Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, JORNALISMO E SERVIÇO SOCIAL CURSO DE JORNALISMO CÉSAR RAYDAN DIAB JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS: Antagonismos do contemporâneo na narrativa da Agência Pública Monografia Mariana 2013

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Trabalho de Conclusão de Curso - Jornalismo UFOP 2013/2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, JORNALISMO E SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE JORNALISMO

CÉSAR RAYDAN DIAB

JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:

Antagonismos do contemporâneo na narrativa da Agência Pública

Monografia

Mariana

2013

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CÉSAR RAYDAN DIAB

JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:

Antagonismos do contemporâneo na narrativa da Agência Pública

Monografia apresentada ao curso de Jornalismo da

Universidade Federal de Ouro Preto como requisito

parcial para obtenção do título de Bacharel em

Jornalismo.

Orientador: Prof. Dr. Reges Schwaab

Mariana

2013

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AGRADECIMENTOS

À Ana, a máxima da minha vida.

Aos meus pais e meus irmãos, parâmetros da minha perseverança.

Ao Reges, meu professor e, sobretudo, grande amigo.

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“A maioria das pessoas são subjetivas a respeito de si

próprias e objetivas – algumas vezes terrivelmente objetivas

– a respeito dos outros. O importante é ser-se objetivo em

relação a si próprio e subjetivo em relação aos outros”.

Søren Kierkegaard

“No século 20 nós tentamos mudar o mundo de forma muito rápida,

chegou a hora de interpretá- lo de novo, de começar a pensar”.

Slavoj Zizek

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RESUMO

O presente texto propõe uma investigação em torno da reportagem em espaços

narrativos independentes, criados e mantidos por jornalistas no ambiente digital. Analisa um

conjunto de matérias publicadas no site da Agência Pública de jornalismo investigativo e que tratam de tensões sociais do Brasil. Para uma leitura mais apurada, são trabalhadas 11

reportagens ampliadas, produzidas em 2012, todas situadas na categoria Marcadas para morrer e que, no entendimento deste trabalho, compartilham das características foucaultianas da “reportagem de ideias”. Para produzir conhecimento a partir da análise da narrativa, a

investigação está ancorada na proposição reflexiva do filósofo Slavoj Zizek sobre os antagonismos do capitalismo atual. Além disso, problematiza a Agência Pública como lugar

não-hegemônico de jornalismo. No encontro das marcas textuais que caracterizam os modos de narrar e reconhecer o presente no espaço em questão, são discutidos alguns caminhos possíveis para o jornalismo. A cartografia da Pública permite encontrar um complexo mapa

sobre os antagonismos e emergências que caracterizam nosso tempo e os modos de narrá- lo.

Palavras-chave: narrativa; jornalismo; agência Pública, contemporâneo; novos apartheids.

ABSTRACT

This study presents an investigation about news reports in independent narrative spaces created and maintained by journalists in the digital environment . Examines a range of materials published on the agência Pública investigative journalism website and dealing with

social tensions of Brazil . For a more accurate reading , the paper enlarged 11 reports , produced in 2012, all located in category Marcadas para morrer and that the understanding of

this work , share the features of Foucault's "story ideas". To produce knowledge from the analysis of narrative, this research is anchored in the reflexive proposition of philosopher Slavoj Zizek about the antagonisms of contemporary capitalism . In addition , questions the

agência Pública as place non - hegemonic in journalism. In search of textual elements that characterize the ways of narrating and acknowledge the present in this place in question, we

discuss some possible ways for journalism. The cartography of Pública allows to find a map on the complex emergencies and antagonisms that characterize our time and ways to narrate it.

Keywords: narrative, journalism, Pública agency, contemporary, new apartheids.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Análise Contextual ...................................................................................... 45

Quadro 2 – Análise da Ordem ........................................................................................ 50

Quadro 3 – Análise dos Personagens ............................................................................. 55

Quadro 4 – Análise do Narrador ..................................................................................... 59

Quadro 5 – Análise da Recomposição da Intriga............................................................ 62

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 – Diagrama de Venn: Antagonismos do contemporâneo ........................... 64

Ilustração 2 – Diagrama de Venn: Agência Pública ....................................................... 64

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LISTA DE ANEXOS

Anexo I – Reportagens e site da Agência Pública .......................................................... 73

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11

2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGÔNICOS ........................................................... 14

2.1 Biogenética e propriedade intelectual ........................................................................ 22

2.2 Ecologia ..................................................................................................................... 22

2.3 Novos apartheids ....................................................................................................... 23

3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM ............................................... 26

3.1 Narrativas no jornalismo ............................................................................................ 30

3.2 Notas sobre a reportagem........................................................................................... 31

3.3 Do jornalismo digital ................................................................................................. 33

3.4 Agência Pública e seu engajamento no contemporâneo ............................................ 37

4 A PÚBLICA E AS TENSÕES DO CONTEMPORÂNEO ...................................... 40

4.1 Movimento analítico 1: Análise do contexto das reportagens ................................... 43

4.2 Movimento analítico 2: Análise da ordem narrativa................................................. 48

4.3 Movimento analítico 3: Análise do personagem ....................................................... 52

4.4 Movimento analítico 4: Análise do narrador e suas marcas textuais ......................... 57

4.5 Movimento analítico 5: Recomposição da intriga ..................................................... 61

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 66

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 70

ANEXOS .......................................................................................................................... 73

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1 INTRODUÇÃO

Na atualidade, frente a um cenário marcado pelos avanços das tecnologias da informação

somado a outras possibilidades de comunicação em meios digitais, o jornalismo se atualiza

periodicamente neste novo ambiente de plataformas da Web 2.0 (ou 3.0). Tomando o jornalismo

como prática social e discursiva, é importante dizer que a diversidade dos espaços pelos quais se

pode narrar uma história também abre fronteiras sobre como tecer os fatos. Se o jornalismo é o

lugar onde mais se fala sobre a vida do outro (RESENDE, 2009), é coerente dizer que a

contingência digital cria diferentes possibilidades de mobilizar os sujeitos, lugares e espaços ao

longo da narrativa, seja pela flexibilidade organizacional, pela interatividade/interação e/ou pelo

encurtamento das distâncias oferecido por estes meios.

Concomitantemente, a reportagem jornalística, pois produto desse jornalismo, também é

afetada pela abrangência digital. Ao conceito de reportagem, soma-se não apenas a idéia de uma

notícia mais aprofundada, mas também a ideia de um produto do jornalismo que interpreta, apura

o presente, molda sujeitos no texto e abre caminhos para a subjetividade. Também se agregam a

este termo derivações desse produto jornalístico, como é o caso das Reportagens de Ideias, que,

por sua vez, reúnem informações e vozes poucas vezes - ou raramente - privilegiadas no discurso

do jornalismo. Neste caminho para a reportagem digital, encontra-se o site Agência Pública de

jornalismo investigativo (http://apublica.org), criado em 2011 por iniciativas de jornalistas com o

propósito de produzir reportagens de cunho social acerca dos problemas que afligem o Brasil.

Sob essa ótica, salientando as potencialidades do cenário digital e a possibilidade de

averiguar outros espaços para a reportagem jornalística, o problema maior que norteou este

estudo foi pensar de que forma a narrativa jornalística da Pública elucida questões do Brasil. A

partir disso, percorrendo e salientando a abrangência do problema citado, tomamos o site

nacional de jornalismo investigativo Agência Pública como um lugar jornalístico a ser estudado

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e atuamos em suas reportagens com o objetivo de investigar que singula ridades de sua narrativa

nos permitem interpretar o mundo a partir os acontecimentos reportados.

Para chegarmos ao resultado, o presente estudo abarcou reflexões acerca da narrativa

jornalística e os usa na elaboração da metodologia capaz de entrar no corpus selecionado. Desse

modo, o estudo visou explorar o quê do contemporâneo nos é dado pela narrativa da Pública e

vice-versa, isto é, quais afetações da atualidade moldam sua narrativa. Com isso, consta tamos

que a Pública, através de sua narrativa, coloca em tensão antagonismos do contemporâneo –

problemas ecológicos, propriedade privada e novos apartheids - sob uma perspectiva dos

problemas do Brasil. Assim sendo, a amostra consiste em 11 reportagens da série

#MarcadasparaMorrer (publicadas no segundo período do ano de 2013), que tratam, a priori, de

sujeitos e suas experiências de vida, pois a intenção deste gesto investigativo é utilizar a

reportagem de ideias como um lugar receptível à representação do outro e das coisas vividas.

Parte das ideias desenvolvidas neste texto, bem como a escolha do objeto, são resultado

da nossa pesquisa de iniciação científica, PROBIC/FAPEMIG 2013/2014, intitulada Narrativas

jornalísticas e o reconhecimento das emergências do presente, sob orientação do Prof. Dr. Reges

Schwaab. Este projeto vai ao encontro de narrativas jornalísticas que possam produzir algum

tipo de ruptura sobre o contemporâneo e que se instalam em novos campos possíveis dentro do

cenário da comunicação digital.

Os estudos do campo jornalístico, usualmente, resgatam sua abrangência complexa ao

problematizar a práxis através de axiomas que tangem a tríade produção, circulação e recepção

(RESENDE, 2002, p. 2). Dentro dessas abordagens, campos interdisciplinares – Estudos

Culturais, Sociologia, Filosofia – contribuem para um alargamento das possibilidades de

interpretação e posicionamento diante das práticas midiáticas. Neste caminho, a pesquisa fez

trabalhar ideias do filósofo Slavoj Zizek (2009, 2010, 2011) com o objetivo de criar um eixo

teórico para compreensão da sociedade contemporânea e das questões sociopolíticas que

circundam nosso tempo. Em traços grossos, para Zizek, existem, hoje, pelo menos quatro

antagonismos inerentes ao capitalismo global:

a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a

chamada “propriedade intelectual”, as implicações socioéticas dos novos avanços

tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os

novos muros e favelas (ZIZEK, 2012, p. 88).

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Também, a fim de evitar amarras conceituais e ampliar o debate, resgatam-se

ponderações do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2002), que sugere uma leitura diferente

para as emergências que marcam o presente.

Acreditamos na importância deste estudo pela necessidade de problematizar a prática do

jornalismo no contemporâneo, sondar novos espaços para o jornalismo sem, no entanto,

negligenciar o desafio de tratar as relações tácitas que atravessam o nosso tempo. Advogamos,

também, pela pesquisa, tendo em vista que, nos estudos do campo, pouco se diz sobre a

reportagem, narrativa jornalística e as emergências do contemporâneo.

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2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGÔNICOS

Neste capítulo, abordaremos conceitos e reflexões teóricas que norteiam o estudo como

forma de tensionar o nosso objeto. Também, usaremos este aporte para investir no problema

central, pois, se nosso objetivo é tratar do mundo que nos cerca, acreditamos que teorias da

sociologia e filosofia contribuem para esta proposta de análise. Antes de adentrarmos nas

reflexões teóricas acerca do tempo atual, é necessário, sobretudo, citar alguns indicadores

sociais, políticos, econômicos e ambientais da atualidade como um suporte para situar os

problemas que alcançam escala global. Para isso, em primeira ordem, seguem estatísticas da

ONU (Organização das Nações Unidas) no âmbito mundial, que indicam o desenvolvimento

humano nos anos de 2012 e 2013, disponibilizadas nas categorias: saúde, fome, pobreza, água, e

meio ambiente. Posteriormente, traremos informações das mesmas categorias que retratam a

conjuntura atual do Brasil.

Hoje, a realidade nos apresenta um somatório de desastres acumulado por décadas de

injustiças onde as promessas modernas de paz, justiça, igualdade e liberdade permanecem

descumpridas ou o seu cumprimento resultou em efeitos infames (SANTOS, 2002, p.23). Apesar

dos avanços em 2012 no IDH mundial (Índice de Desenvolvimento Humano), a ONU ainda

estima que 1,57 bilhão de pessoas estão em estado de "pobreza multidimensional"1. Dentre os

30% do universo de pessoas que vivem na pobreza, mais de 800 milhões dormem famintas todos

os dias, dentre elas 300 milhões são crianças2. Entre elas, mais de 90% sofrem de subnutrição e

déficit de micronutrientes. Ainda segundo dados da Unric (Centro Regional de Informações das

Nações Unidas), a cada 3,6 segundos, uma pessoa morre de fome no mundo. Entretanto, fazendo

aqui uma comparação com o Brasil, se a área de produção de soja brasileira fosse substituída por

1 Disponível em: http://www.pnud.org.br/arquivos/FAQ-IPM.pdf. Acesso em: 16 nov. 2013

2 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumpro ject4.html Acesso em: 16 nov.

2013.

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outros alimentos como milho e feijão, daria para alimentar 40 milhões de pessoas famintas.

(SANTOS, 2002, p. 24).

Países africanos ainda ocupam posições perversas nos rankings de desenvolvimento

humano mundial, todavia nem sempre tais problemas existiram no continente africano. Para se

ter noção, em 1969, a África era um grande exportador de alimentos; hoje, o continente importa

um terço dos cereais de que precisa. Mais de 40% dos africanos não têm capacidade de obter

diariamente os alimentos suficientes. E os que produzem ainda pagam pelos fertilizantes

convencionais entre três e seis vezes mais do que o seu custo no mercado mundial.

No âmago dessa escassez de alimentos, a situação da saúde ainda é mais assombrosa.

Todos os anos morrem no mundo aproximadamente seis milhões de crianças por subnutrição

antes mesmo de completar cinco anos. O equivalente à população da cidade do Rio de Janeiro. A

cada 30 segundos, uma criança africana morre devido à malária3, isto é, mais de um milhão por

ano. Mais de 40% da população mundial carece de saneamento básico e mais de 1 bilhão

utilizam água não potável para consumo. Apesar do aumento significativo da população mundial,

a decrescente fertilidade dos solos, bem como a sua degradação, acarretou uma diminuição da

produção de alimentos per capita de 23% nos últimos 25 anos. Pensando nos efeitos da pobreza

nas mulheres, mais de 40% das africanas não têm acesso ao ensino básico. Uma mulher da áfrica

subsaariana4 tem uma possibilidade em 16 de morrer durante a gravidez ou o parto. Na América

do Norte, o risco é de 1 a cada 3.700 casos5

Apesar da centralidade desses dados em países antes chamados de terceiro mundo, a

Europa, considerada distante dos excessos do sistema global, sofre com alarmantes números de

desemprego, resultado da crise financeira de 2008 – a pior desde 1929 . Resultado, um período

de recessão econômica nos países capitalistas onde o antídoto para a crise é seu próprio veneno,

isto é, mais cortes de gastos, demissões e dívidas. A zona do Euro enfrenta, atualmente, índices

consideráveis de desemprego entre os jovens. O índice é de 62%. Dados da OIT (Organização

Internacional do Trabalho) apontam que, no mundo inteiro, ainda são necessárias 30,7 milhões

de vagas para que o emprego retome o nível pré-crise.

3 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.

2013. 4 Região do continente africano a sul do do Deserto do Saara, isto é, aos países que não fazem parte do norte da

África. 5 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.

2013.

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Tendo em vista esse panorama, não podemos negligenciar o fato de que o Brasil, em

comparação aos países mais frágeis ou em relação à sua história, obteve um considerado avanço

no índice de desenvolvimento humano desde o início deste século, principalmente no que se

refere aos indicadores de mortalidade infantil. Em 20 anos, o IDH das cidades brasileiras

avançou 47,5% e a mortalidade infantil caiu 77% entre 1990 e 2012. 6 Deve-se dizer que o país

mudou muito em pouco tempo.

Conforme outros índices, no entanto, vários problemas ainda persistem. Segundo o IBGE

de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a porcentagem de brasileiros que

possuem algum tipo de insegurança alimentar caiu de 34,9 para 30,2 entre 2004 e 2009 7.

Entretanto, aproximadamente 11,2 milhões de pessoas passam fome no país, com grande maioria

no Norte e Nordeste, mais que a população inteira de Portugal. Ainda é motivo de extrema

preocupação o crescimento das favelas nas cidades brasileiras. De acordo com o último censo do

IBGE, existem mais de 11 milhões de favelados no Brasil8. Outro índice que assusta é o número

de pessoas morando nas ruas. Só na capital São Paulo são 14.478 moradores de rua, dos quais

sete mil recebem assistência social e seis mil são desprovidos de qualquer auxílio do Estado.

Em âmbito geral, ainda de acordo com o IBGE, 58,4% dos brasileiros apresentaram pelo

menos um tipo de carência em quatro itens, como atraso educacional, qualidade dos domicílios,

acesso aos serviços básicos e acesso à seguridade social. Lançando um olhar para a questão

ambiental, as estatísticas mostram um futuro pouco confortável. O Brasil, pelo terceiro ano

seguindo, é o país que mais consome agrotóxicos do mundo. Em média, cada brasileiro consome

cinco quilos de agrotóxicos por ano. A fauna e flora brasileira têm mais de mil espécies

ameaçadas, 544 só na Mata Atlântica.9

De acordo com IBGE, conclui-se que o total de terras destinadas à agropecuária

representa um montante de 330 milhões de hectares, equivalente a 36% de todo o território

nacional do Brasil. Desses 330 milhões de hectares, cerca 141,9 milhões de hectares são

latifúndios. Acrescenta-se o fato: do total de terras do país, metade está em situação irregular.

6 Disponível em: http://www.pnud.org.br/ODM4.aspx. Acesso em: 16 nov. 2013.

7 Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=1763. Acesso em: 16

nov. 2013 8 Disponível em:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf. Acesso em

17 nov. 2013 9 Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2012/06/19/fauna-e-flo ra-no-brasil-tem-mais-de-mil-especies-

ameacadas-544-so-na-mata-at lantica/. Acesso em 17 nov. 2013

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Conclui-se, então, que a distribuição agrária no país ainda encontra-se de maneira bastante

concentrada e monopolizada. Não é a toa que o país ocupa a triste segunda pior distribuição de

renda segundo estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico).

Apesar de os dados e estatísticas serem ausentes de rostos, a enumeração de índices

fornece pistas em abundância para refletir e criticar o andamento da organização da nossa

sociedade, bem como questionar suas instituições e buscar soluções diferentes às já tentadas no

decorrer dos anos. Alguns são problemas que se tornaram históricos e, portanto, se repetem. Mas

é bom lembrar que se tais problemas são casuais, podem até se repetir, mas – parafraseando Karl

Marx (2011) - primeiro como tragédia, depois como farsa. Porém nosso objetivo aqui não é

especular soluções às questões acima, muito menos culpar os países de terceiro mundo e seus

líderes pela desordem mundial. O que queremos é expor um pouco mais a teia complexa que

circunda as emergências do presente e defender que o jornalismo - mais especificamente, a

reportagem – enquanto prática social é afetada por essas questões e, principalmente, o contrário.

Sob essa ótica de tencionar o contemporâneo, indo para além dos números, recorremos

aqui a dois pensadores que olham para tais descompassos, resgatam e problematizam a

conjuntura social, econômica e política dos tempos recentes. Pretendemos reunir apontamentos

teóricos a fim de sinalizar um mapa de conflitos que caracterizam o tempo presente.

Atento aos problemas listados, o sociólogo Boaventura Santos (2002) se questiona sobre

a razão de hoje ser tão difícil construir uma teoria crítica num mundo repleto de coisas a serem

criticadas. Santos levanta questões efêmeras do nosso milênio - com as quais justifica a

necessidade de uma reflexão acerca dos assuntos mundanos. São impasses existentes que geram

desassossegos, rompem a passividade do conformismo e criam ambientes propícios para teorizar

superações. O autor subdivide os problemas que nos causam desconfortos a partir de quatro

grandes promessas da modernidade, questões que dizem respeito à promessa da igualdade entre

os países, da liberdade do ser, da paz eterna, da dominação e equilíbrio do ecológico:

No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da

população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e

consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do

setor têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e

da América do Norte na realização das mes mas tarefas e com a mesma produtividade.

(...) (SANTOS, 2002, p. 23).

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A seguir, Santos questiona a promessa de paz e liberdade no sistema atual:

No que respeita à promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países

vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze

milhões de crianças trabalham em reg ime de cativeiro na Índia; a violência policial e

prisional atinge o paroxis mo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes raciais na

Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996 (...). (SANTOS,2002, p . 23).

Para o sociológo, a destruição do meio ambiente também denota uma falha da sociedade

em conviver em equilíbrio com a natureza

Promessa da dominação da natureza fo i cumprida de modo perverso sob a forma de

destruição da natureza e da crise ecológica. Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca

de um terço da sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da

biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídos

anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12

milhões de hectares da floresta amazônica. (SANTOS, 2002, p. 23).

Santos designa tais promessas descumpridas que enfrentamos como alimento para criação

de uma teoria crítica pós-moderna que não mais se ancora nas dicotomias da modernidade

determinação/contingência ou estrutura/ação, ou seja, no conhecimento crítico produzido na

modernidade . Para o autor, as ideias dessa nova teoria, para que dê conta da complexidade do

tempo atual, precisam validar a dinamicidade das estruturas e de suas ações bem como a

anulação das questões filosóficas entre determinação e indeterminação. Heranças, segundo autor,

da teórica crítica moderna. Santos sugere ainda que, para enfrentar os desencontros atuais,

devemos centrar na dualidade entre a ação conformista e a ação rebelde para elaborarmos um

conhecimento-emancipação – ligado à sociologia, essencialmente. A primeira refere-se ao

conformismo subjetivo que se cria na pluralidade e multiplicidade do capitalismo atual,

principalmente ao domínio do consumo, onde a substituição relativa de bens e serviços do

mercado se confunde com livres escolhas e autonomias do sujeito. Entretanto, essa própria

fronteira cria contexto para que a ação conformista passe para a segunda, a ação rebe lde, e

portanto, molde “subjetividades inconformistas e capazes de indignação” (SANTOS, 2002, p.

33). Mas dessa autonomia de escolhas e suas fragilidades em se concretizar através de ação, pode

emergir a fragilidade e facilidade de se indignar e transformar esse sentimento em um

conformismo alternativo. Assim, subjetividades rebeldes, motivadas pelo descrédito ancorado

nesta revolta, conformam-se perante as condições que as envolvem.

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Em outra corrente, embora não muito inversa, de se pensar – do ponto de vista filosófico

– o atual período e a problemática que subjaz o funcionamento do mundo nos dias atuais, o

filósofo Slavoj Zizek (2009, 2011, 2012) sugere que o endossamento de hoje do capitalismo se

deu após o sistema englobar os discursos contrários ao capital nos tempos de resistência (ênfase

na década de 60). Para além de Santos, onde a pluralidade e fragmentação do capitalismo criam

limites a serem rompidos pela “ação rebelde”, Zizek encontra na própria resistência ao capital o

triunfo do sistema. Em outras palavras, o capitalismo através de sua própria negação atualmente

é visto com forma política e econômica aceita globalmente, impassível de ser questionada. Para

ele, apesar da rejeição ao sistema, o capitalismo superou os protestos da modernidade adquirindo

um novo espírito que perpassa as estruturas e se instala nas atitudes e subje tividades do ser. Ou

seja, hoje “o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da

melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná- la mais justa, tolerante etc.”

(ZIZEK, 2009, p.2). Partindo dessa afirmação, ainda conforme o filósofo, a pergunta que se cria

é: “nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém

antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?” (ZIZEK, 2009, p. 2).

No âmago do conflito, Zizek, principalmente, situa quatro antagonismos que subjazem as

ambivalências de nosso tempo, ecologia, propriedade intelectual, impasses da biogenética e

novas formas de apartheid:

(...) o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus quatro

cavaleiros do Apocalipse são a crise ecológica, as conseqüências da revolução

biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual,

a luta vindoura por matéria -prima, comida e água) e o crescimento exp losivo das

divisões e exclusões sociais. (ZIZEK, 2012, p. 11).

O filósofo salienta, ainda, a diferença qualitativa entre os quatro antagonismos. A

biogenética, a propriedade intelectual e a ecologia tratam de questões da sobrevivência (física,

econômica e antropológica). Os novos apartheid tratam de uma questão de justiça, perpassam a

existência de todos os outros antagonismos e expõem as relações de classe entre eles. Co m isso,

em termos gerais, os problemas supracitados podem supor soluções viáveis, ainda que a

diferença entre as divisões sociais aumentem e novos muros sejam criados. Essa ideia será

melhor desenvolvida no decorrer do capítulo.

Zizek atribui a causa desses antagonismos não só à perpetuação do capitalismo, mas

também à proliferação global do consumo e da produção inesgotável de bens-materiais, bem

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como a apropriação individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera

pública ou privada. Esse somatório, acredita o filósofo, cria paradigmas dos bens comuns, tanto

do ecológico quanto do sociopolítico e fazem de nosso tempo um período imprescindível de

revisão do comportamento sobre como tratar do atual e seus devires.

Apesar da adaptabilidade do lucro no capitalismo – na qual uma ameaça catastrófica

poderia facilmente gerar investimentos e concorrência – o risco identificado hoje não se

enquadra em um patamar globalizante gerador de frutos futuros para o desenvolvimento e

fortalecimento do mercado, pois o capitalismo funciona em condições sociais claras em que se

subentende a confiança no mecanismo objetivo da mão invisível do mercado que, como uma

espécie de Artimanha da Razão, garante que a competição entre egoísmos individuais sirva ao

bem de todos (ZIZEK, 2011, p. 416-417). Ou seja, Zizek atribui aos diveres dos antagonismos a

possibilidade da degradação do capital, pois, segundo ele, vivemos uma mudança radical onde a

possibilidade de um evento catastrófico no horizonte ameaça, mais do que nunca, a lógica da

mão invisível e, sobretudo, a ideia salvaguarda de que “seja o que fazemos ou deixamos de fazer,

a história continuará” (2011, p. 417). Portanto, nas trilhas do filósofo, os antagonismos que

apontam no horizonte, traduzem situações efêmeras de nosso tempo por serem capazes de

produzirem uma queda irreversível do capitalismo ou, no mínino, alterar radicalmente sua lógica

de funcionamento. O terreno que subjaz tais ponderações messiânicas e criam credibilidade está

muito imbricado no funcionamento da ideologia no tempo presente. Por outras palavras, as ideias

de Zizek (2009, 2011) se sustentam em sua maneira de olhar e criticar a ideologia que nos

envolve. Embora o estudo da ideologia possua grande peso no trabalho do autor, traremos breves

inferências sobre o assunto, pois se trata de um exercício filosófico de fôlego e dar conta de toda

sua complexidade desviaria o foco do nosso estudo.

Zizek (2011) ressalta a ideia difundida hoje, de que vivemos em uma sociedade pós-

ideológica frutos do período pós-político, onde não estamos “mais presos ao fardo das grande

causas e das narrativas ideológicas” e, portanto, temos liberdade para fazermos nossas próprias

escolhas, sem interferir no jogo político, deixando que ele o faça por conta própria. Assim, não

precisamos mais nos agarrar a pensamentos críticos para interferimos no fluxo das coisas.

Entretanto, o filósofo defende o ponto de vista crítico a essa ideia. Para ele, podemos entender

esse pensamento conformista como sintoma de que “o poder não precisa mais de uma estrutura

ideológica consistente para legitimar seu domínio; pode se dar ao luxo de afirmar diretamente a

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21

verdade óbvia: a busca do lucro, a imposição violenta dos interesses econômicos.” (ZIZEK,

2011, p. 298). Sob essa ótica, defender o pós- ideológico aparece como uma crença ainda mais

ideológica. Isto é, dizer que ultrapassamos o poder da ideologia significa que estamos claramente

no centro dela, na ideologia da negação. Por exemplo, pensando nos antagonismo, nega-se a

existência catastrófica destes, ou mesmo que creiamos em seu devir destrutivo, agimos contra

tais ameaças – como a crise ecológica, por exemplo, e ainda assim defendemos que tais atos

precisam ser moderados, sem uma necessária revolução no sistema, pois no fim das contas, a

catástrofe de fato não acontecerá.

O autor investe nas relações precedentes aos antagonismos e que os tornam aceitáveis em

escala global. Para ele, o melhor modo de compreendermos como tais relações se propagam é

trabalhar e explorar a ideologia em voga. Por outras palavras, tensionado a ideologia que nos é

apresentada conseguimos mapear as razões pelas quais o capitalismo se impõe e se justifica na

contemporaneidade. Levantamos a noção de ideologia predominante hoje com aquilo que fixa,

ou naturaliza, através de um processo histórico, não apenas os problemas atuais, mas as suas

soluções para os mesmos. Portanto, “é ver as coisas como dinâmicas e parte de um processo

histórico” (ZIZEK , 2011, p. 401).

Entretanto, Zizek argumenta, se ver as coisas como plurais e fragmentadas faz parte da

ideologia hegemônica deveríamos, ao contrário, perguntar – desafiando as condições ideológicas

– o que há hoje que permance imóvel e constante. Em resposta a esse ponto, podemos ler o

capitalismo e suas atividades como parte dessa estabilidade. Mas o irônico aqui é o que se

perpétua como igual é o próprio meio pelo qual se fomentam as mudanças, pois a maior e mais

marcante característica do capitalismo é sua capacidade dinâmica de se adaptar a novos tempos,

como uma autorevolução constante (ZIZEK, 2011, p. 401). Para tanto, o filósofo não se precipita

ao dizer que, hoje, a ideologia hegemonia difunde a ideia de que o capitalismo liberal

democrático chegou para ficar e qualquer mudança – por mínima que seja – nesta lógica política

econômica soa como perversa e inalcancável. Neste aspecto, o capitalismo triunfa novamente em

suas formas de resistência.

Tomada essa problematização acerca do contemporâneo, enquadramos como sendo esse

o lugar (uma realidade marcada por fortes antagonismos globais) no qual o jornalismo da

Pública se instala. Intricado na possibilidade de enquadrar as emergências do presente em

antagonismos intrínsecos ao capitalismo, nesta etapa do texto, descrevemos cada um deles.

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22

2.1 Biogenética e Propriedade Intelectual

Os resultados sócioéticos dos novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos como a

biogenética colocam em xeque a relação com o aquilo que se entendia por natureza. A principal

conseqüência dos avanços científicos na biogenética é o fim do que entendemos por natureza.

Uma vez que sabemos as regras de sua construção, os organismos naturais são transformados em

objetos passíveis de manipulação. Além disso, as empresas de biogenética investem em

desenvolvimento de genes dos quais eram, ao menos em essência, à certos indivíduos e neste

instante o material já possui seu copyright e pertencem a terceiros (ZIZEK, 2009, p. 417).

O problema que gira em torno da propriedade privada atualmente, com ênfase na

propriedade intelectual, é descobrir como ganhar dinheiro na indústria digital a ponto da empresa

conseguir manter e gerir seus negócios. Se tratando dos direitos de uso, se parece até com a

questão das indústrias de biogenética.

2.2 Ecologia

No seio de um consumo global e da produção incontrolável de bens-materiais, bem

como a apropriação individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera

pública ou privada, nos deparamos com um somatório de delitos ambientais irreversíveis até

então. Extinção da fauna e flora, esgotamento de combustíveis fósseis, aglomeração de lixo

tóxico, emissão de gases poluentes, trazem ao nosso tempo um compromisso inescapável de

revisão do comportamento sobre como tratar a ecologia. Na possibilidade de ruptura com o

capitalismo e os novos lugares que redefinem a perspectiva revolucionária, a ecologia, então, se

coloca como um antagonismo intrínseco. Apesar da aceitação do sistema vigente, o filósofo

investiga nas brechas da reprodutibilidade complexa do capitalismo, lugares que redefinem a

capacidade de mudança nas atuais condições. Brechas essas geradas pelo próprio capitalismo em

sua “base substancial que medeia e gera os excessos (favelas, ameaças ecológicas etc.) que criam

locais de resistências” (ZIZEK, 2011, p. 415-416).

Apesar dos problemas ambientais, Zizek examina a maneira pela qual a causa sustentável

ecológica em voga tornou-se, hoje, uma forma de suprimir a existência da nocividade do capital

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e seus efeitos colaterais. Para ele não se resolve a questão ecológica através do desenvolvimento

sustentável ou com atitudes consideradas “verdes”. Ao contrário, o discurso de sustentabilidade

permite que as empresas poluidoras – legitimadas por nossa economia - transfiram sua culpa não

só aos consumidores de seus produtos, mas a todos. O filósofo ainda especula dizer –

parafraseando a famosa colocação de Karl Marx sobre a religião – que a ecologia é candidata a

ser um novo ópio do povo (2011), no sentido de remediar as massas pelos danos ambientais de

hoje e negligenciando, assim, os efeitos pouco modestos do sistema em outros âmbitos globais:

O mes mo truque ideológico é usado hoje pelas injunções que nos bombardeiam de

todos os lados para reciclar nosso lixo, jogar garrafas, jornais etc. em lixeiras separadas

e adequadas... Assim, culpa e responsabilidades são personalizadas, não é a organização

da economia que é culpada, mas nossa atitude subjetiva é que deve mudar. (ZIZEK,

2010, p. 36).

Subjacente a essa constatação, é possível identificar duas formas políticas distintas que

fazem uso do desequilíbrio ecológico e do suposto devir desastroso. Uma seria a política do

terror emancipatório; a outra, no entanto, diz respeito à política do medo. Esta utiliza a ecologia

com base no medo em sua forma mais crua, na qual a repulsa e o pavor pela catástrofe ambie ntal

e sua possibilidade de fim faria com que nós, indivíduos sociais, finalmente, encontrássemos a

solução para os problemas e agiríamos em prol da espécie humana. Isso seria ignorar o real

problema, segundo Zizek, pois tenta enganar com a potencial ameaça e se espera secretamente

que nada seja tão ruim quanto se teme. A primeira, mais utópica (no bom uso do termo),

encontra nas vias catastróficas uma possibilidade de mudança, uma política onde questões

ambientais não sejam apenas tratadas e resolvidas como problema de desenvolvimento

sustentável ou excesso de consumo, mas que o mau uso da natureza e sua degradação, em geral,

sejam impossíveis.

2.3 Novos apartheids

Falar de apartheid é tratar do conflito entre os indivíduos, instituições, leis e organizações

econômicas que oprimem aqueles que estão à margem da sociedade. Em outras palavras é uma

forma de segregação, latente ou disfarçada, na qual excluem certos indivíduos e os proíbem da

cidadania, dos direitos fundamentais do homem, em suma, do convívio social em todas as

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instâncias. Aqui, como já vimos, a relação incluído versus excluídos emerge nos interesses de

cada classe. Exemplos de novas formas de apartheid podem ser lidas no aumento das favelas ao

redor do mundo, ódio entre países e etnias, fortalecimento do racismo como problema de

tolerância10ascensão de partidos anti- imigrantes na Europa. Além disso, “novos muros surgir por

toda parte: entre Israel e Cisjordânia, em torno da União Européia, na fronteira entre Estados

Unidos e México e até no interior de Estados-nações.”(ZIZEK, 2009, p. 17-18)

(...) nenhum outro lugar as formas de apartheid são mais palpáveis do que nos ricos

Estados produtores de petróleo do Oriente Médio: Kuwait, Arábia Saudita, Dubai.

Escondidos nos subúrbios, muitas vezes por trás do muro, há dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes invisíveis, que fazem i trabalho sujo, da manutenção até a

construção civil, separados de suas famílias e sem nenhum priv ilég io. Isso claramente

acrescenta à situação um potencial explosivo que hoje é explorado pelos

fundamentalistas e deveria ser canalizado pela esquerda na luta contra a exploração e a

corrupção. Uma forma mais comum de exclusão inclusiva são as favelas, grandes áreas

não inseridas nos mecanis mo estatais de governança. Embora sejam sobretudo um

campo em que gangues e seiras religiosas disputem o controle, as favelas abrem espaço

para organizações políticas radicais, como na Índia, onde o movimento maoísta dos

naxalitas vem organizando um amplo espaço social alternativo. (ZIZEK, 2009, p. 11).

Sob essa perspectiva, este antagonismo se mostra como o mais elementar entre todos os

outros pois, sem a relação excluídos versus incluídos, extrai-se o viés subversivo dos outros

antagonismos, onde a ecologia se transforma em problema de desenvolvimento sustentável, a

propriedade intelectual em desafio jurídico complexo, e a biogenética em questão ética (ZIZEK,

2011). Sem a relação oprimidos e opressores, podemo persistir na ideia opressora de que se deve

lutar pelo meio ambiente culpando os excluídos poluidores, eliminando os agricultores pobres e

disciplinando os países de “Terceiro Mundo”. É possível, ainda, tratar das questões genéticas

sem entrar no âmbito de classes, pois com os avanços da manipulação de genes anuncia no

horizonte a possibilidade haver não somente uma distinção entre classes social, mas também

corporal. Pode-se continuar excluindo aqueles que precisam ter acesso ao conhecimento de

forma gratuita, em prol da propriedade privada do conhecimento.

Não se pode negar que a globalização encadeou um entrelaçamento entre as questões que

acabamos de ver por todo o mundo. Junto a isso, houve um generoso alargamento entre as

formas de olhar e agir para o problema, no entanto, conforme Santos (2007, p. 20), “nos falta um

conhecimento tão global como a globalização”.

10

Para Zizek (2011), tratar problemas de segregação pelas vias da tolerância é esconder as reais soluções para o

apartheid. Pois, segundo o filósofo, ao tratar a exclusão como problema de tolerância, retira-se da questão a culpa da

política, justiça e da econômia, o que, na verdade, são os eixos que realmente causam o problema.

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Esse breve percurso pelas adversidades do tempo pós-moderno nos possibilita ir atrás de

conteúdos – além da filosofia e sociologia – que produzem algum tipo de ruptura sobre o nosso

tempo e colocam em conflitos os diferentes interesses socioeconômicos. Ao fazerem isso,

trabalhamos na hipótese de que nesses conteúdos encontraremos informações capazes de mapear

lugares onde tais antagonismos ganham forma e projetam incertezas no futuro.

Pensando a reportagem como um espaço privilegiado de enunciação sobre os

acontecimentos do mundo, o estudo na próxima etapa desloca a problematização acerca dos

espaços complexos que medeiam nossa organização político-social para a atividade jornalista e

sua narrativa pensando qual é o lugar dessa atividade midiática no presente e como suas

narrativas operam nesse mundo pré-concebido, até então.

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3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM

O filósofo Walter Benjamin, em sua famosa crítica à obra de Leskov, foi pioneiro ao

problematizar e associar a narrativa com o jornalismo, chegando anunciar até que ela estava em

vias de extinção. Para o filósofo, narrar está essencialmente relacionado à tradição oral, e mesmo

que ela seja escrita, as melhores são as que mais se parecem com a fala. Ou seja, narra-se uma

história quando o narrador dialoga diretamente com o receptor e, nessa troca de vivência, a

imaginação de ambos seria exercitada, as experiências compartilhadas; e emoções, desejos e

valores seriam agregados à intriga. Assim, toda a grandeza da narrativa se mantém inalterada.

Neste aspecto, Benjamin compara o trabalho do narrador ao trabalho de um artesão – pois assim

como a narrativa, o artesão molda seu objeto a partir dos seus gostos e desejos para, ao final,

expor ao público o resultado esperado. Entretanto, o filósofo argumenta com pessimismo que as

novas formas lingüísticas – em meados do século 20 – vêm na contramão das narrativas. Ele

enfatiza que o romance, na ficção, estaria destruindo a narrativa, pois trancafiavam o poder da

experiência em relatos simplistas, cujo foco econômico e tecnicista excluía, na recepção, a

possibilidade do envolvimento com os efeitos da tradição oral.

É a experiência de que a arte de narrar está em v ias de extinção. São cada vez mais raras

as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre

alguma coisa, o embaraço se genraliza. É como se estivéssemos privados de uma

faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar

experiências. (BENJAMIN, 2000, p. 198).

Benjamin atribui este olhar pessimista sobre o futuro da narrativa às informações e

notícias que chegavam até ele. .

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em

histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de

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explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa,

e quase tudo está a serviço da informação [...] (2000, p. 207).

Na obra, A Modernidade e os Modernos, Benjamin investe mais uma vez contra o

jornalismo e em prol da narrativa, só que agora, sob outro ponto de vista:

Se a imprensa se propusesse agir de tal forma que o leitor pudesse apropriar-se das

informações como parte de sua experiência, não alcançaria, de forma alguma, seu

objetivo. Mas seu objetivo é outro, e o alcança. Seu propósito consiste em exclu ir,

rigorosamente, os acontecimentos do âmbito no qual poderiam atuar sobre a experiência

do leitor. Os princíp ios da informação jornalística (novidade, brevidade, inteligib ilidade

e sobretudo ausência de qualquer conexão entre notícias isoladas) contribuem para este

efeito, tanto como a paginação e o estilo lingüístico (Karl Kraus demonstrou infati-

gavelmente como, e até que ponto, o estilo lingüístico dos jornais paraliza a imaginação

dos leitores). (BENJAMIN, 2000, p. 36).

As reflexões de Benjamin sobre a narrativa são marcantes e possuem um lugar

considerável na narratologia e nos estudos da linguagem. No nosso Campo, atualmente, esse

ponto de vista negativo da narrativa não é mais adotado pelos estudiosos de jornalismo.

Devemos reconhecer e valorizar as reflexões de Benjamin, principalmente, sem negligenciar o

período histórico do qual o filósofo escrevia, no auge da sociedade industrial pós-guerras. Mas

defendemos aqui que essa ótica pessimista sobre a narrativa ainda ecoa no jornalismo tradicional,

principalmente, no estilo que presume brevidade e objetividade do texto. Em contrapartida, nos

deparamos, hoje, com produções jornalísticas que favorecem a conexão entre narrativa e

jornalismo. Por exemplo, a oferta de livros reportagens nos dias atuais surge, também, para

preencher essa lacuna entre a informação não-ficcional, o literário, e o relato histórico em busca

de uma boa história. Antes de aprofundarmos no tema, discutiremos em torno dos conceitos de

narrativa e, em seguida, faremos a ligação entre eles e o jornalismo.

Narrar não é apenas relatar acontecimentos experimentados em forma textual. Muito

além disso, narrar é “estabelecer um modo de compreensão do mundo, de configurar

experiências e realidades, de comunicar-se com o outros”. (LEAL, 2013, p. 3). É o meio que

encontramos para tornar a vida vivível (RESENDE, 2009) onde as atualizações do tempo são

organizadas, e, nas trilhas de Genette (1995), é o lugar em que se instalam modos, sujeitos e os

contextos. Narrativizar, então, é dar a conhecer um mundo caracterizado por suas ambivalências

e marcas do tempo que ultrapassa a memória do homem, intercalando experiências entre sujeitos

(BENJAMIN, 1994) e, sobretudo, atribuindo sentidos e valores a essas vivências, tendo na

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imaginação sua fonte criadora. Conforme Carvalho (2012) ao citar o filósofo Paul Ricoeur,

narrar:

[...] é tornar humano o tempo, assim como a forma por excelência de guardá-lo, de

preservá-lo, é um ato que não se limita às narrativas literárias ou históricas, assim como

se espraia para dimensões das atividades humanas que podem alcançar a arquitetura, o

cinema, as artes plásticas e uma série de outras ações dos homens, dentre elas, as

modalidades de contar os acontecimentos acionadas pelo jornalismo. (CARVALHO,

2012, p. 183).

Somando a essa definição, nas palavras de Ricoeur (1996, p. 70), “ela é uma obra de

síntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos, são reunidos sob a unidade temporal de

uma ação completa e total”. Em suma, se narrativa é tornar humano o tempo, vivível a vida,

configurar experiências e discernir pelo espírito, as narrativas no jornalismo exploram

acontecimentos que colocam o “mundo diante de si” (GROTH, 2001) elencando sujeitos no

tempo. Esta postura nos oferece uma realidade marcada por suas contradições, que são capazes

“de nos fazer ver, a partir da singularidade, as conexões mais amplas com o particular e com o

universal” (CARVALHO, 2012, p. 181).

Um elemento primordial na narrativa é a intriga. Ao contar uma história, nós elencamos

elementos no narrar que seguem uma lógica na qual colocamos em ordem os eventos, lugares e

sujeitos no mundo (LEAL, 2013). Por exemplo, quando contamos uma experiência nossa a

alguém, selecionamos fatores iniciais – como dia, hora, lugar – acrescentamos sujeitos e

características do mundo que predominaram nessa experiência, atribuindo valores, sentimentos,

profundidade e sensibilidades - mais para algumas coisas, menos para outras. Estabelecemos

também equilíbrios e desequilíbrios para chegarmos a um final escolhido. Nessa série de fatores

que influenciam na maneira como contamos uma história, a intriga, o tempo, a heterogeneidade,

a unidade, a ação e o tempo subjazem todos eles, ou seja, é através de tais elementos que

perpassam e dão coerência todos os outros modos de narrar (LEAL, 2013).

Se quisermos contar uma vivência sobre algum parente refugiado de guerra, no exemplo,

tratamos de elencar que tempo foi esse, de que modo as ações dos sujeitos aparecem na história,

a existência das diferentes situações e, fundamentalmente, a intriga dos fatos. Valoriza-se esta

última, pois narrar é compor intrigas e isso se dá quando os fatos são ditos, lembrados,

mencionados e articulados entre si, ou seja, agenciados. Dessa agenciação, escolhemos o que

entrará no narrativo com base em valores e o que deixará de ser dito, pois narrar implica uma

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síntese e não há espaço suficiente para totalizar a gama de informações que constituem num

acontecimento. Entretanto, entendemos a intriga não como sinônimo de trama, pois

caracterizamos esta como uma estrutura imóvel na narrativa, onde todos os outros elementos da

narrativa obedecem a sua lógica e, ela em si, faz sentido independentemente do tom narra tivo.

Em contrapartida, a idéia de intriga aqui defendida, conforma Ricouer, refere-se a um conceito

muito mais dinâmico, que depende da historia contada, dos modos e apelos que ela suscita, e que

emana situações mais complexas por tratar da demanda do meio e da interatividade entre

emissor/receptor. Por outras palavras, tratar da intriga não significa falar de um enredo específico

que funciona como um eixo imóvel aonde os elementos narrativos são organizados para se tornar

inteligível. A ideia aqui é pensar a intriga como um conceito móvel, passível de modificações a

partir dos elementos resgatados pela memória em relação ao conhecimento de mundo e ao

receptor, envolvendo questões culturais, éticas, sociais de um determinado sujeito e espaço

(LEAL, 2013).

Assim, a intriga sofre influências nas intercalações complexas que precedem o ato

narrativo, e no desenrolar da história, onde não há um fim em si mesmo. Ou seja, a narrativa não

se fecha à medida que seu fim se aproxima. Ela afeta, inclusive, a forma pela qual o ouvinte,

leitor agirá na sua vida, como ela atribui valores para as co isas e criam desejos. Voltando à

história do parente refugiado de guerra que precisou mudar de sua terra natal: após o fim da

narrativa onde as experiências desse sujeito foram intercaladas, efeitos poderão ser provocados

neste receptor sobre como ele concebe, a partir dessa história, o país desse personagem, a guerra

enfrentada por ele, e como ele olhará para este sujeito sempre que o mesmo for resgatado pela

memória. Isso vale não somente para o receptor da narrativa, mas também para o emissor que

organizou vivências em seu dizer, pois quem fala algo não fala apenas para o outro, mas também

para si próprio. Portanto, dessa forma, entende-se que a narrativa ecoa, também, nas

subjetividades daqueles que fazem parte da intriga e que a contam e recebem a história narrada.

Exploraremos brevemente, na seqüência, reflexões que cercam o conhecimento sobre a

narrativa no jornalismo para aplicar o seu conceito e criar subsídios para entrarmos no corpus

deste estudo, pois a metodologia aqui construída e defendida pretende, fundamentalmente,

analisar as narrativas jornalísticas da Agência Pública.

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3.1 Narrativas no Jornalismo

O jornalismo molda sua enunciação sob regras e valores sociais definidos por uma

conduta que dita práticas específicas de dizer e tratar do agora, porém sempre atreladas ao

interesse público. As pretensas normas do Campo, apóiam-se na crença na verdade, que pode ser

lida nas coordenadas epistemológicas e nas diretrizes formuladas por manuais de redação com as

quais padronizam o texto jornalístico e instrumentalizam maneiras de dizer. Autores como

Traquina (2002) e Lage (1985) exemplificam essas fórmulas e moldes sobre como um texto deve

se portar para ser considerado material jornalístico. Fatores como brevidade, objetividade,

impessoalidade são imprescindíveis neste modo de fazer jornalismo e reverberam não apenas na

construção da notícia, mas também nos demais gêneros como crônica, reportagem, etc.

Este viés não só acarretou na padronização de ser do texto, mas, sobretudo, implicou na

ideia de que outras formas, que rompem com esse modus operandi, apresentam fragilidades e são

passíveis de questionamento, como se o texto hegemônico estivesse isento de resistência. Aqui, o

argumento da defesa pelo padrão se consolida na noção da credibilidade, ou melhor, a vinculação

com o real. Não obstante, este lugar no qual se instala o fazer jornalístico, suas técnicas de

sondagem da verdade irredutiva, denota problemas justamente com aquilo que a neutralidade que

o Campo propõe, pois “na ânsia de respeitar o dever da verdade, deixamos de lado, muitas vezes,

o dever da imprensa que, no quadro atual, mais do que nunca, talvez seja o de apresentar as

várias versões do que se pretende que seja verdade” (RESENDE, 2012, p. 162). Vale lembrar

que a questão do ritmo veloz e o curto tempo para aprovação das matérias também são fatores

que interferem na apuração da notícia. Deste modo, a predominância da postura metódica no

conteúdo jornalístico cria narrativas enclausuradas, pois, de acordo com Resende, “partem do

princípio de que sua construção depende exclusivamente de normas/regras previamente

estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalístico, são capazes de explicar os

acontecimentos do mundo”.

Ainda de acordo com as normas padrão do jornalismo, existe a ideia de que pluralidade

de informação, vozes e lugares fazem parte da essência do conteúdo jornalístico. E isso não

exclui o texto não-hegemônico das diferentes possibilidades reconhecidas e aceitas pelo Campo.

Entretanto, se a pluralidade é permitida, acima de tudo, exigida, as formas pelas quais o

jornalismo se insere não precisam fechar as portas para o plural.

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Hoje, muita coisa é produzida – e considerada jornalismo – de forma transgressora, como

nos alerta Leal: “a informação jornalística neste século XXI vêm assumindo cada vez mais uma

postura que dê valor às formas criativas das reportagens e livros não ficcionais de jornalismo”

(2013, p. 6). Embutido nesse caminho, que cria terreno fértil para potencializar o tratamento da

informação, as reflexões a cerca da narrativa jornalística merecem atenção, pois partimos do

pressuposto que o real produto do jornalismo nos chega sob forma de narrativas (CARVALHO,

2012). Entendemos que olhando para o que há de narrativo neste devir, abrem-se trajetórias

possíveis para tencionar a energia dessas formas criativas do jornalismo que apontam no

presente.

Voltando aos conceitos protótipos do Campo, resgatamos aqui a idéia que tais fórmulas

surgem atreladas aos valores, tendência e normas adquiridas com o tempo pelo jornalismo e

defendido como correto e útil por parte da academia, das empresas midiáticas e manuais de

redação. Dessa angulação, o conceito de narrativa emerge nos estudos e manuais de técnicos

como uma das modalidades da prática jornalística, isto é, como uma ferramenta disponível ao

jornalista quando há necessidade de contar uma história mais a fundo ou detalhada. Porém, como

nos lembra Leal (2013), a narrativa tratada como técnica “perde seu vínculo com as realidades

histórico-culturais específicas [da história] que dão sentido à sua adoção e uso” (p. 25). Ainda

segundo Leal (2013), é como se a maneira de fazer estivesse mais atrelada aos interesses

daqueles que gerem o jornalismo, do que às necessidades e vontades do próprio trabalho do

repórter.

3.2 Notas sobre reportagem

O jornalismo é uma prática social que representa por meio da linguagem os

acontecimentos da vida por meio de notícias, dados, reportagens, etc. É coletar, redigir, averiguar

- utilizando artifícios lingüísticos próprios do Campo - interrupções factuais da sociedade

escolhidas pelos profissionais da área através de valores que determinam o que é produto

jornalístico. Esse juízo em escolher o que se transformará em notícia, informação e pauta é

consequência de um conjunto de pensamento, opiniões e costumes compartilhados por um grupo

de pessoas ou instituição que geram conformidades sobre assuntos, e que sempre são de seus

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interesses. Portanto, assegura-se que o jornalismo atua na sociedade e retira dela o seu propósito,

se sustenta e é sustentado pela ideologia com a qual o meio é interpelado

Além do cuidado e preocupação em selecionar os fatos a serem publicados, a projeção do

efeito transmitido pelo veículo também é importante nessa área específica dos meios. Efeito esse

que possui grande proximidade com crença de veracidade daquilo publicado por parte do

emissor. Em outras palavras, podemos dizer que a pretensão do jornalismo de narrar os “reais”

fatos (ou próximo ao real) de um acontecimento precisa de credibilidade para se afirmar como

um veículo de informação não-ficional. Isto é, o capital simbólico do jornalismo – o tratado que

o mantém existente - é a estrita relação com a verdade, pois sem tal concordância os assuntos

tratados pelas notícias, reportagens, informações não criam o efeito desejado pelo emissor.

No decorrer do século XX, o jornalismo também se modernizou, outros gêneros, além da

notícia, foram agregados - como a crônica, artigo, entrevista, resenhas, colunas e reportagens. A

mudança estilística sofrida significou, também, um alargamento das possibilidades de se fazer

jornalismo, tanto dos dispositivos, bem como das maneiras de tecer o real. Consequência disso,

o jornalismo faz trabalhar outras vertentes e se subdividiu em categorias que compartilham sua

essência: esportivo, investigativo, literário, internacional, sindical entre muito outros.

Concomitantemente, atenuaram pela linguagem outras realidades e formas de vida na qual

extrapolam fronteiras do padrões do campo. Podemos, aqui, salientar a reportagem como um dos

principais gêneros que não somente alargou os espaços da notícia, mas construiu um dizer

específico de tratar do contemporâneo (MAROCCO, 2009). Ela, muito mais que um

acontecimento, precisa de uma história para ser lida, ouvida, sentida e/ou visualizada.

O estudo da reportagem atravessa dois modos, um mais específico que, na área dos

gêneros, “se descola da notícia e se desdobra em um sem- fim de tipos” (MAROCCO, 2009, p.

173), e outro abriga as práticas e o modo de objetivação jornalística, nas técnicas de investigação

e coleta de dados, redação e estilo que supõe. (MAROCCO, 2009). Mais que uma apuração

detalhada sobre um fato, esse gênero trabalha rupturas com o cristalizado texto noticioso,

buscando em textos mais soltos brechas para a utilização de artifícios da literatura, do romance,

onde a profundidade da apuração alia-se ao uso de sujeitos e lugares sem, no entanto,

desvencilhar da pretensa relação com a verdade. Como bem lembrou Medina:

As linhas do tempo e do espaço se enriquecem: enquanto a notícia fixa o aqui, o já, o

acontecer, a grande reportagem abre o aqui num círculo amplo, reconstitui o já no antes

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e depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos

presente. Através da contemplação de fatos que situam ou explicam o fato nuclear (...) a

reportagem leva a um quadro interpretativo do fato. (...) Foge-se aí das fórmulas objetivas para formas subjetivas, particulares e artísticas. (...)

Nesse momento, só se diferencia do escritor de ficção pelo conteúdo informativo de sua

narração, por isso narração noticiosa (MEDINA, 1978, p. 134).

É certo dizer que essa ruptura entre reportagem e notícia nasce do desejo de buscar maior

aprofundamento no fato, de uma narrativa que dê conta das relações complexas que antecedem e

precedem o acontecimento. A possibilidade alcançável da reportagem em expandir normas

estilísticas do campo, criar narrativas que não somente sejam feitas de certezas, mas, também de

dúvidas, foram fortemente influenciadas pelas inquietações políticas e sociais dos anos 60

(FARO, 2013). Ou seja, não só pela forma a reportagem do newjournalism se consolidou, mas

sobretudo, das afetações culturais que permearam os processos jornalísticos, propriamente dito.

3.3 Do jornalismo digital

O jornalismo de internet é visto como uma recente prática no campo comparado a outros

suportes e sofre modificações aceleradas na medida em que os avanços da digitalização ganham

adesão e facilitam o acesso aos seus usuários. Gradim nos lembra que essas mudanças não vêm

de hoje, pois “as profissões jornalísticas, ligadas à produção de conteúdo noticioso difundido por

meios de comunicação de massas, sempre estiveram sujeitas a velozes mutações tecnológicas”

(2005, p. 81).

A Web 2.0, segunda geração de comunidades e serviços da internet, marcou esse espaço

singular de fazer jornalismo. Podemos citar como exemplo a não finitude do texto em páginas

na internet, o que permite um alargamento dos espaços de criação, bem como a interatividade,

isto é, a possibilidade do leitor de participar da construção das pautas, notícias, reportagens.

Somam-se a essas características do jornalismo para a Web diversos conceitos que ocupam um

importante lugar na modificação de sua prática: a customização de conteúdo – configuração de

produtos jornalísticos de acordo com interesses e desejos dos usuários –, hipertextualidade –

conectar ao texto links, replicações exteriores ao seu conteúdo – e multimidialidade –

convergência de imagem, som e texto na narrativa (MIELNICZUK, 2005). A adesão desses

Page 34: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

34

elementos ecoam, também, nos conceitos que denominam esta forma de se fazer jornalismo.

Como exemplo, alguns dos termos encontrados são ciberjornalismo, jornalismo eletrô nico,

jornalismo online, jornalismo digital, jornalismo hipertextual (MIELNICZUK, 1998). Utilizamos

aqui o termo jornalismo digital, pois entendermos que a abrangência desta definição e sua

capacidade de reunir todas as outras noções, flexibiliza o uso do conceito ao longo do trabalho.

Hoje, passados 30 anos da criação da Word Wide Web (www), considera-se o jornalismo

digital estando em sua terceira geração. Esta definição, como nos lembra Mielniczuk (2005, p.

2), refere-se ao “uso de recursos avançados da informática para o desenvolvimento os quais

permitem a exploração das características oferecidas pelo suporte” (PALACIOS, 2002). Isto é,

enquanto na segunda e primeira geração a internet era uma rede tímida, com pouco domínio por

parte do público, hoje, na terceira geração, encontramos uma grande expansão da web e no

número de usuários. Isso acarretou um alargamento das fronteiras do jornalismo digital cujos

leitores encontram-se disponíveis à tecnologia e à fácil acessibilidade através dos custos da

internet.

Na flexibilização do suporte nas narrativas jornalísticas, encontramos em blogs, redes

virtuais, sites independentes dizeres que diferem daqueles atrelados aos tradicionais meios de

comunicação de massa. É coerente dizer que dessa pluralidade impulsionada pela internet – do

conteúdo ao suporte - modifica também conceitos dos gêneros jornalísticos (SEABRA, 2002).

Uma dessas modificações se refere à modificação na pirâmide invertida - norma padrão do texto

jornalístico - para a vertical. Isto é, delega-se à pirâmide invertida uma postura de disposição das

informações no texto que obedece a lógica de “relevância”. Nessa ordem, aparecem nos

primeiros lugares as informações mais importantes – na base da pirâmide -, e as menos

relevantes ocupam um espaço secundário, terciário, aproximando-se do topo. O primeiro

parágrafo, chamado lead, então, é o que contém os informes de maior valor na matéria.

Faz parte do jornalismo digital construir notícias que tratam do instante, do tempo

imediato. Esse tratamento veloz da informação aparece atrelado a espaços textuais não finitos

proporcionado pelo suporte online. Diante disso, a postura textual descrita acima vem sendo

questionada por jornalistas e estudiosos da comunicação por não suprir as necessidades

demandadas pelo suporte. Parte desse descrédito advém da possibilidade do digital de abalar essa

estrutura ao propor uma ordem que desprivilegia a importância das informações, em detrimento

da quantidade de informação. Como sugere, Canavilhas:

Page 35: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

35

a quantidade (e variedade) de informação disponibilizada é a variável de referência, com

a notícia a desenvolver-se de um nível com menos informação para sucessivos níveis de

informação mais aprofundados e variados sobre o tema em análise (CANAVILHAS,

2005).

Essa nova arquitetura da informação precede a relevância qualitativa da pirâmide

invertida, optando pelos diferentes níveis de informação com os quais se efetivam pela

hipertextualidade. Dessa forma, podemos dizer que a pirâmide nas matérias do jornalismo digital

pode ser horizontalizada.

O jornalismo digital, apesar disso, conserva vários aspectos do jornalismo em outros

suportes, especialmente o impresso, pois limitações editoriais e temporais fizeram com que as

empresas utilizassem conteúdos já produzidos pelos meios tradicionais. Isso se reflete no grande

número de portais de notícias de empresas jornalísticas já consolidadas pelos formatos

tradicionais (impresso, rádio e televisão). Entretanto, a facilidade econômica e jurídica de criar

meios jornalísticos na Web flexibilizou caminhos para novos espaços de narrar, exclusivamente

digitais, geridas de maneira coletiva ou individual, motivadas pelos descontentamentos com o

jornalismo hegemônico e/ou pela possibilidade de independência administrativa, editorial. A

rigor, seus criadores moldam suas enunciações jornalísticas de acordo com seus anseios

respeitando, ou não, fundamentos do jornalismo cristalizados por sua história. Desse

desprendimento com a forma e conteúdo das mídias corporativas que a Web possibilita, nota-se

um maior participação de agentes engajados que tendem a privilegiar fatos negligenciados pelas

grandes agências de notícia (MATOS, 2011).

Vemos, também, uma implicação desse engajamento (para além do suporte) nas pautas

de cunho social, denunciativo e humano, às vezes negligenciadas pelos jornais de grande

circulação. Com outras palavras, assuntos que deixaram de ser noticiados por interesses

econômicos, empresariais ou por desconhecimento, pode ter voz nas mídias exclusivas digitais.

Assim, pode-se dizer que a mídia (hegemônica) não fala mais sozinha11.

Se falamos do jornalismo hegemônico, ou melhor, da dita grande mídia, é importante

criar um olhar crítico sob como os grandes jornais conduzem seus negócios no âmbito político e

econômico. Resgatamos, então, os interesses comerciais do jornalismo hegemônico. Oliveira

(2009), ao citar Biondi e Charão (2008), nos lembra da necessidade de expor o funcionamento

desse jornalismo:

11

Devo essa ideia à professora Hila Rodrigues.

Page 36: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

36

não se pode deixar de pensar nos grupos de míd ia como empresas, jogando o jog o do

capital, avançando e retrocedendo com os mercados, empresas que, claramente, lidam

com um capital simbólico que, certamente, mult iplica o seu peso nas economias e

políticas nacionais. (BIONDI E CHARÃO, 2008, p. 2).

Entretanto, nosso objetivo aqui não é problematizar as afetações, perversas ou não, do

mercado no jornalismo. De forma menos pretensiosa, o que buscamos nestas reflexões foi pensar

numa forma midiática onde tais influências não existem, ou pelo menos não de maneira tão

incrustada. Para tanto, o jornalismo digital vai ao encontro da chance em desvencilhar a relação

acima tratada. A própria alternativa que aponta no horizonte de jornalistas serem donos,

criadores e administradores de seu próprio veículo caminha na contramão da interferência

mercadológica no conteúdo das notícias.

Das breves reflexões feitas acerca do jornalismo digital, pontuam-se três primordiais para

o nosso estudo: (1) possui uma linguagem potencializada pelo suporte que, no entanto, conversa

práticas análogas ao jornalismo tradicional, (2) cria possibilidade de trabalhar pautas alternativas

aos padrões reiterando vozes silenciadas pela grande mídia, (3) dá condições de funcionamento

do veículo adversos à relação mercadológica contida nas empresas midiáticas. Essas três

reflexões recaem em nosso objeto de estudo, Agência Pública (http://apublica.org), por ser um

meio restrito à web onde se mesclam linguagens próprias do jornalismo digital, permitir material

jornalístico que trata de minorias e direitos humanos, e, sobretudo, ter sido crida e mantida

através de iniciativas de jornalistas (essas ideias serão melhor explicitadas no capítulo seguinte).

O método construído neste estudo abarcou as pontecialidades em torno da narrativa –

tornar o mundo inteligível, encadear sujeitos, lugares, sentimentos, valores ao longo da trama,

possibilidade de desencadear efeitos para além da história – ao olhar para as reportagens de

nosso objeto e refletir acerca delas. Antes de explicar de que maneira essa construção se deu,

iremos, na próxima etapa, descrevem mais detalhadamente nosso objeto e suas peculiaridades.

Esse movimento é importante para recompor onde essa narrativa vai entrar, entendendo essa

como uma característica de análise, pois, como vimos, a narrativa, ao criar sentido e tornar as

coisas inteligíveis, não se desvincula de seu lugar de materialização.

3.4 Agência Pública e seu engajamento no contemporâneo

Page 37: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

37

Impulsionados pela importância de se olhar para a narrativa, entendendo que sua

abrangência nos permite investigar características, modos e estratégias do texto jornalístico

propriamente dito, neste capítulo descrevemos as peculiaridades jornalística de nosso objeto,

Agência Pública.É importante sublinhar novamente que nossa expectativa nesta averiguação foi,

não só responder, mas problematizar de que forma a narrativa jornalística da Pública elucida as

questões do Brasil. Antes mesmo de expormos a metodologia construída, bem como a análise

feita, abarcaremos nos próximos parágrafos informações sobre o site de jornalismo, A Pública, e

seu funcionamento específico. Consideramos essa atenção ao meio citado, pois faz-se

fundamental alcançar os espaços que excedem o nosso corpus para facilitar o entendimento deste

estudo, visto que a Pública possui pouco tempo de existência e ainda é um meio desconhecido

por muitos.

Diante do horizonte onde há outro espaço para o jornalismo e, concomitantemente, uma

possível outra escrita do jornalismo, nosso objeto empírico se insere em um ambiente lido aqui

como um lugar diferenciado de fala, em especial, por se configurar em um espaço narrativo

digital criado por iniciativa de jornalistas, mantido por organizações independentes, com certa

autonomia econômica e editorial. Estes fatores são fundamentais para enquadrarmos aqui a

Agência Pública como parte do jornalismo não-hegemônico, pois, como veremos a seguir, se

trata de um espaço narrativo mantido, pensado e elaborado inteiramente por jornalistas.

A Agência Pública (http://apublica.org) foi criada em 2011 pelas jornalistas Marina

Amaral e Natalia Viana. É um projeto independente, financiado por fundações internacionais,

como Ford Foundantion e Open Society Foundantions, sem qualquer vinculação comercial e

sem interferência de seus financiadores no conteúdo produzido. Algumas de suas produções e

projetos são financiadas através do Catarse, (catarse.me) um site de financiamento coletivo que

agrega valores monetários através de doações online feitas por qualquer pessoa e instituição. A

Pública disponibiliza todo seu material jornalístico através da licença Creative Commons,

através da qual permite a reprodução do seu material - desde que seja citada (ao menos) a autoria

- por qualquer pessoa, instituição ou organização sendo ela jornalística ou não. Nos moldes de

uma agência de notícias, o site financia bolsas e microbolsas para elaboração de reportagens

investigativas por jornalistas residentes no Brasil. Soma-se a isso o fato de a Pública ser uma das

Page 38: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

38

principais reprodutoras das informações da organização, WikiLeaks12 na América Latina com as

quais também pautam diversas matérias confeccionadas pela Agência. Vale lembrar, ainda, que a

Pública opera em uma lógica com a qual permite ao leitor acessar todas as bases documentais

utilizadas nas reportagens. Assim,

[...] a veicu lação dessas bases constrói um caráter de transparência da agência, sendo

que o leitor pode ter acesso aos documentos utilizados na construção da reportagem,

além d isso, pode revisitá-los e ressignificá-los cruzando as informações com outros

contextos. O leitor torna-se aqui peça chave para a significação da narrativa

(SCHWAAB et al, 2013, p. 3).

Dos assuntos investigados pelo site, priorizam-se relatos que trazem desequilíbrios

sociais, ou até mesmo em lugares onde esse desequilíbrio e a ausência de direitos humanos são

permanentes e constantes (DIAB, 2013, p.8). Na descrição que a Pública faz de si, há muito

destes aspectos: “Nossa missão é produzir reportagens de fôlego pautadas pelo interesse público,

sobre as grandes questões do país do ponto de vista da população – visando ao fortalecimento do

direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos”.

A Pública trabalha dentro de uma lógica jornalística organizada por 22 categorias de

investigações indicadas por hashtag (#), que reúnem matérias dentro de uma mesma temática.

Do montante, destacam-se como de maior produção as investigações: #Wikileaks, que tratam das

informaçaões vazadas pelo site Wikileaks; #AmazôniaPública, sobre os diversos problemas que

afetam a floresta e sua população; #Microbolsas, destinada às produções de jornalistas

escolhidos, porém não vinculados a Pública; além da editoria especial #CopaPública, que tange

assuntos sociais e ambientais da Copa do Mundo 2014 no Brasil.

Encontram-se na plataforma, outros formatos e conteúdos que convergem nas

reportagens contidas no site. É recorrente a utilização de infográficos, fotografias e vídeos no

decorrer das matérias, sempre dialogando com o assunto relatado na investigação. Esse

tratamento da informação é nítido na categoria #JornalismoDeDados, espaço destinados

especialmente à interação do conteúdo com o leitor. Na aba, Documentos, localizam-se as bases

documentais utilizadas nas confecções das reportagens pela Agência. São arquivos digitalizados,

disponíveis ao acesso, mesclado entre dossiês, ações civis e públicas, documentos legais,

projetos, contratos, relatórios, depoimentos, etc.

12

WikiLeaks (http://wikileaks.org/ ) é uma organização sem fins lucrativos que publica na plataforma digital

postagens de fontes anônimas sobre informações sigilosas de governo e empresas.

Page 39: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

39

Um dos focos da Pública, se tratando de conteúdo, são as tensões ocorridas no norte do

Brasil, para ser específico, a floresta Amazônia e todo território que a envolve – os nove estados

brasileiros, Amazônia, Acre, Pará, Maranhão, Roraima, Amapá, Tocantins, Rondônia, Mato

Grosso. Os conflitos socioambientais dessa região estão contidos, mais abundantemente, na

categoria #AmazôniaPública, e também nas séries #GuaraniKaiowá, #CréditosDeCarbono,

#Futuro da Amazônia, #JornalismoDeDados, #BNDESnaAmazônia, #ViolênciaNaAmazônia e

#MarcadasParaMorrer. Esta última investigação e suas 11 reportagens - uma das mais recentes

feitas pela Agência, entrou neste estudo como nosso recorte metodológico a fim de observamos

seu grau narrativo para, a partir disso, mapearmos de que maneira as questões que afligem o

Brasil no presente são colocadas pela Pública.

Page 40: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

40

4 A PÚBLICA E AS TENSÕES DO CONTEMPORÂNEO

A intenção que impulsionou a pesquisa é averiguar de que forma a narrativa jornalística

da Pública elucida questões do Brasil. Essas questões, conforme vimos possuem aspectos de

dimensão global, bem como nacional, fundamentais para problematizarmos o mundo que nos é

dado pelo site. Por isso, o estudo tencionou as ideias de Slavoj Zizek acerca dos antagonismos da

atualidade, procurando expandir algumas fronteiras para pensar tais impasses. E se é através da

narrativa que o jornalismo torna o mundo compreensível, a construção do modo de alcançar esse

jornalismo na pesquisa tomou tal viés como norte.

A intenção foi construir um método coerente para olhar e tensionar a narrativa de nossa

amostra, sem fixar em alguma estrutura impermeável e inflexível, onde fossem permitidas as

nossas interpretações sob o recorte e que dessem conta da complexidade que os estudos da

narrativa demandam. Embora estes estudos estejam buscando formas de construir uma

metodologia de fato, ousamos utilizar conceitos e ponderações da narratologia - área que

pesquisa as narrativas, embora mais ligadas à literatura ficcional - e mesclar com a análise de

conteúdo do jornalismo, muito embora, trazendo especificidades da análise pragmática narrativa

desenvolvida por Luiz Gonzaga Motta (2005).

O procedimento adotado para a construção do método se deu através da disposição de

cinco perguntas sobre as reportagens que se desdobraram em movimentos de análise. A primeira

pergunta foi pensar que intriga que perpassa cada reportagem, a saber, em que situação, lugar,

cenário a trama aparece e qual antagonismo a reportagem suscita. Com isso, criamos o

movimento de análise (1) Análise do contexto. A segunda pergunta buscou responder de que

forma as informações das reportagens aparecem no texto e como as matérias são organizadas.

Portanto, desenvolvemos o movimento (2) disposição dos elementos no texto. Procurando saber

como os sujeitos são utilizados pelo autor, criamos o critério (3) análise dos personagens para

compreendermos modos de aparecimento de cada sujeito, sua valorização moral na versão, e o

espaço de voz dentro do texto. Também questionamos a maneira pela qual o narrador, por sua

vez, conduziu as reportagens. Assim, construímos o movimento (4) análise do narrador

Page 41: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

41

buscando suas intenções e marcas contidas na narrativa. De forma mais ampla que as demais

perguntas, tratamos de investigar quais temas em comum subjazem todas as reportagens. A partir

disso, questionamos o que desse tema tratado no interior das matérias pode ser trazido ao exterior

do jornalismo. Por outras palavras, averiguamos o que se pode dizer do contemporâneo a partir

da intriga relatada pela Pública. Desta forma, elaboramos o movimento (5) recomposição da

intriga. Nesta etapa, exclusivamente interpretativa e d issertativa, trouxemos a contribuição de

Zizek sobre o mundo pós-moderno (antagonismo do tempo presente) a fim de sondar em o quê

da visão do filósofo pode ser lido na intriga das reportagens.

Escolhemos como material empírico as reportagens da série de investigação

#MarcadasparaMorrer. A escolha se deu pela exclusividade dessas produções, que tratam de

sujeitos e suas histórias de vida, sem perder o tom jornalístico e denunciativo das informações.

Também foi critério selecionar um material que traduz a parte pelo todo, isto é, que representa as

peculiaridades do texto publicado na Pública e, além disso, o conteúdo com o qual nosso site

trabalha, ou seja, emergências sociais no contemporâneo brasileiro. Já que muito se fala da

atualidade neste estudo, queríamos trabalhar em cima de reportagens recentes que lançam luz às

situações efêmeras do presente. A partir dessas premissas, entramos nas reportagens que

constituem a série, a fim de perceber o que nelas servem de exemplo para se pensar como a

narrativa da Pública traduz os problemas efêmeros do contemporâneo.

No recorte para esse estudo, selecionamos 11 reportagens de fôlego da Pública, escritas

pelo repórter Ismael Machado – Agência Pública e Diário do Pará - relacionadas às histórias de

mulheres ameaçadas de morte por questões agrárias, ambientais e sociais, todas elas publicadas

neste ano. São mulheres do Estado do Pará, Norte do Brasil, que lutam por sua comunidade,

reforma agrária e pelas terras de sua família. Como consequência disso, convivem com a fa lta de

sossego ocasionado por conflitos constantes com latifundiários e estão à mercê da negligência

jurídica e política do Governo do Estado e da União. Como este estudo se pauta no

contemporâneo, faz-se coerente tratar de um material recente. Ainda no momento da escolha,

mapeamos textos em que novos apartheids são, essencialmente, lugares dimensionais que

conduzem as emergências e o terreno em que os conflitos sociais aparecem no tempo atual.

Foram trazidas para análise pautas que valorizam não somente o diferenciado uso das fontes,

mas também o interesse humano nas apurações e investigações do site. Nas onze reportagens da

Agência, analisaremos seu conteúdo, tendo como premissa que suas narrativas centralizam

Page 42: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

42

experiências do cotidiano das fontes e se apresentam como sendo aquelas mais sensíveis e

humanas, trazendo histórias pessoais de sujeitos subjacentes ao tom denunciativo do evento

perpassados por elas.

O recorte constitui: a) Essa é Maria Raimunda, líder do MST no Pará, ameaçada de

morte13; b) Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela vida14; c)“Tu sabes que se

a gente perder a terra, tu vais perder a vida15”; d) Graciete carrega na carne a bala dos

assassinos de seu pai16; e) Nicinha e o sindicato rural dirigido apenas por mulheres17; f) Cleude,

com medo, tenta pegar na mão de Deus18; g) Ameaçada desde 1996, Regina sonha viver em

paz19; h) Maria do Carmo luta por sua comunidade e pela floresta20; i) Maria Joel da Costa

herdou a luta e as ameaças de morte21; j) Laísa luta pela terra e pela memória da irmã22 e k)

Elas, marcadas para morrer23. Esta última reportagem entrará apenas no primeiro movimento de

análise, pois é uma descrição das reportagens que estariam por vir, e não uma reportagem que

trata dos personagens propriamente dito. Para tanto, enquadramos as outras dez reportagens em

cinco quadros de análise, um que engloba todo o material a fim de perceber as relações entre

elas, do que dizem e por qual viés, e outros quatro que tensionam cada reportagem isoladamente

recortando trechos, organizações, dizeres do texto e interpretações nossas perante o fragmento

estudado.

Em suma, o método de investigação que se deu pela construção de cinco movimentos

analíticos da narrativa jornalística, tratou de mapear as relações textuais da Pública com aquilo

que é exterior ao texto, isto é, nas trilhas da não finitude da narrativa, o mundo possível de ser

13

Disponível em: www.apublica.org/2013/07/essa-e-maria-raimunda-lider-mst-para-ameacada-de-morte/ Acesso

em: 20 nov. 2013. 14

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/presa-ameacada-de-morte-testemunha-ainda-teme-pela-vida/

Acesso em: 20 nov. 2013. 15

Disponível em: www.apublica.org/2013/07/tu-sabes-se-gente-perder-terra-tu-vais-perder-v ida/ Acesso em: 20

nov. 2013. 16

Disponível em: www.apublica.org/2013/07/graciete-carrega-na-carne-bala-dos-assassinos-de-seu-pai/ Acesso em:

20 nov. 2013. 17

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/nicinha-sindicato-rural-dirig ido-apenas-por-mulheres/ Acesso

em: 20 nov. 2013. 18

Disponível em: www.apublica.org/2013/07/cleude-medo-tenta-pegar-na-mao-de-deus/ Acesso em: 20 nov. 2013. 19

Disponível em: www.apublica.org/2013/07/regina-sonha-viver-em-paz/ Acesso em: 20 nov. 2013. 20

Disponível em: http://www.apublica.o rg/2013/07/maria-carmo-luta-pela-sua-comunidade-pela-floresta/ Acesso

em: 20 nov. 2013. 21

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-maria-joel-da-costa-herdou-luta-

ameacas-de-morte/ Acesso em: 20 nov. 2013. 22

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-

irma/ Acesso em 20 nov. 2013. 23

Disponível em; http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer/ Acesso em: 20 nov. 2013.

Page 43: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

43

mapeado e problematizado à luz da narrativa jornalística. Buscamos, assim, aquilo que a

narrativa diz sobre os dias atuais, no processo dinâmico comunicacional, muito embora sem

desprezar as relações textuais internas de qualquer narrativa (LEAL, 2013).

4.1 Movimento analítico 1: Análise do contexto das reportagens

Uma das principais funções do analista é recompor o contexto que medeia a construção,

estrutura e execução do material jornalístico a ser analisado. Notícias e reportagens, embora

pareçam ser destoantes entre si, específicas e isoladas, possuem, sim, um grau de similaridade,

seja no acontecimento ou nos assuntos que giram em torno do evento. Elas caracterizam-se num

dizer específico sobre a atualidade, moldam personagens, lugares e dizeres conforme uma trama,

conflito num texto futuro.

Voltando às peculiaridades da narrativa, vemos que a intriga tem papel fundamental no

funcionamento de qualquer ato narrativo. Diferentemente da trama, a intriga não aparece

cristalizada e imóvel dentro da narrativa. Ela é imóvel e permuta conforme os efeitos relacionais

emissor/receptor. À vista disso, este quadro cujo objetivo é reconstruir a intriga que perpassa no

conteúdo analisado, abre caminho para nossa interpretação acerca dos caminhos possíveis da

narrativa para os antagonismos que Zizek nos apresenta. Para tanto, destinamos uma categoria,

dentre as sete, para verificar quais antagonismos são tratados em cada reportagem de nosso

recorte metodológico. As demais trataram de recompor a intriga que subjaz o montante

escolhido. Quem narra tem algum propósito ao narrar, nenhuma narrativa é ingênua. A análise

deve, portanto, compreender as estratégias e intenções textuais do narrador, por um lado, e o

reconhecimento (ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do receptor, por outro

lado. (MOTTA, 2005)

Explicaremos cada uma delas:

● Trama Relatada: Como visto no capítulo sobre as narrativas, trama não é sinônimo de

intriga. Essa refere-se a uma categoria fixa, que existe independente das potencialidades

pré e pós narrativo. A trama se refere ao sentido das ações narradas pelo autor em cada

acontecimento.

● Cenário: Refere-se aos locais que são tratados na trama. Aqui, trata-se mais

especificamente das regiões brasileiras trazidas pelas reportagens

Page 44: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

44

● Sujeitos/ Vozes: Menos que uma análise dos personagens, esta categoria trata quem são

os sujeitos que fazem parte do acontecimento e suas funções na versão.

● Conflitos: Nessa parte, tratamos de colocar em oposição os interesses embutidos no

material jornalístico, pois, conforme Motta (2005), há sempre pelo menos dois lados em

confronto em quase todo acontecimento jornalístico. Há sempre interesses contraditórios,

algo que se rompe a partir de algum equilíbrio ou estabilidade anterior e que gera tensão.

● Partes envolvidas: Dialogando com os conflitos, essa categoria descreve quais são as

partes envolvidas na história como um todo. Isto é, quais são os sujeitos que fazem parte

das tensões, que lugares eles ocupam sem entrar nos interesses individuais de cada grupo.

● Entidades envolvidas: Semelhante à categoria acima descrita, enumeramos aqui quais

são as instituições, órgãos, entidades, comissões que aparecem na narrativa jornalística. O

objetivo é ampliar o entendimento das relações que medeiam o conflito.

● Antagonismos: Como dito, essa etapa traduz a nossa interpretação sob o contexto das

reportagens. Buscamos inferir quais dos quatro antagonismos (biogenética, propriedade

privada, ecologia, apartheid) são latentes e provocam tensões em cada reportagem

relatada.

Page 45: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

45

Trama

RelatadaCenários

Sujeitos/

VozesConflitos

Partes

envolvidasEntidades Envolvidas Antagonismos

29.07.13 Essa é

Maria Raimunda,

líder do MST no

Pará, ameaçada de

morte

Líder do MST

sofre ameaça

de morte por

latifundiário

Marabá,

sudoeste do

Pará

Assentamento

do MST

Maria

Raimunda

Ocupações de terras

e assentamentos do

MST (Pará) X

Latifundiáriose

pistoleiros

Ativistas, policiais,

fazendeiros

MST, Polícia Militar do Pará,

Governo do Pará

Apatheid, Propriedade

Privada

29.07.13 Presa e

ameaçada de morte,

testemunha ainda

teme pela vida

Agricultora

ameaçada de

morte por

testemunho em

julgamento

Santana do

Araguaia,

Fazenda Nobel

Késsia Furtado ;

Nádia Pinho, a

principal líder

dos acampados

Ocupações e

acampamentos em

terras x

Fazendeiros;

Depoimento judicial

moradores ,

pistoleiros,

fazendeiros,

Sindicato dos

trabalhadores rurais

Ouvidoria Agrária; Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de

Santana do Araguaia

Apartheid, Propriedade

Privada

29.07.13 “Tu sabes

que se a gente

perder a terra, tu

vais perder a vida”

Lider rural

convive com

ameaças

constantes de

morte

Santana do

araguaia,

Fazenda Ouro

Verde, olônia

Verde-Bandeira

Nádia Pinho

Silva, Líder

rural;

Posseiros, liderança

rural x fazendeiros,

pistoleiros

lider rural, posseiros,

pistoreiros,

fazendeiros, ouvidor,

polícia

PM de Belém; Ass. dos

Trabalhadores Sem Terra Brasil

Novo, Comissão Pastoral da Terra;

Sindicato dos Trab. Rurais de

Santana do Araguaia; Incra

Apartheid, Ecologia,

Propriedade Privada

22.07.13 Graciete

carrega na carne a

bala dos assassinos

de seu pai

Filha de líder

social, sofre

com bala

alojada no

corpo que teria

como destino o

pai.

Breu Branco –

Pará

Graciete

Machado

Fazendeiros X

ocupações agrárias

no Pará

Posseiros, ativista,

fazendeiros Incra

Apartheid,

Propriedade Privada

22.07.13 Nicinha e o

sindicato rural

dirigido apenas por

mulheres

Líder de

Sindicato Rural

e ameaças

sofridas ao

longo do

mandato. Rondon do Pará

Zuldemir dos

Santos de

Jesus, a

‘Nicinha’,

Sindicalistas Rurais

X Fazendeiros

Lideranças

Sindicalistas Rurais,

fazendeiros,

pistoleiros

Programa Nacional de Proteção aos

Defensores dos Direitos Humanos;

Sindicato dos Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais de Rondon do Pará, Propriedade Privada

22.07.13 Cleude,

com medo, tenta

pegar na mão de

Deus

Líder de

ocupação,

Cleude sofre

ameça de

morte

Itupiranga,

municípios ao

sudeste do Pará.

Fazendas da

União:

Bandeirantes e

Potiguar

Cleude

Conceição;

Maria da Ajuda

70 famílias de

ocupações agrárias

X Fazendeiros

Lideranças Rurais X

Fazendeiros

Incra, Justiça Federal de

Marabá, MST

Apartheid, Ecologia,

Propriedade Privada

15.07.13 Ameaçada

desde 1996, Regina

sonha viver em paz

Ameaçada de

Morte, Líder

Sindical convive

com o perigo

Eldorado dos

Carajás

Maria Regina

Gonçalves

Famílias x

Fazendeiros que

apropriam terra da

reforma agrária

Famílias, Sindicato

Rural X Fazendeiros,

Latinfundiários

Sindicato dos Trabalhadores

e Trabalhadoras Rurais de

Eldorado dos Carajás, Incra

Ecologia, Propriedade

Privada

15.07.13 Maria do

Carmo luta por sua

comunidade e pela

floresta

Ameaçada de morte,

Du Carmo trabalha

para sobrevivência de

sua comunidade com

a preservação da

floresta amazônica

Comunidade

Lago Verde,

conhecida como

Transcametá,

em Baião.

Maria do

Carmo Pinheiro

Chaves, a “Du

Carmo”

Preservação da

floresta Amazônica

X Destruição da

floresta e Tráfico de

Drogas

Caçadores,

Traficantes X

Comunidades da

floresta

Ministro da Pesca, Associação

dos Pequenos Produtores e

Agricultura Familiar de Lago

Verde

Ecologia, Propriedade

Privada

Laísa luta pela terra

e pela memória da

irmã

08.07.13

Após

absolvição de

mandante da

morte da Irmã,

Laísa sofre

ameaças

Marabá, cidade

no sudeste do

Pará

Laísa Santos

Sampaio

Assentamentos

familiares x

Fazendeiros

Famílias rurais,

madereiras,

carvoeiros,

proprietários de

terra

Grupo de Trabalhadores

Extrativistas; Universidade de

São Paulo; Ibama

Apartheid, Ecologia,

Propriedade Privada

Re

po

rtagen

s

An

alisadas

Análise de Contexto das Reportagens

Federação dos Trabalhadores na

Agricultura (Fetagri) em Marabá,

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Rondon do Pará, Comissão Pastoral da

Terra ,Programa de Defensores de

Direitos Humanos, Organização dos

Estados Americanos (OEA), Comissão

Interamericana de Direitos Humanos da

OEA, ONG Justiça Global

Após morte do

marido, Joelma

coordena

sindicato dos

trabalhadores e

corre risco de

vida

Ativistas, posseiros,

pistoleiros, trabalho

escravo, sindicalistas

Famlías sem terra X

Donos de Terra

Maria Joel Dias

da Costa,

conhecida

pelos amigos

como Joelma

Ecologia, Propriedade

Privada

08.07.13 Maria Joel da

Costa herdou a luta e

as ameaças de morteRondon do Pará,

Page 46: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

46

O movimento de leitura feito sugere que, do montante de reportagens analisadas, todas

tratam exclusivamente das histórias de mulheres brasileiras residentes no Estado do Pará. Elas

estão atreladas, em algum grau, com questões ambientais e agrárias do Estado e arredores da

Floresta Amazônica. Também foi constatado em todas elas, as frequentes ameaças de morte

sofrida por essas mulheres que possuem pouca (ou nenhuma) terra. Ameaças feitas por parte dos

fazendeiros e latifundiários resultado de insatisfações com as lutas dos movimentos ligados a

ocupações de terra, assentamentos agrários, movimentos sociais da terra e sindicatos rurais. Vale

lembrar que as reportagens não tratam apenas da relação ameaçada versus ameaçadores. É

decorrente nas reportagens, o apelo do narrador em envolver entidades e instituições – ligadas à

terra, ou não – na construção da história.

A luta dessas mulheres pela sobrevivência não traz somente interesses pessoais e egoístas

em torno da distribuição agrária. Muito diferente disso, vemos que é comum suas lutas estarem

relacionadas às famílias de outras pessoas, bem como trabalhadores que compartilham dos

problemas agrários brasileiros. Na reportagem Maria do Carmo luta por sua comunidade e pela

floresta, a personagem na versão luta contra qualquer dano causado à floresta e, fazendo isso,

briga pela integridade de sua comunidade. Isso transparece o deslocamento do problema em

contexto para interesses que excedem aos tratados pelas mulheres das reportagens. Por exemplo,

reivindicar e combater pelo meio ambiente traduz um movimento que perpassa à lógica da

propriedade privada. Quando Maria do Carmo decide proteger a floresta, ela não reivindica um

espaço particular seu, mas sim um lugar de conservação que é de todos.

Voltado aos resultados, o quadro nos disse que apesar das reportagens tratarem de

assuntos distintos, muitas delas se entrecruzam em alguns pontos. Como é o caso das

reportagens: Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela vida e Tu sabes que se a

gente perder a terra, tu vais perder a vida. Uma reportagem relaciona-se com a outra, pois

tratam do mesmo caso, na mesma região, envolvendo as mesmas pessoas, entretanto sob pontos

de vistas e angulações diferentes. No que se diz respeito ao uso das vozes, o quadro aqui é

enfático: todas as reportagens trazem relatos das mulheres ameaçadas de morte. Não houve lugar

para o outro lado em conflito, ou seja, dos fazendeiros e latifundiários. A postura assumida pelo

narrador foi considerar exclusivamente as histórias dessas mulheres. Essa constatação dialoga

bastante com a intenção das matérias descrita pelo seu autor na reportagem que abre a

sequências: Elas, marcadas para morrer.

Page 47: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

47

Nos assentamentos, acampamentos, periferias dos municípios, nas entidades sindicais,

uma dezena de mulheres segue sua vida, à espera do assassino, cumprindo pena forçada.

É a história delas que a Pública, em parceria com o jornal Diário do Pará, conta a partir

dessa semana (MACHADO,2013).24

Percebemos também que em todas elas tiveram o nome inteiramente publicado, isto é,

recusaram o anonimato. Na última aba, estabelecemos critérios específicos para relacionar os

antagonismos do tempo atual, com as emergências evocadas nas reportagens. No que tange aos

problemas da propriedade privada, buscamos sondar espaços onde a relação posse de terra x sem

terra perpassa por toda trama reportada. Com isso, constatamos que é unânime o número de

reportagens que se enquadra nesse patamar. Tratar de sem terras e latifundiários é

intrinsecamente abordar as questões de propriedade. Por outro dizer, é tratar de uns poucos com

muito e muitos com tão pouco. No que se diz à ecologia, e de acordo com Zizek, este

antagonismo suscita os danos irreversíveis causados pela destruição da fauna e flora mundial.

Fazendo uma ponte com o conteúdo analisado, seis reportagens tratam de cenários na região da

Floresta Amazônica. A relação ecológica faz-se mais presente na reportagem Maria do Carmo

luta por sua comunidade e pela floresta, onde o conflito subjacente é a relação destruidores

versus defensores da natureza.

O antagonismo Apartheid, entre todos, é o mais inteligível. Portanto, com o exame das

reportagens, podemos enfatizar na dualidade excluídos X incluídos as condições latentes nas

matérias. Isto é, no âmago do contexto, as ameaças de morte traduzem os interesses entre os

donos de grandes fazendas e os que lutam por um pedaço de terra e, sobretudo, pela vida. Zizek

(2011) nos lembrou da importância deste antagonismo, pois, segundo o filósofo, ele subjaz todos

os outros. Nessa ótica, o mesmo ocorre nas reportagens acima. Inerente aos conflitos ecológicos

e da propriedade privada, estão os de pano de fundo, os conflitos que segregam os sem terras dos

proprietários. As frequentes ameaças e assassinatos pelos excluídos respaldam o ódio dos

privilegiados, e a estes resta a última alternativa para manter seus interesses, eliminar os mais

frágeis e justos. Também é válido ressaltar o teor dos direitos humanos nas matérias, bem como a

ausência de interesse do Estado e da Justiça nas relações conflitantes no norte do país.

24

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer/ Acesso em: 20 de nov. 2013

Page 48: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

48

4.2 Movimento analítico 2: Análise da ordem narrativa

Neste segundo quadro, analisamos as estratégias do narrador no texto e como a ordem

das informações foram configuradas, dividindo em quais parágrafos na estrutura da matéria as

características narrativas aparecem. Partindo da premissa de que quem narra, narra com algum

propósito e nenhuma narrativa é ingênua, (MOTTA) é de grande importância analisar quais as

intenções em organizar sua narrativa e transformá-la num produto jornalístico. Dispomos nove

categorias para averiguar quais estruturas narrativas são utilizadas, se o texto da lógica

(RESENDE, 2002) do campo foi seguido ou rompido e, também, apontar com que intensidade o

autor conduz no texto as tensões, expectativas, vitórias e punições intrínsecos a qualquer história

a ser contada. Vale lembrar que apesar de serem categorias distintas, nada impede que uma ou

mais apareçam no mesmo parágrafo do texto. A punição e o clímax, por exemplo, podem vir

juntas no primeiro parágrafo da narrativa jornalística. O que queremos com esse quadro é chamar

a atenção sobre quais estruturas textuais são obedecidas no texto, sublinhar suas ordens e

aparecimentos, pensando nas maneiras pelas quais as reportagens rompem com o modelo de

escrita padrão da reportagem

● Equilíbrio: Refere-se a uma situação estável na história. Geralmente no equilíbrio,

histórias de vida são articuladas juntamente com descrições de cenários, personagens,

tempo e espaço.

● Complicação: Designa-se ao período de rompimento com o equilíbrio na história. Aqui,

os conflitos começam a ser recompostos e os problemas que subjazem o acontecimento

são expostos.

● Clímax: Nesta etapa, o conflito em questão atinge seu ponto máximo. Segundo Motta

(2005), na narrativa jornalística é normal a história começar pelo seu clímax, um corte

repentino in media res na situação estável.

● Punição: Sob a ótica do conflito, refere-se a alguma das partes prejudicadas. Uma

condenação, castigo, repreensão que afeta algum personagem na história.

● Resolução: Retomando o conflito central da situação, aqui veremos se o acontecimento

foi resolvido, ao menos para alguma das partes da tensão.

● Vitória: Designa, no fim do conflito, o que se ganhou ou o que se perdeu com o

desenrolar da história.

Page 49: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

49

● Recompensa: Apesar de estar atrelada à vitória, na recompensa não importa o resultado

final do conflito. O que se atenta é o que a parte envolvida ganhou ao longo da trama,

mesmo se no desfecho, a situação seja desfavorável.

● Desfecho: Trata-se de averiguar se a história teve fim. Isto é, houve ou não finalização do

conflito pelas partes envolvidas.

Page 50: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

50

Equilíbrio Complicação Clímax Resolução Vitória Desfecho Punição

29.07.13 Essa é

Maria Raimunda,

líder do MST no

Pará, ameaçada de

morte

Quarto ao oitavo

parágrafo

Primeiro e

terceiro

parágrafo

Terceiro

parágrafo

Último

parágrafo

Décimo, décimo

primeiro e

penúltimo

parágrafo

29.07.13 Presa e

ameaçada de morte,

testemunha ainda

teme pela vida

Quarto

Segundo, nono

parágrafo,

décimo

Primeiro

parágrafo

Quinto, sexto e

sétimo parágrafoÚltimo parágrafo

Terceiro, décimo

primeiro

29.07.13 “Tu sabes

que se a gente

perder a terra, tu

vais perder a vida”

Segundo parágrafoQuinto, nono,

décimo

Primeiro

parágrafoQuarto parágrafo Último parágrafo

Sexto, sétimo,

oitavo

22.07.13 Graciete

carrega na carne a

bala dos assassinos

de seu pai

TerceiroQuarto, sexto,

sétimo, oitavo

Primeiro e

segundo

parágrafo

Penúltimo e

antepenúltimo

Quinto, nono,

décimo

22.07.13 Nicinha e o

sindicato rural

dirigido apenas por

mulheres

Quarto, décimo

primeiro

Primeiro,

terceiro, quinto,

parágrafo

Segundo e

último (rever)Penúltimo

Sexto, sétimo,

oitavo, nono

22.07.13 Cleude,

com medo, tenta

pegar na mão de

Deus

Primeiro, segundo

quarto,quinto,

sétimo, oitavo,

novo, décimo,

décimo primeiro

Terceiro

parágrafoÚltimo parágrafo Sexto

15.07.13 Ameaçada

desde 1996, Regina

sonha viver em paz

Oitavo ao décimo

terceiro, décimo

sexto

Primeiro,

terceiro, quarto,

quinto, sexto,

sétimo

Segundo , Último e penúltimo

parágrafo

décimo quarto,

quinto, décimo

dezoito, nono,

vigéssimo

15.07.13 Maria do

Carmo luta por sua

comunidade e pela

floresta

Segundo, terceiro

Quarto, sexto,

décimo, décimo

primeiro, décimo

segundo

Primeiro Último parágrafo Sétimo, Oitavo

Laísa luta pela terra

e pela memória da

irmã

08.07.13

Primeiro

Terceiro, quarto,

sexto, sétimo,

oitavo,

penúltimo

Segundo Último

quinto, nono ,

décimo, décimo

primeiro

C

a

s

o

c

u

r

i

o

s

Ocorrem diversas punições ao longo da trama distribuida desigualmente pelo

Segundo

Primeiro, décimo

sexto, décimo

sétimo, vigéssimo

terceiro (diretor

sindicato),

vigéssimo quarto

08.07.13 Maria Joel da

Costa herdou a luta e

as ameaças de morte

Primeiro, nono,

décimo, décimo

primeiro, décimo

segundo, décimo

terceiro, décimo

quarto, décimo

quinto, vigésimo,

vigéssimo

segundo

Re

po

rtagen

s

An

alisadas

Último

Terceiro,

quarto,quinto,

sexto, sétimo,

oitavo,

Vigéssimo

primeiro

Décimo

oitavo,

décimo nono

Análise da ordem e estratégias narrativas

Recompensa

Oitavo parágrafo

Terceiro parágrafo

Décimo

Quinto, nono

Vigéssimo quinto,

vigéssimo sexto

Page 51: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

51

É comum no jornalismo o clímax das notícias aparecer no primeiro parágrafo. Assim,

cumpre-se a lógica do lead cujo objetivo é ordenar as informações mais importantes logo no

primeiro parágrafo do texto. Entretanto, conforme nossa análise, em seis histórias o clímax deixa

de aparecer no lead, criando um descompasso na ordem de importância das informações. Pode-

se dizer, então que o narrador mescla o lead, ou se desfaz dele, propondo uma ruptura com a

forma concebível de se iniciar o texto jornalístico. Como exemplo, vejamos os dois primeiros

parágrafos do trecho a seguir da reportagem, Cleude, com medo, tenta pegar na mão de deus:

Não é fácil encontrar Cleude Conceição. É preciso enfrentar a poeira e os buracos da

rodovia Transamazônica, saindo de Marabá e indo em d ireção a Itupiranga, municíp ios

ao sudeste do Pará. São 27 km vencidos com dificu ldade até se alcançar um travessão

que liga à localidade de Jovem Creane. A partir daí são mais 22 km em uma estradinha

de terra estreita e tortuosa, marcada por pequenas pontes. Quando a reportagem chega ao pequeno vilarejo, quase quatro horas depois de ter saído

de Marabá, precisa esperar ainda por Conceição, que está pescando. Ela chega uma hora

mais tarde, trazendo duas pequenas piranhas e um surubim, resultado da pescaria. Aos 30

anos, é uma mulher magra, pequena, negra, de natureza desconfiada. (MACHADO,

2013).

O recorte da reportagem indica o abandono do ritmo que se espera de um relato

jornalístico, no qual as informações mais relevantes são dispostas nos primeiros parágrafos, isto

é, no lead. O leitor, para se ambientar ao texto precisa fazer o caminho temporal da apuração

jornalística, no qual as informações aparecem de acordo com a sequência linear do fato (DIAB,

2013, documento eletrônico).

Do desfecho, todas apresentam um fim no relato do personagem, mas é primordial

sublinhar que a trama continua em aberto, isto é, o futuro das mulheres ameaçadas de morte é

incerto. É como se a reportagem terminasse com questões e dúvidas. Vejamos a seguir o trecho

final da mesma reportagem.

Junto ao pai, Cleude Conceição passou a sofrer ameaças. “Já veio recado dizendo que

todas as lideranças estavam na mira”, revela. O processo que vai definir a situação das

fazendas ainda está correndo na Justiça. Por três vezes os agricultores ocuparam a terra e

foram despejados. “Uns desistem, outros não. A gente continua lutando. É difícil e eu

vou dizer, não tem como pegar na mão de Deus quando a bala manda recado”.

(MACHADO,2013)

Aqui, fica evidente como o desfecho da reportagem não apresenta um final permanente

da história. A última frase, um relato da personagem, indica a continuidade da trama no tempo e,

dessa forma, os resultados da intriga permanecem em aberto. Isto é, na reportagem, não há um

Page 52: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

52

fim em si mesma, o que é comum em reportagens. Mas, o que chama atenção é a ausência total

das instituições – Estado, Justiça, Polícia - em procurar resolver, ou ao menos dar explicações

sobre os casos.

Ainda sobre a ordem das reportagens, enxergamos um período de equilíbrio em nove das

dez matérias observadas. Eles estão, em maioria, nos primeiros parágrafos ou após as

complicações, pois elas estão intimamente ligadas às histórias de vida e descrições iniciais do

personagem relatado. Dessa análise da estrutura narrativa, podemos ver as sucessivas

intercalações entre punição e complicação ao longo da história. Essa alternância temática entre

parágrafos nos levou a ver as inúmeras punições pertencentes a uma mesma história acarretadas

por complicações diversas, entretanto, com poucos sinais de recompensas e vitórias (esta aparece

apenas três vezes). E quando falamos em vitória, estamos dizendo do lado que sofre ameaças, e

não daqueles que a versão nos mostra como criminosos. As tímidas recompensas percebidas

surgem após punições na trama, porém, outras punições são agregadas no decorrer do enredo.

4.3 Movimento analítico 3: Análise do personagem

Após a reconstrução da intriga e da ordem narrativa, obtemos o reconhecimento dos

episódios, as afetações neles implicadas e as tensões dispostas pelo narrador. Seria uma atitude

incoerente deixar de olhar para aqueles que funcionam como substância para a narrativa

jornalística, as fontes. Nessa específica série de reportagens, toda construção do narrador existe

de acordo com a história de vida do personagem retratado. Ou seja, o depoimento da fonte é o

lugar essencial que dá lucidez à vida narrada pelo repórter.

Em sequência, construímos outro quadro cuja pesquisa gira em torno das personagens

que fazem parte da história. Este movimento visa reconhecer que atores são esses e quais funções

eles realizam na progressão dos episódios. (MOTTA, 2005). Desse modo, buscou-se encontrar

marcas narrativas nas quais caracterizam os personagens, seus papéis, se possuem lugares de fala

ou não, a distribuição dentro do texto e qual atribuição moral lhe foi concedida no desenrolar do

conflito. Este quadro foi fundamental para investigarmos como aparecem os sujeitos nas

reportagens da Pública, quando o faz e de que modo. Para isso, escolhemos seis categorias:

● Personagens: Refere-se à forma pela qual o personagem foi nomeado pelo

narrador. Se foi pelo primeiro nome, sobrenome, apelido.

Page 53: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

53

● Função na História: Esta etapa julga a capacidade de atuação que os

personagens adquiriram na história, ou melhor, o seu papel no episódio. Por

exemplo, protagonista, coadjuvante, doadores, etc.

● Atribuição Moral e suas implicações: Desenvolvemos aqui um critério que

julga moralmente como o personagem é narrado. Como vítima, vilão, anti herói,

herói. Zizek (2012) sugere que se fôssemos pensar numa fórmula para enquadrar

a figura do herói moderno seria pensar naquele ser que sabe muito bem o que está

fazendo, e, ainda assim, ele o faz. O irônico é que a mesma fórmula também serve

para o vilão. Por exemplo, pensando num assassino, ele sabe muito bem o que

está fazendo (matar pessoas), e, ainda assim, ele o faz. Porém, o que difere a

fórmula heróica para a infame é o propósito de cada ação. O herói ainda o faz

pelo bem comum, por altruísmo, e o vilão por interesses pessoais, egoístas.

Portanto, julgamos através dessa reflexão quem são os heróis (agem, sabem o

porquê de seus atos e fazem pelo bem comum), os vilões (agem por ganância) e

os anti heróis (atuam por vingança e por motivos egoístas) das histórias contadas.

● Relato próprio de história de vida: Aplica-se nas reportagens onde o

personagem se torna fonte e obtém voz na reportagem, e conta sua história. Este

ponto foi interessante para explorarmos quais são as vozes nas matérias, qual é o

espaço para elas, e qual seu valor, pensando a narrativa em geral.

● Distribuição na narrativa: Apesar de esse ponto ser semelhante ao da Função na

História, o que nos chamou atenção aqui é observar o grau de aparecimento que

cada personagem tem no episódio, pois assim conseguimos mapear que estratégia

levou o narrador a distribuir tais personagens na narrativa

● História de vida pelo narrador: Esta categoria foi pensada para apresentar a

maneira pela qual o narrador apresenta o personagem em seu texto e quais

instruções ele nos dá para conhecermos tais sujeitos.

É nítido no quadro abaixo o tratamento detalhado concedido aos personagens pelo

narrador. A ênfase nas histórias de vida das fontes, bem como a atribuição moral na narrativa,

traduz a intenção e o cuidado das reportagens em transmitir as experiências dos entrevistados.

Aqui, também procuramos selecionar trechos que trazem falas próprias das fontes, o que nos

Page 54: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

54

permite averiguar que, nessas matérias, o autor narra uma história a partir de ocasos narrados

pelo personagem. Ou seja, uma narrativa que se sobrepõem a uma outra.

Page 55: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

55

PersonagensFunção na

HistóriaAtribuição moral e suas

implicaçõesRelato de histórias de vida

Distribuiçã

o na

narrativa

Maria Raimunda Protagonista

Vítima. Alvo de

perseguições e ameaças

de morte após liderança

MST

“Quem mandava era o Exército. Toda

a cidade era vigiada...” “Minha opção

de vida foi escolher entre o medo de

calar e a defesa dos direitos

humanos(...) ” “Dávamos apoio a essas

manifestações e aos poucos (...)” 10 vezes

Ana Júlia Carepa

e Daniel Dantas Coadjuvantes uma vez cada

Késsia Furtado de

Araújo Protagonista

Vítima, agiu sem saber as

consequencias

“No dia em que cheguei ela foi falar

comigo (...) “Fui nascida e criada na

roça” “Casei com 18 anos e trabalhei

uns dez anos como vaqueira”...

“Fiquei lá durante seis meses (...) 13 vezes

Nádia Pinho Coaduvante Acusada

Razoável,

3vzs

Nádia Pinho Protagonista Herói

“Isso gerou polêmica porque fomos

acusados de descumprir o acordo” A

mulher do fazendeiro, Regina, me

disse assim: ‘Tu sabes que se a gente

perder a terra vais perder a vida’,”

“Um homem chamado Amaral me

parou uma 20 vezes

Amaral, Joçao

Moreira, Gersino

Filho, Seu Pedro,

Késsia Furtado

Coadjunvante

s

Amaral e João Moreira;

Gerson Filho - ajudante,

Seu pedro - anti-heró (se

vingou por interesses

pessoais) , Késsia -

Vítima Uma vez cada

Graciete de

Souza Machado Protagonista Vítima

“Meu pai não era líder de nada, mas

sempre tentava ajudar as pessoas,

porque tinha esse dom de não

suportar injustiça. Naqueles dias os

pistoleiros mataram três pessoas e o

meu pai se revoltava contra isso” 13 vezes

Francisco

Macedo - pai de

Graciete, José -

marido de

Graciete

Coadjunvante

s

Francisco - Héroi.

Embora sabendo do

perigo de seus atos, agiu

em prol de um bem

comum, mesmo que isso

custasse sua vida 6 vezes

22.07.13 Nicinha e o

sindicato rural

dirigido apenas por

mulheresZuldemir dos

Santos de Jesus,

Nicinha Protagonistas

“Essa pessoa já avisou que assim que

sair da prisão vai fazer um massacre

no sindicato” (...) Viver com

tranqüilidade é algo que desaprendi a

fazer”. Unanime

Cleude Conceição Protagonista

Herói. Embora sabendo

do perigo de seus atos,

agiu em prol de um bem

comum

“Na época era muito tiro, os capangas

dos fazendeiros andavam armados,

intimidando. Já pensou, a pessoa

matar o outro? Dentro de casa, nós

fica é com medo pelo tanto que já

sofremos”, Unanime

Marcos Gomes -

Pai de Cleude Coadjunvante 3 vezes

Maria Regina Gonçalves Protagonista Herói

“Eu tinha dez anos e ajudava meu pai

na roça. Era um sofrimento, não tinha

água, minha mãe chorava quando eu

pedia comida e não tinha. Eu não tinha

o sentimento de entender” 5 vezes

Arnaldo Delcídio

Ferreira e freira

Adelaide Molinari Coadjuvantes Vítimas 1 vez

15.07.13 Maria do

Carmo luta por sua

comunidade e pela

florestaMaria do Carmo

Pinheiro Chaves,

a “Du Carmo” Protagonista Herói

“No início eram 36 famílias, mas eu

defini que tem de ter disciplina, tem

de querer preservar, tem de buscar se

organizar. Restaram, por enquanto, 20

famílias, mas se não tiver o espírito de

preservar não pode ficar” 12 vezes

Laísa Santos

Sampaio

José Cláudio

Ribeiro da Silva e

Maria do Espírito

Santo da Silva,

Coadjuvantes Herói 9 vezes

José Rodrigues

Moreira, Alberto

Lopes do

Nascimento e o

ajudante dele

Lindonjonson

Silva Rocha

Coadjuvantes Vilões 1 vez

José Maria Gomes

Sampaio, o Zé Rondon, Coadjuvante Vítima 1 vez

Maria Joel Dias

da Costa,

Protagonista Herói

“Um barro vermelho que eu não

conhecia, cheio de poeira, muitas

casas de madeira, cobertas não por

telhas, mas por madeira também. 17 vezes

Sindicalista José

Dutra da Costa, o

“Dezinho” Coadjuvante Vítima 15 vezesDécio José

Barroso Nunes e

Lourival de Sousa

Costa Coadjuvantes Vilões 3 vezes Ygoismar

Mariano e

Rogério Dias Coadjuvantes Ajudantes dos Vilões 1 vez

Análise Dos Personagens

15.07.13 Ameaçada

desde 1996, Regina

sonha viver em pazArnaldo Delcídio Ferreira (...), foi

executado por pistoleiros. (...)ele havia

se ferido e sobrevivido a um ataque de

pistoleiros no Terminal Rodoviário de

Eldorado, que acabou atingindo

mortalmente a freira Adelaide Molinari.

Maria Joel chegou a Rondon do Pará em

1984, vinda do Maranhão, em mais uma

trajetória típica de migrantes atraídos

pelas promessas de terras abundantes

no Pará e de trabalho; Desde os anos 70

os governos federal e estadual atraíam

direta e indiretamente esses migrantes.

Quatro anos antes, seus pais haviam se (...) assassinado em Rondon do Pará em

21 de novembro de 2000, a mando,

segundo as investigações policiais, dos

fazendeiros Décio José Barroso Nunes e

Nasceu no Ceará em um lugar árido e

sem perspectivas conhecido como

‘Cabeça de Onça’. Quando a fome

roncou mais alto, a família dela se

mudou para um lugarejo chamado Barra

do Corda, no Maranhão, em março de

1973.

Em 2010 Maria do Carmo adquiriu um

lote em Lago Verde e as coisas

começaram a mudar. Procurou apoio

para a comunidade no Sindicato dos

Trabalhadores da Agricultura Familiar

(Sintraf) e acabou se tornando uma

liderança sindical.

Reportagens

Analisadas

Ela nasceu em Marabá, mas cresceu em

Brejo Grande(...) a casa de farinha no

quintal da casa em que morava com os

pais foi escolhida pelo Exército para

servir (...) na primeira metade dos anos

80, já participava das comunidades

eclesiais (...)

morava em Redenção, município

vizinho a Santana do Araguaia quando

ouviu falar de ‘umas terras’ em Ouro

Verde (...). Separada do marido e

desorientada pelo despejo, Késia mudou

(...)

História de vida por parte do

repórter

29.07.13 Presa e

ameaçada de morte,

testemunha ainda

teme pela vida

(...) a principal líder dos acampados,

(Pinho, coordenadora do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Santana do

Araguaia)

O pai, cearense, trabalhava em uma

fazenda e tinha um pequeno lote de

terra em uma vila; viu uma picape se

aproximar e um homem perguntar se

eles sabiam onde estavam.

Laísa luta pela terra

e pela memória da

irmã

08.07.13

29.07.13 Essa é

Maria Raimunda,

líder do MST no

Pará, ameaçada de

morte

VítimaProtagonista

A violência não é tão estranha à família

de Laísa, desde que o pai largou o

Maranhão atrás de uma terra prometida

pelo governo militar no início dos anos

70. Vieram para trabalhar na agricultura,

mas o pai, como num inventário das

atividades típicas da região, arriscou ser

castanheiro e garimpeiro.

15 vezes

“Eu tinha oito anos e muito medo de

sair de casa, porque meu pai falava

dos ‘terroristas’. Ele dizia ‘tevorista’.

29.07.13 “Tu sabes

que se a gente

perder a terra, tu

vais perder a vida” O ouvidor agrário Gersino Filho se

dispôs a intermediar a situação. (...)saiu

o mandado de prisão contra Nádia Pinho

e outra trabalhadora, Késia Furtado; (...)

um dos posseiros, de 55 anos, foi

humilhado à vista de todos (...)

22.07.13 Graciete

carrega na carne a

bala dos assassinos

de seu pai

Francisco Macedo, um agricultor que nos anos

90 saiu de Cacoal em Rondônia para tentar a

sorte no Pará, participou da ocupação. E viu de

perto a ação violenta de pistoleiros que

queriam tirar as famílias da fazenda.

22.07.13 Cleude,

com medo, tenta

pegar na mão de

Deus

Assim Marcos Gomes e a filha, Cleude

Conceição, assumiram a liderança do

movimento. As famílias decidiram

acampar a sete quilômetros das

fazendas.

A filha do agricultor praticava atletismo. Era

maratonista, chegando a ganhar algumas

competições no sudeste do Pará. Também

treinava caratê. Atualmente, com 26 anos, mal

consegue colocar o filho nos braços.

(...)em 1996, quando ingressou no

Sindicato dos Trabalhadores Rurais, de

forma até prosaica. Seis anos antes

procurara o sindicato buscando acelerar

o processo de aposentadoria da mãe,

que vivera como lavradora. Gostou do

que viu

Com dez anos de idade participou da

primeira marcha com integrantes do

MST, acompanhando a mãe, Domingas

da Conceição. Com 22, fez parte da

ocupação da fazenda Cabaceiras, em

Marabá, mas não conseguiu um pedaço

de chão para si.

O pai de José Cláudio Ribeiro adquiriu

um lote de um homem que havia

comprado a terra diretamente de

Argemiro. Em 1991, uma pesquisa sócio-

econômica feita na região por um órgão

do Governo Federal constatou a forte

presença ainda de castanha, açaí e

cupuaçu.

08.07.13 Maria Joel

da Costa herdou a

luta e as ameaças de

morte

Page 56: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

56

Como dito, as mulheres anunciadas no título ou manchete da reportagens são aquelas que

possuem voz no texto. Apesar desta constatação, há vários outros personagens – enquadrados

como coadjuvantes - que fazem parte da história e foram citadas pelo narrador ou pela

protagonista. Esse é o caso da reportagem Laísa luta pela terra e pela memória de sua irmã25.

Neste texto, além da protagonista Laísa, acrecentam-se mais seis personagens na história, porém,

com distribuições diferentes. A protagonista da história é sempre aquela que mais apareceu, e

pelo alto número constatado (dez, quinze, vinte vezes), confirmamos o predomínio das mulheres

na narrativa desse recorte. Soma-se a isso o considerável espaço - cedido pelo narrador -

destinado aos depoimentos das mulheres sobre sua história de vida. Com isso, o texto desprende-

se da visão presente do narrador e abrem espaço para dizeres das personagens a cerca de si

próprias. Esse artifício é geral, está presente em todas as dez reportagens.

Partindo da premissa na qual há no texto informações suficientes para interpretarmos as

funções morais do personagens, constamos que seis mulheres aparecem como heróis na trama e

outras quatro como vítimas. Heróis porque, de acordo com as ideias de Zizek, as protagonistas

sofrem ameaças por aquilo que fazem, não desistem, e mesmo assim continuam a lutar pelo bem

de sua comunidade e/ou família. Dos vilões, restaram aqueles que a versão defendeu como

mandantes e executores dos crimes, fazendeiros e pistoleiros. Personagens que agiram

ilegalmente por interesse próprios. As vítimas da história são, geralmente, mulheres ameaçadas

de morte, porém não possuem liderança de qualquer movimento, ou foram punidas por proteger

outras pessoas.

O narrador desse recorte é incisivo na descrição da naturalidade de cada protagonista de

suas histórias. Não falta espaço narrativo sobre o lugar onde nasceram essas mulheres, como

vieram parar ali, como eram suas vidas durante a infância, onde seus pais trabalhavam etc.

Acrescenta-se a esse tom descritivo o motivo pelo qual cada uma conheceu o marido e quais

foram as implicações em suas vidas causadas pelas ameaças de morte. É bem verdade que a

história de vida é o mais importante das matérias. Ela perpassa todas as outras informações e

experiências dispostas na reportagem. O narrador, declaradamente, assume uma posição, fica do

lado das mulheres ameaçadas no conflito. Veremos, a seguir, especificamente sobre ele.

25

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-

irma/ Acesso em: 20 nov. 2013.

Page 57: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

57

4.4 Movimento analítico 4: Análise do narrador e suas marcas textuais

É tarefa do narrador organizar e dispor as informações na narrativa. No jornalismo, o

repórter assume essa função ao elencar os elementos colhidos em sua pesquisa. Acerca disso,

constitui numa fase fundamental na análise da narrativa observar a figura deste gestor da história,

buscando trabalhar o modo pelo qual se deu a construção da história e tateando as instruções que

marcam sua ausência ou presença no texto averiguado. Na lógica de descobrir quais são as

intenções, procuramos encontrar retardamento do desfecho, ritmo da narração, explicações

causais, comentários explícitos, uso do tom poético que vão indicar como ele pretende ser

compreendido pelo receptor. (MOTTA, 2005). Além de tentar enxergar o texto pelos olhos de

seu autor, essa postura de análise nos permitiu identificar especificidades na narrativa da Pública,

viabilizando apontar aspectos do texto jornalístico que rompem com o texto das lógicas, isto é,

com o padrão estilístico do campo.

Nesse caminho, advogamos pela coerência do exercício abaixo, pois conseguimos

visualizar como os lados das partes em conflito de toda narrativa jornalística são dispostos ao

longo das reportagens. Esses requisitos foram fundamentais para criarmos subsídios que vão ao

encontro do problema chave deste estudo. Subdividimos a análise do narrador, inicialmente, em

duas etapas. A primeira refere-se às marcas de ausência e impessoalidade, reúnem-se trechos das

reportagens onde o narrador se afasta da história contada. Ou seja, momentos onde ele observa a

trama de modo distanciado. A segunda, ao contrário, agrupa frases com as quais o narrador se

posiciona na história e assume sua parcialidade no desenrolar da intriga. Dentro dessas etapas,

categorizamos mais seis elementos:

a) Marcas de Ausência e impessoalidade

● Expressões verdades. (dados, data, fontes): Trata-se de agrupar recortes com os quais o

narrador legitima o seu dizer baseado em algum elemento exterior à sua descrição.

Portanto, a disciplina pela verdade medeia as relações enunciativas.

● Expressões de distanciamento: Aqui reunimos expressões das reportagens as quais

retira do narrador a responsabilidade sob cada relato de outrem, entretanto, abrem brechas

para interpretações do narrador para tais dizeres. A utilização de verbos como dizer,

Page 58: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

58

relatar, afirmar; após frases dos personagens, são exemplos dessa interferência

enunciativa.

b) Marcas de presença

● Efeitos de objetividade: Esta categoria precaveu em reunir frases objetivas, curtas e que

resumem brevemente as tensões da história. Advogamos que a capacidade de síntese pelo

narrador constitui-se numa clara marca de presença pois, é através de uma escolha e

agenciamento dos fatos pelo narrador que se define o que entrará e deixará de entrar nos

breves resumos.

● Efeitos poéticos: Aqui, reunimos enunciados na intenção de entender como operam as

marcas do narrador ao descrever socialmente e psicologicamente os personagens da

história e quais são os efeitos de sentido provocados (comoção, dor, compaixão, riso,

etc.) (MOTTA, 2005)

● Uso de metáforas e ironia: Como o nome diz, nas pistas das marcas de presença desse

narrador, esta etapa trata-se de colher os jogos de linguagem utilizados no texto.

Metáforas e ironias que deixam claro a pessoalidade do autor no texto.

● Evidências do narrador (adjetivações): Tratamos de elencar fragmentos das

reportagens nas quais deixam explicitamente a pretensa interferência do discurso do

narrador sobre os personagens e lugares descritos na história. Para isso, trabalhamos num

propósito de sondar o uso de adjetivos e descrições dos ambientes vivenciados pe lo

repórter.

Page 59: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

59

Expressões

verdades. (dados,

data, fontes)

Expressões de

distanciamento

Efeitos de

objetividade

Efeitos poéticos

(emoção,

sentimento, desejos)

Uso de

metáforas/ironias

Evidências do

narrador(adjetivações)

e seu contato com

personagens

29.07.13 Essa é

Maria Raimunda,

líder do MST no

Pará, ameaçada de

morte

de Marabá, a 685

quilômetros de Belém diz Maria Raimunda.

Todos os processos de

ocupação de terra,

(...)confrontos com a

polícia, fazendeiros ou

mesmo com a Justiça,

têm o nome dela à

frente

Tornou-se forte (Maria

Raimunda), acostumada à

tensão e à resistência

já foi ameaçada de morte e

teve a prisão decretada em

algumas ocasiões e sabe que é

uma pedra no sapato deles.

Afinal, ela é a diretora nacional

do MST no Pará.

29.07.13 Presa e

ameaçada de morte,

testemunha ainda

teme pela vida conta Késia; diz ela; diz ; conta

De testemunha a réu.

Essa é a situação atual

de Késsia (...) ; Késia foi

presa e, na cadeia,

ameaçada de morte. (...)

A ‘vaqueira’ de fala ligeira e

pele negra (...) Késia

ergueu um barraco,

cultivou ‘uma rocinha’ e

acreditou (...)

Seu crime: defender Nádia

Pinho; (...) sob as bênçãos da

Ouvidoria Agrária (...)

Foi assim que o terror entrou

na vida de Késia;

29.07.13 “Tu sabes

que se a gente

perder a terra, tu

vais perder a vida”

distante 1.255 km de

Belém; ocupado por 27

famílias.

conta Nádia; diz Nádia; lembra

Nádia, Segundo Nádia,

Orientada pela CPT Nádia se

entregou e permaneceu

encarcerada por 12 dias;

dorme pouco, atenta aos

menores ruídos da rua; Se

alguém bate à porta, checa

direitinho quem é, antes de

atender

Para quem havia crescido

sonhando com um pedaço de

terra, a proposta soou como

música; Nádia nunca havia

posto os pés na capital

federal.

Com três filhos, viúva, Nádia

tenta não envolver a família

nos conflitos

22.07.13 Graciete

carrega na carne a

bala dos assassinos

de seu pai

Breu Branco, a 419 km da

capital Belém, no sudeste

paraense; evantamento

feito pelo IBGE em 2010 diz Graciete Machado,

tinha como o alvo o pai,

Francisco Alves de

Macedo, assassinado

cinco meses depois por

pistoleiros que

continuam em liberdade

Quase não vai mais à igreja,

e às 18 horas fecha toda a

casa; a imagem da bala em

uma radiografia é uma

lembrança constante;

sentada no sofá simples da

casa sem reboco, sob o olhar

atento do marido; (...) sente

dores constantes nas pernas,

não pode fazer nenhuma

atividade

22.07.13 Nicinha e o

sindicato rural

dirigido apenas por

mulheres

No dia 23 de outubro de

2011 Nicinha recebeu uma

ligação de Brasília; O

sindicato atende em torno

de 2.500 famílias

assentadas, que se

sustentam da venda do

que produzem. Segundo ela, diz, lembra

Agora, Zuldemir está

desamparada de

proteção policiai desde

abril de 2012.

Vive assombrada, não sem

motivos.

Já viu duas lideranças do

sindicato serem assassinadas.

Não quer ser mais uma a

engrossar a lista.

Vive assombrada, não sem

motivos. a ‘Nicinha’, guarda

com cuidado uma pasta já

antiga “Só não me avisaram

que seria apenas por três

meses”, E, fato curiosamente

trágico, devido aos

assassinatos, os homens não

22.07.13 Cleude,

com medo, tenta

pegar na mão de

Deus

coordena um grupo de 70

famílias que ocupavam

duas fazendas em

Itupiranga diz, resume Cleude Conceição

Não é fácil encontrar

Cleude Conceição;

Cleude Conceição já

escapou de tiros, já viu

companheiros

tombarem

(...) trazendo duas

pequenas piranhas e um

surubim, resultado da

pescaria. Aos 30 anos, é

uma mulher magra,

pequena, negra, de

natureza desconfiada.

Quando a reportagem chega

ao pequeno vilarejo, quase

quatro horas depois de ter

saído de Marabá; (...) É um

litígio que já dura nove anos.

15.07.13 Ameaçada

desde 1996, Regina

sonha viver em paz

Em dezembro de 2011;

Entre 1982 e 1996 mais de

50 trabalhadores rurais

foram assassinados diz ela; contabiliza Regina.

Vive sob ameaças

constantes e atualmente

não anda sem a

proteção de pelo menos

dois outros dirigentes

sindicais,

Quando a fome roncou

mais alto, a família dela se

mudou; Não quer ouvir

falar em ocupações de

terra. Sente medo.

Maria Regina, no quintal da

sede sindical, sob o olhar

atento dos dois seguranças;

conta, confessando o cansaço

15.07.13 Maria do

Carmo luta por sua

comunidade e pela

floresta

fincada no km 55 da

rodovia BR 422,

(...) diz Maria do Carmo; O

problema, segundo ela, (...);

conta Maria do Carmo.

Assumiu a coordenação

de uma comunidade

agroextrativista em

plena mata e, por bater

de frente contra

caçadores ilegais e

traficantes de drogas,

passou a ser ameaçada

de morte.

(...) enquanto prepara um

café na cozinha da casa de

chão batido. São pessoas

humildes, que moram em

casas de barro ou madeira,

cobertas de palha, com piso

de chão

Ao longo das últimas décadas

a floresta amazônica tem

criado centenas de heróis

anônimos. Maria do Carmo

Pinheiro Chaves, a “Du Carmo”

é uma delas; É uma estrada

poeirenta, maltratada e cheia

de buracos

08.07.13 Laísa luta

pela terra e pela

memória da irmã

Tem sido assim desde a

manhã de terça-feira, 24

de maio de 2011.

Nascimento recebeu pena

de 45 anos em regime

fechado. Rocha, 42 anos e

oito meses. (...) diz; (...) alertou um aluno

Dois anos depois, o

crime foi a julgamento.

Apenas o autor dos

disparos, Alberto Lopes

do Nascimento e o

ajudante (...)

Laísa recebeu o resultado

do julgamento quase como

uma sentença de morte

Selando o terceiro caixão; A

história e as histórias de

migração no Pará (...)

É num labirinto de ‘folhas’,

quadras e lotes em Nova

Marabá. (...) No momento da

entrevista, Zé Rondon liga; no

curto diálogo Laísa diz estar

bem, falando com jornalistas.

Marcas de Ausência e Impessoalidade Marcas de Presença

Re

po

rtagen

s

An

alisadas

Análise do Narrador (Trechos recortados das Reportagens)

08.07.13 Maria Joel da

Costa herdou a luta e

as ameaças de morte

(...) distante 532 km da

capital Belém (...); (...)

Rondon do Pará em 21 de

novembro de 2000 (...) 29

anos de reclusão em

regime fechado; (...) a

progressão de regime

prisional para o semi-

aberto (...)

conhecida pelos amigos como

Joelma

(...) começou a lutar pela

regularização das terras

consideradas

improdutivas visando a

reforma agrária.

Em casa, Maria Joel chorava

e orava. Maria Joel passa

uma pequena toalha rosa

no rosto antes de iniciar o

relato da morte do marido.

Oferece café, depois água.

Fica em silêncio alguns

segundos

Maria Joel não abre mão de

acompanhar todos eles; tem

sido assim desde que uma

bala atravessou o seu

caminho.

A camisa relativamente

folgada deixa transparecer a

pistola, É uma mulher

pequena, de voz mansa e

calma. Os cabelos são partidos

ao meio e presos atrás, típico

de mulheres evangélicas. Na

parede da sala que emenda

com a cozinha há a foto de

Dezinho e outra, com a família

toda reunida

Page 60: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

60

No que diz respeito às marcas de ausência, das dez reportagens analisadas, nove

apresentam dados (expressões verdades) que são exteriores à história de vida das mulheres. Ou

seja, em maioria, são informações sobre a distância entre a cidade relatada até a capital do

estado, bem como números de trabalhadores assassinados na região, senso demográfico, e

número de famílias assentadas. Podemos dizer que essa postura do rigor das informações, denota

a preocupação pela veracidade e exatidão dos fatos por parte do repórter, o que recai na

aderência à conduta do jornalismo em elencar dados que ajudam na precisão do uso das

informações. Além disso, o narrador recorre ao uso de expressões como: Segundo ela, alertou

um aluno, disse, diz, conta; antes ou depois dos depoimentos das fontes. Esse método deixou

claro o respeito pela integridade da fala do personagem, livrando de modificações do

repórter.Neste aspecto, as reportagens #MarcadasparaMorrer se encaixam em normas essenciais

do jornalismo.

Todavia, tratando das marcas de presença, as frases mais objetivas das reportagens

apresentam essencialmente as condições em que se encontram as personagens oprimidas. Junto a

essas condições, acompanham as impressões, observações próprias da experiência do narrador ao

encontrar com o sujeito de sua reportagem. Isto é, há lugar para inferências subjetivas do autor

com o entrevistado. Além dessa clara marca de pessoalidade no texto, o narrador não economiza

nas adjetivações daqueles que perpassam pela trama.

Sob esse mesmo caminho de transgressão aos estilos padrões do jornalismo, nos efeitos

poéticos, o autor frisa a vida difícil enfrentadas por essas mulheres, lançando mão dos efeitos de

comoção e dor ao expor uma história de vida frágil somada a uma condição social de opressão

freqüente. Nelas, destacam-se descrições psicológicas, físicas e sociais dos personagens e,

posteriormente, o lugar no qual eles se encontram. Outra característica que rompe com o texto

das lógicas refere-se à ironia e metáfora. Cinco das dez reportagens fazem uso de metáforas e

ironias, como é o caso da reportagem: Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela

vida26. Em trecho sobre a punição da protagonista da história, o autor enfatiza num tom irônico,

Seu crime: defender Nádia Pinho. Vê-se a clara defesa do narrador pela vítima da história. Algo

difícil de encontrar em manuais de técnicas do campo, e nos materiais jornalísticos da mídia

hegemônica. Podemos, então, dizer que o narrador dessas reportagens utiliza sim alguns dos

26

Diponível em: http://www.apublica.org/2013/07/presa-ameacada-de-morte-testemunha-ainda-teme-pela-vida/

Acesso em: 20 de nov. 2013.

Page 61: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

61

critérios do texto jornalístico padrão, entretanto rompem, em vários outros patamares, as

características da reportagem e notícia. Por exemplo, o posicionamento do autor frente à trama,

desviando a lógica da imparcialidade, bem como a clara manifestação lingüística no texto, afasta

e muito a lógica do texto impessoal, tão cristalizado nas normas técnicas do jornalismo.

4.5 Movimento de análise 5: Recomposição da intriga ou do acontecimento jornalístico

Nesta etapa, de forma mais geral, procuramos agrupar as reportagens em categorias, de

acordo com características em comum, observando como as estratégias de constituição das

reportagens partilham significações em contexto. De acordo com Motta, “sem uma história

completa a análise da narrativa é impossível” (MOTTA, 2005, p. 4), a partir disso, o objetivo

aqui é perceber como as narrativas se articulam dentro de um grande tema e suas derivações.

Nele, procuramos mapear temas e assuntos que extrapolam as onze reportagens, num processo

de reconfiguração, percebendo que não se tratam de matérias isoladas, tanto em sua narrativa

quanto em sua materialização, pois, inclusive elas convergem dentro da plataforma da Pública

em um mesmo assunto demarcado por hashtag (#) – palavra-chave específica.

Reconstituir uma intriga é não somente colher dizeres semelhantes dentro de um

contexto. Muito mais que isso, nas palavras de Ricouer, é “considerar em conjunto” (1992, p.76),

ter noção que a intriga é um movimento contínuo (e não um fim) “onde os papéis são postos e as

posições assumidas no decorrer da ação” (1992, p.76). A ideia mestre que conduz a leitura do

quadro refere-se a possibilidade da intriga na narrativa jornalística elucidar situações tácitas

excedentes ao texto. Por outras palavras, esse movimento advoga pela capacidade de interpretar

a realidade a partir da narrativa não-ficcional que nos chega sob forma de reportagem

jornalística.

● Grande Tema: Nessa divisão, buscamos enquadrar qual é a temática suscitada

em todas as onze reportagens, através de um olhar distanciado da narrativa.

● Subtema: Contida no Grande Tema, aqui visamos afunilar a temática em comum

reportada, ainda sob um olhar distante aos conflitos do recorte.

● Tema em comum: Pretendemos agrupar um tema elucidado na leitura de todos

os episódios.

Page 62: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

62

● Desdobramento: Aqui entramos no conteúdo do recorte. Visamos articular o que

desses temas é tratado na narrativa, em geral.

Quadro 5: Análise da Recomposição da Intriga Fonte: Elaboração própria

Este movimento tratou de tatear quais temas em comum subjazem todas as reportagens.

O primeiro movimento de leitura, análise do contexto, contribuiu nos apontamentos aqui

desenvolvidos, pois tratou de elencar, por sua vez, os enredos específicos de cada reportagem,

além de sublinhar qual antagonismo do tempo atual se mostra presente nas narrativas. Sobre o

contexto, notamos que o grande tema comum nas reportagens são as relações socioambientais

tácitas no Brasil. No subtema, esse tópico se estreita, destacando a preservação da floresta e a

luta pelos direitos civis (direito à moradia) como questões homogêneas nas reportagens. Tais

questões se desdobram na intriga ao colocar em tensão dois lados com interesses divergentes na

historia. Isto é, de um lado as mulheres que lutam por moradia e pela floresta e de o utro os

fazendeiros, donos da terra, que não querem abrir mão de sua propriedade.

Intriga em comum reportada

Exclusão social e problemas ecológicos na região norte do Brasil

Recomposição da Intriga

Subtema

Preservação da Floresta Amazônica e luta pelos direitos civis (agrários)

Desdobramento

Tensões entre duas partes interessadas

Moradores de terras que retiram da floresta

sua condição de sobrevivênciaFazendeiros, funcionários, pistoleiros que

usufruem da floresta amazônica para

produtividade e fins econômicos

Grande tema

Intrigas socioambientais atuais no Brasil

Page 63: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

63

Diante desse conflito, considerando os papéis narrativos desempenhados pelos

protagonistas na história e pelo posicionamento do autor na narrativa, as injustas ameaças de

morte sofrida pelas mulheres que reivindicam a preservação da floresta e o direito à moradia

refletem a intriga subjacente às reportagens, isto é, a exclusão social e os problemas ecológicos

na região norte brasileiro.

Das ponderações de Zizek sobre os impasses que assolam o capitalismo liberal global,

incluímos as exclusões sociais motivada por questões de propriedade e os impasses ambientais

da intriga como parte fundamental dos antagonismos, novos apartheids, ecologia e propriedade

privada. Ora, se a relação dual entre moradores e latifundiários contida nas reportagens dá a ver

o embate incluídos versus excluídos, muito tem a ver com as características próprias dos novos

apartheids. Pois, os excluídos das terras e do direto à moradia, isto é, à propriedade, lutam contra

os interesses dos incluídos, os grandes latifundiários que fazem de tudo para não perder

privilégios. No que tange à ecologia, a floresta amazônica faz parte dos interesses postos em

conflito pelas reportagens. Conforme vimos nas reportagens, Maria do Carmo luta por sua

comunidade e pela floresta27; Laísa luta pela terra e pela memória de sua irmã28, parte da luta

dessas mulheres se refere à preservação pela floresta Amazônia, contra a destruição e poluição

desta por parte de empresas poluidoras. Razões suficientes para tratamos essa briga inerente aos

impasses atuais da ecologia. Para melhor ilustra essas relações, construímos duas imagens que

englobam as relações aqui discutidas.

27

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/maria -carmo-luta-pela-sua-comunidade-pela-floresta/. Acesso

em: 20 nov. 2013. 28

Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-

irma/. Acesso em: 20 nov. 2013

Page 64: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

64

Ilustração 1: Diagrama de Venn: Antagonismos do contemporâneo Fonte: Elaboração própria

Ilustração 2: Diagrama de Venn: Agência Pública

Fonte: Elaboração própria

Page 65: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

65

Como debatido, a intriga jornalística esclarece uma versão de situações vinculadas à

realidade que nos dá a ver o tempo presente e suas peculiaridades. Resgatando a pergunta que

norteou nosso estudo, a partir das leituras produzidas, podemos afirmar que a narrativa

jornalística da Pública, ao tratar das emergências atuais do Brasil, coloca em tensão

antagonismos do mundo global, elucidando as relações entre incluídos e excluídos nos problemas

socioambientais brasileiros através de uma narrativa que valoriza as experiências do sujeito e as

observações do narrador frente as emergências do tempo presente.

Page 66: Jornalismo em Defesa das Causas Perdidas - César Diab

66

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo em que vivemos apresenta uma série de problemas no âmbito social, político, e

econômico. O aumento da globalização, endossamento do capitalismo pela dependência

econômica e o surgimento de blocos políticos fizeram com que questões inerentes a cada país se

relacionassem, numa perspectiva maior, com outras nações. Nessa diluição de fronteiras,

enxergamos impasses que permeiam lógicas globais e que, por sua vez, reiteram a recusa em

adotar grandes revisões em seu funcionamento para que os efeitos negativo s sejam não

minimizados, mas impedidos de acontecer. Podemos ler claramente os efeitos negativos nos

alarmantes números da desigualdade social, na naturalização e despolitização do alto consumo

de bens que agridem ao meio ambiente, no aumento dos muros e d ivisões que separam direitos e

protegem privilégios, nas questões jurídicas insolucionáveis.

O filósofo Slavoj Zizek, trazido na discussão aqui empreendida, colabora para esta

reflexão ao adotar uma visão crítica acerca dos problemas atuais. Para ele, vive mos num tempo

marcado por antagonismos fortes o suficiente para mudar radicalmente a estrutura da democracia

liberal-capitalista, cuja existência gera consequências drásticas nas vidas da população

fragilizada. São eles os novos apartheids, os problemas ecológicos, os impasses da propriedade

privada (intelectual) e a biogenética. Enquanto os três últimos se referem a um problema que

tramita na ordem do comum, os novos apartheids constituem-se um problema de justiça. Apesar

da singularidade de cada antagonismo, este último se faz mais importante, pois perpassa a

existência dos demais. Isto é, a relação incluídos versus excluídos, intrínseca no antagonismo

apartheid, está contida nos problemas ecológicos, jurídicos e genéticos. Dentre os quatro, o

antagonismo que melhor traduz os impasses globais são as novas formas de apartheid – aumento

da exclusão social, crescimento das favelas, distribuição da pobreza. Dessa forma, Zizek nos diz

que problemas contínuos vivenciados por certos países podem parecer, à primeira vista, isolados.

Numa perspectiva distanciada, no entanto, traduzem situações complexas, de ordem global.

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Ao mesmo tempo, é parte fundamental da prática jornalística tratar dos assuntos

complexos contemporâneos e se situar no meio das tensões sociais. Como atividade social e

discursiva, o jornalismo possui um privilegiado – pois autorizado – lugar de falar dos problemas

do mundo sob uma ótica não-ficcional. Na consolidação das suas formas discursivas, atribuíram-

se consensos e espeficidades na forma de conduzir o jornalismo que foram influenciadas, em

parte, por pretensos efeitos no público (credibilidade, neutralidade, veracidade) e pelos formatos

e suportes oferecidos (televisão, rádio, impresso).

Na atualidade, a digitalização, com a amplitude dos recursos da web, possibilitou novos

lugares para o jornalismo. Esse alicerce oferece ao campo uma maior flexibilização de seu

conteúdo, abrindo espaço para a convergência da forma e do conteúdo jornalístico: o aumento do

limite textual nas notícias, a interatividade entre criadores e receptores e novos modos de

produção e manutenção de espaços jornalísticos. Desse modo, a web traz mudanças

significativas na maneira de ser e fazer do jornalismo, afetando seus produtos e o tratamento da

informação. Neste lugar ambientado está a Agência Pública de jornalismo investigativo, criada e

mantida por jornalistas e que tem como objetivo tratar os problemas contemporâneos no Brasil

por meio da investigação jornalística, como discutido aqui. Sua gestão autônoma possibilita

independência no conteúdo, conforme os princípios que a norteiam.

A reportagem no cenário digital também sofreu alterações. Na Pública, é um produto que

caminha na direção do conceito foucaultiano da reportagem de ideias. Esta definição engloba um

tipo de reportagem que atribui diversas informações e voz a sujeitos excluídos e silenciados pela

reportagem jornalística tradicional, e também não hierarquiza as fontes de acordo com suas

“funções” na sociedade. Assim, a Pública, ao pautar os problemas emergentes do Brasil, faz

trabalhar depoimentos de sujeitos ditos “comuns” e que estão à mercê dos conflitos em que se

veem envolvidos. Ou seja, esse jornalismo delega poder de fala às pessoas que convivem

cotidianamente com as questões agrárias, a destruição da Floresta Amazônica, os abusos

policiais, desapropriação de moradias, para citar alguns exemplos de temáticas recorrentes nas

matérias produzidas e veiculadas pelo site.

Relacionando tais problemas do mundo atual e como a prática jornalística consegue

abarcá- los, buscamos responder, neste estudo, “como a Pública elucida as emergências do Brasil

através das narrativas de suas reportagens?”. Para produzir uma interpretação sobre a questão e

nos posicionarmos diante dela, recortamos 11 reportagens da série #MarcadasparaMorrer, que

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traz histórias de vida de mulheres que lutam pela terra, pela floresta, reforma agrária e, por

consequência, sofrem constantes ameaças de morte. Na exploração do material, verificamos que

a Pública compartilha, em suas abordagens, da reflexão que permeia a projeção conceitual e de

mundo considerada por Zizek, um dos autores-base da pesquisa, ao colocar em tensão três

grandes antagonismos nomeados pelo filósofo: a ecologia, os novos apartheids e a propriedade

privada, lidos no interior das narrativas de cada matéria analisada. Assim, percebemos que a

Pública realiza um tratamento diferencial dos sujeitos que aparecem na narrativa, privilegiando

suas histórias de vida. Eles são organismos fundamentais no texto e medeiam todo

empreendimento narrativo. Além disso, sua narrativa apresenta modos que rompem com a

estrutura normalizante do jornalismo. Por exemplo, vimos que o lead deixa de ser fator

predominante nas reportagens, assim como a impessoalidade não é regra. O autor se posiciona

claramente nas versões, adjetiva os personagens, e descreve os bastidores da entrevista. Ele

também lança mão de metáforas e ironias. Neste quesito o narrador se envolve com o assunto de

seu relato, se mostra presente, escolhe um lado, e compartilha da história ouvida. Enxergamos aí

uma narrativa do autor que se sobrepõem a uma outra, isto é, a do personagem.

Também, nos movimentos de análise, pudemos sondar estratégias narrativas que moldam

os personagens nas reportagens. As protagonistas são aquelas que têm, exclusivamente, voz

dentro do texto. Aparecem como heróis ou como vítimas do contexto, mesclando nas histórias de

vidas, alegrias, conquistas, tragédias e punições. Da recomposição do contexto, vimos que todas

as reportagens aludem aos conflitos socioambientais brasileiros, colocando em tensão duas

partes, os moradores que lutam por terra e pela floresta versus fazendeiros, latifundiários e seus

pistoleiros, a quem interessa a concentração agrária e a exploração da floresta. Concluímos,

portanto, que a Pública não apenas denuncia os antagonismos da ordem global ao tratar da

realidade brasileira, mas, também, mostra como eles estão bem próximos das relações sociais

mais íntimas, isto é, nas vidas de pessoas comuns que lutam por sobrevivência e dignidade.

Para a investigação, construímos um caminho metodológico que teve como princípio

analisar as peculiaridades da narrativa da Pública. Acreditamos que tensionar o “narrativo” das

reportagens nos permitiu deduzir estratégias, intenções e efeitos de sentido das reportagens.

Conforme apresentado, estabelecemos cinco movimentos de análise, utilizando as categorias

“personagens”, “ordem narrativa”, “narrador”, “análise de contexto” e “reconstrução da intriga”.

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No decorrer do estudo, nos deparamos com questões externas ao objetivo da pesquisa

que, no entanto, apresentaram terrenos férteis para problematizar a prática jornalística. Vimos

que o antagonismo da propriedade intelectual está presente no conteúdo nas reportagens da

Pública pois a lógica que se opera na Agência também dialoga com os impasses da propriedade.

Podemos questionar: em que medida o tipo de funcionamento da Pública pode permitir um

maior desprendimento do jornalismo engajado aos grupos econômicos e partidos políticos?

Considerando que o financiamento alternativo e o jornalismo colaborativo da Pública se

efetivaram e vêm dando frutos, essa postura independente pode servir de modelo para outros

espaços digitais de narrar? Numa possível busca a partir de tais perguntas, podemos ainda

averiguar, pelo viés da linguagem, se tais novos espaços podem colaborar para tensionar o texto

jornalístico, ou, quem sabe, trazer direcionamentos práticos em torno de uma outra narrativa

jornalística.

Consideramos que o estudo foi muito importante para pensar um jornalismo cujo

propósito é questionar de forma incessante a realidade, em especial pelo trabalho apurado com

informações usualmente excluídas e com fontes por vezes silenciadas pela nossa história. A

experiência de averiguação que o estudo abarcou foi rica, também, para problematizar a prática

jornalística sob um viés filosófico. Assim, acreditamos que é possível romper fronteiras sobre

como tratar as emergências do presente e, sobretudo, pensar em outros espaços para o

jornalismo. Neste estudo, o mundo atual surge com um somatório de delitos e injustiças a ser

alterado de forma urgente.

Ao jornalismo, pois compartilha desse mundo, restam duas formas de tratar os

antagonismos do tempo presente. Uma encontra-se na defesa dos interesses dos incluídos. Apoia-

se e aposta na estabilidade do capitalismo pós-moderno conservando o valor à propriedade

privada e ao anúncio de empresas poluidoras, silenciando, assim, as causas e consequências

nocivas do sistema. A outra prática, no entanto, ao compartilhar inquietações de um mundo

excludente, aposta no conflito com o capitalismo de hoje como um lugar substancial para

construir um jornalismo que intervém nas emergências complexas atuais e se lança em prol

daqueles cujo sofrimento permanente é efeito da organização global que lhes foram dados, ou

melhor, age em defesa das causas perdidas.

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ANEXOS

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ANEXO I – Reportagens e site da Agência Pública

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