JORGE MORAES.da Interpretação_para Uma Compreensão Da Produção de Sentidos Em Nietzsche

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 JORGE MORAES Da Interpretação: para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich Nietzsche Por razões de formatação, as notas de rodapé foram suprimidas na versão On- Line. A reprodução deste texto é livre desde que não seja omitida sua autoria. Todos os direitos reservados pelo Autor. Rio de Janeiro   1999 AGRADECIMENTOS

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da interpretação

Transcript of JORGE MORAES.da Interpretação_para Uma Compreensão Da Produção de Sentidos Em Nietzsche

na filosofia de Friedrich Nietzsche
Por razões de formatação, as notas de rodapé foram suprimidas na versão On- Line.
A reprodução deste texto é livre desde que não seja omitida sua autoria.
Todos os direitos reservados pelo Autor.
Rio de Janeiro —  1999
 
Agradeço a todos aqueles que de algum modo colaboraram com a produção desta monografia; em especial, aos professores: Dr. Roberto Machado, pela orientação, sem a qual este trabalho não poderia se realizar; Dr. Gilvan Fogel,
 pelas boas indicações; Dr.ª Lia Levy, pela iniciação à pesquisa; Dr. Luidgi Bordin, Dr. Ricardo Jardim e Dr. Hilton Japiassú, pelos constantes incentivos.
Agradeço a todos os meus companheiros de trabalho que, na medida do  possível, facilitaram a minha presença nesta Universidade durante os períodos de exame. Devo, portanto, a eles parte desta monografia.
Agradecimentos especiais para pessoas muito especiais: Ana, Elaine e Michele.
ÍNDICE ANALÍTICO
 ÍNDICE ANALÍTICO * 
1. A atividade de interpretar como um movimento infinito.  * 
2. A atividade de interpretar como relação dinâmica de forças.  * 
 PARTE II –  Vida e arte na interpretação  * 
1. Artes de interpretação. * 
CONCLUSÃO * 
 BIBLIOGRAFIA * 
FONTES * 
TRADUÇÕES * 
COMENTADORES * 
Genealogia da moral
Crepúsculo dos ídolos
 
Esta monografia tem como tema a interpretação em Nietzsche. Nela está em questão a apropriação e produção de sentidos organizados segundo a
 perspectiva de uma vontade que é doadora de sentidos. Visando esta doação de sentidos, limitaremos nossa abordagem a três pontos que consideramos fundamentais: (1) a multiplicação de interpretações a partir do próprio desdobramento no tempo da atividade de interpretar; (2) a inevitável relação de forças implicada na atividade de interpretar; (3) a introdução da vontade de
 potência como instância a partir da qual se pode conceber a produção de sentidos na interpretação.
Tomando estes três pontos como base, poderemos finalmente compreender a interpretação tanto como invenção, quanto como sintoma da vontade que dela se apropria.
ABSTRACT
The theme of this monograph is interpretation in Nietzsche. In question is the appropriation and production of organized meanings according to a will that donates these meanings. With this donation in mind, we will limit our approach to three points which we consider fundamental: (1) the multiplication of meanings parting from the actual unfolding in time of the activity of interpretation; (2) the inevitable power relation implied in this activity; (3) the introduction of will to power  as an instance from which one can conceive the
 production of meanings in an interpretation.
 
 
RÉSUMÉ
Le thème de cette monographie est l'interprétation chez Nietzsche. Ce Qui est en question c’est l'appropiation et production de sens organisés selon une
volonté qui est donneuse de sens. Avec cette donation dans l'esprit, nous limiterons notre approche à trois points que nous considérons fondamentaux: (1) la multiplication des sens qui part du développement dans le temps de l'activité d'interprétation; (2) l'inévitable relation de pouvoir impliquée dans cette activité; (3) la présentation de la volonté de puissance comme une instance à partir de la quelle on peut concevoir la production de sens dans l'interprétation.
Ayant ces trois points comme base, nous pouvons comprendre par conséquent l'interprétation comme n'étant pas seulemente une invention, mais aussi un symptôme de la volonté qui s’en est appropiée.  
INTRODUÇÃO
 
 
 
"O homem é uma criatura que constrói formas e ritmos; em nada está melhor treinado e parece que em nada sente maior prazer do que na descoberta de figuras." Sublinhada por Nietzsche, tal descoberta se faz fruto de uma introdução de sentido   —   de uma interpretação. Descobrir, inventar, ou fazer arte expressam assim uma mesma atividade, a interpretação, a qual em
 
uma delas moldada com vistas a realizar uma nova interpretação. Veremos também que não pode haver uma forma definitiva que esgote as possibilidades de produção de novas formas, o que nos permitirá afirmar que não há interpretação que possa ser completa, absoluta e final  —  pois sempre haverá a necessidade de se sobrepor uma nova forma a uma antiga, e assim por diante. Do mesmo modo, verificaremos que não será possível se deparar com a forma original, a primeira nesta série de sobreposições. Dentro desta mesma
 perspectiva, veremos ainda que, para uma nova forma assumir o lugar da anterior, dentro de uma contínua sobreposição de formas, será preciso compreendê-las como maleáveis ou passíveis de serem apropriadas na atividade de interpretar  —   o que é, ao mesmo tempo, uma limitação e um dom da interpretação.
Através de um segundo caminho, porém, encontraremos na atividade de interpretar não mais como uma atividade que se desdobra no tempo, mas como atividade marcada pela interação de forças. Isto nos possibilitará mostrar como a contínua atividade de dar forma opera fora de um desenvolvimento
 progressivo e regular, onde a última interpretação seria sempre mais próxima de um termo final, ainda que nunca o alcançasse. Isto porque não há este termo final, uma vez que as relações de força implicadas na modelagem ou transfiguração de uma nova forma não alcançam um estágio que propicie a ausência de resistências e, portanto, de luta. Mesmo uma força momentaneamente vencedora não conseguiria se esquivar desta resistência oferecida pelas demais —  o que acaba por confirmar uma eterna instabilidade no desdobramento da atividade de interpretar.
Estará, contudo, implicada nesta contínua atividade de interpretar uma multiplicação de significados ou sentidos. Com isso, cada forma, ao ser moldada na interpretação, adquire naquele mesmo instante sua significação
 própria, seu próprio sentido. O que nos levará, por fim, a rejeitar qualquer interpretação que se afirme como uma busca de significados ou sentidos, nos levando antes a identificar na interpretação uma introdução de sentidos. Todavia, procuraremos explicitar que, ao serem introduzidos, tais sentidos não
 poderiam ser extraídos do nada e, menos ainda, de um sujeito ou indivíduo que interpreta. Em vez disso, esta introdução ocorre a partir de uma vontade doadora de sentidos —  a Vontade de Potência .
 
 
I - A arte da interpretação como atividade.
A interpretação em Nietzsche nos exige uma abordagem especial, na qual ela  possa se desenvolver como atividade. Para isso, portanto, deveremos pôr em evidência o caráter pertinente a toda atividade: o seu irrevogável desdobramento no tempo. Assumindo de início esta posição diante da interpretação nietzscheana, pretendemos ter facilitada a visualização de sua complexa estrutura: uma cadeia de formas que agora poderá ser vista em sua
 profundidade.
É através do tempo que vemos se sucederem, umas às outras, as formas que compõem a atividade de interpretar; tal como em um eterno rearranjo, onde novas formas são moldadas a partir das formas que lhes são precedentes e que,
 portanto, lhes servem de base. Um modo de visualizar esta estrutura é através de um conjunto de máscaras encaixadas umas nas outras. Onde uma máscara, ao sobrepor-se a outra, dá nova forma à velha máscara, ao mesmo tempo em que usa esta velha máscara como base ou ponto de partida. Um exemplo desse tipo de mascaramento se encontra no Ecce Homo , onde Nietzsche afirma sobre o seu primeiro livro: " —   pode-se tranqüilamente colocar meu nome ou ‘Zaratustra’ onde no texto há o nome de Wagner." Ou, quando em   Para uma Genealogia da Moral , ele afirma que "uma força não sobreviveria se, inicialmente não tomasse emprestada a aparência das forças precedentes contra as quais luta." (Em termos resumidos temos que uma nova máscara se utiliza da anterior como modelo, ao passo que, ao mesmo tempo, remodela os contornos desta mesma máscara anterior.)
 
sucessão de interpretações), queremos enfatizar a estrutura inusitada que lhe diz respeito, com a qual, sucessivamente, moldamos formas que são sempre interpretações a serem interpretadas. Isto porque cada forma é já uma interpretação que, por sua vez, ao ser tomada na cadeia de sucessão de formas, deve ser novamente interpretada. Neste sentido, revelar uma destas formas, ou desmascará-la, é o mesmo que sobrepor, a esta forma, uma nova máscara.
Participa desta mesma estrutura inusitada, uma forma em especial: o aforismo. Tão caro ao próprio Nietzsche, o aforismo deve ser também compreendido como interpretação a ser interpretada. Nele, a antiga relação entre objeto e sua representação se desvanece e dá lugar a uma outra relação semântica, onde o símbolo perde seu caráter definitivo. Reina agora uma arte, tanto no ler, quanto no escrever: "uma arte da interpretação" —  
Um aforismo, se ele está bem cunhado e fundido, não está ainda "decifrado" pelo fato de ser lido, ainda falta muito pois a interpretação [Auslegung] está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação [Kunst der Auslegung].
A forma aforismo, como interpretação a ser interpretada, ou a interpretação, como arte de interpretar, manifesta o poder criativo daquele que interpreta. Isto
 porque no aforismo não estão contidos e isolados todos os elementos desta arte. É por isso que "a interpretação está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação". Sendo assim, se faz necessário agir, atuar, fazer arte, produzir e criar, para que, só então, tenhamos uma arte de interpretar. Por este motivo, podemos compreender a interpretação em
 Nietzsche como atividade criadora que, de modo especial, compõe paisagens, notas musicais, formas plásticas e palavras. Sempre em um infinito movimento, onde o desenho destas mesmas palavras poderá se recompor, mais uma vez, em outras notas, paisagens e formas, seguindo assim uma cadeia que se repetirá eternamente —  movendo, incessantemente, o pêndulo da interpretação.
1. A atividade de interpretar como um movimento infinito.
Ao contemplar esta arte da interpretação, o que temos em mente é o modo pelo qual ela se nos oferece; o modo pelo qual ela surge: como atividade, em eterno movimento, em um interminável jogo de diferenciação e renovação;
 
outra, e assim por diante.  —  A limitação de toda interpretação assim o exige: que sua repetição seja ilimitada.
Todavia, este encadeamento de formas sem fim, no qual se desenvolve a atividade de interpretar, não se prolonga infinitamente apenas em uma única direção. A vã tentativa de finalmente concluir a interpretação se confunde assim com uma outra igualmente vã: a de encontrar o elemento originário, aquilo que deveria ser interpretado.  —  Concluir a interpretação e buscar sua origem são,
 portanto, problemas de mesma natureza. Pois o que é interpretado é desde sempre uma interpretação e não um fato, ou qualquer outra coisa que se tenha como primeira. Eis um jogo que já não tinha fim e que agora também não tem começo. Procurar este começo, uma tarefa interminável, laboriosa e inútil, uma tarefa para Sísifo.
Sendo assim, quando se interpreta, não se procura algo que seja anterior a qualquer interpretação; não se procura aquilo que se esconde atrás do visível, ou das aparências; não se procura por uma suposta coisa-em-si, ou um verdadeiro rosto atrás das máscaras. Por este motivo, não se pode dizer que haja um "texto" a ser interpretado; em vez disso só o que há são interpretações, que se desdobram em uma série infinita. —  O próprio texto nietzscheano há de ser agora uma interpretação; e o que fazemos aqui é interpretá-lo. Não encontramos nele seu fundamento original, mas antes aquilo por nós interpretado, que agora
 passa a ser disponível, mais uma vez, a novas interpretações.
Isto só é possível porque interpretar é doar sentido (ou significado). É, por assim dizer, uma atividade criadora. Todavia, cria-se algo novo a partir daquilo que nos é disponível. Deve-se, portanto, ser prudente, pois este disponível não pode ser uma folha em branco, um espaço vazio, neutro, isento de sentido. Todo disponível já se faz ocupado. Para que haja interpretação, deve-se portanto fazer o inevitável: rearrumar este espaço ocupado; reorganizá-lo, para que assim ele
 possa ganhar um novo sentido, aquele que nós acabamos de imprimir em seus limites. Esta é toda a nossa dádiva para com aquilo que interpretamos: recompor sob nova tessitura toda interpretação.
Isto só é possível por haver sempre alguma incompletude em todo interpretar. Porque só assim a estrutura da interpretação poderá comportar um contínuo rearranjo. Caso este rearranjo não fosse possível, também não seria possível o que o Zaratustra de Nietzsche chama de poetar: compor em unidade o que era, até então, apenas fragmentos dispostos ao acaso  —  eis a arte da interpretação.
 
simplesmente, jamais poderiam ser apreendidas. Eqüivaleriam assim a um enigma indecifrável, tornando impossível qualquer compreensão. Isto porque o que há para ser compreendido não pode se fazer sólido demais. Deve antes ser
 passível de ser moldado e remodelado, para que nossa própria experiência, nossa própria vivência, possa assim dele se apropriar. Nas palavras de
 Nietzsche: "Não se tem ouvido para aquilo que não se tem acesso a partir da experiência [Erlebnisse]."
Temos então que é nossa experiência ou vivência quem interpreta, ou ainda, temos que é nossa experiência ou vivência quem se apropria do que está sendo interpretado. E é por isso que a própria experiência passa a ser também a garantia da revolução dos sentidos, seu fator de infinita multiplicação  —  pois o caráter múltiplo e fortuito do que é experimentado ao longo de uma vida torna também múltipla a possibilidade de sentidos, que, por isso mesmo, sempre
 poderão tornar-se outros sentidos. Já que a própria experiência, que toma para si a tarefa de interpretar, e portanto de delimitar o sentido, é constitutiva da disposição, do ânimo, ou ainda, do  que prevalece em cada interpretação
 —  Segundo ânimos diferentes, sempre oscilantes, desenvolvem-se diferentes interpretações.
*
É com essa estrutura maleável e sempre em revolução que o "sólido demais"  pode finalmente ser modelado e remodelado, ou ainda, é assim que o que há  para ser interpretado pode finalmente ser apropriado. É deste modo que se abdica da pretensão a uma exatidão, a uma absoluta e irrevogável certeza ou verdade que supere a arte da interpretação. Por isso a interpretação pode se abrir
 para um múltiplo de possibilidades, numa infinita "transitoriedade" [Vergänglichkeit], tal como uma "fruição da força procriadora e destruidora, como uma constante criação."
2. A atividade de interpretar como relação dinâmica de forças.
Como vimos, com a primazia da experiência, nossas interpretações são mais uma vez infinitas, não apenas por se desdobrarem no tempo, diacronicamente, uma após a outra, mas também por se colocarem lado a lado, sincronicamente, seguindo perspectivas distintas, ânimos distintos, objetivos diversos  —  muitas das vezes, em franca oposição; como em um tenso complexo de forças.
 
tempo, mas como uma atividade marcada por esta tensão, por esta incessante interação de forças. Tal mudança de abordagem se faz válida porque, em
 Nietzsche, toda atividade, todo movimento é também uma espécie de luta na qual se instala um desequilíbrio de forças. Tomando, portanto, um viés não mais histórico, vemos agora cada forma não mais como forma-parte-da-atividade- de-interpretar, mas como um plano de forças onde a interpretação é definida.
 —  Por esse viés, se torna mais próximo de nós o aforismo da Genealogia da moral , onde se diz:
(...) qualquer existente, tendo de algum modo vindo a ser, é novamente e mais uma vez reinterpretado
 para outros fins, subjugado, transformado, e redirecionado por alguma potência superior a ele; que todo acontecer no mundo orgânico é um sobrepujar, um tornar-se senhor, e que, por sua vez, todo sobrepujar e tornar-se senhor envolve uma nova interpretação, um arranjo [Zurechtmachen], através do qual qualquer "sentido" e "fim" prévios são necessariamente obscurecidos ou até obliterados.
Podemos então visualizar um embate de forças, tal como se, na atividade de interpretar, fosse inevitável a presença de vetores de força, para que, mais uma vez, aquilo que estivesse sendo interpretado ganhasse forma; tal como se fosse forjado por fortes marteladas. Sendo assim, um "qualquer existente, tendo de algum modo vindo a ser, é novamente e mais uma vez reinterpretado", ou ainda, é novamente e mais uma vez submetido à ação de forças, para, deste modo,
 poder ser "subjugado, transformado, e redirecionado por alguma potência superior a ele". Sendo estabelecido, assim, um novo fim e sentido para este existente, já que os antigos não mais podiam perdurar.
A multiplicidade de sentidos produzidos pela experiência pode ser vista agora como unidade. Isto porque o múltiplo, em Nietzsche, se faz tal como uma regência, uma reunião orientada sob uma tensão, cuja orientação coincide com o novo fim e sentido que ali se forjou. Se esta orientação ou vetor de nossa força resultante for nulo, nossa multiplicidade passa a ser uma fragmentação anárquica, caótica, disforme —  equivalente a um nada. Mas se, por outro lado, esta nossa orientação ou vetor tiver um sentido e intensidade, haverá finalmente a coesão do múltiplo. Isto porque, naquela multiplicidade, atuava uma infinidade de forças expressas agora por um único vetor resultante  —  eis aqui o novo sentido e fim da interpretação: a força resultante do ato de interpretar.
 
resultante à medida que um desequilíbrio de forças se faz presente.) Caso não fosse assim, a interação de forças resultaria numa mera neutralização, numa aniquilação geral das forças  —  num termo final. Mas isto é impensável; pois não há término para o embate das forças em questão, do mesmo modo que nunca houve um início —  um momento de repouso a partir do qual as forças se
 puseram em conflito.
*
Dentro desta física da interpretação, concluímos, portanto, que não há estabilidade ou equilíbrio definitivo no ato de interpretar. Já que, ao se produzir uma interpretação, não se atinge um estágio definitivo, não se alcança um sentido último e absoluto. Cada sentido é sempre sujeito a ser obscurecido, ou até mesmo obliterado (como diz Nietzsche). Isto porque todo sentido, definido
 por uma interpretação, estará sempre em um jogo de diferenciação, em luta,  preso a uma relação de dominação.
Pode-se então compreender toda variação de sentidos como uma "sucessão de  processos de dominação". E é justamente por ser fruto de um processo de dominação, que não podemos compreender a produção de sentidos dentro de uma história contínua, onde um sentido anterior seria a causa de um novo sentido. Visto que o próprio processo de dominação, de onde nascem os sentidos, não comporta uma continuidade causal. Pois as "causas mesmas não
 precisam estar em conexão entre si, mas antes em certas circunstâncias" (diríamos, circunstâncias determinadas na própria luta; que possibilitam que haja um vencedor e um perdedor e que, portanto, determinam, finalmente, o sentido vitorioso). —  Nestes moldes, a interpretação é uma atividade contínua, nunca chegando a um termo final; mas também, descontínua, sempre operando fora de um desenvolvimento progressivo e regular, onde a última interpretação seria mais próxima de um termo final.
 
então se obteria o direito de definir toda  força atuante, inequivocamente, como vontade de potência ."
PARTE II
II- Vida e Arte na Interpretação.
Até aqui, vimos a interpretação se repetindo ao longo do tempo como uma atividade ininterrupta, sempre a se realizar, sempre em função de uma outra interpretação, numa seqüência que se desdobra até o infinito. Como conseqüência disso, vimos que se desvanece qualquer pretensão a uma exatidão, a uma absoluta e irrevogável certeza ou verdade capaz de superar a arte da interpretação. Por outro lado, vimos também que este desdobramento ao infinito não poderia ser progressivo e regular, e que, em vista disso, uma última interpretação não poderia estar cada vez mais próxima de um termo final  —  
 pois justamente não há termo final, e sim uma "sucessão de processos de dominação".
Deste modo, com a inexistência de qualquer promessa de progresso, com a ausência de fatos e a valorização da interpretação, nos vemos, irremediavelmente, em situação de grande embaraço, experimentando assim o incerto e inseguro. Somos, portanto, levados a rejeitar o binômio verdadeiro –  falso como critério de avaliação do que quer que seja.  —  Não cabe que se diga,
 
verdadeira, segundo sua própria e particular vivência; no momento preciso em que é interpretada e vivida. No entanto, dizer isto é dizer também que não há uma sagrada verdade, única e universal.
Uma pergunta por esta verdade, gregária e vulgar, não teria qualquer sentido. Do mesmo modo que se esvaziaria qualquer pergunta sobre a certeza. No seu lugar, porém, seria mais pertinente a pergunta pelo valor. Pois "A questão do valor é mais fundamental que a questão da certeza: esta última se torna séria apenas pela pressuposição de que a questão do valor já tenha sido respondida."
Portanto, ao rejeitar o binômio verdadeiro – falso como critério de avaliação, não se silencia de fato a pergunta sobre a avaliação. Ao contrário, com isso, somos levados a perguntar de maneira mais refinada: —  como é possível que se avalie o ato de interpretar? Ou ainda, não seria a própria valorização da interpretação, uma ameaça a qualquer noção de valor? Ou por outra, haveria algum ponto a
 partir do qual se possa realizar uma tal avaliação?  —  E afinal, que é avaliar?
Avaliar é criar: escutai-o, ó criadores. O próprio avaliar constitui o grande valor e a preciosidade das coisas avaliadas, somente há valor graças à avaliação; e sem a avaliação seria vazia a noz da existência.
Com a fala de Zaratustra, o "avaliar" se faz "criar". O valor perde qualquer caráter definitivo ao qual já aspirou. Passa a ser produzido no ato mesmo da avaliação, sem conquistar nenhum lugar fora dele. "Nenhum valor têm as coisas, no mundo, sem que, antes, alguém as apresente e represente"  , "somente há valor graças à avaliação". Podemos dizer então que o valor é função do ato de avaliar e que, em última instância, nem há valor, mas apenas avaliação. Já que o "próprio avaliar constitui o grande valor e a preciosidade das coisas avaliadas."
Todavia, o problema do valor não fica assim resolvido. É preciso ainda estabelecer critérios para a avaliação, para que então se possa operar uma diferenciação entre avaliações. Caso contrário, todas elas se reduziriam a um nada vale, a uma equalização geral de todos os valores. Para estabelecer tal critério, porém, recorremos à mesma fala de Zaratustra, onde se diz: "Avaliar é criar (...) e sem a avaliação seria vazia a noz da existência." Tomemos então esta criação e existência como base para estabelecer nossos critérios, apreciando assim a avaliação através de sua potência criadora  —  tal como se aprecia a arte. Mas também a partir de sua relação com o próprio valor da existência, o que nos leva a apreciar a avaliação pela ótica da vida.
 
são (conforme veremos) o próprio fundamento de todo o valor na filosofia nietzscheana. Sendo assim, até mesmo a interpretação, vista como expressão de valores, não consegue escapar deste crivo.  —   O infinito desdobramento de formas, assim como a violenta subjugação de sentidos, ao exprimir necessariamente um espectro de valores, acaba por se deixar avaliar pela conjunção vida –  potência criadora.
1. Artes de interpretação.
A criação em Nietzsche tem um caráter peculiar. Ela não é marcada mais por uma tradicional dicotomia onde existiriam dois momentos completamente estanques: um nada originário e o subsequente ser produzido por um Deus a
 partir deste nada. Ao contrário, em Nietzsche, a criação é um processo contínuo de transformação, onde não há um momento de repouso inicial que finalmente daria lugar ao momento da obra acabada. Em vez disso, o que há é tão somente um infinito deslocamento, no qual o ato de criação se desdobra indefinidamente, sem que seja possível lograr um estágio final para todo movimento. Quando se cria, se participa deste movimento, querendo-o e mesmo alegrando-se com ele, ainda que nele esteja necessariamente incluída a destruição.
 Neste ato contínuo de criação, tudo o que é fixo, rígido, ou definitivo é colocado em movimento, inclusive o próprio "criador" e seu "objeto criado". Ambos
 passam a ser apenas sombra da ação criadora, i.e., passam a ser função exclusiva da ação na qual o primeiro está engajado e onde o segundo ganha forma. Por isso mesmo, ambos se tornam insignificantes na ausência do ato criador —  "não há nenhum 'ser' atrás do fazer, do atuar, do devir (...)  —  a ação é tudo.", afirma
 Nietzsche. Sendo assim, o sujeito é visto apenas como parte interessada do ato.  Não é ele de fato quem cria, já que lhe falta unidade para isso. Fragmentado, este sujeito não é mais do que um múltiplo de instintos em luta que apenas pode se unificar pela ação, justamente com a preponderância de um instinto sobre os demais.
Com esta fragmentação do sujeito, a autoria da ação passa a ser deslocada para o interior mesmo da ação, o que faz dela uma ação viva, que carrega dentro de si seu próprio sentido. É por esta razão que, ao agir, introduzimos sentido naquilo sobre o qual se debruça nossa ação; agimos e assim nossa ação doa sentido  —   não qualquer sentido, mas um que seja expressão de um querer
 
quer a vontade que move tal ação? Ou ainda, que interesses estão em jogo ao se agir de um determinado modo?
De maneira radical, esta questão é válida para toda e qualquer ação, inclusive  para nossa ação criadora. Por isso, podemos perguntar com maior precisão:  —   Que quer esta vontade criadora?
Já vimos que ela quer pôr em movimento tudo que é fixo, rígido e definitivo. Mas é preciso ressaltar ainda que este movimento não é um movimento de busca de um ideal, ou de uma melhoria, ou ainda de progresso. Ao contrário, a eterna criação não visa nenhuma melhoria ou progresso.  —  A este respeito, o próprio
 Nietzsche declara:
A última coisa que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam a ter pés de barro.  Derrubar ídolos ( minha palavra para "ideais") —  isto é sim o meu ofício.
Mas além de não visar uma melhoria ou progresso, a vontade criadora sequer visa uma busca —  qualquer que seja ela. Visa antes exatamente o seu oposto: uma doação. Trata-se, portanto, de um querer dar; i.e., trata-se de uma manifestação da vontade criadora que transborda sua potência na expansão de seus limites, levando até o fim suas forças.  —   Neste sentido, não podemos confundir a vontade criadora em Nietzsche com a vontade de um artista que
 busca inspiração para criar. Cria-se justamente por não se poder deixar de criar  —  tal como no caso de uma necessidade. Já que a vontade criadora é fruto de um acúmulo de potência que não pode deixar de ser extravasado  —  nas palavras de Zaratustra: "(...)a taça que quer transbordar, a fim de que sua água escorra dourada, levando por toda parte o reflexo da tua bem-aventurança!"
 
Todavia, Nietzsche desenvolve melhor a relação entre doação e busca em outra  parte de sua obra. No aforismo § 354 da Gaia Ciência,ele nos fala de uma "necessidade de se comunicar" fundada em uma "indigência", de uma falta. Através dela
(...) criou-se um excedente desta força e arte da comunicação, como que uma fortuna que pouco a
 pouco se acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste perdulariamente ( —  os assim chamados artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os oradores, pregadores, escritores: todos os homens que vêm no final de uma longa série, sempre ‘nascidos tarde’, no melhor sentido da palavra, e,
como foi dito, perdulários).
Deste modo, percebemos que o par dar  –  buscar tem seu paralelo no par excesso – 
excassez, o que nos leva a compreender a distinção que Nietzsche estabelece entre o "artista" e os "leigos (susceptíveis à arte): os últimos", diz ele em suas anotações, "alcançam o mais alto ponto de sua susceptibilidade à arte quando eles recebem; os primeiros quando eles doam".
Através destas passagens, identificamos dois caminhos para a comunicação e, conseqüentemente, dois caminhos para a interpretação: (1) o caminho passivo da falta, da "indigência", onde o que é comunicado deveria ser recebido por quem quer se comunicar (o leigo); (2) o caminho ativo da abundância, do desperdício, onde o que é comunicado precisaria ser doado por quem quer se comunicar (o artista).
Ambos os caminhos nos auxiliam a compreender a "Interpretação" como "introdução de sentido". Pois há arte de interpretação em ambas as direções. De um lado, a interpretação receptiva, que ingenuamente se vê remetida a algo externo. Ela quer ser uma reprodução, ou seja, quer produzir uma cópia, uma repetição idêntica ou aproximada daquilo que se está interpretando, daquilo que viria de fora e que serviria de modelo para sua adaptação e conformação, tal como uma referência, um ponto de apoio que lhe dê segurança. Mas ainda que ela não alcance seu intento de reproduzir, ela se escravizará a ele e, por isso, continuará nessa busca eterna e angustiante. Sempre introduzindo sentido,
 
Quer, portanto, continuar transformando e dando forma  —  criando eternamente e eternamente se colocando em risco, rejeitando assim a segurança de modelos externos. Querendo ser ela mesma o modelo, pois é diferente e única.
Há então arte em ambas as direções. Artes distintas, no entanto, já que não são orientadas pelo mesmo desejo  —  pela mesma vontade. A arte daquele que se sabe artista, e assim cria porque quer criar, se diferencia, portanto, de uma outra arte: a arte produzida pelas mãos de um leigo, que desconhece sua arte e por isso busca a verdade. A partir desta distinção e tomando apenas a espontaneidade da invenção artística como critério, Nietzsche poderá então afirmar:
A arte adquire agora uma dignidade inteiramente nova. As ciências, ao contrário, foram rebaixadas em um grau. A veracidade da arte: ela é a única a ser sincera.
Vemos que, mesmo sendo dissimulada, a arte do leigo não deixa totalmente de ser arte —  uma arte menor, mais ainda assim uma arte. Neste sentido, afirma
 Nietzsche: "‘Vontade de verdade’—   a esta altura é essencialmente arte de interpretação ; dentro dela ainda há força de interpretação." É por esta razão que encontramos nesta arte a Tartüfferie, a arte da falsificação, sintoma da mais fina hipocrisia.
Mas justamente porque ambas são arte de interpretação, é que podemos ver, tanto em uma quanto na outra, a introdução de sentido e a expressão de valores.
 Não os mesmos sentidos, nem os mesmos valores; pois, como já se sabe, não são as mesmas vontades que as orientam. Será bem-vinda e muito útil esta diferença entre vontades, nos trazendo ainda a possibilidade de julgar nossas interpretações através de suas respectivas orientações. Pois caso nos limitássemos a utilizar apenas a própria arte e sua espontaneidade como critério de avaliação, seríamos levados finalmente a nos perguntar:  —  Por que uma arte deveria se sobrepor a outra?  —  Apenas por conta de uma tal espontaneidade?
 Não nos seria talvez permitido julgá-las com maior precisão por um outro viés que não o da invenção artística? Neste sentido, o próprio fato de ambas as interpretações serem arte, aparência e máscara acaba por exigir que uma
 
Sendo assim, tomaremos o querer íntimo de nossas interpretações como sintoma de algo maior: sintoma da relação que nossas interpretações mantêm com a vida. Pois "O valor para vida é finalmente decisivo." Por isso, devemos nos perguntar:  —  Qual das interpretações realmente valoriza e engrandece a vida? Qual delas a intensifica e enaltece? É o caso, portanto, de apreciarmos nossas interpretações através dessa "última instância": a vida. Somente assim,
 poderemos afinal dar conta de nossas questões.
2. Vontade de potência e vida na interpretação.
Vimos que a interpretação deveria ser avaliada "do ponto de vista da vida" Procedendo agora deste modo, pretendemos ter em mãos as condições necessárias para uma outra compreensão da interpretação, não apenas como invenção, mas como sintoma de uma saúde ou enfermidade, i.e., como disposição ou indisposição para a vida. Assim, poderemos diagnosticar a
 própria vontade que orienta cada interpretação.
Esta avaliação é de fato possível porque, em Nietzsche,
o ponto de vista do "valor" é o ponto de vista das condições de conservação e intensificação com respeito a formações complexas de duração relativa da vida no interior do devir.
Deste modo, o valor passa a ser vinculado à vida, mas de uma maneira especial: trata-se de erigir critérios de avaliação orientados pela "conservação e intensificação" daquilo que vive e que, por ser vivente, se encontra no interior mesmo do devir. Significa dizer então que o valor de um pensamento ou de uma interpretação é estabelecido segundo sua relação com a vida: de conservação ou intensificação, mas sempre em uma perspectiva de movimento, de devir.
Todavia, tais critério permanecem ainda vagos. Por isso, se faz necessário que respondamos a uma questão fundamental: " Mas o que é vida?"  —   A essa questão, o próprio Nietzsche responde com "uma nova concepção de vida", que ele assim enuncia: "a vida é vontade de potência".
 
uma antiga concepção do que é vida, já inscrita na história do nosso pensamento ocidental. Teria sido talvez Espinosa quem elaborou este pensamento, já muito antes do próprio Nietzsche.
Esta dúvida se justifica porque, na  Ética de Espinosa, encontramos uma  passagem que poderia muito bem nos levar a suspeitar da originalidade do filosofia nietzscheana. Neste sentido, afirma Espinosa: "A mente esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar as coisas que aumentam ou facilitam a potência de agir do corpo." Poderíamos então traçar um paralelo entre a "vontade de
 potência" em Nietzsche e o "esforço para aumentar a potência" em Espinosa, como se a vontade de potência fosse um esforço para alcançar a potência.
Todavia, este paralelo deve ser tomado aqui apenas como referência para compreendermos somente uma  possibilidade de vontade de potência. Já que, em Espinosa, o esforço para alcançar a potência só se faz possível em função de uma vontade de autopreservação. Para ele, "Cada coisa se esforça, enquanto está em si, por se preservar em seu lugar." Mas devemos lembrar que Nietzsche, leitor de Espinosa, faz justamente uma crítica à autopreservação espinosana. Para ele, "A lei da ‘autopreservação’ de Espinosa deve  realmente colocar um freio na mudança: mas esta lei é falsa, o oposto sim é verdadeiro." Neste sentido,
 Nietzsche também interpretará a autopreservação como uma diminuição e empobrecimento da vida. Assim,
A vontade de conservação é a expressão de uma situação desesperada, de uma restrição do instinto vital que, por sua natureza, aspira a uma extensão de
 potência e por isso freqüentemente põe em jogo e sacrifica a própria conservação.
Deste modo, predominando sobre os demais instintos, a autopreservação  procura evitar o risco, o incerto e inseguro; mas por isso mesmo ela acaba por  paralisar a própria vida, colocando-a em extremo perigo. Paradoxalmente, em uma verdadeira preservação da vida, deve estar implicada a vontade de aventurar-se e, portanto, de expor-se ao risco. Numa palavra, "Viver não é sobrevier."  —   Com vistas a esta verdadeira preservação da vida, o instinto
 predominante "(...) deverá ser uma vontade de potência encarnada, de querer crescer, se estender, açambarcar, dominar, mas porque vive e a vida é vontade de potência."
 
 permanecem vontade de potência. Destarte Nietzsche pode declarar "que a vontade de potência é a forma primitiva da disposição [Affekt], que todas as outras disposições são apenas desenvolvimentos dela". Há, portanto, disposições que elevam a vida, pois a intensificam ao se aventurar num movimento de contínuo crescimento em conjunto com ela. Mas há também aquelas que rebaixam e diminuem a vida, porque a negam, querendo impedir assim o seu inevitável fluxo.
Percebemos então que o que está em jogo é finalmente uma aversão ao fluxo da vida, i.e., ao caráter temporal de toda existência. Contrária a este fluxo, a vontade irá se manifestar negando a vida em seu movimento de criação e destruição, suplicando então por um outro mundo onde não haja tal movimento
 —  um mundo eterno, livre de todo devir. Mas, sobre isso, dirá Nietzsche: "Isso, sim, apenas isso já é uma vingança: a aversão da vontade pelo tempo e seu ‘Foi
assim.’" 
Esta mesma aversão ao tempo —  no que lhe é mais próprio, sua transitoriedade  —  já denota um sintoma bastante peculiar: um sintoma de ressentimento. Preso ao ressentimento, "Não se sabe nada rechaçar, de nada se desvencilhar, de nada dar conta —  tudo fere. A proximidade de homem e coisa molesta, as vivências calam fundo de mais, a lembrança á uma ferida purulenta." Falta ao ressentido,
 portanto, uma capacidade de esquecimento. E é por essa razão que tudo que está em fluxo lhe provoca incômodo, não podendo haver "nenhuma felicidade, nenhuma jovialidade, nenhuma esperança, nenhum orgulho, nenhum presente". Sua exacerbada memória lhe impede assim de redimir o passado e viver com
 plenitude o presente.
E é por conta de sua memória que este mesmo tipo ressentido irá reivindicar um ser , estável, estático e eterno;  a parte de toda transitoriedade, de todo fluxo temporal. Mas é propriamente a isto que se recusa Nietzsche:
O que nos separa mais radicalmente do platonismo e do leibnizianismo é que não acreditamos mais em conceitos eternos, em valores eternos, em formas eternas; e a filosofia, na medida em que é científica e não dogmática, é para nós apenas uma maior extensão da noção de "história". A etimologia e a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os conceitos comoadvindos, muitos dentre eles como ainda em devir.
 Neste sentido, o platonismo e o leibnizianismo são manifestações deste ressentimento contra o tempo e sua transitoriedade. Como em toda metafísica, tais doutrinas acabam por produzir formas pretensamente eternas,
 
metafísica uma oposição nítida entre ser e devir, na qual o ser é privilegiado em detrimento do que está em fluxo, em detrimento da própria vida. Por isso
 Nietzsche poderá tratar esta oposição como sintoma. Para ele "Todas aquelas orgulhosas insanidades metafísicas, respondem especialmente às questões do valor da existência, podem sempre ser consideradas como sintomas de certas constituições físicas."
Este sintoma, entretanto, não vale apenas para o campo teórico, como é o caso da metafísica, mas sim para toda e qualquer interpretação. Visto que, para
 Nietzsche, "cada interpretação é um sintoma de crescimento ou de declínio." Sendo assim, ao expressar valores, uma interpretação acaba por manifestar sua
 própria potência. Desta forma, Nietzsche poderá afirmar:
Aqueles pobres em vida, os fracos, a empobrecem; aqueles ricos em vida, os fortes, a enriquecem. Os
 primeiros são parasitas da vida; os segundos oferecem presentes a ela.
Encontramos assim pobreza e revolta contra a vida não só na metafísica, mas também nos enunciados práticos. Pois uma interpretação moralizante, por exemplo, ao instituir os valores que lhes são próprios  —  valores absolutos de
 bem e mal — , acaba por julgar negativamente a vida, visto que esta escapa às classificações morais. Ela é, antes de mais nada, imoral. Por esta razão,
*
Relacionando assim interpretação e vida, retomamos finalmente nossa questão: como é possível que se avalie o ato de interpretar? ou ainda, como é possível
 justificar que uma interpretação se sobreponha à outra? Agora talvez se torne  possível uma resposta  —   mas com uma outra pergunta:  —   Afinal, a interpretação a ser avaliada superou interpretações mais estreitas, abriu novas
 perspectivas, fez crer em novos horizontes, enriqueceu e fortaleceu a vida? Se assim o foi, estamos diante de uma interpretação nobre e elevada. Caso contrário, trata-se de uma interpretação pobre e mesquinha.  —  Avalia-se assim todo interpretar.
 
Dentro deste movimento, a própria interpretação se desdobra num infinito criar e destruir, sempre retomando o que havia sido interpretado, para mais uma vez conferir-lhe um novo sentido. Isto é feito com todo o vigor de quem é capaz de converter horrendo acaso em unidade. E é este vigor que torna possível uma afirmação da vida. É preciso, portanto, que uma saúde ou potência se faça
 presente para que uma tal afirmação da vida seja finalmente possível.
Dizer isso, porém, não significa dizer que falta potência em uma interpretação que nega a vida. A escassez nesta potência não é sinônimo de nulidade, e sim de negatividade. De fato é preciso que haja alguma potência, ainda que para negar e rebaixar a vida. Mas se há uma potência que nega a vida, esta deve ser compreendida como uma potência de outra ordem, uma potência negativa, que não manifesta saúde, mas enfermidade.
É deste modo que encontramos pelo menos duas relações possíveis entre vontade de potência e interpretação em Nietzsche:
1.  Quando há uma vontade de potência negativa  —  que acaba por negar a vida e tudo que vive, se move e quer crescer. Neste caso, a interpretação é manifestação de uma vontade de verdade. Ela não vê qualquer sentido no eterno movimento de criação e destruição que se nos impõe. Por isso, ela precisa dar um outro sentido a este mundo instável através da
 produção de um mundo estável, querendo o ser em lugar do devir .
2.  Quando há uma vontade de potência afirmativa  —  que afirma a vida e tudo que se move e quer crescer. Neste caso, a interpretação é manifestação de uma vontade criadora. Com esta interpretação não há uma dicotomia entre ser e devir, já que não há um ressentimento contra o tempo. Ao contrário, nela vemos imperar uma forma superior da vontade de potência, com a qual finalmente se impõe ao devir o caráter de ser. Doa-se, deste modo, sentido ao próprio devir.
Todavia, é preciso compreender o caráter desta doação de sentido. Visto que impor ao devir o caráter de ser não significa congelar, petrificar, paralisar o devir. Mas também não pode significar uma "libertinagem" geral do ser. Neste sentido, afirma Nietzsche: "(...) o princípio do ‘laisse aller’ não deve ser
 
cada mínimo instante do devir; neles imprimindo o máximo de intensidade. Realizar isto eqüivale a afirmar a própria vida  —  não parcialmente, mas por inteiro, em cada instante que ela nos oferece. Trata-se de uma "afirmação religiosa da vida em que sua inteireza, de que não renegamos nada, de que não suprimimos nada"; "uma afirmação dionisíaca do mundo como ele é, sem subtração, exceção ou seleção"   —   sem reservas. Nesta afirmação do mundo "(...) quer-se a circulação eterna:  —  as mesmas coisas, a mesma lógica e falta de lógica dos emaranhamentos." Quer-se, portanto, repetir cada instante da vida até o infinito. Alcança-se assim "O mais alto estado que um filósofo pode atingir: permanecer em uma relação dionisíaca com a existência (...)". Uma fórmula para isso: "amor fati."
Querer deste modo a eterna repetição do instante vivido é exprimir ao máximo a vontade de potência; é diluir a oposição entre mundo do ser e mundo do devir;
 passando, cada instante, a ser eterno.  —   É o caso então de compreender a interpretação a partir deste querer que intensifica a vida ao fazer de cada instante um instante eterno. Para isso, é preciso ver, mais uma vez, a atividade de interpretar como uma eterna repetição de interpretações. Onde cada interpretação é levada ao extremo, justamente porque é fruto de uma violenta
 produção de sentidos  —  mas sem que com isso se perca de vista o que já foi dito: que ela é também um eterno movimento de transformação.
Dá-se portanto, na interpretação, a conjunção entre ser e devir. Pois cada interpretação passa a ser igualmente definitiva e passageira; violenta subjugação, mas também eterno movimento; verdade, mas também máscara. É
 por este motivo, i.e., por este seu duplo caráter, que o ato de interpretar torna- se possível. E é assim que se justifica o ato criador  —  a eterna repetição do criar e destruir — : antídoto contra toda vontade de verdade, contra toda interpretação moral.
CONCLUSÃO
 
que não poderia haver nem verdade absoluta, nem progresso no ato de interpretar, o que acabava por colocar em questão o próprio sentido da interpretação. Por isso nos perguntamos: por que interpretar, se não se alcança uma verdade ou ao menos uma promessa dessa verdade no futuro? Sem uma resposta para esta questão, vimos que nenhuma interpretação poderia ser
 privilegiada em relação à outra. O valor de todas as interpretações possíveis se fez reduzido a um nada vale.
Considerando que nenhuma de nossas caracterizações respondeu às questões sobre o valor da interpretação, fomos levados a recorrer ainda a uma outra instância, a partir da qual se pudesse finalmente avaliar toda interpretação. Nos valemos assim da arte. Vendo nossas interpretações por esta perspectiva,
 pudemos então julgar ser de maior valor aquela que produzisse suas formas espontaneamente, i.e., sem a pretensão de que elas fossem a representação de uma verdade. Pois uma interpretação que produzisse formas com vistas a alcançar a verdade deveria mesmo ser rebaixada. Justamente porque faz arte, enquanto o que queria de fato era ser verdadeira  —   temos assim uma arte
 pequena, porque é como não queria ser .
Todavia, esta abordagem da interpretação pelo viés da arte não resolveu nosso  problema. Pois como a arte poderia julgar a interpretação, se toda interpretação é também arte? Apenas a espontaneidade não seria suficiente neste nosso
 julgamento. Em vista disso, mudamos nosso olhar de direção e recorremos a uma outra instância avaliadora: a vida. Esta sim poderia julgar cada uma das interpretações. Para isso, bastaria que verificássemos o que cada uma delas diz a respeito da vida. E é por isso que Nietzsche pode afirmar:
Juízos, juízos de valor sobre a vida, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintoma (...) É preciso estender os dedos, completamente, nesta direção e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse  —  de que o valor da vida não pode ser avaliado . Por um vivente não,
 porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão.
 
a interpretação. Não como um sujeito ou substância, mas como fato último a que se pode chegar .
Dizer isso, porém, significa dizer que a vontade de potência é antes a própria ação —  nascida de uma pluralidade de forças, e não um sujeito por detrás da ação. Ela é a orientação e o vetor que surge a partir do interior da própria luta em que estão eternamente inseridas as forças em conflito que a possibilitam. Por isso, desta luta, pode emergir, vitorioso, um sentido —  que é agora a própria vontade. Sendo assim, afirmamos com Nietzsche: "Todo sentido é vontade de
 potência (todos os sentidos relativos resolvem-se nela)." Por esta razão,  podemos perguntar: —  Que quer uma vontade? Quer afirmar ou negar a vida? Respondendo tais questões, podemos compreender finalmente o sentido de cada interpretação.
Mas vimos que afirmar a vida era também afirmar cada instante no interior do devir —  sem restrições, sem quaisquer reservas. Com isso compreendemos que uma vontade afirmativa é aquela que é capaz de querer cada instante da vida,
 por mais insignificante ou cruel que ele seja. Indo ainda mais longe, esta vontade é aquela que deseja a eterna repetição de cada instante, necessitando
 para isso, entretanto, de uma grande saúde, de um grande vigor. Caso contrário, ao experimentar a idéia de repetir cada instante, a vontade poderia ser aniquilada. A vontade afirmativa deve ser, portanto, forte o suficiente para afirmar a vida. E a interpretação que nasce com esta vontade será então manifestação desta força e saúde. Somente assim ela seria capaz de se repetir eternamente, sempre com grande intensidade  — ainda que nunca permaneça a mesma.
Todavia, esta vontade afirmativa ainda é vontade de produzir formas, fazer arte. É ela ainda quem interpreta a vida e faz dela ponto de partida de toda avaliação. Portanto, ao eleger a vida como instância avaliadora de toda interpretação, de toda invenção artística  —  pensamento, forma e sentido  — , devemos não nos esquecer que tal concepção permanece sendo fruto de uma arte de interpretar, que mais uma vez deverá ser interpretada... e assim por diante; sem que, entretanto, seja possível lograr —  qualquer conclusão.
BIBLIOGRAFIA
FONTES
 NIETZSCHE, F. W.  —   Sämtliche Werke, vol. I a XV, edição crítica organizada por G. Colli e M. Montinari; editada na Alemanha por Walter de Gruyter & Cia., 1988.
TRADUÇÕES
Para as citações constantes nesta monografia, tomamos como referência as seguintes traduções (comparado-as com o original em alemão, sempre que necessário):
 ———— , The Portable Nietzsche. (obras incompletas) New York: Viking Penguin, 1982, trad. Walter Kaufmann, 692 p.
 ———— , O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. S. Paulo: Companhia das Letras, 1992, trad. J. Guinsburg, 177 p.
 ———— , Untimely Meditations. Cambridge: Cambridge, 1997, trad. R. J. Hollingdale, 276 p.
 ———— ,  Philosophy and truth: selections from  Nietzsche’s notebooks of the early 1870’s. New Jersey: Humanities Paperback Library, 1990, trad. Daniel Breazeale, 165 p.
 ———— , Human, all too human: a book for free  spirits. Cambridge: Cambridge, 1996, trad. R. J. Hollingdale, 400 p.
 
 ———— , The gay science. New York: Vintage, 1974, trad. Walter Kaufmann, 396 p.
 ———— ,  Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém . 7ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, trad. Mário da Silva, 331 p.
 ———— ,  Além do bem e do mal: prelúdio a uma  filosofia do futuro. 2ª ed., S. Paulo: Companhia das Letras, 1992, trad. Paulo César de Souza, 271 p.
 ———— , On the genealogy of morals . New York: Vintage, 1967, trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale, 367 p.
 ———— , Ecce Homo: como alguém se torna o que é. S. Paulo: Companhia das Letras, 1995, trad. Paulo César de Souza, 153 p.
 ———— , The will to power . New York: Vintage, 1967, trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale, 575 p.
 ———— ,  Despojos de uma tragédia  (correspondência incompleta). Lisboa: Relógio D’água, s/d, trad. Ferreira da Costa, 324 p.  
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