Jornal Mural Uivo

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“Cantar foi a forma que Johnny Cash encontrou para manter a fé no que a vida lhe ensinara” Estêvão Bertoni está à frente dos obituários do Jornal a Folha de S.Paulo há quatro anos. O re- pórter já escreveu sobre desconhecidos, profes- sores, empresários, artistas e até sobre a morte do Google Wave, uma ferramenta de comuni- cação que durou apenas um ano. O jornalista entrou no grupo Folha através do programa de treinamento e trabalhou também como redador nos cadernos: Cotidiano, Folhateen e o Ilustrada. Uivo: Onde você costuma procurar os persona- gens? E quem merece um obituário? Estêvão Bertoni - Fico atento às notícias de morte na internet, recebo sugestões de leitores no e-mail da coluna e acompanho as notas de falecimento e anúncios de morte ou missa nos jornais. Nesses casos, ligo para os familiares sem saber de antemão a história do persona- gem. A coluna tem como característica contar histórias de vida de pessoas pouco conhecidas. Por exemplo, quando alguém muito famoso e importante morre, o jornal dá muito destaque, com um abre de página ou, em alguns casos, um caderno especial. Eu acho que todo mun- do merece um obituário nessa coluna da Folha. Todo mundo já viveu algum episódio interes- sante que possa ser contato no obituário. É um dos espaços mais lidos do jornal. Acho que um pouco do sucesso da coluna está justamente nisso: contar histórias de pessoas comuns. Uivo: Como acontece o processo de apuração? Quais as fontes de pesquisa que você utiliza para escrever o texto? E. B. - Eu sempre faço entrevistas com familia- res, que geralmente possuem informações mais confiáveis. Busco o nome da pessoa em jornais antigos, processos na Justiça, Diário Oficial ou Google para enriquecer com informações (que, às vezes, a família esquece de contar). Gosta- ria de ressaltar que, quase todos os dias, tenho pouco tempo para apurar uma história. Por exemplo, descubro um personagem às 14h e te- nho que entregar o texto às 19h. Então, quase sempre, não tenho muito tempo para me apro- fundar na vida de um personagem. Uivo: Como lidar com a família dos personagens durante a entrevista, já que a morte costuma ser um assunto mais delicado? E. B. - É um assunto delicado, sim, mas diria que a maioria das pessoas gosta de falar do familiar morto. Acho que lembrar do personagem, espe- cialmente das coisas boas que ele fez, ajuda um pouco a superar a dor. Quando comecei a fazer a coluna, em 2008, tinha um pouco de receio de abordar os familiares. Mas fui percebendo que não era tão tabu assim se você tratasse o assunto com naturalidade. Todo mundo passa por isso ou ainda vai passar. Uivo: O que um bom obituário deve ter? E. B. - O que qualquer texto bom do jornal deve ter: uma boa história. Uivo: Pequenos perfis de celebridades costumam aparecer nos jornais nas editorias de Política, Cultura ou Esportes quando elas morrem, você já escreveu obituário de algum famoso? E. B. - Já escrevi de pessoas com bastante desta- que em suas áreas de atuação: atrizes, escritores, professores ilustres e empresários. O processo, no caso dos muitos famosos, não é muito di- ferente do de uma pessoa mais desconhecida. Talvez um pouco, pois é possível que eu já co- nheça um pouco da biografia do personagem. Famoso ou não, vou querer saber a mesma coi- sa da vida delas. Uivo: Países como a Inglaterra e os Estados Uni- dos têm tradição em obituários, o New York Ti- mes, por exemplo, fez uma compilação dos seus melhores textos em O Livros das Vidas. Você acredita que existam leitores para obituários no Brasil? E. B. -. O jornal já fez pesquisa com os leitores e descobriu que a coluna do obituário é uma das seções mais lidas. O assunto morte atrai muita curiosidade, muita leitura. Tem muita gente que quer saber quem morreu, que acompanha para ver se conheceu a pessoa. Repare nos sites: as notícias de morte estão sempre entre as mais lidas. Ponto Final de Mikal Gilmore traz ícones da contracultura dos anos 1960 “Ginsberg foi alguém que um dia juntou coragem para falar verdades ocultas sobre coisas indizíveis, o que serviu de consolo e incentivo para os que miraram seu exemplo”. O poeta e os beats atuam como um fio con- dutor no livro Ponto final de Mikal Gilmore. Eles influenciaram can- tores como Bob Dylan - principal- mente nos discos Blonde on Blonde e highway 61 revisited, e o quarteto de Liverpool - que inclusive mudou o nome da banda de Beetles para Bea- tles em homenagem a Geração Beat. Já Jarry Garcia sonhava em ser um beatik, mas como os beats não gos- tavam de rock, então Jarry desistiu da ideia e montou o Grateful Dead. A música dos Deads era uma espé- cie de fusão do Jazz com o Blues que mais tarde influenciaria a banda de blues do Sul dos Estados Unidos Al- man Brothers. Essas são algumas das histórias que Mikal Gilmore conta no livro Ponto Final: Crônicas sobre os anos 1960 e suas desilusões (Companhia das letras, 440 páginas). A obra está dividida em quatro partes: Pionei- ros e uma cidade fronteiriça – com perfis de Allen Ginsberg, Timothy Leary, Jarry Garcia e Grateful Dead, Ken Kesey e o verão do amor em Haight-Ashbury; Os Beatles: o auge do legado – com perfis de George Harrison, John Lennon e clássico Sgt. Pepper’s; Os Deslocados- com perfis de Johnny Cash e Bob Mar- ley; Gênios, intoxicação, ruínas e difíceis regenerações – com perfis de Phil Ochs, Hunter S. ompson, Jim Morrison e os Doors, e All- man Brothers Band, Led Zeppelin e Pink Floyd; a última parte do livro é guardada para os vivos, Bob Dylan e Leonard Cohen. Os perfis foram publicados na Rolling Stones entre os anos de 1990 e 2007, a maioria deles após a mor- te do personagem. Ken Kesey, por exemplo, faleceu no dia 10 de no- vembro de 2001 e foi perfilado por Gilmore na edição de dezembro do mesmo ano. Além disso, os textos sobre Dylan e Cohen são inéditos. O autor abusa na descrição dos per- sonagens e consegue extrair a emo- ção de momentos, como a morte de Timothy Leary: “Tim estava deitado sobre as costas, vestido de branco, o cobertor vermelho caído. A boca aberta, congelada na última expira- ção. Parecia chamar alguém em si- lêncio”. O texto de Mikal Gilmore traz al- gumas características do Novo Jor- nalismo, entre elas o fato do autor também ser personagem da narra- tiva. Gilmore, conta por exemplo, sobre as suas experiências ruins com ácido e como estar ao lado de Timothy Leary mudou a forma dele lidar com a morte. O momento mais emocionante do livro é quando o seu irmão Gary Gilmore é executa- do por assaltar e matar duas pessoas em Utah, nos Estados Unidos. Na época o país não executava a pena capital por um período de dez anos. Mas, Gary exigiu que o Estado o ma- tasse. O cantor Johnny Cash, que era um crítico da pena capital, quando soube que Gary era seu fã ligou para prisão e pediu para que ele desistis- se da ideia. “Você é o Johnny Cash de verdade?”E ele respondeu: “Sou”. “Bem, eu sou Gary Gilmore de ver- dade”. Gary não voltou atrás e no dia seguinte da execução Cash ligou para redação da Rolling Stones para dar os pêsames a Mikal. Outras tantas histórias são aborda- das no livro: o nascimento da con- tracultura, o final da Era de Aqua- rius, a separação dos Beatles, a briga entre Roger Waters e os integrantes do Pink Floyd ... Mas, os melhores perfis entre os 18 do livro são os que o autor estava lá, conversando e convivendo com o personagem. No texto sobre Leonard Cohen, o autor intercala detalhes sobre a tris- teza presente na música e na poesia do cantor com falas do guru Roshi e do próprio Cohen. As entrevistas na casa do artista sempre aconteciam em volta da mesa do jantar e mesmo quando Gilmore havia esgotado as perguntas, sempre acabava inven- tando outras, apenas para passar mais um tempo com Cohen. O livro é o segundo de Mikal Gilmore Bertoni conta os segredos dos obituários A seção é uma das mais lidas da Folha de São Paulo Publicar pequenas biografias de mortos é tradição nos EUA “Anne Scheiber vivia sossegada em uma quitinete de aluguel fixo e sem o menor luxo na rua 56: a pintura estava descascando, os móveis eram velhos e o pó cobria as estantes de livros”. O trecho não faz parte de nenhum romance, é o parágrafo de abertura do obituário de Anne Scheiber extraído do Livro das Vi- das: Obituários do New York Times. Escrever pequenas biografias de pessoas que acabaram de falecer é tradição nos Estados Unidos e na In- glaterra. O gênero foi revolucionado pelo jornalista Alden Whitman – o Senhor Notícia, imortalizado no perfil escrito por Gay Talese, e hoje é um dos cargos mais disputados da imprensa americana. Para Matinas Susuki Jr., organizar do Livro das vi- das, os obituários são uma cerimô- nia de adeus diária do jornalismo. No Brasil, a maioria dos jornais di- vulgam apenas notas de falecimento e missas de sétimo dia. Mas publi- cações como a Folha de S.P e Zero Hora de Porto Alegre possuem uma seção de obituários. A única coluna que é assi- nada é a de Es- têvão Bertoni da Folha de S.P. O re- pórter tem um espaço de 1500 carac- teres diários para escrever sobre os per- sonagens mais inusitados. “Todo mundo já viveu algum episódio interessante que possa ser contado no obituário” MIkal Gilmore Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Arte: Bertoni e Pep Zapata Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Rosângela Menezes Serviços editoriais: Piauí 40, O livro das Vidas, Fama&Anonimato e http://6congressoabraji.wordpress.com Colaboração: Allan Gomes, Beatriz Aguiar, Jéssica Sant’Ana e Nara Osga Impressão: Postmix Novembro de 2012 Florianópolis, 29 de Novembro de 2012 - Edição 1 Ano 1 1-A Foto: Divulgação A vida transformada em obra de arte

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Jornal Mural produzido por Rosângela Menezes para a disciplina Edição, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Page 1: Jornal Mural Uivo

“Cantar foi a forma que Johnny Cash encontrou para manter a fé no que a vida lhe ensinara”

Estêvão Bertoni está à frente dos obituários do Jornal a Folha de S.Paulo há quatro anos. O re-pórter já escreveu sobre desconhecidos, profes-sores, empresários, artistas e até sobre a morte do Google Wave, uma ferramenta de comuni-cação que durou apenas um ano. O jornalista entrou no grupo Folha através do programa de treinamento e trabalhou também como redador nos cadernos: Cotidiano, Folhateen e o Ilustrada.

Uivo: Onde você costuma procurar os persona-gens? E quem merece um obituário?Estêvão Bertoni - Fico atento às notícias de morte na internet, recebo sugestões de leitores no e-mail da coluna e acompanho as notas de falecimento e anúncios de morte ou missa nos jornais. Nesses casos, ligo para os familiares sem saber de antemão a história do persona-gem. A coluna tem como característica contar histórias de vida de pessoas pouco conhecidas. Por exemplo, quando alguém muito famoso e importante morre, o jornal dá muito destaque, com um abre de página ou, em alguns casos, um caderno especial. Eu acho que todo mun-do merece um obituário nessa coluna da Folha. Todo mundo já viveu algum episódio interes-sante que possa ser contato no obituário. É um dos espaços mais lidos do jornal. Acho que um pouco do sucesso da coluna está justamente nisso: contar histórias de pessoas comuns.Uivo: Como acontece o processo de apuração? Quais as fontes de pesquisa que você utiliza para escrever o texto?E. B. - Eu sempre faço entrevistas com familia-res, que geralmente possuem informações mais confiáveis. Busco o nome da pessoa em jornais antigos, processos na Justiça, Diário Oficial ou Google para enriquecer com informações (que, às vezes, a família esquece de contar). Gosta-ria de ressaltar que, quase todos os dias, tenho

pouco tempo para apurar uma história. Por exemplo, descubro um personagem às 14h e te-nho que entregar o texto às 19h. Então, quase sempre, não tenho muito tempo para me apro-fundar na vida de um personagem.Uivo: Como lidar com a família dos personagens durante a entrevista, já que a morte costuma ser um assunto mais delicado?

E. B. - É um assunto delicado, sim, mas diria que a maioria das pessoas gosta de falar do familiar morto. Acho que lembrar do personagem, espe-cialmente das coisas boas que ele fez, ajuda um pouco a superar a dor. Quando comecei a fazer a coluna, em 2008, tinha um pouco de receio de abordar os familiares. Mas fui percebendo que não era tão tabu assim se você tratasse o assunto com naturalidade. Todo mundo passa por isso ou ainda vai passar. Uivo: O que um bom obituário deve ter?E. B. - O que qualquer texto bom do jornal deve ter: uma boa história. Uivo: Pequenos perfis de celebridades costumam aparecer nos jornais nas editorias de Política, Cultura ou Esportes quando elas morrem, você já escreveu obituário de algum famoso?E. B. - Já escrevi de pessoas com bastante desta-que em suas áreas de atuação: atrizes, escritores, professores ilustres e empresários. O processo, no caso dos muitos famosos, não é muito di-ferente do de uma pessoa mais desconhecida. Talvez um pouco, pois é possível que eu já co-nheça um pouco da biografia do personagem. Famoso ou não, vou querer saber a mesma coi-sa da vida delas. Uivo: Países como a Inglaterra e os Estados Uni-dos têm tradição em obituários, o New York Ti-mes, por exemplo, fez uma compilação dos seus melhores textos em O Livros das Vidas. Você acredita que existam leitores para obituários no Brasil? E. B. -. O jornal já fez pesquisa com os leitores e descobriu que a coluna do obituário é uma das seções mais lidas. O assunto morte atrai muita curiosidade, muita leitura. Tem muita gente que quer saber quem morreu, que acompanha para ver se conheceu a pessoa. Repare nos sites: as notícias de morte estão sempre entre as mais lidas.

Ponto Final de Mikal Gilmore traz ícones da contracultura dos anos 1960“Ginsberg foi alguém que um dia juntou coragem para falar verdades ocultas sobre coisas indizíveis, o que serviu de consolo e incentivo para os que miraram seu exemplo”. O poeta e os beats atuam como um fio con-dutor no livro Ponto final de Mikal Gilmore. Eles influenciaram can-tores como Bob Dylan - principal-mente nos discos Blonde on Blonde e highway 61 revisited, e o quarteto de Liverpool - que inclusive mudou o nome da banda de Beetles para Bea-tles em homenagem a Geração Beat. Já Jarry Garcia sonhava em ser um beatik, mas como os beats não gos-tavam de rock, então Jarry desistiu da ideia e montou o Grateful Dead.

A música dos Deads era uma espé-cie de fusão do Jazz com o Blues que mais tarde influenciaria a banda de blues do Sul dos Estados Unidos Al-man Brothers.

Essas são algumas das histórias que Mikal Gilmore conta no livro Ponto Final: Crônicas sobre os anos 1960 e suas desilusões (Companhia das letras, 440 páginas). A obra está dividida em quatro partes: Pionei-ros e uma cidade fronteiriça – com perfis de Allen Ginsberg, Timothy Leary, Jarry Garcia e Grateful Dead, Ken Kesey e o verão do amor em Haight-Ashbury; Os Beatles: o auge do legado – com perfis de George Harrison, John Lennon e clássico Sgt. Pepper’s; Os Deslocados- com perfis de Johnny Cash e Bob Mar-ley; Gênios, intoxicação, ruínas e difíceis regenerações – com perfis de Phil Ochs, Hunter S. Thompson, Jim Morrison e os Doors, The All-man Brothers Band, Led Zeppelin e Pink Floyd; a última parte do livro é guardada para os vivos, Bob Dylan e Leonard Cohen.

Os perfis foram publicados na Rolling Stones entre os anos de 1990 e 2007, a maioria deles após a mor-te do personagem. Ken Kesey, por exemplo, faleceu no dia 10 de no-vembro de 2001 e foi perfilado por Gilmore na edição de dezembro do mesmo ano. Além disso, os textos sobre Dylan e Cohen são inéditos.

O autor abusa na descrição dos per-sonagens e consegue extrair a emo-ção de momentos, como a morte de Timothy Leary: “Tim estava deitado sobre as costas, vestido de branco, o cobertor vermelho caído. A boca aberta, congelada na última expira-ção. Parecia chamar alguém em si-lêncio”.

O texto de Mikal Gilmore traz al-gumas características do Novo Jor-nalismo, entre elas o fato do autor também ser personagem da narra-tiva. Gilmore, conta por exemplo, sobre as suas experiências ruins com ácido e como estar ao lado de Timothy Leary mudou a forma dele lidar com a morte. O momento mais emocionante do livro é quando o seu irmão Gary Gilmore é executa-do por assaltar e matar duas pessoas em Utah, nos Estados Unidos. Na época o país não executava a pena capital por um período de dez anos. Mas, Gary exigiu que o Estado o ma-tasse. O cantor Johnny Cash, que era um crítico da pena capital, quando soube que Gary era seu fã ligou para

prisão e pediu para que ele desistis-se da ideia. “Você é o Johnny Cash de verdade?”E ele respondeu: “Sou”. “Bem, eu sou Gary Gilmore de ver-dade”. Gary não voltou atrás e no dia seguinte da execução Cash ligou para redação da Rolling Stones para dar os pêsames a Mikal.

Outras tantas histórias são aborda-das no livro: o nascimento da con-tracultura, o final da Era de Aqua-rius, a separação dos Beatles, a briga entre Roger Waters e os integrantes do Pink Floyd ... Mas, os melhores perfis entre os 18 do livro são os que o autor estava lá, conversando e convivendo com o personagem. No texto sobre Leonard Cohen, o autor intercala detalhes sobre a tris-teza presente na música e na poesia do cantor com falas do guru Roshi e do próprio Cohen. As entrevistas na casa do artista sempre aconteciam em volta da mesa do jantar e mesmo quando Gilmore havia esgotado as perguntas, sempre acabava inven-tando outras, apenas para passar mais um tempo com Cohen.

O livro é o segundo de Mikal Gilmore

Bertoni conta os segredos dos obituários

A seção é uma das mais lidas da Folha de São Paulo

Publicar pequenasbiografias de mortosé tradição nos EUA“Anne Scheiber vivia sossegada em uma quitinete de aluguel fixo e sem o menor luxo na rua 56: a pintura estava descascando, os móveis eram velhos e o pó cobria as estantes de livros”. O trecho não faz parte de nenhum romance, é o parágrafo de abertura do obituário de Anne Scheiber extraído do Livro das Vi-das: Obituários do New York Times. Escrever pequenas biografias de pessoas que acabaram de falecer é tradição nos Estados Unidos e na In-glaterra. O gênero foi revolucionado pelo jornalista Alden Whitman – o Senhor Notícia, imortalizado no perfil escrito por Gay Talese, e hoje é um dos cargos mais disputados da imprensa americana. Para Matinas Susuki Jr., organizar do Livro das vi-das, os obituários são uma cerimô-nia de adeus diária do jornalismo.

No Brasil, a maioria dos jornais di-vulgam apenas notas de falecimento e missas de sétimo dia. Mas publi-cações como a Folha de S.P e Zero Hora de Porto Alegre possuem uma

seção de obituários. A única coluna que é assi-

nada é a de Es-têvão Bertoni

da Folha de S.P. O re-pórter tem

um espaço de 1500 carac-teres diários

para escrever sobre os per-sonagens mais

inusitados.

“Todo mundo jáviveu algum episódio interessante quepossa ser contadono obituário”

MIkal Gilmore

Curso de Jornalismo da UFSCAtividade da disciplina EdiçãoProfessor: Ricardo BarretoArte: Bertoni e Pep ZapataEdição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Rosângela MenezesServiços editoriais: Piauí 40, O livro das Vidas, Fama&Anonimato e http://6congressoabraji.wordpress.comColaboração: Allan Gomes, Beatriz Aguiar, Jéssica Sant’Ana e Nara OsgaImpressão: PostmixNovembro de 2012

Florianópolis, 29 de Novembro de 2012 - Edição 1 Ano 1 1-A

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A vida transformada em obra de arte

Page 2: Jornal Mural Uivo

“A depressão não foi o motor do meu trabalho, foi apenas a condição da minha vida”

O jornalista já desvendou detalhes sobre Ferreira GullarSergio Vilas-Boas é jornalista, escritor e professor em Narrativas da Realidade na Faculdade Cásper Líbero. Mineiro de Lavras, passou grande parte da vida em Belo Horizonte, dois em Nova York e mora em São Paulo há 14 anos. Trabalhou por 10 anos como repórter e editor em jornais de Minas Gerais e São Paulo. É doutor pela Escola de Comunicação e Artes da USP com pesquisas sobre nar-rativas biográficas, que resultaram nos livros Biografias & biógrafos (2002), Perfis (2003) e Biografismo (2008). O escritor ganhou o Prêmio Jabuti em 1998 com o livro Os Estrangeiros do Trem N. É cofundador da Academia Bra-sileira de Jornalismo Literário. Escreve resenhas e críticas literárias para o jornal Rascunho e reportagens sobre “o jornal na era digital” para a ANJ.

Uivo - O senhor já escreveu perfis de pessoas importan-tes como Gabriel García Márquez e Ferreira Gullar e de pessoas menos conhecidas como o Luiz “Bola”. Quem o senhor acha que merece um perfil?Sérgio Vila-Boas- Regra geral para não famosos: o po-tencial personagem de um perfil é aquele/aquela que difere da “multidão” no modo de pensar e/ou de agir. Quanto aos famosos, muitas vezes eles são personagens simplesmente porque são famosos. Uivo - O escritor Ruy Castro prefere perfilar mortos, se-gundo ele, a escolha é uma questão de distanciamento, para não ter trabalho com o personagem durante a apu-ração. O senhor prefere perfilar pessoas mortas ou vivas?S.V.B.- Prefiro pessoas vivas exatamente por poder li-dar diretamente com elas. Os mortos, especialmente os mortos famosos, têm muitos donos, muitos proprie-tários, muitos guardiões, muitos fanáticos dispostos a tudo para defender a “imagem” que criaram sobre o morto. Mas neste ponto é preciso lembrar que a produ-ção de um perfil é diferente da produção de uma bio-grafia. As biografias são normalmente muito detalhadas e extensas, e, em sua maioria, detêm-se em famosos mortos. O perfil, não. O perfil é uma modalidade jorna-lística que, apesar de ser também biográfica, não é bio-grafia. Ou seja, não tem a mesma finalidade, os mesmos parâmetros, os mesmo métodos de uma biografia. Mais: dentro do jornalismo (impresso, principalmente) o per-fil é, por tradição, sobre vivos. Perfil não é obtuário. Para mim, perfil é – tem de ser - sobre um indivíduo vivo, famoso ou não. Uivo - E como lidar com o envolvimento com o persona-gem durante a apuração?S.V.B.- Não há – nem deve haver – um “como” único. Cada indivíduo é um indivíduo. Cada narrativa é uma narrativa. Cada texto é um texto. Tão equivocado quan-to pressupor que as pessoas são necessariamente ma-nipuladoras/controladoras, é pressupor que elas são necessariamente colaborativas. Lidar com humanos sempre envolve respeito, empatia e civilidade mútuos. Os padrões do jornalismo sensacionalista do dia-a-dia é

sempre o de “partir para o ataque”, como numa guerra: denunciar mazelas e contradições; expor as entranhas de tudo; manipular (e ser manipulado); tratar a “fon-te” (esse termo não se aplica, aliás, ao personagem de um perfil, creio) como objeto de premeditada intenção. Em produções biográficas, isso não funciona. Se houver uma regra geral, é esta: não idealizar. As pessoas são o que são (seja lá o que for que elas pensem que são). E que assim sejam.Uivo- Quais elementos devem ter um bom perfil? É pos-sível ensinar técnicas para perfilar um personagem, da mesma forma que existem técnicas para redigir notícias, por exemplo?S.V.B.- Eu pratico e ensino perfis com base em conheci-mentos extraídos do Jornalismo Narrativo (também co-nhecido como Literário), da psicologia, da antropologia e da filosofia. Quanto às técnicas, elas não são aquelas do jornalismo de noticiários. São técnicas literárias, que podem ser facilmente ensinadas. Aliás, elas têm sido en-sinadas há séculos.Uivo- Revistas de reportagens como Brasileiros e Piauí, e as femininas como Marie Claire e Claudia têm publicado perfis com certa frequência. O senhor enxerga isso como um aumento no interesse dos jornalistas brasileiros pelo gênero?S.V.B.- Fatores que contribuíram para o aumento do in-teresse pelo gênero perfil no Brasil nos últimos 12 anos: esgotamento do jornalismo impresso de no-ticiários com o advento da “era digital”; retorno do Jornalismo Narrativo como conteúdo específico nos cursos de gra-duação e pós-graduação; o lançamento da coleção Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, em 2002; o lançamentos das revistas Piauí, Brasileiros e Rolling Stone Brasil entre 2006 e 2007; a necessida-de de valorização do ser huma-no num contexto jornalístico de obsessão por estatísticas, comen-tários, opiniões e prestação de serviços.

O próximo personagem do escritor será o cearense Ivens Dias

O escritor vira personagemUma das definições encontradas no dicionário Aurélio para perfil é da representação de um objeto que é visto de apenas um lado. De fato, diferente das biografias, que os autores retratam toda a trajetória do personagem, o per-fil é um gênero jornalístico breve e foca em apenas um momento da vida da pessoa ou em alguns aspectos da personalidade. Essa narrativa nascida do Novo Jor-nalismo foi popularizada por Gay Talese na década de 1960 e publicada nas revistas Esquire, Harper’s e The New Yorker. Jor-nalistas como Lilian Ross, Tom Wolfe, John McPhee, Joseph Mi-tchell e David Remnick mescla-vam informações com recursos das narrativas de não-ficção - o resultado é um texto saboroso e rico em detalhes.

A arte de fazer perfil é na ver-dade, a arte de sujar os sapatos: os repórteres abandonavam a redação e saiam para rua, fala-vam como familiares e amigos dos perfilados, frequentavam os mesmo restaurantes para tentar extrair detalhes da personalidade e manias que uma simples entre-vista ping-pong não seria capaz de absorver. Um dos perfis mais famosos escrito por Gay Talese

é o Frank Sinatra está resfriado (Esquire, abril de 1966). Dian-te da dificuldade de entrevistar o cantor, Talese pagou jantares para amigos e pessoas próximas de Sinatra para buscar informa-ções e escrever o perfil, o resul-tado foi um trabalho antológico e sem entrevista direta com o perfilado.

No Brasil o gênero foi introdu-zido pelas revistas Realidade e O cruzeiro também nos anos 60. Atualmente, periódicos como Piauí e Brasileiros têm investido na publicação de perfis. João Mo-reira Salles, fundador da Piauí, ganhou um prêmio Esso em 2010 com o texto sobre Arthur Ávila, matemático do Instituto de Matemática Pura e Aplicada. O escritor percebeu que não con-seguiria compreender o trabalho de Ávilla na primeira ou na se-gunda das 11 entrevistas que teve com a fonte. João então resolveu descrever como o matemáti-co pensa e opera mentalmente quando tem ideias e resolve seus teoremas. “O trabalho do Arthur é pensar borboletas. No seu vo-cabulário elas são chamadas de objetos – infinitos, complexos, caóticos, imensos, previsíveis, prováveis, elegantes, belos”.

Mikal viveu as decepções de 60Em 1974 Mikal Gilmore foi con-vidado para escrever uma resenha sobre Bob Dylan e The Band para um jornal underground de Portland, Oregon. E desde então não parou mais de resenhar. Gilmore cresceu ouvindo rock e as ideias sobre dese-jos, perdas, valores culturais, sociais e políticos presente nas letras do bom e velho rock’n roll tiveram uma grande influência sobre a vida do escritor, muito mais que a influência da família, por exemplo.

Gilmore conseguiu entrevistar vá-rios de seus heróis. E quando teve a oportunidade de contar sobre algo que gostava encarou o desafio como uma dádiva. O escritor se es-pelhou nos críticos para amadurecer a qualidade do seu texto, entre eles Alfred Aronowitz, Robert Hilburn, Nick Cohn, Cameron Crowe e Gle-ason, cofundador da Rolling Stone. A maior influência de Mikal veio do crítico Paul Nelson, que morreu em 2006 e foi um dos fundadores da revista americana Folk Little Sandy. “A critica do rock certamente teria se desenvolvido sem a influência de Paul – a música que surgiu nos anos 50 e 60 era ela mesma uma literatu-ra que requeria avaliação literária-, mas desde os primeiros momentos ele introduziu um estilo elegante e uma perspectiva inovadora para o gênero”, explica.

Mikal Gilmore nasceu em 1951

na cidade de Portland em Oregon. Escreve para a revista Rolling Stone desde o início dos anos 70. Gilmore mora em Woodland Hills na Cali-fórnia e possui quase 5 mil amigos no Facebook e mais de 2 mil seguido-res no Twitter. O seu perfil na rede social tem 476 fotos postadas e cerca de 60% delas ele está em companhia da gatinha Tuffy.

O crítico publicou dois livros pela Companhia das letras: Tiro no co-ração, sobre a morte do irmão Gary Gilmore e Ponto Final: Crônicas so-bre os anos 1960 e suas desilusões. Mikal Gilmore tem um arrependi-mento, não ter incluindo no segun-do livro perfis de John Coltrane, Miles Davis, Velvet Undergound ou Tim Buckley.

Gilmore é crítico musical há 40 anos

“No Jornalismo Literário, o repórter precisa ter imersão,envolvimento com o assunto, além de humanização e personagens”

Leonard Cohen

Florianópolis, 29 de Novembro de 2012 - Edição 1 Ano 1 1-B

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Curso de Jornalismo da UFSCAtividade da disciplina EdiçãoProfessor: Ricardo BarretoArte: Bertoni e Pep ZapataEdição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Rosângela MenezesServiços editoriais: Piauí 40, O livro das Vidas, Fama&Anonimato e http://6congressoabraji.wordpress.comColaboração: Allan Gomes, Beatriz Aguiar, Jéssica Sant’Ana e Nara OsgaImpressão: PostmixNovembro de 2012

Sérgio Vilas-Boas prefere escrever perfisde pessoas vivas