Joly, Jean Pierre Vernant, 2009

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Jean-Pierre Vernant 1  Fábio Duarte Joly 2  No Brasil, os estudos clássicos, em geral, e a História Antiga, em particular, têm uma história acadêmica relativamente recente, se considerarmos que foi a partir da segunda metade do século XX que se iniciou a formação e consolidação de programas de pós-graduação nas universidades brasileiras – em que pesem desníveis regionais –, gerando investigações variadas acerca das sociedades do Antigo Oriente Próximo, Grécia e Roma. Mais recentemente se observa uma abertura do mercado editorial para a publicação de livros, oriundos de pesquisas de mestrado e doutorado, que versam sobre a Antiguidade. Contudo, ainda é inegável uma preponderância de títulos estrangeiros, sobretudo de estudiosos franceses, ingleses e norte-americanos, traduzidos para o português. No caso da história grega, por exemplo, quem se dispuser a realizar uma pesquisa bibliográfica, certamente deparar-se-á com o nome de Jean-Pierre Vernant. Pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de 1948 a 1958, quando entrou para a École Pratique des Hautes Études, Vernant foi eleito para o Collège de France, em 1974, onde se aposentou em 1984, embora depois continuasse atuando como professor honorário. Faleceu em 9 de janeiro de 2007, aos 93 anos, deixando uma vasta obra, da qual limitaremos a mencionar os livros que encontraram traduções brasileiras e respectivos anos de publicação na França:  As origens do  pensamento grego (1962);  Mito e pensamento entre os gregos .  Estudos de psicologia histórica (1965);  Mito e tragédia na Grécia antiga (1972, volume 1), cujo segundo volume (1986) tem Pierre Vidal-Naquet como co-autor;  Mito e sociedade na Grécia antiga (1974);  Métis – as astúcias da inteligência , com Marcel Detienne (1974);  A morte nos olhos – a figuração do outro na Grécia antiga (1985); Trabalho e escravidão na Grécia antiga (1988), com Vidal-Naquet;  Mito e religião na Grécia antiga (1990);  Entre mito e política (1996); e O universo, os deuses, os homens (1999). Em tradução portuguesa, há ainda o volume intitulado O homem grego (1991), organizado por Vernant para uma coleção italiana. 1 Publicado em LOPES, M. A.; MUNHOZ, S. J.. (Org.).  Historiadores de nosso tempo . São Paulo: Alameda, 2010, p. 173-192. 2 Professor de História Antiga na Universidade Federal de Ouro Preto e membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (LEIR). 1 1

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Jean-Pierre Vernant1

 

Fábio Duarte Joly2

 No Brasil, os estudos clássicos, em geral, e a História Antiga, em particular, têm

uma história acadêmica relativamente recente, se considerarmos que foi a partir da

segunda metade do século XX que se iniciou a formação e consolidação de programas

de pós-graduação nas universidades brasileiras – em que pesem desníveis regionais –,

gerando investigações variadas acerca das sociedades do Antigo Oriente Próximo,

Grécia e Roma. Mais recentemente se observa uma abertura do mercado editorial para a

publicação de livros, oriundos de pesquisas de mestrado e doutorado, que versam sobrea Antiguidade. Contudo, ainda é inegável uma preponderância de títulos estrangeiros,

sobretudo de estudiosos franceses, ingleses e norte-americanos, traduzidos para o

português. No caso da história grega, por exemplo, quem se dispuser a realizar uma

pesquisa bibliográfica, certamente deparar-se-á com o nome de Jean-Pierre Vernant.

Pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de 1948 a

1958, quando entrou para a École Pratique des Hautes Études, Vernant foi eleito para o

Collège de France, em 1974, onde se aposentou em 1984, embora depois continuasseatuando como professor honorário. Faleceu em 9 de janeiro de 2007, aos 93 anos,

deixando uma vasta obra, da qual limitaremos a mencionar os livros que encontraram

traduções brasileiras e respectivos anos de publicação na França:   As origens do

  pensamento grego (1962);   Mito e pensamento entre os gregos.  Estudos de psicologia

histórica (1965);   Mito e tragédia na Grécia antiga (1972, volume 1), cujo segundo

volume (1986) tem Pierre Vidal-Naquet como co-autor;   Mito e sociedade na Grécia

antiga (1974);   Métis – as astúcias da inteligência, com Marcel Detienne (1974);  A

morte nos olhos – a figuração do outro na Grécia antiga (1985); Trabalho e escravidão

na Grécia antiga (1988), com Vidal-Naquet; Mito e religião na Grécia antiga (1990);

 Entre mito e política (1996); e O universo, os deuses, os homens (1999). Em tradução

portuguesa, há ainda o volume intitulado O homem grego (1991), organizado por

Vernant para uma coleção italiana.

1 Publicado em LOPES, M. A.; MUNHOZ, S. J.. (Org.).   Historiadores de nosso tempo. São Paulo:

Alameda, 2010, p. 173-192.2 Professor de História Antiga na Universidade Federal de Ouro Preto e membro do Laboratório deEstudos sobre o Império Romano (LEIR).

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Esta pequena amostra revela os três principais temas que percorrem sua

produção intelectual: a religião, o pensamento e a política. Neste artigo pretendo me

deter primordialmente no lugar da política na obra vernantiana, visto que esse assunto

parece estar no centro de avaliações da contribuição desse helenista para os estudos

gregos, ao se indagarem sobre a pertinência do “primado da política” como eixo

estruturante de sua obra. Esse aspecto é apenas devidamente apreciado, a meu ver, caso

se tenha em mente como Vernant pensava as possibilidades de ação política no mundo

contemporâneo. Mas, antes de chegar a esse ponto, convém iniciar com algumas

considerações sobre o modo como concebia o trabalho científico, em termos

acadêmicos e metodológicos.

Há que se notar, em primeiro lugar, que seus livros, em geral, reúnem ensaios –

que alguns resenhistas qualificam até de informais por seu estilo3 – com um

determinado tema como denominador comum. Essa “informalidade” do ensaio, como

gênero eleito para a transmissão de suas idéias, certamente coadunava-se com sua

preocupação em atingir um público mais amplo, para além da Academia. Nesse sentido,

não é casual que seus livros sejam largamente traduzidos no Brasil, ao lado de

historiadores como seu compatriota e companheiro de escritos, Pierre Vidal-Naquet

(1930-2006), e o norte-americano Moses I. Finley (1912-1986). Todos eles, à sua

maneira, foram, nas palavras de Miguel Palmeira, “emblemáticos por anteciparem a

emergência de um perfil novo de classicistas que ocupariam o topo da escala de

prestígio dos Estudos Clássicos”. Tais pesquisadores destacaram-se ao “falar para fora

do círculo de especialistas e assim se tornarem como que porta-vozes da História Antiga

para letrados não-especialistas da Europa e dos EUA”.4

De fato, Vernant prefere partir do presente para o passado, num movimento

enunciado de forma explícita, como na introdução a  Mito e religião na Grécia antiga,

quando afirma que “no ‘retorno do religioso’ com que cada um hoje se surpreende, para

regozijar-se ou para deplorá-lo, o politeísmo dos gregos não tem lugar. (...) Do

3 Por exemplo, ao resenhar as edições norte americanas de  Mito e Tragédia e  Mito e Sociedade, JamesRedfield observou que: “Os ensaios de Vernant parecem mais aspectos de uma meditação contínua; elessão conformados não tanto por um método ou conjunto de conceitos, mas também por sua personalidade.Seu ponto forte, desde   Les origines, tem sido o ensaio informal, um pouco divagador, em que nosapresenta como vê a realidade diante de si; ele não reúne evidências para provar algo, mas cita o materiala fim de ilustrar suas idéias. Não há pontos de partida ou de chegada claros”. REDFIELD, James. J.-P.Vernant: Structure and History (Review article). History of Religions, 31, 1, 1991, p. 70-71.4 PALMEIRA, Miguel Soares. A nova “economia antiga”:  notas sobre a gênese de um modelo. In:PIRES, Francisco Murari & SUANO, Marlene (Org.). Antigos e Modernos: diálogos sobre a (escrita da)

 História. São Paulo: Alameda, 2009, p. 162 e 166.

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paganismo ao mundo contemporâneo, foi o próprio estatuto da religião, seu papel, suas

funções que mudaram, ao mesmo tempo em que seu lugar no indivíduo e no grupo”.5 

Daí que, ao optar por um ensaio, evitava “discussões entre especialistas” ou adentrar

numa “controvérsia erudita”. Sua ambição era “propor uma chave de leitura para

compreender a religião grega”.6 Na construção dessas chaves de leitura entram não

apenas um domínio da bibliografia especializada e erudita – que ele de modo algum

descartava –, mas sobretudo o arsenal teórico das Ciências Humanas e Sociais, como a

Antropologia, a Sociologia, a Psicologia Histórica etc., e, também, a colaboração de

outros pesquisadores, uma segunda característica marcante de sua produção.

Pierre Vidal-Naquet aparece nos livros de Vernant como o companheiro mais

assíduo, mas o próprio Vernant fez questão de apresentar sua obra como produto de um

grupo. Em discurso pronunciado em 18 de dezembro de 1984, no CNRS, por ocasião do

recebimento de medalha de ouro, frisou esse ponto, ao rememorar sua trajetória:

Fui pesquisador por dez anos. Trabalhava sozinho em bibliotecas, lendotodos os textos gregos que podia para tentar me tornar um helenista. (...)Depois dos anos sessenta, tudo mudou: não havia mais um Vernantisolado; havia Vernant e seu grupo, a equipe Vernant, que alguns, noexterior, chamaram de escola de Paris (...) Nem minha própria obra, nemminha vida, nem minha pessoa podem ser separados da equipe.7

  Em outro texto, o autor assevera da seguinte maneira como enxergava sua

posição de liderança acadêmica (a qual, diga-se de passagem, lembra o cerne de sua

definição da  polis grega – que veremos mais adiante –, em que reina a igualdade sem

descartar as diferenças entre os indivíduos):

No Centro Louis Gernet, grupo de pesquisas que fundei em 1964 e que dirigipor vinte anos, tratava-se de criar uma comunidade cuja hierarquia não fossenem imposta nem institucionalizada fora da própria vida do grupo. Foi o que

sempre tentei fazer com as pessoas que trabalharam comigo. Eu era o maisvelho, o fundador do grupo; muitos daqueles que dele participavam haviam sidomeus alunos, mas eu nunca lhes impus nada, acredito, porque sempre osconsiderei como meus iguais. E é porque eram meus iguais que eram diferentes

5 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. de Constança Marcondes César.Campinas: Papirus, 1992, p. 9.6  Idem, p. 17.7 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. Trad. de Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 2001, p.48-49. Neste livro Vernant recolhe vários textos que permitem uma visualização de sua trajetória políticae intelectual. Daí suas recorrentes citações neste artigo por ser uma fonte obrigatória para o estudo doperfil desse intelectual. Para um estudo geral sobre a obra de Vernant, o leitor pode também consultar

BELEBONI, Renata Cardoso. A originalidade do olhar de Jean-Pierre Vernant sobre a Grécia: diálogos,inovações e atualidade. Dissertação de Mestrado, IFCS-Unicamp, 2001, 150p., disponível on-line nobanco de dissertações e teses da Unicamp.

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e que tinham o direito não só de me contradizer, mas até mesmo de trilharcaminhos completamente divergentes.8

 Incorporado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e

associado ao CNRS, o Centro de Pesquisas Comparadas sobre as Sociedades Antigas,

que depois passou a se chamar Centro Louis Gernet, representou, para Vernant, o lócus

institucional de uma prática de pesquisa que ele concebia como diferenciada, difícil de

ser enquadrada nas fronteiras tradicionalmente estabelecidas nas Ciências Humanas,

pois requeria “a união em um todo das ciências sociais e das ciências humanas, o

estabelecimento de passagens entre setores diferentes, a criação de estruturas

horizontais que recortam todo o campo dos diferentes saberes para recentrá-los em

torno de um mesmo tema”.9 Com esse objetivo, tal Centro reunia, inicialmente, também

especialistas em Roma, China, Antigo Oriente Próximo, Egito e África. Seu método é

assim exposto:

Examinávamos, a partir de cada sociedade que estudávamos, os diversosaspectos que o religioso, o poder, a realeza, a guerra, a vida agrícola, o trabalho,a economia podiam revestir. Assim, cada um de nós era levado não só ainterrogar-se sobre o modo como esses diversos planos se articulavam uns aosoutros no seio de uma mesma cultura, como também a questionar a pertinênciadessas categorias, que nos parecem óbvias, mas que se tornam problemáticas

quando são aplicadas a civilizações historicamente distantes da nossa.10

 

Como se depreende dessa passagem, a idéia não era tanto comparar as

sociedades antigas entre si, mas de compreender as estruturas econômicas, religiosas e

políticas de cada sociedade à luz de uma crítica das categorias modernas disponíveis

para sua interpretação. O próprio Vernant, em sua obra, não se detém num

comparativismo com outras sociedades antigas. Sua atenção recai na denominada

“Grécia antiga”, em especial nos temas da política e da religião, desdobramento da

relação entre mito e razão, se bem que ambos analisados tendo como pano de fundo sua

percepção do mundo contemporâneo: a  polis grega de Jean-Pierre Vernant é

simultaneamente abordada em sua peculiaridade, mas sem perder o horizonte de sua

contemporaneidade. Para compreender essa perspectiva analítica é preciso que nos

reportemos, primeiramente, às influências intelectuais que Vernant reconhece em seu

8  Idem, p. 28.9  Idem, p. 48.10  Idem, p. 49.

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trabalho e, depois, ao objetivo primordial que visou atingir ao longo de sua caminhada

como pesquisador, qual seja, a compreensão do “homem grego”.

Quanto às influências, Vernant é direto: “Minha pesquisa inscreve-se na linha de

uma psicologia histórica cujos fundamentos foram estabelecidos na França por

Meyerson e que se coloca sob o signo de Marx, escrevendo que toda a história não

passa da transformação contínua da natureza humana”.11

Nascido em Varsóvia, Ignace Meyerson (1888-1983), após estudos na Polônia e

na Alemanha, chegou, em 1906, a Paris, onde estudou medicina, ciências e filosofia.

Depois da Primeira Guerra Mundial, já tendo publicado trabalhos na área de

neurofisiologia, atuou no Instituto de Psicologia da Universidade de Paris, na Sociedade

Francesa de Psicologia e no   Journal de psychologie normale et pathologique, do qual

foi diretor a partir de 1938. Publicou, em 1948, seu único livro, As funções psicológicas

e as obras, produto de tese de doutorado defendida aos sessenta anos de idade.12

Do pensamento de Meyerson, Vernant retirou o axioma de que “o homem está

naquilo que, continuamente, por todos os tempos, ele construiu, conservou, transmitiu”,

isto é, ferramentas e técnicas, línguas, religiões, instituições sociais, ciências e artes.13 

Psicologia histórica significa não mais estudar a atividade mental como um reflexo de

condicionantes neurofisiológicos, mas consubstanciada nos variados produtos da ação

humana, no tempo e no espaço, salientando seus “pontos de crise, de inflexão e de

parada”.14 A menção ao pensamento de Marx também se insere nessa preocupação em

historicizar as ações humanas, indagando-se sobre as transformações que o próprio

homem sofre ao transformar o mundo ao redor de si.

Na interpretação de Meyerson, tal como descrita por Vernant, os

comportamentos humanos e conteúdos espirituais estão em relação de mútua

determinação, de modo que se trata, em suma, de estudar as relações entre o campo

psicológico e o campo social:

Todos os fatos humanos – atos, obras, instituições, civilizações – são ao mesmotempo psicológicos e sociais. Nesse sentido, o social em geral nunca pode serum princípio de explicação psicológica; nem o psicológico em geral umprincípio de explicação social. Para ser válida, a análise deve ser limitada,precisa, histórica: deve seguir pelas obras o elo que une tal forma mental a talestrutura social. Elo complexo: a estrutura social depende de outras estruturas, e

11  Idem, p. 54.12 DI DONATO, Riccardo. L’anthropologie historique de Louis Gernet. Annales, 37, 5, 1982, p. 989.13 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 123.14  Idem, p. 143.

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a forma mental de outras formas; entre umas e outras não existe causalidadeunilateral, e sim, sempre, ações recíprocas.15

 

Não há, por conseguinte, “um espírito imutável, funções psicológicas

permanentes, um sujeito interior fixo” subjacentes às obras humanas, o que Vernantchama de um preconceito “fixista”, a busca de espírito puro, que pairasse acima das

realizações concretas. A aplicação desses pressupostos da psicologia histórica ao estudo

da Grécia antiga é a tarefa que Vernant impôs a si, como atesta na introdução de  Mito e

Pensamento entre os Gregos, dedicada a Meyerson, afirmando que, por meio do estudo

das obras humanas “buscamos aquilo que o homem foi, este homem grego antigo que

não se pode separar do quadro social e cultural do qual ele é, ao mesmo tempo, o

criador e o produto”.16 Conservados nos documentos, esses fatos não descartam,

inclusive, uma comparação com o homem atual.17 Logo, Vernant adota uma visão

histórica simultaneamente sincrônica e diacrônica, analisando os fatos sociais não

apenas nos limites temporais de uma dada sociedade, como também pensando em

estabelecer comparações com o presente.

Além de Meyerson, mas comungando pontos comuns à obra desse psicólogo,

Louis Gernet (1882-1962) é outro intelectual a que Vernant faz questão de reconhecer

sua dívida. Aliás, a obra de Gernet gozou de um reconhecimento tardio, em grande parte

devido aos trabalhos de Vernant, como   As origens do pensamento grego e   Mito e

 pensamento entre os Gregos.18 Gernet obteve sua “agrégation de grammaire” na École

Normale, no momento em que Paris era o centro dos estudos de filologia comparada.

De 1907 a 1914 foi pesquisador na Fondation Thiers, dirigida por Émile Boutroux,

professor de Durkheim. Durante esse período Gernet formou-se em Direito, publicou

um ensaio sobre o suprimento de trigo na Atenas clássica, que escrevera na École

Normale e trabalhou sobre suas duas teses, uma tradução e comentário do livro IX d’ As

 Leis, de Platão, e um estudo sobre o desenvolvimento do pensamento jurídico e moral

na Grécia. De 1917 ao final da Segunda Guerra Mundial, lecionou na Faculdade de

Letras da Universidade de Argel. Em 1948, começou a ministrar aulas na área de

15  Idem, p. 147-148.16 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Estudos de psicologia histórica. Trad. de

Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 15.17 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 140 e 152.18 HUMPHREYS, Sarah C. The Work of Louis Gernet. History and Theory, 10, 2, 1971, p. 177.

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sociologia jurídica na École Pratique des Hautes Études. A essa época também ocupou

o cargo de secretário-geral e editor-chefe da revista Année sociologique.19

A conexão entre Meyerson e Gernet, entre o psicólogo e o helenista, não é

fortuita se levarmos em conta que Meyerson serviu-se dos trabalhos de Gernet em seu

magnum opus. No livro   As funções psicológicas e as obras, avalia como corretas, no

tocante ao método, as observações de Gernet acerca de “todo historiador que pesquisa

sobre os conteúdos mentais e os interpreta”, e também cita a tese de Gernet sobre direito

e moral na Grécia, retomando suas observações sobre a reconstrução da pessoa no

direito grego, fundada na oposição entre um pensamento científico e o desenvolvimento

do pensamento moral. Em contrapartida, ecos de Meyerson estão presentes em artigo de

Gernet, composto para o cinquentenário do   Journal de psychologie normale et 

 pathologique, intitulado “Histoire des religions et psychologie. Confrontations

d’aujourd’hui” (1954). Negando a fronteira entre etnografia e história, Meyerson afirma

estudar “aquilo que tem por objeto, ou pelo menos por matéria, os fatos humanos não

isolados de seus contextos e que são considerados no que têm de localizados e

condicionados”.20 Em seus papéis não publicados, encontra-se uma reflexão

metodológica que ilumina a influência de Gernet sobre o pensamento de Vernant:

(...) Não há uma explicação de aplicabilidade geral [ passe-partout ], o métododeve ser criado nos diferentes domínios da experiência, acomodando-se àplasticidade das experiências humanas: a China, a Índia, a Grécia etc. Ambiçãoque vai além de Durkheim e do marxismo: Durkheim admite que a partir denoções muito gerais, outrora miticamente conhecidas, e que pertencem às“forma elementares’, há uma atividade “livre” e fantasiosa da imaginação que,em suma, não é possível apreender; o marxismo admite, ou admitia, umadistinção radical entre infra-estrutura e superestrutura (ideologia).21

 

Essa crítica coaduna-se tanto com o método da psicologia histórica quanto com

uma antropologia histórica, uma etiqueta que Vernant permitia que fosse aplicada a seutrabalho – apesar de toda sua ênfase no espaço/tempo, Vernant tampouco chega a se

apresentar como historiador. Ao explicar o métier  do antropólogo, serve-se de um

contraste com aquele do psicanalista. Enquanto este procede por meio de arquétipos

pré-determinados na abordagem de fatos culturais, o antropólogo parte do princípio da

relatividade dos fenômenos culturais, temporal e espacialmente situados. Daí que sua

19  Idem, p. 172-173.20 Citado por DI DONATO, Riccardo. Op. cit., p. 991.21  Idem, p. 993.

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alternativa é analisar as características de um material documental, procurando

estabelecer relações entre elas a fim de constituir um conjunto significativo.22

Qual o papel específico da Grécia nesse contexto metodológico? Vernant diz que

a contribuição de Gernet foi, que, embora especialista em direito grego, sempre

considerou o “homem grego total”, deixando sua marca ao formular questões ao mundo

antigo que dissessem respeito diretamente a nós, modernos: “Por que e como foram

constituídas aquelas formas de vida social, aqueles modos de pensar nos quais o

Ocidente encontra sua origem, nos quais acredita poder reconhecer-se e que ainda hoje

servem de referência e justificativa para a cultura européia?”.23 Esse questionamento

negaria aquela idéia de um Espírito ou Razão absolutos, enfatizando a especificidade da

experiência grega ao compará-la com as de outras civilizações. Pode-se dizer que as

obras de Meyerson e Gernet permitiram a Vernant criticar o que ele denominou de

concepções “racionalistas” que postulam tal Razão imutável e eterna, “idéia, cara aos

homens da Revolução Francesa, de uma deusa Razão que ilumina o caminho da

humanidade, dissipando as trevas da ignorância, os fantasmas da superstição religiosa

ou as ilusões do sentimento”. Trata-se, em última instância, de abandonar uma

metafísica da Razão em prol de uma história das formas do pensamento racional em sua

diversidade e variações.24 Como se vê, o problema central permanece o mesmo, ou seja,

fazer uma arqueologia da Razão. Muda o princípio de análise: não há uma única Razão

que perpassa a história dos homens desde a Antiguidade e, nesse sentido, a razão grega

não é igual à razão contemporânea, embora esteja em sua origem. Estamos, portanto,

simultaneamente, distantes e próximos do “homem grego antigo”. A distância decorre

das condições históricas específicas do surgimento da razão grega.

22 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 79. Em raciocínio semelhante, disse que, emboratenha sido influenciado por Claude Lévi-Strauss e sua abordagem estruturalista dos mitos, sentia-se mais

próximo de Georges Dumézil, com sua perspectiva histórica (embora, se, por um lado, Vernant seguisseDumézil ao entender a religião como possuindo uma sistematicidade, não concordava que, no caso grego,o trifuncionalismo religioso indo-europeu se aplicasse. GUIMARÃES, José Otávio. Como um barco àderiva: três colegas do Collège de France. Teoria & Pesquisa, 16, 2, 2007, p. 174. Sobre Lévi-Strauss eDumézil, Vernant afirmou, em entrevista cedida a José Otávio Guimarães, em 1999: “Tinha enormeadmiração pelo que Lévi-Strauss fazia. Mas me demarcava dele, sentindo-me mais próximo de Dumézil,pelo fato de que ele tinha uma atitude um pouco kantiana com relação às construções do imagináriomítico. Essas não eram exatamente a priori; apresentavam-se sempre a partir do concreto, das flores, dasplantas, dos animais, da organização social, mas traduzindo formas de atividade mental, sobre as quaisLévi-Strauss tinha tendência a pensar que se encontravam por todos os lados. Não pensava – como euprocurava fazer, na continuação de Dumézil – que, desde que houvesse um pouco de sociedade, umpouco de civilização com sua história, era preciso considerar essas narrativas lendárias, esses mitos ouesse aspecto de fabricação imaginária como integrados a um conjunto e dele fazendo parte. Tal elemento

se explicava pelo conjunto e explicava o conjunto”. Idem, p. 180-181.23 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 158.24  Idem, p. 191-192.

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Para Vernant – assim como para Gernet25 – o advento de um pensamento

positivo racional está ligado ao nascimento da  polis, da cidade. As inovações

decorrentes desse fenômeno marcaram “uma mudança de mentalidade tão profunda que

foi possível considerá-las como a certidão de nascimento do homem ocidental”. 26 Que

essa é a base mais ampla sobre a qual Vernant elabora sua reflexão sobre a Grécia

antiga atesta-o como apresenta o programa ao qual respondem os livros  As origens do

  pensamento grego,   Mito e pensamento entre os gregos e   Mito e tragédia na Grécia

 Antiga:

No espaço de poucos séculos, a Grécia antiga conheceu, em sua vida social eintelectual, mutações tão profundas que foi possível ver nelas o nascimento dohomem moderno, o advento do espírito como poder de reflexão crítica, ou, emoutras palavras, foi naquele momento que se teria produzido a passagem domito à razão. Assim, perguntei-me como, por que e até que ponto de fato sedesprenderam da mentalidade religiosa modos de pensar e de agir que, antes dese apresentarem como funções bem diferenciadas, adaptadas a objetivosprecisos, parecem todos mais ou menos incluídos no universo simbólico dareligião. E, nesse processo de mutação que levou a fazer surgir, como outrostantos setores distintos, os planos do econômico, do político, do jurídico, daarte, da ciência, da ética, da filosofia, quais mudanças afetaram, de um lado, osinstrumentos mentais – instrumental conceitual, modos de raciocínio, quadroslógicos do pensamento – e, de outro, as grandes funções psicológicas: tempo,espaço, memória, imaginação, vontade, persona.27

 Além do estudo das conexões entre a razão grega e o advento da  polis, e suas

respectivas consequências no modo de pensar, a religião grega foi outro campo de

análise escolhido por Vernant, em especial no tocante à decifração dos mitos e

evidenciação das estruturas do panteão grego.28 Todavia, a religião também é estudada

em seu caráter cívico, como intrinsecamente ligada à  polis. A emergência da política é,

portanto, a pedra basilar da análise vernantiana da Grécia antiga, pois dela decorrem

todas as demais transformações sociais.André Laks ressalta que o pano de fundo mais amplo dessa questão concebida

por Vernant é de ordem epistemológica. Em vez de aceitar a idéia de um “milagre

grego” – de uma razão grega que surge sem qualquer origem –, ele pretende dar conta

de uma descontinuidade na história, de uma ruptura, cujo exemplo maior seria visível na

Grécia clássica, com o aparecimento de uma nova forma de organização política. A

25 Cf. HUMPHREYS, Sarah C. Op. cit., p. 193.26 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 42.27  Idem, p. 55.28  Idem, p. 43. Sobre o tratamento dos mitos gregos por Vernant, pode-se consultar BELEBONI, RenataCardoso. O mito na perspectiva de Jean-Pierre Vernant. Boletim do CPA, 10, 2000, p. 69-75.

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insistência na descontinuidade devia-se também a uma contraposição aos antropólogos

“ritualistas” de Cambridge, como F. M. Cornford, que salientavam as continuidades

existentes entre o pensamento mítico e o racional e, portanto, a dependência desse

último àquele. Como resume Laks, “é contra a dupla ilusão de um nascimento ex nihilo 

e a permanência do idêntico que Vernant recorreu à categoria de ‘revolução’, ou,

seguindo a terminologia de Meyerson, de ‘mutação’. O termo aponta para a mudança,

considerável (para os ritualistas); mas não se trata de milagre, pois ele parte, poder-se-ia

dizer, tanto da mutação, como da consciência: ela é sempre a mutação de alguma

coisa”.29

O que então mudou?   As origens do pensamento grego é a obra seminal do

helenista para acompanharmos o desenvolvimento de sua reflexão sobre esse ponto. Na

escrita desse livro, publicado originalmente em 1962, Vernant já podia contar com o

deciframento do linear B micênico,30 o que lhe descortinou possibilidades de

comparação não disponíveis, por exemplo, para Gernet.31 A peculiaridade do mundo

grego definiu-se, para Vernant, no momento em que estruturas sociopolíticas, típicas do

Próximo Oriente, não são mais imitadas ou assimiladas, tal como ocorrera no sistema

palaciano micênico, dos séculos XIV ao XII a.C. Quando, a partir do século X a.C., os

gregos retomaram contatos comerciais com o Oriente, teve lugar uma consciência de si,

de modo que doravante a Grécia “se reconhece numa certa forma de vida social, num

tipo de reflexão que definem a seus próprios olhos sua originalidade, sua superioridade

sobre o mundo bárbaro”.32

O modelo oriental da realeza micênica, ao qual se contraporá o modelo grego da

 polis, é caracterizado como funcionando em torno do palácio cujo papel é, ao mesmo

tempo, religioso, político, militar, administrativo e econômico. O rei (ánax) concentra e

unifica em sua pessoa todos esses elementos do poder e governa, por um lado, apoiado

numa classe de escribas, que registra as propriedades do palácio mediante uma escrita

29 LAKS, André. O problema das origens da racionalidade grega hoje: as contribuições de Max Weber eJean-Pierre Vernant. Phaos, 6, 2006, p. 8-9. Para a apreciação do trabalho de Cornford por Vernantconsultar: VERNANT, Jean-Pierre. “Du mythe à la raison. La formation de la pensée positive dans laGrèce archaïque”. Annales, 12, 2, 1957, p. 183-187.30 A decifração do Linear B correspondeu a um processo longo, mas cujos primeiros resultados já setornavam amplamente conhecidos para os especialistas nos anos 1951-1953 e contam com uma difusãomais ampla com a publicação por Michael Ventris e John Chadwick de Documents in Mycenaean Greek.

Three Hundred Selected Tablets from Knossos, Pylos and Mycenae with Commentary and Vocabulary. Cambridge: Cambridge University Press, 1956. Nesse mesmo ano de 1956 Ventris morreu precocemente– com 34 anos – em acidente automobilístico. Agradeço a Fábio Faversani por esta nota.31 HUMPHREYS, Sarah C. Op. cit., 179.32 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 6.

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própria, não difundida, e, por outro, sustentado por uma aristocracia guerreira. Esse

sistema palaciano permitia, contudo, uma relativa autonomia das comunidades

camponesas, algumas das quais sob domínio de vassalos do ánax, os basileis.

Autonomia relativa porque tais comunidades poderiam subsistir independentemente do

rei, possuindo inclusive seu conselho de anciãos (gerousia).33

A invasão dórica rompeu esse quadro, pondo fim aos palácios e,

consequentemente, quebrou a ligação com o Oriente. O ánax desaparece e persistem os

basileis, como chefes locais, originando o que Vernant qualificou de “crise da

soberania”. A aristocracia guerreira e as comunidades aldeãs vêem-se livres de um

monarca que tudo coordenava e agora entram em conflito para determinar com quem

reside o poder. Nas palavras de Vernant, “entre essas forças opostas, liberadas pelo

desmoronamento do sistema palaciano, que se vão chocar às vezes com violência, a

busca de um equilíbrio, de um acordo, fará nascer, num período de desordem, uma

reflexão moral e especulações políticas que vão definir uma primeira forma de

‘sabedoria’ humana”.34

A aparição da  polis entre os séculos VIII e VII a.C. correspondeu à criação de

um domínio público, antes inexistente, pautado pela preeminência da palavra – como

instrumento de persuasão – e pelo pressuposto da publicidade, cujo principal suporte é a

escrita. Um outro aspecto da cidade diz respeito àqueles que a compõem. Apesar da

diferença, existe uma semelhança “que cria a unidade da  polis, porque, para os gregos,

só os semelhantes podem encontrar-se mutuamente unidos pela Philia, associados numa

mesma comunidade”, na qual as relações entre os homens tomam a “forma de uma

relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e

domínio”.35

É preciso lembrar que a cidade nasce aristocrática e paulatinamente ocorre uma

abertura para círculos mais amplos, sobretudo por conta de questões militares, como

exemplifica a chamada “revolução hoplítica”. E mesmo com a ampliação da cidadania,

e seu conteúdo igualitário, para Vernant, o ponto de vista aristocrático sempre esteve

presente no interior de uma visão democrática da sociedade e do Estado. Os cidadãos

são iguais, mas competem pelo mérito; a discussão é uma prática pública, aberta, mas

33  Idem, p. 16-22.34  Idem, p. 27.35  Idem, p. 42.

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gera conflito. A unidade da cidade grega sempre aparece ameaçada pela divisão 36 e

Vernant reconhece que os séculos VII e IV a.C. foram marcados por constantes choques

e conflitos sociais abertos.37 Em uma passagem de seu artigo sobre a luta de classes, em

 Mito e sociedade na Grécia antiga, o helenista enfatiza, após referir-se a Marx, ao papel

da política na conformação dessas lutas sociais na história grega:

Os grupos humanos entram em luta em função de interesses materiais que osopõem uns aos outros. Mas esses interesses materiais não derivam direta nemexclusivamente do lugar dos indivíduos no processo de produção. Estão sempreem função do lugar que ocupam os mesmos indivíduos na vida política que, nosistema da  polis, desempenha o papel principal. Dito de outro modo, é atravésda mediação do estatuto político que a função econômica dos diversosindivíduos determina seus interesses materiais, estrutura suas necessidadessociais e orienta sua ação social e política em solidariedade com tal grupo ouoposição a outro.38

 

Como observou José A. Dabdab Trabulsi, ao se expressar com essas palavras,

Vernant acabou por alinhar-se a uma vertente de explicação da economia antiga que

advoga a ausência de uma esfera econômica autônoma nas sociedades clássicas. De

inspiração weberiana, tal vertente encontrou expressão na obra de Karl Polanyi e uma

recepção nos escritos de Moses Finley, Michel Austin e Pierre Vidal-Naquet, dentre

outros. Essa visão, que foi batizada de “primitivista”, em oposição a uma visada“modernista”, cujos proponentes acentuavam o caráter já capitalista da economia antiga,

teve como desdobramento uma ênfase na política como a esfera que, em grande parte,

determinava comportamentos econômicos. O conceito de status ganhou assim maior

relevância frente ao de classe.39 Um dos corolários dessa maneira de compreender o

passado é a restrição da análise ao corpo de cidadãos. E quanto aos que não são

cidadãos, como, por exemplo, os escravos em Atenas? A resposta de Vernant é clara: “É

evidente que essas lutas ocorrem nos quadros da vida política. Por conseguinte, delas

estão excluídos aqueles que não pertencem a esse quadro e, assim, não podemos dizer

36 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 28.37  Idem, p. 105.38 VERNANT, Jean-Pierre. Mito y sociedad en la Grecia antigua. México: Siglo XXI, 1987, p. 16.39 TRABULSI, José A. Dabdab, Structuralisme et Grèce ancienne: autour du problème du changementhistorique. Mélanges Pierre Lévêque, Besançon/Paris, v. 3, 1989, p. 93, nota 7. Para uma apreciação daquerela entre primitivistas e modernistas, pode-se consultar: SCHIAVONE, Aldo.  A história rompida:

 Roma antiga e Ocidente moderno. São Paulo: Edusp, 2005, cap. 4. Sobre a relação entre economia e

política em Max Weber, na sua abordagem do mundo antigo, tivemos a ocasião de tratar em JOLY, FábioD. Capitalismo e burocracia: economia e política nas  Relações Agrárias na Antiguidade, de Max Weber. Revista de História, 140, 1999, p. 9-22.

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que os escravos como grupo sejam um dos elementos motores da dinâmica social, do

movimento histórico na Antiguidade grega na época clássica”.40

Logo, é claramente perceptível na obra de Vernant um primado da política, seja

para a caracterização da razão grega como filha da polis, seja para a definição dos atores

sociais que contam nos quadros da cidade. Quanto ao primeiro ponto, André Laks

argumenta que a equação entre racionalidade e cidade não é necessariamente

automática, pois é igualmente possível sustentar que o contexto de desenvolvimento do

pensamento racional pode ter sido, ao mesmo tempo em que político, também anti-

político e transpolítico. Anti-político pela própria diferenciação da disciplina filosófica e

consequente formação de uma classe de especialistas que não reconhecia o espaço

público. Transpolítico uma vez que o desenvolvimento dessa racionalidade estava

ligada ao fenômeno do panhelenismo, uma tendência à universalização que transcende

os limites da cidade.41 Seguindo uma mesma linha de crítica, Kostas Vlassopoulos

recentemente incluiu Vernant no rol daqueles pesquisadores que entendem a polis como

uma entidade unitária e fator unificador da história grega, com um objetivo último de

alçá-la, numa visão eurocêntrica, à condição de precursora do Ocidente. Com esse

intuito a multiplicidade das  poleis, em termos espaciais e temporais, é deixada

deliberadamente em segundo plano, colocando-se em relevo uma  polis como unidade

auto-suficiente de análise.42

Por outro lado, no nível metodológico, o que está em discussão é a relação de

causalidade histórica entre  polis e razão, ou, como aponta Dabdab Trabulsi, entre

mudança social e mutação dos esquemas de pensamento. Nesse caso, Trabulsi

acrescenta que, nos trabalhos de Vernant, o princípio de causalidade é pouco explorado,

preponderando termos como “interferências”, “correspondências” ou “solidariedade”,

40 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 108. Pierre Vidal-Naquet, em um artigo intitulado“Os escravos gregos constituíam uma classe?”, originalmente publicado em 1968, adota o mesmo pontode vista, ao comparar os escravos atenienses e os hilotas espartanos quanto às possibilidades departicipação militar de ambos: “Exceto em casos totalmente excepcionais, nem se pensa em mobilizarescravos em Atenas e, se são utilizados no exército, são libertados. O resultado é que, por mais afastadoque seja o hilota do cidadão em pleno exercício, não deixa de desempenhar um papel e um papel capitalno jogo político. Uma reivindicação política dos hilotas é possível em Esparta, enquanto umareivindicação política dos escravos em Atenas é propriamente inconcebível”. VERNANT, Jean-Pierre.  Entre mito e política, p. 94. Também para Finley, os escravos-mercadoria, por serem mais desprovidos dedireitos e os mais totalmente estrangeiros, seriam aqueles com menor tendência para a ação coletiva. Cf.FINLEY, Moses. Entre a escravatura e a liberdade. In: ANNEQUIN, J.; CLAVEL-LÊVÉQUE, M. &FAVARY, F. (Org.). Formas de exploração do trabalho e relações sociais na Antigüidade clássica.  Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 92.41 LAKS, André. Op. cit., p. 13.42 VLASSOPOULOS, Kostas. Unthinking the Greek polis: Ancient Greek History beyond Eurocentrism.Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 55-56.

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revelando um estruturalismo vago e uma análise marxista em que o político é o

elemento principal e estruturante. Em sua conclusão: “Dizer que tudo é solidário

equivale a sustentar que uma sociedade funciona, sem explicar como”. 43

Podemos acrescentar ainda o “princípio da simpatia”, que guarda relações com o

campo político e atua também no sentido de matizar o princípio da causalidade direta.

Vernant diz realizar um jogo de contrastes entre o homem grego e o homem moderno a

fim de melhor compreender a ambos. Na introdução que compôs para O homem grego,

reunião de artigos de especialistas sobre tipos sociais da Grécia antiga, Vernant alerta o

leitor que não falará do “grego tal como foi em si, tarefa impossível porque a idéia em si

é desprovida de sentido, mas [d]o grego tal como aparece hoje para nós no fim de uma

abordagem que procede, na falta do diálogo direto, num incessante ir e vir, de nós a ele,

dele a nós, conjugando a análise objetiva a um esforço de simpatia, jogando com a

distância e a proximidade”.44 Quem é, afinal, esse homem grego com o qual nos

defrontamos? Vernant admite que, por motivos documentais, é o homem de Atenas do

período clássico, ou melhor, é o cidadão ateniense.

A diferença do homem grego frente ao homem moderno reside no fato de que a

visão de mundo do primeiro seria mais integrada do que aquela do segundo. Por

exemplo, entre o mundano e o divino, para o grego, não existiria uma cisão radical.

Embora o homem não possa pretender ser igual a um deus, limitado que está por sua

mortalidade, deuses e homens habitam mundos similares, mas construídos sobre planos

diversos e rigorosamente hierarquizados. A existência humana, enfim, não se refere

unicamente a si própria:

A partir do instante em que seus olhos se abrem para a luz, o homem está emdívida. Ele a paga ao prestar escrupulosamente para a divindade, pelaobservação dos ritos tradicionais, a homenagem que ela tem o direito de exigir.

(...) Ao criar o contato com os deuses e ao torná-los, de alguma forma, presentesentre os mortais, o culto introduz na vida dos homens uma nova dimensão, feitade beleza, de comunhão feliz.45

 

A ubiqüidade da religião torna ininteligível uma demarcação entre crença e não-

crença, pois, a bem da verdade, não haveria uma doutrina a seguir ou uma Igreja a

pertencer e tampouco livros sagrados a guiar condutas. Em  Mito e religião na Grécia

antiga, Vernant critica as correntes de interpretação que analisam o politeísmo grego à

43 TRABULSI, José A. Dabdab. Op. cit., p. 100.44 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 172-173.45  Idem, p. 175.

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luz do monoteísmo judaico-cristão, fazendo desse último o modelo ideal de religião e

considerando os mitos como excrescências literárias. A peculiaridade da “religião

grega” deriva de que nela “o indivíduo como tal não ocupa um lugar central”. A

participação nos cultos não se dá a título de salvação pessoal, de um contato íntimo com

os deuses. O indivíduo está aí inserido como “magistrado, cidadão, fatrio, membro de

uma tribo ou de um demo, pai de família, matrona, jovem – rapaz ou moça – nas

diversas etapas de sua entrada na vida adulta”.46 Nesse contexto de uma religião cívica,

indivíduo e cidade complementam-se: não ser religioso significa negar sua inserção

como cidadão. Essa preeminência da sociedade política frente ao indivíduo faz-nos

recordar a tese de Fustel de Coulanges, n’  A Cidade Antiga, de 1864, em que postula

uma diferença entre a liberdade moderna e a liberdade dos antigos gregos e romanos,

pois “o homem atual não pensa da mesma maneira como pensou vinte e cinco séculos

atrás, e por isso já não se governa atualmente pelas mesmas leis que então o regeram”.

Em Grécia e Roma, “a liberdade individual fora (...) desconhecida e o homem era

incapaz de libertar a sua própria consciência da onipotência da cidade. (...) A cidade era

a única força viva, nada lhe era superior ou inferior: nem a unidade nacional, nem a

liberdade individual”.47

Entretanto, à diferença de Coulanges, Vernant vê de maneira positiva essa

inserção, já que, em sua opinião, o homem moderno vive desconectado do mundo que o

cerca, não tendo mais uma existência cósmica como o homem grego, que “encontra-se

em uma relação de comunidade íntima com o universo animado ao qual tudo o liga”.48 

Para o helenista, a experiência moderna de si está fundada na introspecção, enquanto a

experiência grega é extrovertida. O cogito, ergo sum cartesiano não tem sentido para um

grego, que busca a si próprio no espelho dos outros da cidade. Num ensaio

exclusivamente dedicado ao tema do indivíduo, em que Vernant toma como ponto de

partida a distinção, traçada por Louis Dumont,49 entre o indivíduo fora do mundo e o

indivíduo no mundo, escreve ele que o homem grego submete-se a uma ascese moral

que visa submeter o inferior ao superior para realizar, dentro de si, um estado de

46 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia antiga, p. 14.47 COULANGES, F. de. A cidade antiga. São Paulo: Ediouro, s/d, p. 247.48 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 179.49 A referência são os livros  Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações (Paris, 1966;trad. bras. São Paulo, Edusp, 1992) e Homo Aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica (Paris,1977; trad. bras. Bauru, Edusc, 2000).

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liberdade análogo àquele do cidadão na cidade, que precisa saber se dominar para não

vir a ser escravo, de outrem ou de si mesmo. 50

Se o homem grego antigo não é introspectivo por conta de sua inserção na

cidade, como então Vernant enxerga o homem contemporâneo em sua relação com a

política? Buscar uma resposta para essa pergunta talvez ajude a compreender a

centralidade da política em sua obra, bem como a relevância de conceitos como

“solidariedade” e “comunhão” que se sobreporiam àqueles mais direcionados para

estabelecer nexos de causalidade para explicar a história social grega.

Na opinião de Vernant, a despolitização e a irracionalidade são fenômenos que

caminham pari passu nas sociedades contemporâneas:

As pessoas, como indivíduos, ou como membros de pequenos grupos: umafamília, uma aldeia, não se sentem mais diretamente responsáveis ou engajadasna vida coletiva. Sobre aqueles que tomavam as decisões na Rússia, dizia-sesempre “eles” ou “lá em cima” – um lugar absolutamente distante, estranho e doqual não se participava. Hoje, em nossas democracias ditas liberais, ocorre umfenômeno do mesmo tipo: as pessoas têm a sensação de que a política é umnegócio de profissionais mais ou menos capazes, mais ou menos honestos, eque elas mesmo não fazem muito mais parte disso. O desengajamento político éum aspecto desse fenômeno muito mais geral que é a volta em massa doirracional, que é chamado de volta do religioso em suas diversas formas.51

 

Pode-se dizer que a argumentação de Vernant volta-se aqui a uma crítica da

chamada “teoria elitista da democracia”, que advoga um governo de especialistas,

amparado por uma burocracia e com sustentação de meios de comunicação em massa. 52 

O modelo grego justifica-se como uma alternativa a essa configuração das atuais

democracias ocidentais, as quais, se, por um lado, estenderam a cidadania a grandes

parcelas da população, por outro, cercearam suas chances de exercício direto do poder

por meio de mecanismos de representação. Tal teoria é igualmente combatida por

Moses Finley, em seu livro   Democracia antiga e moderna, que alça a democracia

ateniense como um exemplo de participação direta dos cidadãos no governo, a despeito

50 VERNANT, Jean-Pierre. L’individu, la mort, l’amour . Paris: Gallimard, 2007, p. 229.51 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 499.52 Um bom exemplo desta perspectiva é fornecido por Max Weber, para quem “a mente equilibrada elúcida, e uma política bem-sucedida, especialmente a política democrática bem-sucedida, é feita,indubitavelmente, com a mente e predominará nas decisões responsáveis, tanto mais: 1. quanto menor foro número de participantes na decisão; 2. quanto mais claras forem as responsabilidades atribuídas a cada

um deles e a seus liderados”. WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada. São Paulo:Vozes, 1993, p. 128-129. Cf. FAVERSANI, Fábio. A ética da participação política na democracia antigacomparada à contemporaneidade. Consciencia, Vitória da Conquista, v. 7, 1997.

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de seu número diminuto no contexto da população geral.53 Vernant vai além: encerra

seu prefácio da tradução francesa desse livro de Finley, ponderando que o político, ao

pressupor que o poder seja colocado no meio, para ser objeto de debate, confere à vida

em grupo seu caráter propriamente humano.54

Em sua história de vida, Vernant declara que tanto a luta, durante a Segunda

Guerra Mundial, na Resistência, quanto sua militância no Partido Comunista Francês

marcaram-lhe indelevelmente.55 É quando menciona essa última experiência que se

desvela o modo como concebia uma relação adequada entre religião e política, que não

está muito distante daquela que projeta na Antiguidade grega. Ele traça uma distinção

entre os militantes comunistas que eram crentes ideológicos – ávidos de um “sistema

explicativo total que justificasse sua existência” – e os crentes políticos, para quem

contava “a forma como a política se delineava”.56 Alternativamente, uma crença na

política antes que uma crença política é, enfim, o que o helenista vislumbra em seu

“homem grego”.

A despeito da validade dessa mensagem política implícita na obra de Vernant,

resta indagar, a título de conclusão, qual é a contribuição do helenista para nossa

compreensão da história grega. É certo que, do ponto de vista metodológico, suas

propostas analíticas ancoradas numa psicologia histórica, que considera uma relação de

mútua determinação entre o homem e suas obras, continuam instigantes. Todavia, não

podemos furtar-nos a reconhecer que as duas pedras basilares da visão de Vernant sobre

a Grécia antiga estão sob a mira de uma historiografia recente que está revisitando os

modelos interpretativos sobre a história e a cidade grega. Refiro-me à idéia da Grécia

como origem de uma “civilização ocidental” e à desconsideração de grupos sem

participação política institucionalizada – mulheres, escravos e estrangeiros (metecos) –

como agentes ativos na vida política e intelectual da polis.

As críticas ao eurocentrismo focam o caráter teleológico que tal perspectiva

acabou por imprimir à história européia, como se essa seguisse uma linha independente

que começara na Grécia como única fonte original.57 Com relação aos estudos sobre a

53 FINLEY, Moses. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Veja-se especialmente ocapítulo “Líderes e liderados”.54 Naissance du politique. In: VERNANT, Jean-Pierre.  La traversée des frontières. Paris: Éditions duSeuil, 2004, p. 146.55 VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política, p. 33-34.56  Idem, p. 510.57 Ver, por exemplo, o já citado livro de Kostas Vlassopoulos, Unthinking the Greek polis: Ancient Greek  History beyond Eurocentrism, e a obra de Martin Bernal, Black Athena: The Afroasiatic roots of classical

civilization, em especial o volume I intitulado “The fabrication of ancient Greece, 1785-1985”, em que o

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 polis grega, quando mencionado, Vernant – em especial, suas Origens do pensamento

grego – é colocado como exemplo de uma perspectiva que deve ser abandonada a favor

de uma outra que pense a polis não unicamente como o espaço da cidadania. Essa seria

uma fonte de identidade e uma forma de participação na cidade, dentre outras. Parece-

me que, embora haja uma ênfase de Vernant na política como marco distintivo da

história grega, sua análise consolidou um entendimento por demais restrito do conceito,

ocasionando dificuldades de aceitação de sua obra no atual contexto em que se pede

uma concepção ampla de atuação política, para além de um “clube fechado” de

cidadãos, incluindo-se setores diversos da sociedade civil.

Por último, as características que Vernant atribui a seu homem grego tendem a

ser generalizadas pela historiografia sobre o mundo greco-romano ao ponto de

condensarem uma “estrutura antropológica das aristocracias mediterrâneas”,58 isto é, de

se tornarem a essência do homem antigo, de mentalidade aristocrática, priorizando o

cultivo da honra e avessa a um comportamento econômico similar àquele propugnado

pelo capitalismo moderno. Essa imagem antropológica converteu-se em fator que

confere uma unidade psicológica ao “mundo antigo”, de Homero ao fim do Império

Romano.59 Atualmente, percebe-se que a balança dos estudos acadêmicos começa a

pender para aspectos da diversidade cultural na Antiguidade, colocando em xeque

identidades de cunho essencialista.60

É claro que esses limites da produção intelectual de Vernant não desqualificam a

contribuição que nos legou. Seus escritos situam-se num contexto específico de

afirmação dos estudos clássicos no ambiente acadêmico francês. Cabe a nós utilizá-los

na medida em que se mostrarem relevantes para a discussão de problemas que

consideremos candentes para a pesquisa de História Antiga no Brasil.

autor faz uma crítica das teorias racistas do século XIX que propuseram uma imagem da Grécia comodesvinculada da influência de povos semitas e africanos (como os egípcios) a fim de enaltecer um caráterintrinsecamente europeu da civilização grega, entendida como origem cultural do mundo ocidental. Sobreo eurocentrismo na História Antiga, ver também GUARINELLO, Norberto L. Uma morfologia daHistória: as formas da História Antiga. Politeia: História e Sociedade, v. 3, n. 1, 2003, p. 41-62.58 Tomo a expressão de Aldo Schiavone, Op. cit., p. 228, que cita Vernant como apoio para sua tese deque a carência de desenvolvimento econômico do mundo romano deveu-se, em grande parte, àmentalidade aristocrática das elites dirigentes.59 A obra de Moses Finley,   A economia antiga, publicada em 1973, é a principal representante dessaperspectiva e de forte influência na historiografia sobre economia grega e romana. Ver: FINLEY, Moses. A economia antiga. Porto: Afrontamento, 1986. Sobre a influência da obra finleyriana, pode-se consultarANDREAU, J. L’économie antique: présentation. Annales, 5, 1995, p. 947-960.60 Andrew Wallace-Hadrill oferece uma síntese do debate sobre identidade no mundo greco-romano emseu mais recente livro, Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Ver,em especial, o capítulo I.

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Bibliografia

Livros de Jean-Pierre Vernant publicados em língua portuguesa

 As origens do pensamento grego. Trad. de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1994.

 A morte nos olhos – a figuração do outro na Grécia antiga. Trad. de Clóvis Marques.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

 Entre mito e política. Trad. de Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 2001.

Figuras, ídolos, máscaras. Trad. de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1991.

 Métis – as astúcias da inteligência (com Marcel Detienne). São Paulo: Odysseus, 2008.  Mito e pensamento entre os gregos.   Estudos de Psicologia Histórica. Trad. deHaiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

  Mito e religião na Grécia antiga. Trad. de Constança Marcondes César. Campinas:Papirus, 1992.

  Mito e sociedade na Grécia antiga. Trad. de Myriam Campello. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1999.

 Mito e tragédia na Grécia antiga. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 1999.

O homem grego. Trad. de Maria J. V. de Figueiredo. Lisboa: Editora Presença, 1994.

O universo, os deuses, os homens. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:Companhia das Letras, 2000.

Trabalho e escravidão na Grécia antiga (com Pierre Vidal-Naquet). Trad. de MarinaAppenzeller. Campinas: Papirus, 1989.

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