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MAGISTRADO Escola da Magistratura pesquisa medidas contra a violência PÁGINA 10 Entrevista exclusiva com Michel Miaille PÁGINAS 14 E 15 Legislativo do Rio aprova o fim das sessões secretas PÁGINA 3 J O R N A L D O ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - AMB l ANO XII l NÚMERO 68 l BRASÍLIA, MARÇO A JUNHO DE 2002 O fim dos tempos Aonde vai parar a espiral da violência? jornal junho 2.qxd 7/1/02 3:56 PM Page 1

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MAGISTRADOEscola da Magistraturapesquisa medidas contra a violênciaPÁGINA 10

Entrevistaexclusiva comMichel MiaillePPÁÁGGIINNAASS 1144 EE 1155

Legislativo do Rioaprova o fim dassessões secretasPPÁÁGGIINNAA 33

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O fim dos temposAonde vai parar a espiral da violência?

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l REFORMA DO JUDICIÁRIO ll EDITORIAL l

OPlenário do Senado Federal iniciou dia 19 de junhoas discussões, em primeiro turno, da PEC 29/00,que dispõe sobre a reforma do Poder Judiciário. Amatéria teve cinco sessões de discussão e retornou

à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para análise dasemendas de plenário, antes da votação, mas são poucas aschances de a votação ser concluída nos próximos meses, comopretendia o relator, senador Bernardo Cabral (PFL/AM).

O presidente da AMB, Cláudio Baldino Maciel, e a Comis-são de Acompanhamento Legislativo, coordenada pelo vice-presidente Gustavo Tadeu Alkmim, estiveram no Senado Fede-ral, onde acompanharam a apresentação das 16 emendaspropostas pela entidade. Nas cinco sessões de discussão foramapresentadas mais de 100 emendas à PEC, o que ressalta ascríticas ao texto aprovado pela CCJ.

Ao receber emendas, a matéria tem que retornar à CCJ,para receber parecer, antes da sua votação pelo plenário.A PEC só é dada como aprovada após a votação em doisturnos, porém, qualquer alteração que for oferecida a fazretornar à Comissão. Além disso, depois do recesso par-lamentar de julho, as atenções estarão voltadas para asbases eleitorais, principalmente porque dois terços do Sena-do Federal serão renovados nas eleições. Após a defini-ção das candidaturas por parte dos partidos, será difícilgarantir o quorum necessário para a votação da PEC, jáque o Regimento Interno exige no mínimo 49 senadorespresentes.

Contato permanente

A Proposta de Emenda à Constituição nº 29 de 2000, quepropõe alterações na estrutura do Judiciário, chegou ao Sena-do em junho de 2000, após ter sua votação concluída pelaCâmara. Somente em novembro de 2001 iniciaram-se as vota-ções da matéria na Comissão de Constituição e Justiça do Sena-do, encerradas em março deste ano.

A AMB tem mantido contato permanente com o relator ecom os demais senadores, pleiteando o acolhimento das pro-postas da magistratura. Várias delas foram acolhidas no rela-tório inicial de Bernardo Cabral. Outras foram incorporadasao projeto na forma de destaques apresentados por outrossenadores integrantes da CCJ. Porém, as principais emendaselaboradas pela Comissão de Estudos Constitucionais e Refor-ma do Judiciário da AMB não foram aproveitadas nesse pri-meiro momento de votação. Alguns pontos do relatório sofre-ram retrocesso, como é o caso da manutenção dos tribunaisde Alçada.

Logo após a conclusão da votação pela CCJ, a Comissão deAcompanhamento Legislativo da AMB permaneceu em Brasí-lia, fazendo reuniões com os senadores, no sentido de buscarapoio para as propostas. Graças a esse trabalho, que tambémfoi feito por várias associações estaduais, junto aos senadoresnos seus respectivos Estados, as 16 emendas da AMB já têm onúmero de assinaturas de senadores necessário (27) para apre-sentação em plenário.

Votação final ainda está longePropostas da AMB

São as seguintes as propostas daAMB para o plenário: súmulaimpeditiva de recursos, no lugar dasúmula vinculante; eleição diretapara cargos diretivos dos tribunais;eleição da metade da composiçãodo órgão especial; alteração dedispositivo que prevê a realização deconcurso para ingresso namagistratura, por entidade públicanão pertencente à estrutura doPoder Judiciário; extinção dostribunais de Alçada; supressão doincidente de deslocamento dacompetência da Justiça dos estadospara a Justiça Federal, nos casos deviolação dos direitos humanos;competência da Justiça do Trabalhopara os crimes contra a organizaçãoe administração da Justiça doTrabalho; execução, de ofício, dasmultas por infração à legislaçãotrabalhista, reconhecidas emsentença que proferir; execução, deofício, dos tributos federais,incidentes sobre os créditosdecorrentes das sentenças queproferir.E mais: quarentena de três anos parao acesso a tribunais, para integrantesda advocacia e do Ministério Público;quarentena de três anos para oexercício da advocacia por ex-juízes,no juízo do qual se afastou; alteraçãono critério para o preenchimento devagas do quinto constitucional,destinando-as primeiro aos juízes decarreira; exigência da nomeação, porparte do presidente do tribunal, paraa vaga destinada ao quintoconstitucional, se o chefe do PoderExecutivo não o fizer no prazo de 20dias; atribuição de competência paraa Escola da Magistratura estabelecernormas gerais pertinentes aoconcursos; harmonização, nafederação brasileira, da remuneraçãodos magistrados, evitandodesequilíbrios regionais; vedação douso da denominação de juiz a nãointegrantes da estrutura do PoderJudiciário.

A íntegra das propostas, com as devidasjustificativas, pode ser encontrada no site daAMB (www.amb.com.br, no link Reforma doJudiciário).

Luis Felipe entregou propostas a Sérgio Cabral (dir), no dia da Mobilização

Legislativo do Rio põe fim às sessões secretas

Ecos da Mobilização

A Assembléia Legislativa do Rio deJaneiro aprovou dia 20 de junho, por una-nimidade, o projeto de Emenda àConstituição Estadual que institui o fimdas sessões secretas nos tribunais e o fimdo voto secreto e imotivado para pro-moção e remoção de magistrados. O Riode Janeiro é o primeiro estado do Paísa obter a aprovação do Legislativo paraacabar com as sessões secretas. O MatoGrosso do Sul aprovou emenda contrao nepotismo, em maio.

O projeto de emenda havia sido entre-gue pelo presidente da Associação dosMagistrados do Rio de Janeiro (Amaerj),Luis Felipe Salomão, ao presidente daAlerj, deputado Sérgio Cabral Filho(PMDB), em 17 de maio deste ano, quan-do a AMB promoveu, em todo o Brasil,o Dia Nacional de Mobilização pela Demo-

cratização Plena do Judiciário. De acor-do com Luiz Felipe, "a transparência admi-nistrativa no Judiciário fluminense é umareivindicação antiga da classe e acabousensibilizando os deputados".

Outras duas emendas - a que proí-be o nepotismo nos três Poderes e aque institui eleições diretas para os car-gos diretivos dos tribunais - ainda serãovotadas, provavelmente após o reces-so de julho. O presidente da AMB, Cláu-dio Baldino Maciel, acredita que há

grandes chances de aprovação das duasmedidas, principalmente da eleiçãodireta. Segundo ele, a Constituição prevêque cabe aos tribunais elegerem seusdirigentes. Como a Amaerj sugere quejuízes e desembargadores façam umalista tríplice e encaminhem para deci-são do tribunal, não há inconstitucio-nalidade. "Se o Rio conseguir a elei-ção direta abrirá um precedenteimportante no País", avalia o presiden-te da AMB.

Modernidade e engajamento SH Norte, Qd. 02, Bloco A, Sbl. L1, Sala 293

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Presidente Cláudio Baldino Maciel - Ajuris (RS)

Secretário-geralGuinther Spode - Ajuris (RS)

Diretor-tesoureiroRonaldo Adi Castro da Silva - Ajuris (RS)

Vice-presidentesCláudio Augusto Montalvão das Neves - Amepa (PA)

Douglas Alencar Rodrigues - Amatra X (DF)Guilherme Newton do Monte Pinto - Amarn (RN)

Gustavo Tadeu Alkmim - Amatra I (RJ)Heraldo de Oliveira Silva - Apamagis (SP)

Joaquim Herculano Rodrigues - Amagis (MG)Jorge Wagih Massad - Amapar (PR)

Luiz Gonzaga Mendes Marques - Amamsul (MS)Roberto Lemos dos Santos Filho - Ajufesp (SP)

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro - Amma (MA)Thiago Ribas Filho - Amaerj (RJ)Coordenador da Justiça Estadual

Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço - AMC (SC)

Coordenador da Justiça Federal José Paulo Baltazar Júnior - Justiça Federal (RS)

Coordenador da Justiça do Trabalho Francisco Sérgio Silva Rocha - Amatra VIII (PA)

Coordenador da Justiça MilitarCarlos Augusto C. de Moraes Rego - Amajum (DF)

Coordenador dos AposentadosCássio Gonçalves - Amatra III (MG)

Conselho FiscalJoão Pinheiro de Souza - Amab (BA)

Jomar Ricardo Saunders Fernandes - Amazon (AM)Wellington da Costa Citty - Amages (ES)

J O R N A L D O

MAGISTRADO

2 l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l J O R N A L D O M A G I S T R A D O J O R N A L D O M A G I S T R A D O l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l 3

é uma publicação da Diretoria de Comunicação Social da AMB

Av. Erasmo Braga, 115, 4º andar, Bloco J, Lâmina 1, SetorAdministrativo

Centro - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20.026-000Tel.: (21) 2533-7966 / 2220-9169

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EdiçãoFernanda Pedrosa (MTb.: 13511)

RedaçãoFernanda Pedrosa, Lúcia Seixas e Rafael Ribeiro

Projeto Gráfico e DiagramaçãoSquadro

Tiragem17 mil

CapaGiovanni Falcone

Foto de Giuliano di Cola

Os artigos assinados são de responsabilidade dos seus autores.

É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

Nos últimos meses, a Associação dosMagistrados Brasileiros passoupor várias mudanças, no sentidode torná-la mais dinâmica, enxu-ta e eficiente, sobretudo do ponto

de vista administrativo. Outra prioridade daDiretoria foi dar divulgação cada vez maioràs medidas adotadas e às atividades desen-volvidas pela entidade. Em resumo, busca-semais transparência e maior integração como associado.

Para acompanhar esse perfil atual, foi ado-tada uma nova logomarca e desenvolvida umaprogramação visual mais compatível com amodernidade e o engajamento que se desejadar à AMB. As publicações - boletim, jornal erevista -, existentes há muitos anos, tambémnão podiam ficar de fora dessa transformação.Depois de alguns meses, temos a satisfação decolocar na rua o novo JORNAL DO MAGISTRA-DO, com projeto gráfico e editorial mais pró-ximo ao das revistas.

Dentro de uma linha menos corporativa emais jornalística, escolhemos como tema decapa o assunto que mobiliza toda a socieda-de brasileira: a escalada incontrolável da vio-lência. Alçada à categoria de "inimigo núme-ro um do País" pelo próprio presidente da Repú-blica, a criminalidade desafia não só a polí-cia e as autoridades governamentais, mas tam-bém todos aqueles que lutam pela cidadaniae pelo estado democrático.

Na capa desta edição, homenageamos um íconedessa luta, o juiz italiano Giovanni Falcone, mortopela Máfia quando fazia parte de um pequenogrupo de magistrados que investigava o crimeorganizado. Ele e seu colega Paolo Borsellino,também assassinado, são os principais persona-gens de uma exposição fotográfica que corre omundo lembrando que mudam os protagonis-tas, mas a história se repete.

Convidamos especialistas, acadêmicos, jor-nalistas e vítimas, para debater as origens daviolência e as medidas possíveis para conteressa escalada, que poderá acabar por sepul-tar de vez o mito do brasileiro cordial. Não que-remos, no entanto, nos afastar do núcleo doproblema, como se ele não nos atingisse oucomo se negássemos a parcela de responsabi-lidade do juiz e do Judiciário nessa questão.Ao contrário, estamos iniciando uma pesqui-sa entre todos os 15 mil 300 magistrados doPaís, para colher opiniões, sugestões e proje-tos em torno do tema e oferecê-los como con-tribuição qualificada ao Congresso Nacional.É fundamental, portanto, o retorno do maiornúmero possível de questionários respondidos.

Abordada sob vários ângulos ao longodesta edição, a questão da violência está pre-sente, ainda, na entrevista do professor fran-cês Michel Miaille, que fala das ameaças à cida-dania. Autor de uma das mais importantes obrassobre Filosofia do Direito - Introdução críticaao Direito -, Miaille desenvolve na França umtrabalho semelhante ao projeto "Cidadania eJustiça também se aprendem na escola", quea AMB realiza com estudantes de todo no Bra-sil e que tem como principal instrumento a Car-tilha da Justiça em quadrinhos.

E por último, mas não menos importante,temos motivos para comemorar duas vitóriasconcretas do movimento de Mobilização pelaDemocratização do Judiciário, liderado pelaAMB. O Legislativo do Mato Grosso do Sul apro-vou emenda constitucional proibindo o nepo-tismo e o Rio de Janeiro pôs fim às sessões admi-nistrativas secretas nos tribunais.

Vamos adiante.

Cláudio Baldino Maciel

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l CAPA l

LÚCIA SEIXAS

O mito se desfez. De

ordeiro, pacífico e cordial, o

brasileiro é visto hoje como

um dos povos mais

violentos do mundo. Para

discutir essa transformação,

o JORNAL DO MAGISTRADO

ouviu especialistas em

criminalidade, direitos

humanos e segurança

pública, que construíram

um mosaico de causas,

conseqüências e soluções

possíveis para a violência

em nosso País.

A cruelespiral da violência no Brasil

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C omo combater a violência quando ela forma umaespiral incontrolável na sociedade? Que estraté-gias usar quando o grau de violência a que recor-rem os bandidos excede o objetivo criminal con-creto? Como impedir que policiais combatam a

violência com mais violência, muitas vezes ignorando a lei? A busca por respostas para estas questões tem levado soció-

logos, antropólogos e cientistas sociais aum profundo mergulho nas causas his-tóricas da violência no País, condição fun-damental para que as políticas públicasde combate à criminalidade sejam ela-boradas sob alicerces mais seguros.

Para o antropólogo Roberto Kant, pro-fessor da Universidade Federal Fluminen-se (UFF), a violência surge da inadequa-ção dos mecanismos institucionais de solu-ção dos conflitos. "Se vivemos numa socie-dade democrática e todos temos direi-tos, os conflitos são inevitáveis. A ordemsocial, portanto, deve nascer da negocia-ção desses conflitos. O problema é quea sociedade brasileira é monárquica e aris-tocrática e nossa cultura jurídica odeia

o conflito", afirma Kant. Existem dois modelos estratégicos de administração dos

conflitos no Brasil, segundo o antropólogo: o de matriz mili-tar, que elimina ou concilia os conflitos, e o de matriz jurídi-ca, que é punitiva. Como nenhuma dessas estratégias é pre-ventiva – são apenas repressivas –, os conflitos não têm paraonde ir, ou são tratados de forma inadequada. "Hoje se con-dena o bandido, mas é preciso lembrar que esse homem nãoé um ET, um ser que surgiu ao acaso. O homem, o homo sapiens,precisa aprender tudo. Ele nasce sem saber absolutamentenada. A sociedade não pode esperar que um indivíduo quenão foi para a escola, e que foi socializado sob o estigma daviolência, se transforme em um cidadão de um dia para ooutro", afirma Kant.

O escritor e filósofo Alcione Araújo acredita que a solu-

ção para a violência ainda está por vir e não será encon-trada nos modelos assistencialistas existentes. Para ele,a questão não pode ser analisada da forma superficialcomo vem sendo. "Negros e índios no Brasil sempre esti-veram alijados do processo educacional e, desde 64, asociedade vem sofrendo uma enorme crise de referên-cias. Sem reservas de valores, acabamos por assimilar commuita facilidade o massacre ideológico do pensamentoneoliberal, em que conceitos de bem e mal, justo e injus-to e outras dicotomias acabam por abafar e dificultar oentendimento de nossa história particular", afirma ele.

A crise da violência é uma crise de valores que se espalhapor todos os instrumentos de manutenção da democracia,na opinião do escritor, que vê no Judiciário o único poderonde é possível depositar esperanças, pois é uma instânciaque se firma pelo saber, pela reflexão, apesar de sua defasa-gem em relação aos costumes da sociedade. "O Judiciário devefazer a reflexão de que na idéia de justiça deve incluir o con-ceito de equanimidade social. E todos nós temos que pensarna sociedade não mais em termos de progresso, pois este sóleva ao enriquecimento de alguns, mas em termos de desen-volvimento, que engloba educação, cultura e comida para todos",diz Alcione.

Roberto Kant acrescenta que o papel do Estado tambémé ouvir o pleito das pessoas, inclusive aquelas não-excluídas,mas que estão incluídas de forma subalterna em nossa socie-dade. "O Brasil precisa encontrar rapidamente mecanismosde administração institucional de conflitos, mas os mecanis-mos que a sociedade precisa e deseja de fato, e não aquelesque atendem apenas às necessidades e disponibilidades doEstado", ressalta.

Os númerosocultos

Para o sociólogo Ignácio Cano, pes-quisador da área de Violência, Seguran-ça Pública e Direitos Humanos da Uni-versidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),apesar da sensação geral de aumentoda insegurança, não é possível afirmarcom certeza que a criminalidadeaumentou, pelo menos na regiãometropolitana do Rio. A dificuldade deobtenção de dados, a falta de comuni-cação entre os órgãos e a subnotifica-ção dos crimes são fatores que dificul-tam a construção de indicadores paramensurar a evolução da violência.

Inteiramente dedicada à pesquisanessa área, a socióloga Julita Lemgru-ber, diretora do Centro de Estudos deSegurança e Cidadania (CeSeC), da Uni-versidade Cândido Mendes, não acha cor-reto falar em aumento da insegurança."É verdade que as taxas de homicídioem algumas regiões brasileiras são com-paráveis a zonas de guerra aberta. Masnão existe um aumento da violência. Nosúltimos 20 anos, os patamares da cri-minalidade no Brasil continuam drama-ticamente altos, mas estáveis, o que

demonstra que as políticas públicas desegurança não têm tido eficácia", afir-ma ela.

Uma polícia bem equipada, bem pre-parada e bem paga, que possa traba-lhar preventivamente e não de formareativa, é urgente, segundo Julita, paraconter a violência no Brasil. Já existem,inclusive, exemplos a serem seguidos,como a parceria feita entre a Polícia Mili-tar mineira e a Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG). "Um mapea-mento diário das ocorrências vem per-mitindo à polícia conhecer a fundo adinâmica do crime em Belo Horizonte,possibilitando assim o planejamento dasações de segurança. Mas é evidente quenão chegaremos a lugar algum se, aolado de uma melhora da estrutura poli-cial, não fizermos um investimento socialmuito grande no País", alerta Julita.

O tantas vezes citado "investimentosocial", segundo Ignácio Cano, deve serdirigido prioritariamente aos adolescen-tes das favelas, principais protagonistasda violência urbana, como vítimas e comoautores. "Nada vai mudar antes que oaparelho de segurança pública deixe deagir apenas no sentido de proteger o queestá no asfalto dos ataques da popula-ção favelada, e passe a proteger tam-bém os moradores das favelas, garan-tindo seus direitos e recuperando o espa-ço que o tráfico dominou", afirma.

O fim da impunidade e a aplicaçãoda lei também são fundamentais paraa diminuição da violência, segundo osociólogo, já que de cada 100 homicí-dios registrados no Rio de Janeiro, menosde dez acabam virando processospenais. "Considero muito mais impor-tante aumentar a taxa de resolução doscasos criminais do que aumentar aspenas, como vêm defendendo algunssetores da sociedade. Mesmo porquenossas prisões já são extremamente seve-ras e cruéis", diz Ignácio, que se preo-cupa particularmente com a crença, cadavez maior em alguns setores sociais, deque a violência deve ser combatida comviolência. "Tal crença é imoral, ilegale contraproducente", garante.

Julita Lemgruber considera que aquestão da impunidade precisa ser ana-lisada de uma forma mais coerente:"Fala-se muito que a polícia prende ojuiz solta. É verdade que a Justiça é moro-sa, que há poucos juízes, mas é preci-so ter a honestidade de reconhecer quea polícia não produz provas suficien-tes para que a Justiça mantenha o indi-víduo preso. É ela que não faz direitoo seu dever de casa."

O funk dafavela

Apontados como um dos principaisvetores do aumento da criminalida-de e da violência no Rio de Janeiro,os bailes funk estão merecendo gran-de atenção das autoridades e já háum movimento no sentido de proi-bi-los ou regular o seu funcionamen-to. Apoiadas por alguns setores dasociedade, tais estratégias, entretan-to, também têm sido vistas como umequívoco no tratamento do problemada violência e da criminalidade.

"Não é uma atribuição do gover-no decidir qual vai ser a expressão cul-tural de uma comunidade. As pessoaspodem gostar ou não, mas é ilegal proi-bir sumariamente o funk. Tal pensa-mento denota, mais uma vez, o tra-tamento diferenciado que a popula-

ção das favelas recebe por parte dasautoridades. Se houve um crime emum baile funk, é dever das autorida-des apurar o crime, e não proibir obaile", critica Ignácio Cano.

Maria Cristina Salomão Almeida,coordenadora sociopedagógica daFundação São Martinho, de apoio ajovens marginalizados, lembra que arepressão a manifestações culturais daspopulações negras e pobres não é novi-dade no Brasil e já atingiu no passa-do a capoeira e o samba, mal disfar-çando o racismo que existe na raiz doproblema da violência. Mas a como-ção popular que acompanha os cri-mes com destaque na mídia não podefazer, segundo Cristina, com que seperca a coerência no enfrentamentodo problema da violência.

"Caso esse equívoco prevaleça, cadavez mais ganharão coro as soluçõesque reproduzem apenas o discurso daelite, como a proposta de baixar amaioridade penal. O Estado brasilei-ro abandonou a população pobre, osnegros e os favelados. Agora, queremprendê-los aos 14 anos e manter o sis-tema como está, sem investimento emsua educação, sem oportunidade deemprego para seus pais. É uma lógi-ca extremamente perversa, que infe-lizmente começa a ser incorporada porcada vez mais setores da sociedade,inclusive o Judiciário", afirma Cristi-na.

Julita Lemgruber acha que o Esta-do não tem que proibir, mas sim pro-ver a segurança nos bailes funk, aexemplo do que faz nos demais even-tos culturais que são promovidos nacidade: "É preciso olhar o problemacom mais distanciamento e conside-rar que a polícia não vem cumprin-do o seu papel nessas comunidades.Não pode agora simplesmente proi-bir uma das poucas opções de lazerdos moradores das favelas.".

Ela acredita que o "casamento"entre a polícia e as favelas é possível,e certamente contribuiria para a solu-ção do problema que os bailes funkrepresentam hoje. Prova disso foi aexperiência da implantação do GPAE(Grupamento de Policiamento deÁreas Especiais), no morro Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul do Rio, hácerca de dois anos. Incorporando umprograma de policiamento comuni-tário a uma grande oferta de servi-ços de política social, através de secre-tarias e Ongs, o GPAE diminuiu dras-ticamente a violência local.

Fotos de Daniela Barcellos

“É verdade que a Justiça

é morosa, que há poucos

juízes, mas é preciso ter a

honestidade de

reconhecer que a polícia

não produz provas

suficientes para que a

Justiça mantenha o

indivíduo preso.”

Julita Lemgruber

"Se vivemos numa

sociedade democrática

e todos temos direitos,

os conflitos são

inevitáveis. A ordem

social, portanto, deve

nascer da negociação

desses conflitos.”

Roberto Kant

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l CAPA l

W. S. F., 40 anos, policial civil há15, trabalha em uma delegacia daZona Norte carioca. Ele e dez cole-gas são responsáveis pela guarda dequase 800 homens confinadosnuma prisão com capacidade para250. "Nossa convivência com os pre-sos é diplomática. Temos do nossolado uma lei ultrapassada, que falaem crime de vadiagem numa épocade desemprego, e eles têm o esta-tuto do Comando Vermelho, cujasnormas internas entram nas cadeias,

circulam pelos presos e depois sãodestruídas", conta o policial.

Nas ruas, ele constata um pro-blema ainda maior: "A criminalida-de avançou muito. Quando entreina polícia, o crime mais freqüenteera o furto de veículo, que exigia des-treza do bandido. Hoje, com a tec-nologia de segurança, o bandidorouba o veículo e com freqüênciaatira na vítima, mesmo que ela nãoreaja."

Solução? W. faz coro com a opi-

nião de boa parte da população: sóa mão-de-ferro, a punição com maisrigor, a lei para todos. Não é possí-vel para ele outra saída num siste-ma legal onde há excesso de leis,"algumas extremamente complacen-tes, como o Estatuto da Criança edo Adolescente", e um Judiciário quesolta o bandido porque o prazo doprocesso foi perdido, "enquanto osjuízes brigavam pela jurisdição docrime". Tudo isso funciona como umgrande desestímulo: "Nós cumpri-

mos nosso papel com muita dificul-dade e prendemos o bandido, maso resto é com os delegados e juí-zes, que acabam soltando ele."

A convivência diária com a vio-lência é dura: "O tempo caleja o poli-cial, mas ainda não me acostumeicom certas coisas, como maldadecom crianças. As pessoas condenamos policiais que usam a violência,mas às vezes é difícil usar só a razão.Há casos em que a emoção fala maisalto", admite W.

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Trabalho pioneiroO Tribunal de Justiça do Distri-

to Federal e Territórios (TJDFT)está realizando, por meio do NúcleoPsicossocial Forense (Nups), duas ati-vidades pioneiras: o atendimentopsicossocial às famílias que viven-ciam episódios de violência domés-tica e o tratamento dos acusados deportar substâncias químicas ilícitaspara consumo.

A primeira destas atividades resul-tou da constatação, por parte dosmagistrados dos Juizados Especiais Cri-minais, de que um número signifi-cativo de processos dizia respeito a

agressões entre cônjuges ou paren-tes; além disso, verificou-se tambémque a aplicação de uma transaçãopenal não era suficiente para inter-romper o ciclo de violência familiare que a reincidência era alta. Com oobjetivo de desenvolver uma açãomais eficaz, ao invés de apenas ate-nuar ou adiar o problema, foi cria-do o Nups, serviço ligado diretamen-te à Corregedoria de Justiça.

O serviço congrega psicólogos eassistentes sociais especializados emrelações familiares. "Entendemosque o comportamento do indivíduodiz respeito ao meio em que ele vive.

Por isso, tratar tanto o agressor quan-to os agredidos é o meio mais eficazde evitar que os casos de violênciafamiliar se repitam", explica a coor-denadora do Núcleo, Marília LobãoRibeiro. Após seis meses de funcio-namento, pesquisa do Nups consta-tou que, em 83% dos casos, havia ces-sado ou diminuído sensivelmente aocorrência dos problemas.

Desde fevereiro deste ano, oNups passou a oferecer também aten-dimento psicossocial aos usuários edependentes químicos. Cerca de450 acusados e seus familiares jáforam atendidos.

Progressão sem parâmetros

Como titular do 1º e 2º JuizadosEspeciais Criminais de São Gonçalo(RJ), uma das regiões mais violentasdo País, o juiz Marcelo Anátocles afir-ma ser difícil analisar a progressãoda violência no Brasil sob a ótica doJudiciário. Enquanto que nos Juiza-dos Especiais Criminais a demandaé crescente, o que se justifica pelofato de eles serem recentes, verifi-

ca-se uma subutilização das Varas Cri-minais. O Programa de Proteção àTestemunha, do qual Marcelo par-ticipa, também não serve de parâ-metro. Desde que foi implantado, hádois anos, já beneficiou cerca de milpessoas, entre testemunhas e fami-liares, mas a demanda tem se man-tido regular.

A dificuldade de investigação, asubnotificação dos crimes e o fato determos no País duas polícias dificul-tam a chegada dos fatos criminais ao

Judiciário, segundo Marcelo Anáto-cles, mas ele acredita que não é aindao momento de fazer mudanças. "Exis-tem várias propostas para a soluçãodo problema da violência, como a uni-ficação das polícias e a criação dosjuízos de instrução. Mas acredito que,antes de mudar, é preciso promoveruma ampla discussão sobre a violên-cia e avaliar os sistemas que já exis-tem. Não há sentido em propor umnovo sistema sem saber o que estáerrado no antigo", afirma.

Vida invadidaNão é preciso ser policial ou repór-

ter de polícia para se deparar coma violência nos dias de hoje. Ela estáde tal forma disseminada na socie-dade que passa a ser quase umacoisa natural. F. G. R., de 44 anos,estudou durante cinco anos paraingressar como fiscal em uma gran-de instituição federal. Embora sou-besse que seu trabalho previa ris-cos, não imaginava que sua vida

fosse ser de tal forma invadida pelaviolência. "Poucos meses depois deempossada, passei a receber tele-fonemas de madrugada, com amea-ças", conta.

F. já recebeu mais de uma vezameaças veladas à segurança de seusfilhos e no mês passado foi recebi-da em uma empresa por um funcio-nário, que iniciou a conversa colo-cando uma arma sobre a mesa. Ostelefonemas anônimos ainda a

acordam no meio da noite e, recen-temente, um de seus colegas de tra-balho levou uma surra de dois segu-ranças dentro do pátio da empresaque foi fiscalizar. Há seis anos F. pas-sou a ter os sintomas da síndromedo pânico. "Estamos vivendo ummomento crítico em que parte dasociedade está saturada da corrupçãoe a outra quer continuar roubandoa qualquer preço. Não sei aonde tudoisso vai dar", desabafa.

Dinâmica perversaComo muitos que, de uma manei-

ra ou de outra, estão em contato dire-to com a violência, o repórter MarcoAntonio Martins, da editoria de Segu-rança e Justiça do Jornal do Brasil, tam-bém acredita que a dinâmica da cri-minalidade mudou bastante nos últi-mos anos. "Não existem mais os tra-ficantes assistencialistas nas favelas.Hoje, eles impõem o terror, os mora-dores são subjugados pelo poder dasarmas. Recentemente, traficantes de

um morro carioca informaram aosmoradores que garantiam a seguran-ça apenas dos que chegassem em casaaté as 17h. Depois disso não havia maisgarantias", relata o jornalista.

Quanto à sensação de inseguran-ça da população, Marco Antonioacredita que ela é justificada, poisembora não sejam levados às dele-gacias, por descrédito da populaçãona polícia, os assaltos a ônibus e peque-nos crimes não param de acontecerna cidade. Mas é nas favelas, segun-

do o repórter, que a situação é maisgrave: "Outro dia, um pai foi procu-rado pelos traficantes da favela ondemorava porque seu filho ia comple-tar 15 anos e deveria começar a tra-balhar no tráfico. Com medo, o paimandou o filho morar em outro lugar,e acabou sendo expulso da favela",conta o repórter, que vê como solu-ção para a violência a presença efe-tiva do Estado nessas áreas, com pro-gramas tanto de segurança quantosociais.

AA bbaannaalliizzaaççããooddaa vviioollêênncciiaaccoonnttrraa aa mmuullhheerr

Os Juizados Especiais Criminais recebem hoje quasea totalidade da demanda de queixas registradas nasdelegacias de mulheres. Entretanto, organizações dedefesa de direitos vêm denunciando a incapacidadedesses juizados em prover segurança às mulheres emrisco. "O grande problema é que a Justiça vem tra-tando a violência doméstica como um conflito, quan-do o que se tem é uma relação de dominação e com-pleta desigualdade de poder entre duas partes. As lesõescorporais dolosas, equivocadamente consideradas demenor potencial ofensivo, representam na verdadeuma situação de alto potencial ofensivo", afirma aantropóloga Bárbara Soares, titular da Sub-secreta-ria de Segurança da Mulher e Defesa da Cidadaniado Governo do Estado do Rio de Janeiro.

"De natureza completamente diversa dos con-flitos entre vizinhos, a violência doméstica tem umadinâmica cíclica e repetitiva, e quando a mulher ima-gina que terá uma saída para seu problema, defron-ta-se nos juizados com conciliadores que, apesar daboa vontade, não têm formação para lidar com acomplexidade da questão e não percebem que asmulheres conciliam por medo, por não verem pers-pectiva de solução para a violência que as vitima",diz Bárbara.

Como um tiro que sai pela culatra, estudiosos obser-vam, ainda, que os homens agressores estãoaumentando sua certeza de impunidade através dasconciliações feitas nos juizados. Além disso, quan-do a condenação acontece, muitas vezes as penasacabam incidindo sobre a própria mulher agredi-da, que vê o orçamento doméstico ainda mais redu-zido para pagar as cestas básicas ou as multas queincidiram sobre seu agressor.

Para mudar a legislação, os movimentos de mulhe-

res apresentaram vários projetos de lei que propõemmudanças na Lei 9.099, acreditando que há tempoe formas viáveis de adequar os Juizados Especiais Cri-minais à situação de violência doméstica. "Ainda esta-mos engatinhando no sentido de construir indicado-res criminais minimamente consistentes que permi-tam um diagnóstico da violência doméstica. Por issonão é possível falar em aumento de incidência, mas

sim em aumento da visibilidade deste tipo de crime,que apesar de grave vem sendo considerado menorpor conta de outras formas de criminalidade queassustam e mobilizam mais a opinião pública", dizBárbara.

Enquanto se aguarda por mudanças na legislação,algumas alternativas vêm sendo tentadas para solu-cionar o problema da violência doméstica. No Rio deJaneiro, um trabalho realizado por alguns estudiosos,em parceria com o Instituto Noos, Ong de defesa dedireitos humanos, está servindo de inspiração parauma política pública de combate à violência domés-tica. São grupos de reflexão para homens agressores.

Os homens chegam em grupos, encaminhados pelosjuizados, e depois de cinco meses voltam com um pare-cer dos psicólogos, sociólogos e demais profissionaisque os acompanharam no trabalho. A estratégia jáestá sendo posta em prática em dez juizados flumi-nenses, pois se percebeu que através dos grupos dereflexão é possível alterar os padrões que associama masculinidade à violência. É um trabalho de res-ponsabilização não acusatória, que faz com que o autorda violência se reconheça como tal.

"Não é uma terapia, porque não queremos medi-calizar a violência. Sabemos que o problema tem váriasórbitas, inclusive distúrbios psicopatológicos, drogas,etc., mas sabemos que o fundamento da violência écultural. Só existe a disseminação da violência por-que vivemos em uma sociedade que diz sim à vio-lência", acentua Bárbara.

Em grupos de dez a 12 homens, temas como mas-culinidade, família e saúde são discutidos, e ao falarde sua subjetividade, cada um deles tem a chan-ce de perceber sua forma violenta de se relacionar.Passam então a ver a violência com o distanciamen-to necessário para que deixem de recorrer a ela."Quando a violência se torna uma linguagem, coma qual se fala com os outros, não há distanciamen-to, é como se fosse a própria natureza do indiví-duo. Nos grupos de reflexão, esses homens desco-brem que não precisam usar a violência para seremhomens", diz Bárbara.

Estranha diplomacia

"O grande problema é que a Justiça

vem tratando a violência doméstica

como um conflito, quando o que

se tem é uma relação de dominação

e completa desigualdade de poder

entre duas partes.”Bárbara Soares

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l EXPOSIÇÃO l

8 l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l J O R N A L D O M A G I S T R A D O J O R N A L D O M A G I S T R A D O l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l 9

Imagens que ajudam a

não esquecerExposição corre o mundo levando a herança dos juízes italianosGiovanni Falcone ePaolo Borsellino,assassinados pela Máfia

As imagens, mais do que as palavras, ajudam a não esque-cer. Com esta convicção, os fotógrafos italianos Giulianoe Cesare di Cola idealizaram uma exposição itinerante, com40 trabalhos que buscam reconstruir os trágicos aconte-

cimentos que culminaram nos massacres de Capaci (23 de maiode 1992) e Via d’Amélio (19 de julho de 1992), onde foram mor-tos Giovanni Falcone, sua mulher, Fran-cesca, Paolo Borsellino e seus guarda-costas.

Entre os anos 70 e 90, um peque-no grupo de 10 magistrados italianosfoi encarregado de investigar uma sériede crimes envolvendo grandes chefesda Máfia, políticos, empresários e fun-cionários públicos. Nem o isolamen-to nem a proteção de seguranças 24horas por dia puderam evitar os aten-tados contra dois deles. O impacto datragédia deu origem à OperaçãoMãos Limpas.

Inaugurada em 19 de julho de1993, em Palermo (Sicília), a exposi-ção percorreu escolas e universida-des na Itália, com o intuito de rea-cender emoções, reforçar a indigna-ção e renovar nos amantes da justi-ça a vontade de jamais se render aocrime organizado.

“Seria reconfortante poder enxer-gar nessas imagens apenas um pas-sado distante e estranho à nossa rea-lidade, mas o Brasil ocupa hoje umposto-chave na estratégia globalizada do crime, e é quase impos-sível não traçarmos um paralelo com o nosso País”, afirma a orga-nizadora da exposição no Rio, Silvia Monte, lembrando que “coman-dos neomafiosos fazem valer aqui a sua lei, tornando-nos refénsde uma cultura de criminalidade, medo, clientelismo e corrupção”.

Mais detalhes da exposição, que visitou a Escola da Magistra-tura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), podem sem encontra-dos no site www.pianetacalábria.com.

“A minha conta

com a máfia está

em aberto, e

somente com a

minha morte será

saldada. Está

sempre próximo o

momento em que

a pagarei. Quanto

mais importante é

o assunto, mais

elevado é o preço.

E eu já estou

pagando.”

(Giovanni Falcone)

“Precisamos nos

libertar dessa lei do

silêncio, que é um

dos fenômenos que

sustenta a potência

mafiosa. Estamos

ligados ao fato da

lei do silêncio, de

não declararmos

nada a respeito das

coisas da Cosa

Nostra estando fora

dela, de ver o

Estado sempre

como um inimigo ou

como uma entidade

com a qual não

temos que

colaborar.”

(Paolo Borsellino)

“Tanta gente vem me dar os

pêsames pela morte de

Falcone, mas eu tenho a

sensação de que essas pessoas

vêem em mim a próxima

vítima.” (Paolo Borsellino)

“Tempos de extermínio até

mesmo para nós, policiais que –

como os personagens que

escoltamos – vivemos com o

pavor de sermos assassinados.”

(Um agente da escolta)

“Todas as vezes que eu fui acompanhar os

enterros dos meus amigos, escutei os familiares

falando: foi tudo inútil. Eu contesto tal fato. Eu

sempre afirmei que essas pessoas apostaram tudo

e por isso hão de permanecer. Não é uma

declaração acomodada.” (Giovanni Falcone)

GiovanniFalcone ePaolo Borsellino

O fotógrafo Giuliano Di Cola

Foto de Tony Gentile

jornal junho 2.qxd 7/1/02 3:57 PM Page 8

10 l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l J O R N A L D O M A G I S T R A D O J O R N A L D O M A G I S T R A D O l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l 11

l OPINIÃO l

Durante a última campanha eleitoral na AMB,surgiram algumas críticas no sentido de quea Associação estaria priorizando os pleitosda Justiça Federal e da Justiça do Trabalho,

em detrimento da Justiça Estadual.Impende anotar, inicialmente, que a atuação da

AMB, por congregar diversos ramos da magistratu-ra nacional, deve estar direcionada sempre para abusca do consenso.

E, dentro de um panorama histórico, indispen-sável para o exame das conveniências do rumo polí-tico a ser seguido pelos juízes do Brasil, é precisoreconhecer que há muito mais pontos de conver-gência do que conflitos entre os diversos segmen-tos da magistratura nacional.

A reforma constitucional, concebida paraenfraquecer o Poder Judiciário, tem sido respon-sável pela eclosão de algumas divergências,porém não se deve perder de vista que mais cedoou mais tarde o texto constitucional – alterado oumantido – tenderá à estabilização e o clima deantagonismo restará sepultado.

Nesse contexto, o espaço para busca do consen-so torna-se amplo e precisará ser palmilhado comperseverança e espírito de colaboração.

A luta para obter mais celeridade na prestaçãojurisdicional, a busca da participação dos juízes naseleições para os tribunais, o fim do voto secreto eimotivado nas promoções e remoções, o términodas sessões administrativas secretas e o fim do nepo-tismo são apenas alguns exemplos de temas queunem toda a magistratura nacional. A AMB asso-

dos dos estados; manutenção da competência daJustiça estadual nos ditos crimes de violação dosdireitos humanos; estabelecimento de que o quin-to constitucional representa uma vaga a cada cinco,desprezadas as frações; fixação da diferençamáxima de subsídio entre uma e outra categoriado cargo em 5%.

Importantes questões institucionais tambémnão foram relegadas, mediante o desdobramentodas atividades associativas em várias frentes, comoa ágil apresentação de emendas na reforma do Judi-ciário, a pronta resposta aos ataques recentes da Pre-sidência da República, a manifestação contrária àindicação do Dr. Gilmar Mendes ao STF e, principal-mente, a campanha nacional pela democratizaçãodo Poder e pelo fim do nepotismo.

A atual gestão, sob o comando de Cláudio Bal-dino Maciel, vem cumprindo de modo bastante trans-parente seu plano de reestruturação e aprimora-mento da AMB, para que se continue na mesmalinha inquebrantável de defesa da magistratura comoum todo.

Ao lançar-se um olhar isento em perspectiva aospoucos meses da nova administração, é fácil con-cluir que inexistem razões de cunho objetivo paraa criação de outro órgão paralelo que almeje repre-sentatividade, ou, ainda, para açodadas desfiliações.

Na coesão da nossa classe e no respeito às deci-sões democráticas repousa a força da Associação dosMagistrados Brasileiros.

*Rodrigo Collaço é presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) ecoordenador da Justiça Estadual da AMB.

ma como entidade talhada para representar, nes-sas hipóteses, a unidade de pensamento dos juí-zes brasileiros.

De qualquer modo, as críticas de que a AMB esta-ria privilegiando os segmentos da magistratura fede-ral e trabalhista revelam-se infundadas para quemse dispuser a examinar com imparcialidade a atua-ção da entidade nacional.

Quando o consenso se revela impossível, a AMBpossui mecanismos que permitem estimar o pen-samento da maioria de seus componentes. A aferi-ção dessa vontade, como sabido, dá-se por votaçãono âmbito do Conselho de Representantes, forma-do pelos membros institucionais e ex-presidentes.

A título de exemplo do respeito às decisões da maio-ria, vale citar, dentre muitas, algumas propostas enca-minhadas pela AMB ao projeto de reforma do Judi-ciário, que expressaram opinião majoritária da magis-tratura estadual: permanência do atual critério parapreenchimento de cargos nos TREs pelos magistra-

Santa Catarina

Recursos parasegurança pública

A Associação dosMagistrados Catarinenses(AMC), por sugestão dogovernador do Estado,Esperidião Amin (PPB), vaidiscutir com a AMB aapresentação ao CongressoNacional de uma proposta deemenda constitucional, quepromova a vinculação derecursos financeiros para osistema de segurança públicanas esferas municipal,estadual e federal, a exemplodo que já ocorre nas áreasda saúde e da educação.Segundo Amin, é preciso criaresses mecanismos, docontrário, "o dinheiro échupado para pagamento dejuros da dívida externa".

Amapar

Paraná querdemocratização

Resultado parcial de umapesquisa elaborada pelaAssociação dos Magistradosdo Paraná (Amapar), pararevelar a opinião dos juízeslocais sobre temas comonepotismo, eleições diretas esessões administrativassecretas, indica que a maioriaé favorável a medidas querepresentem maiordemocratização do Judiciário.Conforme as respostasanalisadas até agora, 92,2%dos juízes são a favor dafusão dos tribunais de Justiçae de Alçada. A maioria dosentrevistados (93,5%)condena a prática donepotismo e 88,9% sãocontra as sessões secretas.

Alagoas

Cooperativa de crédito

Com o apoio da AMB e da Associação Alagoana deMagistrados (Almagis), a Cooperativa de Crédito do Judiciáriode Alagoas (Juriscred) realizou, em Maceió, o I EncontroBrasileiro de Cooperativas de Crédito de Membros do PoderJudiciário e Órgãos Jurídicos, com a presença de dez dos 12estados que possuem cooperativas em funcionamento e deoutros que estão em fase de organização. Ao final doencontro, foi criado o Fórum Nacional de Cooperativas doJudiciário e Instituições Jurídicas – Fonacred (foto),coordenado pelo presidente da Juriscred, Maurílio da SilvaFerraz, que irá incrementar a fundação de cooperativas nosestados que ainda não as possuem. A Carta de Maceióencontra-se no site www.juriscred.com.br.

l CONEXÃO NACIONAL ll ESCOLA NACIONAL DA MAGISTRATURA l

A atuação daAMB sob a

perspectiva daJustiça Estadual

RODRIGO COLLAÇO*

Já estão sendo analisados pela comissão deseleção os currículos dos candidatos acursar pós-graduação, mestrado edoutorado em Portugal, dentro do convênioda Escola Nacional da Magistratura com asuniversidades de Coimbra, de Lisboa e deNova Lisboa (Portugal). São oito vagas - duas para o curso deDireito do Consumo (Coimbra), duas paraDireito da Comunicação (Coimbra) e asdemais para pós-graduação, mestrado edoutorado na Universidade de Lisboa eUniversidade Nova Lisboa. O período doscursos será de novembro deste ano amaio de 2003 ou outubro deste ano ajunho de 2003. A comissão que irá selecionar oscandidatos é presidida pelo ministroSálvio de Figueiredo Teixeira, do SuperiorTribunal de Justiça, e é integrada peloministro Paulo Gallotti e as ministrasEliana Calmon e Fátima Nancy Andrighi,todos do STJ. Também compõem acomissão o presidente da AssociaçãoNacional dos Magistrados Trabalhistas(Anamatra), Hugo Melo Filho e o vice-presidente da AMB Douglas AlencarRodrigues, entre outros.

Anamatra

Revisão do quinto

Em seu discurso na abertura doXI Congresso Nacional dosMagistrados do Trabalho(Conamat), o presidente daAssociação Nacional dosMagistrados do Trabalho(Anamatra), Hugo Melo Filho,defendeu a necessidade urgentede se revisar o quintoconstitucional, que, segundo ele,"pode ser comparado à extintarepresentação classista".

Pesquisa vai colhersugestões de medidas para combater a violência

MARIO MACHADO*

Duas preocupações manifestou aimprensa em seminário recen-temente promovido em Brasí-

lia, pela Escola da Magistratura do Dis-trito Federal e a Associação Nacional deJornais: o valor da indenização por danomoral, devida em face da veiculação denotícias caluniosas, injuriosas, difaman-tes e/ou invasoras da intimidade e daprivacidade das pessoas; e a denomi-nada ''censura judicial'', ou seja, deci-são judicial que impede, previamente,a publicação ou realização de determi-nadas matérias jornalísticas.

A liberdade de imprensa é consagra-da na Constituição Federal, mas tam-bém assegura ela o direito de respos-ta, além da indenização por dano mate-rial, moral ou à imagem, dizendo, ainda,

invioláveis a intimidade, a vida priva-da, a honra e a imagem das pessoas.No que pertine à vida privada, tem apessoa direito à não-exposição aoconhecimento de terceiros de fatos eelementos particulares da sua esferareservada, mesmo se verdadeiros.Quanto à pessoa pública, a inviolabili-dade da intimidade encontra restriçãono direito à informação de interessepúblico e no direito à história. Justifi-ca-se, aí, a revelação dos fatos pelo jor-nalista, mesmo sem o consentimentoda pessoa envolvida.

Cabe ao juiz a questão da fixação dovalor da indenização por dano moral.Nessa penosa tarefa, não estandosubordinado a qualquer limite legal outabela prefixada, deve estimar uma quan-tia que, não sendo exagerada, mitiguea dor sofrida pela vítima, ao mesmo

tempo em que, não sendo irrisória, punae desestimule o comportamento falto-so do ofensor.

No que concerne à denominada''censura judicial'', lembre-se que aliberdade de expressão de pensamen-to, a liberdade de opinião e a liber-dade de imprensa não são direitos abso-lutos. De igual dignidade são os direi-tos da personalidade, decorrentes daprópria condição humana, como odireito à vida privada, à intimidade,à honra, à imagem. Não há como vedarque alguém recorra ao Judiciário paraimpedir a consumação de dano a direi-to da personalidade. Óbvio que, paraimpedir, previamente, mediante deci-são judicial, uma publicação ou divul-gação, deve o magistrado ter veemen-te evidência da sua ilicitude ou falsi-dade, já que existe a proteção cons-

titucional à liberdade de imprensa. Como a indenização por dano moral

não consegue restituir a vítima ao esta-do anterior à ofensa, não faz sentido,em nome da liberdade de imprensa, per-mitir divulgação que se tenha realmen-te evidenciado, de antemão, ilícita oufalsa, causando ofensa a direito da per-sonalidade. Não se prega, sublinhe-se,que a atividade jurisdicional funcionecomo órgão prévio de censura, impe-dindo veiculação de matérias de formainjustificada, ancorada em sentimen-tos pessoais, ideológicos, morais, polí-ticos, religiosos. Defende-se, isto sim, quenão se exclua a atividade jurisdicionalde tutela preventiva de direitos da per-sonalidade, tão fundamentais como aliberdade de imprensa.

* Mario Machado é presidente da Associação dos Magistradosdo Distrito Federal (Amagis-DF).

Dentro de alguns dias, todos os associados daAMB (cerca de 15 mil 300) estarão recebendoem casa um questionário sobre um tema que,

nos últimos tempos, tem estado presente na vida detoda a população brasilei-ra: a violência. A pesquisa,realizada pela Escola Nacio-nal da Magistratura, em con-vênio com o Centro de Estu-dos e Pesquisa em Adminis-tração (Cepa), da Universi-dade Federal do Rio Gran-de do Sul (UFRGS) temcomo objetivos verificar apercepção que o magistra-do tem da violência, iden-tificar onde os juízes visua-lizam as causas da crimina-lidade e coletar sugestões de medidas para a redu-ção dessa escalada.

A partir da identificação dos pontos mais impor-tantes, serão formalizadas propostas a todos os órgãose entidades envolvidos ao problema. "Pretendema ENM e a AMB, com a implementação do projeto,oferecer efetiva e qualificada contribuição da

magistratura à socieda-de brasileira, para enfren-tar, com possibilidade deêxito, tão grave questão",afirma o diretor-presiden-te da ENM, Antonio Gui-lherme Tanger Jardim.Ele fez um alerta no sen-tido de que "o audacio-so projeto só alcançarásua finalidade e terásucesso, se os juízes bra-sileiros entenderem sua

magnitude e participarem da pesquisa".Os questionários serão enviados pelo correio e, em

alguns casos, também pela Internet. Quanto àexpectativa de retorno das respostas, o professor LuizAntônio Slongo, diretor do Cepa, admite que dificil-mente será de 100%, mas ele acredita que a maioriados magistrados deverá dar uma resposta.

Os propósitos da pesquisa

● Identificar as causas, próximas e remotas, para aviolência e a criminalidade, envolvendo, dentreoutras, questões legais, jurídicas e deadministração pública;● Verificar quais medidas poderiam ser tomadaspara a redução da violência e da criminalidade;● Identificar que públicos seriam intervenientes noprocesso, e como isto aconteceria.

Dano moral e censura judicialArtigo

Seleção de juízespara cursos em Portugal

Tanger Jardim

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l RESUMO l l CARTAS l

12 l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l J O R N A L D O M A G I S T R A D O J O R N A L D O M A G I S T R A D O l M A R Ç O A J U N H O D E 2 0 0 2 l 13

l ESTANTE l

Em seu novo formato gráfico e editorial, o JORNAL DO MAGISTRADO inaugura este espaço, destinado a resenhas de filmes com temática judicial. E outro não poderia ser o filme de estréia, se não aquele que inspirou o nome desta coluna.

A 21 de agosto de 1941, numa das estações do metrôparisiense, um militar alemão é morto por jovens daResistência Francesa. Os verdadeiros autores dohomicídio não serão presos, mas é preciso aplacar afúria germânica, entregando aos alemães seis corposguilhotinados, não importa se de judeus, comunistasou membros da Resistência.

Os ministros Pucheu, do Interior, e Barthelemy, daJustiça – membros do governo colaboracionista de Vichy,comandado pelo marechal Petain –, ordenam que oscondenados sejam excutados “legalmente”, sob o ampa-ro da Justiça. Assim, devia ser promulgada uma lei quetivesse força retroativa, permitindo condenar, sem recur-so nem apelação, até mesmo réus já julgados e con-denados a penas mínimas.

O decreto editado criou uma Seção Especial do Tri-bunal de Recursos de Paris, jurisdição de exceção incum-bida de matar. Esse monstro judiciário foi o resulta-do de uma negociação entre os ocupantes nazistas eo governo de Petain. A Seção Especial era competen-te para julgar todas as infrações cometidas sob formade atividade comunista ou anárquica. Os juízes queaceitaram participar dela aplicavam as sentenças semdar os motivos. Os carrascos já esperavam na ante-sala da audiência, enquanto o tribunal mal começa-

va a sua sessão. Apesar de tudo, só foram consegui-das três, das seis condenações à morte.

Costa Gavras, diretor, e Jorge Semprun, roteirista,realizaram Seção Especial de Justiça (Section Spéciale)a partir da obra do historiador Hervé Villere. Diretore roteirista primam pela objetividade histórica, massua visão crítica transcende o próprio fato. O filme vaialém da simples reconstituição do episódio, ultrapas-sando o contexto limitado de uma evocação históri-ca, para chegar a uma reflexão geral sobre o Estado.

O verdadeiro tema de Section Spéciale é a análisede um personagem aparentemente oculto que, assu-mindo vários disfarces, tem estado presente em todaa obra de Costa Gavras: o Estado, ou o Poder, esse per-

sonagem principal, praticamente o herói do últimoséculo. Através do filme, o espectador é informado sobrecomo funciona o Estado moderno.

Seção Especial de Justiça é um filme exemplar, poisnele não há uma figura marcante de ditador, comoHitler ou Mussolini. O Estado de hoje já não precisadesses monstros do passado. É como se os atos doshomens que assumem o poder se diluíssem na sub-missão de todos os outros que com eles colaboram.

O filme mostra, sobretudo, como as aparências dalegalidade são mantidas e como, na história políticado século 20, a força do Estado, face a seus servido-res e à população que ele controla, é que se constituia Lei. Segundo Jorge Semprun, Section Spéciale é “oretrato de um dos personagens mais aterrorizantes doséculo 20: o Estado totalitário”.

Constantins Costa-Gavras, diretor francês de origemgrega, soube como poucos tratar de assuntos polêmi-cos e denunciar as atrocidades cometidas por regimesautoritários. Dos filmes policiais aos filmes de cunhopolítico e social, Costa-Gavras sempre deu um enfo-que crítico às suas obras e questionou a atitude anti-democrática dos regimes comunistas e totalitaristas,como fez em Desaparecido (Missing), um libelo contraa ditadura de Pinochet.

Diretor também de Z, Estado de sítio e A confissão,o próprio Gavras diz: “O que sempre torno a contar,desde Ze mesmo antes, são as relações entre o homeme o Poder, o que também pode ser chamado de Polí-tica. O que prende minha atenção e meu interesse sãoos mecanismos inventados, executados pelo homem,que escapam a seu controle e terminam por contro-lar o próprio homem.”

Seção Especial de Justiça, de Costa Gavras

MobilizaçãoRecebo, com regularidade, o periódico AMB Informa,

através do qual acompanho as atividades da Associa-ção e seu empenho no sentido de contribuir positiva-mente para a reforma do Judiciário. Com satisfação leioo anúncio de uma campanha em nível nacional, pro-movida pela Associação (Dia Nacional de Mobilizaçãopela Democratização Plena do Judiciário), tendo comoprincipais objetivos: combate ao nepotismo; eleiçõesdiretas, por todos os juízes vitalícios, para os cargos dire-tivos dos tribunais; o fim das sessões administrativassecretas. Folgo com essa luta - que não é de hoje, poisconstitui há bastante tempo bandeira de algumas as-sociações regionais de magistrados trabalhistas e da pró-pria AMB -, pois vem ao encontro de velha aspiraçãominha, na qualidade de juiz do Trabalho, quando napresidência da Amatra/VI e na composição (como juiztogado de carreira) do TRT da 19ª Região (Alagoas). Quan-do membro daquele tribunal, apresentei proposta deemenda ao seu Regimento Interno (cujo projeto foi pormim elaborado e aprovado quase na íntegra pelos demaiscomponentes do órgão), objetivando a instituição de elei-ções diretas, por todos os juízes togados da região (1ªe 2ª instâncias), para os cargos da sua administração, eo procedimento de sessões administrativas abertas, bemassim a faculdade de os juízes presidentes de Juntas (eraa denominação do órgão à época) pelo menos indica-rem ao presidente do TRT uma lista tríplice de nomesde servidores, para nomeação de um para o cargo dediretor de secretaria. Lamentavelmente, minha propos-ta foi rejeitada por unanimidade, o que atribuo, em parte,ao clima de oposição que se criou à minha participa-ção naquele tribunal, decorrente de posições críticas pormim assumidas à administração do órgão. (...) Hoje, estouaposentado, mas mantenho meu compromisso com oJudiciário, no sentido da moralização de suas ativida-des, especialmente a administrativa, com o propósitode contribuir para seu aperfeiçoamento, sua dignifica-ção, sua maior respeitabilidade social, sua maior efi-ciência e, em conseqüência, o bem comum. (...) Cola-borei, com meu voto, para a eleição da atual diretoria,estou satisfeito com sua gestão e coloco ao seu dispormeus préstimos (conquanto modestos) para o êxito dela.(...) José Soares Filho, Recife (PE).

Arbitragem

Sou juíza aposentada do TJ/AM e presido a Câmara deMediação e Arbitragem do Amazonas. Venho cumprimen-tá-lo pela luta encetada contra os "juízos e tribunais" arbi-trais, implantados sob a égide do oportunismo de algunsdescompromissados com a lei e a seriedade e que pro-curam desestabilizar a Lei da Arbitragem e o trabalho sériodesenvolvido pela maioria dos profissionais dedicados aoinstituto como eu. Aqui no Amazonas, já estão se insta-lando esses órgãos espúrios, mas temos recebido todo oapoio tanto do TJ como da Amazon, através de nosso cole-ga Jomar Fernandes. Solicito-lhe reiterar esta medida atodas as associações de magistrados do Brasil, visandonão só o desbaratamento desses "tribunais", como o for-talecimento de entidades que lutam para implantar a cre-dibilidade no seio dos jurisdicionados. Alvarina Mirandade Almeida, Manaus (AM).

Exposição

Um passeio pelas constituições brasileirasPela primeira vez, os originais das sete constituições brasileiras, quese encontram sob a guarda do Arquivo Nacional, estão sendomostrados ao público, em exposição no Centro Cultural JustiçaFederal, no Rio de Janeiro. Através de textos e imagens projetadas nasparedes, o visitante pode conhecer também os diversos processosconstituintes, as principais características das constituições, cenas dasposses de presidentes da República e da aprovação das cartas. Em várias salas, é apresentado um panorama da vida sóciocultural doBrasil, com destaque para a música, a literatura, o jornalismo e omobiliário. Em 1937, por exemplo, quando foi outorgada aConstituição do Estado Novo, os brasileiros se embalavam ao som deLábios que beijei, cantada por Orlando Silva. No módulo dedicado àera Vargas, um aparelho de rádio transmite noticiário da época. Em1967, enquanto Caetano Veloso afirmava que É proibido proibir, ogoverno militar impunha ao País uma nova carta. Estão expostascapas de revistas noticiando a prisão de estudantes e a primeirapágina do Jornal do Brasil, usando a previsão do tempo paracomentar a situação política. Há, ainda, vídeos com trechos do discurso de João Goulart na Centraldo Brasil e de Ulisses Guimarães anunciando os trabalhos daConstituinte de 1988. A exposição pode ser vista de terça a domingo,das 12h às 19 h. O Centro Cultural Justiça Federal fica na Av. RioBranco, 241, Centro, Rio de Janeiro, tel. (21) 2532-5419.

Evento

Fórum Mundial de JuízesJá foram iniciadas asatividades de organização doII Fórum Mundial de Juízes,que ocorrerá nos dias 20, 21e 22 de janeiro de 2003,paralelamente ao FórumSocial Mundial, em PortoAlegre (RS). Mais informaçõesno tel. (51) 3284-9032, comTatiana Puhl. O e-mail é:[email protected].

Tendência

Justiça Comunitária

Com apenas um ano de existência, o Projeto JustiçaComunitária, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal eTerritórios (TJDFT), já está sendo adotado em outrosestados, como Mato Grosso do Sul, Pará e Acre. O projetocomeçou na cidade de Ceilândia, ano passado,capacitando membros da comunidade local para atuarcomo mediadores de conflitos. A iniciativa é uma parceriado TJDFT com o Ministério da Justiça, Ministério Públicodo Distrito Federal e Territórios, OAB-DF, DefensoriaPública do Distrito Federal e Faculdade de Direito daUniversidade de Brasília (UnB), com o objetivo deaumentar a capacidade da comunidade de resolver seuspróprios conflitos.

RENDA DE CIDADANIA – A SAÍDA É PELA PORTAEduardo Matarazzo SuplicyEditora Cortez e Fundação Perseu Abramo, 2002

A partir de suas recordações de adolescência, o senador EduardoSuplicy (PT/SP) relata sua trajetória em busca de uma políticaeconômica civilizada e justa para o Brasil. Seus estudos dos textos de economia – dosclássicos aos grandes economistas da atualidade –, suas viagens pelo País, observando aspopulações pobres, e pelo mundo, examinando as experiências de diversas sociedades, olevaram a desenvolver os argumentos em favor de um instrumento fundamental para garantiro direito à vida e à liberdade para todas as pessoas: a renda da cidadania.

A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Stephan Klaus RadloffEditora Forense, 2002

A obra objetiva uma discussão científica responsável sobre o direito que oconsumidor tem de ver invertido o ônus da prova a seu favor, quandocomprovadas a sua hipossuficiência e/ou a verossimilhança de suas

alegações. A inserção histórica capitulada inicialmente, segundo o autor, juiz de Santa Catarina,pretende criar o clima ideal para a análise científica que leva em consideração as várias etapasevolutivas das relações consumistas, considerando que as desigualdades comerciais obrigaramreações em favor dos consumidores enquanto vítimas de práticas predadoras.

DIREITO DAS ORGANIZAÇÕESINTERNACIONAISAntônio Augusto CançadoTrindadeEditora Del Rey, 2002

A última década foi marcante para oDireito das OrganizaçõesInternacionais, com o surgimento dediversas organizações de comércio eintegração econômica. Foi nesteperíodo também que a ONUcompletou 50 anos, com o debatesobre o seu papel na solução pacíficados conflitos mundiais. Neste contexto,a obra resgata as principaiscontrovérsias internacionais,abordando os problemas básicos dasorganizações internacionais, através deuma coletânea sistematizada deestudos e pareceres sobre a matéria.Antônio Augusto Cançado Trindade épresidente da Corte Interamericana deDireitos Humanos.

HONRA, IMAGEM, VIDA PRIVADAE INTIMIDADE, EM COLISÃOCOM OUTROS DIREITOSMônica Neves Aguiar da Silva CastroEditora Renovar, 2002

A tese, desenvolvida por esta juízafederal na Bahia, parte da idéia de que,para se atingir uma sistematizaçãoadequada a todas as hipóteses em quese dá a colisão e em que se encontraenvolvido pelo menos um dos direitosindicados, é necessário encampar oprincípio da proporcionalidade comoforma de solucionar o conflito. Paradelimitar o tema, e em face da inclusãona Constituição Federal, no títuloreferente aos direitos e garantiasfundamentais da inviolabilidade daintimidade, da vida privada, da honra eimagem das pessoas, a autoradesenvolveu seu estudo com especialatenção para esses direitos.

l SESSÃO ESPECIAL l

Costa Gavras

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l ENTREVISTA l MICHEL MIAILLE

tante, passou a integrar categorias sociais que nãotêm a cultura, a civilidade e o comportamento dosprofessores, que pertencem a uma outra classe social.E não se trata de simplificar, mas de dizer que as expec-tativas em termos de civilidade, de comportamen-to, e também em termos de inteligência, de traba-lho e de regularidade são, hoje, expectativas muitoaltas, porque não correspondem mais ao modo devida de muitas crianças, que vivem em situações mui-tas vezes desesperadoras. Essa dificuldade de encon-tro de duas culturas produz choques, algumas vezesviolentos, e de nada adianta ensinar autoritariamen-te a cidadania. É preciso responder às causas que pro-duziram esses fatos, e isso é muito mais difícil. Deuma certa maneira, parafraseando Marx, não pode-mos esperar que a escola tenha um nível mais ele-vado do que o da sociedade à qual corresponde. Oque os alunos introduzem na escola é o que existeno mundo deles. Se eles são violentos, é porque háviolência no quarteirão; se eles são desordeiros, é por-que não há ordem dentro das famílias e, muitas vezes,não há nem família.

JM – Qual o papel do juiz e da Justiça na formaçãoda cidadania?Michel Miaille – Creio que o juiz não deve ser soli-citado além da sua função de produzir justiça, querdizer, de aplicar regras, se possível explicando-as. Achoque é muito pedir que sejam, ao mesmo tempo, edu-cadores da cidadania. Isto pertence a outras funções,exceto no caso do juiz da Infância, que não aplicapenas ou condenações, mas tem uma função edu-cativa. Fora disso, o juiz tem como função a aplica-ção da lei. O que é preciso é criar ao redor do juizinstâncias de mediação, com advogados, assistentessociais e educadores, se necessário, a fim de evitarque muitos casos cheguem até ele. Eu defendo queo papel de cada um dos atores da vida social sejabem definido, e que não se faça todo mundo fazerde tudo. Há uma tendência hoje de se jogar sobre ojuiz aquilo que a administração não faz, que a esco-la não faz e que o serviço social não faz.

JM – O sr. acredita que as leis criadas para garantira cidadania, no fundo, existem para excluir certosgrupos?Michel Miaille – O estatuto jurídico da cidadania pos-sui tanto uma função de inclusão quanto de exclu-são. Ele diz quem está dentro e quem está fora dacidadania. Esse dado é esquecido com freqüência,porque se costuma pensar que a exclusão faz partedas coisas naturais. Mas há um segundo ponto levan-tado por essa questão, que é a exclusão de fato, ouseja, quanto mais se ascende na escala social, maisse tem cultura e educação e mais se é beneficiadopelos direitos da cidadania. Quanto menos se temacesso a tudo isso, menos se é beneficiado. Há, por-tanto, formas de exclusão devidas menos à lei do queàs condições nas quais essa lei se aplica. Penso quenão é a lei, stricto sensu, que exclui, mas sim os meca-nismos sociais daquilo que eu chamaria de “regimeda cidadania”.

tida, contraditória, submetida a pressões, e constróitodos os dias relações sociais mais ou menos frágeis.A cidadania não é ligada a uma cultura determina-da. Não podemos dizer, hoje, que a cultura européiaou americana é mais favorável à cidadania, o quelançaria à não-cultura, por exemplo, os africanos, osmarginais e as pessoas do Extremo Oriente. mais demo-crática era a cultura americana, por ser individua-lista, libertadora e aberta, enquanto as outras eramtradicionais e fechadas. Então, não creio que deva-mos ligar a cidadania a uma cultura, no sentido deum conjunto fixo e definitivo de comportamento. Poroutro lado, creio que é preciso ligar cidadania e cul-tura, como um dos elementos da cultura de uma socie-dade num determinado momento. Nenhum povo écondenado a viver fora da cidadania, assim comonenhum povo tem garantias de que sua cidadaniajamais enfrentará dificuldades.

JM – Dentro dessa concepção, como o sr. avalia onível de cidadania no Brasil?Michel Miaille – Lamento não ser um especialista emBrasil. O que eu acho, mas é um pouco banal, é queno Brasil, como em todos os países em desenvolvi-mento, coexistem populações que não têm nem omesmo modo de vida, nem os mesmos interesses,nem a mesma trajetória, e isso tem efeitos sobre acidadania. Para fazer um paralelo, eu lembro queno fim do século 19, na França, dizia-se que era muitomais fácil para o rico respeitar a lei do que para opobre. Ou seja, é muito mais fácil ser cidadão e res-peitar a lei quando não nos falta nada, do que quan-do nos falta tudo. São as populações mais margina-lizadas e mais desfavorecidas que, ao mesmotempo, são acusadas de não serem cidadãs. O mode-lo cidadão pertence, em geral, às categorias mais favo-recidas. Ora, com freqüência, os protestos violentose desordenados das categorias menos favorecidas são,na realidade, numa linguagem difícil de aceitar, ummeio de reivindicar igualdade de direitos, respeitosocial e necessidades de formação. Na realidade, elesmanifestam o desejo de serem considerados comoiguais. Logo se retorce e se diz que eles são maus cida-dãos – e, é claro, do ponto de vista burguês eles sãomesmo –, em lugar de se ver a expressão, eu diriainábil e deslocada, da necessidade de igualdade, dig-nidade e reconhecimento social.

JM – O sr. acha que a cidadania deve ser desenvol-vida na escola?Michel Miaille – A situação da escola na França, sobre-tudo na faixa de alunos de 11 a 15 anos de idade,esteve em alguns momentos dramática. Por causado fracasso escolar, vimos ressurgir a violência emalguns subúrbios. O meio de evitar a violência e arelegação de certos grupos ao fracasso foi reapren-der a vida em comum pela cidadania. Então, há quase10 anos, existem programas em todas as séries esco-lares de educação para a cidadania, em forma de aulasespecíficas sobre as instituições, a administração, osdireitos, mas também em formas mais práticas devisitas, conferências, encontros e debates. Isso trou-

JM – Como é o seu trabalho junto às escolas,na França?Michel Miaille – Meu trabalho consiste em ser tes-temunha, uma testemunha que reflete sobre o quevê. Tenho ido a muitas escolas, observo o que se passae procuro analisar e discutir com os diretores e pro-fessores o que está acontecendo. Nos damos contade que, em muitos casos, há uma situação de con-flito, às vezes de geração e de classe social, que é es-sencial ao debate. A escola, que se democratizou bas-

JM – Desde quando o sr. estuda a questão dacidadania?Michel Miaille – Há cerca de três anos trabalho sobreessa questão dentro do meu centro de pesquisas, ondese encontram alguns juristas como eu. Fazemos ava-liações sobre a experiência do aprendizado da cida-dania nas escolas. Para isso, temos contato com pro-fessores e diretores de escolas de todo o país.

JM – Qual a sua definição de cidadania? O sr. achaque ela muda, de acordo com as necessidades e osinteresses do Estado e do Poder?

Michel Miaille – É muito difícildefinir a cidadania. Ela pode serdefinida como o estatuto das pes-soas, ou seja, o ajustamento dosdireitos ao poder político. Esta é,grosseiramente, a definição dosjuristas. Dentro da ciência polí-tica, podemos definir a cidada-nia como uma maneira de regu-lar a sociedade política nummomento determinado. Ela sópode ser avaliada em relação aum conjunto de fenômenos, quenão são estritamente jurídicos,mas também culturais, políticos,étnicos. Cada sociedade, a cadamomento, reinventa o estatuto dacidadania dentro da regulação dasrelações sociais. Portanto, aocontrário da imagem que os juris-tas possam ter, a cidadania nãopode ser apreciada simplesmen-te como estatuto jurídico, aplicá-vel a essa ou àquela pessoa. A rela-ção entre direito e cidadania defi-ne apenas uma parte da cidada-nia, a parte mais visível, que é alista de direitos reconhecidos eas possibilidades de ação de umindivíduo ou de um grupo fren-te ao poder político. Mas isto nãoé a totalidade da cidadania.Desejar um cidadão ativo não ésimplesmente fazê-lo utilizar-sede direitos, mas é, na realidade,questionar certo tipo de educa-ção; as desigualdades sociais e cul-turais; a representação de grupose o problema do conhecimento,que permite ao cidadão discutir

com a administração no mesmo patamar.

JM – Qual a relação entre cultura e cidadania?Michel Miaille – Em sociologia, a teoria culturalistatenta encontrar uma definição, um funcionamentotípico de uma cultura, fixando-a num determinadomomento. Então, há a cultura dos árabes, a culturados africanos, a cultura dos americanos, a cultura doseuropeus, e supõe-se que todos os indivíduos quepertencem a essas culturas agem de acordo com mode-los fixos. Esta é, a meu juízo, uma visão completa-mente errada. A cultura é sempre evolutiva, discu-

FERNANDA PEDROSA

Professor da Universidade de Montpellier I (França)

e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas sobre a

Teoria do Estado (Certe), Michel Miaille tornou-se

conhecido no Brasil por sua obra clássica

Introdução crítica ao Direito, adotada em

praticamente todas as faculdades de Direito. Ele

esteve no Brasil pela primeira vez em 1981 e,

desde então, visitou o País várias vezes, por conta

de convênios com a PUC/RJ e com a Faculdade de

Direito de São Paulo. No momento, acerta detalhes

de um convênio também com a Universidade

Federal Fluminense (UFF). Nomeado recentemente

para a Comissão de Admissão da Escola Nacional

da Magistratura Francesa, o professor Miaille tem

se dedicado , nos últimos anos, ao estudo

sistemático da cidadania, construindo um diálogo

com outras áreas do saber. Este foi o tema do curso

que deu no Rio, em abril, e é o principal assunto

desta entrevista exclusiva ao JORNAL DO

MAGISTRADO, onde ele diz que acredita mais em

comportamentos coletivos do que na idéia

tradicional de que o bom comportamento de um

cidadão é suficiente: “Hoje, a cidadania requer

mobilização e protesto.”

xe a esperança de podermos, assim, restabelecer apaz social nas escolas e formar uma nova geraçãode cidadãos. Porém, o entusiasmo do início deu lugara um pouco mais de reserva. O fato é que nos demosconta de que a cidadania não é a resposta para todasas questões, sobretudo por uma razão simples: a cida-dania não pode ser aprendida, como a História, aGeografia ou a Matemática; ela supõe a prática, e aíestá a maior dificuldade. As práticas cidadãs na esco-la são muito limitadas. Então, chegamos a essa con-tradição: ensinamos a liberdade do cidadão dentrode um quadro que não é de liberdade. Para os alu-nos, a cidadania é a oportunidade de reivindicar ede afirmar direitos individuais; para os professores,é o meio de assegurar a autoridade e a obediência.

“É muito maisfácil ser cidadãoe respeitar a leiquando não nosfalta nada, doque quando nosfalta tudo.”

Cidadania requermobilização e protesto

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