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    JOGO MUSICAL EHUMANIZAO

    UM OLHAR LDICO, COMPLEXO ESISTMICO NA EDUCAO

    PAULO CSAR CARDOZO DE MIRANDA

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    JOGO MUSICAL EHUMANIZAO

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    Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    ProfaDraMargarete Arroyo

    Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna

    Prof. Dr. Ricardo Lobo Kubala

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    PAULO CSARCARDOZO DE MIRANDA

    JOGO MUSICAL EHUMANIZAO

    UM OLHAR LDICO, COMPLEXOE SISTMICO NA EDUCAO

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    2013 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    M645j

    Miranda, Paulo Csar Cardozo deJogo musical e humanizao [recurso eletrnico] : um olhar ldico,

    complexo e sistmico na educao / Paulo Csar Cardozo de Miranda.

    1. ed. So Paulo : Cultura Acadmica, 2013.recurso digital

    Formato: ePDFRequisitos do sistema: Adobe Acrobat ReaderModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-7983-431-8 (recurso eletrnico)

    1. Msica Instruo e estudo. 2. Msica na educao. 3. Livroseletrnicos. I. Ttulo.

    13-06411 CDD: 780.7 CDU: 78(07)

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

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    No meu tempo de infncia, para brincar, em todo ouniverso tnhamos somente tomos de hidrognio, e

    passvamos o tempo todo a jog-los um para o outro, eu eum menino da minha idade

    talo Calvino,As cosmicmicas

    No sul da Califrnia, poucas pessoas ainda recitam os chamadosCantos dos pssaros, versos cadenciados que costumavam ser

    cantados por quatro noites seguidas durante o inverno. Elesrecontam as andanas das divindades pelo mundo nos primeirosinstantes da criao. O meu amigo Ernest Siva, ndio serrano e

    cahuilla de Banning, um desses cantores. Certa vez, depois deouvi-lo cantar um verso especialmente belo, eu criei coragem para

    perguntar a ele o que significava. Depois de refletir um pouco, asua resposta foi mais ou menos assim: Se eu queria saber o quesignificavam as palavras, ele teria todo o prazer em traduzi-laspara mim. Mas no era esse o significado do canto, pelo menos

    para ele. O significado do canto no estava apenas nas palavras,mas em quem tinha lhe ensinado o canto, quando o canto podia

    ser entoado, quem podia ento-lo, todas as outras vezes em queele havia sido entoado, a quem ele tinha ensinado ou viria aensinar o canto.

    Malcom Margolin, O significado do canto, 2006

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    SUMRIO

    Agradecimentos 11

    Introduo 13

    1. O entrelaar do humano 21

    2. Campo de convivncias 55

    3. Educao musical e desenvolvimento humano 111

    Consideraes finais 153

    Referncias bibliogrficas 157

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    AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, professora Marisa Fonterrada, grandemestra, sempre disposta a desenredar os fios dos meus pensa-mentos e a corrigi-los com pacincia e generosidade. Por propor-

    cionar-me lies de sabedoria, de conhecimento e de humanidade.Ao prof. dr. Alberto Ikeda e profadraTeca A. Brito, por acei-tarem participar deste projeto e por estar sempre disponveis a meajudar, de forma solcita.

    direo, coordenao e aos professores da EE Romeu deMoraes, que possibilitaram a realizao da presente pesquisa.

    Ao coordenador Francisco Cardoso. A todas as crianas da 5a

    srie C e a seus pais, que generosamente se dispuseram a fazer parteda pesquisa. Fabiana, Sebastiana e Cristina da Biblioteca do IA UNESP.Aos meus irmos, Snia, Cidinha e Edson, pelo grande apoio,

    com palavras de incentivo ou de ateno, e por estarem ao meu ladoquando necessrio.

    Maria Apparecida F. M. Bussolotti, por sua correo crite-riosa do texto.

    Mauro Aulicino, pela ajuda na edio das partituras usadasneste trabalho.

    Capes, pelo financiamento da pesquisa.

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    INTRODUO

    Eu entrei na rodaPara ver como se dana

    Eu entrei na contradanaEu no sei danar.

    [Cano de domnio pblico]

    O presente livro foi inspirado por diversas experincias reali-zadas nas reas artsticas e pedaggicas, tanto musicais quanto decontao de histrias, jogos e brincadeiras, teatro de bonecos entreoutras, direcionadas s crianas, aos educadores e arte-educadores.

    Apoia-se, na prtica, nas atividades realizadas com grupo de alunosem uma escola da cidade de So Paulo, durante a investigao decampo, suporte a este texto.

    As inquietaes em relao educao o ensino e a aprendi-zagem manifestadas nessas experincias anteriores, envolveramas interlocues entre o educador e o educando. Tinham como baseuma viso questionadora sobre os elementos terico-prticos e asrelaes professor e aluno, sujeito e objeto, como seres humanospreocupados com seu desenvolvimento e, especificamente, com amsica.

    Entre essas questes, encontravam-se pontos que polarizavamas temticas como os jogos e as brincadeiras enquanto expresses

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    musicais; a presena do ldico na msica e no ensino; suas implica-es com a educao musical, com nfase na formao de profes-

    sores e de msicos, assim como na musicalizao e sensibilizao deouvintes.Temas presentes aqui, os jogos e brincadeiras so cada vez

    mais recorrentes na literatura atual de diferentes reas do conheci-mento, como a Educao, a Educao Fsica, a Psicologia, os Re-cursos Humanos. A ttulo de exemplo, mencionam-se os estudosrealizados nas reas de lazer (Marcelinno, 2006; Werneck, 2000; Oli-

    veira, 2004), brinquedotecas (Noffs, 2000; Bomtempo, 1990, 1992;Friedmann, 1992, 1996), e na de sade (Esteves, 2010; Moura &Loureiro, 2010), entre outros.

    Para desenvolver essa temtica diante das atuais necessidadesde execuo e de fruio da msica e suas manifestaes a partir dosculo passado, props-se uma compreenso a respeito dos jogos ebrincadeiras entendidos como um aspecto da vida social e consi-

    derados como tema da Educao Musical, da Educao e de Es-tudos Sociais. Sobretudo, aprofundou-se naqueles que so musicais,tanto os da tradio da oralidade e dos imaginrios populares ,quanto os surgidos das linhas pedaggicas contemporneas.

    Neste momento, em que se vem pondo em prtica a Lei no11.769, aprovada em 2008, que dispe sobre a obrigatoriedade doensino da Msica na educao bsica, observam-se lacunas de pes-

    quisas em relao aos conhecimentos atuais para atender as de-mandas didticas nesse nvel pedaggico. Em especial para o ensinofundamental, em que, de acordo com Loureiro (2003, p.14), ocorreque se encontrem alunos desinteressados, com pouca concen-trao e baixo comprometimento [] [que] precisam ser incitadosa experimentar formas de apreenso da linguagem musical []proporcionando maior abertura para o dilogo e o fazer musical.

    O presente texto apresenta, portanto, reflexes acerca da m-sica e suas relaes com o desenvolvimento do ser humano, obser-vando-se algumas condies bsicas, como sua dependncia como meio, seu inacabamento, a incerteza, as possibilidades de trans-formao, a autonomia e a tica. No mbito da Educao Musical,

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    foi colocada a ateno nas questes de ordem relacional, atitudinaise sociais dos alunos, com suporte nas situaes de jogos e de ativi-

    dades ldicas, geradas nas dinmicas.Tendo-se como referncia as palavras de Antonio Candido(1975), guiou-se pela convico de que os fatos se tornam pro-blemas conforme a perspectiva do pesquisador, reconhecendo aimplicao prtica das investigaes metodicamente conduzidas.Observaram-se, assim, as unidades mnimas de relao,1 aquelasem que se podiam examinar as crianas em diversas situaes es-

    pontneas ou direcionadas de jogos e brincadeiras, verificou-se deque maneira elas se relacionavam grupal e individualmente em cir-cunstncias sociomusicais sistmicas e complexas , e analisaram--se quais eram os reflexos dessas relaes, alm de se levantar quaiseram seus pontos de referncia para essas atividades.

    Situou-se o grupo observado na perspectiva das suas relaesenquanto sistemas no lineares e de complexidade tanto consigo

    mesmas, com seu cotidiano, com sua comunidade escolar, comseus familiares, quanto com seu interlocutor, elemento externocom quem interagiram durante o perodo que conviveram.

    Abordou-se o fenmeno apoiado por um pensar filosfico, quenorteia atitudes e escolhas, que se constitui a partir de valores, co-necta diversos elementos que compem o conjunto de pressu-postos a respeito da natureza e do valor de determinado campo deestudo (Fonterrada, 2008, p.11).

    No se elaborou nenhum estudo comparativo entre pedagogiasmusicais, ou suas avaliaes, com a finalidade de apresentar pro-posta didtica especfica, mtodo ou metodologia com exemplos deatividades ldicas, de jogos e brincadeiras musicais a serem apli-cadas em aulas. Entretanto, lanou-se mo da anlise de muitas daspedagogias em uso no presente para a organizao da linha centraldo pensamento aqui apresentado.

    1. Candido (1975) refere-se s unidades mnimas de vida econmica e social,em que as relaes encontram um primeiro ponto de referncia.

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    A escola est localizada na regio Oeste de So Paulo, no bairroda Lapa, e suas caractersticas e as da turma de alunos, suas especi-

    ficidades e os critrios de sua escolha para o trabalho investigativosero apresentadas no segundo captulo.

    No decorrer das atividades realizadas na escola surgiram no-vas condies para as interaes, que ressaltaram a necessidade deampliar as dimenses da experincia de ensino e de aprendizagem,diferentes de certas suposies iniciais do trabalho de campo. En-contraram-se situaes de desorganizao em sala de aula, de desin-

    teresse, de gosto pessoal por determinado repertrio e de diferentesnveis de habilidades musicais das crianas. Portanto, devido su-cesso de acontecimentos interativos, foi preciso reavaliar tais cir-cunstncias com variados critrios.

    Ressalta-se que o fato de essas crianas participarem de ma-neira espontnea, interativa, autntica nos seus modos de ser e dese expressar, foi, por si mesmo, fundamental para desmembrar o

    pensamento condutor do estudo, atuando de modo a quebrar a ri-gidez de uma lgica apenas linear, do tipo causa/efeito, que pu-desse vir a existir no incio do processo de observao, abrindo-opara novas organizaes.

    A reorganizao de estratgias de pesquisa e de programaode trabalho seguiram caminhos sugeridos pelo texto de Morin(2011a, p.90), ao avaliar que a noo de estratgia se ope de

    programa. [] a estratgia elabora um ou vrios cenrios. Desde oincio ela se prepara, se h o novo ou o inesperado, para integr-lo,para modificar ou enriquecer sua ao.

    Os diferentes fatos ocorridos nesse perodo apontaram para anecessidade de se ampliar a discusso do valor da msica que um consenso no meio musical para outra em mbito mais vastoque o espao da arte, pois as respostas das crianas ante as ativi-

    dades realizadas, geraram indcios de que em outros segmentossociais no se tem esse consenso de que o acesso ao fazer e fruir mu-sical vai alm das propostas da indstria do entretenimento ou dolazer, como constata Fonterrada (2008, p.11).

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    A definio da abordagem do objeto ganhou suas caracters-ticas e se delineou passo a passo, diante da prpria necessidade de

    aproximao entre observador e sujeito. O objeto de estudo, em si,foram as relaes humanas e sociais complexas e sistmicas sur-gidas da convivncia entre os alunos, com o pesquisador e a escolacomo um todo principalmente professores e coordenadores emsituaes musicais e ldicas realizadas por eles mais detalhada-mente os jogos e brincadeiras musicais , e as maneiras como ascrianas se expressavam criativamente por meio delas, desenvol-

    vendo questes de autorrespeito e respeito mtuo, consideradossuportes de transformao, autonomia e tica

    Foi necessrio entender melhor, a princpio, como se daria essarelao observador/sujeito, e quais ferramentas e mecanismos me-todolgicos seriam necessrios para que se realizasse estudo pro-fundo, que envolvia a complexidade2 de situaes com variveisflexveis e incertas, por vezes contraditrias, com informaes pro-

    venientes de um sistema aberto e que pudessem ser avaliados e va-lidados de uma base slida e confivel.

    Ficou evidente que o olhar crtico deveria se fixar no desenvol-vimento do prprio processo e no somente na anlise final deste.No decorrer do trabalho, essa opo demonstrou-se apropriada,dadas as transformaes que o processo foi sofrendo, devido a ml-tiplos fatores intervenientes, com consequncias diretas. Exigiram-

    -se novas anlises e mudanas adaptativas, pois as aes ocorriamno interior de relaes pessoais entre os elementos constituintes dobinmio pesquisador/crianas, de modo interativo.

    Nesse sentido, a proposta levou em conta que as relaes pes-soais e interativas eram pr-requisitos, assumindo-se que essas in-teraes poderiam trazer modificaes tanto no objeto quanto nosujeito, direcionando o processo a uma pesquisa compreendida

    como dilogo inteligente e crtico com a realidade e que o objeto sempre tambm um objeto-sujeito. A realidade tanto se mostra

    2. Conceito utilizado de acordo com o pensamento de Morin, 2011a.

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    quanto se esconde. Se a cincia soubesse exatamente o que a reali-dade, no seria necessria (Demo, 2001, p.10).

    Evidenciaram-se inmeros fatores homogneos e heterogneosque se inter-relacionam e que atuam, direta ou indiretamente, nocotidiano do grupo. Dirigiu-se o olhar para o fenmeno que se temno momento atual, com uma atitude de reflexo que gerou questio-namentos de ordem a respeito daquilo que se quer com a msica,a educao e o desenvolvimento do ser humano. Perguntou-se,dentro desse contexto: para que a educao musical?

    Diante desses contextos, resolveu-se organizar este livro emtrs captulos, com base na investigao terica da literatura espe-cializada na temtica dos jogos, na teoria da complexidade e nopensamento sistmico, em convergncia com o trabalho de campo.

    No primeiro captulo, com base bibliogrfica, definiu-se oconceito de linguagem musical adotado nesta obra, fundamentadono pensamento fenomenolgico, e verificou-se teoricamente o con-

    ceito de repertrio. Avaliou-se sua importncia e implicao naeducao musical, nas questes relativas ao ensino, aprendizageme ao fazer musical, tais como compor, tocar e fruir de modo criativo.Desenvolveu-se, de modo transversal, estudo sobre a reapropriaodos termosjogare amar, no mbito do ensino, com base nas com-preenses de Maturana & Verden-Zller (2004). Buscou-se co-nhecer tanto a funo quanto a atuao dos jogos e brincadeirasmusicais no comportamento ldico, na msica e em suas implica-es na educao.

    Com bases bibliogrficas revisaram-se as compreenses sobreo aprendizado da msica enquanto expresso, arte e linguagem ex-pressiva, e, no que se refere msica e educao musical, buscou--se embasamento no pensamento de Schafer (1991), quando estecoloca o fazer musical na proposta de criatividade.

    No segundo captulo, sob os vieses da Educao, da EducaoMusical e dos Estudos Sociais, descreveram-se as observaesregistradas no trabalho de campo e verificaram-se os questionriossociomusicais aplicados. Diante dos indcios surgidos, apresen-taram-se novas indagaes e proposies acerca dos diversos

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    fenmenos musicais e sociais, que no ocorreram inicialmente.Destacaram-se pontos que dizem respeito verificao da exis-

    tncia da msica, dos jogos e brincadeiras musicais da tradiona cultura da escola, presena de rede de conversaes, s ques-tes comportamentais/atitudinais dos alunos em situaes de ati-vidades ldicas e musicais.

    No terceiro captulo, foi tratado e analisado o escopo de informa-es que se conseguiu reunir no trabalho de campo as atividadessociais dos jogos e brincadeiras musicais. Isso se realizou com base na

    teoria da complexidade e suas implicaes para a Educao, e nopensamento sistmico. Verificaram-se critrios de ensino, aprendi-zagem e da experincia musical apoiando-se no pensamento de au-tores que sugerem uma educao embasada na preocupao peloautorrespeito e o respeito mtuo, o que constitui, por sua vez, umcaminho que se necessita trilhar auxiliado pela preocupao tica, talcomo proposto por Morin (2011a; 2011b), por Maturana (1998),

    Maturana & Varela (2001), Maturana & Verden-Zller (2004) ePaulo Freire (1996), entre outros.Este texto no aborda as situaes de risco, nem aquelas de vio-

    lncias familiares e sociais , atribuies especficas do psiclogo,do psicopedagogo e do cientista social; no aborda, tampouco, aquesto do local de moradia e os fenmenos de deslocamento/mi-graes urbanas, ainda que sejam temas recorrentes entre a popu-lao observada. Entende-se, contudo, com base nos pensamentosda complexidade e sistmico, e por coerncia a essas bases, queesses temas no podem ser decepados das observaes e das an-lises, participando de modo coadjuvante.

    Assim entendido, abordaram-se situaes e aes que se rela-cionassem com o objeto de estudo e suas implicaes com a Edu-cao Musical e a geral, o Estudo Social e o desenvolvimentohumano, o que inclui suas relaes com as problemticas de ensinoe de aprendizagem, e s observaes dos fenmenos musicais e l-dicos ocorridos no trabalho de campo.

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    1O ENTRELAAR DO HUMANOMSICA, JOGAR, AMAR

    Educao

    Na ltima dcada, pde-se apreciar o reflorescer do movi-

    mento em prol da Educao Musical no Brasil, aps um perodoque percorre os anos 1960 e 1970, nos quais ocorreram poucas re-flexes, discusses e trabalhos em mbito nacional, por motivospolticos, legais, socioeconmicos, entre outros.

    De acordo com Judith Akoschky (2003), esse movimento j seinicia muito antes: A partir dos anos 1960, [] [com] educadorescomo Paynter, na Inglaterra, Delalande, na Frana, M. Schafer, no

    Canad, e Koellreutter, no Brasil. No entanto, esclarece Fonter-rada (informao verbal), esse movimento era forte na Europa eArgentina. No Brasil no atingiu, naquele momento, as escolas,devido Lei no5.692/71, da Educao Artstica. [] esteve maisrelacionado com a formao do educador musical, [e] s influen-ciou indiretamente a Educao Musical.

    A mudana dessa situao no Brasil aconteceu na dcada de1990. De acordo com Fonterrada (2008, p.10), em 1996, aps umaausncia de cerca de trinta anos dos currculos escolares, a msicafoi contemplada pela Lei no9.394/96, com o reconhecimento deseu statuscomo disciplina, o que, ao menos em teoria, permite queretome seu lugar na escola, com o envolvimento cada vez maior

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    de educadores e instituies. A aprovao dessa lei colocou a m-sica como componente da disciplina Arte, posio recentemente

    favorecida pela Lei no

    11.769/2008 (Brasil, 2008), que torna a M-sica obrigatria, mas no componente exclusivo, nos currculos daeducao bsica, isto , da educao infantil ao ensino mdio.

    Essa renovao pode ser apontada com base nos crescentes n-meros de fruns, congressos, simpsios, semanas e encontros deestudos realizados por diferentes instituies, como AssociaoBrasileira de Educao Musical (Abem), Associao Nacional de

    Pesquisa e Ps-Graduao em Msica (Anppom), Simpsio Bra-sileiro de Ps-Graduandos em Msica (Simpom), universidadespblicas e privadas e agrupamentos de educadores musicais que,direta ou indiretamente, vm tratando dos inmeros assuntos per-tinentes rea; dilogos e discusses, que ainda no terminaram, e,provavelmente, sero necessrios outros mais, pelas disposies daLei Federal no11.769/08, em vigncia.

    Evidencia-se a participao cada vez maior de educadoresmusicais e autores, que se dispem a tomar parte no processo dedesenvolvimento dessa rea, do interior ou no de suas instituies,gerando um fenmeno marcante de construo de bases tericas eprticas desse conhecimento fundamental. Porm, no o caso dese elaborar, neste livro, outro documento sobre a histria da Edu-cao Musical no Brasil, trabalho j realizado com maestria por

    grandes educadores como Fonterrada, 2008; Penna et al., 2003;Brito, 2003; e Kater, 1997, para citar alguns autores, com reflexesque envolvem, ademais, temas educacionais, polticas pblicas, pe-dagogias, entre outros, relacionados msica.

    Destaca-se a importncia de se verificarem alguns pontos daeducao, mais precisamente, em recorte, os jogos e brincadeirasenquanto fenmeno musical, tomando-se como referncia a inte-rao com os alunos da escola observada. Prope-se colocar o olharem evidncias de inter-relaes complexas presentes no processo,opo que motivou o esforo emocional, intelectual e do espritotransformador que se exige para as aes que envolvem relaeshumanas e que, portanto, necessitam de bases como respeito

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    mtuo, flexibilidade, compreenso, tica, consolidados por umarelao de afetividade. Nesse sentido, encontram-se a propsito as

    palavras que Brito sustenta:

    [] um trabalho pedaggico-musical deve se realizar em con-

    textos educativos que entendam a msica como processo contnuo

    de construo, que envolve perceber, sentir, experimentar, imitar,

    criar e refletir [] [considerando] que esse processo se d na inte-

    rao com o meio, num ambiente de amor, afeto e respeito.

    Nesse sentido, importa, prioritariamente, a criana, o sujeitoda experincia, e no a msica, como muitas situaes de ensino

    musical insistem em considerar. A Educao Musical no deve

    visar formao de possveis msicos do amanh, mas sim for-

    mao integral das crianas de hoje. (Brito, 2003, p.46)

    Caso se esteja disposto a ter abertura para ver e aceitar as com-

    plexidades existentes na prpria dinmica que essa proposta de en-sino requer, pensa-se que as dificuldades inerentes ou surgidasdurante o processo de observao1dos alunos reforam, ou do in-dcios, da necessidade de se colocar o foco da Educao Musicalnos elementos que aprofundam as questes de criatividade, daconstituio do sujeito musical, da msica como linguagem, comoexpresso, aceitao do outro, aceitao mtua e compreenso,

    entre outros possveis aspectos.Nessa perspectiva, a Educao Musical em um ambiente per-meado por autorrespeito e respeito mtuo, conduzida pela ao dobrincar, contribui para o desenvolvimento integral do ser humano,sendo os jogos e o esprito criativo mediadores dos mais adequadospara promov-lo. Caso se aceite essa maneira de ver o processo deensino e aprendizagem, promove-se uma Educao Musical que,embasada nas emoes, entendidas como verbos, aes, nas pala-

    1. Dificuldades, estas, muitas e diversificadas, porm, fundamentais para o pr-prio repensar, tanto da experincia da pesquisa, como o da interao alunos/pesquisador enquanto relaes humanas.

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    vras de Maturana & Verden-Zller (2004), est orientada para aformao integral do ser.

    Na primeira seo deste captulo, verificaramm-se as possveisinterfaces existentes entre a educao e os jogos e brincadeiras mu-sicais, suas inter-relaes, e como podem interferir e criar situaespropcias formao dos indivduos, sociabilidade dos envolvidosna experincia, ao desenvolvimento humano em geral, e, em parti-cular, prpria educao musical, pelo brincar, pela criatividadedo aluno e pelo seu conhecimento de si.

    Aspectos da linguagem musical e a educao

    Ao se analisar textos de autores contemporneos relacionados Educao Musical, nota-se que uma das necessidades atuais ca-racterizar essa disciplina, ou rea do conhecimento, assim como

    identificar a natureza da msica como linguagem. Tem-se cons-cincia de que essa compreenso no unnime entre os educa-dores. Entretanto, para os propsitos do presente livro, a msica considerada linguagem expressiva, de fundo fenomenolgico.

    Para essa finalidade, tomar-se- como base o trabalho de Fon-terrada (1991, p.110-62), no qual faz um levantamento dos textosde diversos autores que consideram, ou no, a msica como lin-

    guagem. significativo nesse trabalho a compreenso daquilo quese entende por linguagem nas obras de Merleau-Ponty (1984) eHans George Gadamer (1977) e sua transposio para a msica.

    Fonterrada relata que, para Gadamer:

    a linguagem o meio em que o homem vive e do qual no pode se

    afastar [] no objeto da conscincia [] [e] no instrumento,

    como o signo ou a ferramenta [] tomados para determinados

    fins, e abandonados, quando no mais necessrios. Com a lin-

    guagem, isso no ocorre; impossvel prescindir-se dela, em

    algum momento. [] A linguagem [] permite a reteno de

    fatos passados, atravs da capacidade de reconhecimento das im-

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    presses cambiantes. essa capacidade que permitir a consti-

    tuio gradativa da experincia. (Fonterrada, 1991, p.137-8)

    Destaca, tambm, que as posies de Gadamer so seme-lhantes s de Merleau-Ponty, como se pode ver na afirmao:

    h dois modos de entender a linguagem: o cientfico [] e o feno-

    menolgico. Pelo primeiro, estuda-se a lngua como um fato cons-

    titudo e acabado, enquanto o segundo se ocupa do sujeito falante

    e de seu contato com a lngua que fala, a partir do ponto de vista dequem a usa, como meio de comunicao entre o sujeito e uma

    comunidade viva, que compartilha da mesma experincia lingus-

    tica. (Merleau-Ponty, 1984, p.129-40 apud Fonterrada, 1991,

    p.138-9)

    A autora sustenta que [ possvel] fazer uma aproximao

    entre as caractersticas da linguagem explicitadas por esses autorese as caractersticas do fenmeno musical, sendo possvel, por-tanto, compreender a msica dentro da mesma viso de lin-guagem, o que permite constatar a existncia de uma identidadeentre msica e linguagem (Fonterrada, 1991, p.150-60).

    Apresenta alguns pontos que corroboram esses pensamentos,como:

    a msica um processo de comunicao tipicamente humano []

    uma arte temporal, [pois] desenrola-se no tempo, unindo pas-

    sado, presente e futuro [] [sendo que] a msica vista como sis-

    tema que favorece a expresso, [] capaz de abrigar acasos,

    experincias no previstas, que iro ser fatores de modificao do

    fenmeno musical e do prprio sistema, caracterizando-os como

    equilbrio em movimento [] em permanente transformao.[] Do mesmo modo como ocorre em relao linguagem, a

    prtica musical se constitui atravs de atitudes definidas mais por

    seu uso, que por regras preestabelecidas. Portanto, a experincia

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    musical fruto da prtica, exercida por uma comunidade musical.

    (Ibidem, p.150-2)

    Em continuidade, afirma:

    a musicalidade desenvolvida e a universalidade [] atingida a

    partir da prtica, pelo uso da linguagem musical e pela comuni-

    cao entre os sujeitos pertencentes mesma tradio musical.

    [] O conhecimento musical a capacidade de atuar musical-

    mente [] [e sua] experincia sempre ocorre tendo em vista al-gum e que, necessariamente, no ato musical, um dilogo se

    instala. Esse dilogo semelhante ao jogo, que se caracteriza por

    ser uma ao pr-reflexiva e dinmica. (Ibidem, p.152-3)

    Na tarefa de associar linguagem verbal e linguagem musical,mostra:

    A msica um ato expressivo [] [e sua] expresso permitir o

    conhecimento da intencionalidade do sujeito musical, [] que

    est inserido no domnio da linguagem musical, [] [e necessita

    ter] a familiaridade com o material sonoro e suas formas de orga-

    nizao [] [de modo a que possa apreend-lo e incorpor-lo]

    sua prpria experincia. (Ibidem, p.153-4)

    E conclui:

    a experincia musical ser a presena de todos os presentes na vida

    e nos atos musicais do sujeito, e [] essa prtica da msica loca-

    liza e d temporalidade ao sentido ideal, no como objeto e nem

    pelas convenes musicais, mas atravs da experincia musical

    que permite a convergncia e a compreenso de todos os sujeitos

    musicais. (Ibidem, p.154-5)

    Entende-se que, para aqueles pensadores relacionados com aspropostas de educao musical embasadas na criatividade, in-

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    tuio, no linearidade, na comunicao, na tomada de conheci-mento do novo, como Koellreutter (1997) e Brito (2001; 2003),

    entre outros, a msica ganha significado quando associada ao indi-vduo em formao e elaborao do aprendizado da msica.Como afirma Fonterrada:

    o aprendizado da msica envolve a constituio do sujeito mu-

    sical, a partir da constituio da linguagem musical. O uso dessa

    linguagem ir transformar esse sujeito, tanto no que se refere a

    seus modos de perceber, suas formas de ao e pensamento,quanto em seus aspectos subjetivos. (Fonterrada, 1994, p.41)

    De modo anlogo, Koellreutter (1997, p.72) expe que a m-sica um meio de comunicao, que se serve de uma linguagem,pode-se concluir que uma contribuio para a tomada de cons-cincia do novo, ou do desconhecido, seja uma das mais impor-

    tantes, se no sua mais importante funo. Em outro momento, oautor aponta que a mais importante implicao da Educao Mu-sical despertar na mente dos jovens a conscincia do sentimento eracionalidade, da tecnologia e esttica, o que representa desen-volver a capacidade para um raciocnio globalizante e integrador(Ibidem, p.38).

    Alinhado a esses autores, compreende-se, neste livro, que amsica uma linguagem, mas envolve, por sua natureza, elementoscomo movimento, palavra, drama, expresso, conscincia, acei-tao do outro e mtua, entre outros, concepo esta que traz con-sigo, tambm, a preocupao com a criana, o jovem e o adulto eseu desenvolvimento.

    Para reforar essa proposio, recorre-se ao pensamento deMaturana (1998, p.18-9), para quem a linguagem fundante dacondio humana. Ele prope, ainda, que o peculiar do humano[] [est] na linguagem e no seu entrelaamento com o emo-cionar. Como se observou, anteriormente, de acordo com essaviso, Fonterrada (1991, p.150-60) constata a existncia de umaidentidade entre msica e linguagem [] [e que] a msica um

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    processo de comunicao tipicamente humano. Caso se aceitemessas afirmaes, encontrar-se-o vnculos, por aproximao, entre

    os dois fenmenos, com base em que tanto a linguagem verbalcomo a linguagem musical fazem parte dessa natureza humana,constituindo o meio no qual o ser humano vive, ou seja, sua rede deconversaes.

    H indcios, na bibliografia consultada, de que tais asseve-raes tendem a se motivar e ganhar fora na educao, ao se com-preender a msica em seus diferentes aspectos, ou seja, como co-

    nhecimento constitudo, como ferramenta de ao e, ainda, comocultura, expresso e criatividade.Ao se trazer, porm, essas concepes para o mbito do ensino

    fundamental e compar-las s prticas musicais que continuam a seconsolidar em muitas escolas pblicas e privadas, apreende-se umarealidade diferente. Nesse sentido, Brito (2003, p.51) afirma queexistem resqucios de uma concepo de ensino que usou a cano

    como suporte para a aquisio de conhecimentos gerais, disciplinase comemoraes de datas diversas. Por sua vez, Loureiro (2003,p.24) argumenta que, na realidade brasileira, a Educao Musicalno apresenta caractersticas prprias, com identidade de saber es-colar, em que se articulam experincias adquiridas.

    Apesar da anlise dessas situaes, pelas quais passa a Educao

    Musical atual, educadores musicais, como Fonterrada, apontam

    que, mesmo com evidncias de enrijecimento no pensamento doensino da msica nesse momento, possvel perceber que:

    Desde h algum tempo, a princpio de forma difusa e depois mais

    enfaticamente, profundas mudanas vm se impondo, e obrigam

    a buscar outras matrizes de pensamento, capazes de dar conta

    dessas alteraes. Esse conjunto de mudanas rpidas alcana o

    homem, a sociedade, e afeta as aes e o prprio modo de ser de

    cada um, pedindo por reajustes e solues. A rapidez com que as

    coisas sucedem na poca atual, a modificao de conceitos cls-

    sicos [] limitam o espao da linearidade, embora se relute em

    admitir sobretudo esse ltimo fato, porque abandonar procedi-

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    mentos sequenciais como perder o cho em que se pisa. Vive-se

    um momento de ruptura, em que conceitos, valores e crenas, at

    h pouco considerados inquestionveis, encontram dificuldadeem se manter, sendo rapidamente substitudos ou alterados.

    Os campos da Msica e da Educao Musical so, tambm,

    afetados por esse estado de coisas, e as alteraes que se apre-

    sentam cada dia tornam difcil encontrar caminhos estveis e

    adequados. [] Diante das novas condies, condutas costumei-

    ramente adotadas para responder a determinadas questes j no

    conseguem dar conta delas. So as prprias situaes e circunstn-cias que se alteram, num pipocar de aes e reaes, no meio das

    quais instituies e educadores perplexos tentam atuar. (Fonter-

    rada, 2008, p.280)

    Como exemplo de tais aes, pode-se citar a discusso emtorno da regulamentao e aplicao da Lei no11.769/2008 (Brasil,

    2008), que tem gerado tantos encontros e desencontros, no sentre msicos e educadores, mas, tambm, no meio de pedagogos,polticos e profissionais afins com a problemtica.

    Nesse contexto, torna-se evidente a fala de Fonterrada (2008,p.280) quando apresenta a necessidade de pedagogias alternativas,que respondam aos indcios das condies especiais em que vi-vemos hoje, que se impem como realidade maior e pedem solu-

    es especficas.Neste ponto, portanto, caberiam questionamentos que, emrazo da natureza desta obra, no ser possvel responder; porm,devido a seu teor, julga-se oportuno apont-los, a fim de que sepossa ter conscincia deles e de sua importncia. So eles: quais soas implicaes do aprendizado da msica na formao e na elabo-rao da constituio do sujeito musical? Que tipo de marca podeimprimir no sujeito em formao a ao das atividades dirigidasrelacionadas aos jogos e brinquedos musicais, s canes tradicio-nais ou de roda?

    No presente texto, porm, trata-se to somente de manter umdilogo entre o jogo/brincadeira, as propostas musicais e os di-

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    versos elementos que o integram, bem como seus consequentes en-volvimentos e suas implicaes para a educao. Nesse sentido se

    prope, nas prximas subsees, analisar alguns aspectos dessedilogo.

    Repertrio musical: algumas consideraes

    Um desses aspectos, que se considera relevante, diz respeito aorepertrio musical e suas analogias com a educao, dada a impor-

    tncia que se acredita ter esse aspecto, por entend-lo como umadas colunas que sustentam as propostas educacionais.Em razo das vrias linhas de trabalhos, mtodos, metodo-

    logias e conceitos existentes, prope-se realizar algumas reflexescom base nos paradigmas pelos quais transitam os pensamentosgeradores das aes de ensino e aprendizagem da msica, naatualidade.

    Diante do exposto, verificam-se algumas abordagens e pers-pectivas tericas envolvidas na produo do repertrio. Para tanto,analisam-se questes relativas ao fazer musical, como compor,tocar e fruir, que sugerem perguntas como: existe um repertriomais adequado Educao Musical entre o tradicional, tonal, ou oscontemporneos, no tonais? possvel o dilogo entre os reper-trios consagrados, tonais, com os contemporneos, no tonais?

    Ou ainda com os de tradio popular, folclricos e orais?Pretende-se, ainda, verificar o dilogo possvel entre as pro-postas de composio da msica contempornea como propulsorasde situaes criativas de ensino e aprendizagem, embasados em au-tores como Paynter (1972; 1992) e Schafer (1991; 2001), entre ou-tros, e aquelas oferecidas pela msica da tradio oral popular ealgumas de suas expresses, como os jogos e brincadeiras musicais.

    Parte-se da compreenso de que produzir um escopo de reper-trio traz consigo discusses fundamentais a respeito de sua utili-zao, por diferentes linhas de trabalho pedaggico, pois envolve osujeito, sua formao, seu gosto, seu meio, as atividades que rea-liza, sua relao com a mdia de massa, entre outros fatores, dado

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    que se compreende aqui que esse sujeito um ser complexo, imersoem uma realidade complexa.

    Refere-se, neste ponto, no escolha de um ou outro materiala ser utilizado para atividades de ensino e aprendizagem, mas elaborao e ao desenvolvimento do pensamento didtico-peda-ggico a ser utilizado no ensino, na sensibilizao, na musicali-zao, enfim, na formao do sujeito musical, como o entendeFonterrada (1994, p.41), a partir da organizao de um repertrio.

    Por repertrio se entende, aqui, o fenmeno relacionado aos

    conceitos de composio e criatividade com base nas propostas deSchafer (1991; 2001), assim como busca de revitalizao de ele-mentos j compostos, tais como pardias, adaptaes e arranjosde msicas da tradio oral, ou, ainda, ao processo de interpretaoenquanto performance, fruio e recomposio da obra.

    Nesse contexto, seria possvel pensar que a elaborao do re-pertrio e sua proposta didtico-pedaggica estariam caminhando

    juntas, interferindo-se mtua e deliberadamente? Seria possvelgerir novas propostas educacionais buscando sistemas de compo-sio que partam de situaes ldicas, que proporcionem experin-cias e vivncias intelectuais como tambm fsicas, corpreas, comalto grau de complexidade, ainda que em diferentes nveis?

    Relao repertrio/ensino e aprendizagem

    A fim de equacionar as necessidades de ensino e de aprendi-zagem, compartilha-se o pensamento expressado por Schafer(1991, p.282) a respeito da importncia do esprito com que co-municado e recebido aquilo que ensinado. Assim, tambm, demodo coerente ao que se vem propondo, e de acordo com o obser-vado no trabalho de campo, aceita-se que tanto sujeito como objeto

    sofrem modificaes no processo de observao. Desse modo, en-contra-se reverberao nas palavras do autor: medida em queavano, minha filosofia de Educao Musical muda [] (ibidem,p.282).

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    Encontra-se, pois, de modo implcito, que o ensino da msicaapontado por ele ocorre fundamentado na motivao, expressa

    aqui pela palavra esprito,2

    que, entre muitos sentidos, pode sercompreendida como alento, sopro, aportando indcios de que aao motivada de ensinar, musicalmente, possa vir a colocar re-ceptor e comunicador no mesmo nvel de comunicao, desestrutu-rando situaes hierrquicas ocorrentes na educao tradicional.

    Nesse sentido, Schafer (1991, p.277) aponta: [na] propostaantiga: o professor tem a informao; o aluno tem a cabea vazia. O

    objetivo do professor: empurrar a informao para dento da cabeavazia do aluno. Ao comentar o trabalho de educadores musicaiscontemporneos, como Peter Maxwel Davies, John Paynter,George Self e o Projeto Manhattanvile, o autor afirma: [todos][] possuem algo em comum: experimentaram colocar o fazermusical criativo no centro dos currculos (ibidem, p.278).

    Com essas afirmaes, entende-se que a preocupao de Schafer

    est posta em defender a educao criativa, relacionada ao espritomotivador necessrio ao binmio ensino e aprendizagem. Por outrolado, conectado s propostas do autor, necessrio entender queest implcito, tambm, que, ao se ensinar msica, tem de se lanarmo de tcnicas, de prticas, tem de se submeter a certas rotinas,caso contrrio, no se estabelecem as competncias necessriaspara tocar, cantar, pensar, compreender msica.

    Assim entendido, passa-se a questionar a respeito de ser pos-svel, ou no, a organizao de situaes de ensino e aprendizagemembasadas em critrios de criatividade. Para investigar essas in-quietaes e realizar um recorte importante, pensou-se em trspontos relacionados ao repertrio, que se interligam e realizam

    2. Dicionrio Michaelis (2012, on-line): 1. Princpio animador ou vital que dvida aos organismos fsicos; sopro vital, alma. 9. nimo. Diccionario de LaReal Academia Espaola(2012, on-line): espritu. 4. m. Principio generador,carcter ntimo, esencia o sustancia de algo. 5. m. Vigor natural y virtud quealienta y fortifica el cuerpo para obrar. 6. m. nimo, valor, aliento, bro, es-fuerzo. 7. m. Vivacidad, ingenio.

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    uma interface com a Educao Musical, a saber: a criao/compo-sio, a anlise e a interpretao/fruio.

    De incio, importante situar-se em relao a alguns tpicosmusicais que so fundamentais para a compreenso dos pontos devista apresentados neste estudo e que serviram de base para o di-logo sugerido entre as diferentes propostas de composio e deEducao Musical. Para Casnk (s. d., p.1), o pensamento quecontinua alinhando, na atualidade, os trs pontos da produo mu-sical, [adotado e incrementado] pelo senso comum o que vem do

    sculo XIX, do movimento romntico.3

    De acordo com a autora, a vivncia romntica da msica estembasada na formao do indivduo, na relao Sujeito/Objeto, eaponta para uma experincia fechada nos sentimentos e emoessubjetivas, em que a obra de arte estaria a servio dessa individua-lidade. A escuta desse ouvinte estaria direcionada a reviver e res-gatar os sentimentos e intenes que o compositor experimentou

    no momento da criao, ou, ento, a compreender os objetos in-tencionais produzidos por ele. Para Pareyson (1997, p.18),4essesobjetos intencionais esto relacionados ao fato de que ativi-dade artstica indispensvel uma potica, explcita ou implcita, jque o artista pode passar sem um conceito de arte mas no sem umideal, expresso ou no expresso, de arte.

    Essa audio est dirigida para a melodia, que, no interior da

    relao musical, a que se destaca, por constituir-se no eixo da es-trutura composicional, ganhando, assim, relevo sobre as outraspartes da composio. Ao ganhar papel de destaque e por sua indi-viduao, a melodia se torna o ponto de referncia da percepo(Casnk, s. d., p.1-2).

    No entender da autora, essa forma de escuta proposta pela to-nalidade e ligada ao romantismo, parece esconder o mundo so-

    3. Para aprofundar esse tema, ver Figueiredo (1994), captulo A arte dentro efora do horizonte da esttica.

    4. Sobre objetos intencionais, ver Pareyson (1997), captulo 1, ponto 6: Est-tica e potica.

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    noro, dando importncia exclusiva obra fechada e aos aspectossubjetivos, e, finalmente, ns nos impomos obra e a audio se

    resume aos aspectos que ns determinamos (ibidem, p.3).Aceitando-se o anterior, dever-se-ia questionar, nesse mo-

    mento, quais aspectos musicais poderiam ser apreendidos pela edu-cao para desenvolver trabalhos com a criatividade, que fossemalm dessa forma de audio e que pudessem gerar novos critriosde escuta, tomando-se em conta outro fator, que vem da possibi-lidade de a criana ter poucas referncias, ou nenhuma, nem pre-

    conceitos relacionados melodia e aos sons.Para comear a explorar tais questionamentos importante es-

    clarecer que o fato de se estudar separadamente os termos criao/composio, anlise e interpretao/fruio, d-se por necessidadedidtico-expositiva, porm, a base deste estudo assenta-se na com-preenso de que o todo musical inseparvel. Segundo Pareyson(1997, p.25-6): A arte [] um tal fazer que, enquanto faz, in-

    venta o por fazer e o modo de fazer.A arte uma atividade na qualexecuo e inveno procedem [] simultneas e inseparveis, naqual o incremento de realidade constituio de um valor original.

    Indaga-se, aqui, se a ao de compor no traz em si a necessi-dade de compreenso analtica da obra, ainda que intuitiva ou pr--reflexiva, como em muitos casos da msica popular ou tradicionalbrasileiras, e tambm a de uma proposta de sua interpretao/

    fruio, ainda que no necessariamente rgida ou inflexvel. No sepoderia, assim, ter-se elucidada a proposio o incremento de rea-lidade constituio de um valor original, dado que o valor ori-ginal se apresentaria a partir da quebra de regras estabelecidas,incrementando algo que est supostamente fechado e terminado?

    Portanto, verifica-se cada um dos termos, comeando pela in-terpretao/fruio, pois, a partir da obra completa se investiga, de

    modo retroativo, o processo que gerou sua organizao.Segundo a compreenso de Pareyson (1997), a arte expres-

    siva enquanto forma. [] A forma expressiva enquanto o seu ser um dizer, e ela no tanto tem, quanto, antes, um significado.

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    Portanto, conclui o autor: o conceito de expresso deriva o seu es-pecial significado daquele de forma.

    Assim proposto, retomando-se que a produo de repertrio o fio que alinhava esses pensamentos, pergunta-se por quais cami-nhos e por quais fenmenos pode-se vivenciar a forma da obramusical? Guiando-se pelas palavras de Pareyson (1997), surge in-dicativo de que o expressivo da forma encontra-se no seu ser,que aquele que pode dizer algo e que , em si, um signifi-cado. Portanto, no seria possvel se pensar que, ao fruir/inter-

    pretar, penetra-se na forma pela recriao e, assim, no se estariaaproximando deste ser que veicularia o expressivo?Considerando-se, tambm, que a vivncia musical da forma

    passa pela esttica e que esta a reflexo sobre a experincia, se-gundo a viso do autor, no seria significativo pensar que a expe-rincia musical passa pela interpretao da obra enquanto suarecriao, por via de mo dupla, interpreta-se enquanto se reflete

    sobre a experincia da forma e gera-se experincia enquanto se in-terpreta e se recria a forma, pelo fato de que a esttica constituda[de] dplice recmbio?.

    Nesse sentido, afirma que no esttica aquela reflexo que,no alimentada pela experincia da arte e do belo, cai na abstraoestril, nem aquela experincia da arte ou de beleza que, [] per-manece simples descrio (Pareyson, 1997, p.8).

    Nas escolas de Msica e nos modelos de ensino, ainda na atua-lidade, comum encontrar uma maneira fragmentada de ensinar,herdada do pensamento do sculo XIX, reducionista/racionalista,romntica, que divide a msica em partes harmonia, solfejo,ritmo e outras. Dessa maneira, existe o risco de que os alunosaprendam e transportem esse modo de aprendizado ao estudo deseus respectivos repertrios e instrumentos, e isso pode ocorrertanto com os bacharis quanto com os educadores.

    Em referncia a esse assunto, importante esclarecer que seaceita que aprender questes de harmonia, contraponto ou rtmica,por exemplo, exige que essas sejam trabalhadas em separado. En-tende-se, tambm, a necessidade de destacar alguma parte, para

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    que a compreenso e o fazer musical avancem para, depois, compora obra. O que se questiona no o problema de separar, e, sim, o de

    se manter separado, pois compreende-se que, em ltima instncia, necessrio que se volte arte nesse caso, experincia musicalpela qual o aluno passa.

    Tomando-se emprestado da Psicologia da Forma o termoGestalt que Koellreutter (2010) esclarece ser uma palavra detraduo sem sentido exato para o portugus, mas que, por aproxi-mao, pode ser entendida como configurao, signos que tendem

    a ser percebidos de imediato como um todo , possivelmente pode--se associ-la maneira pela qual se trata aqui a interpretao/fruio. A questo centra-se na seguinte pergunta: entendendo-se aobra musical, ou artstica, como um todo inseparvel, esta nodeveria ser interpretada ou fruda tambm como um todo?

    Observou-se anteriormente que a proposta romntica colo-cava, e coloca ainda, na melodia um maior valor hierrquico do que

    em outros elementos da msica, gerando, pois, uma reduo desuas partes, reificando as demais, de modo a torn-las coadjuvantesno conjunto completo, levando, assim, a uma escuta fragmentada edirecionada.

    Existem indcios de que se poderiam encontrar opes de ca-minho para o pensamento que organiza as propostas de interpre-tao/fruio nas palavras de Casnk (s. d., p.3), que afirma: apartir do momento em que no existem mais [] identificaes eprojees [referncias e preconceitos romnticos] pois, no h maissujeito/melodia, somos obrigados a prestar ateno em outrascoisas e a nos relacionarmos com a obra de outra maneira.

    Concordando-se com essa afirmao, aceita-se que, em umaproposta que parte da viso da Gestalt, a obra ser compreendidacomo um todo, em que estaro presentes todas as qualidades musi-cais, como: som, ritmo, harmonia, melodia, mas tambm o movi-mento, que envolve a dana, as habilidades sinestsicas e cognitivas,a dramaturgia, caso exista a palavra e, como diz Hortlio em entre-vista para Rosa (2003), estar presente o outro, pois a obra sercomposta e compreendida nos parmetros de uma complexidade

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    de relaes, o que sugere que s dentro dessa complexidade podeser interpretada/fruda.

    Essa prerrogativa encaminha, por sua vez, verificao do se-gundo ponto tratado neste estudo: a anlise musical. Portanto, to-mando-se, por um lado, o vis que envolve a ideia do todo, e, poroutro, a ideia da complexidade na qual este todo est inserido, soutilizados esses dois critrios para se observar como a anlise daobra musical tende a ser realizada nesse contexto.

    Segundo Koellreutter (2010, p.1), a anlise musical tem como

    objetivos principais aprofundar-se na tcnica de composio doautor [] deduzir da anlise os princpios de interpretao e a apli-cao de recursos interpretativos [] visando [] a inteligibili-dade do texto musical. A [] tarefa do intrprete a de facilitar otrabalho do ouvinte!.

    Assim, surgem indcios de que anlise e interpretao/fruioesto, de alguma maneira, interligadas. Pode-se perguntar, por-

    tanto, se essa maneira, ou essa ligao, no se daria ao se apreendero todo e os detalhes da obra por meio da anlise, tornando-a maisinteligvel ao executante e, em consequncia, quele que a frui.

    Seguindo-se esse pensamento, a anlise da obra no deve serterica, mas deve partir da interpretao que leve o sujeito a vi-venciar as ideias musicais e de conscientiz-las [], conforme ograu de sensibilidade de quem a analisa. Tendo-se em conta que a

    composio musical est entendida como uma elaborao criativa,uma experincia esttica, a anlise, percorrendo esse caminho parapenetrar no contedo da obra no deveria transformar o anali-sador, que passaria de observador e se tornaria participante,ou seja, coautor da partitura (Koellreutter, 2010)?

    Retomando-se o pensamento de Pareyson (1997), apreende--se que a vivncia musical criativa passa pela esttica e de sua re-

    flexo decorre o fazer musical, a experincia. Tal reflexo, por seulado, somente se torna mais profunda a partir da experincia. Deacordo com o autor, pode-se chegar esttica a partir [] daprpria arte, quando de um exerccio concreto de arte [] emerge

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    uma conscincia reflexa e sistematicamente orientada pela prpriaatividade.

    Nesse contexto, dentro dessa viso que dialoga com a propo-sio de Koellreutter, a anlise musical, quando sensibilizada pelaobra, no estaria amalgamada ao sentido da esttica e da expe-rincia? Ela no teria a funo de recriar a obra, originando, assim,aproximaes de valor com a interpretao/fruio? Criar umaobra musical, portanto, no seria em si uma antecipao de sua in-terpretao e de sua anlise?

    A partir do que foi exposto, retomando-se a questo do reper-trio, da proposta de sua elaborao por meio da experincia est-tica, da vivncia da criao, surgem indcios de que o criar, analisar,interpretar/fruir no so processos independentes, mas organi-zados como um todo. Em se confirmando essa hiptese, no se po-deria entender que esses elementos estariam diretamente ligados aoprocesso de formao de um repertrio?

    Finalmente, de acordo com o pensamento de Koellreutter(2010), pode-se verificar que a composio, a anlise e a fruio seencontram no fazer msica, no tocar, no cantar, e se relacionamcom a disposio de esprito do ouvinte ou apreciador, para queesta obra seja criada. Assim, como que fechando um ciclo, en-contra-se novamente a interveno do esprito motivador, queaproxima os pensamentos de Koellreutter (2010) e de Schafer(1991).

    Verificam-se, assim, alguns tipos de abordagens que incen-tivam a produo de repertrios para o ensino da msica, sejam elestonais, tradicionais, no tonais, ou da oralidade, folclricos. Essaelaborao passaria pelos processos da experincia esttica e da vi-vncia criativa, realizadas por meio do criar, analisar e interpretar/fruir uma obra musical entendida como um todo, amalgamado peloesprito ldico, dando indcios da possibilidade de que possam coe-xistir vrios tipos de repertrio adequados educao.

    Surgem indicativos de que as decorrentes anlises e discussessobre o objeto de estudo em questo o repertrio no deveriamestar dirigidas para o quese utiliza nas atividades e aes de ensino

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    e de aprendizagem, mas para o como se elaboram os processos e,principalmente, com base em paradigmas mais atuais como a teoria

    da complexidade (Morin, 2011a) e o pensamento sistmico (Ma-turana, 1998), estabelecer-se o para que se est elaborando talrepertrio.

    Essas perspectivas geram situaes no estveis, hbridas, fle-xveis, que possibilitam processos nos quais o erro um fator im-portante, que favorecem as mudanas do pensamento musical,em que importa mais o esprito com que se comunica e se recebe

    do que propriamente aquilo que se comunica.Nesse contexto, encontraram-se indicativos da viabilidade dedilogo que acontece por meio do criar, analisar e interpretar/fruir entre as propostas de composio da msica contemporneaenquanto propulsoras de situaes criativas de ensino e aprendi-zagem, com aquelas oferecidas pela msica da tradio oral po-pular, e tambm com os repertrios consagrados, tonais.

    Assim, compreendidos esses vrios elementos do repertrio esuas relaes com a Educao Musical, prope-se que se revejam asrelaes para o ensino e a aprendizagem que as aes de jogar eamar podem organizar.

    Jogar e amar: relaes para o ensino e a aprendizagem

    Neste tpico, foram revisados ou reapropriados os termosjogare amar, enquanto vivncia humana, no mbito do ensino. Comosustentam Maturana & Verden-Zller (2004), amar e brincar soemoes e aes necessrias para a condio de seres humanos homens e mulheres , mas so consideradas pelos autores como osfundamentos esquecidos da condio humana, constatao apre-sentada no subttulo de seu livroAmor y juego:fundamentos olvi-dados de lo humano desde el patriarcado a la democracia.5

    5. Na publicao em portugus o ttulo traduzido Amar e brincar: fundamentosesquecidos do humano do patriarcado democracia..

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    Observa-se que, para os autores, o brincar fundamental paraa constituio da relao de humanidade, no estando separado do

    amar. Por conseguinte, acreditam que a cultura, entendida comouma rede fechada de conversaes [] que surgem, sustentam-se ese mantm mediante alteraes no emocionar dos membros da co-munidade, a qual tambm se modifica, estabelece-se na vivnciada criana na intimidade e em contato corporal com sua me []enquanto espao relacional, [] [com base em uma] relao ma-terno-infantil [que] tem de ser vivida no brincar (Maturana &

    Verden-Zller, 2004).Entendem, tambm, que essa relao me-filho necessita de

    condies especficas para que o vnculo afetivo, humanizador,venha a acontecer. A vivncia do brincar tem que se dar em umcontexto de aes que constituem o outro como legtimo outro, naconvivncia ou seja, no amor , e esta deve ser levada a cabo nomomento presente da relao. Essas aes so as condies cultu-

    rais em que se fundam os aspectos de seres humanos, o que im-plica tornar-se um ser humano socialmente integrado como umfenmeno biolgico num viver social que a cultura (idem, 2004).Seguem afirmando que, contudo, devido

    [] instrumentalizao de suas relaes por meio da submisso

    diante da atitude produtiva exigida por nossa cultura , as mes

    modernas com frequncia no tm conscincia de sua corporei-dade. Portanto, no tm plena conscincia social e no se do

    conta de que instrumentalizam suas relaes com seus filhos.

    Quando uma me que faz algo com seus filhos est atenta aos

    resultados do que est sendo feito, ela na verdade no os v, no

    est com eles no presente da intimidade corporal de seu fazer

    comum [pois vive ou no passado ou no futuro]. [] quando essa

    situao persiste no cotidiano de suas relaes com seus filhos,estes se tornam sistematicamente invisveis para ela. (Maturana &

    Verden-Zller, 2004, p.131, 137)

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    Essa constatao da falta de intimidade corporal e da situaode no ver seus filhos, que tem reiteradamente ocorrido de gerao

    em gerao, mudou as condies estruturais do conversar, gerandomodificaes nas redes de conversao a cultura , fato que, se-gundo pensam os autores, tem levado a humanidade a esqueceresses fundamentos do ser humano, pois existe uma opo para ou-tras emoes relacionadas com a instrumentalizao de nossas re-laes interpessoais, na orientao para a produo e a apropriao [ou seja] vivemos uma vida que desvaloriza a aceitao mtua

    (idem, p.129).Dentro desse contexto, entretanto, os autores apresentam ten-tativas atuais de reapropriao de tais fundamentos, por exemplo,realizaes de atividades entre mes e filhos que tm como basejogos de integrao, em que o brincar o propsito fundamental.6Reforando-se a importncia do jogo para Maturana, este, em res-posta pergunta Qual a importncia do jogo para o desenvolvi-

    mento humano?, realizada durante uma entrevista para a revistaHumanitates, em 2004, afirma que:

    O jogo uma atividade que se realiza no prazer de ser feito, com a

    ateno posta no prazer de fazer a coisa, pelo fazer mesmo, no na

    consequncia. A importncia disso que o jogo permite a colabo-

    rao. Permite a seriedade do fazer pelo prprio fazer, pelo res-

    peito quilo que se est fazendo, pelo prazer de faz-lo e no pelas

    consequncias que poder ter. A criana, ao jogar, aprende um

    modo de viver cuja ateno no est nas consequncias, mas est

    na responsabilidade do que faz. Claro que vo ter consequncias,

    mas o central no so as consequncias, mas aquilo que a criana

    est fazendo ao jogar. Se algum aprende isso pode colaborar,

    pode estudar, pode fazer qualquer coisa com satisfao e com

    prazer. Porque o central no ser o resultado, uma nota, no o

    que vai ganhar com aquilo, mas o processo mesmo de fazer. Isso

    6. Para maiores detalhes desses jogos, sugere-se consultar o captulo O brincarna relao materno-infantil, em Maturana & Verden-Zller (2004).

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    d liberdade de ao. No quero dizer que algum no pode fazer

    nada pelo resultado, sim, pode fazer, mas vai fazer com a serie-

    dade de respeitar o processo, no vai fixar-se nos resultados. (Ma-turana, 2004)

    Em relao a essas constataes, verifica-se em algumas pe-dagogias musicais as consonncias que possam vir a ter com asbuscas pela reapropriao desses fenmenos, ainda que essasbuscas no sejam, necessariamente, realizadas de modo consciente,

    dentro do processo especfico aportado por Maturana & Verden--Zller (2004).Nesse sentido, observa-se que Brito se aproxima dessas aes,

    ao propor, coerente com o processo musical, que:

    Os bebs e as crianas interagem permanentemente com o am-

    biente sonoro que os envolve e logo com a msica, j que ouvir,

    cantar e danar so atividades presentes na vida de quase todos osseres humanos, ainda que em diferentes maneiras. [] Nesse sen-

    tido, as cantigas de ninar, as canes de roda, as parlendas e todo

    tipo de jogo musical tm grande importncia, pois por meio das

    interaes que se estabelecem que os bebs desenvolvem um re-

    pertrio que lhes permitir comunicar-se pelos sons; os momentos

    de troca e comunicao sonoro-musicais favorecem o desenvolvi-

    mento afetivo e cognitivo, bem como a criao de vnculos fortes

    tanto com os adultos quanto com a msica. (Brito, 2003, p.35)

    Chama a ateno para a utilizao dos acalantos, que somadoss canes de ninar conformam, em geral, as primeiras experinciasmusicais da criana, gerando-se possivelmente, as primeiras vivn-cias relacionais entre me e filho, mesmo antes do nascimento deste(idem, 2003).

    Ilari (2002) tangencia os fenmenos ao examinar a percepo ea cognio musical em bebs. A autora sugere que as canes deninar e as canes de brincar so os estilos mais utilizados na re-lao materno-infantil. Observa, assim, que:

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    O canto destinado aos bebs tambm tem caractersticas particu-

    lares e especiais, como o uso de um registro vocal mais agudo, an-

    damentos mais lentos e uma expressividade mais acentuada [][influenciadas] pelos estilos das canes, [] os contextos nas

    quais as canes esto sendo utilizadas [] o sexo do beb [] e o

    papel social do responsvel. [] Mes e pais [] [demonstram]

    expressividade acentuada e semelhante quando cantando direta-

    mente para seus bebs. A simples presena do beb parece in-

    fluenciar diretamente a expressividade do canto dos pais ou

    responsveis. [] O canto dirigido ao beb considerado impor-tante no desenvolvimento infantil porque influencia na comuni-

    cao e interao dos bebs e seus responsveis. (Ilari, 2002, p.87)

    O educador Shinichi Suzuki desenvolve as bases de seu m-todo ao relacionar a msica com o idioma materno da criana,porm acrescenta um ingrediente que lhe confere um tom dife-

    renciado; esse ingrediente o amor. Em sua anlise do mtodo Su-zuki de educao, Fonterrada (2008, p.165) descreve: Em seulivro Educao amor, Shinichi Suzuki (1994) afirma que todacriana, potencialmente, tem capacidade para aprender msica, domesmo modo que para aprender a falar a lngua de seu pas sualngua-me.

    A autora descreve ainda que:

    Suzuki conclui que as condies de aprendizagem da lngua ma-

    terna eram dadas pelo meio em que a criana vivia e pelo estmulo

    dos pais, que costumam falar com o beb desde o seu nascimento.

    Essa constatao serviu de base para seu mtodo. Suzuki prope

    que a msica faa parte do meio da criana desde pequena, como

    ocorre com a lngua materna, assim ela a aprender naturalmente;

    [] mas para que o potencial [da criana] se desenvolva, preciso

    que [ela] seja exposta a um meio favorvel desde muito cedo. A

    msica tem que ser parte importante desse meio e os agentes

    de musicalizao do beb sero seus prprios pais. (Fonterrada,

    2008, p.167)

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    Esses dados so relevantes em razo da maneira como pro-posto o aprendizado da criana, envolvendo relaes materno-in-

    fantis, que apresentam indcios de semelhana com as condies deaprendizagem sugeridas por Maturana & Verden-Zller (2004).Podem-se apreender mltiplas situaes que geram relaes di-retas com os fundamentos dessa argumentao. Uma delas o en-volvimento que se exige dos pais, sendo estes os contatos diretos damusicalizao. Outra a sugesto que parte do suposto de que aeducao amor, encontrada, de incio, no prprio ttulo do livro.

    Outra, ainda, a compreenso de que a idade e o meio so fatoresfundamentais para que se leve a cabo a aprendizagem.

    Esclarece-se que o trabalho e a vida de Suzuki (1994) so ante-riores aos dos autores, japons, portanto de uma cultura muitodiferente da ocidental, embora seja muito influenciado pela Ale-manha, onde viveu por anos, sendo casado com uma alem. Por-tanto, possvel apenas propor semelhanas com o que dizem

    Maturana & Verden-Zller (2004), sem ser possvel, contudo,constituir uma associao entre os pensamentos dos autores. O queSuzuki diz , realmente, associado cultura japonesa, aos valoresde preservao da cultura, respeito aos ancestrais e famlia. pos-svel realizar comparaes, porm no estabelecer influncia de umsobre o outro.

    Considera-se que h indcios de que na Educao Musical da

    atualidade surgem pensamentos que se abrem a novas propostas deatuao. Esses indcios sugerem que a viso de ensino e apren-dizagem ganha objetivos e focos relacionados ao fator humano,ao jogar e brincar enquanto fenmenos enlaados com a msica, aosujeito musical, criatividade.

    A partir da observao dessas novas propostas, objetivos efocos, apontam-se indcios de que comeam a ser solicitadas trans-

    formaes nas pedagogias musicais, de tal modo que possam seadaptar s exigncias instveis e flexveis que vm surgindo comfrequncia na rea da Msica e da Educao. Tal observao sugerea necessidade de que sejam abertas vias alternativas, outras possi-

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    bilidades, maleveis o suficiente para abrigarem em seu interior osdesafios que a sociedade do sculo XXI j est enfrentando.

    Jogos e brincadeiras musicais

    Na segunda seo deste captulo, manteve-se a interatividadecom a educao, contudo, colocou-se o foco diretamente nos jogose brincadeiras musicais. Especificaram-se, principalmente, os en-

    contrados na tradio oral sem abandonar, porm, aqueles queaparecem nas pedagogias musicais contemporneas.Para tanto, revisou-se aquilo que se compreende, neste estudo,

    por conceitos que se referem a termos como: ldico, jogos, brinca-deiras, brinquedos, brincos, por se notar indcios de que, muitasvezes, so empregados de forma demasiadamente livre, o que podegerar certa confuso no seu uso ou, ento, por verificar evidncias

    de que muitas das expresses atribudas a esses termos, em geral,revelam compreenses confusas, ou incompreenses, de seu sig-nificado.

    Em seguida, sero observadas, especificamente, as condiesldicas dos jogos e brincadeiras musicais e suas aproximaes coma educao.

    O aspecto ldico: as expresses das culturas popularese a linguagem musical

    As formas de expresso das culturas populares se apresentam,de modo relevante, entre os aspectos que se encontram no interiorda linguagem musical. Como integrantes dessas culturas, encon-tram-se os jogos e brincadeiras musicais, as brincadeiras, brin-quedos e brincos.

    Optou-se pelo termo culturas (no plural) para manter coe-rncia com aquilo que se tem como fundamento terico no presentetexto, com base em Morin, que prope:

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    A cultura constituda pelo conjunto de saberes, dos fazeres, das

    regras, das normas, das proibies, das estratgias, das crenas,

    das ideias, dos valores, dos mitos, que se transmite de gerao emgerao, se reproduz em cada indivduo, controla a existncia da

    sociedade e mantm a complexidade psicolgica e social. No

    h sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura,

    mas cada cultura singular. Assim, sempre existe a cultura nas

    culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas. (Morin,

    2011b, p.50-1)

    Os jogos podem ser relacionados a inmeros aspectos da vida,no somente humana, mas dos animais tambm, como recordaHuizinga (1980) ao comentar a importncia dessas atividades entreos animais. Entretanto, para esse autor, o jogo traz algo de fun-damental, que o divertimento [] uma caracterstica absoluta-mente primria da vida, que qualquer um capaz de identificar

    desde o prprio nvel animal (Huizinga, 1980, p.3-5).Diferentes reas, como Etnomusicologia, Antropologia, Socio-logia, Psicologia, para se citar algumas, tm gerado valiosos estudosa respeito de atividades ldicas e suas influncias no indivduo e nassociedades. A educao as entende como uma ferramenta de ao,por seu potencial educacional. Nesse sentido, Verssimo de Melo(1981, p.189) aponta que tais elementos merecem estudos mais

    aprofundados em razo de sua capacidade de realizar a sntesemagnfica de elementos imprescindveis educao, por conterinmeros ramos do conhecimento e das artes em seu interior.

    Em virtude dos indcios de sua estreita relao com a Educaoe, por extenso, com a Educao Musical, e de acordo com os in-trincados usos desses termos em nossa sociedade, faz-se uma brevereviso bibliogrfica relativa temtica, para buscar esclareci-mento e, se possvel, compreenso mnima para fins de utilizaono presente texto.

    Huizinga (1980, p.3) entende que o jogo fato mais antigo doque a cultura, pois esta, mesmo em suas definies mais rigorosas,pressupe sempre a sociedade humana. Segundo ele, encon-

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    tramos o jogo na cultura como um elemento dado existente antesda prpria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais

    distantes origens at a fase de civilizao que agora nos encon-tramos (ibidem, p.6).Em contraponto, para Maturana & Verden-Zller (2004), a

    manuteno da rede de conversaes, como entendido o conceitode cultura pelos autores, acontece a partir da ao de brincar na re-lao materno-infantil.

    Bomtempo, Hussein & Zamberlan (1986, p.11) indicam que

    estudos sobre o jogo emergiram significativamente no final do s-culo XIX, [] como uma perspectiva evolucionista [] propostaem diferentes abordagens e que surgiram desde ento teoriassobre o brinquedo e jogos que propem diferentes critrios []s formulaes tericas.

    Caracteriza essas abordagens relacionando-as em termosda gerao de dados observacionais e/ou experimentais. Prope

    trs grandes perodos (1986): operodo normativo (1920 a 1940);operodo descritivo(a partir de 1930, com maior relevncia a partirda dcada de 1950);e a abordagem ecolgica (1955).

    Friedmann (1996, p.21-3) amplia esses perodos para setegrandes correntes tericas:

    Estudos evolucionistas e desenvolvimentistas (final do s-

    culo XIX). Difusionismo e particularismo: preservao do jogo (final dosculo XIX, comeo do sculo XX).

    Anlises funcionais: socializando o jogo (dcadas de 1930 a1950).

    Anlises do ponto de vista cultural e de personalidade: a pro-jeo do jogo (1920 at a dcada de 1960).

    Estudos de comunicao (dcadas de 1950 a 1970). Anlise estruturalista e cognitivista (comeo da dcada de

    1950). Anlise ecolgica, etolgica e experimental (da dcada de

    1970 em diante).

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    Nicanor Miranda (1984) realiza uma anlise comparativa entreos conceitos de jogo e ginstica, utilizados na Inglaterra, Ale-

    manha, Frana e Itlia, no sculo XIX. Rev os valores que cadaum desses pases deu s atividades relacionadas a esses termos eprope que a ginstica um auxlio suplementar mas jamais po-der substituir os exerccios designados pela natureza. Para me-ninos e meninas, a atividade dos jogos para os quais os instintos nosimpele essencial ao bem-estar do corpo (Miranda, 1984, p.15).

    Relacionando desenvolvimento humano e atividades ldicas,

    Friedmann (1996) e Miranda (1984) concordam que os jogos pos-suem valor inestimvel por si mesmos.Lydia Hortlio, em entrevista para Rosa (2003), comenta o

    papel da msica de tradio, dos brinquedos na escola e sua impor-tncia na construo subjetiva da criana. A autora assevera que amsica tradicional da infncia o que de mais sensvel e mais es-sencial existe na cultura de um povo. o nascedouro da cultura

    brasileira. Em outro momento, agrega: No sei o que a escolaest fazendo que no se inspira na cultura popular, em que tudo elementar (Rosa, 2003, p.24).

    Florestan Fernandes (1979) chama a ateno para a evidnciade que no o jogo em si mesmo que fomenta a conscincia moral.Esta emerge e se intensifica atravs da situao social envolvidapelo jogo. Pressupe que os elementos ali existentes tm umafuno social e que contribuem para a integrao e continui-dade do sistema social.

    Interessante de se notar que Maturana & Verden-Zller (2004)e Fernandes (1979), apesar de partirem de pressupostos diferentes,ganham um ponto de proximidade com a ideia de que os jogosservem, de algum modo, para a manuteno das redes de relaeshumanas.

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    Jogos e brincadeiras musicais

    Verssimo de Melo, em 1949, ao refletir sua realidade regionale futurista, disse que h, no pas, a tendncia a utilizar os brin-quedos tradicionais na educao da infncia e juventude, refe-rindo-se incluso das cantigas de roda nos ento jardins deinfncia (Melo, 1981).

    Desde a poca de Melo encontra-se no Brasil, em diferentesperodos, a organizao e a recompilao de canes e jogos musi-

    cais tradicionais. Importantes so as obras de: Florestan Fernandes,recolhidas e publicadas entre 1942 e 1959 (1979); Verssimo deMelo (1981); Alceu Maynard Arajo e Aric Junior (1957); LauraDella Mnica (1967; 1982); Marina de Andrade Marconi (1978);Maria Meron (1982); Iris Costa Novaes (1986); entre outrosautores.

    Contudo, no mbito das investigaes dos jogos e brincadeiras

    musicais, h indcios de que pouco material tenha sido documen-tado e organizado, de tal forma que existe, at o momento, restritainformao. Assim mesmo, podem-se observar na literatura espe-cializada evidncias de que, nas ltimas duas dcadas, o interessepelos jogos musicais tem crescido, sobretudo incentivado pela pes-quisa etnomusicolgica, mas, tambm, como um fenmeno cap-tado pela indstria fonogrfica.

    Professores e pesquisadores, como Adriana Friedmann (1996);Lydia Hortlio (apud Rosa, 2003); Rose Marie R. Garcia (2001);Teca A. Brito (2001; 2003), entre outros educadores musicais earte-educadores, vm elaborando livros e artigos a respeito da im-portncia dos jogos e brincadeiras musicais, tanto na formao mu-sical do indivduo quanto em sua formao geral.

    No campo da produo fonogrfica, hoje em dia, existem edi-es com pesquisas especializadas em canes infantis e jogos mu-sicais tradicionais, assim como aquelas de cunho autoral. Algumas,como as realizadas pelo selo Palavra Cantada, coordenada e produ-zida por Paulo Tatit e Sandra Perez (1996; 1999; 2001; 2004) estocada vez mais difundidas. Alm de lanar seus prprios trabalhos,

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    elaboram a produo de diferentes pesquisadores. Alguns desses,so: Grupo Rodapio, Dois a dois(1997), de Minas Gerais; Fran-

    cisco Marques, Histrias gudrias de gurrunfrias de maracutriasxiringabutrias(1999); Eugenio Tadeu, Pandalel(200?).Lydia Hortlio lanou o CD Abra a roda tin do l l (2002),

    com canes e jogos musicais registrados na Bahia. Foi produzidopela Brincante Produo Artsticas, do Instituto Brincante, em SoPaulo. Encontrou-se tambm o CD Lenga la lenga, com canes,jogos e brincadeiras tradicionais, coordenado por Viviane Beineke

    e Srgio Paulo Ribeiro de Freitas (2006), em Florianpolis.Algumas edies mais antigas merecem ser citadas, como agravao do msico Braguinha (2002) para a Coleo Disquinho,do selo Warner Music Brasil Ltda. Resgatam histrias cantadas econtadas dos antigos LPs de 1963.

    Em maio de 2009, o jornal Folha de S. Paulo(2009), por ini-ciativa de seu suplemento infantil Folhinha, lanou um site

    intitulado Mapa do Brincar, onde registram 550 brincadeiras sele-cionadas, alm de um conjunto de textos, desenhos, fotos e vdeosenviados por brincantes de todas as regies do Brasil.

    Tais produes, entre muitas outras, tm sido importantespara o registro de materiais e elementos das expresses tradicio-nais, de transmisso oral, em locais onde se encontram evidnciasde seu esquecimento ou a perda de sua memria, em muitas comu-

    nidades. Outros fatores relevantes a se destacar de tais produesso as possibilidades que surgem para a difuso destes elementos e,como consequncia, sua utilizao em atividades educacionais, for-mais ou no.

    Nota-se que se encontraram estudos sobre a natureza dos jogosentendidos de modo amplo e relacionados com a educao emgeral, contudo, entende-se necessrio destacar as evidncias de quejogos e brincadeiras musicais, especificamente, so pouco referidospelos autores.

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    Jogos musicais e educao

    Observados a partir do perfil da educao, os jogos e brinca-deiras musicais tangem diferentes estruturas, sejam elas motivacio-nais, cognitivas, sensrio-motoras, corporal-sinestsicas, entrediversas outras, e se conformam a diferentes fases do desenvolvi-mento humano, devido s suas diferentes caractersticas e abran-gncia de uma enorme gama de idades.

    Como se vem propondo neste texto, existem evidncias de que

    esses elementos atendem, por meio da experincia ldica, a di-versos aspectos que participam da formao integral do indivduo.Ao aceitar os jogos musicais fenmenos integradores dessas

    estruturas como msica e, tambm, como mediadores na musica-lizao, faz sentido a afirmao de Hortlio (apud Rosa, 2003),para quem a construo de conhecimento nas crianas no se rea-liza por meio do raciocnio lgico, de modo compartimentado.

    Nelas o sentir, o pensar e o querer fazem parte de uma unidade(ibidem, p.24).Nesse mesmo sentido, de modo anlogo, Brito (2003) sustenta

    que a criana um ser brincante e, brincando, faz msica, poisassim se relaciona com o mundo que descobre a cada dia. [] me-taforicamente, transforma-se em sons, [] pesquisa materiaissonoros, inventa e imita motivos meldicos e rtmicos [].

    Brito7

    amplia o dilogo sobre o ldico e a msica e pergunta seos jogos e brincadeiras no so, por si s, modos musicais? No somsica?.

    A autora entende, criticamente, que:

    a ideia do jogo na Educao Musical se coloca como algo que est

    fora do mundo musical, do fazer musical. Vale-se de um jogo para

    ensinar algo da msica, mas isso j no musical? O que jogo, o

    que esse ldico musical? Observa-se que na Educao Musical,

    7. Informao verbal fornecida pela profa dra Maria Teresa Alencar Brito embanca de qualificao de mestrado, IA UNESP, em 2/3/2012.

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    na prtica de educadores e publicaes, utiliza-se do jogo ou de

    um elemento da tradio como a rima, parlenda etc. [sic] e pa-

    rece que no o repertrio mesmo que se est trazendo. Vocvai cantar, vai brincar, vai pr o corpo para funcionar, mas para

    abstrair: olha, isso serve para ensinar compasso binrio, no

    para que a criana brinque e jogue, mas para abstrair elementos

    de ensino da msica, como ritmos e pulso. (Brito, informao

    verbal, 2012)

    Afirma que, em sua viso,

    brincadeira um modo de fazer msica, coincide com o jeito de

    ser e de estar no mundo, ldico musical [] [ o] modo musical da

    criana, que entra nesse jogo de fazer msica e de se transformar

    em sons, de alguma forma, de ser um ser brincante, porque

    assim que ela faz, e no s quando ela est fazendo uma brinca-

    deira musical, aprendida ou inventada dentro da tradio [][porque muitas vezes] a msica da infncia das comunidades

    no h territrios delimitados, s vezes as brincadeiras infantis

    vm dos cantos de trabalhos. [] O que mais importante no o

    que vou ensinar com uma brincadeira tradicional. [] Aquilo que

    tem mais fora so aquelas coisas que tm mais sentido para mim,

    na minha infncia, na minha brincadeira, de repente aquilo que

    voc vai trazendo e incorporando. [] Por isso eu sempre defendimuito que, para mim [importante] aquilo que ela [criana] faz, o

    que ela inventa, o que ela faz com os instrumentos. (Brito, infor-

    mao verbal, 2012)

    Tendo-se em conta o exposto, pde-se observar que o jogo mu-sical, infantil e adulto, traz elementos inerentes experincia em

    que so levados em conta os critrios de julgamento ou definies,como: escolha do grupo, escolha das formas e atividades, opes einiciativas dos indivduos que brincam e, principalmente, a neces-sidade de aceitao mtua.

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    Assim considerado, surgem evidncias, embora ainda no sis-tematicamente confirmadas, de que o jogo musical poderia estar

    relacionado diretamente linguagem musical e mesmo vir a in-fluenciar, no somente a aprendizagem dessa linguagem, como ade outros saberes, agindo, tambm, sobre as habilidades.

    Elementos como criatividade, expresso, imaginao, sociali-zao, tomada de conscincia do novo, so alguns dos aspectos quese encontram latentes no processo de ao dos jogos musicais, emrelao ao sujeito, e que levam a que se pense a respeito de qual

    modelo de escola seria necessrio para que tais atividades dirigidaspudessem ser utilizadas em diversas frentes, como sensibilizadoresdas habilidades, com consequente elaborao do conhecimentoe da linguagem musical. Porm, pela amplitude da temtica, elano foi considerada e no ser discutida neste texto.

    Gainza (1977), ao analisar o contedo psicolgico do MtodoWillems, comenta que o pedagogo musical deve ser um psic-

    logo capaz de interpretar a atividade interior do aluno [] suasensibilidade emotiva, sensorialidade, motricidade. Para Willems[] o professor no mais do que um intermedirio [] no pro-cesso de musicalizao.

    Dentro desse contexto, a observao aponta indcios de que amsica e todas suas expresses podem atuar no sujeito. De acordocom Loureiro (2003), a msica [] desempenha um papel

    ativo dentro da educao geral do indivduo []. O processo doensino musical no , portanto, simplesmente intelectual, mas deveocorrer pela mediao entre a realidade musical constituda e osujeito.

    Finalmente, aps haver destacado os espaos, as posturas, osfundamentos das principais ideias que nortearam as reflexes aquitrazidas, bem como discutido os termos especficos mais empre-gados no presente estudo, acredita-se que se possa avanar, mos-trando a situao da pesquisa de campo, objeto do prximocaptulo.

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    2CAMPO DE CONVIVNCIASLDICAS, MUSICAIS E CRIATIVAS PESQUISADOR, ALUNOS, ESCOLA

    Indo eu, indo eu a caminho de Viseu.

    Cano tradicional de domnio pblico

    Com quantas notas se faz uma msica?

    O texto apresenta o resultado de observaes realizadas emcampo, focadas nas relaes humanas e sociais complexas e sist-micas , presentes na convivncia entre os alunos, o pesquisador e a

    escola, em situaes musicais e ldicas desenvolvidas por meio dejogos e brincadeiras musicais, e evidenciadas nas maneiras de ascrianas se expressarem, criativamente, por meio deles.

    O estudo foi tratado do ngulo da Educao Musical, da edu-cao escolar e dos Estudos Sociais. As ferramentas utilizadasforam: i) as observaes e registros de atividades dirigidas e espon-tneas, realizadas em sala de aula e extraclasse; ii) questionrios,com perguntas abertas e fechadas, dirigidos aos alunos e a seuspais; iii) entrevistas diretas com o grupo, professores e coordena-dores; e iv) registro audiovisual. Com base nesses documentos, enos depoimentos recolhidos, constituiu-se um corpo de informa-es que evidenciou inmeros fatores homogneos e heterogneos

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    que se inter-relacionam e atuam, direta ou indiretamente, no coti-diano do grupo.

    So apresentados, descritos e comentados pontos relevantesobservados e que tm significao para a anlise do fenmeno.

    Conhecendo o espao: pensando um caminho

    O trabalho de campo se realizou com crianas da faixa etria de

    10 a 11 anos, pertencentes a uma turma do sexto ano (at poucotempo quinta srie) do ensino fundamental, em uma escola pblicaestadual situada no bairro da Lapa, no municpio de So Paulo, em2011. Um grupo urbano integrado por crianas de inmeras re-gies da cidade de So Paulo, sem uma histria nica e comum.Foram investigados e levantados os aspectos das suas realidadesmusicais e, de modo mais incisivo, a existncia ou no de repertrio

    ou repertrios de memria individual e coletiva.Na estratgia inicial, fixou-se a realizao de jogos e brinca-deiras musicais, lendas e parlendas, apresentadas pelo pesquisadorcom funes motivadoras, sensibilizadoras e de integrao, tendocomo base a relao direta e interativa entre pesquisador/sujeito.

    A escola recebe uma mdia de 1.050 alunos, diariamente, emsuas 14 salas de aula. Sua infraestrutura conta com uma sala mul-tiuso espelhada, usada para aulas especiais, como capoeira e teatro,e que inicialmente foi apropriada proposta da pesquisa. Recente-mente foi construda uma sala de teatro com capacidade para cempessoas, local em que se realiza um trabalho extraclasse com ogrupo de teatro dos alunos.

    A direo e a coordenao se mostram receptivas s propostasincentivadoras de atividades extracurriculares, que reforcem o de-senvolvimento humano de seus alunos. Durante o ano, a escola e osalunos realizam passeios, organizam a Feira de Cincias e a Olim-pada Esportiva, recebem instituies jornalsticas que gravam seusprogramas com participao dos discentes nas entrevistas. Apre-sentam atitude diferenciada em relao ao atendimento das crianas

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    e em sua educao, assim como no desenvolvimento de aes quebuscam promover, cada vez mais, a incluso.

    A escolha da escola e da srie levou em conta vrios pr-requi-sitos relacionados diretamente com o objeto de estudo,1 como: a)localizao; b) heterogenia de idade, crena, classes socioecon-micas, atividades sociais e ldicas dos alunos; c) homogeneidade defaixa etria: os alunos esto em um momento de mudanas fsicas,comportamentais, sociais, entre outras; d) horrios das aulas dogrupo escolhido, nmero de alunos e idades semelhante.

    Indiretamente, tambm, so vrios os pr-requisitos, entre osquais esto: i) boa recepo e facilidades por parte da diretora e doscoordenadores; ii) tradio da escola em receber atividades ex-ternas; iii) disposio inicial do professor de Artes em ceder uma desuas aulas com a turma e em participar como acompanhante doprocesso da pesquisa; iv) interesse inicial de todo o grupo de alunosem participar de forma voluntria da pesquisa.

    A escola e a sala de aula foram visitadas antes do incio das ativi-dades, momentos em que o pesquisador foi apresentado aos alunos e,como se acreditou inicialmente, no houve nenhum estranhamentodos alunos naqueles encontros prvios, talvez pelo interesse na pro-posta, pela curiosidade suscitada e pelos contatos anteriores. Ve-rificou-se o desejo de participao no estudo e, desde esses primeiroscontatos, foram explicados sua inteno, propsito e aplicao.

    Os encontros aconteceram semanal ou quinzenalmente, deacordo com a programao oficial da disciplina, contando-se, ini-cialmente, com a participao e o acompanhamento do professor deArtes. Nos encon