Jornal Lampião - 2ª Edição

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LAMPIÃO Jornal Laboratório | Comunicação Social - Jornalismo | UFOP | Ano 1 - Edição Nº 2 - Julho de 2011 11 Passos das almas na escuridão das ruas Superstição, medo e imaginário alimentam procissão dos mortos e tradição dos vivos Um depósito da sétima arte Projeção, magia e memória em espaço cultural transformado com o passar dos anos 4 7 Composição de uma trilha musical Siga os acordes, as partituras e o roteiro harmônico pelas ruas e ladeiras da cidade

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O Jornal Lampião é uma publicação laboratorial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto. Produzido pela turma 2008.2 2ª Edição - Julho de 2011.

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LAMPIÃOJornal Laboratório | Comunicação Social - Jornalismo | UFOP | Ano 1 - Edição Nº 2 - Julho de 2011

11 Passos das almas na escuridão das ruas

Superstição, medo e imaginário alimentam procissão dos mortos e tradição dos vivos

Um depósito da sétima arte

Projeção, magia e memória em espaço cultural transformado com o passar dos anos4 7 Composição de uma

trilha musical

Siga os acordes, as partituras e o roteiro harmônico pelas ruas e ladeiras da cidade

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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 201102 Edição: Mari Fonseca e Ana Beatriz Noronha

Editorial

Sob a escrita do lampião

Lembranças - Das manhãs de domingo embaladas pela leve brisa , dos cachorros, crianças e famílias que sempre alegram cada canto da praça, das tardes quentes refrescadas por sorvetes e a companhia aconchegante dos amigos, das noites prolongadas até altas horas ao som animador das cordas dos violões. Até mesmo dos dias solitários, em que o único desejo é um espaço escondido e pouco iluminado em um dos bancos em seu entorno. Não buscamos momentos por ali, o jardim se encarrega de fazê-los. (Mari Fonseca)

dia 16 de julhoAndreiA donAdon-LeAL

16 de julho é o único dia do ano em que as fadas dormem, segun-do a tradição ir-landesa. O costu-me é colocar tra-vesseiros de algodão em miniatu-ra no jardim, onde elas dormem. No dia seguinte os travesseiros es-tarão impregnados de magia, por-que as fadas repousaram as cabe-cinhas para dormir. Recolhem-se depois os travesseiros em minia-tura, que além do orvalho, terão recebido bons fluidos das fadas, para transformá-los em amule-tos. Ao olharmos para a história da igreja, encontramos também uma linda página marcada pelo amor à Virgem Maria: a história da Ordem dos Carmelitas. A pa-lavra Carmelo significa “jardim”, quando abreviada se diz “carmo”. O Monte Carmelo fica ao Norte de Israel, situado na região da an-tiga Palestina, no qual viveu numa gruta o solidário profeta Elias, em penitência. Defensor da fé de um só Deus profetizou a existência da Virgem Maria. A partir de 1237 os carmelitas foram quase expul-sos do Monte Carmelo, pois a Pa-lestina vivia sob pressão cada vez maior dos muçulmanos, que aca-bavam de invadi-la. A Ordem do Carmo sofreu perseguições até 1251. Na Inglaterra, no Carme-lo de Cambrigde residia o Supe-rior Geral, Simão Stock. Ele reza-va com tanto ardor à Santa Mãe, que no dia 16 de julho de 1251, te-ve uma visão da Virgem Maria, confirmando sua proteção celeste.

A Lenda de Nossa Senhora do Carmo diz que há muitos anos, num 16 de julho, forte temporal se formou quando pescadores se encontravam em alto mar; em ter-ra, as mulheres fizeram uma enor-me fogueira no adro da igreja pro-

curando orientar seus maridos no caminho do regresso. Do mar al-to, os pescadores viram a luz dis-tante e a imagem de Nossa Senho-ra do Carmo e chegarem sãos e salvos em terra firme.

Às margens do ribeirão, ho-je Ribeirão do Carmo, em 1696, nasceu o arraial de Nossa Senho-ra do Carmo, primeira vila cria-da na capitania. Em 1745 nome-ada por ordem do reino, Maria-na. Aqui começa a história de Mi-nas, quando bandeirantes paulis-tas acharam ouro no Ribeirão. Se fizermos uma tríplice aliança ou trilogia destes fatos marcados na história da civilização poderemos dizer que 16 de julho é uma da-ta mágica, em que na Irlanda as fadas dormem; na Inglaterra en-contramos a história marcada pe-la aparição da Virgem Maria; em Minas o seu nascimento histórico com a fundação de Mariana, hoje Monumento Nacional e uma das cidades mais importantes do Cir-cuito do Ouro.

Mariana faz parte do universo que faz parte do ser humano e dos contos de fada, além de ficar nas montanhas poéticas de Durão, de Cláudio, de Alphonsus, e ho-je dos diversos poetas que bradam ou versejam amor incondicional à mãe de Minas. Na língua dos ho-mens, as coisas em que mais acre-dito atualmente são as coisas deri-vadas dos contos de fadas. As mais racionais e belas; a religião tam-bém, coisa racionalmente certa e bela. O país das fadas não é outra coisa senão o ensolarado país do senso comum, tanto na democra-cia e na tradição.

Que os bons fluidos das fadas abençoem o aniversário da Pri-maz e que se estabeleçam Igualda-de, Fraternidade e Liberdade, no Ventre de Minas! *Escritora e artista visual; mestranda em literatura e cultura na UFV

opinião

EntrE olharES ChargE mari FonsEca

Trezentos e quin-ze anos. São aí al-guns bons dias, infinitas horas, in-contáveis segundos, milhares de pessoas, de ações, pensamen-tos, sentimentos, de-sejos, utopias, perdas, valentias, retrocessos, descobertas. Movimento. Com o passar do tempo, nes-se relógio histórico, mudam-se os gestos, muda-se a fala, mu-dam-se as faces, mas também permanecem. Permanecem, en-tão, tradições, ideias, até que ou-tras tantas coisas – roupas, trejei-

lampEjoS dESta Edição

“Se a música é a linguagem universal, o samba é a entonação dessa fala...”

Sobre as rodas de samba. p. 8Necessita um olhar

diferente, necessita passar a admirar o que se

vê no dia a dia...Sobre as pedras. p. 3

“Como não tínhamos dinheiro, pedíamos ao porteiro para nos deixar dar uma espiada na sala, antes das exibições...”

Zeth Rôla, sobre o cinema. p. 4

“É por isso que ainda se ouve, nas madrugadas de

Padre Viegas, uma mulher em procissão, sussurrando: balaio de

penas pesado, balaio pesado...” Sobre a Procissão

das Almas. p. 11

Jornal laboratório produzido pelos alunos do 6° período de Jornalismo D Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) D Reitor: Prof. Dr. João Luiz Martins. Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Artur dos Santos Ferreira. Chefe de departamento:

Profa. Dra. Juçara Gorski Brittes. Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Marta Regina Maia D Professores responsáveis: Hila Rodrigues (Laboratório de Jornalismo Impresso), Anderson Medeiros (Fotografia) e Ricardo Augusto Orlando (Planejamento Visual) D Reportagem, fotografia e edição: Allãn Passos, Amanda Rodrigues, Ana Beatriz Noronha, Ana Cláudia Garcêz, Camila Dias, Douglas Gomides, Enrico Mencarelli, Fábio Seletti, Fernando Gentil, Izabella Magalhães, Leidiane Vieira, Lorena Caminhas, Luana Viana, Lucas Vasconcellos (Lucas Aellos), Lucas Borges, Lucas

Lameira, Luiza Lourenço, Mari Fonseca, Mateus Fagundes, Mayara Gouvea, Olívia Mussato, Paulo Dias, Raísa Geribello, Rodolfo Gregório, Sabrina Carvalho, Sara Oliveira, Simião Castro, Sophia Figueiredo, Tábata Romero, Tabatha Campelo, Thales Vilela Lelo D Projeto gráfico: Enrico Mencarelli, Lucas Lameira, Luiza Lourenço, Mayara Gouvea, Simião Castro, Tábata Romero D Colaboração: Fábio Germano, Neto Medeiros D Impressão: Conceito Gráfica Editora Ltda D Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço eletrônico: [email protected]. Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro, CEP 35420-000, Mariana-MG.

Fala, Cidadão!

IsentoOs jornais de Mariana são volta-dos para a política que dá dinhei-ro. O Lampião não tem esse vín-culo, não toma partido.

Kátia Neves – cabeleireira

InvestigaçãoJornalismo de verdade, uma coisa bacana é a investigação do fato. Só acho que, se não tem espaço para propaganda, não deveria divulgar outras instituições nas matérias.

Aloísio Fonseca - músico

ObjetivoDireto ao assunto, sem politica-gem.

Renato Zacarias - comerciante

FaLE VocÊ TamBÉm! para enviar su-gestões de matérias, opiniões e críticas, escreva para [email protected]

tos, identidades – cheguem e se apresentem.

Esta edição es-pecial do Lam-pião deseja reve-

lar Mariana, dar personalidade aos elementos e carac-terísticas marcan-tes da cidade – das pedras das ruas, das lamparinas que ilu-minam as noites, de cada igreja e sua arquitetura, das portas antigas e di-

ferentes janelas até a trajetória da música e

das bandas ao longo dos anos. Todas as palavras desse jornal

– um laboratório e uma oficina de buscas, construções e desconstru-ções, vozes e olhares – inquietam-se diante do desejo dos que querem mergulhar em descobertas. Desco-brir novos olhares, novas formas de fazer este jornalismo próprio, de sentir e se colocar diante desta senhora de muitos anos e infindá-veis histórias.

Em sintonia com nossas vonta-des de experimentar e ousar neste jornal-oficina, saímos do comum para lançar novos sentidos na ca-pa desta edição do Lampião.

Homenageando Mariana, a

capa se fez em pôster, onde a ci-dade se desenha, e é desenhada por nós, e por todos os habitantes que aqui vivem e po-dem trazer seus traços e suas cores para ilustrar está cidade, cotidiana-mente.

Afinal, Mariana não se faz simples-mente de tijolos his-tóricos e casas an-tigas, mas também de todas as vidas que hoje caminham pelas su-

as ruas, que mantêm o seu movimento, que anseiam por

transformações e que acreditam e nu-

trem por esta cidade verdadeiro afeto.

Como disse Gui-marães Rosa certa vez,

“o mais importante e bo-nito, do mundo, é isto: que

as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram termi-

nadas – mas que elas vão sem-pre mudando. Afinam ou desafi-

nam, verdade maior. É o que a vi-da me ensinou. Isso que me alegra montão”.

“O Jardim é um grande palco ao ar livre.”Iva Freitas, sobre a

música em Mariana, p.7

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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 03Edição: Paulo Dias e Lorena Caminhas

Que lugares as portas revelam?TäbaTa RomeRo e maTeus Fagundes

Nas construções elas ocupam um espaço relativamente peque-no. Sem elas, no entanto, não se-ria possível atravessar de um lugar para outro. Para onde nos levam?

Transpor as portas de Maria-na é entrar na história destes 300 anos da Vila do Carmo. Mais que simples travessias, as portas tem

Corredor históricoA porta verde, quase escondi-

da na Praça Minas Gerais, con-duz à casa da historiadora Lour-

des Helena de Castro Magalhães. O caminho entre a porta de rua e a porta da sala é um trecho de

um corredor utilizado por tropei-ros no século XVIII, para trazer

mantimentos à população da Vi-la do Carmo. Segundo Lourdes,

os viajantes não podiam atraves-sar a porta da casa do Conde de

Assumar, que ficava atrás da Igre-ja de São Francisco. “Eles eram os

pobres, a classe trabalhadora da época. Não podiam se misturar

com gente da elite”, conta. Atual-mente, apenas a parte do corre-

dor que dá acesso à casa da histo-riadora está preservado.

Na Rua Direita, nº 1Ela chama a atenção não por

ser uma porta frondosa ou por ter uma história arquitetônica singu-lar. Estreita, com cerca de um me-tro de largura, a porta do núme-ro 1 da Rua Direita, próxima (e à direita) da Catedral da Sé, leva a um dos espaços mais privativos da igreja, frequentado pelos padres, empregados, beatas e coroinhas. É por ela que se vai à cozinha, à hor-ta, aos fundos da construção. No passado, no século XVIII, o local recebia os religiosos da Igreja da Sé, então em fase de construção.

Porta que leva a outra

Já de manhã, às 6h, quando a Ca-tedral da Sé se abre, os fiéis se depa-ram com um grande portal, um an-

teparo rebuscado entre a porta prin-cipal da igreja e seu interior. Atri-

buída a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, a peça é uma chapa reta, sobre a qual se encontra uma

imagem de Nossa Senhora. Apresen-ta ainda duas janelas retangulares. Os moradores da cidade chamam-

na de “tapa vento”, porque ela impe-de que as luzes das velas sejam apa-

gadas durante as celebrações.

Luiza LouRenço

Carros e pessoas passam por ali todos os dias. E ela permane-ce imóvel, quase sempre desper-cebida. A rua. Tão imóvel quan-to as pedras que fazem parte dela. As mesmas pedras que já foram pisadas por tantas outras pesso-as, em outras épocas. Pedras que guardam, ao mesmo tempo, ve-lhas e novas histórias de uma ci-dade que concebeu Minas Gerais. Com o desenvolvimento resultan-te da busca do ouro e metais pre-ciosos, no final do século XVII, a antiga Vila do Carmo passou a re-ceber não só os exploradores, co-mo também os aventureiros e a alta sociedade portuguesa, que vi-nham atrás das riquezas locais. E a partir do intenso movimento e fi-xação de comércio e pessoas, a vi-la se transformou em cidade. No-meada Mariana, em homenagem à esposa do rei português D. João V, a cidade foi a primeira a rece-ber um projeto urbanístico, em 1711.

Retirava-se ouro, muito ou-ro. Os minerais não utilizados se transformavam em calçamentos e ruas. Formada em História, Ge-ografia e atualmente designer de joias, Tânia Torres ressalta que é

Pedras transportam caminhantes para outros tempos, histórias e aprendizados

possível que os homens responsá-veis pela construção daqueles ca-minhos não julgassem valiosas as pedras que deixavam para que es-cravos e aventureiros lapidassem e encaixassem, uma a uma, batidas no solo. Porém, o decorrer dos anos foi o que transformou as pe-dras – utilizadas nas construções de ruas, calçadas e revestimentos de igrejas e construções – em ob-jetos valiosos. Isso porque, além de configurarem um espaço de passagem, são essas as pedras que transportam o caminhante para antigas histórias de vida, ainda na primeira capital de Minas Gerais.

É certo, no entanto, que nem sempre essas histórias são tão visí-veis. Tânia Torres afirma que, pa-ra se sentirem conduzidas por es-sas ruas, é preciso que as pessoas atentem para detalhes e valorizem as tradições locais, principalmen-te os nascidos em Minas Gerais. “ Todo mineiro é primeiramente marianense. Todos deveriam co-nhecer a história que envolve essa cidade, as riquezas não só mine-rais como culturais e históricas.”

Conhecer a história da cida-de não envolve apenas a leitura de pilhas de livros ou a pesquisa sis-temática ao longo do tempo. Ne-cessita um olhar diferente, neces-sita passar a admirar o que se vê no dia a dia. É o mesmo processo dos minerais que encalçam a cida-de, como o quartzito, a pedra-sa-bão ou a hematita.

Ainda que estáticos, eles fo-gem da rotina através dos passos do trabalhador que caminha com fome em seu horário de almoço, dos enamorados nas praças, das crianças ou até dos muitos passos que compõem a Procissão das Al-mas. Assim como esses minerais, as pessoas também podem viven-ciar o novo a partir daquilo que parece comum.

uma função quase social. São elas que separam o público – a Rua, a Praça, a Ladeira – do privado – o interior da casa, da Igreja. Por conta disso, também são elas que guardam tantos segredos, histó-rias e mistérios. Em Mariana, es-ses mistérios são inúmeros – e é curioso que centenas de pesso-as passem em frente a eles sem os perceber.

Caminho do OuroEssa porta guarda um antigo mistério, já desvendado e pro-

pagado. Contam que, à esquerda da Igreja de São Francisco, exis-te um cemitério – situado atrás desse portal. Basta olhar para ci-ma do muro ou aguardar um pouco, que o zelador da igreja chega e abre a porta de acesso ao local. Ali, não se vê nada além de uma horta comunitária, abandonada. Contudo, os amontoados de ter-ra e lixo não explicam o mistério por trás da porta – que escon-de, na verdade, uma abertura para um caminho subterrâneo, que foi utilizado para o contrabando de ouro dentro das esculturas dos santos. O trajeto se encerra na Igreja de Nossa Senhora do Carmo.

RodoLFo gRegóRio

O que antes permitia o acesso dos fiéis à antiga – e de-molida – capela São Gonçalo, agora se esconde debaixo da terra. É a escadaria da igreja, que também deu acesso à ca-pela Santo Antônio por algum tempo. O que se vê hoje é ape-nas uma parte de um dos de-graus do “monumento”, ainda mais antigo que a cidade.

A história de Mariana pas-sa por esses degraus, delinean-do o caminho percorrido pe-los bandeirantes no processo de construção da primeira ca-pital de Minas. A exploração, iniciada em meados do sécu-lo XVII, se dá em meio à ânsia pelo ouro nas águas do Ribei-rão do Carmo. Para os histo-riadores, é ela a primeira cape-la da cidade, construída quan-do a vila ainda era considera-da arraial.

Em trabalho arqueológico realizado no local, coordenado por Alenice Baeta e promovi-do pelo Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Na-cional, foram encontrados ou-

tros degraus da escadaria, além de materiais da época escondi-dos sob a terra.

Apesar da relevância histó-rica, a igreja não faz parte do circuito turístico da cidade. Se-gundo a historiadora Denise Tedeshi, colaboradora da ex-pedição, há registrado no Pla-no de Obras do Iphan, data-do de 1954, uma intervenção de recuperação da Capela de Santo Antônio. Porém, até ho-je não houve qualquer obra no local. “Fica é a vontade dos moradores locais de terem a sua igreja como parte do patri-mônio marianense”, diz a mo-radora do bairro São Gonçalo, Maria Aparecida Paiva.

Tempo revela escadariamais antiga que a cidade

Único degrau visível da escada mais antiga de Mariana

Abrigo e reflexãoO portão encoberto por plantas – e que mostra um corredor es-

treito, e nada convidativo – esconde um refúgio. No fundo de um quintal, atrás de um supermercado, e poluída em função da proxi-midade do centro urbano, está a Ermida de São Geraldo. Construída de 1916, a capelinha traz pinturas de afresco, um jardim com árvores frutíferas, um pequeno lago com carpas e uma bica d’água. Lá den-tro, o barulho some e a paz reina. Ideal para quem quer fugir do caos urbano e tirar um cochilo na hora do almoço ou para quem quer as-sistir à missa às segundas-feiras.

Pedras calçadas na rua da cidade

Luiz

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FoToS: TábaTa romero

TRAJETOS

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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 201104 Edição:Thales Lelo e Tábata Romero

Cinema reacende memóriaLuana Viana e PauLo Dias

Quando as exibições fílmi-cas do Cine Theatro Municipal de Mariana estrearam, em 1935, os fundadores da família Tropia não esperavam tantas cadeiras vazias naquele bar-sorveteria que, das 18h às 20h, também funcionava como cinema. Poucas pessoas fo-ram assistir o ator James Cagney interpretar um chofer de táxi in-satisfeito com a luta de classes em “Peso do Ódio” (1933), e a situa-ção se repetiu quando, na mesma semana, uma ínfima plateia foi ver as aventuras do ator Edward Ar-nold no filme “Uma noite no Cai-ro” (1933).

Como não tínhamos dinheiro, pedíamos

ao porteiro para nos deixar dar uma espiada nas salas,

antes das exibições.Zeth RôLa

Dois anos depois, a Prefeitura de Mariana isentou as taxas que o Cine Theatro deveria pagar e, com os preços dos ingressos mais aces-síveis, as sessões foram seduzin-do um número maior de espec-tadores. Na década de 50, devido ao descumprimento de algumas cláusulas do contrato entre a em-presa Circuito de Cinemas Brasil (encarregada da administração do local na época) e a Prefeitura, as exibições no cinema foram breve-mente suspensas, e só foram reto-madas quando o local voltou para as mãos da sua fundadora, a Sal-vador Tropia & Irmãos.

Na reinauguração do Cine Theatro, em 1957, as sessões pas-saram a ser dividas também em matinês, diariamente. Era naquele tempo que a estudante (hoje pro-fessora aposentada) Zeth Rôla, escapava por algumas horas do convento e, junto das amigas Pe-quenina e Petrina, infiltrava-se no cinema. “Como não tínhamos di-nheiro, pedíamos ao porteiro pa-

ra nos deixar dar uma espiada na sala, antes das exibições. Só saía-mos de lá quando o filme acaba-va”, conta Zeth, aos risos.

Nessa época, Zeth e suas ami-gas abandonaram as vendas nas barraquinhas de saladas de fru-ta do convento para se comove-rem com “O Maior Espetáculo da Terra” (1952), dirigido por Ce-cil DeMille, que contava a histó-ria de um triângulo amoroso em meio ao universo circense. Fascí-nio maior foi provocado pela exi-bição de “O Suplício de uma Sau-dade” (1955), de Henry King. Na tela, uma luxuosa e atraente Hong Kong era cenário de uma histó-ria de amor entre um jornalista ame-ricano e uma mé-dica asiática. Em contraste com a lu-minosa Hong Kong da década de 50, Mariana tinha lá-seus problemas com energia elétri-ca, de forma que o filme foi interrom-pido diversas vezes pela queda de ener-gia. “Nós gostáva-mos ainda mais”, revela Zeth.

Os anos que an-tecederam o fecha-mento do cinema, no início da déca-da de 70, propiciaram, para o apo-sentado José Geraldo de Oliveira (na época garimpeiro), momen-tos de distração na cidade. É com saudosismo que os domingos da-queles tempos são lembrados, quando, sempre que possível, Jo-sé Geraldo levava seus sobrinhos às matinês. Com amendoim tor-rado e beijinho-doce, eles assis-tiam muitos dos clássicos infantis. “Só que de uma hora para a outra acabou. Hoje existem DVD’s, mas nem de longe se comparam. O ci-nema era a diversão da minha boa idade”, garante José, atualmente com 68 anos.

Em desuso, o Cine Theatro

Municipal de Mariana foi trans-formado em depósito de materiais de construção da Prefeitura até a década de 90.

Em 24 de outubro de 1993, após uma reestruturação do imó-vel, foi inaugurado ali o Centro de Cultura Sesi – Mariana, que desti-nou o espaço às atividades de ar-te de cultura. Em 2007, o núme-ro de acomodações da antiga ca-sa de diversão salta de 239 poltro-nas (durante a direção de Salvador Tropia) para 300.

No ano seguinte, o Sesi, em parceria com a empresa Araújo Cinematográfica Telecomunica-ções Ltda, retoma as exibições no

local, sem muitos adeptos. Para Frederico Ozanan Teixeira Santos, funcionário aposentado do Ban-co do Brasil e membro da Acade-mia Marianense de Letras, Maria-na aumentou “quantitativamente, e não qualitativamente”, ou seja, o crescimento da população e da es-trutura do cinema não foi acom-panhado pela prática cultural dos moradores no que diz respeito ao interesse pelas exibições cinema-tográficas.

Apesar do histórico respeitá-vel, a sétima arte, em Mariana, ainda precisa de muito estímu-lo para atrair as novas gerações e produzir novas memórias.

PATRIMÔNIO

Trem carrega gente, cultura e históriatábatha CamPeLo

O Trem da Vale é hoje um marco de quase tudo em Maria-na: do patrimônio cultural e na-tural da região dos Inconfiden-tes, do progresso da civilização de Mariana e Ouro Preto, da dispu-ta pelo ouro em tempos remotos, enfim: da riqueza cultural cons-truída na região.

Implantado no século XIX, o trem percorre os trilhos de uma ferrovia que foi construída, na verdade, em Ouro Preto – e pro-longada até Mariana. A partir daí,

o deslocamento de uma cidade para outra, por meio da locomo-tiva, acabou se tornando um dos sinais mais evidentes do desenvol-vimento e da modernização.

Com capacidade para condu-zir até 240 pessoas por viagem, o trem é composto por uma loco-motiva a vapor, uma a diesel, e cinco vagões de passageiros. A lo-comotiva foi fabricada no século XIX, na Inglaterra. Basta contem-plar o interior de madeira dos va-gões, semelhantes àqueles que ca-racterizavam os velhos trens.

Parte dos atrativos turísticos

de Mariana, o passeio de trem permite ao viajante apreciar o re-levo e natureza da região, além das antigas formações rochosas e áreas de mineração já desativadas. É o caso, por exemplo, da mina de Pirita, próxima à comunidade Lí-rios do Campo, em Ouro Preto.

A existência desse histórico meio de transporte faz com que a cidade possua uma importan-te opção de entretenimento, as-sim como de uma diferente ma-neira de conhecer, discutir e dis-seminar as riquezas naturais e pa-trimoniais do lugar.

Para a moradora do bairro Ro-sário, Aline Silva, o Trem da Vale é pouco valorizado pelos morado-res da cidade, que, por já conhece-rem a região, costumam não per-ceber o diferencial cultural da ro-ta Mariana-Ouro Preto.

O trem funciona em dias e ho-rários disponíveis no site http://www.tremdavale.org. Os interes-sados podem se dirigir às Estações de Ouro Preto e Mariana, que ofe-recem a programação e outras in-formações históricas capazes de enriquecer, e muito, o passeio pe-la região.

divulgação

O Trem da Vale circula com velocidade média de 20 a 25 km por hora e propicia para todos os passageiros um percurso pelas belezas naturais da região

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Cine Theatro em dois momentos históricos: no período sob administração da família Tropia e na gerência atual

Page 5: Jornal Lampião - 2ª Edição

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 05Edição: Lucas Aellos e Enrico Mencarelli

PADRE AVELAR

Trabalho coletivo iniciado em 1964 transforma terreno baldio em instituição de ensino e proporciona a democratização da educação até hoje

Douglas gomiDes

Muita história e muito suor se escondem sob o concreto que abriga uma das unidades da Uni-versidade Federal de Ouro Preto (Ufop) em Mariana, o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, o Icsa.Há quase três anos, a comunida-de universitária divide os espaços do prédio. A importância do lo-cal, que já foi um terreno baldio, está diretamente ligada aos esfor-

ços dos marianenses para demo-cratizar o acesso à educação. A lu-ta nesse sentido começa em 1964, quando o então bispo Dom Oscar, aproveitando-se de uma campa-nha nacional que era destinada à construção de instituições de en-sino, resolveu criar uma escola pa-ra os homens da cidade. Naquele tempo, Mariana priorizava as ins-tituições que atendiam ao público feminino. O colégio recebeu o no-

me do primeiro bispo da cidade, Dom Frei Manuel da Cruz.

EsforçoErguido graças ao empenho da

população, o prédio é resultado da ação de personagens importantes da cidade. Entre eles, estão o pa-dre José Dias Avelar,  o advogado José Salim Mansur e a professo-ra aposentada Dona Hebe Rôla, considerados os fundadores da instituição. Segundo a professora Hebe, o prédio foi construído gra-ças à grande mobilização das pes-soas, em especial dos professores. “Aquele colégio foi fruto de um es-forço nosso, de um trabalho mui-to sério com a comunidade ma-rianense”, diz.

As atividades do colégio foram

coordenadas por seus fundado-res até o final da década de 1990, quando a prefeitura de Mariana passou a gerir o local. Em home-nagem a um dos idealizadores, a instituição recebeu um novo no-me: Colégio Padre Avelar.

Em quase 20 anos, a escola re-cebeu alunos de diferentes ida-des e dos mais diversos lugares. O colégio, nesse tempo, abrigou programas que incluíam desde o ensino básico até o sistema de a Educação para Jovens e Adul-tos (EJA). Luan Queiroz, 22 anos, aluno da Ufop, estudou no pré-dio por dois anos. Para ele, foi um tempo de crescimento. “Apesar de algum déficit na educação, tínha-mos uma área externa bastante agradável”, relembra.

Hoje

No segundo semestre de 2008, após vários anos gerenciando a instituição, a prefeitura de Maria-na firmou contrato com a Ufop, cedendo o prédio para a insta-lação do Icsa, que abriga os cur-sos de Comunicação Social, Ciên-cias Econômicas, Administração e Serviço Social.

Para Hebe Rôla, a criação de um campus universitário no local que ela e outros educadores ajuda-ram a construir e estruturar é a re-alização de um sonho. “Foi da ma-neira que nós idealizamos. Espe-ro que o Icsa prossiga na trajetó-ria da sabedoria e da conscientiza-ção que foi plantada ali por Padre Avelar”, afirma.

Obra foi luta contra falta de estrutura

leiDiane Vieira

Maria Perpétua das Dores, mais conhecida como Lica, par-ticipa da Associação Marianense de Arte e Artesanato há 13 anos. Desde 2005, atua como presidente da organização. Em casa, enfrenta dificuldades que poderiam fazer com que ela desistisse dessa res-ponsabilidade, mas o encanto pe-lo artesanato a impede de tomar esse caminho.

Atualmente, a associação é for-mada por 23 mulheres, todas do-nas de casa. Os trabalhos produ-zidos estão expostos todos os do-mingos em barracas na Rua Direi-ta. Vários produtos também são encontrados na Casa do Artesão Feira Marte, na Rua Frei Durão.

Para algumas das associadas, o artesanato representa muito mais que uma profissão ou fonte de renda. Elas o defendem como algo

que tem de ser preservado pelas futuras gerações. O maior temor é que essa forma de arte possa desa-parecer devido à falta de interesse pelo ofício nos dias de hoje. A ar-tesã Maria Geralda Cândida acre-dita que, na maioria das vezes, as pessoas não se interessam pelo ar-tesanato porque pensam no di-nheiro em primeiro lugar.

Lica, por sua vez, afirma que desde o ano de 2001 mais de 60 pessoas passaram pela feira na condição de trabalhadores, mas desistiram de continuar. “Quem entra só com o interesse no lucro não permanece”, diz ela, garantin-do que é preciso amar o trabalho manual. Tendo passado por pelo menos 28 cursos, a artesã garan-te que “amor” pelo ofício é o que não lhe falta. “Eu não perco tem-po, faço muitos cursos e procuro aprender com programas de tele-

Mãos que tecem e constróem um futuro melhor Leidiane Vieira

arquiVo PessoaL

antônio Laia

Padre Avelar, considerado um dos fundadores do colégio

Fachada geral do Colégio Padre Avelar, que há cerca de três anos pertence à Universidade Federal de Ouro Preto, funcionando como Instituto de Ciências Sociais Aplicadas

Artesãs temem à falta de interesse e desaparecimento do ofício

ARTESANATO

mari Fonseca

A edificação do Colégio Padre Avelar não foi fácil. A pouca ver-ba reservada à construção da ins-tituição fez com que professores, alunos e cidadãos se unissem pa-ra a fundação de uma escola que atendesse a todas as classes.

Alípio Faria, presidente man-tenedor do ginásio em 1968, relata que durante a construção cada um ajudava como podia para suprir as necessidades mais urgentes do co-légio. Campanhas e barraquinhas eram feitas para arrecadar fundos destinados à compra de tintas, ci-mento, tijolos, materiais de cons-

trução em geral. “Com o tempo, compramos um caminhão com o dinheiro arrecadado dos comer-ciantes. Os alunos subiam nele e iam buscar areia e pedra lá do Pa-dre Canela, Ribeirão do Carmo, para ajudar a construir o ginásio”, conta ele.

Outra maneira de arrecadar fundos era através da venda de espaços para anúncios no jornal “O Ginásio”, criado em 1951 pe-lo grêmio do colégio, coordenado, à época, pela professora e funda-dora Hebe Rôla. Segundo ela, ca-da um ajudava à sua maneira: al-guns traziam material de casa, ou-

tros cediam mão-de-obra, ajuda-vam na limpeza e no que mais fos-se preciso.

A construção da nova escola interessava grande parte da popu-lação da cidade, pois os alunos a serem beneficiados eram de baixa renda, do sexo masculino – e por isso mesmo, não podiam frequen-tar o Colégio Providência, o único da cidade naquele tempo.

Não fosse a perseverança dos primeiros alunos e da comunida-de local, talvez o prédio não esti-vesse de pé hoje como Instituto de CIências Sociais Aplicadas da Ufop.

Prédio garante acesso ao ensino

visão também”, afirma.Há quem também veja nes-

se trabalho uma forma saudá-vel de entretenimento. Para Jane-te da Conceição Alves, por exem-plo, o artesanato é uma distração. “Faço isso porque gosto. Se fosse olhar a renda, eu tinha saído”, ga-rante. Outra artesã, Zélia Chaves, também enxerga no trabalho ma-nual e na interação com outras ar-tesãs uma forma de tornar menos dura a realidade. “O que me segu-ra aqui é o companheirismo. Te-nho que arejar minha cabeça, so-fro com meus problemas em ca-sa”, diz ela, que defende o fortale-cimento da associação.

O desejo das artesãs é que mais pessoas possam se unir a elas, mas não tem sido fácil. A asso-ciada Maria Geralda reclama, por exemplo, da falta de interesse dos jovens pelo artesanato.

Page 6: Jornal Lampião - 2ª Edição

Lamparinas iluminam e espreitam as ruas da cidade Lá vem o acendedor de lampiões da rua! Parodiar o sol e associar-se à lua...

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua, À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente...

O acendedor de lampiões - Jorge de Lima

AnA BeAtriz noronhA

Das primeiras ruas, ainda de terra, onde as casas e os ce-nários eram ainda outros, as grisetas – pequenas velas em latas com azeite - faziam a ilu-minação das noites em Maria-na. Pequenos pontos de luz nas ruas, as primeiras lam-parinas eram como pequenos olhos a observar a quietude da noite.

Datam do período colonial as primeiras e ainda bem rudi-mentares lamparinas, dispos-tas nas antigas ruas da cida-de, onde o ofício de acendedor de lampião era atividade im-portante. As pessoas respon-sáveis pelo trabalho de acen-der as antigas lamparinas en-travam em cena ao entardecer, dando luz ao começo da noite nas primeiras ruas que ainda constituíam um vilarejo. Ao amanhecer, passavam apagan-do uma por uma.

Cheias de histórias, e na memória da própria cidade, as luzes das lamparinas de-ram movimento a Mariana – que nascia e se desenvolvia – e marcaram a lembrança dos que hoje ainda se recordam do tempo em que as primeiras lamparinas funcionavam com azeite de mamona, até que se desenvolvesse o funcionamen-to a gás.

Com a boina sobre os ca-belos brancos – e o movimen-

to preciso das mãos ao falar da época de criança, em que acompanhava a mãe à missa para acender a pequena gri-seta do Santíssimo –, Vicente Cândido da Silva, de 97 anos, recorda que os lampiões de antes eram bem diferentes dos de hoje, em sua forma. Lem-bra ainda que a primeira fonte de luz elétrica vinha de Bicas, através da Companhia de Pas-sagem, e era ligada atrás da ca-pelinha de São Jorge, próxima à Praça Minas Gerais.

Entre os pensamentos a respeito do lampião aluado que acendia de dia e apaga-va de noite, em frente às ca-sas, há quem lembre do tempo em que os sinos davam o toque de recolher. Às 21h, por causa da falta de iluminação notur-na, soavam os sinos avisando aos moradores que era hora de entrar em casa. À noite, os re-ceios diante da penumbra pro-vocada pela luminosidade das poucas lamparinas a gás con-tribuíam para a invenção das mais diversas lendas entre as crianças que brincavam nas ruas, e mesmo entre os adul-tos.

Toda a história da cidade se criou sob a luz desses olhares – das grisetas regadas a azeite de mamona às lamparinas elétri-cas, passando pelas lampari-nas à gás e pelos lampiões. To-dos seguiam o andar das ruas.

Hoje, algumas lamparinas ainda se assemelham a anti-gos modelos, menores e de fer-ro. Há também formas diver-sas, inusitadas, dando a im-pressão de quererem conciliar o antigo e o moderno. Inúme-ras lamparinas percorrem e dão direção aos passos, aos ba-res, às casas, às serestas, à boe-mia e a tudo que se faz sob es-ta luz que parece narrar o mo-vimento da noite. Figuram, as-sim, como cúmplices discretas de todos os passos, sorrisos, abraços, dramas, brigas, en-contros, músicas, danças, con-versas e de tudo que começa a se iluminar sob as primeiras lamparinas que, aos poucos, rua a rua, vão se acendendo.

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 201106 Edição: Ana Sophia Figueiredo e Olívia Mussato

Cúmplices discretas

Lamparinas iluminam e espreitam as ruas da cidade

FernAndo Gentil e lucAs Aellos

Famosa pelo luxo de sua ar-quitetura, a rua Direita de Maria-na sempre pareceu mais “distin-ta” que as demais. Ela abrigava a alta sociedade no final do século XVIII. Segundo o guia de turismo Luiz Otávio, “dá-se o nome de Di-reita às ruas que dão acesso à Ca-tedral da cidade”. O conjunto ar-quitetônico do lugar inclui o chão feito com pedras polidas no esti-lo “pé-de-moleque” e grandes ca-sarões com fachadas pomposas. Não por acaso, abrigou, entre ou-tras figuras importantes, o ex-go-vernador Barão de Pontal e o es-critor Alphonsus de Guimarães.

No livro de Atas da Câma-ra (de 1751 à 1753) está registra-

Lá vem o acendedor de lampiões da rua! Parodiar o sol e associar-se à lua...

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua, À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente...

O acendedor de lampiões - Jorge de Lima

Rua Direita hoje: o comércio ocupa os casarões do século XVIII. À esquerda, ricos detalhes das antigas construções

fotos: fernando Gentil

fOtOs: AnA BEAtriz nOrOnhA

AnA BeAtriz noronhA

Das primeiras ruas, ainda de terra, onde as casas e os ce-nários eram ainda outros, as grisetas – pequenas velas em latas com azeite - faziam a ilu-minação das noites em Maria-na. Pequenos pontos de luz nas ruas, as primeiras lam-parinas eram como pequenos olhos a observar a quietude da noite.

Datam do período colonial as primeiras e ainda bem rudi-mentares lamparinas, dispos-tas nas antigas ruas da cida-de, onde o ofício de acendedor de lampião era atividade im-portante. As pessoas respon-sáveis pelo trabalho de acen-der as antigas lamparinas en-travam em cena ao entardecer, dando luz ao começo da noite nas primeiras ruas que ainda constituíam um vilarejo. Ao amanhecer, passavam apagan-do uma por uma.

Cheias de histórias, e na memória da própria cidade, as luzes das lamparinas de-ram movimento a Mariana – que nascia e se desenvolvia – e marcaram a lembrança dos que hoje ainda se recordam do tempo em que as primeiras lamparinas funcionavam com azeite de mamona, até que se desenvolvesse o funcionamen-to a gás.

Com a boina sobre os ca-belos brancos – e o movimen-

to preciso das mãos ao falar da época de criança, em que acompanhava a mãe à missa para acender a pequena gri-seta do Santíssimo –, Vicente Cândido da Silva, de 97 anos, recorda que os lampiões de antes eram bem diferentes dos de hoje, em sua forma. Lem-bra ainda que a primeira fonte de luz elétrica vinha de Bicas, através da Companhia de Pas-sagem, e era ligada atrás da ca-pelinha de São Jorge, próxima à Praça Minas Gerais.

Entre os pensamentos a respeito do lampião aluado que acendia de dia e apaga-va de noite, em frente às ca-sas, há quem lembre do tempo em que os sinos davam o toque de recolher. Às 21h, por causa da falta de iluminação notur-na, soavam os sinos avisando aos moradores que era hora de entrar em casa. À noite, os re-ceios diante da penumbra pro-vocada pela luminosidade das poucas lamparinas a gás con-tribuíam para a invenção das mais diversas lendas entre as crianças que brincavam nas ruas, e mesmo entre os adul-tos.

Toda a história da cidade se criou sob a luz desses olhares – das grisetas regadas a azeite de mamona às lamparinas elétri-cas, passando pelas lampari-nas à gás e pelos lampiões. To-dos seguiam o andar das ruas.

Hoje, algumas lamparinas ainda se assemelham a anti-gos modelos, menores e de fer-ro. Há também formas diver-sas, inusitadas, dando a im-pressão de quererem conciliar o antigo e o moderno. Inúme-ras lamparinas percorrem e dão direção aos passos, aos ba-res, às casas, às serestas, à boe-mia e a tudo que se faz sob es-ta luz que parece narrar o mo-vimento da noite. Figuram, as-sim, como cúmplices discretas de todos os passos, sorrisos, abraços, dramas, brigas, en-contros, músicas, danças, con-versas e de tudo que começa a se iluminar sob as primeiras lamparinas que, aos poucos, rua a rua, vão se acendendo.

A importância da rua – ao me-nos para os moradores – não pas-sa mais pelo seu caráter histórico e, sim, pelo econômico. Hoje, há várias lojas na região, oferecendo uma série de produtos e serviços: celulares, artesanato, comida, cor-te de cabelo, entre outros. Na ava-liação da funcionária de uma loja de artesanato, de Lúcia Helena Al-ves, a importância da Rua Direi-ta está na sua proximidade com a Catedral. “Ela tem muita visibili-

dade e, com isso, muita gente vem à loja e a gente acaba vendendo bastante por causa disso”, explica. Na concepção de grande parte dos marianenses, a rua Direita é hoje um lugar para se ganhar dinheiro.

Porém, para os turistas que vi-sitam a cidade, a rua ainda perma-nece com seu valor histórico e cul-tural. As visitas e os flahs das má-quinas fotográficas são constan-tes, mostrando o porquê da rua Direita ser patrimônio nacional.

do um documento curioso envol-vendo a região. Ele informa que as residências localizadas do la-do esquerdo da rua são aquelas “de maior nobreza, dando fun-dos para o Palácio”. São sobrados com sacadas que ostentam a for-tuna daqueles que se situavam ali. Ainda de acordo com o guia Luiz Otávio, “o Casarão, que pertencia ao Barão de Pontal, e que hoje é da Arquidiocese de Mariana, é o único no mundo que possui qua-tro sacadas feitas de pedra sabão, e não de ferro fundido, como é o normal”. O guia também afirma que a rua Direita é a segunda mais antiga da cidade. Mais velha que ela, só a rua do Rosário Velho, no bairro São Gonçalo.

olhares

Rua Direita expõe trajetória social

Dinheiro disputa espaço

Page 7: Jornal Lampião - 2ª Edição

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 07Edição: Tábatha Campelo e Sabrina Carvalho

Rotas e acordes tocam a cidade

Museu da Música de Mariana O Museu da Música de Mariana é o primeiro ponto de parada no passeio. Nele está conservada boa parte da história

musical mineira. Fundado na década de 1960 por Dom Oscar de Oliveira, o museu é o primeiro do país a guardar partitu-ras musicais. De terça a sexta-feira, entre 8h30 e 11h, e de 12h30 às 17h, é possível conhecer instrumentos musicais e todo o acervo. Desde os manuscritos da coleção Dom Oscar, com obras a partir de 1786, até as mais de 5 mil partituras da coleção de bandas de música. Também estão lá as composições que resgatam os primeiros registros da música popular brasileira, co-mo a coleção da pianista Lavínia Cerqueira de Albuquerque, que residiu em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais. Segundo o funcionário do museu, Vitor Sérgio Gomes, quem passa pela rua Cônego Amando pode conhecer, no número 161, um lugar que busca reconstruir a memória musical a partir de documentos.

Casa de Cultura de MarianaA poucos metros do Jardim, está a próxima

parada: a Casa de Cultura de Mariana, localizada à rua Frei Durão, número

84. Aulas de violão e ensaios do Coral Madrigal dividem o espaço com o grupo

musical “Uns e outros”, formado por cinco amigos que trabalham juntos há dez anos.

Eles se apresentam em frente à Casa de Cultura no terceiro domingo de cada

mês e encantam diferentes gerações com marchinhas de carnaval, samba, bolero,

MPB, músicas da “Jovem Guarda” e as tradicionais serestas. O grupo

também se apresenta em outros pontos da cidade, quando é convidado, mas não atua com

fins lucrativos. De acordo com um dos integrantes, Francisco de Assis Santos, cada apresentação e cada ensaio é, de fato, um encontro entre amigos, regado a muita música.

Praça Gomes Freire - Jardim Se o Museu da Música de Mariana é o responsável por resgatar a memó-

ria, a Praça Gomes Freire, mais conhecida como Jardim, é o principal ponto de manifestações musicais da cidade. Músicos anônimos, grupos pequenos, grupos maiores, bandas informais ou tradicionais compõem, junto ao coreto, o cenário mu-sical desta praça. É o lugar das rodas de capoeira, shows, serestas, luais entre amigos e encontros de bandas civis. Entre os bancos e árvores do Jardim, há sempre um espaço

para variados estilos, manifestações artísticas e músicos diversos. Para a mora-dora da cidade, Iva Freitas, “o Jardim é um grande palco ao ar livre, é um lugar que socializa as pessoas através da música”.

Conservatório de Música Mestre Vicente Ângelo das Mercês

Mais adiante, chega-se à rua da Glória. No número 98, está o Conservatório de Música Mestre Vicente Ângelo das Mercês. Há um ano, “foi uma porta que se abriu para marianenses que querem se profissionalizar como músicos”, nas palavras da professora do Conservatório, Michelline Cruz. Cerca de 500 alunos descobrem, gratuitamente, nove instrumentos diferentes: piano, violino, percus-são, violão, flauta doce, violoncelo, saxofone, clarinete e flauta transversal, além do canto. As crianças participam ainda da iniciação musical em espaços educa-tivos. São 18 professores para ensinar todas as idades, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h. Além das aulas, o Conservatório possui cinco corais: Tom Maior, Silvinha Araújo, Cumbaiá e os infantis Alegreto e Aprendizes da Esperança.

Allãn PAssos e AmAndA RodRigues

Desde o século XVII, Maria-na se destaca no cenário da mú-sica mineira e também nacional. Atualmente, a produção musical na cidade é marcada, principal-mente, pela diversidade. A cida-de possui não só o maior núme-

ro de bandas civis do estado – 11 no total –, como inúmeras ban-das de garagem, escolas formais e informais de música e canto, co-rais, grupos de capoeira, samba e seresta. Há que ressaltar, ainda, o fato de a cidade abrigar, na Cate-dral da Sé, o órgão Arp Schnitger,

construído no ano de 1711, em Hamburgo, na Alemanha. O ins-trumento, um presente da Coroa Portuguesa ao bispo da cidade, D. Frei Manoel da Cruz, está no Bra-sil desde 1753.

Fato é que não faltam opções para quem circula pela primeira

capital de Minas Gerais quando o assunto é música. O mapa a se-guir traz uma trilha capaz de con-duzir o cidadão por alguns destes pontos que representam a enorme variedade da música em Maria-na. Arquivos em papéis e na me-mória, pessoas que zelam pelo pa-

trimônio cultural e que ensinam a quem aprende as primeiras no-tas, aqueles que produzem ou que apenas escutam os acordes aju-dam a resgatar, construir e reno-var cada compasso. Então, afinem seus instrumentos, acertem o tom e bom passeio.

MúsiCa

Órgão arp schnitgerJá na próxima esquina, preser-

vando toda exuberância e tradi-ção do século XVIII, está localizado, no interior da Catedral da Sé, o órgão alemão Arp Schnitger. Único deste modelo fora da Europa, o ins-trumento atrai tu-ristas de todo o mundo.

Foles, canais de ar e someiro, tubos e teclados dão ao órgão uma sonoridade característica inconfundí-vel, que pode ser apreciada às sextas-feiras, às 11h30, e também aos domingos, às 12h15.

Tanta riqueza sonora requer estudo e habilida-de que poucos músicos brasileiros possuem. Além dos concertos convencionais, visitantes e moradores também podem apreciar, ocasionalmente, participa-ções especiais, como a da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Para os moradores, há algumas corte-sias disponíveis na secretaria da paróquia da Sé para assistir aos concertos gratuitamente.

sociedade Musical XV de NovembroA Rua Direita é o caminho que liga a tradição de um

órgão do século XVIII à também tradicional Sociedade Musical União XV de Novembro. Fundada em 1901, a

“União”, como é conhecida, é considerada a banda civil mais antiga de Mariana. Nomes como Aníbal Walter

e “Seu Gegê” fazem parte dessa história centenária que ainda atrai crianças

e jovens dispostos a se integrarem a essa família.

A musicista Daniele Freitas, de 23 anos, garante que a banda é sua

“segunda casa”. A diversidade dos 48 músicos dá à banda a versatilidade refletida

no repertório. As apresentações incluem desde as procissões

e encontros de bandas no Jardim até a participação em eventos

especiais – como a posse do presidente

Tancredo Neves, em 1985.

Ilustração: lucas lameIra e tábata romero

Page 8: Jornal Lampião - 2ª Edição

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 201108 Edição: Allãn Passos e Camila Dias

Ritmos e gestos revelam um povo

Roda de samba se mistura ao cenário barroco e contagia Mariana

fundo do rio uma história de reis, rainhas, índios, europeus, animais selvagens, casa-rões, riqueza e escravidão.

Chegava nos navios negreiros um bata-lhão de negros africanos, capturados para trabalhar na mineração e enriquecer a rea-leza de Portugal. Acontece que a vinda des-ses negros escravizados acabou por enri-quecer não só a Corte Portuguesa, mas o patrimônio cultural e histórico do que viria a ser a cidade de Mariana.

No mesmo chão pisavam sapatos crave-jados de pedras preciosas dos europeus e os pés descalços da mão-de-obra escrava. No mesmo chão dançavam, coreografados e um pouco tímidos, os nobres portugueses e os escravos, que batiam seus pés nos terrei-ros, ao som de batuques religiosos.

Por vezes, os pés descalços e calejados eram obrigados a parar de dançar. Aque-les corpos negros, em sintonia com os tam-bores, ritualizavam uma cultura tida co-mo ofensiva para os valores religiosos eu-ropeus, revelados em suas roupas luxuosas e seus gestos comedidos. Acontecia, ali, um encontro cultural que, por algum tempo, se manteve separatista. Nos salões, a elite branca soberana bailava em sua liberdade

de expressão cultural – e, escon-

didos nos cantos de chão batido, os escravos ofereciam sua dança aos deuses africanos.

A tentativa de parar aqueles corpos vi-vos, que circulavam em torno de seus pró-prios eixos, foi em vão. Mesmo que tais mo-vimentos agredissem o código moral defen-dido pela realeza, a umbigada africana re-sistiu à repressão, demonstrando aos portu-gueses que a dança e sua simbologia eram elementos que não poderiam ser retirados facilmente da vida daquele povo.

A partir daí, Mariana tornou-se o que é chamado de caldeirão cultural. As experiên-cias e tradições se misturaram. Em uma tro-ca dinâmica, portugueses e negros africa-nos criavam uma nova identidade cultural – mescla de três continentes, África, Euro-pa e América. O lundu é um exemplo dessa identidade híbrida, caracterizado pela mis-tura de batuques e elementos da dança afri-cana com a melodia e harmonia da música portuguesa.

Desse caldeirão cultural saíram rituais característicos da tradição marianense, que representam todo esse processo histórico, raramente lembrado. Talvez a maior repre-sentação histórica que permanece viva na cidade seja o Congado de Nossa Senhora do Rosário de Barroca.

São muitas as histórias sobre o surgi-mento do Congado da Barroca, mas, em do-cumento oficial, a data registrada é do início do século XX. Mas, independente de datas, esse ritual simboliza a resistência da cultu-ra negra na região e o processo de miscige-nação cultural que se dá desde a descoberta do ouro, no fundo do Ribeirão de Nossa Se-nhora do Carmo. A dança do congado é ca-

racterizada pelo sincretismo religioso e cul-tural, em que se misturam o batuque afri-cano da zabumba e a simbologia européia, com os reis e rainhas.

Outra imagem dos dias de hoje que sim-boliza a convivência entre a cultura africa-na e a européia é o ensaio do grupo de ma-racatu, o Coletivo Baobá, em frente às igre-jas da praça Minas Gerais. O som das bati-das ecoam das alfaias e se rebatem nas pa-redes dos monumentos católicos, trazendo aos sentidos a impressão de presenciar o en-contro histórico entre os ritos europeus e o ritmo africano.

Apesar da importância desses movimen-tos corporais e culturais – já apontada por tantos antropólogos, sociólogos e historia-dores –, as autoridades públicas responsá-veis pelo incentivo e valorização dessas ma-nifestações assumem uma postura muito parecida com aquela adotada pela nobre-za portuguesa, que desprezava a tradição de seus escravos. Segundo Ana Malaco, auto-ra de uma pesquisa e de um documentário sobre o Congado na região, a Barroca, por exemplo, está esquecida. “O congado, entre outros movimentos de resgate da cultura, encontra dificuldade em reproduzir a tra-dição devido à falta de interesse e incenti-vo por parte da prefeitura e outros órgãos responsáveis pela preservação desses movi-mentos de resistência cultural”, explica.

Para Mônica Elias, marianense e inte-grante dos grupos Vira-Saia e Moinho de Dança, o processo para trazer à luz a ver-dadeira dança de Mariana não foi nem ini-ciado. Segundo a artista, “a dança raiz da ci-dade continua escondida nos terreiros. Es-sas expressões permaneceram por trás das montanhas, como danças secretas. É uma cultura calada na cidade.”

Embora silenciosa, a expressão corpo-ral é perceptível aos olhos. É possível notar as heranças do histórico encontro cultural entre europeus e africanos na cidade. O jo-vem que balança os braços no ritual católico num Domingo de Ramos pode ser o mes-mo que reproduz as umbigadas das dan-

ças africanas no baile funk da Praça do Jardim.

Enrico MEncarElli

Que o samba é um dos ritmos musicais mais marcantes do Brasil, todo mundo sa-be. E que Mariana é a primeira cidade de Minas Gerais, com passado barroco e escra-vocrata, também. Mas qual é a relação entre as duas afirmativas? As quintas-feiras. Nes-se dia do meio da semana, a Primaz, primei-ra capital mineira, se envolve com os batu-ques e acordes agitados do samba. Já é qua-se religioso: quinta tem roda.

Historicamente, o samba é a mistura de um ritmo bem demarcado, de percussão acentuada, com uma construção melódica de frases simples, combinação chave para tornar o estilo de canção dançante e envol-vente. Tem origem nas rodas do Recônca-vo Baiano e nas favelas cariocas, com forte contribuição dos escravos africanos. Possui uma batida bem característica, facilmen-te reconhecida até pelos estrangeiros. Para muitos, é um dos símbolos do Brasil.

Já em Mariana, as atuais rodas começa-ram de um jeito despretensioso, para não dizer discreto. Num canto de um restauran-te familiar, O Cozinha Real, logo ali adian-te do terminal, numa quinta-feira avul-sa. Pai e filho – Jorge e Aloísio Fonsceca – pegaram os violões e repetiram uma ro-tina caseira, porém agora entre os clientes que lá estavam naquele dia. E a música to-mou o ambiente, a cada quinta, mais músi-cos, mais bandas, mais gente. O restauran-

te não comportou o crescimento do públi-co. Aloísio Fonseca, que também é empre-sário, conta que, em função do crescente au-mento do movimento e a chegada de nova freguesia no Cozinha Real, seu pai preferiu deixar as rodas de samba de lado, resgatan-do os velhos clientes e o movimento rotinei-ro do comércio. Mas o samba seguiu seu ca-minho. Foi parar no Sagarana Café Teatro, lugar que já servia de palco para várias re-alizações culturais. Aí, sim, apareceu gente de todo tipo – nativo, estudante, turista. Se a música é a linguagem universal, o samba é a entonação dessa fala em Mariana, uma es-pécie de sotaque democrático no cotidiano.

O Sagarana parecia o espaço perfeito para essa manifestação livre. O familiar se tornou público. Mas as quintas não saíram de cena e, sim, enraizaram-se no velho ca-sarão que comporta o Sagarana. A música não podia parar. A proprietária do estabe-lecimento, Ana Gastelois, aposta no samba como instrumento de enriquecimento cul-tural. A apresentação semanal já tem públi-co cativo e fiel, e cada vez atrai mais segui-dores.

Esse crescimento das rodas e da visibi-lidade do samba abriu caminho para novas bandas e também para grupos já existentes: Vira-saia, Quadrado Fino, Samba de So-bra e Chá de Caboclo, entre outras. A partir deste momento, todas elas puderam explo-rar melhor o horizonte musical.

Thiago Novais, vocalista e compositor da banda Quadrado Fino, acredita que o mainstream da música pop já estava satu-rando o cenário musical marianense: “Com as rodas de samba, quem se interessa pela poesia das letras e a levada do ritmo pôde acompanhar algo diferente”. São os novos ouvidos, novos olhares, novos sentidos.

A musicalidade sempre foi uma carac-terística marcante da cidade de Mariana. Das composições barrocas aos sambas-en-redo dos carnavais locais, das bandas civis às bandas de garagem. O impulso do sam-ba só veio se somar a essa mistura, uma es-pécie de tempero ardente e brasileiro, que transcende o aspecto colonial marianense.

Se o samba é baiano ou carioca, neste momento não tem muita importância. Aqui em Mariana ele é mineiro, conterrâneo dos cidadãos locais. É mais um estilo musical que ressoa no dia-a-dia, também como alternativa para interação e entretenimento.

Alguns outros restaurantes da cidade também já aderiram à ideia. O Casarão apostou em algumas ro-das, em dias diferentes da semana. Domin-go sim, domingo não, a batucada é por con-ta do Bar do Carlão. Tem também o pago-de em Passagem, onde o que não fal-ta é remelexo. E para verificar toda essa musicalidade, basta ficar atento à quin-ta-feira mais próxima.

Das danças escravas às rodas de samba, manifestações musicais e corporais ajudam a construir e recontar a história de Mariana

DANÇA

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raísa GEribEllo

As expressões corporais dos habitantes de uma cidade transcendem ritmo, festa e movimento. Mais do que uma simples di-nâmica, a dança conta a história de um po-vo. Em Mariana, desde os tempos do Brasil

colônia, as danças expres-sam religiosidade, cul-tura popular, necessida-des sociais e outros as-

pectos do cotidiano da população.

Em 1696, os bandei-rantes paulistas descobri-ram ouro no Ribeirão Nos-

sa Senhora do Carmo, mas nem imaginavam

que aquela descober-ta seria o início his-

tórico da pri-meira capi-tal de Mi-nas. Nascia do ouro re-luzente do

Page 9: Jornal Lampião - 2ª Edição

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 09 Edição: Rodolfo Gregório e Fernando Gentil

Sabrina Carvalho

Altar de madeira despojada de ouro. Diferente, sim, a Igre-ja de São Pedro dos Clérigos, em-bora muitos não saibam, só con-ta com proteção legal porque es-tá fincada no centro histórico da cidade de Mariana, que é ampa-rado pelo tombamento. A igreja não tem pintura ou o douramento tão comum no período colonial. Não conta sequer com os retábu-los – aquela construção que fica por trás ou acima do altar. Até os quadros que estão dentro do tem-plo foram doados pela comunida-de ao longo dos anos. Na verda-de, a igreja teve todo o seu aspecto comprometido pelas inúmeras in-terrupções que marcaram a histó-ria da sua construção – interrup-ções que, aliás, impediram que a obra tivesse tombamento próprio, por meio do Iphan.

Assim mesmo, com todas as li-mitações, São Pedro dos Clérigos impressiona os turistas com su-as singularidades: a cor de pedra bruta, a imponência lá do alto, a simplicidade das curvas e a altura da torre que abriga o sino, de onde se tem uma das visões mais sur-preendentes de Mariana devido tamanha a amplidão que o cená-rio oferece. No entanto, tudo na-quele lugar parece desafiado pelo tempo desde sempre. Por exem-plo: embora seja a segunda igre-ja mais antiga de Mariana – mais nova apenas que a Catedral da Sé, com o início de sua construção datado por volta de 1750 – a pri-meira missa da Igreja de São Pe-dro dos Clérigos só foi celebrada no ano de 1989. Motivo? As obras estavam paradas há anos por fal-ta de dinheiro. Por ocasião do iní-cio das obras, a irmandade de São

patrimônio

Sem luxo, igreja encara desafios

Pedro, responsável pela iniciativa, havia sido criada há pouco mais de 20 anos, motivo pelo qual en-frentava problemas financeiros. Em 1820 as obras ainda estavam paralisadas e, a partir daí, a histó-ria da edificação da igreja foi mar-cada por períodos de pausas que pareciam intermináveis.

Mais de um século depois do início das obras, em 1856, é que a Igreja ganhou piso. Passados qua-se 30 anos, a Assembleia Provin-

cial aprovou a verba para um te-lhado provisório, que resistiu pou-co tempo aos ventos fortes da re-gião. Resultado: somente em 1920 foram colocadas as portas e jane-las. No mesmo ano, foram edifica-das as torres e o Palácio Arquie-piscopal que fica nos fundos, no qual, a partir de 1927, passou a re-sidir o arcebispo da cidade.

Hoje, o local funciona como Tribunal Eclesiástico onde são re-solvidas e atendidas as deman-

das da Arquidiocese de Maria-na. No período de 1826 a 1930, Dom Helvécio Gomes de Olivei-ra transformou a Igreja de São Pe-dro no Museu da Arte e da His-tória, que abriga grande acervo. A partir da década de 1930, o bispo doou todas as peças para o Museu da Inconfidência de Ouro Preto e a igreja voltou a ficar vazia.

Atualmente, não há previsão de mais obras no local, apenas as que dizem respeito à manutenção

do que está danificado. A ausência da exuberância que

marca as outras igrejas barrocas da região não afasta os visitantes ou os moradores da cidade. Pelo contrário. Só no ano passado, cer-ca de 13 mil pessoas visitaram a igreja. Além disso, no domingo, quando são realizadas as missas, a igreja está sempre cheia de fiéis, turistas do mundo inteiro. Razão? Talvez ela emocione as pessoas com tempo e ritmo próprios.

Igreja de São Pedro dos Clérigos: um monumento sem luxo, sem ouro e com uma história marcada pelas interrupções na construção e reforma do prédio

prisões

Encarceramento marca a história de MarianaMayara Gouvea

A Mariana do século XVIII foi palco de formas cruéis de punição para quem infringia a lei. Os cas-tigos incluíam o encarceramento e o isolamento, muitas vezes em lugares insalubres, extremamen-te prejudiciais à saúde – caso das senzalas, que abrigavam os escra-vos. Na Praça Minas Gerais, car-tão postal da cidade, estão a anti-ga cadeia municipal, instalada na Câmara dos Vereadores, e o mo-numento que resgata, naquele lo-cal, a imagem do pelourinho – aquela coluna de pedra utilizada para amarrar os presos ou os con-denados, submetendo-os ao açoi-te, ao espancamento.

O guia de turismo João Carlos Anastácio explica que o presídio, primeiramente destinado tanto a escravos quanto a pessoas de ou-tras classes sociais, funcionou até 1974, chegando a servir ao gover-no militar durante dez anos. Ele conta que ali as torturas eram co-muns: no século XVIII, contra os escravos e na ditadura, contra os presos políticos. Já o pelourinho ultrapassava a esfera do sistema escravocrata em si, funcionando também como forma de humilha-ção pública. Nele, negros e bran-cos condenados eram amarrados e apanhavam em meio à multidão para servir de exemplo aos outros.

IneficáciaSe as torturas já não existem

em Mariana como forma de puni-ção pela desobediência às leis, as práticas de encarceramento e pri-

vação do convívio social continu-am, apesar das mudanças no sis-tema econômico e político e da modernização e desenvolvimen-to que marcam a sociedade con-temporânea. “Encarcerar é mais fácil que educar, assim como bater é mais fácil que trabalhar para que o outro compreenda”, explica a so-cióloga Giulle da Mata.

Na avaliação da socióloga, uma das explicações para a ineficácia do atual sistema carcerário está exatamente na desumanização do detento. “Seria diferente se as ins-tituições trabalhassem a partir de uma concepção mais universal do ser humano e mais contextualiza-

da, buscando compreender o que leva as pessoas a cometerem cri-mes. Se bandido não é gente, tudo é permitido”, diz ela. O diretor da prisão de Mariana, Warley Ron-dinelli, admite que o modo co-mo o preso é visto influencia di-retamente o processo de recupe-ração do sujeito. “As pessoas têm que parar de discriminar e passar a contribuir para reinserção do in-divíduo na sociedade”, defende.

A eficácia do encarceramen-to e do isolamento no processo de reinserção do indivíduo na socie-dade é discutível. Giulle da Mata acredita que essa penalidade pode ser válida, desde que a reeducação

seja praticada a partir de uma mu-dança no sistema que aponte pa-ra outra concepção de humano. “Uma concepção mais generosa, que tem o ser humano como um ser capaz de aprender e, por isso mesmo, de rever seu comporta-mento e se comprometer social-mente”, explica. Warley Rondi-nelli, diretor da unidade prisional do município de Mariana, tam-bém torce por transformações e acredita que o fim do impasse es-tá na reformulação do Código Pe-nal. Segundo ele, é esse o caminho para tornar o sistema mais justo e solucionar alguns dos muitos pro-blemas, como a superlotação.

Mayara Gouvea

Dados do Departamen-to de Monitoramento e Fis-calização do Sistema Car-cerário e das Medidas So-cioeducativas (DMF) mos-tram que hoje, a população de presos no Brasil chega a quase 500 mil. Como o nú-mero de vagas nas cadeias de todo país não passa de 300 mil, seriam necessárias outras 396 penitenciárias, para que não houvesse su-perlotação.

Em Mariana, a cadeia sempre esteve sob os cui-dados da Polícia Civil, mas, em abril deste ano, passou a ser comandada pela Sub-secretaria de Administra-ção Prisional (Suapi), res-ponsável por mais de 80% dos presídios no estado de Minas Gerais. Segundo o diretor da unidade prisio-nal, Warley Rondinelli, a situação está sob controle, apesar da existência de fac-ções rivais no local.

Hoje, a prisão da cida-de abriga 93 presos, dentre os quais só 10% foram jul-gados. Desse total, há so-mente oito mulheres, que ficam em ala separada, sem contato com os presos.

Celas lotadas

Práticas de encarceramento não garantem reeducação, recuperacão ou reinserção do detento na sociedade

Sabrina Carvalho

Mayara Gouvea

Apesar da falta de luxuosidade no prédio, admiradores continuam visitando o monumento, mesmo tendo na cidade outras construções mais valiosas

Page 10: Jornal Lampião - 2ª Edição

R$10 mil a quem conseguir uma foto do

monstro

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 201110 Edição: Amanda Rodrigues e Leidiane Vieira

MITOS DE MARIANA

Lendas remontam período colonialAs histórias e lendas que circulam hoje por Mariana são heranças dos períodos de descoberta e desenvolvimento que marcaram a história da cidade, construída a partir de um pequeno arraial fundado há pelo menos 300 anos, às margens do Ribeirão de Nossa

Senhora do Carmo. O lugar cresceu e se tornou a primeira vila da região, transformada, tempos depois, na primeira capital mineira. Com três séculos de história, Mariana guarda um patrimônio histórico constituído de arquitetura barroca e casario colonial. A vila que se ergueu no passado é hoje patrimônio da memória cultural e guarda não só a história das descobertas e dos sonhos de fortuna, mas

também relatos que envolvem a força da fé, da arte, dos mitos e lendas – histórias ligadas às características culturais que influenciaram os processos de descobrimento, povoamento, mineração, agricultura e pecuária na região.

Por Lorena Caminhas e ThaLes LeLo

Maldições vêm dos tempos da mineraçãoJá durante o período da mineração, havia um clima de desconfiança em relação à Coroa Portuguesa, que passou a cobrar o quinto do ouro. Durante a cobrança, se não se cumprisse a arrecadação estipulada, a administração local confiscava os bens dos moradores. Por isso, muito ouro e muitas pedras preciosas conquistadas eram escondidos dentro de casa ou sob a terra. Assim, as lendas relacionadas a esse período falavam de tesouros enterrados e almas penadas, que seriam donas do tesouro escondido.

Mãe-do-ouro e Capitão Jackers – Essas duas entidades teriam vi-vido escondidas nas galerias das minas de Passagem de Mariana. A Mãe-do-ouro, segundo os rela-tos, tem o formato de uma chama e é padroeira das jazidas, enquan-to o Capitão Jackers é um expedi-dor inglês que, após ter sido esma-gado por um deslizamento na mi-na, teria se tornado um fantasma. Vagando pelos corredores escuros das galerias, o Capitão oferece aos mineiros que o encontram dicas sobre o trabalho nos túneis.

Tesouro da Fazendo de Retiro - De acordo com outra lenda con-tada na cidade, a Fazenda do Re-tiro, em Mariana, era assombrada por espíritos que arrastavam cor-rentes de ferro e emitiam sons, traduzindo as lamentações de es-cravos torturados. O último morador do lugar, Antônio Fernandes Ribeiro do Car-mo, ouviu, à noite, um grito. Perguntou o que as almas

queriam e ouviu, de volta, uma in-dagação: elas poderiam deixar o lugar? Antônio Ribeiro do Carmo respondeu que sim. Foi o bastante para que, à sua frente, caísse, subi-tamente, um braço humano. Logo depois, em cada lugar do quarto, caía um pedaço de corpo huma-no, até que, finalmente, caiu a ca-beça, que lhe disse: “Procure sua-vizar a pena dos que padecem no outro mundo porque se negaram a socorrer os necessitados, em-bora acumulando riqueza. Ajun-taram muito ouro que não pude-ram carregar. Nesta fazenda está oculto um grande tesouro, que a ganância dos condenados escon-deu.” Depois disso, vários mora-dores da região se instalaram na

Fazenda do Retiro,

na tentativa de encontrar o ouro. Conta-se que, após a ocupação da fazenda, ouviu-se um gemido for-te, que teria indicado o lugar em que se encontravam barras de ou-ro. Ninguém sabe dizer, contudo, quem, afinal, encontrou o tesouro.

Maria Sabão – Essa assombra-ção se esconde até os dias de ho-je em uma rua do distrito de Pas-sagem de Mariana, próximo a uma mina abandonada. Na épo-ca da extração de minério, con-tam que uma mulher dividia es-paço com os escravos que traba-lhavam na mineração. Porém, sua tarefa era fazer sabão com o sebo que levava para o local. Como era comum encontrar meninos mal-criados trabalhando nas minas,

começaram a surgir boatos de que aquela senhora fazia sa-

bão com crianças tra-vessas.

Descobrimento gera mitosOs mitos surgidos no período da descoberta e do povoamento da região estão relacionados à ampliação do território e descoberta de riquezas. Na região de Minas Gerais foi encontrada grande quantidade de ouro e diamante, o que gerou disputas acirradas pela posse dos minerais. Vitoriosos e derrotados conviviam na mesma região, no meio de intrigas e divergências. Assim, a maior parte das lendas relacionadas a esse período envolve situações marcadas por muita desconfiança, por rivalidades, segredos e discriminação social. A seguir, algumas dessas histórias.

Gaveteiros – Esse mito apresen-ta duas origens: a primeira versão dá conta de que os moradores da cidade tinham o costume de es-conder o prato de comida na ga-veta da mesa, para não partilhar a refeição com visitantes inespe-rados. A segunda versão diz res-peito à corrida pela arrecadação de ouro. Conta-se que, nesse pe-ríodo, enquanto os dirigentes de Ouro Preto e Sabará divulgavam a quantidade de metais preciosos adquiridos, os dirigentes de Ma-riana escondiam os resultados que alcançavam. No dia da contagem da arrecadação das três regiões, Mariana tinha conseguido apurar doze arroubas em pó de ouro – a maior arrecadação entre os três. Diante disso, os “derrotados” só puderam recorrer a insultos e sar-casmos, acusando os marianenses de “gaveteiros” (gente que guarda-va a língua dentro da gaveta e que juntava ouro a granel), matreiros, maliciosos, sabichões.

Imagem no lombo do burro – Diz a lenda que a imagem do Se-nhor dos Passos foi transporta-da no lombo de um burro do Rio de Janeiro até a Praça Tiraden-tes, em Ouro Preto. Na época, havia uma controvérsia sobre a qual igreja pertencia a imagem: à Igreja Nossa Senhora do Pi-lar ou à Igreja Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias. Pa-ra resolver a disputa, a imagem foi colocada novamente no lom-bo do burro e a direção que ele seguisse determinaria quem se-ria o dono da imagem. O bur-ro seguiu pelo caminho da Igre-ja do Pilar.

Atualmente, a imagem per-tence à matriz do Pilar, mas, du-rante a Semana Santa, há a pro-cissão do Encontro, em que a imagem vai para a Praça Tira-dentes e, de lá, segue para a ma-triz do Antônio Dias, para re-lembrar o dia que a imagem che-gou a Ouro Preto.

Prisão de sacerdote acarreta vingança

A maldição do padre Simim – Essa lenda surgiu no final do século XX, após uma eleição municipal em Mariana. A his-tória foi divulgada por meio de um boletim político anônimo, que contava o episódio da pri-são do Padre Simim. O sacerdo-

te teria sido encarcerado por or-dem do poder público munici-pal de Acaiaca, condenado por um crime que não havia cometi-do. Uma maldição então se espa-lhou, e os perseguidores do clé-rigo passaram a ser assombra-dos. Apesar de Padre Simim ter

sido libertado da cadeia por Cel-so Arinos Motta, em meados da década de 1930 – e a pedido do falecido arcebispo Dom Helvé-cio Gomes de Oliveira –, conta-se que, até hoje, existem pessoas que são assombradas pela injustiça cometida.

A colonização transformou Mariana em um ponto de encontro de diversas crenças, religiosidades e costumes de vários países do mundo. Até hoje, a população preserva muitas destas característricas, algumas transformadas em lendas, como a seguinte:

Águas que escondem ser misteriosoAs atividades de agricultura e pecuária da região, por sua vez, geraram lendas sobre o perigo dos rios, sobre o cuidado com a criação dos animais e o tipo de trabalho rural que predominava na época. Algumas dessas lendas tiveram também a função de preservar o direito ao lazer. Elas revelam ainda os aspectos da riqueza e da miséria, do progresso e do atraso refletidos nessas atividades.

Caboclo d’água – Esse mito ainda cau-sa pânico na população, apesar de já ser tra-dicional no cardápio de lendas marianen-ses. O Caboclo é descrito como um ser cuja forma é uma mistura de galinha, lagarti-xa e macaco, e, segundo contam, vaga pe-los arredores de Mariana, atacando pesso-as e animais. Nos últimos quatro anos, um grupo real – a Associação dos Caçadores de Assombração – vem oferecendo uma

recompensa de R$ 10 mil a quem conse-guir uma foto do monstro. Entre as ações misteriosas atribuídas ao monstro, estão a morte de um homem em uma represa e o ataque a um idoso de 92 anos.

Além disso, há relatos de que ele tenha atacado animais de criação. Para facilitar as buscas, os membros da Associação distri-buem pelo município adesivos e desenhos com o “retrato falado” do monstro.

Além do monstro dos rios aparecer em

matérias de capa do jornal Espeto há mais de cinco anos, re-centemente, foi retratado em vá-rios noticiários mineiros, como Super Notícias e Jornal Alterosa. O “causo” misterioso gerou tan-to comentário que virou notícia também em jornais de alcance em todo o país, como Jornal da Band e Jornal Nacional.

Caboclo d’água é destaque

nacional

ilustrações: lucas lameira

Page 11: Jornal Lampião - 2ª Edição

muitas pessoas aderem a religiões a partir do resgate de lendas. Especialmente em Mariana, que é um celeiro de religiosidade”.

A Procissão das Almas, por exemplo, foi também uma forma de impor respeito ao ato litúrgico (Sexta-feira da Paixão), muitas vezes por meio do medo – principalmente em tempos antigos. “Nossos antepassados nos metiam medo, queriam que tivéssemos temor a Deus. Hoje entendemos Deus como amor, misericórida”, afirma a estudante. Para ela, o pensamento de épocas passadas permitiu a criação de lendas. “Essas lendas são resultado de uma mistura de fé dos índios, portugueses e africanos”, avalia.

Mas o fato é que, ainda hoje, a procissão causa temor. Marlene Maia, atual coordenadora da procissão, conta que viveu uma situação estranha por causa de uma vizinha. A mulher, segundo ela, era da cidade de Belo Horizonte e estava há pouco tempo em Mariana. Era Semana Santa e a vizinha teria ouvido os gemidos vindos da procissão. Os sons assustadores se misturavam ao bater de um bumbo. A mulher apavorada teria corrido até alcançar Marlene. Demonstrando pavor, não quis sequer ficar a par do que realmente acontecia, mesmo depois de ouvir as explicações da amiga sobre a origem do evento. “Ela tinha vindo até mim, dizendo que estava morrendo de medo, isso a ponto de não querer averiguar a procissão comigo”, conta Marlene.

LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 11Edição: Izabella Magalhães e Mateus Fagundes

Os mortos retornam à Mariana todos os anos. Moradores da cidade, como o falecido historiador e jornalista Waldemar de Moura Santos e a animadora cultural Hebe Rôla, já registraram histórias curiosas em obras literárias. Entre o medo e o fascínio, os habitantes

assistem à procissão que lembra os mortos e que sai às ruas na sexta-feira da paixão

Todas as lendas são encenadas durante o trajeto da Procissão das Almas. O evento artístico é orga-nizado todos os anos por Hebe Rôla, professora aposentada e au-tora da Lenda do Balaio. Ela afir-ma, contudo, que nem sempre is-so foi um ato teatral. “A procissão era de ‘verdade’, não representava os mortos”, explica.

Antônio Pacheco, estudioso de lendas, conta que, na década de 1920, essa procissão descia da Igreja da Arquiconfraria, seguia a Rua Dom Silvério e terminava na Praça Minas Gerais. Ele explica que, naquela época, Mariana não tinha luz elétrica. Toda a ilumina-ção dependia dos lampiões. “Os empregados da prefeitura apaga-vam as luzes e, aí, apareciam as as-sombrações”, brinca.

Esse evento acabou por vol-ta da década de 1940. Já em 1966, o Cônego Pedro Terra, ao lado da moradora Erna Antunes, resol-veu retomá-la. “Realizaram es-sa procissão por três anos segui-dos, era algo informal. Uma len-da da cidade que decidimos en-cenar”, explica Marlene de Souza Maia, que também coordena hoje a Procissão das Almas, pelo Movi-mento Renovador. Contudo, hou-ve interrupções. “A procissão pa-rou por um tempo, depois que o Cônego Terra e Erna Antunes fo-ram embora”, diz a coordenadora.

RetomadaApós esses três anos, a procis-

são só foi retomada na década de

1980. Os artistas plásticos Cristia-no Casimiro, Waldir Silva e Má-rio Pizzati passaram a organizar o evento, mas com uma diferença: ele passou a ter um caráter cêni-co, preservando as características de um culto religioso.

Mesmo nos dias de hoje, o evento mexe com as pessoas. A mestranda em Letras, Karen Amorin, por exemplo, decidiu pesquisá-lo. Segundo ela, a pro-cissão não só atrai a atenção da mídia, como contribui para que os moradores de Mariana preservem as histórias contadas na cidade.

Já Frederico Ozanan dos San-tos, filho de Waldemar dos Santos, destaca a importância da procis-são para a cultura do lugar. “Acho importante (a procissão).Toda ci-vilização tem cultura, tem memó-ria”, argumenta.

Marlene Maia acredita que a procissão preserva a memória cultural de Mariana. “Ela (a pro-cissão) desperta a curiosidade pe-la cultura da cidade”, avalia.

A professora Hebe Rôla afir-ma que algumas pessoas estabe-leceram uma relação de fé com o evento. Conta que uma pessoa já chegou a procurá-la, dizendo que, da primeira vez que participou da procissão, estava de cadeira de ro-das. Na segunda, de muletas. Na terceira, com uma muleta só. Na quarta, teria caminhado com a ajuda da mãe e da esposa e, da úl-tima vez, teria saltado em frente à família. Quem pode explicar?

Redenção por pesadas penas

Na rua Frei Durão, durante a Semana Santa, moradores resgatam a memória da cidade na procissão das almas

Fotos: Águeda gomes

A procissão das

AlmaSPenadas

Cortejo resgata folclore marianenseOutro causo – este conta-

do por Hebe – teria ocorrido no distrito de Padre Viegas. É a his-tória de uma beata que a nin-guém permitia aproximar-se dos afazeres paroquiais. E ai de quem tentasse fazê-lo.

Foi então que o pároco re-solveu desafiá-la: arrumou uma moça muito prendada para aju-dá-lo em seus afazeres. A caro-la não gostou nada e difamou a jovem o quanto pôde, mas nin-guém lhe deu fé. Dessa maneira, se apossou dos sapatos do padre e os pôs sob a cama da moça. A

todos demonstrou a cena, aca-bando com a reputação da ino-cente. A moça, que estava pres-tes a se casar, perdeu o noivo e foi expulsa de casa. Sem eira nem beira, morreu pouco tem-po depois.

A maledicente foi ao velório e, lá mesmo, foi surpreendia pe-la própria defunta, que, senta-da sobre o caixão, disparou: “Eis a mulher que me caluniou. Sou inocente.” Depois voltou para seu descanso eterno. A faladei-ra arrependeu-se amargamen-te e foi correndo confessar-se. A

penitência imposta pelo padre: a partir da daquele momento, ela teria que reunir todas as penas de aves que encontrasse ao lon-go da vida. Deveria, então, co-locá-las num balaio, com o qual teria que subir para o ponto mais alto de uma colina. Lá, pre-cisaria espalhá-las. Mais um de-talhe: somente quando reunisse todas as penas, estaria redimida. É por isso que ainda se ouve, nas madrugadas de Padre Viegas, uma mulher em procissão, sus-surrando: “balaio de penas pesa-do, balaio pesado...”.

Fábio Seletti

Muitas histórias curiosas envolvem a Procissão das Almas, que acontece todos os anos na Semana Santa, em Mariana. Um dos “causos” (recorrendo ao linguajar do mineiro) é A Procissão do Miserere, escrito por Waldemar dos Santos. Ele conta a história de um cortejo que lembrava os mortos e que, todos os anos, às 23h55, saía da Igreja da Arquiconfraria, na Rua Dom Silvério.

Aos poucos, as pessoas foram se acostumando, mas passaram a cogitar a possibilidade de que aquilo fosse a volta dos frades franciscanos que, uma noite, retomariam suas devoções terrenas.

Nesse tempo, mudou-se para essa rua uma mulher faladeira, que incomodava todo mundo com suas fofocas e intrigas. Gostava de ficar até altas horas à janela, espiando a vida alheia – até no dia da procissão. Desavisada que era, pensou, nesse dia, que aquilo fosse coisa de vivos, mas foi tomada de surpresa: deparou-se com uma alma que lhe entregou uma vela, pedindo que a guardasse. Na volta, a alma exigiu-lhe o objeto. A fuxiqueira foi pegá-lo e acabou descobrindo que se tratava de um osso, o qual entregou desesperada para o dono. O “defunto revivido” disse energicamente à mulher que “se emendasse”. Passados alguns dias, ela morreu. Religião e medo

Segundo Silvana Rapallo, estudante de teologia pastoral pela Arquidiocese de Mariana,

Page 12: Jornal Lampião - 2ª Edição

Pedras pelo caminho, música em cada esquinaRitmo, corpo, vida, morte, mito, lenda

Um degrau de escada e portas para todos os lugaresSujeitos encarcerados, testemunhas noturnas

Uma edificação de saberes como locomotivas nos trilhosUm Cine Theatro, um templo inacabado

Desvendar Mariana

10 De assombrações a sonhos de fortuna

Disputa, malícia e fé estimulam a multiplicação de mitos e lendas populares

Observadoras discretas da noite

Cúmplices das sombras, as lamparinas iluminam e testemunham palavras e gestos6 8 História contada pelo

movimento do corpo

A expressão da cultura de Mariana através da dança, legado de seu povo

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