Jornalismo e eficácia

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* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Muniz Sodré. Membro do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC-UFRJ). E-mail: [email protected]. Resumo Impulsionado pelos avanços tecnológicos, no interior de uma cultura da eficácia, o jornalismo celebra o advento de uma nova temporalidade (efê- mera, fugaz, instantânea), aderindo ainda mais à prática de segmentação do noticiário. Neste artigo, busca-se refletir sobre os perigosos caminhos da excessiva fragmentação do noticiário, que, acompanhando a hiperseg- mentação da mídia digital, tem como objetivo fornecer conteúdo cada vez mais especializado, mas com sérios prejuízos à contextualização dos fatos narrados e à própria integridade do noticiário. Palavras-chave: Jornalismo impresso. Segmentação. Novas tecnologias. Cultura da eficácia. Gabriela Nóra * Jornalismo e eficácia: a segmentação no noticiário impresso

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* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Muniz Sodré. Membro do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC-UFRJ).

E-mail: [email protected].

ResumoImpulsionado pelos avanços tecnológicos, no interior de uma cultura da eficácia, o jornalismo celebra o advento de uma nova temporalidade (efê-mera, fugaz, instantânea), aderindo ainda mais à prática de segmentação do noticiário. Neste artigo, busca-se refletir sobre os perigosos caminhos da excessiva fragmentação do noticiário, que, acompanhando a hiperseg-mentação da mídia digital, tem como objetivo fornecer conteúdo cada vez mais especializado, mas com sérios prejuízos à contextualização dos fatos narrados e à própria integridade do noticiário.

Palavras-chave: Jornalismo impresso. Segmentação. Novas tecnologias. Cultura da eficácia.

Gabriela Nóra*

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151 “Zapar”: termo que remete à atividade do zapper: corte, mudança, movimento, velocidade. Pa-

lavra originária do aparelho ad-zapper, inventado pelos norte-americanos, para mudança dos canais de rádio e televisão por meio do controle remoto. (SILVA, 1996, p. 12)

introdução

Por mais quanto tempo resistirão os jornais de papel? Essa parece ser a grande incógnita do jornalismo contemporâneo, num período em que pesquisadores, consultores e especialistas de mídia, e também jornalistas, se dividem entre os que acreditam na perenidade dos im-pressos e os que apostam no seu desaparecimento, diante dos avanços cada vez mais acelerados das Tecnologias de Informação e Comuni-cação (TICs).

Pode-se dizer que se vive hoje situação parecida quando do surgimen-to da televisão no início do século XX. Naquela época, muitos também previram a morte do jornal impresso. Mas, a despeito das discussões, ele sobreviveu aos meios eletrônicos: sofreu algumas transformações, mu-dou não só para competir, mas no intuito de buscar uma convivência pacífica com a nova mídia.

No entanto, o contexto atual, com o desenvolvimento das TICs e com a consolidação da internet como espaço de busca e troca de infor-mações, impõe novas e urgentes mudanças. Alterações que vão desde o conteúdo até a estrutura de apresentação das notícias, pois, se o mode-lo segmentado trouxe agilidade, velocidade e possibilidade de zapping1 próximas às da mídia eletrônica, ele não mais se sustenta diante das ferramentas digitais.

É certo que a digitalização favorece um alto nível de personalização de conteúdos e, consequentemente, maior segmentação da audiência. Não há dúvidas de que a era digital tem marcado a passagem de um mercado massivo para um mercado cada vez mais segmentado: as redes digitais possibilitam acesso a conteúdos massivos em grande escala, mas também a conteúdos de nicho, sobretudo por meio das ferramentas de busca, as quais constituem, hoje, tais quais os dicionários, no século XVIII, “uma forma muito evoluída de memória exterior, mas em que o pensamento se encontra fragmentado até o infinito” (LEROI-GOURHAN, 1964, p. 70 apud LE GOFF, 1992, p. 461).

Assim, de acordo com Meyer (2007, p. 257), pesquisador norte-americano,

o longo curso que deixa para trás a mídia de massa e vai em di-reção à segmentação parece continuar. Essa tendência afeta mais do que nossa mídia tradicional. Ela envolve nossa capacidade de manter uma política cultural unificada com valores compartilha-dos. A internet não criou esse problema, mas o está acelerando.

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Logo, segundo o autor, a internet é apenas o mais recente de tantos outros avanços que contribuíram para a segmentação da mídia. Mas, pelo fato de atender de forma cada vez mais eficiente àqueles que bus-cam informação segmentada, ela tem acelerado essa tendência rumo a públicos menores. Seguindo essa mesma lógica, a grande mídia, ao constatar a existência de diferentes segmentos sociais com demandas específicas, fragmenta seu noticiário, oferecendo ao público blocos de informações cada vez mais restritas.

Tendo os jornais percebido a existência de públicos diferenciados – não há uma audiência única, homogênea –, fragmentaram-se em ca-dernos, visando atender aos mais diferentes grupos e, principalmente, facilitar o trabalho da publicidade. Tal estratégia resultou nas crescentes segmentações de assuntos e do público-leitor, favorecendo sobremanei-ra as investidas do marketing, apesar dos danos sociais causados pela descontextualização de fatos e informações, pela ausência de relações entre as diversas áreas temáticas, pela falta de entrosamento entre as di-ferentes editorias... enfim, por uma série de fatores que têm como base a fragmentação do pensar, do fazer e do conceber a atividade jornalística.

É certo, como bem afirma Nietzsche (1976), em seu combate ao his-toricismo e a uma dada filosofia da história que alega poder explicar racionalmente o mundo, que não se pode tudo explicar, tudo reduzir a causas e consequências, pois a vida é marcada por certos imponderáveis. E também a história, que não é processual, mas comporta rupturas:

Schiller está perfeitamente a par do carácter nitidamente subjetivo desta hipótese quando diz do historiador: ‘Os fenómenos, um após outro, escapam ao acaso cego, à liberdade sem lei e vêm, como arti-culação conjugada de um mecanismo, tomar o seu lugar dentro de um conjunto coerente que, na realidade, só existe na imaginação do historiador’. (NIETZSCHE, 1976 p. 167, grifo do autor)

Assim como a história, deve-se, pois, reconhecer que o jornalismo não se configura em um fluxo contínuo e coerente, mas é marcado por rupturas, pelo que foge à normalidade dos fatos, pelos acontecimentos extraordinários que irrompem no cotidiano. Sabendo disso, a crítica que se faz, aqui, ao jornalismo fragmentado não visa de forma alguma à apo-logia de um jornalismo processual, de causas e consequências, que dê conta de todo o desenrolar dos fatos sociais.

Até porque se reconhece, juntamente com Ricoeur, quando este co-menta o caráter inegavelmente seletivo da narrativa, que, “assim como é impossível lembrar-se de tudo, é impossível narrar tudo. A ideia de

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narração exaustiva é uma ideia performativamente impossível”, pois, a narrativa, inclusive a jornalística, “comporta necessariamente uma di-mensão seletiva”, de modo que, em virtude de sua função mediadora, ela determina que os abusos de memória tornem-se, de antemão, abusos de esquecimento. (RICOEUR, 2007, p. 455)

No entanto, e admitindo tudo isso, o que se espera é chamar a aten-ção para os perigosos caminhos da excessiva fragmentação do noticiá-rio, que, acompanhando a hipersegmentação da mídia digital, tem por objetivo fornecer conteúdo cada vez mais especializado, mas com sérios prejuízos à contextualização dos fatos narrados e à própria integridade do noticiário. Ademais, nesse processo, em última instância, o que pode estar em jogo é a identidade social propriamente dita, ameaçada não mais por uma indiferença generalizada (mass media), mas pelo desejo de uma identidade maior: aquela que responde pelo particular, pelo esforço de especialização e individuação.

Afinal, não há dúvidas de que os jornais vêm perdendo a sua unidade. Além disso, em tempos de mídia digital, assiste-se a um acelerado proces-so de “atomização” do indivíduo. A nova mídia vem se expandindo em lar-ga escala e atinge cada vez mais pessoas em todo o mundo. No entanto, se na televisão e no rádio a comunicação se dá simultaneamente para um pú-blico massivo e, no jornal impresso, um mesmo noticiário é lido por várias pessoas, mas em diferentes momentos, não necessariamente simultâneos – cada qual pode ler o jornal quando lhe for mais conveniente durante o dia, ou mesmo em dias diferentes –, com a mídia digital caminha-se para uma comunicação cada vez mais especializada e pronta para atender às demandas mais pessoais, sejam elas referentes ao momento de leitura ou visualização/audição de um conteúdo (texto, imagem, áudio, vídeo, etc.), sejam ao próprio conteúdo que será acessado.

Isto é, a comunicação digital, diante dos mais avançados meios exis-tentes (computadores, laptops, celulares e demais portáteis) e os que ainda virão com o acelerado desenvolvimento tecnológico, progride no sentido de um aperfeiçoamento da especialização, servindo a cada in-divíduo conforme suas necessidades. Ampliam-se as possibilidades de escolha e cada qual pode buscar aquilo que mais o atende em termos de informação, entretenimento, serviços, etc.

Cultura da eficácia

Segundo o físico Oliveira (2003), a multiplicação, em quantidade e variedade, dos fluxos de objetos técnicos leva à constituição de um

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inédito campo de medição generalizada, em cujo centro se encontra a própria tecnologia. Ou seja, para o autor,

a principal consequência desse processo de tecnificação cada vez mais abrangente é pôr à prova a solidez dos sistemas tradicionais de valores, obrigando-os a passar por um regime de reajustes tão incessante quanto indeterminado. (OLIVEIRA, 2003 p. 65)

Em outras palavras, como bem diagnostica d’Amaral (2003), trata-se da passagem do paradigma da verdade para o da eficácia, ou, mais preci-samente, para o paradigma “tecno-lógico” da eficácia – entendida como a produção de bens que satisfaçam o desejo de consumo cada vez mais individual e hedonístico. Logo, numa época em que o virtual é eficaz, o futuro determina o presente, de modo que, aquilo que há se sustenta em sua eficácia. Passa-se, então, do domínio das causas para o domínio dos efeitos sem causa, isto é, sem fundamento. D’Amaral (2003) explica que para os pós-modernos não há mais fundamento, exceto a eficácia tec-nológica. E eles o teriam abolido porque nada faz sentido, não há mais sentido; tudo é imanência, consumo por si só, sem sentido. Vive-se, por-tanto, na indecidibilidade – não no sentido da falta de decisão, mas na decisão de não decidir, de viver nessa tensão entre virtual/real, realidade/ficção. Na cultura da eficácia tecnológica, resume o autor, a vida é posta na dimensão do consumo, da satisfação no e pelo consumo.

Assim, em uma época em que, por meio da aceleração tecnológica, o futuro torna-se o maior valor, é preciso, conforme sugere d’Amaral (2003, p. 21), falar em nome do passado, desobrigando o pensamento da necessidade de acompanhar com entusiasmo o sucesso tecnológico, pois, com o futuro antecipando-se ao presente e estourando a cronologia – “o futuro existe e no futuro as coisas se passarão de tal maneira; isso produz um efeito sobre o presente, provando que, no futuro, as coisas realmente se passariam desse modo” –, é preciso que se pergunte para que serve o passado, uma vez que ele já não é mais a causa do presente.

O futuro causa do presente! [...] A hiper-velocidade tecno-lógi-ca, o excesso informacional e a intensa virtualização da cultura contemporânea são os dispositivos que efetuam esse resultado insólito, a antecipação do futuro. (D’AMARAL, 2004, p. 259)

De fato, a legitimação por meio do passado foi substituída pela legi-timação por meio do futuro. Ademais, como explica Sodré (2009, p. 101), “num mundo posto em rede técnica, modifica-se profundamente a

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experiência habitual do tempo, a da ordem temporal sucessiva, dando lugar à simultaneidade e à hibridização”. Nesse contexto, prossegue o autor, a experiência do atual tem sofrido forte influência das novas tecnologias de comunicação, num momento em que a temporalidade, acelerada, cria efeitos de simultaneidade e imediatez: o chamado “efei-to SIG” (simultaneidade, instantaneidade e globalidade), o qual “já está definitivamente inscrito na temporalidade cotidiana, abolindo todas as distâncias espácio-temporais”. (SODRÉ, 2009, p. 89)

Em outras palavras, conforme resume Moraes (2009, p. 58),

tudo agora é atropelado na urgência dos milésimos. A existência dilui-se e restabelece-se sem direito a intervalo. As pausas para respirar parecem insolentes ou extemporâneas. Até os refúgios nas cavernas e o silêncio meditativo das pirâmides já não estão isentos de instabilidades. Pouco importa o tempo escasso entre presente e futuro imediato, muito menos a advertência de que inexiste senti-do de historicidade ou futuridade na pressa indomável.

Pois, destaca o autor, a inovação torna-se valiosa “numa época em que os bens disponíveis criam problemas e expectativas que somente se equacionam mediante novas demandas e soluções tecnológicas”. Trata-se, afirma, da “aceleração da aceleração tecnocientífica”, definida por Santos (2003 apud MORAES, 2009) com as empresas se dedicando mais à invenção e à substituição de produtos do que à ampla exploração comercial dos mesmos. Ou, utilizando expressão de Bauman (2007), da época da “obsolescência programada”, em que o emprego das mais re-centes tecnologias garante a diversificação produtiva, a rápida inovação e, assim, a reposição constante das mercadorias em circulação. (MORAES, 2009, p. 76-78)

É possível, então, aproveitar aqui a metáfora musical elaborada por Nietzsche (1976, p. 144), quando ele denuncia que

parece ser quase impossível produzir um som cheio e forte, mes-mo dedilhando fortemente as cordas; o som morre logo, no ins-tante seguinte esvai-se, feito história, apodrece, sem força. [...], os vossos actos são explosões súbitas, não um ribombar prolongado de trovão.

Trata-se, pois, da necessidade de revisar o papel da mídia e, especial-mente, da imprensa escrita, no tocante ao aprofundamento dos modos de apropriação fragmentada do mundo, que tanto têm afetado as relações

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sociais, como as definido de forma intensa nos dias de hoje. Ou seja, como esclarece o pensador alemão Huyssen (2000, p. 22), “a mídia não transporta a memória pública inocentemente; ela a condiciona na sua própria estrutura e forma”. Uma estrutura que, baseada na segmentação, é eficazmente utilizada pelo mercado para manter os fluxos comerciais, esvaziar o debate político, segregar, fragmentar e, finalmente, extinguir qualquer possibilidade de vínculo efetivo entre os sujeitos e entre esses e a realidade da qual fazem parte.

Firmar algum “espaço-âncora” (aproveitando a expressão do próprio Huyssen). Talvez seja essa a tarefa dos jornais impressos no contexto da comunicação digital. Para tanto, é imperioso retomar o tempo lento, mesmo que na contramão de uma sociedade cuja máxima parece ser a da disponibilização de informações desenfreada e aceleradamente. A ideia é de que se possa ter os jornais como pausa, reflexão, momento de sele-cionar e aprofundar os conhecimentos, diante das infinitas informações, atualizadas a todo o momento e oferecidas de forma contínua pelos modernos canais de comunicação.

Afinal, por mais que se venda a ideia de que nada escapa à onipre-sença da mídia, com todo o seu aparato tecnológico e as mais modernas ferramentas de produção e circulação de informações, de nada adianta o amplo acesso às múltiplas representações da realidade se, do ponto de vista do sentido, dos significados, há que se reconhecer sempre – e cada vez mais – a existência de vazios.

Seja o outro lado do acontecimento (ou mesmo os outros lados); as fontes que não foram ouvidas; os empecilhos ocasionados pela falta de tempo, dinheiro e instrumentos para melhor apurar; a assimilação (mui-tas vezes inconsciente) das rotinas produtivas; a falta de comprometi-mento ético dos profissionais e/ou dos veículos; a concorrência acirrada; a pressa pelo furo... Enfim, por mais que se diga – e é verdade – que nun-ca houve tanta oferta de informações e possibilidade de acesso aos mais diversos conteúdos (atuais, “atualíssimos”, e também históricos, com a crescente digitalização dos acervos), é preciso que se entenda, de uma vez por todas, que a produção/reprodução de informações desenfreada e aceleradamente não significará melhor compreensão do mundo, do homem e da sociedade.

A nossa cultura [...] ama a novidade, e a novidade é veloz. A ino-cência meditativa e iluminada pela lentidão da espera não é mer-cadoria de boa aceitação: sequer é mercadoria. E no entanto talvez haja na sua ausência um Risco, um Perigo para a humanidade de hoje [...]. Que no pensamento não haja mais atenção ao Mistério,

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nem iluminação – apenas decifração de problemas e clareza gene-ralizada. (D’AMARAL, 2004, p. 265, grifos do autor)

Por isso mesmo que, em sua ânsia por tudo saber, a sociedade de hoje não percebe que os sentidos cada vez mais a escapam. Multiplicam-se as promessas de informação para todos os gostos e necessidades e com elas ampliam-se os canais de comunicação. Assim como os conteúdos, os meios tornam-se personalizados. Há uma profusão de estímulos, de dados, de mensagens, de informações. E aí cabe o seguinte questiona-mento de Nietzsche (1976, p. 136), ao qual ele mesmo responde: “[...], que método tem a natureza para dominar uma grande abundância? O único meio é digeri-la rapidamente, para rapidamente dela se desem-baraçar.”

Tal é a expressão de um mundo que inegavelmente não sofre por falta de informação, mas, sim, pelo seu excesso, conforme diagnostica Paiva (2003, p. 44), “pelo transbordamento de fórmulas vistas e revistas à exaustão e que, ao cabo de algum tempo, não querem dizer mais nada, simplesmente porque se torna impossível armazenar, e até mesmo sele-cionar, todo o volume em circulação”.

Por essa razão, pensando no jornalismo impresso e na excessiva frag-mentação de conteúdos – visando acompanhar a hipersegmentação di-gital e atender às demandas mais pessoais dos indivíduos –, torna-se fundamental educar os sentidos no intuito de restabelecer a continui-dade entre as diferentes editorias e os mais diversos suplementos e ca-dernos de assuntos afins. Trata-se, em última instância, de redescobrir o parentesco entre economia, política, esportes, ciência, cultura, cidade, meio ambiente, mundo... nas páginas dos jornais. Trata-se, ainda, de reaproximar as mais diversas facetas de um mesmo fato, muitas vezes apresentado por meio de um único viés específico, a depender da seção na qual determinada notícia for enquadrada. E, então, tal qual Nietzsche (1976, p. 166), perceber que

tudo o que vive necessita de um ambiente, de um envolvimento vaporoso. Se se privar deste envolvimento de nuvens, se se con-denar uma religião, uma arte ou um gênio a gravitar como um astro sem atmosfera, não deveremos ficar admirados por vê-los secar, endurecer e tornarem-se estéreis. Assim acontece com to-das as coisas, [...].

Afinal, é o próprio Nietzsche ([s.d.], p. 51, grifo do autor) quem diz: Não há nada fora do todo! Portanto, é preciso que se atente para o tipo

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de informação que tanto se tem produzido e feito circular na atualidade. E, de modo ainda mais contundente, para um problema extremamente contemporâneo, que merece atenção redobrada com a consolidação da comunicação digital e, sobre qual o experiente jornalista Dines (2009, p. 67) já alertava, há pouco mais de trinta anos:

A matéria de hoje [anos 1970-80] deve estar conectada – ainda que por uma ágil oração intercalada – com a matéria de ontem. O leitor não consegue guardar todos os detalhes da notícia, e, com a velocidade das informações, sua capacidade de fixação se dilui ainda mais. Por essa razão, o repórter deve adotar uma atitude referencial e paciente, embasando cada informação nova com a devida complementação, ainda que tal informação já tenha sido registrada em dias anteriores. O leitor não tem obrigação de ar-quivar as informações com o zelo do jornalista, e pode ser que ontem, quando pela primeira vez a notícia foi veiculada, ele não tenha lido o jornal.[...].

Quanto mais intensa for a periodicidade, mais intensa deve ser a preocupação com a ligação temporal.

Há quem diga que isso não constitui problema nos dias de hoje. Basta um link remetendo a outro, e a outro, e a outro, e todas as cone-xões são feitas. Além disso, se os leitores não conseguem arquivar tantas informações, a internet e suas ferramentas apresentam uma infindável capacidade de armazenamento de dados. Dessa forma, num mundo em que tudo se esvai, a tecnologia possibilita e amplia a capacidade de ar-mazenamento, levando, contudo, a ilusão de que se pode tudo capturar, armazenar e recuperar por meio das novas tecnologias.

A tecnologia é, pois, responsável por gerar uma sensação de instabi-lidade, num mundo em que tudo passa rapidamente (obsolescência), e, ao mesmo tempo, de estabilidade, por meio da ilusão de que tudo pode armazenar. De fato, como pondera Huyssen (2000, p. 20),

quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da explosão da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento e mais forte é a necessidade de es-quecer. Um ponto em questão é a distinção entre passados usá-veis e dados disponíveis.

Isto é, assim como acontece em relação às informações do presente, o mesmo vale para o passado, o qual, segundo o geógrafo Lowenthal

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(1998), nunca foi tão conhecido e, no entanto, é cada vez menos com-partilhado. Lowenthal cita a existência de “amontoados de fragmentos” dirigidos a públicos específicos – por exemplo, o abismo que se verifica em razão da expansão do conhecimento histórico. E fala do papel da alfabetização e da “força preservadora da palavra impressa” – às quais se poderiam acrescentar, hoje, os dispositivos digitais e as tecnologias de armazenamento –, como aquelas que permitiram a ampliação da histó-ria formal e o acúmulo de conhecimento sobre o passado:

Consequentemente, ninguém está apto a assimilar mais do que uma fração mínima dele. Hoje somos todos especialistas, desde o torcedor fanático de futebol, que conhece todas as classificações passadas de cada time, até os especialistas na vida dos santos ou na história da maiólica. Os historiadores profissionais, forçosa-mente, ignoram a maior parte das perspectivas do passado que é objeto de estudo de seus próprios colegas. (LOWENTHAL, 1998, p. 148)

E mais, conclui o autor, citando Burns (1983): “‘Podemos ignorá-la’, [...], ‘mas a terrível verdade é que tanto a fragmentação quanto a especialização excessiva degradaram a capacidade mental de numero-sos profissionais’” (LOWENTHAL, 1998, p. 147). Nessa mesma linha, Nietzsche (1976, p. 169) é bastante enfático ao criticar a produtividade da ciência e de seus “sábios” – palavras que, guardado o teor elitista do filósofo, podem aplicar-se aos adeptos do jornalismo segmentado, das notas curtas e do chamado “jornalismo em tempo real”, muito pratica-dos nos dias de hoje:

[...] cacarejam mais do que nunca, porque põem mais do que nunca. Os ovos são cada vez mais pequenos [sic], muito embora os livros sejam cada vez mais volumosos. O resultado final e o mais natural é a ‘vulgarização’ tão apreciada da ciência, [...], dado que se tem a desonra de retalhar para um ‘público heterogêneo’ a veste da ciência – neste momento, estamos a utilizar um vocabu-lário de alfaiate para designar uma actividade de alfaiate.

Diante de tudo isso, torna-se premente atentar para o tipo de jor-nalismo que se tem praticado na atualidade e, especialmente, para os efeitos da segmentação do noticiário, num ambiente em que “uma expli-cação qualquer é preferível à falta de explicação” (NIETZSCHE, [s.d.], p. 47). Ou seja, uma vez que o desconhecido comporta o perigo, o medo, a inquietude, necessita-se de uma causa que tranquilize, alivie e satisfaça o

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espírito, proporcionando, ainda, um sentimento de poder. Esse processo leva, segundo Nietzsche ([s.d.]), à fixação da causa como algo já conhe-cido, vivido, inscrito na memória, de modo que o novo, o imprevisto, fica excluído das causas possíveis.

Não se busca, portanto, somente descobrir uma explicação da cau-sa, mas sim se escolhe e se prefere uma espécie particular de explica-ções, aquela que dissipa mais rapidamente e com mais freqüência a impressão do estranho, do novo, do imprevisto – as explicações mais usuais. (NIETZSCHE, ([s.d.], p. 48, grifos do autor)

Isto é, seguindo esta lógica, ainda de acordo com o filósofo alemão, tem-se a predominância de um conjunto de causas, as quais, concentra-das em sistema – por que não, as editorias e cadernos dos jornais im-pressos? –, acabam por excluir outras causas e explicações possíveis. Eis a lógica da segmentação associada à vontade política de “reduzir Dois a Um” “– essa vontade de sistema que se tornou uma compulsão mo-derno-contemporânea – diz sempre e monotonamente o mesmo: Tudo, que é muitos, se já não pode ser Dois, deve ser Um” (D’AMARAL, 2004, p. 31, grifo do autor). Ou seja, segundo o autor, o mundo encontra-se em extremo risco pela eliminação das multiplicidades em sua vivacidade e força. Trata-se, afirma, do “Risco do Um”:

A planetarização do mundo, a globalização, a eficacíssima hegemo-nia da técnica; a tecnologia constituindo ao mesmo tempo, e num só, um sistema de compreensão do mundo como operação e um sistema de operação do mundo como virtualidade técnica; a uni-versal mediação que, sobretudo, mas não só, no modo dos meios de comunicação de massa expande, concentra, divide, recorta, simula um mundo, que já não é o referente da linguagem, mas sua sintaxe, mundo-gramática. (D’AMARAL, 2004, p. 102, grifo do autor)

Ainda assim, o autor aposta nas multiplicidades: “o mundo pode ser muitos”. No entanto, ele explica que, se os antigos puderam viver muito tempo com o mínimo de multiplicidade, “a eliminação das mul-tiplicidades é a maior ameaça ecológica imposta ao mundo contemporâneo” (D’AMARAL, 2004 p. 22, grifos do autor). O que, acredita-se, também se aplica ao noticiário, cujas notícias fechadas sobre si mesmas cons-tituem um dos maiores entraves à contextualização dos fatos sociais. Nesse caso, é sempre bom lembrar que, tal como Nietzsche ([s.d.], não se defende aqui a dissolução nas multiplicidades, mas a riqueza da expe-riência da diversidade.

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Logo, assim como o filósofo alemão, se é contra a unidade forjada pela razão, pelo princípio de identidade de todas as coisas. No entanto – e eis aqui talvez a maior contribuição do pensamento nietzschiano a esta reflexão –, é importante ressaltar que ser a favor da “explosão das multiplicidades”, do “pulular selvagem das multiplicidades”, não implica sair em defesa da fragmentação ad infinitum das diversas esferas da vida e do pensamento, como se toda e qualquer nova divisão representasse mais uma oportunidade de criação de sistemas, de exploração de nichos de mercado. Ao contrário, trata-se da defesa de uma natureza analítica, e não sintética; de não criar sistemas, de não fechar totalidades.

Journalism and effectiveness: segmentation in printed news

AbstractPrompted by technology improvement within a culture of efficacy, journalism celebrates a new temporality (ephemeral, transitory, immediate) by further adhering to the news segmentation practice. This paper aims to reexamine the dangerous paths re-sulting from the news overfragmentation practice as it follows in the steps of digital media hypersegmentation, aiming to provide increasingly more specialized content, albeit with serious damage to fact contextualization and news integrity itself.

Key words: Printed journalism. Segmentation. New technologies. Culture of effec-tiveness.

referênciasBAUMAN, Zygmunt. Vida de consumo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007 apud MORAES, Dênis de. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009.

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Enviado em 17 de abril de 2011. aceito em 15 de maio de 2011.