então

    que vivemos em um tempo de retorno à idade das imagens, uma aparente superação da

    textolatria e da linearidade predominantes na sociedade ocidental nos quinhentos anos

    anteriores ao século XX. Mas o que vivemos pode ser pensado como precisamente o

    contrário: estamos na era da primazia do código.

    Ocorre que, ainda segundo Flusser, as tecnoimagens são fundamentalmente de na-

    tureza diversa das imagens tradicionais. Inauguradas com a fotografia, estas são com-

    postas por aparelhos, e se caracterizam pela codificação das imagens em pontos. Dentro

    dos aparelhos, as chamadas caixas pretas na terminologia flusseriana, ocorrem proces-

    sos invisíveis ao operador que determinam a forma através da qual as tecnoimagens são

    produzidas, transmitidas, armazenadas e reproduzidas. Na Figura 2 pode-se visualizar

    o processo que ocorre nos computadores pessoais: do código (linguagem algorítmica) à

    nuvem de pontos, formando sequências de imagens técnicas na tela (Figura 1.2).

    Figura 1.2: Do código aos pontos que formam a imagem técnica em um computador pessoal

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 41

    O operador não é mais o autor da imagem, mas sim alguém a serviço do aparelho, um

    funcionário apertador de teclas. É a programação do aparelho que determina as imagens

    que podem ser "imaginadas", dentro de um conjunto extenso porém finito de possibili-

    dades. A liberdade de escolha do fotógrafo (ou, no caso do nosso objeto de pesquisa,

    do programador do jogo de computador) é apenas aparente: dentro da caixa preta já se

    encontram potencialmente todas as fotografias que podem ser tiradas, e todos os progra-

    mas que podem ser executados. Essa noção flusseriana, mais difícil de ser compreendida

    em relação à fotografia, é bastante clara quando aplicada à tela de computador: existe

    um número finito de pontos na horizontal e na vertical, e cada um destes pontos pode

    apresentar um número finito de cores, combinação de valores precisos e discretos de azul,

    verde e vermelho. Há, portanto, um número finito de imagens técnicas possíveis de serem

    exibidas. Essa limitação está codificada no aparelho computador pessoal, e as próprias

    características físicas da tela fazem com que seja impossível contorná-las. Toda e qual-

    quer liberdade de um desenvolvedor de jogos eletrônicos se encontra dentro do campo de

    expressão possível no aparelho.

    Nota-se aqui que é justamente a precisão do código e da linguagem técnica que torna

    possível a existência dos aparelhos produtores de imagens técnicas. Isso é especialmente

    claro no caso do computador, que além do código industrial de procedimentos e trilhas

    gravados nos chips também opera com uma segunda camada de código, o software. Trata-

    se de codificações sobrepostas: descrição técnica em forma de linguagem de programação

    que controla e organiza o programa já residente dentro do hardware, este por sua vez tam-

    bém programado segundo a programação da indústria de computadores, programada pela

    sociedade na qual se insere. Sequência de programações em cascata. Esta sequência de

    aparelhos é vislumbrada por Vilém Flusser, em um tempo onde os computadores pessoais

    ainda não existiam:

  • 42 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    ". . . suas funções estão ciberneticamente coordenadas a todas as demais. O input

    de cada um deles é alimentado por outro aparelho; o output de todo aparelho alimenta

    outro. Os aparelhos se programam mutuamente em hierarquia envelopante. Trate-

    se, nesse complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas. Um

    supercomplexo de produção humana, produzido no decorrer dos séculos XIX e XX

    pelo homem". [FLUSSER, 2002, p. 36]

    O computador é aparelho de entretenimento e difusão de informação, programado

    para a geração de uma experiência necessariamente restrita às possibilidades da corrente

    de codificações que o gerou. É, acima de tudo, caixa preta: de um lado apertam-se teclas,

    do outro produzem-se imagens. O processo interior é desconhecido para a grande maioria

    dos apertadores de teclas, e não relevante. Nota-se que não existe aqui julgamento de

    valor sobre essa situação, estamos apenas constatando a natureza dos aparelhos geradores

    de experiência na forma de imagens técnicas, conforme proposto. E essa natureza é a de

    permitir que pessoas apertem as teclas, e gerem imagens como resultado.

    1.6 Jogo como sequência de interações possíveis

    Em um jogo eletrônico executado em um computador, quais seriam então os papéis do

    jogador e do game designer, visto que toda a interação com o código pode ser vista como

    uma exploração dentro de um universo finito de possibilidades já imaginadas?

    Começaremos pelo jogador. Este pode apenas jogar o que o aparelho permite que seja

    jogado. Para melhor entendermos isto, vamos dar um passo atrás. Consideremos um jogo

    da velha, por exemplo. É um jogo com interações claramente finitas: existe apenas um

    pequeno número de movimentos possíveis. No computador ou fora dele é relativamente

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 43

    fácil observar que existe um domínio possível e restrito de interações. O jogo da velha

    interessa a uma criança, mas rapidamente pode perder seu apelo a medida em que o joga-

    dor domina as possibilidades do jogo e percebe que, jogando "corretamente", o resultado

    é invariavelmente o empate. Este fato é relatado por Ralph Koster em seu livro "A Theory

    of fun":

    "As crianças também abandonam certos jogos conforme crescem. Foi particu-

    larmente interessante observar os meus filhos ficarem grandes demais para o jogo da

    velha — um jogo onde eu os derrotava por anos até que todos as partidas se tornaram

    empates. Este momento, quando o jogo da velha deixou de ser interessante, foi um

    instante bastante fascinante para mim. [...] As crianças não eram capazes de me

    dizer que aquele era um jogo limitado com uma estratégia ótima. Eles enxergavam o

    padrão, mas não o compreendiam racionalmente20. [KOSTER, 2005, p. 4]

    O que parece uma restrição específica do jogo da velha é na verdade uma explicita-

    ção da característica finita das interações possíveis em qualquer jogo, ou seja, tanto os

    eletrônicos como os tradicionais. Huizinga, em seu "Homo Ludens" (2008), caracteriza

    o espaço de jogo como um circulo mágico: um espaco anterior mesmo à própria cul-

    tura, onde se desenrola o jogar. O jogo tradicional, portanto, quer seja ele competitivo

    ou cooperativo, possui um domínio de interação amplo. Ainda que existam regras, estas

    operam diretamente na totalidade do potencial a ser percebido, e portanto, experimentado.

    É como se, ao jogar o jogo tradicional, estivéssemos imersos em um mundo que pode ser

    experimentado plenamente dentro de nossas restrições biológicas, ou seja, mediado dire-

    tamente. O jogo eletrônico por outro lado é fechado, ocorre dentro de um ambiente de20Kids also move on from certain games as they age. It’s been particularly interesting to see my kids

    outgrow tic-tac-toe — a game I beat them at years until one day all the matches became draws. Thatextended moment when tic-tac-toe ceased to interest them was a moment of great fascination to me. [...]The kids were not able to tell me that tic-tac-toe is a limited game with optimal strategy. They saw thepattern, but did not understand it, as we think of things.

  • 44 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    imersão necessariamente mais restrito, aquele determinado pelas possibilidades tecnoló-

    gicas do aparelho e pelas escolhas do game designer.

    Voltando ao exemplo do jogo da velha, podemos notar que no jogo não eletrônico

    essa característica do jogar enquanto exploração de uma sequência finita de movimen-

    tos e possibilidades é normalmente associada à obediência voluntária às regras do jogo.

    Nada impede fisicamente que uma criança marque no papel duas cruzes em sequência no

    jogo da velha, pulando a vez do adversário, desde que esteja disposta a quebrar as regras

    acordadas.

    É interessante notar que mesmo quando se usa o conceito mais amplo de jogo cultural

    a questão da obediência voluntária às regras também se faz presente. Rainer Guldin, um

    dos principais estudiosos contemporâneos da obra de Vilém Flusser, diz o seguinte acerca

    do jogo da tradução:

    "Quando se escreve em uma língua, isto é, em um jogo aberto, pode-se conscien-

    temente violar as regras e introduzir novos elementos. Quer dizer, pode-se manipular

    o meio e, apesar disso, permanecer dentro das regras do jogo. Isso é diferente quando

    se trata de um jogo fechado, como o xadrez, por exemplo. Cada violação de regra

    significa o mesmo que o abandono do território delimitado pelo jogo. Ao contrário

    da maioria dos jogos, as línguas são sistemas abertos que podem ser transformados."

    [GULDIN, 2010, p. 105]

    Em jogos "reais" mais complexos, como uma partida de futebol praticada por jogado-

    res profissionais, a liberdade de experiência é virtualmente ilimitada, mesmo dentro das

    regras, e condicionada apenas pela capacidade e habilidade corporal dos jogadores para

    explorar o campo do jogo com a plenitude de seus corpos e sentidos. Não existem apare-

    lhos e códigos a interpor camadas adicionais entre o jogo e a experiência do jogador. Já

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 45

    no jogo eletrônico isto não acontece. Ele é duplamente fechado: a obediência às regras é

    implícita e não-opcional. O código garante que o jogador não possa marcar duas cruzes na

    sequência, assim como garante que o avatar tridimensional que representa o centroavante

    não possa fazer movimentos outros além daqueles previamente codificados e previstos. A

    liberdade do jogador opera em um campo claramente mais restrito: a obediência às regras

    do jogo passa pela obediência compulsória à programação do aparelho.

    Tome-se como exemplo o canal de interação entre o jogador e o dispositivo. Não

    interessa se o botão é pressionado com a mão esquerda ou direita, com o dedo médio ou

    o polegar. Tudo que o dispositivo registra é uma variação já esperada e codificada, ou

    seja: ou o botão está pressionado, ou não está. Mesmo nos casos em que o joystick possui

    sensibilidade à pressão esta já está pré-calculada e se encaixa em um dos 8, 16 ou 256

    níveis de pressão esperados.

    Mas e o timing? E a diferença sutil entre o apertar de um botão e o outro, será que

    não teremos aí um espaço maior de indeterminação? Na verdade não: o evento de apertar

    o botão será medido e computado como tendo ocorrido dentro de um intervalo específico

    do game loop, cada evento ordenado e encaixado dentro dos intervalos de tempo dispo-

    níveis e associados ao clock do processador central. Para o jogo eletrônico não existem

    ambiguidades na entrada de dados, eles são sequenciais, discretos, isolados, binários.

    E, como pudemos ver, a saída também já está pré-determinada. O código do jogo

    gera uma tecnoimagem a cada x milisegundos, pré-codificada pelos modelos e texturas

    gráficas disponíveis e atrelada em última instância à capacidade dos displays.

    Esta posição, a questão dos limites do domínio de interação intrínsecos ao jogo ele-

    trônico, não escapou a Zimmerman e Salem:

  • 46 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    "Um erro de concepção comum em relação à interatividade digital é que esta ofe-

    rece aos jogadores uma gama de interação ampla e expressiva - que um computador

    pode imitar qualquer mídia e proporcionar qualquer tipo de experiência. Na verdade,

    o tipo de interação que um participante pode ter com um computador é bem estreito.

    Interação com um computador doméstico é geralmente restrita ao input através do

    mouse e do teclado, e do output da tela e dos alto-falantes. [...] Então embora a

    interatividade imediata dos jogos eletrônicos seja um elemento poderoso a ser con-

    siderado pelos designers, este meio está repleto de limitações21." [SALEM, 2004, p.

    87]

    Em função do que foi apresentado, pode-se dizer que:

    Todo jogo de computador é jogado em um aparelho com possibilidades finitas

    de variação, onde todos os jogos possíveis de serem jogados estão codificados e

    limitados pelo campo de possibilidades do hardware e do software.

    Esta conclusão, coicidente com a visão de Flusser sobre aparelhos produtores de tec-

    noimagens, não é unânime. Machado, por exemplo, relativiza a proposta finitude das

    variações:

    "O grande problema de toda a argumentação de Flusser é que ele concebe as

    potencialidades inscritas nos aparelhos e seus programas como sendo finitas: elas

    são amplas, mas limitadas em número. Isso quer dizer que, mais cedo ou mais tarde,

    com a ampliação de suas realizações, as possibilidades de uma máquina semiótica

    21A common misconception about digital interactivity is that it offers players a broad and expressiverange of interaction - that a computer can mimic any medium and provide any kind of experience. In fact,the kind of interaction that a participant can have with a computer is quite narrow. Interaction with a homecomputer is generally restricted to mouse and keyboard input, and screen and speaker output. [...] Soalthough the immediate interactivity of digital games is a powerful element for designers to consider, themedium is rife with limitations.

  • JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO 47

    acabarão por ser esgotadas. Ora, que há limites de manipulabilidade em toda má-

    quina ou processo técnico é algo de que só podemos fazer uma constatação teórica,

    pois na prática esses limites estão em contínua expansão. Que aparelhos, suportes

    ou processos técnicos poderíamos dizer que já tiveram esgotadas as suas possibilida-

    des?"[MACHADO, 1997, p. 3]

    Em uma obra posterior, "O Mundo Codificado", o próprio Flusser admite que, na prá-

    tica, alguns dos limites são inalcançáveis. Mas considera-se aqui que o fato das possibili-

    dades do aparelho se expandirem mais rápido do que nossa capacidade de realizá-las não

    invalida uma premissa básica: aparelhos imprimem limitações intrínsecas ao que pode

    ser computado e exibido. Em outras palavras: na medida em que impõem um modo de

    pensar para que possam ser programados, os aparelhos já limitam aquilo que pode neles

    ser programado. O programador só programa o programável.

    Nota-se, ainda, que a definição apresentada trata do jogo enquanto objeto e processo

    computado e exibido por um aparelho, ou seja, como aquilo que é jogado. E essas limita-

    ções do jogo eletrônico não correspondem diretamente a limitações no jogar; ou seja, na

    experiência que este jogo provoca no jogador:

    "Temos que ser absolutamente claros sobre este ponto antes de podermos conti-

    nuar. O jogo não é a experiência. O jogo torna a experiência possível, mas não é a

    experiência.[...] Game designers apenas ligam para o que parece existir. O jogador

    e o jogo são reais. A experiência é imaginária - mas os designers são julgados pela

    qualidade desta coisa imaginária porque ela é a razão pela qual as pessoas jogam os

    jogos22." [SCHELL, 2008, p. 10-11]

    22We must be absolutely clear on this point before we can proceed. The game is not the experience. Thegame enables the experience, but it is not the experience. [...] Game designers only care about what seemsto exist. The player and the game are real. The experience is imaginary - but game designers are judged bythe quality of this imaginary thing because that is the reason people play games.

  • 48 JOGO TRADICIONAL E JOGO ELETRÔNICO

    Esta distinção é importante. O fato do jogo ser limitado e pré-computável pelo apare-

    lho não significa que a experiência do jogar também o seja. E é essa experiência do jogar,

    habilitada pelo jogo, que carrega o potencial de produzir impacto cognitivo no jogador,

    conforme veremos nos capítulos seguintes.

    Recapitulando o nosso percurso até este ponto: pode-se observar que uma parcela

    significativa de nossas vidas se desenrola na exploração de potencialidades de aparelhos

    produtores de tecnoimagens, especialmente o computador pessoal. Grande parte destas

    interações toma a forma de jogo eletrônico: é uma exploração das possibilidades finitas

    expostas por estes aparelhos e suas redes de conexões, um apertar de teclas que gera

    imagens técnicas compostas por pontos em telas. Neste processo, o olho e a mão são

    os canais primordiais de acoplamento entre o homem e a máquina — o primeiro para a

    compreensão do jogo, e o último para as respostas do jogador.

    Reconhecer as características do jogo eletrônico nos permite identificar os papéis ocu-

    pados pelo jogador, pelo game designer, pelo código e pelos aparelhos, bem como algu-

    mas das restrições que condicionam e determinam as relações entre eles.

    Finalmente, é necessário distinguir-se entre o jogo e o jogar: o primeiro é objeto e

    processo, o segundo é experiência, e carrega em si o potencial de gerar conhecimento.

  • Capítulo 2

    Jogo e flow

    To be in the flow is to be dialed into your natural state of clarity, presence and

    personal power1. — Keith Varnum — The Joy Of Living In The Zone.

    No capítulo anterior foram apresentadas as características do jogo e do jogo eletrônico

    relevantes para este trabalho. Discutimos a relação entre a mão e o olho do jogador,

    os canais primordiais de input e output na relação com o computador. E utilizamos o

    conceito de tecnoimagens formulado por Vilém Flusser para fundamentar a idéia de que

    todo jogo executado em um aparelho possui uma gama finita de variações, resultantes das

    limitações tecnológicas da caixa preta e também das próprias características intrínsicas a

    todo jogo, que procede através da obediência voluntária às regras acordadas.

    Neste capítulo investigaremos o conceito de experiência ótima e flow delineado por

    Mihaly Csíkszentmihályi 2 e suas implicações na experiência sinestésica inerente ao jogar

    eletrônico.1Experimentar o flow remete ao seu estado natural de clareza, presença e poder pessoal.2Segundo Csíkszentmihályi a pronúncia aproximada do seu nome (de origem húngara) em inglês equi-

    valeria à frase "chicks sent me high", ou "txiquissentmirái" em português.

    49

  • 50 JOGO E FLOW

    2.1 Flow

    Durante mais de vinte e cinco anos, entre as décadas de 1960 e 1990, o psicólogo e pesqui-

    sador Mihaly Csíkszentmihályi desenvolveu um trabalho, que se iniciou na Universidade

    de Chicago, buscando uma definição das condições que levariam ao estado de felicidade.

    Em um primeiro momento centenas de pessoas consideradas experts em sua específica

    área de atuação foram entrevistadas: artistas, atletas, músicos, enxadristas, cirurgiões.

    Estas pessoas em geral relatavam altos níveis de felicidade pessoal, à qual associavam

    ao fato de passar a maior parte do tempo fazendo exatamente o que mais gostavam de

    fazer. Isto produzia uma sensação contínua de enjoyment, que pode ser traduzida como

    um misto de prazer, diversão e bem-estar: é o sentimento de se estar "aproveitando" ou

    "desfrutando" uma experiência de maneira prazerosa, satisfatória e agradável. E a partir

    destas primeiras observações, nas palavras do pesquisador,

    "Eu desenvolvi uma teoria da experiência ótima baseada no conceito de flow —

    o estado em que as pessoas estão tão envolvidas em uma atividade que nada mais

    importa; a experiência em si é tão gratificante que as pessoas a realizariam mesmo a

    um custo alto, apenas pelo fato de estar fazendo3." [CSÍKSZENTMIHÁLYI, 1990,

    p. 4]

    A pesquisa prosseguiu então com a ajuda de métodos auxiliares, como o uso de um

    pager eletrônico que vibrava a intervalos irregulares e deveria ser utilizado por uma se-

    mana. A cada vibração do pager o sujeito da pesquisa deveria interromper o que estivesse

    fazendo e anotar o que estava pensando, o que estava fazendo e como estava se sentindo.

    Em fases posteriores o estudo foi expandido para outros países, com pesquisadores base-3I developed a theory of optimal experience based on the concept of flow — the state in which people

    are so involved in an activity that nothing else seems to matter; the experience itself is so enjoyable thatpeople will do it even at great cost, for the sheer sake of doing it.

  • JOGO E FLOW 51

    ados no Canadá, Alemanha, Itália, Japão e Austrália, e ao final de duas décadas contava

    com centenas de milhares de fragmentos de dados que correlacionavam o estado mental e

    a experiência imediata com o sentimento relatado pelos voluntários. A pesquisa revelou

    que o sentimento de enjoyment era normalmente descrito de maneira bastante similar, não

    importando a classe social, gênero ou cultura do entrevistado:

    "O que eles faziam para experimentar o enjoyment variava enormemente — os

    idosos coreanos gostavam de meditar, os adolescentes japoneses gostavam de andar

    por aí em gangues de motocicletas — mas eles descreviam como era quando eles

    estavam se divertindo de maneira quase idêntica. Além disso, as razões pelas quais

    as atividades eram agradáveis tinham muito mais similaridades do que diferenças.

    Em resumo: a experiência ótima e as condições psicológicas que a tornavam possível

    pareciam ser as mesmas em todo o mundo4". [CSÍKSZENTMIHÁLYI, 1990, p. 48-

    49]

    Csíkszentmihályi identificou oito grandes componentes envolvidos no que chamou de

    phenomenology of enjoyment, e apresentamos a seguir uma breve descrição de cada um

    deles:

    1. Uma atividade desafiadora que exige habilidade (A challenge activity that requi-

    res skills)

    Quando uma atividade exige habilidades específicas para sua conclusão e estas ha-

    bilidades requerem algum nível de esforço por parte do indivíduo a possibilidade

    de enjoyment aumenta. Embora isso pareça mais evidente em atividades esportivas4What they did to experiment enjoyment varied enormously — the elderly Koreans liked to meditate,

    the teenage Japanese liked to swarm around in motorcycle gangs — but they described how it felt whenthey enjoyed themselves in almost identical terms. Moreover, the reasons the activity was enjoyed sharedmany more similarities than differences. In sum, optimal experience, and the psychological conditions thatmake it possible, seem to be the same the world over.

  • 52 JOGO E FLOW

    ou que dependam de alto grau de treinamento, alpinismo por exemplo, a pesquisa

    ressalta que este parece ser um princípio geral. A atividade em si não precisa ser

    necessariamente física, e a habilidade necessária não é obrigatoriamente elevada.

    Alguns dos exemplos mais citados na pesquisa são, por exemplo, a atividade de ler,

    ou arrumar e catalogar objetos pessoais.

    2. Objetivos claros (Clear goals)

    Uma atividade que tenha objetivos claros é percebida como mais satisfatória. A

    existência de uma meta a ser atingida parece amplificar o senso de enjoyment, seja

    ela uma meta imediata ou um objetivo de longo prazo.

    3. Resposta direta (Direct feedback)

    A existência de uma resposta direta e contínua durante o decorrer da atividade au-

    menta a sensação de flow. Este componente está normalmente associado ao item

    anterior, pois a resposta serve como balizamento e medida do progresso alcançado

    em relação a um objetivo pré-estabelecido. No entanto, a simples existência de al-

    gum feedback já é normalmente relatada como importante para o aproveitamento

    pleno da experiência, mesmo que o mesmo seja mecânico e repetitivo, como o som

    produzido pelo apertar repetitivo de um botão em um aparelho eletrônico.

    4. Uma fusão entre ação e presença (The merging of action and awareness) e a

    perda da autoconsciência (The loss of self-consciousness)

    Estes dois componentes estão intimamente relacionados. Algumas atividades exi-

    gem a atenção total do indivíduo, ao ponto em que parece não existir energia res-

    tante para outros processos mentais conscientes. Neste momento a pessoa se torna

    tão absorvida pelo que está fazendo que perde inclusive a referência de si mesmo

    como algo separado desta atividade: todas as ações se tornam espontâneas e pa-

    recem "fluir" naturalmente. Este é um sentimento que foi bastante descrito por

  • JOGO E FLOW 53

    dançarinos, por exemplo. No pico da performance o corpo parece dançar sozinho,

    e o indivíduo se "torna a dança. Neste momento a noção de um self parece então

    desaparecer, e tudo o que se percebe é o presente imediato e o prazer de se estar

    realizando aquela atividade.

    5. Concentração na tarefa imediata (Concentration on the task at hand)

    Este componente está normalmente associado aos dois itens anteriores: quando

    a tarefa absorve quase que completamente o indivíduo apenas as ações imediatas

    parecem estar sendo processadas. Um jogador de basquete por exemplo relatou

    que em um jogo importante não conseguia enxergar nada que acontecesse fora da

    quadra, tamanha a sua concentração na bola, nos outros jogadores e no espaço do

    jogo. Da mesma forma um piloto no limite da experiência apenas se recordava dos

    últimos 30 segundos de corrida: tudo o mais ficava como que "borrado" em sua

    memória. Observa-se então que existem ao mesmo tempo um componente espacial

    e um componente temporal de concentração, e ambos são limitados pois parece não

    existir espaço no campo perceptivo consciente para se lidar com nada que não esteja

    diretamente relacionado à tarefa imediata.

    6. O paradoxo do controle (The paradox of control)

    A possibilidade de se estar totalmente no controle da experiência é frequentemente

    relatada na pesquisa. Mesmo em atividades de alto risco, o praticante tem a sen-

    sação de estar dominando a situação, com perfeita precisão associada a cada ato

    e perfeita sincronia entre ação e consequência. Paradoxalmente esta sensação de

    estar no controle é muitas vezes relatada em situações onde o indivíduo se encontra

    no limite de suas habilidades, ao ponto em que um simples deslize pode ser fatal.

    A pesquisa identificou que isto ocorre pois a própria estrutura das atividades leva

    o praticante a aumentar a sua consciência a respeito dos riscos envolvidos, através

  • 54 JOGO E FLOW

    do desenvolvimento progressivo de suas habilidades. Isso pode ser observado por

    exemplo no caso de paraquedistas: embora o esporte apresente situações potencial-

    mente letais, a prática é associada a um treino gradual que visa aumentar o controle

    sobre todos as variáveis do salto, ao ponto em que ele se torna (para o praticante)

    o mais seguro possível. Na verdade, o que ocorre é que as pessoas tendem a apro-

    veitar o fato de parecerem exercer algum controle sobre a experiência, mesmo que

    objetivamente isto não esteja ocorrendo: um exemplo seria o caso de um jogador

    de roleta que acredita que suas habilidades são a chave para o sucesso na aposta.

    7. A transformação do tempo (The transformation of time)

    Finalmente, um componente frequentemente relatado é a experiência da transfor-

    mação do tempo. O tempo do relógio parece não estar sendo medido em expe-

    riências que geram enjoyment: são comuns tanto relatos de que várias horas se

    passaram em um segundo como relatos de que cada segundo se arrastou por um

    tempo interminável. Nadadores de elite por exemplo relatam um controle absoluto

    do ritmo e do tempo, que parece se dilatar e contrair dependendo da fase da prova.

    Velejadores oceânicos relatam trechos de dias de navegação que pareceram passar

    em minutos, toda a experiência aparentemente comprimida na escala temporal.

    Analisaremos mais adiante como cada um destes componentes é despertado durante

    o jogar eletrônico, após apresentarmos as condições que influenciam a manutenção do

    estado de experiência ótima.

  • JOGO E FLOW 55

    2.2 As condições para o flow

    Depois de identificar os componentes normalmente relatados em experiências com alto

    grau de enjoyment, Csíkszentmihályi formulou algumas das condições necessárias para

    que fosse alcançado este estágio de experiência, o qual passou a chamar de Flow. Ve-

    rificou então que a condição primordial para a manutenção deste estado durante uma

    atividade era o equilíbrio entre o desafio proposto e as habilidades do participante, repre-

    sentado na figura 2.1.

    Figura 2.1: A zona da experiência ótima

  • 56 JOGO E FLOW

    Observa-se que a zona de experiência ótima ou flow apresenta uma certa latitude,

    devido à flexibilidade e capacidade de adaptação inerente aos seres humanos. Mas quando

    a dificuldade da tarefa ultrapassa em muito a habilidade do praticante entramos em uma

    zona de ansiedade, onde o flow não é mais experimentado. A atividade se torna frustrante

    e o sentimento de enjoyment desaparece. Esta condição está representada na figura 1.2,

    na posição A.

    Figura 2.2: Zona de flow - exemplos

    Analogamente, quando o nível de desafio é muito baixo em relação à habilidade do

    praticante (posição B) a atividade se apresenta como monótona e sem graça, e novamente

  • JOGO E FLOW 57

    deixamos a zona de experiência ótima. Ainda neste gráfico podemos observar que as po-

    sições C e D estão ambas na zona de flow, embora a primeira represente uma atividade

    de baixa dificuldade realizada por um praticante iniciante e a última represente uma ativi-

    dade de alto nível de dificuldade, mas praticada por alguém com um nível de habilidade

    também alto.

    Por consequência, o pesquisador identificou que não é possível normalmente a manu-

    tenção do flow por períodos grandes de tempo sem que se modifiquem as condições da

    experiência, devido à natureza dinâmica da consciência humana. Podemos, então, com-

    preender melhor o exemplo do jogo da velha que utilizamos no capítulo anterior: para

    crianças pequenas esta atividade gera prazer, pois sua habilidade está em perfeita sintonia

    com as regras e desafios do jogo. Mas a medida em que a criança cresce e começa a

    compreender as nuances do jogo este se torna cada vez mais monótono, pois o nível do

    desafio é fixo e não cresce na mesma proporção de seu desenvolvimento. Inevitavelmente

    chegamos ao ponto em que a criança não se interessa mais pelo jogo da velha, pois suas

    habilidades ultrapassaram o ponto em que esta atividade gera flow. Outros jogos e ativi-

    dades possuem uma gama maior de ajuste: um praticante de tênis pode sempre procurar

    adversários mais fortes, e um alpinista pode buscar uma montanha mais íngreme ou com

    condições diferentes para a escalada, até o limite de suas habilidades. De qualquer forma,

    observamos que o desenvolvimento de habilidades é parte integrante das experiências que

    geram flow:

    "É esta característica dinâmica que explica porque as atividades que geram flow

    levam ao crescimento e à descoberta. Uma pessoa não pode desfrutar da mesma

    coisa no mesmo nível de experiência por muito tempo. Ficamos ou entediados ou

    frustrados, e o desejo de se divertir novamente nos leva a estender nossas habilida-

  • 58 JOGO E FLOW

    des ou à descoberta de novas oportunidades para usá-las5". [CSÍKSZENTMIHÁLYI,

    1990, p. 75]

    2.3 Flow e games

    A teoria de flow e os dados coletados durante sua formulação foram imediatamente úteis

    para pesquisadores nas áreas da psicologia, sociologia e antropologia, mas ao longo dos

    anos ela se mostrou também aplicável a outras áreas do conhecimento. De maneira parti-

    cularmente interessante para nós, o game designer e pesquisador Jenova Chen investigou

    algumas das implicações do flow em relação aos jogos eletrônicos, em sua tese "Flow in

    games":

    "A descrição do Flow é idêntica ao que um jogador experimenta quando total-

    mente imerso em um jogo eletrônico. Durante esta experiência o jogador perde a

    noção do tempo e esquece todas as pressões externas [...] Dessa maneira, muita

    pesquisa está sendo feita sobre como usar o Flow para avaliar as experiências com

    videogames6." CHEN [2008]

    Isso não é uma surpresa. Já em sua pesquisa inicial Csíkszentmihály havia identificado

    os jogos (não eletrônicos) como atividades primariamente desenhadas para a obtenção de

    um estado de experiência ótima:

    5It is this dynamic feature that explains why flow activities lead to growth and discovery. One cannotenjoy doing the same thing at the same level for long. We grow either bored or frustrated; and then thedesire to enjoy ourselves again pushes us to stretch our skills, or to discover new opportunities for usingthem.

    6The description of Flow is identical to what a player experiences when totally immersed in a videogame. During this experience, the player loses track of time and forgets all external pressures. [...] Thus,much research is being done about how to use Flow to evaluate video game experiences.

  • JOGO E FLOW 59

    "O que torna estas atividades catalisadores de flow é o fato de que elas foram de-

    senhadas para facilitar o alcance da experiência ótima. Elas tem regras que requerem

    o aprendizado de habilidades, determinam objetivos, provêm retorno, fazem com que

    o controle seja possível. Elas facilitam a concentração e o envolvimento ao fazer a

    atividade tão distinta quanto possível do que chamamos de ’realidade mundana’ da

    existência cotidiana7." [CSÍKSZENTMIHÁLYI, 1990, p. 72]

    Csíkszentmihályi mostra familiaridade com alguns autores seminais que trabalharam

    o tema do jogo, incluindo Huizinga. Ele também cita explicitamente o trabalho do an-

    tropólogo francês Roger Caillois, que classificou os jogos tradicionais em quatro grandes

    grupos: Agon, alea, ilinx e mimicry. Uma análise mais detalhada desta classificação foge

    do escopo deste trabalho8, mas é importante ressaltar que segundo Csíkszentmihályi estes

    quatro tipos de jogos oferecem possibilidades para o aparecimento do estado de flow, cada

    um a seu modo9.

    Voltando a Jenova Chen: como parte de sua pesquisa o game designer produziu um

    game apropriadamente entitulado FlOw.

    7What makes these activities conductive to flow is that they were designed to make optimal experienceeasier to achieve. They have rules that require the learning of skills, they set up goals, they provide feedback,they make control possible. They facilitate concentration and involvement by making the activity as distinctas possible from the so-called ’paramount-reality’ of everyday existence.

    8Ver TAVARES [2006].9É interessante notar que a pesquisa de Csíkszentmihályi não chegou a analisar os jogos eletrônicos,

    pois no início da mesma (1960) estes ainda não existiam. Só perto do final das primeiras etapas do trabalho(por volta de 1975) eles começaram a aparecer, ainda de forma bastante primária devido às limitações datecnologia.

  • 60 JOGO E FLOW

    Figura 2.3: FlOw

    É um jogo relativamente simples, que se resume a guiar uma criatura aquática que

    procura comida e sofre mutações e evolui conforme o que come.

    "Diferentemente de jogos tradicionais onde os jogadores têm que completar um

    nível para poder progredir para o próximo, flOw oferece aos jogadores o poder de

    controlar o progresso do jogo. Ao selecionar comidas diferentes para consumir os

    jogadores podem avançar para os níveis mais difíceis e retornar para os mais fáceis a

    qualquer momento. O jogo possui uma penalidade mínima para a morte: se o jogador

    morreu em um nível, ele será trazido de volta para o nível imediatamente anterior,

    que é um pouco mais fácil. O jogador também pode escolher evitar o desafio, pular

    um nível e voltar para ele novamente10." [CHEN, 2008, p. 16]

    10Different from traditional games in which players have to complete one level in order to progress to thenext one, flOw offers player power to control their gameplay progress. By choosing different f