John Gilissen - Introdução Histórica Ao Direito - 2º Edição - Ano 1995

797
JOHN GILISSEN INTRODUÇÃO HISTÓRICA AO DIREITO Prefácio de J. Gilissen Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Maíheiros 2.a edição FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN | LISBOA

description

História é importante, porque temos de saber o motivo de estarmos onde estamos. Sem tal consciência, somos um barco navegando num mar rosa, que está cheio de ondas perigosas, habitadas por fadas e loucos glóbulos, que podem virar seu barquinho azul-calcinha.

Transcript of John Gilissen - Introdução Histórica Ao Direito - 2º Edição - Ano 1995

  • JOHN GILISSEN

    INTRODUO HISTRICAAO DIREITO

    Prefcio de

    J . Gilissen

    Traduo de A. M. Hespanha

    eL. M. Macasta Maheiros

    2.a edio

    FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN | LISBOA

  • Traduo

    do original francs intitulado:

    INTRODUCTION HISTORIQUE AU DROIT (Esquisse d une histoire universelle du droit.

    Les sources du droit.Les sources du droit depuis le XTTT.e sicle.

    Elements d histoire du droit priv)

    JOHN GILISSEN

    1979 tablissements mille Bruyant, S. A, Bruxelles

    Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edio da

    FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN _______________________ Av. de Berna I Lisboa

    Depsito Legal N. 88 180/95 ISBN: 972-31-0193-9

  • PREFCIO EDIO PORTUGUESA

    A obra que agora se publica em portugus no careceria de apresentao, pois se trata de um texto que, pelo seu caracter genrico e sistemtico, pela sua clareza, pelo seu didatismo, se transformou numa sntese nica da histria interna do direito da Europa ocidental, incluindo referncias evoluo histrica dos restantes grandes sistemas jurdicos da antiguidade ou de hoje, E justo, no entanto, salientar as novidades da edio portuguesa, que fazem dela verso autnoma, em relao s ltimas verses francesa e flamenga.

    Em primeiro lugar, e antes de tudo, o autor actualizou profundamente o texto, introduzindo novos captulos decorrentes de investigaes recentes, remodelando profundamente outros j existentes, actualizando bibliografia, suprimindo algumas referncias muito localizadas na tradio histrica belga ou nerlandesa e fazendo um grande esforo de incluso de temticas ibricas e sul-americanas.

    Como complemento deste esforo, os tradutores portugueses procuraram tomar esta verso ainda mais prxima das preocupaes mais directas do historiador e jurista de lngua portuguesa. Embora respeitando, por regra, a terminologia original das instituies estrangeiras, procurou-se, por meio de referncias entre parnteses, informar sobre termos correspondentes da nossa tradio ju rd ica . Para alm disso, no fin a l de cada seco, um dos tradutores (A. A. Hespanha) elaborou snteses da evoluo dos temas ou institutos a tratados no direito portugus (sob a forma de notas do tradutor), juntando aos exemplos textuais originais outros tirados da nossa trad io ju r d ica (assinalados com um asterisco junto ao nmero do texto). No fin a l, o ndice temtico, fo i enriquecido com as principais correspondncias lingsticas, podendo > portanto, servir como glossrio de histria europeiaocidental das instituies.

    No conjunto e como complemento do livro de F. Wieacker, Histria do direito privado moderno, j publicado nesta coleco , fica disposio do leitor portugus uma exposio de histria do direito que, ao mesmo tempo, se apresenta como uma introduo histrica ao direito , tocando de uma forma genrica, alm da problemtica das fontes, os principais ramos e institutos jurdicos, sobretudo no domnio daquilo a que hoje chamamos direito privado; fora , ficam apenas algumas (mas no todas) das matrias de direito pblico (direito administrativo ou criminal, por exemplo), para as quais, de resto, no existe uma exposio do tipo desta, que s o saber, a sensibilidade histrica e cultural e a longa experincia do P ro f John Gilissen tornaram possveis.

    Antnio Manuel Hespanha Lisboa, Junho de 1986 Manuel Macasta Malheros

  • PREFCIO

    Uma introduo histrica ao direito pode ser concebida pelo menos de duas maneiras diferentes.

    Segundo uma delas, o autor expe a, a evoluo do direito num certo pas, a fim de fazer compreende? os componentes histricos do seu direito actual; como os juristas devem, na maior parte dos casos, aplicar apenas o direito do seu pas, a maior parte das snteses dizem somente respeito histria do direito de um pas, por exemplo, histria do direito espanhol, francs, italiano, alemo ou ingls. Estes trabalhos tm o grande mrito de ser escritos por especialistas que tm um conhecimento profundo da matria e que puderam utilizar de form a cientfica as fontes histrico-jurdicas do seu pas, muitas vezes escritas na sua prpria lngua.

    Segundo a outra, o autor tenta situar a histria do direito do seu pas num quadro geogr fico e cronolgico mais vasto, como, por exemplo, quadro europeu ou mesmo o quadro universal. Foi o que eu tentei fazer, embora no tenha deixado de utilizar o outro mtodo. Enquanto que as obras de histria geral universal so numerosas e meritrias, as de histria mundial do direito e das instituies so raras; muitas vezes, elas limitam-se a justapor resumos da evoluo jurd ica num certo nmero de grandes pases.

    Desde h cinco dcadas que a Socit Jean Bodin pour Vhistoire comparative des institutions tentou suscitar trabalhos de sntese no mais vasto quadro geogrfico e cronolgico. 0 patrocnio de Jean Bodin, juspublicista francs do sc. XVI, autor da Repblica, fo i escolhido pelos fundadores porque ele fo i um dos primeiros a fazer a histria comparada do direito, comparando as instituies romanas, gregas e hebraicas da antiguidade com as da Frana do seu tempo. A Socit Jean Bodin estudou sucessivamente umas duas dezenas de instituies no maior nmero possvel de pases e de regies, desde os tempos mais recuados at aos nossos dias, no apenas na Europa como nos outros continentes, e elaborou snteses comparativas da sua evoluo. Foram assim estudadas, por exemplo, a cidade, a comunidade rural, a monocracia, os grandes imprios, as relaes entre governados e governantes, a organizao da paz, os laos de vassalagem, a servido, a prova, as garantias pessoais, o estatuto jurdico da mulher, do menor, do estrangeiro e, muito recentemente, o costume. 0 mtodo comparativo permite uma abordagem histrico-sociolgica da instituio, estabelecendo uma tipologia e descrevendo as grandes correntes da sua evoluo universal. Os trabalhos de histria comparada do direito e as snteses que,

  • 10

    enquanto secretrio geral, tive que elaborar, foram publicadas nos *Recueils de la Socit Jean Bodin, cujos cinqenta volumes sero referidos .em nota na presente obra; pois esta Introduo histrica ao direito , pelo menos em parte, resultante desses trabalhos.

    Na realidade, teria sido difcil condensar num s volume os resultados das investigaes histricas em todos os domnios do direito. De resto, o presente livro , antes de mais, resultante do meu ensino nas duas Universidades de Bruxelas durante mais de quarenta anos. A matria reservada ao curso de Introduo histrica ao direito a delimitada por aquelas que so prprias de outras disciplinas, por exemplo, o curso de Direito romano, sobretudo consagrado ao direito privado da poca romana, e o curso de Introduo histrica s instituies dos grandes Estados modernos, no qual exposta a histria do direito pblico de um certo nmero de pases. por isso que o direito romano no ocupa neste livro o lugar que mereceria em razo da influncia que exerceu sobr o direito de um grande nmero de pases actuais. E por isso tambm que a histria do direito pblico no , aqui, exposta de forma sistemtica, mas apenas na medida em que as suas instituies desempenharam um papel importante na formao e evoluo de certas fontes de direito: por exemplo, a organizao do poder legislativo que explica a elaborao da lei em cada pas, a organizao dos tribunais que explica a elaborao da jurisprudncia, a organizao do ensino do direito que contribui para a formao da doutrina.

    Assim se explica o plano geral deste livro

    A primeira parte constituda por uma histria dos grandes sistemas jurdicos no mundo, desde as origens at aos nossos dias; forosamente sumria e esquemtica, ela d, em duas centenas de pginas, algumas noes elementares de cada um dos grandes sistemas jurdicos do passado e do presente.

    A segunda parte o estudo mais profundo da histria do direito da Europa ocidental, a pa rtir do sc. XII. A exposio est aqui organizada volta da evoluo das principais fontes de direito: o costume, a lei, a doutrina e a jurisprudncia.

    A terceira parte contm alguns elementos de histria do direito privado. Trata-se, sobretudo, de matrias que foram menos influenciadas pelo direito romano, ou seja, aquelas em que a origem das regras jurdicas actuais deve ser procurada nos costumes medievais, no direito cannico, nas teorias doutrinais medievais e modernas, nas construes da antiga jurisprudncia. Assim, pouco me ocupei das obrigaes ou de certos contratos, como a compra e venda, em que a influncia do direito romano sobre os direitos romanistas actuais ainda dominante, para me dedicar sobretudo a outras matrias, menos romanizadas: o casamento, o divrcio, o poder do pai e da me, a tutela, as sucesses, a prova, as sociedades comerciais, etc.

  • 11

    Este livro no , portanto, uma histria das instituies, no sentido de uma Verfas- sungsgeschichte. Do mesmo modo, no se encontrar aqui uma histria do direito fisca l e financeiro, nem uma histria do direito social e da evoluo das classes sociais, nem uma histria do direito econmico, nem uma histria do direito penal, nem uma histria do processo. Alguns dos problemas destas disciplinas so ocasionalmente abordados; aproveitar-se-o essas ocasies para referir os trabalhos principais.

    E evidente que, concebida por um professor belga, para uso de estudantes belgas, esta obra privilegie a histria do direito das provncias flamengas e vals que constituem actualmente a Blgica. Mas a histria do direito deste pequeno pas no podia ser exposta e explicada seno em funo da evoluo jurdica dos grandes pases vizinhos, sobretudo a Frana e a Alemanha, atingindo-se, assim, o quadro universal evocado no incio deste prefcio; pois a influncia dos cdigos franceses do incio do sc. XIX, sobretudo do Cdigo civil de 1804, estendeu-se muito para alm da Europa, nomeadamente nos pases da Amrica Latina.

    * #

    A presente obra apareceu inicialmente em lngua francesa, em 1979, no editor Bruylant, em Bruxelas. Esta edio francesa tinha sido precedida de seis edies do meu curso, feitas sob a fo rm a de textos policopiados pelas Presses Universitaires de Bruxelas. De um manual elementar dirigido aos estudantes de direito no incio dos seus estudos, tomou-se num grande volume, nomeadamente pela incorporao dos resultados das minhas investigaes particulares.

    Uma verso em lngua holandesa apareceu em 1981. Difere da verso francesa, tanto pelos documentos reproduzidos como pelos exemplos citados, embora esteja concebida segundo o mesmo plano geral. JJma segunda edio, em dois volumes, aparecer dentro de pouco tempo; compreender capita selecta relativos a matrias que no foram abordadas na primeira edio, como o direito penal, o direito fisca l e o direito social.

    A presente verso em lngua portuguesa pde ser realizada graas ao interesse manifestado pela Fundao Calouste Gulbenkian. 0 texto de base fo i adaptado, em certa medida, aos leitores de lngua portuguesa, quer sejam de Portugal, do Brasil ou de frica. 0 que era especificamente belga fo i muitas vezes substitudo por dados colhidos na histria de outros pases, mais especialmente espanhis ou portugueses. Certos captulos foram, assim, muito modificados, sobretudo na segunda parte da obra. Quereria t-lo feito ainda em maior medida; mas os trabalhos de histria comparada do direito so ainda muito pouco numerosos em certos domnios da histria jurdica.

    Este fim fo i , no entanto, atingido em larga medida, graas ao auxlio que o Prof. Antnio Manuel Hespanha se disps a prestar-me. Ele no somente traduziu de forma perfeita o texto da edio francesa que eu tinha completado e actualizado, como sobretudo teve o mrito de o

  • 12

    completar com numerosos dados relativos s diversas regies da pennsula ibrica e aos pases de lngua portuguesa e espanhola da Amrica e da frica; frequentemente, substituiu ainda extractos de documentos anexos a cada captulo, muitas vezes colhidos da histria do direito fran cs ou belga, por documentos que interessam mais directamente os pases de lngua portuguesa. Agradeo-lhe muito vivamente por tudo isto.

    Tambm quero agradecer aos meus antigos assistentes na Universit Libre de Bruxelles e na Vrije Universiteit Bru$sel que colaboraram durante anos no meu ensino e na difuso dos meus cursos policopiados. Vivos agradecimentos so igualmente devidos aos meus colegas que se prestaram a reler e corrigir certos captulos da primeira parte do livro, para os quais estavam especialmente qualificados: os Profs. A. Thodorids, da Universidade de Bruxelas, para o antigo direito egpcio; R. C. Van Caenegem, da Universidade de Gand, para a histria do direito ingls; J . Vanderlinden, meu sucessor na Universidade de Bruxelas, para os direitos tradicionais africanos; F. Gorl,. um dos meus sucessores na Vrije Universiteit Brussel, para o direito dos pases socialistas de tendncia comunista.

    25 de Dezembro de 1985.

    John Gilissen

  • INTRODUO

    A histria do direito muitas vezes tratada com um condescendente desdm, por aqueles que entendem ocupar-se apenas do direito positivo. Os juristas que se interessam por ela, quase sempre custa de investigaes muito longas e muito laboriosas, so frequentemente acusados de pedantismo... Uma apreciao deste gnero no beneficia aqueles que a formulam. Quanto mais avanamos no direito civil, mais constatamos que a Histria, muito mais do que a Lgica ou a Teoria, a nica capaz de explicar o que as nossas instituies so as que e porque que so as que existem.

    H. DE P AGE, Trai t de droit c iv i l belge, t. VI, Bruxelles 1942, 806.

    A histria do direito visa fazer compreender como que o direito actual se formou e desenvolveu, bem como de que maneira evoluiu no decurso dos sculos. O quadro geogrfico desta investigao no pode sei limitado s fronteiras de um s pas; absolutamente necessrio situ-la num quadro mais vasto, que compreenda toda a Europa ocidental, em virtude das influncias exercidas pelo direito dos diferentes pases no sistema jurdico de cada um deles.

    A generalidade dos direitos dos pases europeus faz parte da famlia dos direitos ditos romanistas, ou seja, dos sistemas jurdicos influenciados pelo direito romano da antiguidade. Ao lado dos direitos romanistas, existem no mundo actual numerosos outros sistemas, mais ou menos aparentados com os direitos romanistas, nomeadamente o common law ingls e os direitos socialistas dos pases de tendncia comunista; outros muito diferentes destes direitos europeus, nomeadamente os direitos hindu, chins, japons, muulmano e africanos.

    Neste livro, que nasceu de um ensino destinado a estudantes belgas, insistiu-se sobretudo na evoluo do direito nas regies que actualmente formam a Blgica, Mas esta evoluo foi continuamente colocada num quadro mais vasto, o quadro europeu dos direitos romanistas, que compreende antes de mais a Frana, cuja influncia foi considervel, mas tambm a Alemanha, os Pases Baixos, a Itlia e a Pennsula Ibrica.

  • 14

    No esqueamos, de resto, que as provncias belgas estiveram sujeitas mesma soberania que a Espanha e Portugal durante uma grande parte dos sculos XVI e XVII.

    Para alm disto, importa situar os outros sistemas jurdicos no seu quadro geogrfico e, sobretudo, histrico, a fim de melhor fazer compreender a situao dos direitos dos pases europeus em relao evoluo geral do direito no mundo.

    Este livro compreende, portanto, trs partes:

    a) Uma histria universal do direito, ou seja, uma histria dos grandes sistemas jurdicos no mundo, sob a forma de algumas exposies sobre os direitos arcaicos, dos direitos antigos, dos direitos tradicionais no europeus e dos direitos medievais e modernos. Entre estes ltimos, a formao e a evoluo dos direitos romanistas constituem o objecto de um estudo mais aprofundado na segunda parte.

    b) Uma histria das fontes do direito nos direitos da Europa ocidental, mais especialmente a partir da Baixa Idade Mdia (scs. XII-XX).

    O estudo da formao e evoluo do direito centrada sobre o estudo das fontes formais de direito desde a poca feudal: o costume, a li, a doutrina e a jurisprudncia.

    c) Alguns elementos de histria do direito privado desde o fim da antiguidade. As exposies visam tornar compreensveis as origens histricas de um certo nmero de instituies de direito civil e comercial, tal como so descritas e reguladas nos cdigos actualmente em vigor: o estatuto das pessoas, a famlia, os regimes matrimoniais, os direitos reais, as sucesses, aprova, as obrigaes, certos contratos.

    1. Componentes histricas dos direitos romanistas

    O direito de cada pas no foi criado de um dia para o outro; no foi institudo; antes a conseqncia de uma evoluo secular. De uma evoluo que no , de resto, prpria de cada pas. Pois, se desde a poca moderna o direito , antes de mais, nacional ou, dito de outro modo, se actualmente cada Estado soberano tem o seu prprio sistema jurdico, nem sempre assim foi. Na Baixa Idade Mdia, o direito era infinitamente mais diferenciado do ponto de vista territorial; mas, ao mesmo tempo, estava sujeito a grandes correntes de influncia, nomeadamente s do direito da Igreja e do direito letrado, tal como ele se desenvolveu no ensino universitrio, na base do direito romano.

    Por outro lado, a influncia das ideias que a Revoluo Francesa de 1789 propagou em numerosos pases e das reformas que da resultaram no plano do direito e das instituies, foi to considervel que se pode admitir que o perodo do fim do sc. XVIII e incio do sc. XIX constitui uma verdadeira cesura na evoluo jurdica. Tal foi certamente o caso em Frana, na Blgica, nos Pases Baixos; mas tambm, em menor medida, na Alemanha, na Itlia, em Espanha. Por exemplo, as provncias belgas

  • 15

    foram incorporadas na Frana de 1795 a 1814 e, por conseqncia, sujeitas ao direito da Repblica, e depois, Imprio franceses; as leis francesas e, sobretudo, os cinco grandes cdigos napolenicos (Cdigo civil, Cdigo comercial, Cdigo de processo civil, Cdigo de instruo criminal, Cdigo penal) permaneceram em vigor na Blgica aps 1814; noutros pases, nomeadamente na Itlia, Espanha, Portugal e tambm nos pases da Amrica Latina, foram adoptados no sc. XIX cdigos similares inspirados nos cdigos franceses. Noutros lugares, nomeadamente na ustria, na Prssia, na Baviera, foram promulgados na mesma poca cdigos do mesmo tipo que os cdigos franceses.

    por isso que, no exame das componentes histricas do direito contemporneo, preciso distinguir duas grandes fases, a que segue e a que precede 1789, ano do incio da Revoluo Francesa.

    A. DEPOIS DE 1789

    No obstante uma relativa estabilidade, o direito continuou a evoluir durante os sculos XIX e XX; esta evoluo realizou-se:

    pela promulgao de milhares de leis; pelo desenvolvimento de uma jurisprudncia prpria de cada pas; pelo contributo da doutrina; pela formao de novos costumes.

    Num certo nmero de pases europeus, o direito privado actual constitudo pelo direito francs da poca de Napoleo, tal como aparece nos cdigos de 1804-1807, ou nos que foram influenciados por estes, mas tambm tal como ele evoluiu at aos nossos dias, em funo das condies polticas, sociais e econmicas prprias de cada pas.

    No domnio do direito pblico, preciso constatar que as constituies dos diferentes pases receberam muito das constituies francesas de 1791, 1814 e 1830 e tambm do direito constitucional ingls e americano. A partir desta poca, o direito pblico continuou a evoluir; o regime poltico tornou-se cada vez mais .democrtico pela extenso do direito de sufrgio e pela participao activa dos governados na aco dos governantes; a interveno do Estado estendeu-se, sobretudo nos domnios econmicos e sociais.

    B. ANTES DE 1789

    As constituies e os cdigos franceses revogam tudo o que contrrio s regras jurdicas que eles contm. Desaparece, nomeadamente, desta forma, tanto na Blgica como na Frana e em alguns outros pases, uma grande parte das leis da Revoluo Francesa, as leis do Antigo Regime, os antigos costumes e os antigos privilgios.

  • 16

    No entanto, os cdigos no rompem com o passado; antes constituem a sntese das grandes correntes da histria do direito da Europa ocidental durante vinte sculos. Estas grandes correntes so elas prprias dominadas por diferentes elementos que formam os componentes histricos do direito dos incios do sc. XIX, a saber:

    a) 0 pensamento jurdico a poltico dos ltimos sculos do Antigo Regime

    A Escola do Direito Natural cujos principais representantes so ento Grcio, Puffendorf, Domat e Pothier domina o pensamento jurdico nos scs. XVII e XVIII. sob a influncia e nos quadros do pensamento jurdico desta escola que so efectuadas as grandes codificaes dos scs. XVIII e dos incios do sc. XIX, sobretudo na Alemanha e em Frana.

    No domnio poltico, comea a dominar o princpio da soberania nacional, que elaborado sobretudo na Inglaterra e em Frana, no decurso dos scs. XVII e XVIII, sob a influncia de Locke, Rousseau, Voltaire e Montesquieu. Este princpio leva preponderncia da lei como fonte de direito, sendo a lei a expresso da vontade da nao soberana.

    Ao mesmo tempo, as liberdades pblicas so afirmadas em importantes declaraes, tendentes a reconhecer e a garantir os direitos subjectivos dos cidados (em Inglaterra: B ill o f Rights de 1689; nos Estados Unidos, os Bilis o f Rigbts em certas constituies de Estados, nomeadamente na Virgnia (1776), e as primeiras emendas da Constituio federal (1791); em Frana, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, em 1789, retomada em numerosas constituies).

    Os governos da poca da Revoluo Francesa traduzem em numerosas leis as ideias jurdicas e polticas dos pensadores do sc. XVIII.

    b) A legislao dos ltimos sculos do Antigo Regime

    A lei j desempenha um papel importante como fonte de direito a partir dos scs. XV e XVI. O desenvolvimento dos grandes Estados modernos, o fortalecimento do poder monrquico, o enfraquecimento do feudalismo, da Igreja e do esprito particularista, levam a dar valor de lei vontade do soberano: Se o rei quer, tal quer a lei (Loisel, Institutes coustumires, 1607). As ordonnances r) dos reis de Frana so muito numerosas; certas ordonnances de Lus XIV e de Lus XV sero retomadas quase textualmente nos cdigos napolenicos.

    A legislao conduz ento a uma relativa unificao do direito em certos pases, sobretudo em Frana, muitos menos noutros lugares (Alemanha, Itlia, Espanha).

    t*1 Sobre o equivalente portugus da expresso ordonnances, v, adiante Parte II, C ., n. 1.

  • 17

    c) 0 costume medievalO costume a principal fonte de direito na Europa ocidental, do sc. X ao

    sc. XIII; e continua a s-lo, pelo menos no direito privado, at ao fim do Antigo Regime.

    Este direito costumeiro parcialmente reduzido a escrito a partir dos scs. XIII e XIV, embora continue a evoluir. A ratificao dos costumes por via autoritria e as suas redaco e publicao, nos scs. XV, XVI e XVII, conserv-los-o em vigor at aos fins do Antigo Regime.

    O costume constitui uma fonte muito conservadora do direito, sendo muito lenta a sua evoluo. Os princpios do direito costumeiro medieval so buscados nos direitos romano e germnico, mas sobretudo nas particularidades dos institutos medievais (feudalismo, regime senhorial, regime dominial, desenvolvimento das cidades comerciais, etc.).

    d) 0 direito cannico

    Este direito o da Igreja catlica da comunidade de crentes. A sua influncia sobre o direito laico da Europa ocidental considervel, por diversas razes:

    o universalismo cristo da Idade Mdia; o mundo medieval no Ocidente um mundo cristo;

    o caracter escrito do direito cannico; este , na Europa ocidental, o nico direito escrito entre o fim do sc. IX e o sc. XIII;

    a atribuio aos tribunais eclesisticos da competncia exclusiva em numerosos domnios da rea do direito privado, tais como o casamento e o divrcio.

    A influncia do direito cannico decresce a partir do sc. XVI; o direito dos Estados laiciza-se desde esta poca. A partir da Revoluo Francesa, a religio passa a ter pouca influncia sobre o direito, pelo menos em Frana. O direito cannico continua, no entanto, a ser um dos fundamentos histricos de todo o direito ocidental, apesar dos progressos do racionalismo e do jusnaturalsmo nos scs. XVII e XVIII.

    e) 0 direito germnicoO sistema jurdico dos povos germnicos que viviam a leste do Reno e a norte

    dos Alpes na poca romana era ainda um direito tribal arcaico e pouco desenvolvido. Alguns destes povos invadiram a parte ocidental do Imprio Romano, sobretudo no sc. V; assim, os Francos instalaram-se nos territrios da Blgica actual e do Norte da Frana, os Visigticos na Pennsula ibrica e no sudoeste da Frana.

    O seu direito continua a evoluir, sobretudo no contacto com populaes romanizadas da Europa ocidental. A partir da poca carolngia, a fuso dos dois sistemas jurdicos o romano e o germnico realizou-se a, mas num quadro poltico e social novo, que d origem a um sistema jurdico de tipo feudal (scs. X a XII).

  • 18

    A contribuio do direito germnico arcaico para a formao dos direitos modernos foi relativamente reduzida, tal como aconteceu, de resto, com o sistema jurdico dos povos celtas que viviam no ocidente europeu antes da sua ocupao pelos Romanos.

    f) 0 direito romano

    Os Romanos foram os grandes juristas da antiguidade. Conseguiram realizar um sistema jurdico notvel, tanto no domnio do direito privado como no do direito pblico.'Os seus jurisconsultos, sobretudo os dos scs. II e III, foram os primeiros na histria da humanidade a conseguir elaborar uma tcnica jurdica e uma cincia do direito, graas anlise profunda das instituies e formulao precisa das regras jurdicas.

    O direito romano no desaparece com a derrocada do Imprio Romano no Ocidente, no sc. V. Subsiste no Oriente, no Imprio romano do Oriente ou Imprio bizantino, em que vai conhecer uma evoluo prpria durante dez sculos (scs. V-XV).

    No Ocidente, o direito romano sobrevive durante algum tempo nas monarquias germnicas que se formaram a, graas aplicao do princpio da personalidade do direito. Depois de um eclipse de alguns sculos (scs. IX-XI), o direito romano, tal como tinha sido codificado em Bizncio no sc. VI, na poca de Justiniano, reaparece no Ocidente, graas ao estudo que os juristas dele fazem no seio das universidades nascentes (scs. XII e XIII).

    Este renascimento do direito romano constitui um facto capital na formao do direito moderno da Europa ocidental. Pois o direito romano que se encontra na base do nosso sistema jurdico menos o do imprio romano que o que se estuda e ensina nas universidades medievais, ou seja, o direito romano tal como compreendido, interpretado e exposto plos romanistas da Idade Mdia e da poca moderna.

    A influncia do direito romano manifesta-se de uma forma tripla:

    At aos finais do sc. XVIII, o direito romano (com o direito cannico) o nico direito ensinado nas universidades; trata-se de um direito letrado, muito diferente do direito vivo, ou seja, do direito consuetudinrio e legislativo erti vigor nos diferentes pases europeus. No entanto, os juristas formados nas universidades suplantam progressivamente, dos scs. XIV a XVIII, os juizes populares, pelo menos nas jurisdies superiores, e adquirem o monoplio, enquanto advogados, da defesa dos interesses dos particulares perante estas jurisdies.

    Do sc. XIII ao sc. XVIII, assiste-se penetrao progressiva do direito romano no direito ocidental, infiltrao inicialmente lenta; depois, nos scs. XVI e XVII, verdadeira recepo; o direito romano reconhecido como direito subsidirio, suprindo as lacunas do direito de cada regio.

    Desde antes do sc. XIII, o direito romano influenciou a formao de numerosos costumes da Europa ocidental, influncia devida romanizao mais ou

  • 19

    menos intensa das diversas regies; a Glia, por exemplo, tinha sido romanizada durante cinco sculos. A influncia romana foi, no entanto, muito mais profunda e persistente no Midi francs (Provena, Languedoc) do que no Norte, o mesmo acontecendo na Itlia e em Espanha.

    g) Os direitos da antiguidade

    O direito da Repblica e, depois, do Imprio romano ele prprio proveniente de uma evoluo milenria do direito na bacia do Mediterrneo.

    Deve muito ao direito grego; as cidades gregas, sobretudo Atenas, atingiram um alto grau de desenvolvimento cultural, poltico e jurdico; historiadores e filsofos analisaram a as instituies do seu tempo e elaboraram sistemas tericos de governo ideal da cidade, dando assim origem cincia poltica.

    Os prprios Gregos eram herdeiros das civilizaes mais antigas, que se desenvolveram no Egipto e na sia Menor.

    O Imprio egpcio durou perto de trinta sculos; o direito atingiu a, j na poca do Antigo Imprio (scs. XXVIII a XXV a.C.), um alto grau de desenvolvimento, tanto na organizao do Estado como no funcionamento das instituies de direito privado.

    Na sia Menor, os direitos a que se chama cuneiformes (Sumria, Acdia, Babilnia, Assria, etc.) tambm conheceram, a partir do III milnio, um grande desenvolvimento, sendo os primeiros a formular por escrito regras jurdicas que, agrupadas em coleces, formam os primeiros cdigos da histria. O direito dos Hititas (scs. XVIII a XIII a.C.), desconhecido at h algumas dcadas, revela-se tambm um elo importante da transmisso dos sistemas jurdicos da antiguidade.

    Por fim, o direito dos Hebreus, direito intimamente ligado religio, exerceu uma influncia n negligencivel sobre o direito moderno, mais especialmente por intermdio do direito cannico (8)

    2. Os grandes sistemas jurdicos

    Costuma-se distinguir, por um lado, os direitos romanistas e os que lhe so aparentados, o common law e os direitos socialistas dos pases de tendncia comunista; por outro, os numerosos sistemas jurdicos que existem ou existiram noutros lugares do mundo, sobretudo os direitos muulmano, hindu, chins e africanos.

    a) Os direitos romanistasOs direitos da maior parte dos pases da Europa ocidental pertencem a um

    conjunto, uma famlia de sistemas jurdicos a que se chama, geralmente, direitos

    ( ') Nota do tradutor: para um balano da influncias de cada um dos direitos referidos no texto no sistema jurdico histrico portugus (nomeadamente, no direito medieval), v . , por ltim o, MARTIM DE ALBUQUERQUE e RUI DE ALBUQUERQUE, H istria do dm itop o r tu gu is , I, Lisboa 1984/1985, 351-370 (com indicao de ulterior bibliografia).

  • 20

    romanistas, em virtude da influncia exercida pelo direito romano sobre a sua formao.

    Provieram, na sua maior parte, da cincia romanista do direito que se desenvolveu nas universidades dos pases latinos e tambm dos pases germnicos. Em virtude da importncia destes ltimos pases no desenvolvimento da cincia jurdica no fim da Idade Mdia, na poca moderna e no sc. XIX, os autores (nomeadamente Ren David) chamam frequentemente a esta famlia de direitos, a famlia romano-germnica. Os anglo-saxes chamam-lhe o civil law system, por oposio ao seu comrnon law.

    A quase totalidade dos direitos dos pases europeus pertence famlia romanista, salvo o direito ingls (o common law) e o irlands e salvo, tambm, o direito dos pases de tendncia comunista da Europa oriental, onde se formou, desde h algumas dezenas de anos, um sistema de direito socialista. Pertencem, portanto, famlia romanista de direito, os direitos italiano, espanhol, portugus e grego, no sul da Europa; e os direitos alemo, austraco, suo, belga, holands, dinamarqus, sueco, finlands, noruegus e escocs, no centro e norte da Europa.

    O sistema de direito romanista imps-se fora da Europa nos pases que foram colonizados por pases da Europa continental: pases da Amrica Latina, Luistana (nos U .S .A .), Canad francs (Qubec), pases africanos colonizados pela Frana, pela Blgica ou por Portugal, frica do Sul, etc.

    b) 0 common law

    O sistema do common law nasceu em Inglaterra, sobretudo por aco dos tribunais reais na Baixa Idade Mdia (scs. XIII a XV). um judge made law , ou seja, um direito elaborado pelos juizes; a fonte principal do direito , a, a jurisprudncia, o precedente judicirio.

    O common law escapou em larga medida influncia do direito romano e da cincia jurdica das universidades medievais e modernas. Os seus conceitos jurdicos e a terminologia so muito diferentes dos dos sistemas jurdicos da famlia romano-germnica.

    O common law tornou-se no direito de todos os pases que foram dominados ou colonizados pela Inglaterra, nomeadamente o Pas de Gales, a Irlanda, os Estados Unidos (salvo a Luisiana), o Canad (salvo o Qubec), a Austrlia, a Nova Zelndia e numerosos pases africanos.

  • CRONOLOGIA DOS GRANDES SISTEMAS JURDICOS

    Sc. X X X a.C.

    Sc. X X a.C.

    Sc. XV a.C.

    Sc. X a.C.

    Sc. V a.C.

    0 -*-0

    Sc. V

    Sc. X

    Sc. XV

    Sc. X X

  • KJ

    GEOGRAFIA DOS GRANDES SISTEMAS JURDICOS

    Influncia do common law direito francs direito espanhol direito portugus direito b e lga direito holands

    ' DIREITO MUULMANO'

    1 j V \ A rb ia . ' , , _ . ,x . I y v jk %. nna **. / IO U

    Etipia * . j V r j ^Soroia a ~~~

    ^oambique \ / ADAT ]y^Angola 7 r / N / r

    j

    Nova Zelndia

  • 23

    c) Os direitos dos pases socialistas de tendncia comunistaUm sistema jurdico novo nasceu na Rssia depois da Revoluo de 1917.

    Baseado numa nova doutrina filosfica e poltica, o marxismo-leninismo, o direito da Unio Sovitica um sistema revolucionrio de direito que visa alterar os fundamentos da sociedade pela colectivizao dos meios de produo; tende a instaurar uma sociedade comunista, na qual no haveria nem Estado nem direito, pelo desaparecimento dos constrangimentos nas relaes sociais. Para passar de uma sociedade capitalista a uma sociedade comunista necessria, todavia, uma fase intermediria, j admitida por Marx e analisada, sobretudo, por Lenine. Durante esta fase, o Estado deve realizar, pela ditadura do proletariado, as necessrias reformas por via legislativa, elaborando um direito socialista. A influncia do sistema romanista de direito continua no entanto a constituir uma parte considervel nos direitos socialistas, nomeadamente nos conceitos e na terminologia jurdicos

    A maior parte das Repblicas populares que surgiram a partir de 1945 adoptaram um sistema jurdico inspirado no da U.R.S.S.: Checoslovquia, Polnia, Hungria, Romnia, Bulgria, etc. O sistema jurdico da China comunista apresenta particularidades em virtude da influncia da concepo tradicional do direito neste pas; o mesmo acontece, por outras razes, na Jugoslvia, em Cuba e noutros pases.

    d) 0 direito muulmanoO direito muulmano , como o direito hindu e o direito chins, um sistema no

    qual a distino entre direito e religio quase nula; so chamados, geralmente, direitos religiosos. O direito muulmano o direito dos Muulmanos, ou seja, da comunidade de fiis que professam a religio islmica. Os Muulmanos observam um conjunto de regras de vida derivadas do Alcoro, a lei divina; estas regras dizem respeito tanto s relaes sociais que ns chamamos jurdicas, como aos comportamentos de carcter moral ou religioso.

    Nascido nos scs. VII e VIII, inicialmente na Arbia, e depois nos territrios da frica e da sia conquistados pelo Islo, o direito muulmano desenvolveu-se, sobretudo, pelo idjm, o acordo unnime da comunidade muulmana, de facto o dos doutores da lei; variantes na interpretao dos textos levaram, no entanto, a que tivessem aparecido quatro ritos (ou escolas) ortodoxos e vrios mais ou menos herticos.

    No obstante estas diversidades, o direito muulmano conservou teoricamente uma grande unidade, apesar da extenso dos territrios nos quais ele ainda aplicado: frica do Norte, Turquia, Sudeste asitico, Turquesto, Iro, Paquisto, Bangladesh, uma parte da Indonsia; tambm o Sul e o Centro da Espanha e de Portugal foram islamizados durante uma parte da Idade Mdia.

    A partir do sc. X, o direito muulmano permaneceu esttico, congelado; do que resultou uma inadaptao aos problemas da vida econmica moderna, levando a um recurso aos direitos europeus, a ttulo d direito subsidirio, durante os sculos XIX e XX.

  • 24

    e) 0 direito hindu

    O direito hindu o direito da comunidade religiosa brmane, tambm chamada hinduista. E aplicado sobretudo na ndia e em algumas partes do Sudeste asitico.

    A religio hindu impe aos seus fiis uma certa concepo do mundo e das relaes sociais, baseada essencialmente na existncia de castas. As regras de comportamento aparecem sob a forma de princpios religiosos que substituem as normas jurdicas.

    Esses mandamentos so tirados de textos sagrados muitos antigos, os srutis, que contm especialmente os Vedas, A interpretao destes textos originou o aparecimento de uma abundante literatura, na qual encontramos livros com caractersticas mais estritamente jurdicas, os Dharmasstra.

    O direito hindu continuou a ser aplicado, na ndia, durante a colonizao britnica. O desenvolvimento poltico e econmico da Repblica da ndia, instituda em 1947, pe problemas complexos de adaptao.

    f) 0 direito chins

    Na China tradicional, o direito tinha apenas um papel secundrio na vida social. O essencial, a, era o ,li\ ou seja, as regras de convivncia, e de decncia, que impunham um comportamento em harmonia com a ordem natural das coisas. Esta concepo, nascida sobretudo do pensamento de Confcio (sculo VI a.C.), manteve-se at aos princpios do sculo XX.

    A esta concepo ops-se, a partir do sculo III a.C., a dos legistas, defensores da preponderancia da lei, a que quase s lei penal, que prev penas muitopesadas e, muitas vezes cruis, contra os que perturbam a ordem social, mesmo no domnio do que chamaremos direito civil.

    Mais tarde, os confucianistas chegaram a impor a sua concepo aos imperadores, a confcianalizar as leis. Os vinte sculos de histria do direito chins no so mais do que a preponderncia alternativa do li e do fa, assim como os esforos para a fuso do li com o fa.

    A europeizao do direito chins, ou seja, primeiro, a influncia dos direitos ocidentais e, em seguida, desde 1949, a dos direitos socialistas, parece ter sido superficial. A partir de 1958 assiste-se ao desenvolvimento de uma nova concepo do l i, o que explica, em parte, a diferena entre o comunismo da U.R.S.S. e o da China.

    Outras regies da Asia conheceram uma evoluo do direito semelhante dos direitos chins e hindu, sobretudo, o Japo e a sia do Sudeste (Birmnia, Sio, Cambodja, Vietname, etc.). As influncias chinesas e hindus cruzaram-se a com elementos prprios dos sistemas jurdicos mais arcaicos e com caractersticas especficas do budismo. A europeizao do direito foi a, geralmente, mais considervel do que na China, sobretudo no Japo.

  • 25

    g ) Os direitos africanos

    Os direitos dos povos da Africa Negra e de Madagscar constituem sistemas jurdicos geralmente mais arcaicos do que os direitos religiosos da frica e do Islo. Direitos arcaicos, mas no direitos primitivos, pois eles conheceram tambm uma longa evoluo interna, com fases descendentes e ascendentes, por vezes muito complexas. , de resto, difcil estudar estas evolues, pois os direitos africanos so direitos no escritos. A base essencial destes sistemas jurdicos a coeso do grupo a famlia, o cl, a tribo, a etnia , cuja solidariedade interna dita a maior parte das relaes sociais.

    O costume a a fonte quase nica de direito, havendo em frica um nmero muito elevado de costumes diferentes, em estdios muito diferentes de evoluo.

    Colonizados tanto pelos Muulmanos como pelos Europeus, os povos africanos sofreram a influncia dos sistemas jurdicos dos seus colonizadores. A partir do acesso independncia, no decurso dos anos 1955 e 1965, os Estados africanos tm procurado solues novas, umas em ruptura com os seus direitos tradicionais, outras na conciliao de sistemas jurdicos frequentemente muito diferentes uns dos outros, outros, por fim, na busca de uma autenticidade africana.

    3. As fontes de direito

    Muitas vezes se far apelo, neste livro, noo de fontes de direito, sobretudo na segunda parte, em que, ao estudar mais especialmente a evoluo geral do direito na Europa ocidental a partir da Baixa Idade Mdia, a exposio ser orientada sobre a histria das diferentes fontes formais do direito. Importa precisar, desde o incio, de que que se trata ao falar de fontes.

    A expresso fontes de direito pode ser entendida pelo menos em trs sentidos diferentes: fontes histricas do direito, fontes reais do direito, fontes formais do direito.

    a) Fontes histricas do direitoSo todos os elementos que contriburam, ao longo dos sculos, para a formao do

    direito positivo actualmente em vigor num pas dado. J recordmos que as fontes histricas dos direitos romanistas so os costumes, a legislao e a jurisprudncia do Antigo Regime, o direito cannico, o direito romano, etc.. Todo o livro sobre a Introduo histrica ao direito consagrado anlise destas fontes histricas dos direitos actuais.

    b) Fontes reais do direitoSo os fctores que contribuem para a formao do direito; respondem pergunta:

    de onde vem a regra de direito?. As fontes reais variam segundo a concepo religiosa ou filosfica dos homens: foras sobrenaturais, msticas, divinas, noes de justia, de equidade,

  • 26

    de bem-estar social, factores sociais, econmicos, polticos, ou mesmo geogrficos, etc.; e tambm o direito dos perodos anteriores e os direitos estrangeiros. Faremos muitas vezes aluso a elas, sem que, no entanto, aprofundemos este aspecto da formao do direito.

    c) Fontes formais do direito

    So os instrumentos de elaborao do direito num grupo sciopoltico dado numa poca dada; so tambm os modos ou formas atravs das quais as normas de direito positivo se exprimem. Nos scs. XIX e XX e nos pases europeus dominados pelo pensamento jurdico e pelas constituies da Revoluo Francesa e pelas codificaes da poca de Bonaparte, afirmou-se muitas vezes que apenas havia uma fonte formal do direito, a lei; e que no haveria outro direito seno o que fosse criado e formulado pelo legislador. Do mesmo modo, nos sistemas jurdicos dos pases socialistas de tendncia comunista, a lei frequentemente considerada como a nica fonte de direito. Outros juristas admitem que existe um certo nmero de fontes formais de direito, nomeadamente, ao lado da lei nacional, a lei estrangeira, a conveno internacional, o costume, a jurisprudncia, a doutrina, os princpios gerais de direito e a equidade.

    Entre estas diversas fontes formais de direito, a lei e o costume so as mais importantes na evoluo e na formao dos sistemas jurdicos europeus e tambm, muitas vezes, nos restantes. Em numerosos textos da Baixa Idade Mdia, o conjunto do direito frequentemente designado por ex et consuetudo, lei e costume. O costume a fonte formal que domina nos direitos menos desenvolvidos; a lei domina nos sistemas jurdicos mais desenvolvidos; e ser-se-ia, desde logo, tentado a resumir a evoluo progressiva do direito pela constatao de que o costume recua, como fonte de direito, medida que a lei se impe.

    Mas a histria do direito , na realidade, muito mais complexa. Outras fontes de direito desempenham um papel, ora secundrio, ora capital. A jurisprudncia desempenhou um papel capital na formao e desenvolvimento do common law ingls; um papel menos importante, mas no de desprezar, nos outros direitos europeus. A doutrina, sobretudo a que foi elaborada na base do direito romano renascido na Baixa Idade Mdia e na poca moderna, um importante instrumento de elaborao e de expresso do direito durante estes perodos.

    Certos juristas contestam a qualidade de fonte de direito jurisprudncia e doutrina, no as considerando como tendo fora viriculativa em direito. Sem examinar aqui o bem fundado desta concepo, constatemos que, pelo menos na evoluo dos direitos do continente europeu, a jurisprudncia, a doutrina, e tambm a equidade, os princpios gerais do direito e outras fontes formais antes citadas, so sobretudo fontes supletivas de direito, visando preencher as lacunas deixadas pela lei e pelo costume (1).

    Cf. as colecrneas de estudos publicadas sob a direco de J . PERELMAN, Le problme des la cuna en droit, Bruxelles 1968 , nomeadamente, J . Gilissen, Le problme des lacunes du droit darts 1'volution du droit m d iva let moderne, p. 197-246.

  • 27

    Examinaremos na segunda parte o papel desempenhado pelo costume e pela lei nas diversas pocas do passado, a partir do sc. XIII e, por outro lado, o papel supletivo da doutrina e da jurisprudncia. Precisemos aqui o sentido dado a estas quatro noes, pois a5 definies elaboradas em funo do direito positivo do sc. XX nem sempre tm suficientemente em conta os sistemas jurdicos que existiram no passado.

    a) A leiNo direito actual da maior parte dos pases europeus, as leis strico sensu so actos

    do poder legislativo; por isso, constituem apenas uma das categorias das leis lato sensu, que compreendem todos os actos emanados directa ou indirectamente da vontade soberana da nao e que editam regras gerais e permanentes do comportamento humano; podem tambm chamar-se, por exemplo, decretos, ditos, arrts, regulamentos, e tc ., e emanar de autoridades nacionais, regionais ou mesmo locais. Esta ltima definio no satisfatria para o estudo histrico do direito, pois noes como nao e soberania no existiram em todas as pocas.

    Propomos que se retenha a seguinte definio: a lei uma norma ou um conjunto de normas de direito, relativamente gerais e permanentes, na maior parte dos casos escritas, impostas por aquele ou aqueles que exercem o poder num grupo sociopoltico mais ou menos autnomo.

    A ttulo de comparao, eis outras duas definies da lei, concebidas no mesmo quadro histrico: segundo H. LEVY-BRUHL (Sociologie d droit, col. Que sais-je?, Paris 1961, 55), a lei uma norma jurdica geralmente formulada por escrito, elaborada por um rgo especializado do poder poltico, posta em vigor num momento determinado do tempo, por meio de uma declarao ou de promulgao; segundo H. KRAUSE (v. Gesetzgebung, Handwrterbuch zum deutschen Rechtsgeschicbte, t. VII, 1970, p. 1606): A legislao a elaborao de normas jurdicas abstractas com a inteno de uma aplicao geral.

    b) 0 costumeAnalisaremos mais frente (2.a parte, cap. ) a noo de costume, tomando como

    ponto de partida a definio dada por um jurista flamengo do sc. XVI, Philippe W ieland; examinaremos ento os caracteres especficos do costume na Idade Mdia e na poca moderna. De uma forma mais geral, propomos definir o costume como um conjunto de usos de natureza jurdica que adquiriram fora obrigatria num grupo sociopoltico dado, pela repetio de actos pblicos e pacficos durante um lapso de tempo relativamente longo.

    c) A jurisprudnciaA jurisprudncia um conjunto de normas jurdicas extradas das decises

    judicirias. De uma forma geral, as decises judicirias no valem seno entre as pessoas que so partes no processo; no enunciam normas jurdicas gerais e, mesmo que

  • 28

    o faam na sua motivao, estas normas no tm fora vinculativa erga omnes. No entanto, os juizes, sobretudo os juizes profissionais formados pela disciplina jurdica (por oposio aos juzes populares) tm tendncia a interpretar a lei e o costume como o fizeram os seus predecessores. Por outro lado, a segurana jurdica funo da autoridade reconhecida aos precedentes; em Inglaterra, esta autoridade tornou-se considervel; em virtude d princpio do stare deisis, no permitido aos juzes modificar a interpretao do direito fixado por certas jurisdies superiores (cf. infra, common law). Este princpio teve pouca aceitao no continente; mas, de facto, a autoridade dos precedentes judicirios foi muitas vezes considervel, no passado e no presente.

    d) A dotrinaA doutrina o conjunto de normas jurdicas formuladas por grandes juristas nas

    suas obras. Na realidade, os juristas, no investidos de um poder poltico ou judicirio, no podem criar normas jurdicas. Mas, em certas concepes do direito, podem constatar o direito que existe, mesmo que no formulado; descobrem um direito que se supe preexistir s suas constataes. Neste caso, a doutrina pode desempenhar um papel considervel, como, por exemplo, em certas pocas da histria do direito romano.

    A doutrina pode tambm contribuir para introduzir um direito estrangeiro como direito supletivo; foi, nomeadamente, o que aconteceu nos finais da Idade Mdia, quando a doutrina romanista, ou seja, as obras dos juristas formados nas universidades no estudo do direito romano, fez penetrar uma parte desse direito romano na maior parte dos direitos europeus.

    Por fim, a doutrina est na base da cincia do direito; pelos seus esforos de classificao, de sistematizao, de anlise e de sntese, os juristas letrados fizeram do direito uma cincia. Muitas vezes, criou-se, deste modo, um direito letrado, um direito dos professores, um Juristenrecht (direito de juristas), factor importante do progresso jurdico, mas tambm, por vezes, causa de uma diferenciao cada vez mais marcada do direito terico, por exemplo, o ensinado nas universidades, em relao ao direito realmente em vigor.

  • CAPTULO 1

    OS DIREITOS DOS POVOS SEM ESCRITA

    1. O problema das origens do direito

    No se pode estudar a histria do direito seno a partir da poca em relao qual remontam os mais antigos documentos escritos conservados. Esta poca diferente para cada povo, para cada civilizao.

    Antes do perodo histrico, cada povo j tinha, no entanto, percorrido uma longa evoluo jurdica. Esta pr-histria do direito escapa quase inteiramente ao nosso conhecimento; pois se os vestgios deixados pelos povos pr-histricos (tais como esqueletos, armas, cermica, jias, fundos de cabanas, etc.) permitem ao especialista reconstituir, certo que de uma maneira muito aproximativa, a evoluo militar, social, econmica e artstica dos grupos sociais antes da sua entrada na histria, estes mesmos vestgios no podem de forma alguma fornecer indicaes teis para o estudo das suas instituies. Ora, no momento em que os povos entram na histria, a maior parte das instituies civis existem j, nomeadamente o casamento, o poder paternal e ou maternal sobre os filhos, a propriedade (pelo menos mobiliria), a sucesso, a doao, diversos contratos tais como a troca e o emprstimo. Do mesmo modo, no domnio daquilo a que hoje chamamos direito pblico, uma organizao relativamente desenvolvida dos grupos sociopolticos existe j em numerosos povos sem escrita.

    E preciso portanto distinguir a pr-histria do direito e a histria do direito, distino que repousa no conhecimento ou no da escrita, O aparecimento da escrita e, em conseqncia, dos primeiros textos jurdicos situa-se em pocas diferentes para as diversas civilizaes; assim, para os Egpcios, a transio data de cerca de 28 ou 27 sculos antes da nossa era; para os Romanos, cerca dos sculos VI ou V antes da nossa era; para os Germanos, do sculo V da nossa era; para certos povos da Austrlia, da Amaznia, da Papusia, da frica Central, data do sculo XIX ou mesmo do sculo XX.

    As origens do direito situam-se na poca pr-histrica, o que quer dizer que delas no se sabe quase nada. O problema das origens da maior parte das instituies

  • 32

    jurdicas , portanto, quase insolvel. No entanto no se deve renunciar a estudar os diferentes aspectos, permanecendo-se todavia muito prudente nas concluses que se podem tirar dos estudos feitos.

    Numerosos trabalhos foram consagrados aos aspectos mais arcaicos do sistema jurdico que podem ser estudados com base em documentos escritos. Foi assim que se tentou reconstituir o antigo direito germnico com auxlio em escritos posteriores s migraes dos Germanos para a Europa no sculo V, ou o mais antigo direito romano com auxlio dos vestgios por ele deixados nos escritos da poca clssica da histria jurdica de Roma. Estas reconstituies so muito hipotticas; como se tentssemos reconstituir o direito dos sculos XVI e XVII, ou seja da poca de Carlos V ou de Lus XIV, com auxlio dos vestgios que dele encontramos hoje no nosso direito.

    Um outro mtodo consiste em estudar as instituies dos povos que vivem actualmente num estado arcaico de organizao social e poltica, e que no conhecem ainda a escrita ou que, pelo menos, no a conheciam, na poca relativamente recente em que se comeou a estudar a sua estrutura social. Trata-se dos direitos arcaicos de certas etnias da Austrlia, da frica, da Amrica do Sul e do Sudeste Asitico {1). O mtodo comparativo apresenta no entanto grandes perigos; pois nada nos permite afirmar que os Romanos ou os Germanos, por exemplo, conheceram uma evoluo jurdica similar que se pode constatar na Austrlia ou em frica.

    Alm disso, os direitos arcaicos que ns podemos estudar hoje sofreram j numerosas transformaes pelo contacto com os direitos europeus. portanto quase impossvel encontrar ainda um direito primitivo, no estado puro.

    Apesar destas dificuldades, o estudo dos direitos dos povos sem escrita constitui ainda o melhor meio para nos darmos conta do que pode ser o direito dos povos da Europa na sua poca pr-histrica. Este estudo constitui um objecto dos trabalhos de etnologia jurdica que analisam os aspectos jurdicos das sociedades contemporneas ou antigas que no conheciam ainda a escrita

  • 33

    jurdicos dos povos sem escrita. Esta expresso no de modo algum adequada, pois numerosos povos conheceram uma longa evoluo da sua vida social e jurdica sem terem atingido o estado cultural da escrita; tal foi o caso, por exemplo, dos Maias e dos Incas na Amrica. A maior parte dos povos cuja vida social se pode hoje observar ou se pde observar no decurso do sculo XIX j no so primitivos. Emprega-se tambm a expresso direitos consuetudinrios (customary law) para designar estes sistemas jurdicos, porque o costume neles principal fonte do direito; mas veremos que o mesmo se passa em certas pocas da evoluo dos direitos na Europa, por exemplo dos sculos X a XII da nossa era. A expresso direitos arcaicos mais vasta que direitos primitivos porque ela permite cobrir sistemas sociais e jurdicos de nveis muito diferentes na evoluo geral do direito. Embora no a afastando de todo, preferimos-lhe a expresso direitos dos povos sem escrita, o que acentua o que distingue mais nitidamente este sistema jurdico de outros, ou seja, a ignorncia da escrita; mas no se pode perder de vista que o nvel da evoluo jurdica de certos povos que se servem da escrita pod ser menos desenvolvido do que o de certos povos sem escrita.

    2. Actualidade do estudo dos direitos dos povos sem escrita Colonizaes e descolonizaes

    O estudo dos sistemas jurdicos dos povos sem escrita no de resto limitado simples busca das origens do direito; ele apresenta um grande interesse actual, pois milhares de homens vivem ainda actualmente, na segunda metade do sculo XX, de acordo com direitos a que chamamos arcaicos ou primitivos. As civilizaes mais arcaicas continuam a ser as dos aborgenes da Austrlia ou da Nova Guin, dos povos da Papusia ou de Bornu, de certos povos ndios da Amaznia no Brasil. Noutros lugares, o direito dos povos indgenas atingiu um certo grau de evoluo que varia, de resto, de povo para povo. Na Indonsia, por exemplo, as populaes autctones, sobretudo as de Java e de Bali, possuam j antes da poca da colonizao holandesa um sistema jurdico relativamente desenvolvido que os Holandeses chamaram de adatrecht (direito ada t , adat-iaw).

    Os direitos dos povos sem escrita so portanto mais ou menos arcaicos ou, mais exactamente, mais ou menos desenvolvidos. assim que a maior parte dos direitos dos povos da frica Negra e de Madagascar conheceram uma longa evoluo que est longe de ter sido sempre progressiva; certas etnias conheceram no passado, segundo parece, sistemas jurdicos mais desenvolvidos do que aqueles que elas conhecem actualmente. O estado de evoluo dos direitos das etnias africanas, por exemplo, varia de uma etnia para outra. Certas populaes, nomeadamente na Nigria, na regio dos Grandes Lagos do centro de frica (o Buganda, por exemplo), na Zmbia (exemplo, os Lozi) conheceram uma organizao poltica muito prxima da do Estado

  • 34

    centralizado governado por um Rei assistido por funcionrios e governadores locais; noutros stios, um sistema de tipo feudal implantou-se e permaneceu durante muito tempo, por exemplo, no Ruanda e no Burundi; noutras regies, por fim, como seja o exemplo do Zaire e de Angola, existiam comunidades acfalas, quer dizer, sem chefe, sem organizao poltica e judiciria desenvolvida (3).

    No existe portanto um direito africano ou direito negro, mas um nmero muito elevado de direitos africanos, uns mais desenvolvidos do que outros.

    Estes direitos africanos, como os direitos de outros povos sem escrita, sofreram inevitavelmente contactos com direitos mais desenvolvidos, no apenas na seqncia da colonizao da frica, da Austrlia e de uma parte da sia pelos pases europeus dos sculos XIX e XX, mas tambm por outros colonizaes, muitas vezes antigas. Assim, o Norte e Este da frica Negra foram mais ou menos profundamente colonizados a partir do sculo IX pelos Muulmanos, cujo direito, como a lngua, influenciaram o direito e a lngua dos povos africanos; a Indonsia, a Malsia e as Filipinas sofreram tambm a influncia muulmana e, por outro lado, a do direito chins.

    A maior parte dos colonizadores, no entanto, deixou subsistir os sistemas jurdicos das populaes indgenas. E assim que nos pases coloniais, nos fins do sculo XIX e at aos meados do sculo XX, existiam geralmente dois sistemas jurdicos, um do tipo europeu (common law nas colnias inglesas e americanas, direitos romanistas nas outras colnias) para os no indgenas e, por vezes, para os indgenas evoludos, e outro do tipo arcaico para as populaes autctones. Este sistema de pluralismo jurdico no desapareceu inteiramente na seqncia da recente descolonizao. A verdade que certos novos pases, tais como a Indonsia, tentam recusar toda a influncia do sistema jurdico europeu, desenvolvendo o seu prprio direito. Outros pases, sobretudo na frica de lngua francesa (nomeadamente a Costa do Marfim), tentam impor um sistema jurdico de tipo europeu a toda a populao, contestando toda a autoridade dos direitos tradicionais. No fim do perodo colonial (1960-1975) Portugal tinha feito das suas colnias africanas provncias e tinha tentado integrar os diversos sistemas jurdicos. Mas, apesar destes esforos, o pluralismo jurdico est longe de ter desaparecido de facto l4\

    (3) J . VANDERLINDEN, Afrkan Law B ibliograpby B ibliographk de roit a frica in (1947-1966), Bruxelas 1972; A fncan P o lit i ca l Systems, sob a direco de M. FORTES e E. E. EVANS-PRITCHARD; K. M'BAYE, The African Conception of Law, in In tern a tion a l Eniyctopedia o f Comparative Law, vol. II. 1, Tbingen-La Haye 1975, pp. 138-158; A frican Systems o f K inship an d M arria ge , sob a direco de A. R. RADCLIFFE BROWN e D. FORDE, 2 .a ed ., 1962; trad. franc.: Systmes fam iliaux et matrimoniaux en A frique, 1953; D. C. BUXBAUM, Traditional an modem legai institutions in Asia and frica, Leida 1968; A. N. ALLOT, J u d ic ia l and I le ga l Systems in A frica, 2. ed., Londres 1970; T. O. ELIAS, The Nature o f A frkan Customary Law, 1956; trad. franc.: La nature du d ro it cou tum ier a fr ica in , Paris 1961; La rdaction des cuutumes dans le pass et dans te prsent, sob a direco de J . GILISSEN, 1962; La J u s t i c e en A frique noire, sob a direco de J . GILISSEN, 1969; J . VANDERLINDEN, Essai sur /es ju rid iction s de droit coutum ier en A friqu e C entra le, Bruxelas 1959; A. SOHER, Trait lmentaire de droit coutumier du Congo belge, 2.* ed ., 1954; A. DORSINFANG- -SMETS, Les peuples de la Republique dmocratique du Congo, du Rwanda et du Burundi, em Etbnologie rgionale (ed. J . POIRIER), t. I, 1972, pp. 566-661; J . MAQUET, Les civilisa tions noires, 2 .3 ed ., 1966, coleco Marabout Universit. Principais revistas europias e americanas: African Law Studus (Los Angeles), R nueil Penant, Revue ju rid iqu e et politique (Paris), Jou rn a l o f A frkan Law (Londres).

    Le P lurahsm e juridique, coiectnea de estudos publicada sob a direco de J . GILISSEN, Bruxelas 1971 (nomeadamente

  • 35

    3. Caracteres gerais dos direitos dos povos sem escrita

    a) So, por definio, direitos no escritos, pois trata-se do direito dos povos sem escrita. Os esforos de formulao de regras jurdicas abstractas so, neste caso, necessariamente muito limitados.

    b) Estes direitos so numerosos: cada comunidade tem o seu prprio costume pois ela vive isolada, quase sem contacto com outras comunidades; e os raros contactos com os vizinhos tm por vezes como origem a vingana e levam a guerras interclnicas ou intertribais. Cada comunidade vive dos seus prprios recursos, do que produzem os seus prprios membros, pla caa, pesca ou recolha de frutos selvagens ou naturais; o sistema de economia fechada, autrquica, quer dizer, sem trocas com outros grupos. A extenso das comunidades que tinham o seu direito prprio muito varivel: por vezes um cl, mais frequentemente uma etnia.

    c) Os direitos dos povos sem escrita so relativamente diversificados. H diferenas muitas vezes importantes, por vezes mnimas de um costume para o outro. Dito de outro modo, h numerosas dissemelhanas ao lado de numerosas parecenas. So sobretudo os observadores estrangeiros que sublinham as semelhanas porque eles no captam to facilmente como os autctones as diversidades locais; o que choca o europeu ou o americano so as diferenas fundamentais entre os direitos arcaicos dos sistemas jurdicos dos povos europeus e assim pem em evidncia alguns dos princpios considerados fundamentais dos direitos arcaicos: solidariedade familiar ou clnica, ausncia de propriedade imobiliria e de responsabilidade individual, etc.

    d) Nas sociedades arcaicas, o direito est ainda fortemente impregnado de religio, A distino entre regra religiosa e regra jurdica aqui muitas vezes difcil, porque o homem vive no temor constante dos poderes sobrenaturais. Estes tipos de sociedade so caracterizados pelo que se chama a sua indiferenciao, ou seja as diversas funes sociais que ns distinguimos nas sociedades evoludas religio, moral, direito, etc. esto ainda a confundidas. A influncia da religio sobre o direito manteve-se de resto em numerosos sistemas jurdicos at aos nossos dias, por exemplo, nos direitos muulmano e hindu. Mesmo na Europa Ocidental, a laicizao sistemtica do direito um fenmeno relativamente recente que data sobretudo do sculo XVI; basta lembrar a concepo teocrtica do poder, em que o rei era o representante de Deus na terra, ou o papel do Direito Cannico no domnio do casamento e do divrcio. Restam para alm disto algumas sobrevivnias de elementos

    o pluralism o jurdico no direito romano, na frica do Sul, na Etipia, no Mali, no direito muulmano, na U .R .S .S ., na China); In tegra tion o f cm tom ary la w a n d m odem leg a ! systems in frica, publicado pela Faculty of Law, Umversiry of Ife (N igria), Nova Iorque 197 1. A revista americana A frican Law S tum mudou o seu nome para 'Jou rna l o f Legal P luralism em 1981 (actualmente, publicada em G roningen, na Holanda).

  • 36

    religiosos nos sistemas mais evoludos, por exemplo o juramento que em certos pases ainda baseado na invocao da divindade.

    Por outro lado, exagerou-se muitas vezes a importncia da influncia religiosa sobre as origens do direito, sobretudo na seqncia dos escritos de Sumner Maine (Earlv lau' and cmtom, 1883) que ligou o nascimento de numerosas instituies jurdicas ao culto dos antepassados. Admite-se actualmente que muito frequentemente a evoluo dos direitos arcaicos se explica por factores diferentes dos religiosos.

    Mas no se pode negar que estes direitos sejam profundamente msticos e por conseqncia irracionais; assim, no domnio das provas de justia, recorre-se muitas vezes ao ordlio, quer dizer ao julgamento de Deus pela gua a ferver, o fogo, o veneno, ou pelo duelo, para fazer dizer aos poderes sobrenaturais quem tem razo.

    e) Os direitos dos povos sem escrita so direitos em nascimento: distingue-se ainda mal o que jurdico do que no jurdico. Numerosos juristas contestaram mesmo que os povos sem escrita possam ter um sistema jurdico porque eles no encontram a instituies tais como so definidas nos sistemas romanistas ou de common law, por exemplo a noo de justia, de regra de direito (rale o f law), de lei imperativa de responsabilidade individual. Marx e Engels consideram, sob influncia do pensamento de Hegel, que o direito est ligado ao Estado e afirmam que no h direito nos grupos sociais que no atingiram o estdio de organizao estatal.

    Mas, sob a influncia dos trabalhos dos etnlogos e dos socilogos, admite-se agora em geral que os costumes dos povos sem escrita tm um caracter jurdico porque existem a meios de constrangimento para assegurar o respeito das regras de comportamento. Admite-se assim que no existe uma noo universal e eterna de justia, podendo esta noo variar com o tempo e com o espao. Nos sistemas arcaicos de direito justo tudo aquilo que interessa para a manuteno da coeso do grupo social, e no o que tende para o respeito dos direitos individuais; da uma grande severidade em relao a todo o comportamento anti-social, quer dizer contrrio aos interesses do grupo, e, pelo contrrio, uma tendncia a procurar a conciliao para resolver todo o conflito no seio do grupo; a funo de julgar no consiste em resolver um litgio segundo regras pr-estabelecidas, mas em tentar obter o acordo das partes por concesses recprocas; donde, a importncia das negociaes que podem durar dias, e tambm a ausncia de qualquer noo de autoridade do caso julgado.

    Os etnlogos juristas distinguem no entanto uma fase de pr-direito antes da fase do nascimento do direito. O direito no apareceria seno com a organizaao de um poder poltico diferenciado do das hierarquias ligadas ao parentesco e capaz de assegurar a regulao social por um aparelho jurdico de normalizao, de preveno e de represso, (J. Poirier). Na fase de pr-direito, esta regulao no resulta seno da tendncia dos grupos sociais a conformarem-se com a tradio, a aderirem s maneiras de viver do gnpo pelo medo da reprovao social, da censura do grupo, e sobretudo

  • 37

    das foras sobrenaturais. A passagem do pr-direito ao direito corresponde geralmente passagem do comportamento inconsciente puramente reflexo ao comportamento consciente, reflectido, seno inteligente.

    4. Fontes de direito

    a) Em todos os direitos dos povos sem escrita, a fonte do direito quase exclusivamente o costume, ou seja a maneira tradicional de viver na comunidade, a conduta habitual e normal dos membros do grupo. por isso que se chama geralmente a estes direitos direitos consuetudinrios, em ingls customary law.

    A obedincia ao costume aqui assegurada pelo temor dos poderes sobrenaturais; por isso, direito e religio se misturam aqui. Mas o costume tambm respeitado, como na Idade Mdia e como hoje, pelo medo da opinio pblica, mais especialmente do desprezo do grupo no qual se vive. E tambm, em numerosos casos em que o grupo social conhece j uma certa organizao, por sanes impostas por aqueles que detm o poder; ser geralmente o chefe: chefe de famlia, chefe de cl, chefe de etnia; nas comunidades acfalas, pode ser o conjunto dos homens do grupo ou os de uma certa classe etria, geralmente os ancios. As penas infligidas podem ser a morte, as penas corporais, as sanes sobrenaturais; ou ainda uma das sanes mais graves nas sociedades arcaicas, o banimento, ou seja a expulso fora do grupo, que para o expulsado leva perda da proteco do grupo. Um homem isolado na floresta, na savana ou no deserto, muitas vezes um homem morto.

    b) O costume no , no entanto, a nica fonte dos direitos dos povos sem escrita. Nos grupos sociais relativamente evoludos, acontece que aqueles que detm o poder impem regras de comportamento, dando ordens de carcter geral e permanente. Trata-se ento de verdadeiras leis, no sentido jurdico e moderno do termo; mas so leis no escritas, pois elas so enunciadas em grupos sociais que no conhecem a escrita. Estas leis, enunciadas pelo chefe ou por grupos de chefes, os ancios do cl ou da etriia, so repetidas em intervalos mais ou menos regulares para assegurar o seu conhecimento e respeito. Excepcionalmente, os chefes podem enunci-las numa longa exposio de regras jurdicas, por exemplo os Kabary (discursos) dos soberanos do reino de Imarina, em Madagscar, entre 1787 e 1810, aproximadamente, muitas vezes retomados desde ento e, finalmente, no Cdigo dos 305 artigos da rainha Ranavalona II, de 1881, isto , antes da colonizao francesa.

    c) O precedente judicirio pode ser tambm uma fonte criadora de regras jurdicas nos direitos dos povos sem escrita; os que julgam, sejam eles o chefe ou os ancios, tm a tendncia, voluntria ou involuntariamente, para aplicar aos litgios solues dadas precedentemente a conflitos do mesmo tipo.

  • 38

    d) Por fim, os provrbios e adgios so um modo freqente de expresso do costume, ainda que sejam dificilmente acessveis aos profanos. No todavia possvel ignor-los nos sistemas orais em que a memria colectiva, sob esta forma ou outras (poemas, lendas, etc.) desempenha um papel primordial.

    5. Crtica da concepo evolucionista e progressivaNo decurso do sculo XIX, sob a influncia das teorias de Auguste Comte, de

    Charles Darwin, de L. H. Morgan, de F. Engels e de outros, os etnlogos construram um sistema aparentemente lgico para explicar as origens do direito por uma evoluo progressiva passando necessariamente pelas unies de grupos, o matriarcado, o pat ri arcado, o cl, a tribo.

    Supunha-se, como ponto de partida, o nada social, ou seja uma poca em que os homens no teriam vivido em sociedade e em que noes tais como famlia e cl no teriam sido conhecidas. Procurava-se no modo de vida de certos animais, sobretudo nos macacos, precedentes para os comportamentos sociais dos homens.

    O primeiro estdio da evoluo social teria sido atingido pela formao de laos entre grupos dos dois sexos; estas unies de grupos teriam sido temporrias. Pretendia-se ter encontrado vestgios delas em certos povos da Austrlia.

    O segundo estdio seria o matriarcado, em que a me exerce um certo poder sobre os seus filhos. O casamento.no existia ainda, o pai um indivduo de passagem; no existiria outro lao jurdico seno aquele que une a me aos seus filhos e, eventualmente, aos seus irmos e irms uterinos.

    Chegar-se-ia ao estdio do patriarcado quando apareceu um lao jurdico entre o pai, a me e os seus filhos. Este lao resultaria da tomada de conscincia pelo pai do facto que a criana que vai nascer da sua unio com uma mulher determinada igualmente o seu filho. Neste estdio, a instituio do casamento julga-se adquirida ao mesmo tempo que a do poder marital e paternal; como corolrio da autoridade do marido sobre a mulher, aparece o repdio da mulher pelo seu marido, primeira forma de divrcio.

    O estdio seguinte seria o do cl, constitudo por um grupo de famlias que tinham um antepassado comum e praticavam o culto desse antepassado. Enfim, a tribo teria nascido de um agrupamento ocasional de cls.

    Este esquema demasiadamente simples e demasiadamente lgico para ser verdadeiro. Os dados fornecidos pela etnologia jurdica no permitem confirmar a tese evolucionista; no se encontraram sociedades primitivas nas quais os diversos estdios tivessem existido. Alm disso, no de modo algum certo que o patriarcado tenha sucedido ao matriarcado; a prpria existncia de um regime matriarcal foi posta em dvida. A existncia de tribos contestada; j no se fala seno em cls e etnias (5)

    A etnologia tende actualmente para querer explicar tudo pelo sincronismo; nao haveria evoluo das sociedades sem escrita, nem evoluo das suas instituies e do seu direito, mas estruturas diferentes, existindo ao mesmo tempo. A explicao

  • 39

    6. Sociedades matrilineares e sociedades patrilineares

    Renunciando a formular hipteses sobre as formas mais arcaicas da vida em comunidade, a etnologia jurdica dedica-se actualmente a analisar os diferentes tipos de estrutura familiar e social que se podem reconstituir, sobretudo os tipos matrilineares e patrilineares.

    a) O casamento uma das instituies mais arcaicas e mais permanentes. a unio mais ou menos estvel de duas pessoas de sexo diferente e, geralmente no quadro da sociedade sem escrita, de famlias diferentes. A proibio do incesto , com efeito, muito antiga e relativamente geral; interdito desposar a sua me, a sua irm, a sua filha: elas so tabu.

    C. Levy-Strauss dir que , melhor que uma regra de interdio, uma regra que obriga a dar a me, a irm e a filha; mas isto no explica a regra nas sociedades matrilineares. H portanto uma exogamia de famlia, ou de cl, mas muitas ve2es uma endogamia de etnia, de raa ou de religio (6).

    A poligamia freqente; a poiandria mais rara. A estrutura das famlias matrilineares desde logo muito complexa.

    b) Nas sociedades matrilineares a famlia est centrada sobre a linhagem me filha neta. Fazem parte da mesma famlia: a me, os seus filhos, os filhos das suas filhas, os filhos das netas das suas filhas, etc.. Os homens fazem parte da famlia da sua me; eles no entraro, em geral, na famlia de sua mulher e no exercero a qualquer autoridade. Pelo contrrio, na famlia de sua me que um deles exercer a autoridade de chefe; ser muitas vezes o irmo da me, portanto o tio dos filhos da me. E muito raro que a me, ela prpria, exera qualquer autoridade; h poucos exemplos de matriarcado.

    A famlia matrilinear muitas vezes, mas no necessariamente, matrilocal (7); a me a o centro do lar, ela vive em casa dela com os filhos e para a que vem habitar o seu marido; do mesmo modo, os maridos das suas filhas vm habitar em casa dela, enquanto que os filhos casados vo habitar em casa de sua mulher ou em casa da me dela

  • 40

    Parentesco matrilinear

    (o )

    A=pO A

    / '& a*=Q a = 0

    & ' # / i

    yh) - O a= o

    ,' ) /A\ // / / / /

    Parentesco patrilinear

    0 = 0

    a =o a =,o ;0 \ >;-

    A=0 h-p AyO \\

    a= o {\I \ V > s . \

    O ' mulher : homem = : unio, casamento

    c) O sistema patrilinear est centrado sobre a linhagem pai filho neto. Fazem parte da famlia, o pai, os seus filhos, os filhos dos seus filhos, os filhos dos filhos dos seus filhos, etc. As filhas e as netas fazem tambm parte dela enquanto no so casadas; pelo seu casamento, elas deixam (geralmente) o grupo familiar do seu pai para entrarem no do seu marido. O chefe de famlia o pai; por exemplo, em direito romano, o pater fam ilias; ele exerce a a autoridade, geralmente um poder muito extenso, indo at ao direito de vida e de morte (cf. in fra , 3-a parte, I, G: Estatuto dos filhos).

    Este sistema do patriarcado (pater + pxr;: pai + poder) muitas vezes acompanhado pelo patrilocalismo; a habitao do pai o centro de vida familiar; a sua mulher ou as silas mulheres (h muitas vezes poligamia), vivem em casa dele, do mesmo modo que as mulheres dos seus filhos ou mesmo dos netos.

    O sistema patrilinear e patrilocal o dos Gregos e dos Romanos; continuar a ser o dos direitos da Europa Ocidental medieval e moderna. Noutras zonas, na

  • antiguidade pr-helnica, como hoje na frica e na Austrlia, h tantos sistemas matrilineares como sistemas patrilineares
  • 42

    7. O cl

    Qualquer que seja a estrutura da linhagem, chega-se quase sempre formao de grupos relativamente extensos, os cls, Como a lei do mais forte predomina nas sociedades arcaicas, os membros do mesmo cl tero tendncia a reforar os laos que os unem de maneira a poderem fazer frente aos inimigos comuns. Estes laos vo subsistir para alm da pessoa fsica dos indivduos, mesmo depois da morte. Formam-se assim, aps algumas geraes, grupos nos quais o nico lao o facto de se descender de um antepassdo comum, homem ou mulher. A unidade social muitas vezes reforada pelo factor religioso: o culto dos antepassados. O cl encontra-se na origem da maior parte das civilizaes: yvo grego, gens romana, sippe germmica, douar rabe, etc.

    O cl tem geralmente um nome; tem mitos e rituais prprios, interdies alimentares. A unio dos membros do cl tomar muitas vezes um carcter simblico: aqueles que adoptam o mesmo totem (animal, vegetal, um objecto qualquer) formam o mesmo grupo social, por exemplo, certos Peles-Vermelhas da Amrica do Norte.

    O desenvolvimento e mesmo a sobrevivncia do cl dependem da coeso dos seus membros. Todos esto ligados entre si por uma solidariedade tanto activa como passiva. Se se faz mal a algum membro do cl, o cl todo inteiro que o deve vingar; se um membro de um cl faz mal a algum terceiro, em relao a qualquer membro do cl que a vingana pode ser exercida. O indivduo no tem nenhum direito; enquanto membro do cl que ele age, que ele existe. O cl forma uma comunidade de pessoas e tambm de bens.

    No estdio clnico aparece j um grande nmero de instituies de direito privado: o casamento, a sucesso da funo no chefe do cl, a adop sob a forma de uma filiao fictcia, a emancipao sob a forma da expulso dos elementos indesejveis para fora do cl.

    8. A etnia

    A etnologia a cincia das etnias ou povos. Na organizao dos povos sem escrita, a etnia constitui a estrutura sociopoltica superior, agrupando um nmero indeterminado de cls. A etnia uma comunidade que tem um nome comum, uma memria comum, uma conscincia de grupo, expresso de uma certa comunidade cultural. A etnia tem tambm muitas vezes, mas no sempre uma lngua comum, um territrio, costumes prprios; estes critrios objectivos da noo de etnia so no entanto menos constantes que os critrios mais subjectivos da conscincia de grupo, de aspiraes comuns.

    deste modo muito difcil determinar o nmero de etnias que existiram ou que existem ainda. Os Francos, os Borgndios, os Visigodos eram etnias germnicas; os Kongo, os Mongo, os Zande, os Lunda, so etnias da frica Central. Cada uma delas pode constituir, num momento dado, o agrupamento de vrias etnias pr-existentes,

  • 43

    ou subdividir-se e reagrupar-se em etnias mais pequenas ou maiores; isto que constitui a dinmica do grupo sociopoltico, dito de outro modo, a histria das etnias. O nmero de etnias no mundo est neste momento avaliado em 12 000 para uns, 3000 para outros.

    A etnia identifica-se por vezes com a tribo, enquanto federao de cls; mas a tribo uma noo cuja existncia certos estudos etnolgicos recentes contestam; ela no teria um carcter especfico. Por outro lado, a etnia pode identificar-se com o Estado, quando a sua estrutura poltica suficientemente desenvolvida e soberana

  • 44

    ultrapassa o seu corpo fsico; tudo o que faz parte do seu corpo e que dele foi separado fisicamente continua a identificar-se com ele; a prtica mgica pode exercer-se tanto sobre cabelos cortados, unhas, excrementos, como sobre a prpria pessoa.

    Do mesmo modo, tudo o que se vai identificar com o corpo pertence-lhe j; por exemplo, o. fruto que eie colheu para comer e, por extenso, a arma que ele fabricou para se defender, ou a canoa de que se serve para a pesca.

    Assim, as formas de propriedade pessoal apresentam-se como pertenas sob o aspecto da participao mstica das coisas no ser humano. Por outro lado, esta pertena no diz respeito ao indivduo mas linhagem, ou mesmo ao cl de que faz parte; pois tudo entra na comunidade de linhagem ou clnica. Esta pertena tem um carcter sagrado; ela inviolvel, sob pena de sanes sobrenaturais; os bens so em princpio inalienveis. Basta, por vezes, marcar com um sinal exterior (por exemplo, um trao, um pau) a sua inteno de se apropriar de uma coisa para a tornar tabu, ou seja interdita aos outros.

    Com a morte do chefe do cl, o que lhe pertence muitas vezes enterrado ou incinerado com ele, em virtude da lei da participao. Mas as necessidades econmicas obrigam muitas vezes a deixar subsistir certos objectos (armas, reservas de alimentos, etc .) em favor dos sobreviventes, fazendo assim aparecer as primeiras formas de sucesso de bens.

    Os bens de consumo corrente, sobretudo os alimentos, parece terem sido alienados relativamente cedo, mas sobretudo sob a forma de troca, uma vez que a moeda ainda no existia. Certas formas entre as mais curiosas so o comrcio dito mudo e o potlatch.

    No comrcio mudo, um grupo depe num dado lugar, em que sabe que outro grupo passar, os bens que deseja trocar, e depois abandona o lugar; o outro grupo examina o que lhe oferecido, pe outras mercadorias ao lado, e depois retira-se; o primeiro grupo volta, examina a mercadoria oferecida em contrapartida, e, ou a leva e a operao de troca est terminada ou a deixa como estava; neste caso, o outro grupo volta e, ou leva o que tinha oferecido e todo o processo est terminado ou ento oferece outra coisa, e assim sucessivamente.

    O potlatch , conhecido sobretudo dos ndios da Amrica, mas tambm dos Berberes, e sob o nome de Kula entre os Polinsios, a ddiva pblica e ostentatria de bens, de riquezas, ou at escravos, por um grupo a outro. uma espcie de desafio, porque o outro no pode recusar; ele deve reagir aceitando, e entregando ao primeiro grupo bens do valor pelo menos igual. A operao est assim impregnada de um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo tempo, de uma certa ostentao de poder sem obrigar ao combate. O potlach uma vez dessacralizado, parece estar na origem de relaes econmicas mais vastas.

    b) A propriedade mobiliria precede de longe a propriedade imobiliria; mais

  • 45

    exactamente, as formas de participao mstica de coisas mobilirias apareceram geralmente muito antes das que dizem respeito ao solo {m.

    O solo sagrado, divinizado; ele a sede de foras sobrenaturais. Um lao mstico, por vezes materializado por um altar, existe entre os homens e os espritos da terra, e tambm com os mortos, os antepassados enterrados neste solo. O mediador entre o grupo e estas foras muitas vezes necessrio; o chefe da terra, que pode ser o chefe do cl, mas pode tambm ser um outro homem que se identifique com a terra.

    Assim, cr-se muitas vezes que por morte do chefe da terra, esta se torna estril; preciso fazer um sacrifcio para que o novo chefe seja aceite pelas divindades. O chefe, de resto, no deve ser considerado como o proprietrio do solo; posse da comunidade, as parcelas so repartidas pelo chefe entre as famlias, geralmente por um curto lapso de tempo. No existe apropriao por prescrio aquisitiva; qualquer que seja a durao da deteno de uma parcela, ela deve sempre retornar comunidade. No h terras vagas; o solo, cultivado ou no, pertence ao chefe da terra e, por ele, comunidade. A terra evidentemente inalienvel, sobretudo a estrangeiros; os Europeus colonizadores, que acreditaram poder adquirir as terras atravs do pagamento de uma certa soma, perturbaram gravemente as relaes com as foras sobrenaturais.

    Certas etnias permaneceram nmadas; outras sedentarizaram-se mais ou menos cedo na sua histria. O nomadismo favorece o desenvolvimento da propriedade comum, porque o rebanho (renas, bois, cavalos, carneiros, camelos) considerado como pertencendo a todos; do mesmo modo, os territrios em que o grupo faz pastar o seu rebanho, e sobretudo os poos de gua, so considerados como pertena temporria do grupo; pertena, pois o grupo defende-Ios- contra terceiros, mas temporria porque ele os abandonar quando as pastagens se esgotarem.

    Na seqncia da sedentarizao, a colheita d lugar agricultura; desde ento, a tomada de posse comum do solo generaliza-se e torna-se mais permanente. Uma vez que os cls sedentrios formam uma aldeia, a comunidade alde substitui a comunidade clnica que no entanto no desaparece; a solidariedade alde aparece ao lado da solidariedade clnica.

    Os cls no interior das etnias, as famlias no interior dos cls fixar-se-o cada um s suas terras, dando assim nascimento distino entre terras comuns cujo uso pertence comunidade clnica ou tnica (florestas, pastos, charnecas, etc.) e s parcelas cultivadas pelas famlias. Assim aparece a noo de propriedade familiar, depois individual do solo, e ao mesmo tempo a de sucesso imobiliria e de alienabilidade dos imveis (H>.

    M. BACHELET, Systmes fon ciers et reformes a gra ires en A frique noire, Paris 1968; D. BIEBUYCK (ed.), African A gra rian System s, Londres 1963; R. RARIJAONA, Le concept d ep roprit en droit fon cier M adagascar, Paris 1967; R. VERDIER, Essai d ethn o-socio lo g ie ju r id iq u e des rapports fon ciers dans la pense ngro-a frica ine, thse, Paris 1960; V. GASSE, Le rgim e fon cier M adagascar et en A frique, Paris 1959; do mesmo, Les regimes fonciers africains et malgax. Evolution depuis 1'indpendana, Paris 1971. G. MALENGREAU, Les d ro its fo n c ie r s coutum iers chez les indignes du Congo belge, Bruxelas 1947.

    V. tam bm , adiante, p. 48 (A Propriedade). Bibliografia em Les communaus rurales, 1 .* parte: Socits sans cr itu r e,

  • 46

    10. Classes sociais: ricos e pobres, livres e no livres

    A apropriao do solo leva a desigualdades sociais e econmicas. Em princpio, o regime clnico igualitrio igualitrio sobretudo pela ausncia de riquezas mas a fixao ao solo provoca desigualdades de riqueza devidas nomeadamente s partilhas sucessrias, s diferenas de fertilidade, a acidentes meteorolgicos, enfim, ao entusiasmo no trabalho.

    Estas desigualdades econmicas levam a diferenas mais ou menos considerveis de produo de um cl para outro, duma famlia para outra. Segue-se o aparecimento de ricos e pobres e, por conseqncia, de classes sociais.

    Estas classes vo diferenciar-se fortemente medida que os ricos se tornam mais ricos e os pobres mais pobres; porque muito frequentemente o pobre, obrigado a procurar meios de sobrevivncia, dever pedir emprestado ao rico e pr os seus bens e a sua pessoa em penhor, o que ter conseqncias graves no caso de no execuo do contrato. Encontrar-nos-emos, desde ento, em face de um novo tipo de servido, a distinguir da servido dos prisioneiros de guerra, a escravatura econmica, nascida da no execuo de um contrato de emprstimo.

    Assim aparecem classes sociais cada vez mais distintas e uma hierarquizao da sociedade, hierarquizao que se vai complicando medida que aparecem novas classes entre a dos livres e a dos no livres. Chega-se assim a uma sociedade fortemente estruturada, geralmente de tipo feudal, piramidal, tendo sua cabea um chefe, abaixo do chefe os vassalos, depois os vassalos dos vassalos e assim seguidamente, finalmente os servos e os escravos. H numerosos exemplos de sociedades de tipo feudal, nomeadamente no centro da frica negra e na Indonsia, e tambm na histria da antiguidade pr-helnica, na da ndia, da China e do Japo (no sculo XVIII) e, enfim, na Europa do sculo X ao sculo XII n5).

    11. Aparecimento de cidades e de direitos urbanos

    Em certas sociedades arcaicas ou feudais aparecem cidades. Elas surgem de necessidades econmicas em resultado do desenvolvimento da economia de troca, do facto de os comerciantes transportarem os gneros, abundantes numa regio, para regies onde eles so raros. Grupos de comerciantes instalamLse nos lugares em que encontram uma proteco suficiente e uma localizao geogrfica que favorea a instalao de um mercado ou de um porto.

    Recuei/s d e la S ocitJean Bodin, t. 40, Paris 1983 (nomeadamente sobre as comunidades na frica negra, em Madagascar, na Lapnia, nos Andes peruanos, no Mxico anterior a Corts.

    Estudos comparativos sobre estas sociedades feudais em Lei liem de vassa lit et les immunits, Ruueits d e la Sot J ea n B ond in , r. II, 2. ed ., Bruxelas 1958; em Feudalism, sob a direco de Rushton Coulbom, Princeton (N .J .) , 1956; em F. JOON DES LONGRAIS, L Eu et l'0uest, Institutiom du Japon e de VOccident compares, Tquio-Paris 1958.

  • 47

    As cidades aparecem assim na Europa feudal dos sculos XI e XII, bem como em Africa antes da colonizao europeia e tambm na antiguidade. Encontramo-las no 4. milnio antes de Cristo em trs grandes centros geogrficos, na origem das grandes civilizaes egpcia, mesopotmica e hindu:

    o delta do Nilo, em que aparecem cidades como Busiris, Letpolis, Sas, Bouto, e mesmo uma cidade santa, Helipolis;

    a bacia do Tigre -e do Eufrates, com Ur, Lagash, Eridu; a bacia do Indo, com Harappa, Amri e Mohenjo-Daro.

    Estas cidades antigas so j relativamente desenvolvidas; as cidades do Indo, por exemplo, tinham casas em andares, um sistema de esgotos, estabelecimentos de banhos pblicos. Elas so formadas por uma nova classe social, os comerciantes, que no tardam a entrar em conflito com os elementos da hierarquia feudal, sobretudo fundiria.A velha solidariedade tnica e clnica desagrega-se nas cidades, ao mesmo tempo que anobreza feudal; para os comerciantes, os bens mveis substituem os imveis na hierarquia dos valores econmicos. A propriedade imobiliria parcelada. As cidades tm dirigentes assistidos por funcionrios retribudos. No Egipto, certas cidades do 4. milnio so dirigidas por uma autoridade que actua em colgio, o Colgio dos dez homens, que pode ser comparado aos escabinos das cidades flamengas da Idade Mdia. A fiscadade, a escrita e o calendrio aparecem a, do mesmo modo que o estado civil, nomeadamen