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EDITORA CATARSE LTDARua Oswaldo Aranha, 444

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CONSELHO EDITORIALAntonio Fausto Neto – Unisinos

Ernesto Söhnle Jr. – UNISCEunice Piazza Gai – UNISC

Fernando Resende – UFFJesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (México)

João Canavilhas – Universidade de Beira Interior (Portugal)Mario Carlón – Universidade de Buenos Aires (UBA)

Marcos Fábio Belo Matos – UFMA.Raquel Recuero – UFPel.

Walter Teixeira Lima – UMESP

COLEÇÃO ACADÊMICA

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Fábio Cruz Gilmar Hermes

Organizadores

Jornalismo: Teoria e Prática -Abordagens culturais, interfaces e meios

editora

Pelotas2017

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J82 Jornalismo: teoria e prática – abordagens culturais, interfaces e meios [recurso eletrônico] / Fábio Cruz, Gilmar Hermes, organizadores - Santa Cruz do Sul: Catarse, 2017. 196 p. : il. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web.

1. Jornalismo. 2. Jornalismo - Teoria. 3. Telejornalismo. 4. Semiótica. 5. Jornalismo esportivo. 6. Redes sociais. I. Cruz, Fábio. II. Hermes, Gilmar. ISBN: 978-85-69563-18-1 CDD: 070.4

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Editor: Demétrio de Azeredo Soster

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PREFÁCIO

A Comunicação é essencial. Perpassa todos os saberes. Agencia a produção de conhecimentos. Está presente, de uma forma indissociável, na vida humana. A cada passo, desenha as transformações de todos os níveis da trajetória existencial.

Possui um perfil multifacetado. É singular e, ao mes-mo tempo, se inscreve na pluralidade. O seu sentido plural tem abrangência. Diversifica-se em aspectos, circunstâncias e reali-dades. Uma de suas pronúncias é o Jornalismo, indissociável das sociedades democráticas.

Falar em Jornalismo, escrevê-lo e criticá-lo nunca é pisar no excessivo e no demasiado. É conduzi-lo pelo caminho da reflexão, onde ele se depura e se faz melhor, mais significa-tivo, para cumprir a sua missão de atender à necessidade social de informação.

O livro, Jornalismo, Teoria e Prática – interfaces cul-turais, tem um sabor especial, no conjunto dos seus saberes. Não separa teoria e prática. Faz o contrário, as une, porquanto uma só tem existência à medida que a outra exista. Encontram-se co-nectadas em uma relação.

É um livro inteligente. Articula perspicácia e refle-xão. Transita por diferentes portos do Jornalismo, com uma vir-tude básica das práticas científicas. Possui equilíbrio, em suas escolhas teóricas e metodológicas. O que resulta em um conjun-to de textos com análises instigantes.

Materializa-se, como uma leitura indispensável. Em um primeiro momento, com alunos, professores e pesquisadores de Jornalismo. Expande-se, todavia, para todos os segmentos, já que a Comunicação é transcendente e onipresente.

A estrutura do livro possui três partes. A primeira, Abordagens Culturais, com os artigos, “O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream inteseccional”, de Fábio Cruz, Gui-lherme Curi e Estevan Garcia, e “Uma metodologia semiótica

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para estudos jornalísticos e estéticos, de Gilmar Hermes.A segunda parte, Interfaces, tem os artigos, “Cultu-

ra e pós-modernidade no jornalismo de revista: uma leitura das formas da socialidade nas páginas de Veja”, de Larissa Azubel, “Jornalismo, ambiente e ethos”, de Carlos André Dominguez, e “Definição de Jornalismo Esportivo face à midiatização do Es-porte”, de Ricardo Fiegenbaum.

A última, Meios, apresenta os artigos, “A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais”, de Sílvia Mei-relles Leite, “Mídia e Educação: Impactos da WebRádio e da WebTV no Universo Escolar Inclusivo”, de Marislei Ribeiro, e “Fundamentos para a realização de uma cobertura telejornalísti-ca”, de Michele Negrini e Roberta Brandalise.

A todos, uma excelente leitura!

Roberto RamosPós-Doutor em Ciências da ComunicaçãoProfessor do PPGCom da PUCRS

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SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE – ABORDAGENS CULTURAIS

O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream interseccional ............................................. ....................... 10 Fábio Cruz Guilherme Curi Estevan Garcia Uma metodologia semiótica para estudos jornalísticos e estéticos............................................................................ 30 Gilmar Hermes

SEGUNDA PARTE – INTERFACES

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista: uma leitura das formas da socialidade nas páginas de Veja ....................................................................................... 55 Larissa Azubel

Jornalismo, ambiente e o ethos ............................................. 74 Carlos André Echenique Dominguez

Definição de Jornalismo Esportivo face à midiatização do Esporte ............................................................................. 98 Ricardo Z. Fiegenbaum

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TERCEIRA PARTE – MEIOS

A elaboração de pautas jornalísticas e as redessociais digitais: relações possíveis ........................................ 125 Sílvia Porto Meirelles Leite

Mídia e Educação: Impactos da WebRádio e WebTVno Universo Escolar Inclusivo .............................................. 145 Marislei da Silveira Ribeiro

Fundamentos para a realização de uma coberturaTelejornalística ..................................................................... 169 Michele Negrini Roberta Brandalise

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PRIMEIRA PARTE

ABORDAGENS CULTURAIS

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O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream interseccional

Fábio Cruz1

Guilherme Curi2 Estevan Garcia3

1. Watching you4

Um homem com uma missão. Atemporal. Um

vocalista com uma tradição a sustentar. Um músico que se recusa a seguir o caminho mais fácil. Um outsider/insider da cultura musical contemporânea, algo que está ao mesmo tempo fora e dentro do jogo mercadológico. Um artista que, segundo o próprio, está à esquerda do mainstream. Tudo isso consiste neste mosaico humano que é Robert Plant.

Da vida com o Led Zeppelin aos voos solo, em quase cinco décadas, o cantor inglês vem mantendo acesa a tradição dos tempos do seu grupo. De um disco a outro, promove cruzamentos com as mais variadas possibilidades, a saber: hard rock, blues, música oriental, a

1 Pós-doutor em Direitos Humanos, Mídia e Movimentos sociais

(Universidade Pablo de Olavide – Sevilha/Espanha). Doutor em Cultura Midiática e Tecnologias do Imaginário (PUCRS). Professor do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Coordenador do projeto de pesquisa “Cultura da mídia, rock e recepção” (UFPel). email: [email protected]

2 Mestre em Sociologia pela University College Dublin. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Diaspotics. email: [email protected]

3 Graduando (8° semestre) do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de pesquisa (UFPel) do projeto “Cultura da mídia, rock e recepção”. e-mail: [email protected]

4 Título de uma das músicas pertencentes ao álbum Manic Nirvana, lançado em 19 de março de 1990.

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sonoridade do norte da África, prog rock, baladas, música eletrônica, pop, new wave, break, rockabilly, folk, soul, a psicodelia dos anos de 1960, bluegrass etc.

Conservando a sua essência do blues e do rock, Robert Plant transita por outros ambientes buscando desafios constantes. Todos esses diálogos fazem dele um artista “mainstream interseccional”, assim como também é o seu ex-grupo. Longe do “mainstream estático” de bandas como AC/DC5, Iron Maiden6 e o cantor Ozzy Osbourne7, os quais permanecem fiéis aos formatos que os consagraram, Plant pode personificar uma possível autenticidade do rock: a partir de um capital simbólico acrescido durante todos esses anos no cenário da música popular massiva (Janotti Junior, 2006; 2007), o vocalista estimula a criatividade em suas produções.

Nesse sentido, considerando as colocações acima expostas, buscaremos, neste artigo, explorar conceitos como mainstream, autenticidade, autonomia e tradição em torno da carreira de Robert Plant. Levaremos em conta, também, algumas questões que permeiam o horizonte da música popular massiva como, por exemplo, os conflitos existentes entre os processos de criação e o mercado. Outrossim, baseados nesse arsenal de conceitos e reflexões, procuraremos postular algumas categorias analíticas previamente apresentadas no parágrafo anterior.

Igualmente, cabe ressaltar que, através de uma pesquisa bibliográfica, esse arcabouço teórico será desenvolvido e tensionado conjuntamente com a trajetória de Robert Plant desde a era pré-Led Zeppelin até os últimos e mais recentes trabalhos. Mais especificamente, como corpus de análise, elegemos os seus dez discos

5 Grupo de rock australiano. 6 Conjunto britânico de heavy metal. 7 Ex-vocalista da banda inglesa Black Sabbath e artista solo.

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como artista solo, o que abarca um período que tem início em 1982, com Pictures at eleven, e vai até a sua última produção, Lullaby and... The ceaseless roar, lançado em 2014. 2. Come into my life8

Filho de um engenheiro civil e de uma dona de

casa, Robert Anthony Plant nasceu no dia 20 de agosto de 1948, em West Bromwich, Staffordshire, Inglaterra (REES, 2014). Apaixonado pelo rock e o blues norte-americanos, formou as suas primeiras bandas na adolescência. Entre estas destacavam-se a Black Snake Moan e The Crawling King Snakes, aonde conheceu o baterista John Bonham, seu futuro melhor amigo e baterista do Led Zeppelin (Williamson, 2011).

Depois do fracasso em alguns singles9 como artista solo, Plant integrou a Band of Joy, novamente com Bonham. Logo após, já na banda Hobbstweedle, o cantor recebe um telegrama de Peter Grant10 convidando-o a entrar nos Yardbirds11. Sob a batuta do guitarrista Jimmy Page e contando ainda com o baixista e tecladista John Paul Jones e o baterista – sugerido por Plant – John Bonham, surgiria o Led Zeppelin.

De 1968 até 1980, o grupo vendeu milhões de discos ao redor do mundo, quebrou recordes de público em seus shows e estabeleceu-se como a principal banda da década de 1970. Neste sentido, uma das principais características do Led Zeppelin consistiu na constante 8 Nome de uma música do cantor presente no disco Fate of Nations, de

1993. 9 Canção considerada viável comercialmente o suficiente pelo artista e pela

companhia para ser lançada individualmente. 10 Futuro empresário do Led Zeppelin. 11 Então banda de Jimmy Page, guitarrista e mentor do Led Zeppelin.

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busca por desafios musicais dentro de um novo mercado direcionado ao público jovem que cada vez mais crescia. Já nos dois primeiros trabalhos – intitulados Led Zeppelin I e Led Zeppelin II –, o conjunto mesclaria hard rock com passagens acústicas, blues, heavy metal, psicodelia e baladas.

Do peso bluseiro de Communication Breakdown e Whole lotta Love aos momentos acústicos de Babe i’m gonna leave you; do blues de You shook me e Bring it on home até a psicodelia de Your time is gonna come; das pegadas heavy de Dazed and confused e The lemon song às influências indianas de Black mountain side e baladas como Thank you. Lançando mão de um mix de influências, o Led Zeppelin construiria sua música cortejando a inovação e a criatividade, predicados que lhe conferiram autenticidade. Em consonância com esta reflexão, recorremos a Janotti Junior (2007), o qual afirma:

A autenticidade envolve, então, o polêmico aspecto da criatividade nas indústrias culturais e a busca por distinções e diferenciações em meio ao universo musical. Afinal, ser reconhecido significa alcançar uma certa autonomia criativa, mas, ao mesmo tempo, encontrar um lugar no mercado (Janotti Junior, 2007, p.10).

Portanto, fazendo coro ao cenário contraditório da

chamada ideologia do rock (Frith, 1996), o Led Zeppelin buscava a inovação como forma de distinção e supremacia com relação aos demais concorrentes da sua época ao passo que produzia para uma massa de consumidores que recrudescia gradativamente. Era desse modo que a banda habitava a morada aonde “a tensão permanente que

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O incessante rugido:

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envolve os processos criativos e as lógicas comerciais” (Janotti Junior, 2007, p.3) reina absoluta.

Transcendendo o cenário estabelecido, mas, paradoxalmente ou não, fazendo parte dele, Led Zeppelin III, lançado em 5 de outubro de 1970, foi então mais além. Recheado de números acústicos, o álbum deixou atônitos alguns fãs e fez com que os integrantes da banda fossem chamados de traidores por alguns críticos (Wall, 2009). Mesmo assim, o disco atingiu o primeiro lugar entre os mais vendidos tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos (Williamson, 2011). Sucesso similar aconteceu também com o quarto álbum, de novembro de 1971. Repleto de sucessos como Rock and roll, Black dog e Stairway to heaven – considerada por muitos especialistas de música e fãs o grande momento musical do grupo – o lançamento colocou o conjunto definitivamente no mainstream da música popular massiva dos anos de 1970.

Tido como uma “estratégia de consumo amplo”, segundo Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p.19), o mainstream consiste em fazer “escolhas de confecção do produto reconhecidamente eficientes, dialogando com elementos de obras consagradas e com sucesso relativamente garantido. [Implica um] sistema de produção/circulação das grandes companhias musicais”. Seguindo a lógica estabelecida pela indústria cultural, neste sentido, significaria afirmarmos que o material construído é balizado pela égide corporativa da produção de mercadorias e pela troca (Thompson, 1995).

Estaria, então, o Led Zeppelin produzindo peças que não passariam de construções simbólicas moldadas de acordo com certas fórmulas preestabelecidas e impregnadas de estereotipias e elementos de identificação do consumidor? A chamada autenticidade do grupo não

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passaria logo de uma estratégia mercadológica para vender o grupo?

No caso do Led Zeppelin, a resposta mais sensata parece ser o não. Mesmo não esquecendo o mercado, o conjunto mantinha-se criativo. Portanto, ao promover diálogos com outras possibilidades além do blues e do hard rock, podemos situar o grupo como “mainstream interseccional” quando esse promove uma espécie de “ir além” do mainstream no sentido clássico trabalhado anteriormente. Ele se emancipa das premissas dessa categoria e a renova de maneira orgânica.

Reforçando isso, com exceção de Presence (1976), que, com raríssimas exceções, adota como linha de frente o blues e o hard rock, os outros três álbuns de estúdio produzidos pela banda– Houses of the holy (1973), Phisical Graffiti (1975) e In through the out door (1979) – alcançariam igualmente destaque por comprovar a sua veia criativa. Além das habituais influências pesadas e blueseiras, passando pelas baladas e os momentos acústicos, nos três álbuns acima elencados, o Led Zeppelin expandiu os seus horizontes e, por conseguinte, os da música produzida na década de 1970.

Números que flertavam com o soul (The Crunge), o pop (Dancing days), o reggae (D’yer Mak’er) e o prog rock (No quarter) apareciam em Houses of the holy com a mesma falta de cerimônia com que a funkeada Trampled under foot, a oriental Kashmir, a psicodélica In the light e o boogie woogie de Boogie with Stu brotavam em Phisical Graffiti. No entanto, In through the out door, o último trabalho do grupo em estúdio, sinalizava caminhos ainda mais ousados e diferentes de tudo o que já havia sido feito e comercializado. A fórmula do que era vendido mais uma vez era quebrada.

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Num momento em que os integrantes do Led Zeppelin “pareciam determinados [mais uma vez] a abraçar novos e diferentes estilos, mas mantendo a fé nas raízes do rock and roll” (Welch, 2012, p.54), o que vimos foi tudo isso e algo mais. Com John Paul Jones e Robert Plant tomando a frente, In through the out door é, de longe, o trabalho mais desigual já produzido pela banda. Em que pesem os diálogos com o blues e algumas passagens mais pesadas, os teclados são a tônica da obra. Neste novo e sempre complexo cenário, o grupo flertaria até mesmo com o tecnopop. 3. Life Begin again12

O que o futuro reservaria para o Led Zeppelin ou o

que o Led Zeppelin reservaria para o futuro? Nunca saberemos. Mas talvez Robert Plant possa sinalizar alguns rumos. Ou pelo menos uma quarta parte dessa possibilidade. Após o término da banda, o cantor, então com 32 anos, confessou: “Me vi parado em uma esquina, agarrando doze anos da minha vida, com um nó na garganta e lágrimas nos olhos, sem saber em que direção seguir” (Welch, 2012, p.60).

Almejando sentir segurança novamente, “no início de 1981, [Plant] explorou as suas raízes de R&B, [rock and roll] e blues com os Honeydrippers (...)” (Bream, 2011, p.239). Com um grupo de amigos, saiu em turnê pela Inglaterra. “Voltei aos poucos, tocando em clubes

12 Canção gravada em 2001 pelo grupo Afrwo Celtic Sound System, para o

álbum Volume 3: Further in Time. A música tem a participação de Robert Plant nos vocais e também está presente na coletânea Sixty six to Timbuktu, lançada pelo cantor em 2003.

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com Robbie Blunt, para duas, três pessoas – sem ser anunciado, só para sentir meus pés no chão13”.

Dessa equipe, apenas Blunt gravou com Plant o seu primeiro disco solo. Lançado em 1982, Pictures at eleven apresentava um músico renovado que mantinha elementos da sua antiga banda, mas que, ao mesmo tempo, já dava mostras do que viria posteriormente. Se Burning down one side remetia a In through the out door e Slow dancer era uma sequência de Kashmir, Pledge pin e Fat lip soavam como linhas de fuga do passado, demonstrando que o cantor começava a vislumbrar novos caminhos.

Robert Plant fez 33 anos naquele verão. Segundo os termos juvenis do pop, ele pertencia a uma geração antiga, distanciada do pulsar da época. Mas Plant teve a curiosidade de conferir se podia usar o que acontecia na música para criar um marco indicativo de sua próxima atitude. Já que o som dominante era o electro-pop, (...) ele comprou uma bateria eletrônica Roland (Rees, 2014, p. 178).

Surpreendentemente, Plant optou por não sair em

turnê para divulgar Pictures at eleven. Segundo ele, não fazia sentido executar músicas da sua ex-banda. O cantor precisava ampliar o seu repertório de composições próprias. Sendo assim, The principle of moments não tardou a sair.

O novo material foi arremetido às lojas em julho de 1983 (Williamson, 2011). Se em Pictures at eleven a semelhança com o Led Zeppelin ainda se fazia presente, em The principle of moments, a distância foi alargada sobremaneira. Neste, os diálogos com o ex-grupo do 13 Em entrevista publicada na extinta revista musical brasileira Bizz, em

junho de 1988. 17

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cantor aparecem de forma tímida como na levemente oriental Wreckless love ou em Other arms, tema de abertura do disco. De resto, o álbum soa como um típico produto musical dos anos de 1980, carregado de roupagens eletrônicas. Dessa vez, Plant lançou mão de novas sonoridades e, nesse sentido, o uso de sintetizadores começava a reinar sobre o seu trabalho. Novamente, o músico provava que a busca incessante pela autenticidade ressurgia com ainda mais força e que essa não era exclusividade do âmbito underground, ao contrário do que habita o “imaginário dos fãs, críticos e colecionadores” desse cenário, conforme sustentam Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p. 18).

Destarte, a inovação e a criatividade tornariam a aparecer de forma mais cristalina e, assim, novas composições começaram a surgir. Entre elas, o primeiro sucesso do cantor como artista solo: Big log. “(...) Com seu senso de mistério profundo e serpenteante, acentuado por um misericordiosamente sutil arranjo de sintetizador, (...) a faixa deu a Plant seu maior sucesso como um single quando entrou para o Top 20 em ambos os lados do Atlântico em julho de 1983” (Williamson, 2011, p.195).

Intencionalmente ou não, com Big Log, Plant manteve viva a, para nós, discutível contradição que permeia a ideologia do rock, de Frith (1996): o perdurável movimento pendular entre a criação e o mercado, o que confere ao artista uma “autonomia simbólica relativa” (Janotti Junior, 2007, p.5). Por outro lado, se The Principle of moments obteve grande êxito de vendas a exemplo de Pictures at eleven, Shaken ‘N’ stirred, lembrou a petulância de Led Zeppelin III. Mas não em termos sonoros.

Nesse lançamento de 1985, Plant surpreendeu a muitos com uma gama infinita de variedades musicais

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jamais vista em seus trabalhos tanto no Led Zeppelin quanto em sua carreira solo. Enveredando ainda mais pelo tecnopop, a criatividade do músico parecia expandir-se para caminhos duvidosos e tomados de artificialidade. Shaken ‘N’ stirred tinha um break (Too Loud) e era permeado por elementos da new wave, bastante popular na época. Apesar de Little by little atingir boa receptividade nos Estados Unidos, a maior parte do disco decepcionou tanto os fãs quanto os críticos na época. No entanto, o cantor mostrava mais uma vez que estava disposto a correr riscos e a não seguir padrões estáticos, ou, em outras palavras, ao que a indústria musical esperava dele.

Três anos se passariam até o lançamento de Now and Zen, em 1988. Com uma banda inteiramente reconstruída, o inglês, ainda abusando dos teclados em alguns momentos, promoveu uma conversação com o seu passado, algo constante em suas produções. O disco é repleto de refrãos, os quais, segundo Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p. 14-15), consistem no “elemento básico da canção popular massiva [e] pode ser definido como um modelo melódico de fácil assimilação que tem como objetivos principais sua memorização por parte do ouvinte e a participação (‘cantar junto’) do receptor no ato de audição”. O resultado disso foi uma mistura de sons que acertaram em cheio os então céticos apreciadores do cantor. Do sucesso de Heaven Knows e o rockabilly de Tall cool one – ambas com participação de Jimmy Page – à balada Ship of fools, a obra devolveu ao músico a confiança dos fãs e da crítica especializada. E mais: resgatou outra vez o reconhecimento de Plant como um artista singular no cenário musical massivo. Sobre isso, à época, ele afirmava:

[a música] Tem de comunicar alguma coisa. Eu sou sério. Dou muita risada, mas esta música é

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vital. Não vou me contentar com um mingauzinho mainstream. Não preciso de uma Ferrari. Quero manter este fio de corte que tenho preservado e amado durante tanto tempo. É uma combinação de humor e obsessão com um pouco de talento. Não quero me dissolver na estrutura básica que as pessoas consideram uma feliz meia-idade14.

Nessa declaração do artista, percebemos mais uma

vez um discurso que demonstra a tentativa de não estar preso unicamente ao mercado e aos modelos pré-determinados da indústria musical. Além também de uma auto-percepção da própria carreira, no que Plant denomina de “fio de corte”, na própria experiência do artista e da relação com sua criação. Algo tão caro aos preceitos de Walter Benjamin (1987, p.119), o qual afirma que não devemos imaginar que os “homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso”.

Esta perspectiva benjaminiana nos ajuda a reforçar o argumento do porquê considerarmos Plant um artista que habita o chamado mainstream interseccional. Esta intersecção, ao nosso ver, é, sim, um diálogo entre a possibilidade de liberdade e a experiência do artista dentro dos ditames mercadológicos no mundo capitalista. Talvez o limite, a zona de fronteira entre o fazer musical e a possibilidade de comercializá-lo. Essa pobreza ao qual Benjamin se refere é interpretada como o limite que as fronteiras do mercado impõem. Já a decência seria não respeitá-las, cruzá-las em prol da própria arte, que deveria ser maior que o valor mercadológico que ela possui.

14 Em entrevista à Revista Bizz, em junho de 1988.

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Talvez Plant venha tentando isso, por vezes aceitando o mercado, mas, no entanto, não se colocando numa zona de conforto ao confrontá-lo com sua obra.

Isso posto, dois anos depois, Manic nirvana é lançado causando furor. A semelhança com o Led Zeppelin era explícita. À vista disso, agora, eram as guitarras que tomavam a frente. Exemplos não faltavam: as três primeiras faixas – Hurting kind (i’ve got my eyes on you), Big love e S S S & Q – soavam como a ex-banda do vocalista. De modo semelhante, mas com menos peso, I cried e Liar’s dance lembravam os momentos acústicos do seu passado.

Com Fate of Nations, de 1993, Plant robustecia novamente a volta ao passado sem, é claro, deixar de olhar para frente. As duas primeiras faixas do disco já simbolizam bem este processo dialógico proposto pelo artista. Calling to You soa quase com um blues pesado, como se um chamado às origens. Em seguida, em Down To Sea, o cantor se joga literalmente no mar de influências orientais com tablas indianas e harmonias árabes, elementos sempre presentes na carreira do artista. Vale destacar também a canção Memory Song, marcada por uma sonoridade de guitarras sujas, acordes menores e batidas com caixa de bateria aguda, emblemática do movimento grunge, demonstrando o quanto o cantor estava conectado com o que estava acontecendo na época, mas com letras que remetem a memórias e sonhos.

Fica aqui mais uma vez essa clara relação que o artista possui com a tradição, tida com um constante processo, redescoberta, nunca estática e muito menos imóvel e imersa no passado. Algo semelhante ao que Coutinho (2002) observa na obra de Paulinho da Viola, que poderia perfeitamente dialogar com a trajetória de Plant, dentro, é claro, dos contextos sociais, culturais e

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O incessante rugido:

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históricos de cada um. Não como algo cristalizado e sem vida, mas em constante mudança:

como vir a ser, como história. O passado resgatado tem importância na medida em que diz aos interlocutores atuais alguma coisa sobre o presente e, desta forma, permite uma ação voltada para o futuro. Nessa perspectiva, a "tradição" aparece como um projeto consciente de transformação da realidade, isto é, como práxis criadora (Coutinho, 2002, p.6).

Aqui, a música popular (e, por vezes, não massiva)

se caracterizaria a partir de uma perspectiva ideológica, pela sua atitude com relação à tradição (no caso de Plant com o rock e o blues), ou seja, pela maneira como reelabora os signos culturais do passado e constrói uma historicidade conveniente às perspectivas de determinado contexto social e cultural.

Essa característica de Plant seduz até mesmo aqueles que estão dentro do jogo da indústria musical. De acordo com o produtor do disco, Chris Hughes, “tem que se aplaudir o cara, porque ele está sempre atrás de ideias novas e de gente nova para trabalhar”. E acrescenta: “Ele não é do tipo que fica sentado esperando que tudo aconteça, e, nesse sentido, ele não é só cantor de rock, mas artista de verdade” (Rees, 2014, p.215-216). Consequentemente, Fate of Nations apresenta um ecletismo considerável em termos sonoros o que reforçava a imagem de autenticidade e autonomia do distinto músico. Já na abertura, com a já citada Calling to you, o cantor apresenta boa parte do estilo que marca a sua trajetória: hard rock e toques orientais temperados pelo solo de violino do britânico Nigel Kennedy. I believe e 29

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palms marcam as passagens mais pop do álbum enquanto Colours of a shade lembra o lado folk do Led Zeppelin.

Depois de um hiato de nove anos, no qual Plant gravou e excursionou com o seu ex-companheiro Jimmy Page, Dreamland aparece em 2002. Mais uma vez com uma nova banda, a Strange Sensation, o músico desfilou por músicas que marcaram a sua vida como as baladas Song to the siren, de Tim Buckley, e Darkness, darkness, composta por Jesse Colin Young. A parceria com os mesmos colegas ganhou força com Mighty Rearranger, de 2005. Segundo a crítica especializada:

[o álbum] soou como uma importante declaração de um homem que tinha muito o que dizer. “Another tribe”, “Takamba” e a brilhante “Freedom fries” pareciam fazer um cortante e angustiado comentário sobre o mundo pós 11 de setembro. “Tin Pan Valley” é uma singela análise sobre os perigos de se viver de glórias passadas (...) Incursões no misticismo (“The enchanter” e “Dancing in heaven”), (...) riffs de rock (“Shine it all around”), lamentos do blues (a faixa-título), (…) violões estilo Led Zeppelin III (“All the king’s horses”) e influências árabes e norte-africanas (“Another tribe” e “Takamba”) colidem de maneira inesperada e, muitas vezes empolgante. Acompanhado mais uma vez pela Strange Sensation, (...) Plant acredita que é seu melhor trabalho com muitas nuances e sutilezas e com aquele rugido leonino, com garganta aberta, solto apenas quando estritamente necessário. (Williamson, 2011, p.200).

Uma banda nova e dois álbuns depois, o cantor dá

uma pausa na carreira solo para gravar um disco de muito sucesso mercadológico com a cantora norte-americana de

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bluegrass Alison Krauss, em 2007. Já Band of joy, título em homenagem à antiga banda de Plant, é lançado três anos depois, apresentando, mais uma vez, músicos diferentes. Sendo bem sucedido tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, o material engloba momentos bem díspares. No entanto, tudo parece se encaixar.

As músicas iam desde o arcaico, como a tradicional “Satan, your kingdom must come down” e uma balada folk dos apalaches, “Cindy, i’ll marry you someday”, até seleções mais contemporâneas, como “Angel Dance”, de Los Lobos, banda tex-mex de Los Angeles, e um par de faixas contemplativas da Low, banda de drone rock de Minnesota –, “Silver rider” e “Monkey”. Plant cantou com freio e firmeza, a voz encaixando-se em cada canção como se fosse um velho terno favorito (Rees, 2014, p.272).

Por fim, ou, no caso de Plant, até o momento, o

último registro do vocalista, Lullaby and... The Ceaseless Roar, lançado em setembro de 2014, promove novas fusões musicais. O que segue lhe atribuindo um alto grau de autonomia e a possibilidade sempre vislumbrada de “ruptura com as formas [padronizadas e consequentemente previsíveis] estabelecidas pelo mainstream” (Janotti Junior, 2007, p.11), as quais fazem parte daquilo que chamamos de mainstream estático. Contando novamente com a maior parte dos músicos da Strange Sensation, a agora nomeada Sensational Space Shifters ajuda o cantor a namorar com a world music em composições como Little Maggie e Rainbow; a criar climas envolventes como em Embrace another fall; e a não esquecer do peso em Turn it up; e também de soar pop e, ao mesmo tempo, intimista em House of Love.

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Não seguir o mesmo formato ou os trilhos do trem que a indústria musical procura traçar. Este parece ser o mantra que Robert Plant vem evocando há quase cinquenta anos. Dialogando com a tradição, com o passado, o presente e o futuro, o artista busca desafios constantes. Seria ele uma espécie de “esquerda do mainstream”? Segundo o próprio, “sim. Eu crio os desafios. Ainda porque não existe outra maneira de se fazer as coisas. A não ser que se esteja compondo só para manter a carreira em pé, manter a casa em Malibu. Se o jogo é este, então entrei para a profissão errada. Não quero seguir essa linha (...)”15. E acrescenta:

Sei que é apenas música, entretenimento, mas para mim é muito importante. O principal é que me divirta. Meu negócio é evoluir, mudar, mas manter aquela coisa especial do Led Zeppelin. Nossa intenção sempre foi desenvolver a música. Hoje, as grandes gravadoras contam com fórmulas prontas para sobreviver. Sempre foi uma luta conseguir que eu fosse tocado nas rádios. Ninguém confia em mim, comercialmente. E isso é uma vitória. Tenho um ego enorme... eu me lembro que uma vez um jornal me chamou de “o príncipe do antipop”. Adorei. Me afasta dos Bon Jovis da vida16.

Assim, mais uma vez constatamos esse perfil

outsider/insider de Plant, de uma quase total consciência de estar dentro e fora da lógica de mercado. De forma orgânica, em contato direto com as diferentes histórias das músicas (Wisnik, 2006), o artista tenta constantemente habitar outros possíveis mundos, reafirmando as

15 Em entrevista publicada na extinta revista musical brasileira Bizz, em

junho de 1988. 16 Em entevista à revista Bizz (1993).

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contradições e ambiguidades do próprio sistema não somente através de sua obra, mas também do seu discurso. 4. e ∞

Entre todas as considerações produzidas até agora,

talvez não existam outras maneiras que traduzam melhor as intenções artísticas de Robert Plant para concluir este artigo que não sejam coda ( ) e infinito (∞). Um indivíduo disposto a encarar o fazer artístico em meio a tantas amarras que a contemporaneidade propõe, sejam elas positivas ou negativas.

Robert Plant é um daqueles indivíduos que percebem o tempo de outra forma, não linearmente, muito similar à perspectiva de Jorge Luis Borges (2011, p. 16). Para o escritor argentino, o tempo é um tenebroso e exigente problema, especialmente para a matemática, que busca sincronizar o tempo individual de cada um. Assim, nenhuma das várias eternidades criadas pelos homens “pode ser concebida como uma agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. É uma coisa mais sensível e mágica: a simultaneidade destes tempos”.

Não por acaso, esse símbolo foi tão utilizado para propagar os tempos zeppelinianos, que, segundo os próprios protagonistas da história, nunca findaria. Da mesma forma que o símbolo coda, título do álbum póstumo da banda, o nono é também uma notação musical que significa algo que retorna ao primeiro compasso, circular, que se repete, indefinidamente. O fim, mas também o início.

Wisnik (2006, p.58) nos ajuda a melhor elucidar o conceito de coda na criação sonora tomando como base, segundo o autor, algo que se tornou evidente, que a música passa a “requisitar uma escuta propriamente musical, isto

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é, polifônica. É possível reouvir a sua história dentro de uma base sincrônica. É preciso produzir novos mapas. É possível ouvir tudo de novo e estar soando já diferentemente (...) Tocar a primeira escala”.

Percebemos assim que, passando por cima dos ditames da indústria cultural, inerentes ao contexto da música popular massiva, Robert Plant mantém a essência, porém conversa serena e tranquilamente com outras possibilidades, em busca de mapas ainda desconhecidos, de antigas e novas geografias sonoras. Reforçando a nossa afirmação, temos as palavras do próprio músico17:

Bem, é quase como ter uma missão. Por que Plant não cala a boca e simplesmente volta com Jimmy Page? Porque ele tem uma missão. Se tiver de dançar sozinho, vai dançar sozinho. Acho que é isso, nada muito profundo. Você sabe que eu sou e não sou uma pessoa séria, e que tudo que quero é ser visto... como eu me vejo. Como alguém que faz uma ou duas coisas com uma ligeira inclinação para o passado mas que, ao mesmo tempo, busca dar um passo adiante. Não quero seguir o caminho mais fácil. Não quero uma parceria com Chris Squire ou seja lá qual for a opção disponível. Quero tentar alcançar “aquela” luz (...)

Genuíno representante do mainstream

interseccional, Robert Plant foge das amarras previsíveis pelas quais passam os adeptos do mainstream estático. Constrói, desta forma, a sua identidade a cada produção, aperfeiçoando-a e/ou modificando-a se for o caso. Não para no tempo e muito menos vive somente das glórias do passado. É fiel apenas ao que ele mesmo canta em Tin Pan

17 Em entevista à Revista Bizz, junho de 1988.

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Valley: a mover-se para terrenos mais elevados. Cada vez mais, infinitamente.

5. Referências BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Magia, Técnica e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BORGES, J. L. Historia de la eternidad. Buenos Aires: Debolsillo, 2011. BREAM, J. Whole lotta Led Zeppelin: a história ilustrada da banda mais pesada de todos os tempos. Rio de Janeiro: Agir, 2011. CURI, G. The Music from the sea. Social and cultural aspects on the creation of jazz and samba. Dissertação de mestrado. Dublin: University College Dublin, 2006. COUTINHO, E. G. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição em Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: UERJ, 2002. DOURADO, H. A. Dicionário de Termos e Expressões Musicais. São Paulo: 34, 2004. FRITH, S. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University, 1996. JANOTTI JUNIOR, J.; CARDOSO FILHO, J. A música popular massiva, o mainstream e o underground. Trajetórias e caminhos na cultura midiática. In: JANOTTI JUNIOR, Jeder; FREIRE FILHO, J. Comunicação & música popular massiva. Salvador: EDUFBA, 2006. JANOTTI JUNIOR, J. Mídia popular massiva e comunicação: um universo particular. Trabalho apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP Comunicação e Culturas. XXX 28

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Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos, 2007. Disponível em <http://www.intercom. org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1144-1.pdf> Acesso em: 18 jul 2015. REES, P. Robert Plant: uma vida. São Paulo: LeYa, 2014. REY, L. e PHILIPE, G. Livro negro do rock. O dicionário do heavy metal. São Paulo, Somtrês, 1984. THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. WALL, M. Led Zeppelin: quando os gigantes caminhavam sobre a terra. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009. WELCH, C. Tesouros do Led Zeppelin. São Paulo: Lafonte, 2012. WILLIAMSON, N. O guia do Led Zeppelin. São Paulo: Aleph, 2011. WISNIK, J. M. O Som e o Sentido: Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Uma metodologia semiótica para estudos jornalísticos e estéticos1

Gilmar Hermes

Na pesquisa de doutorado realizada em 2005, com

o título As Ilustrações de Jornais Diários Impressos: Explorando Fronteiras Entre Jornalismo, Produção e Arte (HERMES, 2005), estudou-se o assunto pelo viés das Teorias de Jornalismo, aliadas à Semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914). As questões estéticas foram relacionadas à linha teórica de estudos de comunicação que investiga a produção jornalística, na perspectiva da teoria interacionista (TRAQUINA, 2004). Observou-se como os profissionais ilustradores praticam essa atividade de caráter artístico, inseridos nas rotinas jornalísticas do jornal Folha de São Paulo e, também, em outros três veículos impressos de grande circulação, Zero Hora, Jornal da Tarde e Estado de São Paulo (Estadão). Esses veículos foram escolhidos pelo fato de, no momento da pesquisa de campo, dedicarem um espaço gráfico significativo às ilustrações. O jornal Folha de São Paulo foi o ponto de partida do problema de pesquisa em virtude de publicar ilustrações feitas por autores que se identificam como “artistas plásticos” e também aqueles que se identificam como “ilustradores jornalísticos”.

Foram feitas considerações semióticas às ilustrações publicadas no decorrer dos anos de 2003 e 2004 nesses veículos, ao lado do relato das investigações das rotinas jornalísticas através de entrevistas e acompanhamento dos trabalhos, junto às redações.

1 Este trabalho parte do artigo apresentado no NP de Semiótica do VI

Encontro de Núcleos de Pesquisa da Intercom, em 2005.

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A aparição das ilustrações geralmente abstratas, feitas por artistas plásticos, nas edições de domingo do jornal Folha de São Paulo, foi tomado como algo bastante significativo sobre os limites e as perspectivas da elaboração gráfica de um jornal. Além disso, foram feitas considerações a outros projetos, que tiveram a participação de artistas plásticos, como o desenvolvido em 1989, no Jornal da Tarde, e a obra do artista plástico Leonilson, considerada como uma referência dessa atividade pelos entrevistados.

A Teoria Geral dos Signos, de Peirce (2000), fornece os fundamentos lógicos apropriados tanto para a análise das ilustrações como para a investigação dos desdobramentos de sua produção, exatamente por possibilitar a compreensão da dimensão estética dos processos midiáticos. A teoria perciana pode ser tomada como uma fonte lógica, que possibilita um maior rigor em todo estudo que se pretende científico. Afinal, Peirce, voltado em toda a sua vida para problemas da lógica, esteve preocupado em elucidar as diferentes formas de pensamento e o modo como nos aproximamos de uma melhor compreensão da realidade.

Trabalhou-se o assunto, teoricamente, na linha das pesquisas sobre a produção jornalística, numa perspectiva semiótica, utilizando as concepções de Peirce. A escolha desse referencial teórico é decorrente do fato de ele permitir uma abordagem mais comunicativa dos problemas estéticos. O pensamento de Peirce tem um espectro muito amplo. Por isso, foi tratado, sobretudo, como um elucidador do problema do signo, como uma forma de compreensão das mediações, tendo como foco os problemas estéticos.

Peirce (2000) pensou que tudo pode funcionar como um signo e, dessa forma, vinculou a Semiótica a um

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amplo leque epistemológico. O autor trata a problemática do signo através de relações triádicas. De uma maneira geral, seu pensamento considera, positivamente, que ocorre uma transformação da nossa compreensão da realidade, através das semioses. Enquanto os tipos de signos estão para seus objetos e interpretantes, os diferentes tipos de mediações estão para as suas conexões com a realidade e os conhecimentos estabelecidos. Em processos relacionais, processos semióticos contínuos, nosso vínculo com a realidade está sempre em mudança. A teoria peirceana ajuda a pensar essas relações e a estabelecer um olhar semiótico em torno delas. Podem-se destacar, como ocorre neste caso, as conexões que se dão no plano estético da experiência. Nesse sentido, procurou-se estabelecer um olhar semiótico sobre a prática profissional das ilustrações jornalísticas, problematizando a relação que ocorre nessa atividade, entre os campos do jornalismo e da produção artística.

Através da Teoria Geral dos Signos, Peirce trouxe uma contribuição fundamental, tratando de uma forma relacional as formas de conhecimento a priori e a posteriori, da ordem dos conceitos e da ordem das intuições da sensibilidade.

Interessa tomar a obra de Peirce como a de um pensador que contribuiu para o conhecimento da comunicação. A comunicação poderia ser definida como campo, sobretudo como um fenômeno moderno, que, em função da especialização de outros campos, configura-se como um lugar de fluxo. Esse lugar de fluxo é próprio para conexões, inter-relações e jogos entre os planos da experiência que se configuram através dos conceitos e da sensibilidade, manifestados em diferentes áreas do trabalho e do conhecimento. Neste sentido, o que é da ordem da sensibilidade dialoga com aquilo que

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corresponde ao conceitual, constituindo não só um problema retórico, mas, evidentemente, de comunicação, de mediações semióticas.

Tratou-se a comunicação como contexto de inserção de aspectos do campo artístico. Nesse lugar de fluxo, a comunicação, observou-se o papel de elementos artísticos, em que o papel da disciplina estética pode ser observado de maneira mais nítida. Essa disciplina é voltada para problemas da sensibilidade, o que é inerente a todas as atividades humanas e, portanto, também à comunicação e não só às artes. Dessa forma, o que pode ser reconhecido como artístico é o que de mais estético existe na comunicação. A comunicação e a estética são duas disciplinas que podem ser abordadas interdisciplinariamente ou, até, transdisciplinariamente. O ponto de encontro entre as duas ocorre, de acordo com o objeto de pesquisa, naquilo que pode ser reconhecido como artes visuais no jornalismo impresso.

O campo das artes visuais é caracterizado, na Modernidade, pela sua ênfase estética, pois não precisa mais ser, necessariamente, vinculado, por exemplo, aos temas históricos, às representações naturalísticas ou à religiosidade, como ocorreu nos séculos anteriores à Modernidade. E, na Modernidade, esse campo perdeu o caráter instrumental que caracterizou, principalmente, o seu vínculo às religiões. As abstrações – um fenômeno artístico tipicamente moderno – fazem com que o espectador se depare com um sentido complexo, que aponta para um enigma semiótico, que pode ser, por sua vez, estudado através da teoria peirceana.

A estética, esse campo voltado para a questão do sensível, é explicitada da melhor forma pela categoria peirceana da primeiridade (qualidade). Essa, ao lado da secundidade (singularidade) e da terceiridade

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(generalidade), é uma das balizas das relações entre signo, objeto e interpretante.2 Assim como as demais, a categoria da primeiridade não é um conceito classificatório e, sim, relacional. Por ser relacional, serve à comunicação, atividade que produz intermediações entre diferentes campos.

Apesar de lançar-se um olhar estético sobre o jornalismo, buscando-se vê-lo sobretudo do ponto de vista da primeiridade, muitos exemplos de imagens estudadas foram caracteristicamente midiáticos. Esses se impõem prioritariamente pela terceiridade, a inteligibilidade (própria dos símbolos), que é uma característica mais diretamente relacionada ao texto verbal, do que pela primeiridade, que é aquilo que nos atinge mais pela sensibilidade (própria dos ícones). Do ponto de vista da terceiridade, também aparecem os valores/notícia, que Traquina considera como um “elemento fulcral da cultura jornalística” (TRAQUINA, 2005, p.77). Esses valores surgem, tanto como critérios de noticiabilidade, como formas de apresentação do conteúdo noticioso.

Hoje, pode-se observar o uso de muitos procedimentos artísticos, percebidos ao longo da história da arte, na produção de ilustrações. Isso se intensifica, 2 Nas suas dez classes sígnicas mais conhecidas, apresentadas nas traduções

brasileiras de seus textos, Peirce está atento aos diferentes efeitos dos signos, que decorrem dos tipos de representamens e relações com os objetos. Ele começa com os tipos de signos mais marcados pelos aspectos qualitativos, na categoria da primeiridade, o que seria o caso de um qualissigno (remático, icônico, qualissigno) e finaliza com uma relação triádica plena no âmbito lógico do signo, que seria um argumento (argumento, simbólico, legissigno). Há uma transição de uma experiência no nível de primeiridade, que estaria mais ligada às sensações, para a experiência no nível de terceiridade, de caráter mais lógico. A tríade que corresponde ao próprio signo, o representamen, é a do qualissigno, sinsigno e legissigno. Esses três tipos de signos correspondem, no ponto de vista do representamen, às categorias fenomenológicas da primeiridade, secundidade e terceiridade.

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inclusive, pelo uso das técnicas de computação gráfica. Uma das diferenças fundamentais da estética midiática está no fato de as mensagens serem submetidas às regras de produção do jornalismo. Dentre essas, a da “simplificação” ou “clareza” é uma das que atinge mais diretamente às ilustrações, vinculando-as às definições estéticas mais tradicionais, que relacionam a arte à imitação da natureza.

Os procedimentos estéticos, nesse sentido, são tratados de forma a corresponderem a um interesse instrumental, lembrando momentos da história da arte anteriores à abstração moderna, quando o trabalho artístico se justificava pelo vínculo que tinha em relação ao mundo exterior, não assumindo plenamente o seu caráter de qualissigno, sobretudo de potencialidade semiótica, aberto às múltiplas significações. Poderíamos estabelecer comparações entre as teorias do jornalismo, conhecidas como “teorias do espelho”, e as tradicionais formas de representação naturalísticas da arte. A arte moderna, com a sua pretensão de um fazer puramente estético, em geral, tentou evitar esse caráter que, inevitavelmente, compromete o jornalismo do ponto de vista artístico.

Neste estudo, foram feitas observações durante o acompanhamento das rotinas dos jornais Zero Hora, Estado de São Paulo (Estadão) e Jornal Tarde; entrevistas com os artistas plásticos participantes do projeto no jornal Folha de São Paulo; entrevistas com os editores de arte dos jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Estadão e Jornal da Tarde, e com os ilustradores do jornal Folha de São Paulo, que trabalham em suas casas ou estúdios, fora da redação.

Na pesquisa de campo, ainda foram realizadas as entrevistas com os ilustradores Gilmar Fraga, Bebel (ambos da Zero Hora) e Carlinhos Muller (do Estadão),

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que não estavam presentes no momento do acompanhamento das rotinas.

Foram analisadas ilustrações de todos os jornais e de todos os artistas plásticos, participantes do projeto da Folha, identificadas como núcleo de problematização desta pesquisa. Além de ilustrações vinculadas à observação das rotinas, foi realizada a leitura de, pelo menos, um trabalho publicado, de cada um dos ilustradores entrevistados, tecendo considerações semióticas, pensando nas suas concepções e nas suas rotinas de trabalho.

Fazem parte do resultado final diferentes vozes: a do pesquisador, as dos ilustradores, as dos artistas plásticos, as dos editores e as vozes dos autores tomados como referenciais teóricos. A leitura semiótica textual das imagens publicadas foi feita à luz dessas observações, que somam à semiótica as perspectivas das teorias do jornalismo, voltadas aos aspectos organizacionais e construcionistas dessa atividade. As observações feitas durante o acompanhamento das rotinas, ao lado das entrevistas e de alguns registros materiais, constituem signos, ideias, conceitos, definições, à medida em que são relacionadas com o produto final, que se vê nas edições dos jornais. Durante a elaboração do texto da tese, pouco a pouco, viu-se os exemplares dos jornais estudados, cada vez mais, como a materialização de uma série de relações e preceitos profissionais.

Em função do caráter dinâmico das mudanças, no quadro profissional das redações, é importante considerar que essas constatações se referem a momentos específicos, que não são exatamente os mesmos, para todos os veículos e profissionais analisados. Embora as observações tenham sido feitas entre janeiro de 2003 e fevereiro do ano de 2004, por uma questão de organização e, até mesmo,

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física, foi impossível fazer todas as anotações em períodos simultâneos ou muito próximos. Nesse sentido, há algo de inevitavelmente fictício nesta construção textual, em termos de relação temporal. Todos os depoimentos e considerações, por isso, foram notificados quanto à sua data de realização.

É possível que, atualmente, as visões particulares dos artistas e dos ilustradores já não sejam as mesmas. Por esse motivo, nas considerações às ilustrações publicadas, procurou-se usar exemplos da época das observações das rotinas e das entrevistas. O objetivo é, a partir de ocorrências e de seus respectivos dados qualitativos, produzir conhecimento nessa área jornalística, na ordem da terceiridade, quanto à identificação de práticas e conceitos comuns ou, na ordem da primeiridade, indicando tendências ou possíveis definições, que possam criar insights em torno desta prática profissional, o que corresponde à lógica da abdução, teorizada por Peirce (2000).

Em termos peirceanos, procurou-se observar, no contexto codificado do jornalismo, ocorrências singulares (secundidade) que, à medida em que são recorrentes, podem configurar regras profissionais (terceiridade) ou tendências de mudança ou questionamentos (primeiridade), ainda sendo esboçadas, não plenamente evidenciadas como signos dessa prática. Assim, chegou-se a resultados voltados para o futuro, em termos de compreensão dessa atividade jornalística nas suas práticas atuais, nas suas tendências e nas suas possibilidades.

Foram transcritos depoimentos ou relatos próximos aos processos de produção, vistos como objetos dinâmicos3 – a medida em que possam ser percebidos 3 Peirce (2000) diferencia o objeto dinâmico do objeto imediato. O objeto

dinâmico é aquele que está fora do signo, mas também é em relação ao 37

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como manifestações na ordem da secundidade – segundo os quais é possível se aproximar da realidade de uma prática jornalística. Muitas falas têm um caráter mais geral, pelo fato de representarem as práticas através de leis ou pontos de vista. Outras podem ter um caráter mais indicial4, por estarem vinculadas a uma prática singular observada presencialmente. Ao lidar com a produção de signos imediatos, nos depoimentos, e com profissionais acostumados a atuarem no plano da linguagem, foram observados, sobretudo, signos do tipo simbólico, na ordem da terceiridade. Em relação às suas práticas, contudo, como é próprio das pesquisas voltadas às rotinas jornalísticas, foram registrados signos na ordem da primeiridade e da secundidade, que, contudo, ainda permitem vislumbrar possíveis argumentos na ordem da terceiridade. Essas perspectivas estão presentes, também, nos resultados impressos das práticas, analisados posteriormente.

Para compreender os processos de trabalho dos ilustradores, a partir de observação das ilustrações jornalísticas e de sua relação com o projeto artístico da Folha, foram elaboradas questões a serem respondidas pelos editores dos jornais Estadão, Zero Hora e Folha. Na Zero Hora, foram feitas as primeiras observações de rotinas, o que permitiu preparar questionários a serem aplicados posteriormente junto aos demais ilustradores e artistas plásticos. Durante o trabalho de observação das

qual o signo existe. A maneira como ou sob quais aspectos esse objeto dinâmico aparece no signo vem a ser o objeto imediato.

4 Entre as diversas classes de signos definidas por Peirce, as mais conhecidas são as do ícone, índice e símbolo, que tratam da relação do signo com seu objeto. O ícone (primeiridade) é marcado por relações de semelhança, o índice (secundidade), pela coexistência ou relação física com seu objeto, e o símbolo (terceiridade), por estabelecer vínculo com o objeto através de uma generalização lógica (HERMES, 2013).

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rotinas no Estadão, foram entrevistados os editores e ilustradores enquanto acompanhava-se os seus trabalhos. Teve-se o cuidado de fazer as mesmas questões, previstas para os artistas plásticos e ilustradores da Folha, no sentido de colher dados que pudessem ser trabalhados, comparativamente, e, assim, identificar elementos na ordem da terceiridade (leis ou regras) e da primeiridade (possibilidade de tendências).

Evidentemente, houve uma diferença em relação às entrevistas realizadas, tendo como pano de fundo a presença na redação e a observação das práticas. Considera-se, no entanto, que este estudo chegou às conclusões, sobretudo, pelas comparações entre os diversos depoimentos, observando singularidades (diferentes ocorrências ou tendencialidades) e recorrências (signos da ordem da terceiridade).

Na tentativa de compreender o funcionamento de cada um dos jornais, colheu-se diversos testemunhos. Esses situam-se muito na ordem da terceiridade, demonstrando, através dos discursos as regras praticadas, manifestações de valores/notícia ou valores estéticos. Há também a expressão de desejos e configurações pessoais mais próximas da ordem da primeiridade. Isso ocorre, pois essas representam, prioritariamente, tendências e possibilidades que cercam a concepção da atividade, mais do que regras convencionalizadas.

Foi transcrito digitalmente todo o material gravado (depoimentos orais, de caráter indicial e simbólico) e anotadas em papel todas observações (índices e ícones, que caracterizam as práticas das redações). A transcrição do acompanhamento das rotinas e das entrevistas fez parte do processo de análise dos dados. A reflexão produzida nessa tese resultou das questões desenvolvidas ao longo da pesquisa de campo. Pouco a pouco, passou-se

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das primeiras observações às entrevistas e, depois, às novas observações de rotinas. Elas ganharam um caráter de terceiridade, à medida em que explicitam conceitos e regras de caráter geral, que podem esclarecer a atividade de ilustração jornalística. Constatou-se a existência de elementos na ordem da primeiridade e secundidade, que possivelmente pudessem configurar elementos na ordem da terceiridade, e, nesse sentido, procurou-se revê-los ou questioná-los em novas abordagens. O pesquisador reagiu aos depoimentos dos entrevistados percebendo novas questões, gerando novos índices, que poderão configurar novos conceitos, na ordem da terceiridade.

A tese reúne, em torno de questões centrais que emergiram durante o processo de pesquisa, afirmações feitas por um ou mais profissionais em diferentes momentos. É importante observar que o contato com os entrevistados – especialmente os ilustradores – pode ter levantado questões que, para eles, ainda não teriam emergido como motivo de reflexão. Surgiram contradições entre depoimentos feitos em diferentes momentos ou nas respostas de diferentes perguntas, de um mesmo ilustrador. Entre os signos das suas falas, pode-se configurar objetos imediatos na ordem da primeiridade, secundidade e terceiridade. No decorrer do texto da tese, alguns aspectos permanecem na ordem da primeiridade e secundidade. Por se tratar de um trabalho científico, entretanto, ressalta-se aspectos na terceiridade, de forma a poder confirmar ou não a hipótese de que a atividade de ilustração situa-se na fronteira de concepções jornalísticas e artísticas.

Há um pouco de caráter jornalístico na forma deste trabalho, em função do grande número de entrevistas realizadas para a sua realização. O material dessa pesquisa são depoimentos, ou seja, objetos imediatos, mas o objeto

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dinâmico que se tem em vista são as práticas jornalísticas e artísticas. Há que se considerar, no entanto, que existe muita dificuldade para entendê-las fora da ordem do discurso (plano simbólico), pois elas estão cercadas de elementos conceituais. O que se busca na comparação, justaposição e relação entre as falas – citadas sempre com a fonte em itálico – é aquilo que as ultrapassa no seu conjunto e que pode configurar a atividade de ilustração jornalística, entre elementos da ordem da estética e das teorias do jornalismo, numa abordagem semiótica.

As ilustrações são uma prática de ordem estética e jornalística. Elas tendem a ser negligenciadas nas abordagens da imprensa, como se não integrassem o jornal. Não podemos pensar somente os textos verbais jornalísticos e as fotografias, sem a indispensável consideração a essa parte do jornal. É limitada, nesse sentido, a visão de que somente o discurso verbal e as fotografias constituem o jornalismo em essência, o que repercute nas limitações do mercado de trabalho para ilustradores.

Uma atenção crescente aos aspectos estéticos da produção jornalística torna-se importante pela relevância da visualidade das diferentes mídias de caráter impresso, especialmente com a influência cada vez maior da multimídia. As ilustrações são, geralmente, vinculadas aos textos, mas, nesta pesquisa, em entrevistas e acompanhamento do trabalho de editores de arte e ilustradores, observou-se a possibilidade de um certo grau de autonomia, o que é próprio do plano estético. Entre as tendencialidades, uma das questões mais importantes pode ser a "liberdade" no momento de sua criação. Isso é, sem dúvida, um problema de ordem estética, que se depara, também, com paradigmas jornalísticos, entre os

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quais a busca de autonomia caracteriza o processo de profissionalização.

Os artistas e os ilustradores comentam que o que caracteriza e diferencia a arte é a “liberdade” de criação. Os estudos teóricos de jornalismo também pressupõem que a “liberdade” é inerente à prática jornalística, especialmente quanto às diferentes formas de censura às quais os jornais podem ser submetidos (TRAQUINA, 2004). Então, evidentemente, essa é uma questão importante a ser tratada na relação dos campos “artístico” e “jornalístico”.

Ao longo do trabalho, apresenta-se inicialmente os pressupostos teóricos da semiótica peirceana, as bases teóricas do jornalismo, as definições de ilustração jornalística e os conceitos relacionados, como os de caricatura e de história em quadrinhos; e noções fundamentais de estética e de história da arte.

Explicita-se as propostas dos artistas plásticos em relação à realização de ilustrações no jornal Folha de São Paulo e como eles veem esse meio e suas características, analisando o resultado concreto de suas ideias em imagens publicadas.

Através da observação das rotinas e análise de ilustrações, nota-se como são os processos produtivos dos ilustradores profissionais. Define-se o que vem a ser o estilo, as técnicas utilizadas, a relação estabelecida com as atividades jornalísticas de infografia e fotografia, as relações estabelecidas com editores e redatores, e a maneira como as concepções artisticas dialogam com a ilustração. Chega-se à problematização da dimensão estética como um espaço de liberdade.

Para pensar as ilustrações jornalísticas, é necessário situá-las em relação ao modo que o jornalismo vem sendo estudado e também à reflexão estética e da

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história da arte. Nesse sentido, visando à análise dessa forma de produção, situa-se junto às pesquisas conhecidas como interacionistas – que seguem à tradição dos estudos de newsmaking. Opta-se por um viés semiótico e tem-se, como pano de fundo, como um efeito colateral produtor de sentido, elementos da história da arte.

Os estudos sobre jornalismo inserem-se no conjunto de teorias da comunicação, associando-se a estudos científicos que analisam a ação das mídias nas sociedades e suas estruturas internas. Revelam a construção de concepções de comunicação, tendo como um dos aspectos principais o “valor/notícia”. O estudioso Nelson Traquina vem contribuindo, de uma maneira singular, com trabalhos que informam sobre os principais estudos que hoje são tópicos da pesquisa em jornalismo. Além disso, ele oferece suas investigações que contribuem para a compreensão e o aperfeiçoamento da atividade jornalística.

No nosso contexto acadêmico, os referenciais teóricos do jornalismo passaram, pouco a pouco, de um suporte técnico das práticas profissionais e da configuração de uma atividade específica, para uma visão crítica, cada vez mais complexa, dessa forma de trabalho. Buscam entender o seu papel, em termos epistemológicos, bem como sobre o seu tipo de ação social.

Na leitura de uma obra para outra de Nelson Traquina, percebe-se como a abordagem científica do jornalismo amadurece, definindo-se marcos e questões cada vez mais evidentes desse campo, ao lado de novas abordagens. Também a teoria semiótica, através do conceito de semiose, de acordo com Ronaldo Henn (2002), é uma importante ferramenta metodológica para estudos da produção jornalística.

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Apesar de o compromisso ético dos jornalistas consistir, evidentemente, em não transgredir as fronteiras entre realidade e ficção, Traquina (2004) questiona a ideologia profissional que apresenta o jornalismo como sinônimo de realidade. Por trás dessas ideias que perpassam as rotinas, está a Teoria do Espelho, que se constituiu a partir da própria configuração do jornalismo como campo profissional.

A teoria do espelho e a ideia de objetividade estão plenamente associadas e correspondem à tentativa de definir eticamente e logicamente o papel social do jornalismo. São o ponto de partida que se depara hoje com diversos limites críticos. Os jornais, na sua ação efetiva, demonstram pretensas maneiras de tratar a realidade. Essas, de certa forma, podem ser contestadas pelas teorias da linguagem, semióticas e de análise do discurso. A definição de uma categoria profissional e um modo específico de tratar a realidade, em função de prestar a informação, no entanto, levou à constituição de um tipo de conhecimento relacionado a essa atividade. Isso evidencia a necessidade das teorias do jornalismo.

Traquina (2004) vincula a atividade do jornalismo à democracia e, assim, questiona as relações que se estabelecem entre jornalismo e poder. O relacionamento com as fontes de informação, por exemplo, é uma questão fundamental do jornalismo. Esse aspecto se depara com o problema da “autonomia”, com o tipo de ação profissional almejado por todo jornalista, mas se torna problemática diante das formas conceituais e organizacionais da atividade. O jornalismo pode ser observado nas práticas e ter, nas teorias, um ponto de vista constatador e crítico.

Diferente do pesquisador italiano Mauro Wolf (2001), que menciona as consagradas teorias do agenda-settting, do gatekeeper e de newsmaking, Traquina (2004)

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cita as teorias do espelho, do gatekeeper, a organizacional, de ação política, as construcionistas, a estruturalista e a interacionista – essa última da qual se diz partidário. Considera que elas não se excluem e que não são, obrigatoriamente, independentes umas das outras. As teorias do agenda-setting e gatekeeper estão intimamente relacionadas, por trabalharem com a ideia de seleção.

No segundo volume de suas Teorias do Jornalismo, Traquina (2005) afirma que sua intenção é “[...] testar as conclusões principais da já vasta literatura de ‘newsmaking’ que se acumulou durante os últimos cinquenta anos.” (TRAQUINA, 2005, p.14.). Dessa forma, mostra que o termo newsmaking pode estar englobando teorias voltadas para a produção jornalística, como é o caso da organizacional e da interacionista.

Ao descrever estudos teóricos sobre o jornalismo, no livro Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”, Traquina (1993) informou que as análises de conteúdo foram enriquecidas com as análises etnometodológicas de cientistas sociais. Esses, “[...] seguindo o exemplo do jornalista em reportagem, foram aos locais de trabalho, [...] e observaram com olhos analíticos e críticos” (TRAQUINA, 1993, p.15). Observando as rotinas jornalísticas, os procedimentos que se repetem, os constrangimentos e os valores norteadores das atividades diárias, pesquisadores como Gaye Tuchman, John Soloski, Philip Schlesinger e Warren Breed teceram observações questionadoras dos preceitos que guiam as práticas profissionais e os resultados alcançados, entre os quais a teoria do espelho.

John Soloski (1993) nota que a “[...] ideologia do profissionalismo tem fortes componentes anti-lucro e antimercado que estão manifestos na idéia de serviço à sociedade”. Enquanto haveria a formação “educacional”

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do jornalismo, é no exercício da profissão, porém, que os jornalistas compartilham de uma base cognitiva. Dessa forma, apesar de um idealismo “anti-lucro”, que poderia existir, os profissionais tenderiam a se harmonizar com as regras de empresas capitalistas.

A ideia de “objetividade”, conforme Soloski (1993), seria uma das regras mais importantes, que consiste em relatar os fatos da maneira mais equilibrada e imparcial. “Cabe ao jornalista procurar os fatos de todos os lados ‘legítimos’ de um assunto, e relatar depois os fatos de um modo imparcial e equilibrado.” (SOLOSKI, 1993, p.96.) Para o autor, esta é uma maneira prática de lidar com as necessidades dos profissionais, das empresas e dos públicos.

A teoria semiótica5, através das noções de “semiose” e “interpretante”, demonstra como as mediações sígnicas são complexas. Por maior que seja a correspondência com o objeto dinâmico, as representações sempre dão conta desse objeto sob algum aspecto. Isso pode ser realizado, de acordo com conceitos pré-existentes, na categoria fenomenológica da terceiridade, que pode ser também entendida como “ideologia” no contexto jornalístico, expresso pelos valores/notícia.

Pelas “normas do profissionalismo”, poderíamos entender a cultura profissional. Essa, segundo Soloski, está em constante negociação com as políticas editoriais.

A natureza organizacional das notícias é determinada pela interação entre o mecanismo de controle transorganizacional representado pelo profissionalismo jornalístico e os mecanismos de controle representados pela política editorial. [...]

5 Ao longo da tese, reelabora-se também as Teorias do Jornalismo a partir

de apropriações oriundas da Teoria Geral dos Signos. 46

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As fronteiras são suficientemente amplas para permitir aos jornalistas alguma criatividade na reportagem, edição e apresentação das ‘estórias’. Por outro lado, as fronteiras são suficientemente estreitas para se poder confiar que os jornalistas agem no interesse da organização jornalística. (SOLOSKI, 1993, p. 100.)

Esses aspectos podem ser observados nas

entrevistas realizadas nessa pesquisa, nas quais os ilustradores afirmam que realmente existem regras não-explícitas, percebidas nas práticas cotidianas. Mesmo assim, os entrevistados demonstram que almejam uma maior autonomia, em cuja definição entrariam concepções vinculadas à cultura profissional do jornalismo e uma visão do caráter artístico dessa atividade.

Mauro Wolf (2001) explica que os estudos de newsmaking colocam-se entre a “[...] a cultura profissional dos jornalistas e a organização do trabalho e dos processos produtivos” (WOLF, 2001, p. 188.) Esse tipo de pesquisa busca identificar as relações e as conexões entre esses dois aspectos. Dentre eles é que vai se compreender como, por exemplo, entre uma abundância de fatos, somente alguns passarão a ser notícia para o veículo. O que é notícia não teria um valor idiossincrático, mas faz parte de um reconhecimento coletivo do que é notável e do que pode ser trabalhado de maneira planificada.

[A cultura profissional seria uma mistura de retóricas e táticas,] de códigos, estereótipos, símbolos, tipificações latentes, representações de papéis, rituais e convenções, relativos às funções dos mass media e dos jornalistas na sociedade, à concepção do produto-notícia e às modalidades

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que superintendem à sua confecção. (GARBARINO, 1982, apud WOLF, 2001, p.189.)

Wolf evidencia que o produto jornalístico resulta

de uma série de acordos, praticamente orientados, em torno do que é escolhido para a publicação e como isso é publicado. Os “valores/notícia (news values)” ajudam a determinar o que deve ser publicado. “[São] critérios de relevância espalhados ao longo de todo o processo de produção; isto é, não estão presentes apenas na seleção das notícias, participam também as operações posteriores, embora com um relevo diferente.” (WOLF, 2001, p. 196.)

Considerando os estudos partilhados sobre os valores/notícia pelos autores Johan Galtung e Marie Holmboe Ruge, além dos de Richard V. Ericson, Patricia M. Baranek e Janet B. L. Chan, Traquina (2005) observa que Wolf foi o primeiro a perceber que os valores-notícia estão presentes ao longo de todo o processo de produção jornalística, não somente na seleção dos acontecimentos, mas ainda no processo de elaboraçao da notícia.

Em termos peirceanos, os valores/notícia seriam hábitos, princípios-guias que dão sentido às coisas das práticas cotidianas, nas rotinas jornalísticas.

Os jornalistas não podem, obviamente, decidir sempre ex novo como devem selecionar os fatos que surgiram: isso tornaria o seu trabalho impraticável. A principal exigência é, por conseguinte, rotinizar tal tarefa, de forma a torná-la exequível e gerível. Os valores/notícia servem, exatamente, para esse fim. [...] [Os] valores/notícia devem permitir que a seleção do material seja executada com rapidez, de um modo quase ‘automático’, e que essa decisão se caracterize por um certo grau de flexibilidade [...] (WOLF, 2001, p. 197.)

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Mudando com o tempo, os valores/notícia pressupõem uma semiose que se produz nas práticas jornalísticas. Essas podem ser vistas como réplicas ou não, através dos sentidos que se reproduzem e que, efetivamente, são criados em torno desses conceitos, na ordem da terceiridade. Wolf (2001) aponta, como exemplo, as páginas voltadas para os chamados assuntos culturais. Elas abordam espetáculos e artes, que antes não constituíam notícia e, hoje, são qualificadas desse modo, em função das mudanças. Essas mudanças são produzidas no interior dos veículos, na relação com outras mídias, nas relações com os públicos, correspondendo às respectivas transformações dos contextos sociais.

Os valores/notícia derivam de pressupostos implícitos ou de considerações relativas ao conteúdo da notícia, à disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto informativo, ao público e à concorrência. Quanto ao seu conteúdo, a notícia se valoriza pelo nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no fato, o impacto sobre o interesse no contexto geográfico ou sociopolítico, a quantidade de pessoas que o fato envolve ou a relevância que o acontecimento possa ter no seu futuro desenvolvimento.

O professor Ronaldo Henn contribui com as pesquisas na linha interacionista, ao apropriar-se das teorias semióticas, para pensar a produção jornalística, nos seus livros Pauta e Notícia (1996) e Os Fluxos da Notícia (2002). Segue a linha de pesquisa conhecida como “crítica genética”, com o aporte peirceano desenvolvido por Cecília Salles (2000). Busca observar as rotinas jornalísticas através de “documentos de processo”, que servem como uma forma de registro dos movimentos de produção.

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São documentos processuais que mostram o acompanhamento metalinguístico do processo ou registros de reflexões de uma maneira geral. Como exemplo teríamos as anotações, diários e correspondências. (SALLES, 2000, p.37.)

Tomando o conceito de semiose como um aspecto

central, Henn (1996) questiona como os elementos da realidade são transformados em notícia, considerando que os procedimentos de pauta já produzem interpretantes antes da reportagem e que os fatos são mediados pelas fontes.

Na observação das práticas em jornais brasileiros de grande circulação, esse autor nota que o texto jornalístico é um produtor de sentido sobre a realidade, a partir de interpretantes gerados no interior das organizações. Isso ocorre com mediações estabelecidas por meio dos valores/notícia, além de estar circunscrito às mediações feitas sobre os fatos pelo acesso às fontes de caráter oficial geralmente.

Esse autor, no entanto, chama a atenção para o aspecto da “causação final”, a partir da semiótica peirceana. Apesar de todos os signos poderem mediar o objeto dinâmico somente sob algum aspecto, determinando assim interpretantes, esse objeto mantém a sua potencialidade de gerar novas semioses. “Possui uma ‘verdade’ inerente, cuja revelação potencial é a essência da causação final, que, no fundo, nunca se completa, dado o caráter infinito desse processo.” (HENN, 2002, p.63.)

Tendo como pano de fundo a teoria falibilista de Peirce, Henn, no conjunto da sua pesquisa, questiona as práticas jornalísticas do ponto de vista ético. Afirma que a diversificação de linguagens e modos de produção pode contribuir para uma melhor compreensão da realidade, com diferentes formas de mediação.

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No sentido de identificar esses critérios e preceitos do jornalismo, na atividade da ilustração, foram realizadas entrevistas com os editores, ilustradores e artistas plásticos, ao lado do exercício de observação das rotinas nas redações dos jornais Zero Hora, Estado de São Paulo e Jornal da Tarde. Na Folha de São Paulo, optou-se por somente entrevistar os ilustradores, pois a observação das rotinas voltadas especificamente para o veículo se tornou impossível, já que eles trabalham separadamente, em seus estúdios particulares ou residências.

As entrevistas feitas com os artistas plásticos se diferenciam daquelas feitas com os ilustradores, pois, no seu caso, optou-se por uma perspectiva que considere o seu posicionamento como artistas, indagando mais diretamente o papel da arte no contexto jornalístico. No caso dos ilustradores, nem sempre eles podem falar nessa perspectiva artística, embora alguns sejam também artistas plásticos. Foi, no entanto, com os ilustradores que se pode obter, com maior propriedade, elementos que evidenciam as rotinas jornalísticas, sem desconsiderar uma possível perspectiva artística diante do seu trabalho.

Principalmente pelo referencial das teorias voltadas à produção jornalística, a pesquisa está embasada em estudos de campo, com entrevistas e observações do cotidiano profissional, demonstrando aspectos dos trabalhos de dezenas de ilustradores e artistas plásticos consultados, ao lado da análise semiótica dos seus produtos. Nesse conjunto de observações, buscou-se identificar semioticamente como os valores/notícia se manifestam na práticas das ilustrações, o que Wolf (2001) chamaria de “fase de apresentação”.

Dessa maneira – tendo como pano de fundo as teorias do jornalismo – foram cristalizados os elementos de observação que, basicamente, constituem a construção

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da tese, ao lado das análises de algumas ilustrações. Na ordem da terceiridade, – as diversas circunstâncias que caracterizam as ilustrações jornalísticas – poderiam ser compreendidos com a verbalização de regras, procedimentos, atitudes e conceitos emitidos pelos ilustradores. Na ordem da secundidade, as diferentes ocorrências de fazeres durante o acompanhamento dos trabalhos indicam como a atividade existe de fato. Entre as imagens produzidas, o que indica a diferente forma de atualização dessas regras e desses fazeres, nas páginas do jornal, é possível relacionar as diferentes ocorrências, na ordem da primeiridade, no ponto de vista da semelhança ou diferença qualitativa, percebendo tendencialidades.

Referências HENN, Ronaldo. Jornalismo Impresso: Uma Crise Semiótica. Verso & Reverso, São Leopoldo, n.25, p.123-131, ju./dez. 1997. ______. Os Fluxos da Notícia. São Leopoldo: Unisinos, 2002. ______. Pauta e Notícia. Canoas: Ulbra, 1996. HERMES, Gilmar. Teorias Semióticas em uma Perspectiva Estética. Curitiba: CRV, 2013. HERMES, Gilmar Adolfo. As ilustrações de jornais diários impressos: explorando fronteiras entre jornalismo, produção e arte. São Leopoldo: Tese de doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, 2005.

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PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Charlottesville (Estados Unidos): InteLex, 1994. 1 CD-ROM, Windows XP. ______. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1993. SALLES, Cecília. Crítica Genética: Uma (Nova) Introdução. São Paulo: EDUC, 2000. SOLOSKI, John. O Jornalismo e o Profissionalismo: Alguns Constrangimentos no Trabalho Jornalístico. In: Traquina, Nelson. Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993. p.91-100. TRAQUINA, Nelson et al. Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993. ______. Teorias do Jornalismo: A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. ______. Teorias do Jornalismo: Porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004. WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 2001.

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SEGUNDA PARTE

INTERFACES

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Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista:uma leitura das formas da socialidade

nas páginas de Veja¹

Larissa Azubel²

Introdução³

Objetos complexos, as revistas são ricas em significação graças à sua acepção múltipla e às suas funções diversas. Mais do que uma mídia, um suporte ou um produto, um magazine é também uma marca, um negócio, um conjunto de serviços, um veículo sintetizador de informação, interpretação, opinião e entretenimento, uma organização, com missão, valores, manuais e códigos (SCALZO, 2004).

Assim, as revistas são meios de comunicação capazes de representar épocas, dar conta da ambiência de um momento histórico, traduzir o espírito de um tempo. A temática das semanais, como Veja – objeto desse estudo –, não é a realidade temporal, mas a conjuntural. De forma que, elas podem fornecer um desenho cultural do período e do lugar em que estão inseridas, numa espécie de relação metonímica com a sociedade.

A revista Veja, como título mais vendido no Brasil, está incorporada à cultura contemporânea do país, motivo

1 Este artigo concerne a um trabalho de síntese e releitura de parte da dissertação de mestrado da autora, Revistas Veja e Época: um olhar complexo, aprovada com louvor, em dezembro de 2012, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Famecos-PUCRS.3 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil.

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pelo qual propomos a análise de suas Reportagens. Optamos pela editoria de comportamento, pois acreditamos que ela tem uma relação direta com o leitor, influindo em modos de ser, de pensar, de sentir e de viver.

Construída no universo simbólico da linguagem, Veja está inserida na sociedade, estabelecendo com os fa-tos sociais relação intertextual. Seu discurso faz referência a um real que, ao mesmo tempo, referencia o discurso, de maneira que compreendemos os textos numa perspectiva de retroalimentação e recursividade, em que seus conteú-dos são, concomitantemente, produtos e produtores de nos-sa cultura.

Ainda assim, cremos que a noção de pós-moder-nidade possa ajudar-nos a compreender o hodierno dioni-síaco como origem e/ou consequência das temáticas das reportagens analisadas, todas publicadas em 2010, ano que encerra a primeira década do século XXI. Dessa forma, refletiremos sobre: “Tal filho, tal pai”, publicada na edição 2175, de 28.07.10; “O esforço dos malas com alça...”, na edição 2172, de 07.07.10; “Quando a rede vira um vício”, edição 2157, de 24.03.10; e, “Elas estão de volta ao lar”, à edição 2173, de 14. 07.10.

Elementos fundamentais para reflexão sobre a cultura em Veja

Para compreendermos e explicarmos a cultura con-temporânea, de que Veja é causa e efeito, nosso autor de re-ferência será Roland Barthes. Para o autor (2004, p. 109), a cultura não está nos artefatos eruditos, mas por toda a parte

4 No decorrer deste estudo, empregaremos a primeira pessoa do plural em conformidade com a proposta de abordagem complexa da construção do conhecimento, que resulta da interação entre autora, pensadores, objeto, organização e futuro leitor.

Larissa Azubel

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e de um extremo ao outro das escalas sociais. Deste modo, tudo concerne à cultura: “Da roupa ao livro, da comida à imagem”. Barthes a pensa como objeto paradoxal, sem contornos ou oposições, sem resto. De acordo com a inter-pretação barthesiana nela podemos perceber um real, con-comitantemente, complementar, concorrente e antagônico, que comporta anarquia, hierarquia e heterarquia, sem ex-clusões (Azubel, 2012).

Se o jornalismo de revista, se as reportagens de Veja não podem ser pensadas e interpretadas sem que con-sideremos a cultura em que estão inseridas, cabe lembrar também que nem mesmo o homem existe fora das repre-sentações culturais ou antes delas. Isso porque, para nos dizermos homens, precisamos da linguagem, ou seja, da própria cultura, como um sistema de símbolos, regidos por operações. Dentro e por meio da cultura conhecemos o mundo, trocamos experiências, escrevemos e lemos ma-gazines, construímos a realidade, que retroage e se anela sobre nós.

Barthes concebe a cultura como um objeto sem oposições externas. Entretanto, não sem conflitos inter-nos, posto que dentro dela lutam linguagens (de classes, de grupos), que buscam reconhecimento numa socieda-de dividida. Apesar disso, o poder nos impõe a norma, uma espécie de paz cultural, que pretende determinar nossas percepções a partir de visões pré-determinadas, estereotipadas.

A cultura é, de certa maneira, o campo patológico por excelência, onde se inscreve a alienação do homem contemporâneo (palavra certa, a uma só vez, social e mental). Assim, parece que o que busca cada classe social não é a posse da cultura (seja querendo conservá-la, seja querendo obtê-la), pois a cultura está aí, por toda parte e para toda

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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gente; é a unidade das linguagens, a coincidência da fala e da escuta (BARTHES, 2009a, p. 112).

A busca de coincidência de linguagens parece evidente nas narrativas da chamada mídia de massa, em que Veja se insere, uma vez que suas construções (generalistas e generalizantes) pretendem representar o mundo, no sentido de construir uma leitura verdadeira sobre seus fenômenos, personagens, objetos e acontecimentos.

No olhar de Barthes, a cultura de massa tenta criar a ilusão de algo totalizante com o objetivo de naturalizar a cultura burguesa. Veiculada pelos meios de comunicação, ela pode estar a serviço do poder, que a reduz àquela que lhe interessa, visando à manutenção do status quo. O autor ainda explica o modus operandi da cultura na sociedade hodierna, qual seja o da reprodução/imitação vergonhosa, em que se repetem não apenas os conteúdos e os esquemas ideológicos, como também a obliteração das contradições (BARTHES, 1999).

Entendemos, ainda, a cultura como intertexto, posto que, segundo Barthes (1975), a linguagem mantém uma relação sinérgica com os eventos sociais, de maneira que todo texto traz influência de outros textos. Assim, o intertexto em Veja, diz respeito aos rastros, porque “a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda, que se prolonga misteriosamente no meio das significações novas” (BARTHES, 2000, p. 160).

A pós-modernidade cultural hodierna

As formas predominantes da cultura contemporânea podem ser compreendidas através de Veja, posto que encontramos no jornalismo de revista o que Maffesoli (1995) chama de espírito do tempo ou,

Larissa Azubel

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ainda, de estilo, de clima da sociedade e da socialidade hodiernas, que, para o autor, vive um momento de saturação da modernidade. Segundo Lyotard (2011, p. XV), o termo “pós-moderno” pode ser utilizado para designar “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX [...] em relação à crise dos relatos”.

Por conseguinte, para Maffesoli (1995, 2012a, 2012b), a pós-modernidade é mais ampla e visível em todos os espaços da sociedade oficiosa. Adicionamos que, deste modo, pode ser captada e refletida pelas reportagens de comportamento dos meios de comunicação, o que evidenciaremos, em seguida, em Veja. O autor acredita que a pós-modernidade nascente tende a abrir espaço para valores alternativos, dentre os quais, destacamos o ideal comunitário, o retorno ao arcaico, a cultura do sentimento e a consciência coletiva, numa espécie de reencantamento do mundo (Maffesoli, 2012a).

Percebemos, desse modo, uma sociedade que se encontra nas mais diversas formas de solidariedade. Segundo o autor (1995; 2012a, 2012b), vivemos um modo de estar-junto, voltado para o presente, o hedonismo, o carpe diem. De forma que, a expectativa com relação ao futuro e ao porvir estariam superadas, atreladas ao estilo moderno (que subsiste ainda na sociedade oficial).

Nesse ínterim, o social atrelado ao racional e ao mecânico não está mais na ordem do dia, uma vez que, “a razão instrumental, a onipotência da técnica e o ‘todo econômico’ não mais suscitam a adesão de antanho, eles não funcionam mais como mitos fundadores ou como metas a serem atingidas” (MAFFESOLI, 1995, p. 23). Volta como atual o que se acreditava ultrapassado: a importância da imagem e do contágio emocional; o recurso aos múltiplos simbolismos, que geram adesão e

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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sentimento de pertença à tribo; as pulsões primitivas, que ressignificam o modo de vida.

Cabe ressalvarmos, ainda, que, segundo Maffesoli, “não é nítida a transição entre estilos [...]. Na verdade, há contaminações, superposições [...] O próprio de um estilo particular é ser heterogêneo, e até mesmo repousar sobre tendências contraditórias”. Nessa perspectiva, podemos compreender o pós-moderno, pela combinação do arcaico com o tecnológico. O sincretismo é inerente ao seu caráter, que mistura gêneros, “na reutilização multiforme de elementos dos ‘bons e velhos tempos’” (1995, p. 26-27). Essa síntese na interação de estilos leva a um modo global, que se torna um conjunto de formas características.

Além dos fenômenos paradoxais e da transfiguração do político, compreendemos a sociedade pós-moderna, vivenciada no cotidiano e retratada pela mídia, pela reatualização do doméstico e do ecológico, pela valorização do conhecimento comum, pela sinergia do material e do espiritual e pelo império do efêmero – consumimos, produtos e ideias muito rapidamente, aderimos a eles e os rejeitamos, sem muitos escrúpulos. Segundo Maffesoli (1995) a atitude “camaleão” hodierna pode ser explicada pela emergência de identificações sucessivas.

Deste modo, o subjetivo, o emocional, o que não se pode explicar por meio da razão, é o que nos agrupa, nos tribaliza e todo o tipo de entusiasmo pode ser visto como manifestação evidente do arcaísmo: os fanatismos religiosos, as ressurgências étnicas e linguísticas, as efervescências esportivas, musicais e festivas, como, também, as fúrias consumistas.

A estética não obedece mais aos diversos critérios do bom gosto (Maffesoli, 1995, p. 53), mas, se afirma em essência como, “um vetor de socialidade, uma maneira de

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desfrutar junto de um presente eterno, o que é explicado pela expressão, um pouco paradoxal, de ‘materialismo místico’”. Pode-se falar, portanto, no estilo dessa época, como estilo estético que enfatiza o sensível e o hedonismo a que isso induz e, ao mesmo tempo, serve de suporte às diferentes formas do estar-junto. Damos, assim, “ao termo cultura seu sentido mais forte, o de húmus ao qual se enraíza a vida social, pode-se falar de uma cultura estética” (MAFFESOLI, 1995, p. 57).

Os valores estéticos não são mais do que as condições de possibilidade de um novo vínculo social. Nesse sentido a busca do prazer, a epifanização do corpo, a valorização do tempo livre, a preocupação com a qualidade de vida e outras formas de “cuidado de si” só adquirem valor à medida que favorecem o desejo do outro, o prazer de estar com o outro (MAFFESOLI, 1995, p. 56-57).

Por conseguinte, Maffesoli (2010) defende que através do ordinário, do quotidiano, se pode compreender o social, o que corrobora com nosso pressuposto de que é possível interpretar a socialidade contemporânea pela leitura dos meios de comunicação. Nesse artigo, nossa proposta, portanto, é a de buscar elementos para a leitura do comportamento do brasileiro através da análise da revista mais consumida no país.

Ainda com relação ao ordinário, Maffesoli postula que através do dia-a-dia poder-se-ia fazer da vida uma obra de arte, segundo a concepção trágica da existência, que substitui a “dramática do burguesismo” (MAFFESOLI, 1995, p. 68). Diante da impossibilidade de mudar o mundo, o sujeito quer agir, de modo qualitativo, sobre si mesmo e sobre os grupos dos quais faz parte.

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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Vemos, assim, uma espécie de reencantamento pós-moderno, no reacender dos mitos, das imagens, das alegorias. A função da estética é agora a de agregar e a ênfase é posta em noções “como as de magia, encanto, visão, aparição, que caracterizam o estilo contemporâneo, e que são causa e efeito, na vida diária, dessa ‘religação’, que não cessa de espantar os observadores sociais” (MAFFESOLI, 1995, p. 76). A emoção, desse modo, é vivenciada coletivamente. Através das mídias – aplicando ao nosso objeto, por meio do jornalismo de revista –, pode-se vibrar em comum, estar em comunhão.

Análise das noções de cultura e pós-modernidade em Veja

Na primeira reportagem analisada, Veja aponta para uma tendência de comportamento dos pais da atualidade. De acordo com Tal filho, tal pai, publicada na edição 2175, de 28.07.10, “em roupas, atitudes e gostos, o papai e a mamãe vão ficando cada vez mais parecidos com seus pimpolhos”. Em uma narrativa repleta de gírias, a revista se aproxima das famílias, que estão “adolescendo”, mostrando as vantagens e desvantagens/riscos, dessa nova configuração.

Essa matéria pareceu-nos, especialmente, vinculada ao estilo pós-moderno, visto que uma máxima popular foi invertida, para dar conta das transformações nas relações familiares. Isso aponta para a superação do modelo moderno, em que a estrutura hierárquica da família era rígida. Vemos a florescência de valores alternativos, talvez, tão mutáveis quando a própria juventude e o retorno do ideal de felicidade como “sinal dos tempos”, evidenciando um reencantamento do mundo.

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Acreditamos que, em todos os exemplos de destaque, o estar-junto fica manifesto como o que há de mais importante. Veja descreve os relacionamentos muito em função dos hobbys, portanto, fala de gerações que estão “curtindo juntas”. As práticas culturais que associam pais e filhos dão conta de sintomas da pós-modernidade: a valorização do tempo livre, a epifanização do corpo, a busca do prazer, a preocupação com a qualidade de vida e os valores estéticos como vetor de vínculo com o outro. Em geral, partilhando os mesmos “mistérios”, eles cimentam a relação, vibram em comum, estão em comunhão.

Cremos que a reportagem como intertexto enuncie não somente um passado, mas, principalmente, um presente em suspensão. Seus rastros dizem respeito ao que está acontecendo no cotidiano, que pode ser captado pelo conhecimento ordinário. Desse modo, o texto é um reflexo do que se vê nas ruas, nas escolas, nos clubes, nos shoppings, nas mídias, nas modas, nas artes, nas festas, nas redes sociais, etc.; em todo lugar onde se possa observar o estar-junto de pais e filhos.

O pai da atualidade tem “jeito de eterno adolescente”, remetendo-nos ao presenteísmo, e está sempre “por dentro das últimas novidades”, o que nos traz à atitude camaleão e o império do efêmero, como traços da socialidade. Ele estaria (re) adolescendo. Para além do “estar-junto”, ganha destaque o “curtir-junto”.

Destacamos, em síntese, como sinais da cultura, nesse texto: a valorização da família e seus figurinos estereotípicos, mas adaptáveis; a crescente aproximação geracional; o retorno do ideal de felicidade; e, a influência do poder econômico, para usufruto do tempo livre, na prática de hobbys em comum.

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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Em O esforço dos malas com alça..., reportagem da edição 2172, de 07.07.10, o magazine explica como fazer “...para superar os malas sem alça do mundo corporativo e as exigências nem sempre racionais das grandes empresas”. Além disso, mostra um ranking dos aspectos mais valorizados pelo funcionário, “na hora de entrar no mercado de trabalho”, aponta os “dez problemas mais comuns que se enfrentam hoje nas companhias” e também “os dez pecados corporativos”.

Nesta reportagem, lemos uma cultura, em que os estilos, moderno e pós-moderno, estiveram sobrepostos, em noções paradoxais. Em nosso olhar, Veja valorizou, ao mesmo tempo, os seguintes aspectos, que caracterizaram a contemporaneidade: o novo, o diferente, o criativo, o competente, o contido, o formal, o estatístico, o ideal, o claro, o racional, o hierárquico, o politicamente correto, o flexível, a renúncia, o entusiasmo, o desejo, o utilitário e o universal.

Práticas culturais parecem impressas, de certa forma (mesmo que distorcida), nas páginas de Veja, que utiliza, por exemplo, lugares-comuns, para tornar atrativo um assunto relativamente denso. Assim, metáforas da nossa cultura sinalizam a competitividade nas corporações. Logo, também percebemos uma ilusão de cultura total, naturalizando a burguesa; pois, as pessoas a quem Veja atribui valor são aquelas de maior poder econômico.

Enxergamos o otimismo de Veja, em relação ao mercado de trabalho no Brasil, àquela época. A partir do texto vemos o que é valorizado e o que não tem valor, no campo empresarial. Por outro lado, notamos uma crítica à burocracia e à falta de foco nas companhias. Com a leitura desse texto, podemos, logo, compreender o tempo, segundo o oximoro moderno/pós-moderno.

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O magazine deixa transparecer a mudança de paradigmas, em direção à pós-modernidade – pensamos que, quase sem querer –, no quadro dos desejos dos funcionários, como vimos, mais ligado ao carpe diem, ao sentimento e ao arcaico, do que, propriamente, ao ideário moderno – que ainda era significativo, a nosso ver, no que os profissionais desejavam há cinco anos.

Por sua vez, Quando a rede vira um vício, na edição 2157, de 24.03.10, trata da compulsão hodierna pela internet. Depoimentos, mais extensos do que o usual, são destacados do texto, chamando a atenção para a vulnerabilidade dos jovens em relação ao “mundo virtual”. Através da exposição dos sintomas, a revista caracteriza uma doença que causa “mudanças drásticas” no comportamento. O que era útil e divertido passa a ser nocivo. O magazine parece ter a intenção de fazer um alerta e chega a propor uma dose ideal, com base em pesquisas.

Vemos, desse modo, que Veja aborda a Internet na perspectiva de vício contemporâneo. A revista fala de uma cultura brasileira, em cujo seio se democratiza e cresce o acesso e a utilização da rede mundial de computadores. Além disso, percebemos que as noções de uso saudável e doentio são construídas a partir da cultura. Do mesmo modo, os estereótipos edificados pela revista desenham a paisagem do vício em nosso país.

Desde o primeiro depoimento, o arcaico manifesta-se na combinação do tribalismo com a tecnologia: “frequento as redes sociais, onde já conto com 300 amigos e arranjei até namorado”. Além disso, evidenciamos na sociedade narrada por Veja o presenteísmo, o hedonismo e o carpe diem, que podem ser destacados em frases, como: “Hoje, nada no mundo faz com que eu me desconecte – só

Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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o sono”; e “o mundo que se abre na internet é infinitamente mais estimulante do que o real”.

Sinalizamos, conseguintemente, o retorno das pulsões primitivas e um entusiasmo que podemos ligar a uma manifestação notória do arcaísmo. Compreendemos que a internet, para o viciado é uma ferramenta de Comunicação, que lhe permite “tocar o outro”, vibrar em comum, estar em comunhão. Nesse sentido, destacamos que, de acordo com a reportagem, “a maior adoração é pelas redes de relacionamento”. Dessa forma, a magia da web seria capaz de reencantar o mundo do usuário aficionado. Segundo Veja, “a ponto de a vida longe da rede ser descrita agora como sem sentido”.

Neste terceiro texto, compreendemos que a cultura esteve, sinergicamente, ligada a noções pós-modernas: o nóvel, o acessível, o lazer, o utópico, o irresistível, o descontrole, o virtual, o exagero, o psicológico, o distorcido, o adorado, o infinito e o ilimitado.

Por fim, Elas estão de volta ao lar, à edição 2173, de 14. 07.10, descreve um panorama crescente de mulheres que deixam seus empregos para se tornarem “mães em tempo integral”, visto que o equilíbrio entre maternidade e vida profissional parece difícil de ser alcançado. Os sentidos tecidos por Veja são ancorados principalmente em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apontam para um crescimento de 26% no número de mulheres que decidem abandonar o emprego às voltas com a maternidade, pois temem prejudicar o desenvolvimento dos filhos com sua ausência.

Nesta reportagem, a pós-modernidade aparece na cultura, de modo romântico. Acessamos pelo texto, aspectos como a revalorização da família, do lar, da

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intimidade. Valores de outrora retornaram diante da violência e das incertezas da contemporaneidade. Em um mundo reencantado, elas estão de volta ao lar.

O estar-junto com os filhos mostra uma fuga aos valores tradicionais. Ideais da Modernidade como a independência, financeira e emocional, e o sucesso atrelado ao trabalho, segundo Veja, geraram cansaço e descontentamento. Desse modo, aqueles valores parecem estar sendo superados pelo prazer de estar-junto, pela valorização do tempo livre, pela busca da qualidade de vida. Tudo isso, ligado visceralmente ao desejo de proximidade com o filho.

Evidenciamos, além disso, a descrição de uma tribo que cresce no Brasil e que já tem suas próprias ferramentas de comunicação na internet. A descrição da experiência materna por essas mulheres comporta noções, como, intensidade, plenitude, satisfação, imersão e realização – que nos soam ligadas em essência ao estilo pós-moderno. Por meio do subjetivo, do emocional, elas partilham do mistério, da maternidade, vibram em comum, comungam a magia de serem mães.

Veja nota também alguns paradoxos dessa decisão, como certo nível de sentimento de culpa e frustração por elas não estarem correspondendo ao que se esperava de “uma geração educada para trabalhar e produzir tanto ou mais que os homens”. Essa ideia remete-nos à concepção trágica da existência. Lemos, logo, a gestação uma nova forma de felicidade e dignidade feminina, que se pode conquistar no dia a dia doméstico.

Fechamos a análise das reportagens evidenciando que a pós-modernidade esteve impressa nas páginas de Veja. Eis o que destacamos na conjunção entre as duas noções que norteiam esse artigo: a florescência de valores alternativos; as evidências de reencantamento do

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mundo; a valorização do estar-junto; a busca pelo prazer; a preocupação com a qualidade de vida; os valores estéticos como vetor de vínculo; a partilha dos mistérios, promovendo a comunhão; o presenteísmo; o hedonismo; e a união entre o arcaico e o tecnológico.

Em nossa leitura da cultura brasileira hodierna (predominantemente pós-moderna, todavia, heterogênea) em Veja, destacamos as seguintes palavras-chave: o ideal, o utópico, a releitura, a transformação, o arcaico (relido/tecnológico), o econômico, a adaptação, a aproximação, a sobreposição, o paradoxo, o novo, o diferente, a criatividade, a competência, o expressivo, o numérico, o hierárquico, o entusiasmo, o flexível, o utilitário, o universal, o racional, o emotivo, o lazer, o prazer, o irresistível, o descontrole, o exagero, o virtual, o distorcido, o adorado, o infinito, o ilimitado, o alternativo, o reencantado, o estético, a comunhão e o presente.

Evidências possíveis

Em nossa análise, evidenciamos uma cultura brasileira contemporânea como causa e efeito das reportagens. Assinalamos, desse modo, que Veja buscou informar, no sentido de dar corpo, dar forma, às práticas sociais que divulgou e promoveu. A influência da pós-modernidade foi flagrante nas manifestações da cultura. Para explicar a relação entre essas duas noções, intrínsecas uma à outra, trazemos uma tabela que sintetiza nossa compreensão da cultura pós-moderna, não apenas em Veja, mas no jornalismo de revista hodierno, de forma ampla, conforme Azubel (2012, p. 254):

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Quadro 01 – Manifestações da cultura pós-moderna em jornalismo de revista

O que é procurado/valorizado

O que é superado/relido

O que aparece como causa e consequência

O inusitado/ o diferente O tradicional/o medíocre O espetáculo

O novo/a inovação/o alternativo

A convenção A intensificação das experiências

O adiamento da morte Aceleração do tempo e sensação de impotência

A concepção trágica da

existência/o presenteísmo

A energia da vida Angústia existencial A dramatização do vivido

O encantamento O desencantamento A contradição dos sentimentos

O sucesso, pela diferenciação

A inteligência, pela criatividade

As dicotomias didáticas

O estar-junto/a solidariedade

O individual O tribalismo (família, amigos

e grupos)

A quantidade (1º) e a qualidade (2º)

O inexpressivo A busca do equilíbrio

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Fonte: Azubel (2012).

Conseguintemente, notamos, pelas temáticas, abordagens e linguagens, uma pretensão de vanguarda jornalística, motivada possivelmente pela concorrência entre os títulos na cultura de massa. Apontamos, dessa maneira, para mudanças na cultura profissional, em cujo meio, preceitos modernos cederam lugar, na releitura do arcaico, aos pós-modernos. Um sinal importante disso decorreu da presença maciça de figuras de linguagem, adjetivos e advérbios nos textos, como sintomas de uma (re) valorização do estético, da literatura, do Barroco. A forma volta à cena, não basta o conteúdo.

A cultura narrada por Veja busca envolver e encantar. As formas utilizadas para construí-la parecem pretender o envolvimento do público no texto e a fixação dos sentidos com maior eficácia. Os discursos de Veja alimentaram-se da cultura que alimentaram. Buscaram modelar a cultura que os modelou – tanto no âmbito de uma cultura geral, como no de uma cultura profissional. A pós-modernidade, deste modo, esteve em relação de retroalimentação com as práticas culturais (sociais e jornalísticas) na contemporaneidade. Segundo Azubel (2012, p. 258), para construir um jornalismo sedutor, na pós-modernidade, Veja utiliza-se de figuras de linguagem e da transmutação dos estereótipos em formas mais coerentes com a cultura contemporânea.

Assinalamos a manifestação da pós-modernidade na cultura, por meio da concepção que a revista teve

A busca por sentido

O contágio emocional A extrema razão O retorno do arcaico

O apelo ao racional O subjetivismo puro

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do que sejam as práticas sociais hodiernas. Desse modo, lançamos luz sobre aspectos do estilo, no tempo presente. Sinalizamos que a passagem da modernidade à pós-modernidade trouxe efeitos para a forma de fazer e de narrar do jornalismo de revista, donde vimos uma barroquização das narrativas.

Indicamos, assim, a florescência de um “Jornalismo Pós-Moderno”5 , em uma sociedade pós-moderna. Um jornalismo que suplantou os mitos clássicos de dicotomias como isenção/parcialidade e objetividade/subjetividade. Apontou, por outro lado, para a incorporação de elementos que contribuam para a sedução, a projeção e a consistência dos discursos. Dessa forma, prosa e poesia, ética e estética, sabedoria e demência, real e imaginário, luz e sombra, auto-eco-organizaram-se, na dialógica de nosso objeto, cujo trunfo narrativo consistiu no manear hábil de razão e emoção.

Referências

AZUBEL, Larissa Lauffer Reinhardt. Revistas Veja e Épo-ca: um olhar complexo. Porto Alegre, RS. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social). Programa de Pós--graduação em Comunicação Social da Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2009.

______. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

5 Conforme resultados da Dissertação de Mestrado da autora.

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______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999.

______. Escritores, intelectuais, professores e outros e ensaios. Lisboa: Presença, 1975.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

______. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2012a.

______. A comunicação pós-moderna – o retorno do arcaico: tribalismo, nomadismo, hedonismo e imaginários do luxo. Seminário ministrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 21-23, nov. 2012b.

______. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina, 2010.

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Larissa Azubel

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Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista

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Jornalismo, ambiente e o ethos

Carlos André Echenique Dominguez 1 Resumo: Neste artigo analisaremos o conceito de Ethos em sua origem na filosofia grega com Heráclito buscando estabelecer uma relação com a essência de um fazer e os valores que deter-minada prática profissional, o jornalismo, possui para estabele-cer dentro da sociedade uma dinâmica de interação social que contribua para a melhoria da qualidade de vida da população. Denominaremos jornalismo vivo o jornalismo que estabelece esta relação, complexa e dinâmica, por meio de sua produção de conhecimento como ação cultural. A essência do jornalismo e os valores que orientam este fazer é recuperada do período do nascimento da modernidade, na virada do século XIX para o XX, por meio dos teóricos que estabeleceram uma sociologia do Jornalismo, que vem sendo atualizada com as pesquisas que vão acrescentando saberes outros a problemáticas específicas do jornalismo, como o ambientalismo, a biologia e a teoria da vida. Palavras-chave: ethos; jornalismo; ambiente; valores; socieda-de. 1. Jornalismo e o Ethos

Comecemos pelo aforismo de Heráclito: “Ethos antropou daimon”. Heráclito, filósofo pré-socrático (500 a.C.), uniu as duas palavras no aforismo 119 (SODRÉ, 2002, p.82-83). As traduções são inúmeras. Para o teólogo

1 Professor do Curso de Jornalismo do Centro e Letras e Comunicação da

UFPEL, doutor em Comunicação e Informação PPGCOM-UFRGS, mes-tre em Comunicação e Cultura ECO-UFRJ e especialista em Comunicação e Saúde pela ENSP-FioCruz.

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Carlos André Echenique Dominguez1

1 . Jornalismo e o Ethos

Comecemos pelo aforismo de Heráclito: “Ethos antropou daimon”. Heráclito, filósofo pré-socrático (500 a.C.), uniu as duas palavras no aforismo 119 (SODRÉ, 2002, p.82-83). As traduções são inúmeras. Para o teólogo Leonardo Boff (2003), Heráclito deixou para trás o sentido convencional das palavras e captou sua significação escondida: “morada (ethos) acaba sendo a ética e o anjo bom (daimon), a inspiração para sua vivência”. Propõe Sodré que a palavra ethos, de onde deriva Ética, serve para designar a instalação humana em um espaço. Argumenta Sodré que o fragmento de Heráclito já teve diversas traduções: “o caráter do homem é o seu deus ou o seu demônio”; “Deus é morada do homem” (J.P. Vernant); “O homem mora nas imediações dos deuses” (Heidegger). Diz Sodré (2002, p.82-83) que “introduz-se aí o sentido de ‘morada’. Isto quer dizer que o homem, enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino, relaciona-se radicalmente com o sagrado”.

Para Carneiro Leão, que estudou com Heidegger, a tradução do fragmento é “a morada do homem é o extraordinário”. E o extraordinário, seria Sócrates, o filósofo que nunca deixou de escutar seu daimon. Assim entende Oliveira (2010, p. 36) ao propor que “O termo daimon da sentença de Heráclito, explicitado pela

1 Carlos André Echenique Dominguez, professor do Curso de Jorna-lismo do Centro e Letras e Comunicação da UFPEL, doutor em Comuni-cação e Informação PPGCOM-UFRGS, mestre em Comunicação e Cultura ECO-UFRJ e especialista em Comunicação e Saúde pela ENSP-FioCruz

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tradução de Carneiro Leão como extraordinário, tem na figura de Sócrates aquele que encarna em vida a prática da escuta do divino, relacionando-se com ele da maneira mais apropriada ao homem: no pensamento”. E s t a sentença acima é vital para buscarmos um entendimento do que seria o ethos no jornalismo. Recuperando temos que: “aquele que encarna em vida a prática da escuta do divino (...) relacionando-se (…) no pensamento”. O pensar. O extraordinário pensar. Pensar para escutar o divino. Para ter, obter e receber inspiração. Para ter saber. Para duvidar do que aí está dado. Para indagar. Para questionar os mais poderosos hábitos e costumes, práticas e técnicas, leis e reis. De tanto questionar, Sócrates teria sido condenado à morte. O filósofo da pergunta incansável e da fala incessante. Atitudes que poderiam fazer parte dos atributos de um jornalista. O pensar e o falar sobre o que é pensado, o questionar são características da virtude grega que se manifestam em uma prática inspirada pelo divino. O homem enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino.

Em se tratando de princípios e/ou valores que são específicos de um determinado grupo de uma dada sociedade, e sendo estes mesmos valores indispensáveis para a execução de uma ação única e rotineira, temos a permanência e acúmulo de saberes que vão sendo preservados na memória social. É o que Sodré chama de ethos na acepção moderna do termo. “O ethos de um indivíduo ou de um grupo é a maneira ou jeito de agir, isto é, toda a ação rotineira ou costumeira que implica contingência, quer dizer, a vida definida pelo jogo aleatório de carências e interesses, em oposição ao que se apresenta como necessário, como deve ser” (SODRÉ, 2008, p.46). Para Sodré (2008), a noção de ethos advém de duas Categorias – forma social (Georg Simmel), forma

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de vida (Wittgenstein), podendo ser detalhada como ambiente cognitivo que o dinamize, unidade dinâmica de identificação de um grupo, modo de relacionamento com a singularidade própria. No ethos atuam a forma social e a de vida, como formas simbólicas que, historicamente, orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações do indivíduo.

Este costume, este modo de fazer de acordo com determinados valores - falando sobre o Jornalismo - foi se estabelecendo com o passar dos tempos, de acordo com as interações sociais dos jornalistas e a sociedade onde atuavam. A civilização grega, em seu período clássico, era oral. Quem imortalizou a cultura grega foram o aedos, poetas que cantavam os versos dos autores. Quando os romanos passam a usar o papiro egípcio, por volta do século X, para escrever a Acta Diurna, um documento periódico que informava a vida política e social do Senado Romano, já é possível falar em uma espécie de jornalismo (GALVANI, 2008). Não conhecemos muito da vida dos que produziam a Acta Diurna. De acordo com Pena (2013), foi à invenção da imprensa dos tipos móveis, em 1040, na China, e sua popularização na Europa, por Gutemberg, que levou as cidades comerciais e já de alguma vida urbana, como Veneza, a criarem as letteri d’avisi, embriões das gazetas que ao adquirirem periodicidade vieram se tornar o que hoje chamamos jornais. Estes mesmos jornais, de acordo com Shudson (2010), duzentos anos depois, foram os responsáveis por adotar em 1870 o uso da notícia como principal formato de veiculação de informações. Informações do cotidiano. Do dia a dia. Da política, sim, mas também da polícia, do esporte e, inevitavelmente, da economia. Havia um ambiente propício para o nascimento do jornalismo moderno

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dentro dos sistemas sociais capitalistas republicanos. E este procedimento já tinha suas características principais definidas, muito embora houvesse variações entre as cidades, países e sociedades distintas onde os jornais eram abertos e fechados. Como bem observa Alsina (2009, p. 46), sobre a construção social da realidade e, por conseguinte, da notícia, é ela um processo “ao mesmo tempo, social e intersubjetivamente construído”. Diz Alsina que a atividade jornalística tem um papel socialmente legitimado para gerar construções da realidade publicamente relevantes.

Assim, no ethos do jornalista, atuam formas simbólicas que, historicamente, orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações desse indivíduo que opera na construção da realidade por meio da imprensa na produção, circulação e consumo de notícias. Podemos dizer que este ethos nunca é o mesmo. Os daimon nem sempre foram escutados. Muitas vezes até foram silenciados, individualmente ou coletivamente. O embate das formas simbólicas que Bourdieu (1997, 2011) muito bem demonstrou, formou indivíduos e coletivos, também na área do jornalismo, distintos no decorrer dos períodos.

Até 1830 não havia a distinção, para os jornalistas, entre fatos e valores; as duas coisas eram o mesmo. Foi quando aconteceu a revolução jornalística de 1830, nos Estados Unidos. Uma revolução comercial que criou a penny press – jornais que eram vendidos por apenas um centavo nas grandes metrópoles norte-americanas e distribuídos na rua por jornaleiros, vendedores de rua. A estratégia resultou em uma larga circulação, um incremento de muita publicidade, de todo e qualquer tipo de publicidade. Conforme escreve Schudson (2010), nesse período, não havia nenhuma restrição à

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publicidade na penny press que, ao contrário dos jornais mais caros, trazia quase nenhuma notícia política. Segundo o autor, foi à imprensa popular que inventou o conceito de notícia, publicando, mais do que a política nacional e, sim, a vida social cotidiana dos EUA, em uma época de transição para a modernidade e intensificação do sistema capitalista de uma sociedade que se firmou no tripé: democracia, livre mercado, direitos individuais. Até aí, os jornalistas não diferenciavam conteúdo informativo de opinativo. Faziam os dois, ao mesmo tempo, sem nenhum problema. A seguir, saíram do artigo e do editorial, da política e do comércio e foram apurar informações do cotidiano – polícia, costumes, sociedade, problemas urbanos. A grande maioria dos preceitos que hoje são repassados às novas gerações de jornalistas nos últimos 50 anos, os seja, de 1955 até os dias atuais, ainda é aqueles formulados e tornados regras de conduta pelos jornalistas dos EUA. Este ethos dominante, de cunho funcionalista, calcado na notícia impregnada de objetividade passou a sofrer críticas tanto de teóricos quanto de jornalistas em diversos períodos: após o maio de 1968, durante a Guerra do Vietnã, no surgimento do new journalism (WOLFE, 2005), após a crise do petróleo de 1979, durante o florescimento do neoliberalismo dos anos 1980 e na pós-modernidade aventada na década de 1990 onde a imprensa dos EUA de forma geral fez uma cobertura da Guerra do Golfo que redundou em uma série de críticas, principalmente ao tom de oficialismo e a imersão de repórteres nos pelotões do exército norte-americano.

Porém, não é sempre que tais condições de produção propiciam estes procedimentos. De fato, este potencial do jornalismo é particularmente contido pelas relações de produção entre as classes que formam o

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meio profissional. Passemos, portanto a um olhar mais detalhado das relações de produção na prática jornalística. Tem-se por pressuposto que as relações de produção internas a um ambiente de redação são conflituosas como qualquer outro meio de trabalho, estando sujeitos às interferências do modo como se dá a reprodução das condições de produção. As críticas dos analistas da imprensa, porém, não afastaram inteiramente os preceitos estabelecidos na chamada “época de ouro” do jornalismo, nem no ensino do Jornalismo nas academias e nem nas rotinas das redações. Para Robert Park, teórico do jornalismo desta época, “os gregos aplicavam o termo ethos para a soma de usos característicos, ideias e padrões e códigos pelos quais um grupo era diferenciado e individualizado em caráter de outros grupos. Ética eram as coisas que pertenciam ao ethos e, portanto, as coisas de padrão de direito”. O imaginário jornalístico segue impregnado desses símbolos. Como bem postulou Pulitzer (2009, p. 40), jornalista, editor e dono de jornal e hoje nome de uma das premiações mais reconhecidas no Jornalismo norte-americano: “O noticiário é importante, é a própria vida de um jornal. Mas o que é a vida sem caráter? Que significado tem a vida de uma nação ou de um indivíduo sem honra, sem coração, sem alma?” Pulitzer pedia honra, coração e alma na época em que buscava concretizar a criação do primeiro curso superior em jornalismo em Nova York. Seu daimon suspiraria por outro ethos, onde o funcionalismo exacerbado da burocracia noticiosa havia abolido da imprensa a busca pelo extraordinário? Impossível imaginar? Ou seria no imaginário que esta resposta poderia ser buscada? Para o dono de jornal, o papel da imprensa na sociedade era claro. “Só a imprensa faz do interesse do público o seu interesse. O que é do interesse de todos não é interesse

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de ninguém – exceto jornalistas, pois é seu por adoção” (PULITZER, 2009, p. 55). Como bem colocou Sodré (2002), enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino, o homem encontra o sagrado. A questão do interesse público é uma constante no imaginário social dos jornalistas, um sagrado.

Em algum momento, no passado arcaico, uma história muito importante foi contada para que um grupo tivesse a compreensão que aquele contador desejava e imaginava poder. O contador encerra a narrativa. Um dos que o ouviam faz o imaginável. Pergunta! Porquê? Nasce o jornalismo que ainda nem imagina ganhar este nome. E vai ter de fazer muito para receber a nomeação que o definiu para os dias de agora, entrada do século 21. O caminho é de 20 mil anos. O jornalismo nasce junto com as necessidades de questionar o que era dito por quem detinha o poder de dizer.

O período pré-industrial também formou as essências e valores do jornalismo dentro da coletividade no mundo ocidental. Diz Sodré (2012, p. 12) que “a imprensa queria de algum modo esclarecer um público, ora trazendo à luz o que se ocultava nos desvãos do poder como ‘segredos de Estado’, ora tentando passar a ideia de uma causa indutora de modernização e progresso”. Para o autor brasileiro, no período da passagem do regime absolutista para a criação do Estado Direito da modernidade, um novo valor passou a ser propagado pela imprensa, anteriormente mantida como peça publicista de desestabilização do regime monárquico. E assim, passou a ser um saber incorporado ao modo de fazer e ser.

[...] como porta-voz dos direitos (civis) que inauguram a modernidade da cidadania, a imprensa traz consigo a novidade ideológica da liberdade de

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expressão, mas sem abandonar por inteiro a garantia de alguns velhos recursos mitológicos, a exemplo da construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade (SODRÉ, 2012, p. 12).

A crença na liberdade está no córtex cerebral de toda a atividade jornalística, para o melhor ou o pior. Assim como a crença em uma verdade que seja de interesse público. No nascimento dos regimes republicanos na Europa e na América (SCHEIDT, 2008), os jornais cumpriam a tarefa de dar voz à manifestação pública dos cidadãos, no que Sodré chamou de “virtude intrínseca” da imprensa liberal que viria a assegurar todas as outras liberdades.

Foi assim que a imprensa livre pôde ser reconhecida como obra do espírito objetivo moderno e, deste modo, constituir um pano de fundo ético-político que tornaria escandaloso para a consciência liberal, em qualquer parte do mundo, o fenômeno do jornalismo sensacionalista, ou tornaria condenável pela consciência moral do jornalista o falseamento ou o encobrimento da verdade factual. (SODRÉ, 2012, p.13).

Este dilema, este balançar entre dois polos, este oscilar entre os interesses empresariais, a corrupção política e o jogo do poder por mais de 200 anos, deixou a defesa das liberdades individuais dos cidadãos, hoje, como mero espectro ideológico. Uma crença fincada no nascimento dos valores republicanos do liberalismo e da imprensa livre. Na Europa e nos EUA, a aceleração da globalização neoliberal destruiu em sua grande maioria as ilusões liberais de independência da imprensa. No restante do

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mundo a situação foi similar. Mas, mesmo diante desta avassaladora conformidade discursiva da imprensa, sempre houve falhas no processo e na possibilidade de alterar os rumos da marcha da bandeira do progresso capitalista ostentada pelas empresas de comunicação.

2. O Jornalismo na teia da vida

Depois de embasar a reflexão nas noções de ethos do jornalismo, suas essências e valores, bem como, as relações de produção contidas no discurso jornalístico inseridas na dinâmica da complexidade social em evolução na mesma medida em que o próprio ser humano evolui, a nossa intenção, agora, é fazer uma aproximação do jornalismo com a reflexão sobre os sistemas vivos produzida na síntese teórica proposta pelo físico Fritjof Capra (2006) em seu livro A Teia da Vida. Capra faz um percurso pelos ramos mais avançados em diversas áreas das ciências, indo da parte para o todo, passando da química à física, da biologia à microbiologia, pela psicologia e indo até a filosofia, para propor uma nova concepção da vida, em especial baseada em dois cientistas originais, os biólogos chilenos Maturana e Varela. E é esta concepção de vida, atual, que no nosso entender, pode ser o grande trunfo do jornalismo na disputa simbólica da atualidade. Em um trabalho tão denso e complexo como o de Capra, um comentador e sintetizador de saberes originais, optamos por iniciar a reflexão por um fato bem conhecido: a teoria da evolução, formulada por Charles Darwin. Resumindo: segundo Darwin, a natureza evolui por meio da seleção natural onde, falando à grosso modo, alguns triunfam sobre os demais. Somente os melhores adaptados permanecem

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evoluindo. Se, em 1859, quando foi lançado o livro A Origem das Espécies, estes posicionamentos causaram polêmica.

O que os estudos de hoje demonstram é que a biologia evolutiva neodarwiniana se encontra superada e obsoleta. Claro que à época da formulação feita por Darwin, tais conhecimentos não estavam disponíveis. Darwin estabeleceu uma forma de ver o mundo materialista, indo contra a visão teológica da criação da vida, dominante no seu mundo acadêmico. Hoje, a microbiologia já provou que a evolução da vida é muito anterior ao surgimento de animais. Os biólogos sistêmicos descrevem a vida como “uma rede auto-organizadora capaz de produzir espontaneamente novas formas de ordem” (CAPRA, 2006, p.182). Capra, um divulgador de conhecimentos que formula seu pensamento ancorado em pesquisadores de ponta como Prigogine (estruturas dissipativas), Eigen (laços catalíticos), Kauffman (redes binárias), Maturana e Varela (autopoiese) e Lovelock e Margulis (Teoria de Gaia), expõe o erro na concepção darwiniana de adaptação. Diz ele: “ao longo de todo o mundo vivo, a evolução não pode ser limitada à adaptação de organismos ao seu meio ambiente, pois o próprio meio ambiente é modelado por uma rede de sistemas vivos capazes de adaptação e criatividade. Portanto, o que se adapta ao quê? Cada qual se adapta aos outros – eles co-evoluem”. (idem).

O foco passa assim da evolução individual de um organismo para a co-evolução. Teríamos assim “uma sutil interação entre competição e cooperação, entre criação e adaptação” (idem). Segundo as principais pesquisas das três últimas décadas, são três os caminhos da evolução: a mutação, a recombinação de ADN e

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a simbiogênese. A mutação é a peça central da teoria darwiniana e descreve a mudança aleatória e casual nos genes. A recombinação de ADN, uma revolucionária descoberta no comportamento de micro-organismos, prevê a colaboração entre estruturas e uma intricada troca de genes entre eles. E a simbiogênese que mostra como micro-organismos trabalham juntos e compartilham o mesmo “corpo” para evoluir e viver melhor, ou seja, obter mais energia para ambos, e, assim, tornar-se para os observadores de fora como que um único organismo.

Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza – ‘natureza vermelha em dentes e em garras’, como se expressou o poeta Tennyson -, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas palavras de Margulis e Sagan: ‘A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação de redes’. (CAPRA, 2006, p.185).

Tal formulação desmonta os até então sólidos

argumentos da competitividade adotados pelo capitalismo clássico como metáfora para a sua própria justificação. “Só os mais fortes sobreviverão”, “É necessário competir para triunfar”, entre outros lemas que estão incorporados a cultura ocidental e são repetidos como mantras. Capra, porém, apresenta um mantra distinto, baseado na própria organização dos sistemas vivos no planeta, bilhões de anos mais antigo e existente até hoje em todos os seres vivos, inclusive os seres humanos. Nesta perspectiva, a cooperação e a “criatividade inerente a todos os sistemas vivos” são os fatores que garantiram a

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diversidade natural sempre crescente. Esta é a mudança que queremos destacar. A nossa evolução está ligada à cooperação, não à competição. E este ponto é importante para o jornalismo. Diz Capra:

O reconhecimento da simbiose como uma força evolutiva importante tem profundas implicações filosóficas. Todos os organismos maiores, inclusive nós mesmos, são testemunhas vivas do fato de que práticas destrutivas não funcionam a longo prazo. No fim, os agressores sempre destroem a si mesmos, abrindo caminho para outros que sabem como cooperar e como progredir. (CAPRA, 2006, p. 193).

Este posicionamento, aplicado aos sistemas de organização social ou utilizado como parâmetro para a análise de problemáticas ambientais da atualidade, por exemplo, permitem que o analista observe o acontecimento de outro patamar. Nesta ótica, por exemplo, as mazelas socioambientais que enfrentamos, são devidas em muito ao estímulo a uma competitividade destrutiva que tem origem na estruturação do hoje sistema-mundo capitalista. Voltamos então a Capra. “A teoria dos sistemas vivos, a mente não é uma coisa, mas um processo. É a cognição, o processo de conhecer, e é identificada com o processo da própria vida” (CAPRA, 2006, p. 209). De acordo com o autor, esta é a essência da Teoria da Cognição, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, os mesmos responsáveis pela elaboração da revolucionária noção de autopoiese. A radicalidade da proposta de Maturana e Varela parte de ligar a cognição ao sistema de vida. A raiz do pensamento está na cibernética, no estudo da mente e do conhecimento de uma perspectiva sistêmica interdisciplinar. Esta “ciência cognitiva”, segundo

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Capra (2006), teve início a partir da perspectiva de que a inteligência humana é semelhante à inteligência de um computador. Tal afirmação, até hoje propalada na mídia inúmeras vezes por ano, faz parte do lugar-comum da cognição e dominou as pesquisas nos últimos 40 anos. Mas está errada. Imaginava-se que o processo de cognição envolvia “representação mental”. Capra (2006, p. 210) coloca que “assim como um computador, pensava-se que a mente opera manipulando símbolos que representam certas características do mundo”.

Na década de 1970, o modelo do computador para a cognição foi derrubado pela hipótese da auto-organização. Foram apontadas duas deficiências do modelo computacional, explicadas por Capra: “a primeira é a de que o processamento de informações baseia-se em regras sequenciais, aplicadas uma de cada vez; a segunda é a de que ele é localizado, de modo que o dano em uma parte do sistema resulta em uma séria anormalidade de funcionamento do todo”. (CAPRA, 2006, p. 210). Deste modo, deixa-se de falar em símbolos, para falarmos em “conexões”. Não se falam mais em regras locais e sim em “coerência global”.

Maturana e Varela (2001) desenvolveram o conceito da autopoiese, que significa autocriação nos sistemas vivos. Para tanto, distinguem organização de estrutura. Organização é o conjunto de relações entre seus componentes que caracteriza o sistema como pertencendo a uma classe. Para os autores, a autopoiese é um “padrão geral de organização comum a todos os sistemas vivos, qualquer que seja a natureza de seus componentes”. Já a estrutura de um sistema vivo, ao contrário, “é constituída pelas relações efetivas entre seus componentes físicos” (CAPRA, 2006, p. 89). Maturana e Varela estão falando de organização em sua teoria. Assim, eles definem a autopoiese como “uma rede

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de processos de produção, nos quais a função de cada componente consiste em participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede” (CAPRA, 2006, p. 89). Aqui gostaríamos de propor um paralelo com a produção jornalística, levando em consideração o exposto anteriormente. Existe no jornalismo atual “uma rede de processos de produção”? Em determinada medida, sim. Em um grande conglomerado de mídia ou em um grupo de “jornalistas sem fronteira” que atuam de forma descentralizada existe uma rede de processos de produção. Quando sucursais espalhadas em pontos distintos da rede trabalham em uma mesma pauta temos uma rede que executa processos de apuração de notícias. Numa produção regional, quando jornalistas de várias cidades compartilham informações em redes sociais, também. Agora, poderíamos dizer que a função de cada componente “consiste em participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede”? Dificilmente. Ao visualizarmos outra rede que não uma de produção de notícias comerciais, mas sim uma iniciativa de determinado setor da sociedade, por exemplo: uma iniciativa de combate ao câncer, poderíamos imaginar que a atitude final dos componentes é transformar “os outros componentes da rede”. Na política, quando se cria uma rede de apoio no intuito de alavancar certa candidatura, os componentes da rede desejam, sem sombra de dúvida, “participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede”. No próprio movimento ambientalista, um dos propósitos expressos pode ser traduzido na sentença-chave da autopoiese: participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede.

No microcosmo do trabalho jornalístico, internamente, dentro de uma redação, formam-se grupos de interesse (componentes) que de alguma

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forma, no decorrer das rotinas produtivas, em suas estratégias de sobrevivência ao ambiente de trabalho, ocorre, em determinada medida, atitudes que podem ser comparadas com a autopoiese. O trabalho de jornalistas mais experientes é considerado por alguns modelos de atuação. Por outros não. Entretanto, existe uma situação de conflitos internos e de organização que dificilmente poderia tentar ser compreendida em modelos estáticos. Dentro de uma redação as coisas estão sempre mudando. Não só os temas de trabalho (pautas) mas também os componentes da rede e a própria rede. É comum dizer que o jornalismo é uma profissão distinta porque as rotinas de trabalho não são rotinas e os procedimentos de apuração e edição nunca são iguais, uma vez que os acontecimentos também não o são. Neste ambiente dinâmico, todavia, existem posições que tendem a se mostrar aparentemente fixas, justamente para propor uma ordem ao caos. No caso, são as posições de chefia. Dizemos, no entanto, que tendem a se mostrar como fixas, porque no transcorrer do trabalho, são considerados profissionais mais capacitados justamente aqueles que conseguem se adaptar e adaptar os cânones profissionais a acontecimentos inesperados, fatos imprevisíveis e situações inimagináveis. Mesmo que hoje o jornalismo esteja sendo engessado em rotinas de enquadramentos oficiais e agendamentos econômicos, ainda há muito espaço para o imponderável. E, contraditoriamente são os assuntos imponderáveis, as novidades, os furos que rompem com o preestabelecido, o que mais chama a atenção do leitor. E, vende-se mais jornal. Porém, não basta ser novo. Dentro das premissas do jornalismo no sistema da vida é necessário ter uma abordagem completa e sistêmica do acontecimento.

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De volta a Varela: ele afirma que “viver é conhecer”. Como se faz um grande repórter? É aquele que mais conhece determinado assunto. Diz Capra (2006, p. 211) que “um sistema autopoiético passa por contínuas mudanças estruturais enquanto preserva seu padrão de organização semelhante a uma teia”. Ou seja, um sistema vivo está inserido no meio ambiente, mas é autônomo. O jornalista está inserido – ou não - em uma empresa jornalística, mas é autônomo. Quando Capra, como mostramos anteriormente, diz que o sistema vivo “se acopla ao seu ambiente de maneira estrutural, por intermédio de interações recorrentes, cada uma das quais desencadeia mudanças estruturais no sistema”, poderíamos dizer, que cada jornalista inserido no sistema influencia a estrutura e é por ela influenciado. Voltamos, neste ponto, à Teoria de Santiago e à formação da cognição.

A cognição não é a representação de um mundo pré-dado, independente, mas, em vez disso, é a criação de um mundo. O que é criado por um determinado organismo no processo de viver não é o mundo, mas sim um mundo que é sempre dependente da estrutura do organismo. Uma vez que os organismos no âmbito de uma espécie têm mais ou menos a mesma estrutura, eles criam linguagens semelhantes. Além disso, nós, seres humanos, partilhamos um mundo abstrato de linguagem e de pensamento por meio do qual criamos juntos o nosso mundo. (CAPRA, 2006, p.213)

Ao derrubar a ideia de que a cognição é uma

representação de um mundo que existe independentemente dela, Maturana e Varela instalaram uma polêmica epistemológica. Pensamos na cognição de jornalistas enquanto grupo social, ou de forma mais abrangente, como campo social, nos moldes do que coloca Bourdieu (1989).

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O ethos profissional do jornalista é uma visão de mundo que depende, sim, da estrutura mental de quem o pensa.

Existem muitas similitudes nos indivíduos jornalistas, assim como divergências de posição ocasionadas exatamente pela diferença estrutural (cultural) dos indivíduos que criam mapas diferentes para representar o mesmo território. Maturana e Varela também descredenciam a informação como condição necessária ao processo de cognição. De acordo com eles, temos convencionalmente a noção de que informação é algo “situado lá fora”. Informação, porém, é outra coisa.

É uma quantidade, um nome, ou uma breve afirmação que nós abstraímos de toda uma rede de relações, de um contexto no qual ela está encaixada e lhe dá significado. Sempre que tal ‘fato’ estiver encaixado num contexto estável que encontramos com grande regularidade, podemos abstraí-lo desse contexto, associá-lo com o significado inerente do contexto e chamá-lo de ‘informação’ (CAPRA, 2006, p.214).

Na nossa percepção, poucas vezes o trabalho

de apuração jornalística foi tão bem descrito. Em busca destes acontecimentos, muitas vezes o jornalista acredita que o significado está na informação e não no contexto, no factual e não na cobertura completa. Os pontos de conflito e convergência teóricos entre o que pensamos fazer e o que fazemos estão detalhados na obra de Varela e Maturana. Segundo os dois, é o ser humano que tem a capacidade de autopercepção, ou seja, “não somente saber, mas sabermos que sabemos”. Não estaria a nossa atual configuração social da prática jornalística levando à construção de um conhecimento (cognição) que na verdade nos afasta do conhecimento da realidade e contraria a nossa própria organização

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de sistema vivo? Nossas janelas para o mundo estão sintonizadas com nossa autonomia enquanto organismos vivos ou apenas delegamos o nosso viver para sermos comunicados do que é necessário sabermos para manter a atual organização social em funcionamento? Dizem Maturana e Varela: “Na medida em que sabemos como sabemos, criamos a nós mesmos”. Aí está a outra parcela de contribuição do Jornalismo. Ensinar aos jornalistas como eles estão sabendo as coisas que sabem. E envolvê-los na necessidade urgente de recriarmos a nós mesmos, não reproduzirmos o que outros gostariam que nós reproduzíssemos. Para obter o conhecimento no jornalismo vivo, social, cultural, humano é necessário colaboração.

No caminho explicativo da objetividade entre parênteses nossa corporalidade é nossa possibilidade, porque é nossa biologia. Este caminho nos abre um mundo de respeito por nós como seres vivos, porque nos damos conta de que aquilo que podemos fazer, podemos fazer na medida em que o fenômeno do conhecer é um fenômeno do vivo. (MATURANA, 2001, p. 31). O conhecer pertence à esfera do vivo. E o jornalismo é uma forma de conhecimento. E se a necessidade é incorporar a temática universal da crise ambiental, como um dos valores de formação do sentido do fazer jornalístico, a visão apontada por Maturana é um valor a ser considerado.

O autor afirma que não podemos ver o mundo com olhos que não incluam a emoção e a experiência da objetividade que vislumbre as múltiplas realidades que um observador tem no seu cotidiano. E não a experiência de uma objetividade que cria uma ilusão de poder universalizar um domínio de conhecimento que seja independente do observador. Para Maturana, “o que nos

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acontece é que, quando estamos no caminho explicativo da objetividade sem parênteses, pretendemos poder fazer referência a uma realidade independente, e é a referência ao independente de nós o que daria universalidade à nossa afirmação.” (MATURANA, 2001, p.37). Para o biólogo chileno, para buscar uma explicação do conhecer, o caminho é outro. Está na interação social:

Ainda, digo também que na medida em que as emoções fundam os espaços de ação, elas constituem os espaços de ação. Sim, não há nenhuma atividade humana que não esteja fundada, sustentada por uma emoção, nem mesmo os sistemas racionais, porque todo sistema racional, além disso, se constitui como um sistema de coerências operacionais fundado num conjunto de premissas aceitas a priori. E essa aceitação a priori desse conjunto de premissas é o espaço emocional. E quando se muda a emoção, também muda o sistema racional. (MATURANA, 2001, p. 37)

A constatação de que é na relação do emocional com o racional que se forma o sentido das ações é importante se optamos por entender o jornalismo como uma ação cultural. É necessário que o jornalismo faça uso do emocional. Pois, ao não fazê-lo, ou melhor dizendo, ao alegar não fazê-lo em prol de uma objetividade inexistente, apenas consegue colocar-se em uma posição artificial de distanciamento, onde prioriza um sistema de coerências operacionais que se apoia na falha metabólica entre o homem e a natureza. Afasta-se assim o jornalismo de sua essência mais cara: ser e estar no social, de forma dinâmica e atuante. Assim, podemos, por fim, dizer que o Jornalismo é uma forma de conhecimento peculiar. Por conta das contribuições dos autores mencionados anteriormente, entendemos que o

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jornalismo produz obras culturais criadas mentalmente pelos seres humanos e que muda continuamente, de forma a satisfazer necessidades sociais, e satisfazer a valores e finalidades estabelecidos por sociedades determinadas. Desde a modernidade, o jornalismo promove uma maneira cultural de compreensão do mundo, de suas complexidades e sutilezas, com valores consecutivos a qual influencia e é influenciada pela dinâmica social do cotidiano e pelas ações das forças plurais de uma sociedade democrática. O jornalismo e seus valores não representam o absoluto. Ao contrário, é “a coisa geral, igual e regular” que nos facilita a interpretação do “ser e acontecer”. Em um sistema social, como já dissemos, o jornalismo tem seu valor e finalidades definidos como um instrumento do saber humano imaterial, que influencia e é pela realidade influenciado, não em todas as instâncias do real, mas naquelas em que os jornalistas são levados a vivenciar por uma prática definida. Assim, o jornalismo produz notícias, infinitas partículas de conhecimento colocadas em circulação por um organismo social vivo e que interage dinamicamente com o todo. Ou seja, a notícia é mais velha do que o jornalismo, esta criação secular de produção de notícias. O ato de produzir notícias é uma característica biológica do ser humano e, portanto, da mesma forma é o jornalismo uma necessidade intrínseca do homem, muito mais do que apenas uma atividade comercial que busca lucro dentro do sistema capitalista. Temos assim que a notícia, matéria-prima do jornalismo, depende do seu público para ser avalizada. O jornalismo e a produção de notícias são uma necessidade orgânica do ser humano que independe de sistemas econômicos e políticos para existir. Desta forma, este sistema vivo social tem regras de funcionamento que operam melhor

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não em competição, mas sim em cooperação. Esta característica pode explicar muitas das crises típicas das empresas capitalistas que surgem ciclicamente também no jornalismo. Quando o jornalismo é mais cooperativo em suas relações com a sociedade, tem um melhor desempenho e auxilia na democratização das sociedades, firmando-se como uma atividade imprescindível para o funcionamento do organismo social. Quando ocorre, porém, a supremacia de uma competição desenfreada onde os únicos valores e finalidades são econômicos, o jornalismo sucumbe e se distancia da sociedade que com ele interage. É necessário fortalecer o seu ethos, buscando no imaginário os valores perdidos pela modernidade. E o universo do saber ambiental fornece uma possibilidade de apoiar o caminho da retomada de valores que recoloquem o jornalismo em sintonia com a sociedade. O jornalismo do século 21 precisas estar em sintonia com a sociedade do século 21. O jornalismo precisa saber o que ele sabe e como ele sabe. E porque ele sabe o que sabe da maneira exata que ele sabe. Em outras palavras, analisar seu próprio ethos para poder sintonizar sua energia com a vibração sonora do hoje. E o diapasão do ambiente afirma que há uma gigantesca falha em toda organização social dominada pela economia industrial e pós-industrial das corporações transnacionais.

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Definição de Jornalismo Esportivo face à midiatização do Esporte

Ricardo Z. Fiegenbaum1

Introdução

O Jornalismo Esportivo entrou na minha vida nas tardes de domingo dos já distantes anos 1970, quando, com meu pai, ouvia os programas esportivos e as transmissões de jogos de futebol numa velha eletrola sempre sintonizada na Rádio Guaíba AM, de Porto Alegre. Depois, já na virada dos anos 70 para os 80, a página de esportes do antigo Correio do Povo também ganhou importância juntamente com os programas de esporte no horário do almoço na TV Gaúcha (hoje RBS TV). Dos anos 1990 para cá, a TV e a web passaram a ocupar mais esse espaço no qual circula a informação esportiva que me interessa. O Jornalismo Esportivo, portanto, é constitutivo da minha “vida esportiva”, mas como tema de pesquisa ele começou a me interessar apenas a partir de meados de 2015, quando estudantes do Curso de Jornalismo da UFPel pediram o meu apoio para realizarem um projeto de transmissão de jogos de futebol2 pela Rádio Federal FM, emissora da Universidade. A experiência resultou na criação de uma disciplina optativa de Jornalismo Esportivo e dela vieram os primeiros movimentos para o desenvolvimento de uma pesquisa para compreender os processos e a prática do jornalismo num contexto de crescente midiatização do Esporte. Foi no encontro dessas experiências que a seguinte questão se colocou: Qual é a 1 Professor Doutor. 2 O projeto denomina-se Federal em Campo e iniciou em maio de 2015.

Realiza a transmissão de partidas de futebol dos times de Pelotas – GE Brasil, EC Pelotas e GA Farroupilha – que se realizam na cidade.

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pauta do Jornalismo Esportivo? Foi preciso, nesse percurso, assumir o lugar do

pesquisador; construir o objeto da pesquisa na dialética relação entre a teoria e o objeto empírico. Nesse sentido, esse texto busca cumprir a primeira parte dessa via de mão dupla que é o caminho entre um conjunto de conceitos e um arcabouço de fenômenos, ambos – fenômenos e conceitos – mutuamente implicados, refletidos e contraditados no processo da pesquisa. A consciência teórica e metodológica que advém dessa relação é crucial para que o pesquisador reconheça seu lugar nesse processo, evitando, assim, que a posição acima explicitada, ou seja, de um consumidor histórico do objeto pesquisado, interfira na compreensão do próprio objeto, subsumindo-se a pesquisa num arrazoado de opiniões sobre aquilo que se estuda.

Então, o tanto a que me proponho nesse texto é apresentar para o debate acadêmico uma proposta de definição de Jornalismo Esportivo tendo em vista a midiatização do Esporte. Nem de longe me permitirei mais, uma vez que se trata da minha primeira aproximação ao tema como pesquisa acadêmica. Para isso, converso com a Sociologia do Esporte na busca de uma definição para o que conhecemos hoje como Esporte, assumindo-o como um fenômeno sociocultural heterogêneo inserido no que se tem chamado de uma das indústrias culturais. No entanto, não me interessa aprofundar o aspecto mercadológico ou econômico do esporte, tema tão bem desenvolvido pelos estudos da Economia Política da Comunicação e até mesmo da Sociologia do Esporte, mas apenas trazê-lo como contexto para situar o Esporte enquanto também um fenômeno econômico, que impacta sobre as práticas de Jornalismo Esportivo.

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O segundo conceito que vou desenvolver é o de Midiatização. É nele que se sustenta a abordagem teórico-metodológica da minha pesquisa sobre o Jornalismo Esportivo. Aqui trata-se de situar as práticas e os processos jornalísticos como produtos e produtores de um mercado discursivo, tendo nos dispositivos midiáticos os organizadores e mediadores dessa economia de trocas discursivas que se estabelece na interação mútua entre instituições midiáticas, instituições não midiáticas e atores individuais. Converge para isso a consecução dos objetivos de difundir valores, de obter visibilidade e de estabelecer vínculos que cada uma das instâncias busca realizar por meio de processos midiáticos em dispositivos midiáticos de interação. A partir desses dois conceitos fundamentais – Esporte e Midiatização – abordo os aspectos que colocam o acontecimento esportivo no centro da atividade jornalística, constituindo, por essa perspectiva, o Jornalismo Esportivo como um jornalismo especializado em Esporte. Mas não apenas isso. Com base no referencial teórico mobilizado, procuro apresentar o conceito de Jornalismo Esportivo como sendo o dispositivo midiático que opera os processos de interação que envolvem o Esporte e no qual estão implicados as instituições midiáticas (as empresas de comunicação e seus veículos de mídia – rádio, TV, jornal, web, etc.), as instituições não midiáticas esportivas (empresas patrocinadoras, entidades e associações esportivas, fornecedoras de material esportivo, universidades, etc., que têm a mídia como meio) e os atores individuais (os indivíduos em sua singularidade na sociedade), com vistas a alcançar os objetivos de difundir valores, obter visibilidade e estabelecer vínculos.

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Isto posto, passo a tratar do primeiro conceito, o de Esporte, situando-o em sua gênese socioantropológica e em seu processo evolutivo, do lúdico ao competitivo, até os dias de hoje. O que é Esporte?

O esporte nasce do jogo e, de acordo com Huizinga (1987), em seu clássico Homo Ludens, o jogo faz surgir a cultura. E para que houvesse jogo, a trajetória humana precisou de duas funções naturais do ser humano: a sua inteligência e sua resposta física, de tal modo que desde que o ser humano começou a caminhar, o mundo passou a mudar (ALCOBA, 2005, p. 13). O jogo, portanto, é o precursor da cultura e, consequentemente, do esporte.

O jogo nasce como diversão, com objetivo lúdico, e, posteriormente, no seu processo evolutivo, passa a integrar o sentido do agón grego, ou seja, o aspecto da competição. Esse componente, que vem a ser central para os jogadores, impõe as condições para a passagem do jogo como diversão para o esporte, agregando-se a ele a preparação prévia por meio do treinamento, o estudo de técnicas e estratégias para melhorar os resultados e o desenvolvimento de equipamentos que contribuem para o melhor desempenho (ALCOBA, 2005). Logo, o potencial do jogo passa a ser capitalizado pelas instituições mais tradicionais, como a religião, o exército e a política, contribuindo para sua valorização. Na religião, por exemplo, atribui-se aos vitoriosos a condição de eleitos dos deuses, os jogadores dotados de virtudes físicas e morais superiores. No exército, utiliza-se a preparação proporcionada pela atividade física para obter soldados melhores e mais fortes. Na política, eleva-se a competição a um estágio superior por meio de premiações cada vez

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maiores. Esse processo todo conduz à profissionalização, que, em sequência, potencializa o jogo e o esporte como espetáculo. O espetáculo vira negócio que se fortalece e intensifica pelo desenvolvimento de processos de comunicação cada vez mais complexos. É nesse contexto que se desenvolve o Jornalismo Esportivo, como uma especialização, fortalecendo o Esporte e tudo o que o cerca (ALCOBA, 2005). Portanto, o Esporte é resultado de um processo histórico e cultural que transforma o jogo, de uma atividade lúdica e desprovida de interesse, em uma atividade competitiva complexa, que envolve diversos fatores sociais, políticos, econômicos, religiosos, entre outros.

Para alguns autores, entre eles Guttmann (1978) e Alacoba (2005), essa transformação se dá em processo desde a Antiguidade, onde estaria a origem de toda a atividade esportiva. Outros, como Bracht (1997) consideram que houve um ponto histórico específico de ruptura. Outros ainda entendem o esporte como um fenômeno sociocultural que, em perspectiva histórica, apresenta continuidades e transformações, sendo, portanto, como em outras manifestações culturais, passível de diferentes interpretações (MARCHI, 2002 apud MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007).

Nesse sentido, o esporte, como o conhecemos hoje, é resultado do processo civilizatório, especialmente demarcado pelos “princípios e configurações sociais herdadas do fenômeno que se transformou o Século XVIII, na Inglaterra, a partir da esportivização dos jogos populares” (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007, p. 227). Ele começa a se delinear no momento em que a Revolução Industrial faz sentir seus efeitos sobre a sociedade inglesa. No entanto, Mandell (1984) não considera o esporte um mero produto da industrialização,

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mas resultado das mesmas circunstâncias sociais que fomentaram a produção industrial racionalizada. “Os esportes modernos, portanto, são adaptações particulares à moderna vida econômica, social e política” (MANDELL, 1984, p. 3). Nesse sentido, o autor observa que ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, novos jogos e recreações foram sendo adaptados pelas emergentes classes sociais para ocupar um lugar em seu tempo de lazer, sem maiores consequências para a vida social. É somente no século XIX que eles passam a ter mais importância na sociedade, quando os jogos são transformados em esportes. Para Mandell, contudo, essa transformação não ocorreu de forma generalizada e simultânea em todo o mundo Ocidental. Iniciou-se no Reino Unido, de acordo com os desejos de diversão ou de ostentação das novas classes sociais, e só depois disso espalhou-se pela América e por outros países da Europa.

Elias & Dunning (1992) são mais específicos em relação a isso. Para eles, a esportivização dos jogos populares começa a se delinear a partir das escolas públicas e de seus alunos da classe aristocrática. Praticados em regiões específicas, com regras e formas de disputa regionalizadas, os jogos populares sofreram, a partir do Século XVIII, um processo de racionalização e institucionalização das regras, com o objetivo de favorecer um maior controle da violência corporal existente nessas práticas e das próprias práticas pelos professores e participantes. Com a expansão para toda a Inglaterra, foi necessário desenvolver normas mais universais para esses jogos. Nesse contexto, surgem as primeiras ligas e clubes esportivos, formados principalmente por ex-alunos das escolas públicas, que objetivam regularizar e normatizar as práticas (STIGGER, 2005). O esporte moderno surge, de acordo com Elias e Dunning, no âmago do mesmo

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processo civilizatório que se estabeleceu na sociedade inglesa dos séculos XVIII e XIX, caracterizado por um crescente controle das emoções, no sentido contrário à violência, modificando hábitos, valores e comportamentos. Para Guttmann (1978, p. 16), o esporte moderno teria como características a secularização, a especialização dos papéis, a racionalização, a burocratização, a quantificação, a igualdade de chances na disputa e a busca do recorde. No processo histórico das transformações desse fenômeno social heterogêneo, Tubino (1992) aponta para uma mudança de sentido e de sua configuração social frente a sociedade, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o esporte passa por um processo de mercantilização, adquirindo o status de espetáculo, e servindo a usos políticos ou comerciais. Marques, Almeida e Gutierrez (2007), então, definem o Esporte como

um fenômeno sociocultural que engloba diversas práticas humanas, norteadas por regras de ação próprias, regulamentadas e institucionalizadas, direcionadas para um aspecto competitivo, seja ele caracterizado pela oposição entre sujeitos ou pela comparação entre realizações do próprio indivíduo, que se manifestam através da atividade corporal (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007, p. 229).

Isso significa dizer que essas práticas expressam o desejo de realização do ser humano através da competição, que sempre esteve presente na vida humana. O que o esporte faz é regular essa competição de acordo com os interesses humanos no campo esportivo (MARQUES, 2000). Essas regras são peculiares a cada modalidade e, por isso, definidoras de cada qual, diferenciando-as umas

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das outras (é pelas regras que se pode distinguir o futebol do voleibol, por exemplo). Além disso, para preservar as regras e os regimes de competição, as modalidades esportivas são institucionalizadas, ou seja, os praticantes se organizam em associações ou entidades específicas. Por fim, os autores assinalam que o caráter competitivo presente nas práticas esportivas envolve oposição e comparação de performances, manifestadas pela atividade corporal, dando sentido à prática. “O sentido da prática deriva da importância e do papel que é atribuído ao processo competitivo, transmitindo valores” (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007, p. 229). Barbanti (2006) assinala três condições para o desenvolvimento de uma definição de esporte: 1 – esporte refere-se a tipos específicos de atividades; 2 – depende das condições sob as quais as atividades acontecem; e 3 – depende da orientação subjetiva dos participantes envolvidos nas atividades. Para ele,

esporte é uma atividade competitiva institucionalizada que envolve esforço físico vigoroso ou o uso de habilidades motoras relativamente complexas, por indivíduos, cuja participação é motivada por uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos (BARBANTI, 2006, p. 57)

Essa definição estabelece uma distinção entre esporte e recreação. No esporte, há um grau de institucionalização da competição, que envolve a padronização e imposição de regras por entidades oficiais, a valorização dos aspectos técnicos e organizacionais da atividade e a formalização da aprendizagem das habilidades esportivas. Além disso, o esporte depende de uma combinação de orientações subjetivas dos

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participantes. Ou seja, ele ocorre quando “a motivação baseada na satisfação intrínseca do envolvimento co-existe com a motivação baseada nas recompensas externas” (BARBANTI, 2006, p. 57). Quando esse equilíbrio é quebrado em favor das motivações intrínsecas, substituindo todas as preocupações pelos motivos externos, então a atividade esportiva se transforma em brincadeira, no sentido da recreação. Quando a balança pende unicamente para o lado das motivações externas (dinheiro, fama), sobrepujando as satisfações intrínsecas (o prazer de jogar), a atividade esportiva passa a ser espetáculo. Marques, Almeida e Gutierrez entendem que qualquer ação esportiva tem como contexto o sentido atribuído à prática pelos envolvidos (nos termos de Barbanti, as motivações intrínsecas ou extrínsecas) e as regras da modalidade praticada. “A inter-relação entre o sentido e a modalidade da atividade forma o contexto (campeonato), ou seja, uma forma de manifestação esportiva” (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007, p. 230). O sentido da prática envolve as razões e os valores transmitidos na prática, podendo ser, quanto a isso, práticas esportivas de alto rendimento (profissionalizadas) ou de lazer (esporte amador). As primeiras têm como valores a segregação, comparações objetivas, concorrência; as segundas, inclusão, autovalorização e cooperação. A modalidade da prática refere-se ao que no senso comum se define como tipos de esportes, mas que, para os autores deve ser considerado como diferentes formas de manifestação do fenômeno esporte. As diversas modalidades esportivas caracterizam-se por regras e normas de ações próprias e compõem universos diferentes. “As modalidades esportivas são formas de disputa autônomas quanto às suas determinações legais e, em

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alguns casos, à sua história” (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007, p. 231). Daí resulta que uma mesma modalidade (futebol, p. ex.) pode ter valores, contextos e sentidos diferentes, e um mesmo sentido pode ser atribuído para diferentes modalidades. Aqui os autores se aproximam da definição de Barbanti quanto às motivações intrínsecas e extrínsecas da atividade esportiva, distinguindo, no entanto, com base em Bracht (1997), o esporte considerado de alto rendimento, que é espetáculo para eles, do esporte enquanto atividade de lazer. O primeiro focaliza no resultado, tendo como sentido da prática o estabelecimento de comparação e análise objetiva da performance, o que leva à profissionalização. Aí entram não só o interesse pela vitória, mas também a busca pela rentabilidade econômica, que determina a necessidade de uma incorporação universal das práticas, através da homogeneização de regras e normas do esporte de alto rendimento, constituindo um mercado de consumo de produtos esportivos, que envolvem também e principalmente, uma indústria cultural. O esporte profissional é, assim, uma prática social institucionalizada, realizada por especialistas dentro de regras universais para uma assistência que tanto é presencial – e nesse caso, integra o espetáculo – como diferida, mediada por dispositivos midiáticos. O esporte de lazer, no entanto, não é homogêneo nem profissional, mas pode reproduzir, de um lado, valores dominantes do esporte profissional (como segregação, comparação de performances), porém, com foco no jogo e não no jogador, que não está inserido nas relações de trabalho implicadas no esporte de alto rendimento. De outro lado, o esporte de lazer pode manifestar-se como “lazer re-significado”, cujo objetivo é

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a prática em si e as vivências que ela proporciona, permitindo alteração e adaptação de regras às condições dos participantes (MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007). As competições amadoras, como os torneios de futebol entre sociedades recreativas, como os que ocorrem no interior do município de Pelotas, são exemplo do primeiro tipo. Já o futebol praticado em espaços improvisados, como a rua ou a beira da praia, com goleiras pequenas e sem goleiro, é um exemplo do esporte re-significado, pois tem suas regras adaptadas ao ambiente e aos participantes. Essas práticas, ainda que não profissionalizadas, também são alcançadas pelo processo de midiatização da sociedade. O Jornalismo Esportivo, como dispositivo midiático de interação, parece catalisar esses processos sociais e midiáticos que envolvem a prática profissional ou amadora do esporte, realizando operações tecno simbólicas e sociais que produzem o Esporte Midiatizado, jogando com valores, visibilidade e vínculos. Para que se possa desvendar esse processo, passo ao segundo conceito deste texto que é o de Midiatização. O que é Midiatização? Os limites desse texto não me permitem fazer aqui uma recuperação histórica e conceitual do termo Midiatização, muitas vezes usado como um operador semântico nos estudos de comunicação. Aliás, Eliseo Verón (1997), alerta para isso quando apresenta o seu esquema para análise da midiatização, sobre o qual se baseia a definição por mim utilizada aqui e em outros trabalhos (veja FIEGENBAUM, 2012). Por isso, Verón (1987) assinala que a problemática da midiatização se define por um conjunto de operações sociotécnicas e

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semiodiscursivas que envolve instituições, meios e atores individuais em mútuas afetações. Para Verón, a midiatização constitui-se como um processo de oferta de sentidos num mercado discursivo centralizado nos meios. A caracterização de um meio de comunicação importa certa dimensão coletiva cujas mensagens são acessíveis a uma pluralidade de indivíduos sob certas condições, que são estritamente econômicas, o que significa dizer que os meios de comunicação constituem um mercado discursivo, articulando uma tecnologia de comunicação a modalidades específicas de utilização (em produção e recepção). Em minha perspectiva, no entanto, e para escapar de uma conotação demasiadamente próxima de uma ideologia dos meios, utilizo o termo instituições midiáticas como instância central, porque assinala o caráter de empreendimento que caracteriza o “negócio” da comunicação que configura um “mercado” discursivo, cujo fim são os meios.

A noção de instituição midiática engloba a noção de meios de comunicação e oferece as condições de possibilidade para entender as complexas operações que se estabelecem no processo de produção, circulação e reconhecimento de sentidos que vão além dos aspectos tecnológicos que a noção de meios evoca com mais facilidade (FIEGENBAUM, 2012, p. 5).

A Midiatização é, assim, o processo pelo qual

instituições não-midiáticas, instituições midiáticas e atores individuais configuram um mercado discursivo em mútuas afetações, buscando a realização de seus objetivos de difundir valor, obter visibilidade e estabelecer vínculos, por meio de operações auto e heterorreferentes, organizadas e dinamizadas em dispositivos midiáticos de

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interação. Nesse processo, as três instâncias estabelecem níveis de relação que vão de acomodações a resistências, passando por co-operações. Central para compreender a midiatização é a noção de dispositivo midiático como lugar de operação da interação das três instâncias na consecução de seus objetivos.

As instituições não-midiáticas (INM) são, por definição, as múltiplas organizações da sociedade que se estabelecem com finalidades específicas de caráter não midiático e instituem suas próprias regras e normas para realizar seus objetivos. No caso de nosso estudo, são, por exemplo, os clubes, as associações esportivas, os atletas e seu staff, agências financiadoras, empresas patrocinadoras, etc.

As instituições midiáticas (IM) são assim denominadas por se constituírem como organizações da sociedade cuja finalidade é produzir comunicação e para as quais os meios de comunicação são tomados como fim em si mesmos. São exemplos de instituições midiáticas as redes de televisão, as emissoras de rádio, os jornais, as revistas, agências de publicidade entre outros empreendimentos midiáticos.

Os atores individuais (AI), constituído pelos indivíduos em sua singularidade, são os membros de uma sociedade, inseridos em complexas relações sociais, como na acepção de Verón (1987). São os telespectadores, os ouvintes de rádio, os leitores de jornais e revistas, os internautas, enfim, no caso dessa pesquisa, os que podem ser qualificados como integrantes do público consumidor do esporte. O termo ator individual é exatamente para se distinguir do ator social, que implica numa ideia de coletividade.

A noção de dispositivo midiático é baseada em Ferreira (2002), para quem o dispositivo não é apenas um

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suporte tecnológico. Esta é, quem sabe, a sua parte mais visível. Ao lado do técnico-tecnológico, o dispositivo apresenta uma dimensão socioantropológica e uma dimensão semio-linguística. Essas três dimensões operam em acoplamentos mútuos, o que significa dizer que o dispositivo midiático é tomado não pelas suas estruturas, que são importantes, mas pelas suas operações sistêmicas, portanto, por seus processos (FERREIRA, 2006). São os dispositivos midiáticos de interação o lugar em que as três instâncias descritas acima se encontram em intersecção. Ou seja, a midiatização não prescinde dos dispositivos midiáticos, porque é neles que se realizam os objetivos de difundir valor, obter visibilidade e estabelecer vínculos, que são perseguidos por quaisquer das instâncias no processo de midiatização3. Nesse sentido, o conceito de dispositivo qualifica o conceito de mídia e de meios (CARLON, 1999) e incorpora as qualidades atribuídas por Verón aos meios – como a noção de dispositivo tecnológico e a oferta de acesso plural às mensagens. Desse modo, os meios são um fim para as instituições midiáticas e resultado de operações que envolvem a cultura, a tecnologia e a linguagem em processos de mútuas determinações, de acoplamentos sistêmicos, de resistências e de tensões. Isso implica dizer, também, que qualquer instituição pode constituir para si, enquanto meios, dispositivos midiáticos interacionais com vistas a responder aos processos sociais mais amplos de uma sociedade em midiatização, sem, contudo, tornar-se uma instituição midiática, ou, nos termos de Verón, “meio de comunicação”.

3 Essa perspectiva foi desenvolvida em FIEGENBAUM, R.Z. Esquema

para análise da midiatização: aporte teórico-metodológico. Revista Lumina Vol. 6, nº1, junho 2012. Disponível em <www.ppgcomufjf.bem-vindo.net/lumina>.

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Uma instituição não midiática, como um clube de futebol ou uma federação esportiva qualquer, portanto, pode valer-se de seus próprios dispositivos midiáticos para ampliar seu espaço de atuação na sociedade, visando, assim, obter maior controle dos processos e, ao mesmo tempo, responder à concorrência de sentidos no mercado esportivo. As assessorias de imprensa, as páginas na web, as redes sociais da internet são alguns dos dispositivos midiáticos interacionais que podem ser apropriados pelas instituições esportivas sem que, com isso, elas se tornem instituições midiáticas. O que ocorre nesse processo é que elas se midiatizam, porque se deixam capturar pelos dispositivos midiáticos de interação para difundir seus valores, obter visibilidade e estabelecer vínculos.

Já as instituições midiáticas operam como um complexo sistema de dispositivos midiáticos. Assim, por exemplo, os meios de comunicação, que comumente têm sido definidos como veículos de comunicação, como as emissoras de TV e de rádio, os jornais, etc., são entendidos como instituições de mídia, que se organizam como um sistema de dispositivos, que integra tanto a emissora quanto o programa que ela põe em circulação com finalidades discursivas e mercadológicas. É nesse sentido que considero o Jornalismo Esportivo como um dispositivo midiático de interação, realizando operações que envolvem valor, visibilidade e vínculo.

Valor é um bem pelo qual se está disposto a sacrificar outros bens (RODRIGUES, 2000). É o valor que define o sentido social de um ente – seja instituição ou indivíduo –, e tem a ver com seus princípios e fundamentos, com aquilo que lhe é constitutivo e sem o qual não seria ele mesmo. Visibilidade é a propriedade de mostrar e não mostrar, de dizer e não dizer (DELEUZE, 2005). Refere-se à necessidade que uma instituição ou

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indivíduo tem de ser notado, de exibir-se, e, na mesma proporção, de ocultar-se. Tem a ver com a maneira como as práticas e as obras e a percepção dessas práticas e obras se manifestam. O conceito de visibilidade implica em considerar que há um regime de coisas visíveis e dizíveis, de um lado, e, de outro, de coisas que permanecem nem visíveis nem dizíveis. Vínculo trata das conexões, das relações, dos modos de pertencimento, de contrato ou de contágio, pelos quais busca-se ou oferta-se uma relação que pode ou não se realizar. A categoria de vínculo concerne ao processo de definição da natureza das relações em que dois ou mais comunicantes se encontram na interação (WINKIN, 1998), relações estas que são horizontais e verticais e que se dão com outras pessoas ou sistemas. Essas definições, portanto, permitem formular o conceito de midiatização como um processo de articulações entre instituições não midiáticas, instituições midiáticas e atores individuais, operado em dispositivos midiáticos de interação, constituídos de três dimensões – socioantropológica, tecnica-tecnológica e semioliguística –, para realizar os objetivos de cada uma das três instâncias de difundir valor, obter visibilidade e estabelecer vínculos. Esse processo se dá por meio de operações auto e heterorreferentes, de modo que, ao protagonizarem a interação entre as instâncias, os dispositivos também administram as tensões e os conflitos que se instauram tanto pela diferença entre os objetivos de cada qual, quanto pelo lugar institucional ao qual o dispositivo pertence. Tem-se assim, portanto, que quando o Esporte, enquanto prática social amadora ou profissional, é capturado pelo dispositivo midiático de interação, ele passa a ser Esporte Midiatizado. Posso, então, avançar

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para a terceira parte desse texto que é o de propor uma definição de Jornalismo Esportivo a partir dos dois conceitos abordados até aqui: o de Esporte e de Midiatização. O que é Jornalismo Esportivo? Uma definição elementar de Jornalismo Esportivo é a que o concebe como prática profissional que reporta fatos esportivos, ou seja, que, diferenciando-se do jornalismo em geral apenas pelo tipo de acontecimento que transforma em notícia, “tem por objeto a apuração, o processamento e a transmissão periódica de informações da atualidade, para o grande público ou para determinados segmentos desse público através de veículos de difusão coletiva” (RABAÇA E BARBOSA, 2002, p. 405). Independente do acontecimento reportado, jornalismo é jornalismo, afirmam Barbero e Rangel (2006). Alcoba (2005, p. 65) assinala que a diferença em relação aos outros profissionais é que o jornalista esportivo é especializado em esportes, e deve seguir os mesmos princípios técnicos e deontológicos que orientam a rotina profissional dos repórteres de outras áreas. “A essência não muda porque sua natureza é única e está intimamente ligada às regras da ética e do interesse público” (BARBEIRO e RANGEL, 2006, p.13). Interesse, aliás, é a palavra que mais se repete nas definições, observa Chaparro, e pode ser considerado o atributo da definição de Jornalismo, porque “só é notícia o relato que projeta interesses, desperta interesses ou responde a interesses” (CHAPARRO, 2007, p. 147). Na Teoria do Jornalismo, a questão do interesse é abordada sob diferentes aspectos. É constitutivo da notícia e atrelado ao modo como o jornalista enxerga os fatos com

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seus “óculos” particulares (BOURDIEU). O Jornalista é capaz de “saber” o que é notícia com base em determinados critérios de noticiabilidade que são constitutivos do habitus jornalístico. Hudec (1980), Wolf (2003), Traquina (2004; 2005), Pena (2005), entre outros autores, trabalham a exaustão as questões que definem o jornalismo a partir de sua pragmática social e discursiva, reafirmando o papel do Jornalismo para a Democracia, na medida em que se coloca como profissão a serviço do interesse público, como um quarto poder, fiscalizador dos demais poderes constitucionais. De outro lado, também é assinalado pelos autores, como Cremilda Medina (1988), que o Jornalismo é um negócio e as notícias são um produto que se vende. Nesse sentido, numa economia de mercado, o Jornalismo vive o constante conflito entre o interesse público e o interesse do público, para quem o produto notícia é ofertado como mercadoria. Assim é que, para os autores que buscam definir Jornalismo Esportivo, o esportivo é sua especialidade. Logo, o Jornalismo Esportivo é jornalismo especializado na cobertura dos fatos do Esporte e na sua constante reiteração, que Umberto Eco (1984) definiu como falação esportiva, uma redundante e interminável discursivização dos acontecimentos do esporte pela discursivização da falação sobre os acontecimentos do esporte. Mas o Jornalismo Esportivo, no meu entender, não pode ser reduzido à sua atividade de cobertura do acontecimento esportivo – o jogo em si, os resultados, o campeonato –, nem a seu caráter de intermitente falação sobre o jogo, os resultados ou o campeonato. Ele deve ser definido a partir das operações que realiza ao catalisar a interação que as instituições esportivas, as instituições midiáticas e os atores individuais realizam entre si, em mútuas afetações, perseguindo seus objetivos e, portanto, mobilizando o

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fenômeno esportivo em toda a sua complexidade. Para definir Jornalismo Esportivo, portanto,

preciso retomar os conceitos de dispositivo midiático de interação e de Esporte. Esporte é uma atividade competitiva realizada sob certas regras institucionalizadas com motivações intrínsecas ou extrínsecas e que envolve complexas habilidades psicomotoras. Num sentido mais amplo, Esporte é uma prática social e histórica que envolve diferentes interesses – econômicos, políticos, religiosos, militares, esportivos, etc. – que constitui uma indústria cultural. O Esporte é formado por diversas instituições não midiáticas, que buscam difundir seus objetivos segundo seus valores, modos de visibilidade e de vinculação. São clubes e associações esportivas, de um lado; são empresas de marketing, de outro; são, ainda, as empresas fornecedoras de material esportivo; as agenciadoras de atletas; são muitas as instituições que integram esse mercado discursivo que orbita em torno do Esporte. É desnecessário listá-las aqui.

Na outra ponta do processo, há os indivíduos em sua singularidade, os atores individuais que, a seu modo, integram o processo de midiatização do Esporte, também defendendo seus interesses em torno de seus valores, de visibilidade e de vínculos. São torcedores, aficionados do Esporte, consumidores midiáticos, esportistas amadores, que interagem com as instituições esportivas por meio de dispositivos midiáticos.

E há toda a gama de instituições midiáticas – principalmente os conglomerados de mídia, emissoras de TV, jornais, revistas, etc. – que fazem do Esporte um grande negócio, colocando em campo seus próprios valores, seus regimes de visibilidade e buscando fidelizar vínculos com patrocinadores e consumidores.

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Nesse universo, que envolve o Esporte em sua dimensão pragmática e discursiva, está o Jornalismo Esportivo. Ele é o dispositivo midiático de interação que organiza esse complexo sistema de interações entre as três instâncias que constituem o Esporte Midiatizado. O Esporte de que se ocupa o Jornalismo é mais do que sua pragmática, seja profissional ou amadora. Por isso, um conceito que se restringe aos aspectos performáticos e espetaculares do esporte enquanto prática não dá conta de explicitar as complexidades que envolvem o Jornalismo Esportivo. Não se trata, portanto, apenas de um jornalismo especializado, mas de um dispositivo midiático de interação que operacionaliza, organiza e dinamiza a consecução dos objetivos das três instâncias implicadas no universo esportivo numa sociedade midiatizada: as instituições esportivas, as instituições midiáticas e os atores individuais relacionados ao esporte.

O estudo do Jornalismo Esportivo, portanto, implica em observar as dinâmicas de interação que ocorrem no Dispositivo Midiático de Interação em suas operações sistêmicas socioténicas e discursivas, e o modo como a relação das três dimensões do dispositivo – socioantropológica, técnica-tecnológica e semiolinguística – operam as diferenciações entre as instâncias no que concerne aos objetivos relacionados a valor, visibilidade e vínculo. Implicações Ao definir o Jornalismo Esportivo como um dispositivo midiático de interação busquei recolocar o tema numa perspectiva que pudesse superar o conceito tautológico de que Jornalismo esportivo é o jornalismo que é especializado no esporte. Essa definição, embora

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válida, porque implica em assumir o estatuto ético do fazer jornalístico, seja qual for a editoria, diz pouco das contradições que se observam no jornalismo esportivo, sobretudo na relação nem sempre explícita entre os interesses econômicos de patrocinadores, das instituições midiáticas e dos atletas (muitos dos quais patrocinados). Considerando que a disputa de valores – os do Esporte enquanto elemento da cultura, os econômicos e os da paixão do torcedor, só para exemplificar – está presente no Jornalismo Esportivo ao lado das batalhas que se travam pela visibilidade e pelos vínculos, a definição que proponho parece ser apropriada para uma análise sistêmica dessas relações, numa perspectiva absolutamente comunicacional. Além disso, dá conta da heterogeneidade do Esporte como uma expressão da cultura, da economia, da política, etc., na sociedade contemporânea, e permite pensar o Jornalismo Esportivo para além da técnica e do discurso, recolocando essas questões nas suas relações com a cultura, a tecnologia e a linguagem. Movo-me, assim, do lugar que é meu desde a infância, o de um consumidor de informação esportiva, para o lugar do que questiona esse fazer jornalístico com a finalidade de compreendê-lo em sua processualidade. Finalmente, o conceito que proponho nesse texto também contribui para recolocar a questão sobre qual é a pauta do Jornalismo Esportivo. Parece-me evidente que ao assumir a perspectiva conceitual aqui esboçada, a pauta do Jornalismo Esportivo está intimamente ligada aos objetivos que integram as instâncias que operam com o esporte, ou seja, a pauta do Jornalismo Esportivo são as operações que as instâncias envolvidas colocam em jogo na disputa de sentidos no mercado discursivo midiatizado, visando difundir seus valores, obter visibilidade e

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estabelecer e manter vínculos. O objeto do Jornalismo Esportivo, portanto, é tudo aquilo que as instâncias que operam com esporte consideram importante para a consecução de seus objetivos, sendo que, muitas vezes, esses objetivos ultrapassam a própria definição de Esporte, ainda que com ele mantenham relação. Reconheço, ao fim deste artigo, que há um desafio metodológico a ser vencido para tirar todas as consequências do conceito e produzir a análise que permita observar o processo comunicacional implicado no Jornalismo Esportivo. Isso é desafio para a sequência da pesquisa. Em meu entender, no entanto, a partir dessa abordagem estou, em tese, mais integrado a uma perspectiva comunicacional para o seu estudo e de uma maneira que, afinal, o Jornalismo Esportivo permanece renovado constituindo não apenas a minha “vida esportiva” como, desde já, também a minha trajetória como pesquisador. Referências ALCOBA, Antonio. Periodismo Deportivo. Madrid: Síntesis, 2005. 205 p. ______. La Prensa Deportiva. Madrid: Universidade Complutense de Madrid, 1999. 207 p. ______. Deporte y Comunicación. Madrid: Dirección General de Deportes de la Comunidad Autónoma de Madrid, 1984. 379 p. BARBANTI. Valdir. O que é esporte? In: Revista Brasileira de Atividade Física & Saúde, Pelotas, Vol. 11, No 1, p. 54-58, (2006).

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Definição de Jornalismo Esportivo

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TERCEIRA PARTE

MEIOS

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A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais

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A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais: relações possíveis

Sílvia Porto Meirelles Leite1

Este trabalho propõe uma reflexão sobre possíveis

relações entre a elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais. Para isso, busca subsídios no processo de produção da notícia, com destaque para a etapa da pauta, e nas possibilidades das redes sociais digitais fazerem circular diferentes informações. Por fim, reflete-se sobre exemplos de assuntos que iniciaram nas redes sociais digitais e se tornaram pautas de diferentes veículos de comunicação.

Com a difusão das tecnologias digitais e, junto a isso, uma grande facilidade de se produzir e divulgar informações, alguns segmentos passaram a questionar sobre qual seria o papel do jornalismo na atualidade. O acesso a dispositivos como smartphones conectados à Internet possibilitou que os internautas divulgassem acontecimentos diversos, desde um acidente de carro na esquina da sua casa, até os efeitos de uma chuva intensa na sua cidade. Entretanto, esse material produzido por leigos não chega a ser caracterizado como uma notícia jornalística. A produção de notícias é subsidiada por procedimentos que garantam o aprofundamento e a veracidade da informação. Ou seja, fazer jornalismo não se resume a publicar fotos de ruas alagadas após uma chuva na sua cidade, é necessário confrontar informações como: a periodicidade das chuvas, o tempo que as ruas ficam alagadas após uma chuva intensa, as regiões da cidade que ficam mais alagadas, o índice pluviométrico identificado pelos especialistas, como as pessoas foram 1 Professora, Doutora.

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afetadas por essa chuva, quais as providências tomadas pelas autoridades, dentre outros elementos pertinentes para a notícia.

Conforme Traquina (2005) destaca, a produção de uma notícia envolve a capacidade de saber identificar um acontecimento, que é a matéria-prima do jornalismo, e trabalhá-lo para transformá-lo em uma notícia, considerada o produto do jornalismo. Esse processo de identificação e transformação de um acontecimento em notícia agrega conhecimentos que vem sendo construídos pela profissão. De acordo com com Schwingel (2012), a produção jornalística agrega competências de caráter técnico e cognitivo. A competência técnica é relativa às matrizes interpretativas do domínio profissional e foi sendo sistematizada junto com a institucionalização do jornalismo e com abordagens teóricas, como pode ser observado nos procedimentos relativos à produção da notícia. A competência cognitiva refere-se principalmente ao conteúdo trabalhado, às relações construídas e à interpretação dos elementos pertinentes ao conteúdo. Ou seja, a produção de notícias exige a capacidade saber identificar e analisar acontecimentos.

Assim, o jornalismo trabalha com um processo de produção que é compreendido por sistemas de apuração, produção e circulação. Com base em Schwingel (2012), entende-se que: 1) a apuração refere-se à verificação de informações e definição de uma pauta; 2) a produção compreende a composição da notícia, sua edição (com revisão e ajustes) e sua disponibilização para o público; 3) a circulação indica que, depois de disponibilizada, a notícia passa a ser acessada, comentada, debatida e repassada para outras pessoas. Destaca-se que a circulação pode contribuir para a definição de novas pautas, as quais podem corrigir ou ampliar informações trabalhadas

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inicialmente. A partir do exposto, entende-se que as publicações

dos internautas leigos, citadas anteriormente, não são consideradas notícias. Entretanto, atualmente essas publicações não são desconsideradas no processo de produção da notícia, pelo contrário, com as possibilidades de interação através da Internet, elas devem ser identificadas e trabalhadas jornalisticamente. Assim, nesse artigo, busca-se investir nas relações entre a etapa da apuração no processo de produção da notícia e as publicações dos internautas nas redes sociais digitais.

A definição da pauta: um desafio no processo de produção da notícia

A identificação de acontecimentos e a definição de pautas é um dos grandes desafios na profissão do jornalismo, é a etapa em que se identifica o que é notícia e quais as relações serão estabelecidas para trabalhá-la. A pauta tem se apresentado como um objeto de estudo das redações dos grandes jornais e de abordagens teórico-metodológicas no campo da pesquisa científica.

Na década de 1990, jornais impressos de projeção nacional como Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo publicaram manuais de redação orientando os jornalistas acerca de práticas da profissão. Nos manuais dos dois jornais a pauta é destacada e detalhada. De acordo com o manual de redação de O Estado de São Paulo (1997), a pauta não serve apenas para situar o repórter sobre um determinado tema, ela também tem a função de orientar sobre os ângulos que podem ser explorados na notícia. A pauta compreende um roteiro mínimo que deverá ser trabalhado pelo repórter, o que inclui o contato de fontes e aspectos da notícia que podem

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ser apurados. O Novo Manual de Redação da Folha de São Paulo (1992) destaca a necessidade da pauta apresentar uma hipótese (que poderá ser confirmada ou refutada), também indica a necessidade da pauta não ser genérica e tentar responder uma questão específica. A elaboração da pauta deve discutir aspectos como o histórico dos acontecimentos trabalhado na pauta, possíveis perguntas que serão respondidas pela matéria em questão, fontes que devem ser procuradas e materiais iconográficos que podem acompanhar o texto.

A partir da perspectiva trabalhada nos manuais de redação, pode-se observar que a pauta não se resume a uma prática burocrática, pelo contrário, é um instrumento que visa qualificar o processo de produção da notícia. Essa leitura também é abordada por pesquisas de caráter teórico-metodológico voltadas à construção do jornalismo como um campo de pesquisa científica. Para Lages (2011, 2005), a pauta é um instrumento usado para organizar e planejar uma edição, ela apresenta os assuntos que serão abordados com indicações sobre a ênfase e a dimensão pretendidas, bem como os recursos disponíveis e as sugestões de fontes. Pautas consistentes contribuem para a produção de uma notícia consistente, pois possibilitam uma pesquisa prévia e um argumento mais bem elaborado. As pautas podem ser quentes (geralmente assuntos inéditos, a notícia precisa ser publicada quando o fato acontece) ou frias (podem ser publicadas em qualquer data).

Com o avanço das tecnologias digitais e com a prática do jornalismo no Ciberespaço foram lançados novos desafios na elaboração da pauta. Schwingel (2012), ao tratar sobre a construção de pautas no Ciberjornalismo2, 2 De acordo com Schwingel (2012, pág. 37): “Ciberjornalismo é a

modalidade jornalística no ciberespaço fundamentada pela utilização de

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destaca a grande quantidade de informações disponíveis na Internet, as quais podem ser encontradas em bancos de dados de órgãos públicos, em páginas de organizações socialmente representativas e em perfis de redes sociais. Além disso, o contato direto com as fontes também foi facilitado através de ferramentas de comunicação on-line. Para a autora, que destaca o trabalho jornalístico com sistemas de publicação de conteúdos, na pauta já é possível definir os recursos multimidiáticos envolvidos, a arquitetura da informação com os níveis de informação e os diferentes caminhos possibilitados pela narrativa hipertextual, bem como as fontes nominais (que podem ser contatadas através da internet) e as fontes no ciberespaço.

Apesar da proposta de pauta ser semelhante, com indicação de assunto, histórico do tema, o enfoque (ou ângulo) que será trabalhado e a hipótese acerca do que será encontrado, podem ser observadas mudanças proporcionadas pelo avanço tecnológico da digitalização da informação e pela mobilidade de artefatos conectados à Internet. Dentre essas mudanças, destaca-se o acesso a recursos multimídia e a incorporação de uma linguagem audiovisual à estrutura do texto escrito. Também destaca-se o uso de sistemas de gerenciamento de conteúdo, os quais automatizam a publicação de conteúdos e disponibilizam campos que visam a organização da pauta a partir de uma linha editorial e uma proposta visual.

Independente da difusão das tecnologias digitais, permanece o desafio de se identificar um acontecimento, delimitar um assunto, pesquisar sobre esse assunto e

sistemas automatizados de produção de conteúdos que possibilitam a composição de narrativas hipertextuais, multimídias e interativas. Seu processo de produção contempla a atualização contínua, o armazenamento e recuperação de conteúdos e a liberdade narrativa com flexibilização dos limites de tempo e espaço, e com a possibilidade de incorporar o usuário nas etapas de produção”.

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definir o enfoque e a hipótese que subsidiarão a produção da notícia. Com a Internet e com a possibilidade dos internautas publicarem informações diversas que poderão ser acessadas e consultadas por outros internautas, a definição de pautas também deve atentar para os movimentos presentes nas redes sociais digitais. Ou seja, o desafio de se elaborar uma pauta consistente permanece, mas a indicação de assuntos e fontes pode ser encontrada tanto em ambientes offline quanto em ambientes on-line.

Relações entre Redes Sociais Digitais e Jornalismo

As redes sociais digitais caracterizam-se por serem

construídas através das funcionalidades disponíveis na Internet, as quais possibilitam a circulação de informações digitalizadas. De acordo com Recuero (2014), existe uma diferença entre redes sociais e sites de redes sociais. Para a autora, as redes são uma forma de se referir a grupos humanos, com isso “as redes sociais na Internet são metáforas para esses grupos na mediação do computador” (p.128). Na Internet, os atores envolvidos no processo comunicacional são representados por perfis, de modo que as conexões entre esses perfis são os nós que caracterizam a rede. As redes sociais ganham visibilidade no ciberespaço através das interações, que ocorrem através dos recursos disponibilizados pelos sites de rede social. Esses sites, como pode ser observado no Facebook e Twitter, possibilitam o armazenamento e a visibilidade das trocas entre os perfis, permitindo que as pessoas estabeleçam conexões sociais. Assim, as redes sociais são construídas através da estrutura dos sites, fomentando conexões que funcionam como vias de informações. Ou seja, informações divulgadas por um determino perfil podem circular em um determinado site de rede social

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através das conexões com os outros perfis, podendo, inclusive, ultrapassar os limites do site onde começou a circular.

Quando um perfil compartilha, comenta ou retweeta uma informação, que pode ser em formato de texto escrito ou audiovisual, está apresentando essa informação para os perfis com os quais está conectado. Se esse movimento é repetido várias vezes, aumenta o alcance da informação, que pode chegar a diferentes perfis, os quais também poderão apresentar a informação a outras pessoas em situações offline. O potencial de divulgação de uma informação através das redes sociais digitais é ilimitado.

Essa dinâmica de conexões e circulação de informações nas redes sociais possibilitou que um perfil se tornasse um difusor de informações através de suas conexões. Conforme Lévy (1999) destaca, quando a informação é digitalizada ela pode ser transmitida indefinidamente sem perda de qualidade técnica, com base em um processamento automatizado, rápido e em grande escala, além disso, as informações podem ser tratadas e alteradas. Assim, alia-se a capacidade de reprodução e transmissão da informação, o que é possibilitado pela digitalização da informação, com a capacidade de difusão das informações através dos perfis das redes sociais.

Considerando que, atualmente, muitos internautas têm facilidade para produzir e divulgar informações, pode-se observar um grande número de informações que são publicadas nos sites de rede social. Uma ampla divulgação e o grande número de acessos não quer dizer que a informação foi trabalhada jornalisticamente, ou seja, ela não foi checada e trabalhada dentro de procedimentos técnicos e cognitivos que caracterizam a prática do jornalista. Entretanto, essa informação pode ter um

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interesse público e pode influenciar na definição de uma pauta, além disso, o perfil que publicou a informação pode ser considerado fonte.

Se a definição de temas e a elaboração de pautas já apresentava uma complexidade antes da consolidação dos sites de rede social, nessa nova estrutura tem-se elementos que trazem novas problematizações para a produção de notícias. Dentre as problematizações pode-se destacar a identificação de assuntos e fontes confiáveis em um ambiente que se caracteriza pelo grande número de publicações. O ambiente on-line pode trazer à tona acontecimentos do ambiente offline e também pode dar visibilidade a situações que foram criadas na própria Internet. Apresenta-se, assim, um novo desafio, identificar acontecimentos divulgados através das redes sociais digitais e trabalhá-los jornalisticamente, iniciando pela elaboração da pauta.

Bruns3 (2014), ao debater sobre o desafio da realimentação da notícia em tempo real e a participação dos internautas na produção da notícia, destaca o impacto das mídias sociais na produção, divulgação e discussão das notícias. Ele relata que muitas notícias de pautas quentes divulgadas em 2010 e 2011 repercutiram significativamente através da cobertura nas redes sociais digitais. O autor identificou a participação dos internautas

3 Bruns (2014) trabalha com o conceito gatewatching, apresentando um

contraponto à abordagem de gatekeeping. Enquanto no gatekeeping, prática que se consolidou com a mídia de massa, tem-se os guardiões da informação que indicam o que deve ser trabalhado como notícia, no gatewatching tem-se uma revisão da curadoria das notícias. Nesse segundo caso, trabalha-se com a participação de leigos na produção jornalística e com fontes múltiplas para a publicação e divulgação das notícias, investindo em modelos colaborativos e na participação dos usuários na criação de conteúdos. As figuras do gatekeeping e do gatewatching coexistem na Internet, como pode ser observado nos portais de notícias (gatekeeping) e nas mídias sociais (gatewatching).

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na cobertura das notícias com assuntos como desastres naturais (tempestades, inundações, terremotos, tsunamis...), manifestações, distúrbios populares, escândalos políticos, jogos esportivos e acontecimentos com celebridades.

As plataformas das mídias sociais como o Facebook e o Twitter servem para acelerar ainda mais a velocidade em que as matérias noticiosas são compartilhadas, debatidas e às vezes desacreditadas; elas tornam sempre mais difícil que uma única organização noticiosa reivindique a propriedade de uma matéria ou que mantenha uma agenda noticiosa; elas atuam como um canal para as conversações imediatas mais ou menos públicas entre os jornalistas participantes, usuários das notícias e outros atores públicos associados a uma matéria, e ao fazerem isto fornecem um novo espaço vital e visível para trocas de opiniões relativas às notícias, fora do controle de qualquer organização noticiosa tradicional. (BRUNS, 2014, pág. 237).

Nessa perspectiva, trabalha-se com a compreensão

coletiva dos eventos, no qual tem-se um fluxo constante de atualizações das informações nas redes sociais digitais, principalmente com a difusão de materiais audiovisuais. Bruns (2014) destaca que mesmo empresas consolidadas que trabalham com a produção de notícias tem se referido com frequência a fontes de mídias sociais, buscando referências sobre o tema abordado na abrangência demográfica e geográfica dos internautas. A participação dos internautas na divulgação de informações contrasta com o jornalismo tradicional, pois o próprio espaço das redes sociais digitais é o principal destino dessas informações.

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Dentro dessa perspectiva, Bruns apresenta exemplos de situações em que jornalismo e internautas ativos em mídias sociais desenvolveram um trabalho conjunto na cobertura de acontecimentos. Em um dos casos apontado pelo autor, estão as enchentes ocorridas no estado australiano de Queensland em 2011, quando grupos independentes forneceram informações atualizadas sobre a região. Esses grupos publicaram materiais que foram usados como fonte por veículos de comunicação. Outra situação relatada pelo autor ocorreu na Alemanha, no caso de plágio na tese de doutorado do Ministro da Defesa Karl-Theodor Freiherrzu Guttenberg, quando internautas se uniram para identificar e documentar ocorrências de plágio na referida tese. Após a divulgação de que 95 por cento do trabalho configurava plágio, o ministro pediu demissão.

Longhi e Sousa (2012), ao debaterem sobre a dinâmica da notícia na atualidade, também trazem exemplos de relações entre redes sociais digitais e a prática do jornalismo. As autoras comentam sobre o perfil do Twitter @vozdacomunidade, que narrou a “Retomada do Complexo do Alemão” na rede social. Nesse caso, três moradores do Morro do Adeus (situado no Complexo do Alemão/Rio de Janeiro) publicaram no Twitter a ação da polícia na retomada da Favela do Alemão. Os integrantes do perfil @vozdacomunidade publicavam informações sobre o que estavam vendo na comunidade, localidade que a imprensa oficial não tinha acesso. Esse perfil publicou as informações antes dos veículos de comunicação, trabalhando com as informações em primeira mão, tanto que passaram a ser fonte da imprensa tradicional.

Os sites de rede social podem ser interpretados pelos jornalistas como um ambiente rico em acontecimentos e em fontes nominais e materiais,

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principalmente no que se refere a materiais audiovisuais. Além disso, as informações divulgadas pelos diferentes perfis podem ser trabalhadas e aprofundadas, tendo como base os referenciais de produção da notícia que caracterizam a prática jornalística. Como Bruns (2014, pág. 242) destaca: “[...] os jornalistas devem primeiro trabalhar para desenvolver uma familiaridade profunda com as plataformas disponíveis pelas mídias sociais a fim de poder “trabalhá-las” dessa maneira, mas esse investimento de tempo e de esforço poderá render benefícios consideráveis” A prática do jornalismo aliado às redes sociais digitais pode ser enriquecida pelo apoio em recursos tecnológicos, tais como: a busca por palavras-chave, o uso de hashtags, o monitoramento dos temas mais citados nos sites de redes sociais, buscas a partir de referências geográficas e identificação de fontes oficiais.

As redes sociais digitais possibilitaram que os internautas pudessem determinar o que desejam informar e o que desejam acessar, o que fomentou uma revisão sobre o que deve ser noticiado. Enquanto nos veículos tradicionais e nos grandes portais de notícias da Internet existem pessoas com a função de determinar o que é notícia e o que será divulgado em seus veículos, com os sites de rede social essa centralidade na curadoria da informação passa a ser revista. No momento em que as pessoas com acesso aos sites de redes sociais podem divulgar acontecimentos que presenciaram ou divulgar acontecimentos publicados por perfis com os quais estão conectados, tem-se um movimento indicando o que pode ser noticiado. Cabe aos jornalistas saber monitorar essas publicações, identificando possíveis assuntos, ângulos e fontes para as pautas jornalísticas.

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Pautas baseadas em informações disponibilizadas nas Redes Sociais Digitais

Atualmente pode-se observar um movimento dos

veículos de comunicação em mapear acontecimentos e assuntos que estão sendo debatidos em sites de redes sociais, visando produzir pautas a partir desses eventos. Nessa perspectiva, acontecimentos com diferentes conotações têm sido trabalhados jornalisticamente e divulgados em portais de notícias na Internet. Dentre os assuntos abordados, podem ser observados casos em que: 1) a informação que circula nas redes sociais digitais está incorreta, caracterizando uma situação de desinformação que precisa ser revista; 2) circulam informações que se caracterizam pelo teor de denúncia, o que precisa ser averiguado e trabalhado jornalisticamente e 3) amenidades são amplamente divulgadas e debatidas pelos atores das redes sociais digitais.

Nos sites de redes sociais é comum acontecer o compartilhamento de informações sem a devida averiguação, de modo que informações falsas ou incoerentes podem ganhar um grande alcance. Nesse caso, tem-se o trabalho jornalístico de corrigir a desinformação, ou seja, buscar a informação incorreta que está circulando para noticiá-la com base em checagem de fontes. Um exemplo dessa situação é o caso “da mãe americana que deixou o bebê no chão do aeroporto enquanto usava o celular”, que ocorreu em agosto de 2016. Nesse caso, um internauta publicou no Twitter uma foto com a imagem de uma mulher acompanhada de um bebê de poucos meses no saguão de um aeroporto americano, enquanto ela estava sentada e usando o celular, o bebê estava deitado em um pano no chão. Junto com a foto foi publicada a frase “who leaves the baby on the floor like really” (em português:

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Quem deixa o bebê no chão desse jeito?). A imagem viralizou na Internet e vários comentários foram postados criticando a cena e a mulher. Após a repercussão, a companhia aérea Delta Airlines se pronunciou e se responsabilizou pelo ocorrido, pois a mulher estava esperando por uma conexão há dias para voltar para casa. Ela estava acompanhada de sua filha de 2 meses. Como a companhia aérea não havia providenciado um hotel, as duas precisaram dormir no chão do aeroporto e a mulher estava no celular tentando resolver o problema. Também foi destacado que a criança estava no chão por segurança e por causa do calor. Nesse caso, a notícia tem como ponto de partida a repercussão da foto nas redes sociais e busca corrigir a informação que circulou de maneira inadequada. Um exemplo de pauta que buscou corrigir a desinformação nesse caso foi produzida pela Revista Crescer4, da Editora Globo, que trouxe a foto e os detalhes do caso, apresentando as versões dos envolvidos.

Outro caso de desinformação que circulou nas redes sociais digitais refere-se ao auxílio-reclusão. Internautas propagaram informações na Internet sobre esse auxílio, que é tratado indevidamente como “bolsa bandido” ou “bolsa presidiário”, defendendo a ideia de que o valor pago beneficia o “bandido” e não a “vítima”. Nas imagens e textos são apresentados valores aleatórios com frases de impacto e comparando os valores do benefício com o valor do salário mínimo. Entretanto, o auxílio-reclusão está previsto em lei e se caracteriza por ser um benefício previdenciário que é pago aos dependentes de contribuintes do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) que estão presos, para isso a família

4 Disponível em: http://revistacrescer.globo.com/Curiosidades/ noticia/

2016/08/mae-deixa-bebe-no-chao-enquanto-usa-o-celular-historia-por-tras-da-foto.html

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precisa comprovar que é de baixa renda. O benefício tem um valor máximo e o cálculo do valor que será pago é feito com base na média dos salários do contribuinte preso. Essas informações sobre a necessidade de contribuição e o cálculo do valor do benefício não circularam nas redes sociais com a mesma intensidade que a abordagem da “bolsa bandido”. As informações que circularam nas redes sociais estão incompletas e são apresentadas de maneira inadequada. Nesse caso, o desafio da pauta é decidir qual a abordagem dará para a notícia, que fontes serão usadas para explicar o auxílio-reclusão, qual a repercussão das informações e como a conotação de “bolsa bandido” está repercutindo na sociedade. Ou seja, a elaboração de uma pauta sobre o auxílio-reclusão pode ter como ponto de partida a repercussão das informações, corrigindo a desinformação e trazendo detalhes sobre a legislação e os impactos sociais e legais da difusão dessa informação incorreta. O Portal de Notícias Pragmatismo Político5 desenvolveu uma pauta sobre esse assunto e na notícia apresentou: como a informação está circulando nas redes sociais, uma proposta de lei que defende o fim do auxílio-reclusão, a explicação sobre o que é o auxílio-reclusão e os valores do benefício, estatísticas e a importância social dessa lei no Brasil e em outros países.

Ao refletir sobre o caráter de denúncia de informações que circulam nas redes sociais digitais, destaca-se a identificação de publicações com esse teor, bem como a elaboração de pautas que visam checar e aprofundar essas informações. Um exemplo dessa

5 Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/

mentiras-espalhas-na-web-sobre-o-auxilio-reclusao.html/amp?client=ms-android-americamovil-br

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abordagem foi desenvolvido pela Revista On-line Vice6, que elaborou uma pauta sobre “Como as Mulheres Estão Usando as Mídias Sociais para Combater a Violência Sexual na Balada”. Nessa reportagem, indica-se a repercussão do tema em outros veículos e parte-se da denúncia de duas internautas nas redes sociais, sendo que uma delas chegou a publicar fotos das marcas das agressões físicas sofridas durante a violência. As falas das internautas e as imagens divulgadas foram usadas como fontes. Além das publicações das internautas que denunciaram o assédio sexual, também fizeram parte da reportagem as declarações das casas noturnas onde ocorreu a violência, repercussão dos casos nas redes sociais, declaração dos acusados nos seus perfis e propostas de coletivos que combatem a violência contra as mulheres, incentivando a denúncia de mulheres violentadas. Nesse exemplo, as principais fontes foram encontradas nas redes sociais digitais, mas além da denúncia de casos de violência sexual, também foram indicadas instituições que auxiliam as mulheres violentadas e combatem esse tipo de crime. Destaca-se que a abordagem da pauta foi além da denúncia das publicações das internautas, aprofundando o tema e dando visibilidade para o desafio enfrentado por mulheres que são violentadas em casas noturnas. Diferente da reportagem apresentada pela Vice, na qual o enfoque e as fontes estão nas redes sociais digitais, no caso da “mulher que foi arrastada por uma viatura da polícia militar no Rio de Janeiro” o disparador da repercussão foi um vídeo7 que circulou pelas redes sociais

6 Disponível em: https://thump.vice.com/pt_br/article/como-as-mulheres-

estao-usando-as-midias-sociais-pra-combater-a-violencia-sexual-na-balada

7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lsALsX84HIA

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digitais em 2014. Nesse vídeo, que apresenta cenas fortes de violência, aparece uma pessoa sendo arrastada por uma viatura da polícia militar. Pode-se observar que a pessoa está machucada e que, após algum tempo, a viatura para, os policiais colocam a pessoa novamente na parte de trás do carro e voltam a dirigir. A pessoa arrastada era Claudia Silva Ferreira, que foi baleada a poucos metros de sua casa e levada pela polícia militar no porta-malas do carro, com o argumento de que seria levada para o hospital. Essa situação foi noticiada por diferentes veículos de comunicação, mas o caso e seus desdobramentos está sendo acompanhado durante esses dois anos pelo Jornal Extra8. A repercussão do vídeo e seu teor de denúncia contribuiu para uma maior divulgação sobre o acontecimento, bem como a elaboração de pautas que fossem além de uma descrição do vídeo, contemplando a busca por esclarecimentos sobre o caso e a procura por outras fontes.

Além das situações de desinformação e de denúncia, também são observadas publicações de internautas com amenidades que acabam contribuindo para a elaboração de pautas jornalísticas. Um exemplo, que ganhou repercussão em diferentes veículos de comunicação no ano de 2015, foi o caso da foto do vestido de duas cores acompanhado da pergunta “Gente, por favor, me ajudem! Este vestido é branco e dourado ou azul e preto?”. A postagem inicial foi publicada no Tumblr por uma escocesa, mas o debate migrou para outros sites de redes sociais, como o Twitter e o Facebook. A repercussão atingiu outros países, inclusive o Brasil, e fomentou a 8 Notícia publicada em 2014 disponível em: http://extra.globo.com/ casos-

de-policia/viatura-da-pm-arrasta-mulher-por-rua-da-zona-norte-do-rio-veja-video-11896179.html. E notícia publicada em 2016 disponível em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/dois-anos-apos-morte-de-claudia-arrastada-por-viatura-pms-nao-foram-julgados-18884993.html

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A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais

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criação das hashtags #PretoeAzul e #BrancoEDourado, que acompanhavam as opiniões sobre a cor do vestido postadas pelos internautas. Veículos de comunicação, como BBC9 e G110, abordaram o tema da repercussão da foto e trabalharam o enfoque sobre como as pessoas enxergam as cores. Nessa abordagem tem-se a fonte inicial (a foto do vestido), as postagens em redes sociais digitais debatendo a cor do vestido (principalmente postagens de celebridades), o depoimento da autora da postagem inicial e entrevistas com especialistas (fontes nominais offline). Ou seja, mesmo que o tema inicial aborde a repercussão da foto sobre a cor do vestido, a pauta não se resume a esse debate (apesar de explorá-lo), explora análises de caráter científico e tecnológico com explicações acerca do porquê as pessoas enxergam de maneira diferente as cores e suas tonalidade.

Com base nos exemplos apresentados, destaca-se que veículos de comunicação com diferentes linhas editorias estão monitorando as informações publicadas e compartilhadas através das redes sociais. Essas publicações são inspirações para a elaboração de pautas jornalísticas, colaborando para a identificação de assuntos, para a definição do enfoque e para o levantamento histórico do acontecimento. Além disso, nas redes sociais digitais podem ser encontradas fontes que ajudam a esclarecer o assunto. Mas é preciso ter uma leitura crítica sobre a definição de pautas baseadas em redes sociais, superando uma visão reducionista de “causa e efeito”, na qual a rede social pauta os veículos de comunicação. Destaca-se que as escolhas sobre o assunto e o enfoque da pauta depende dos interesses dos veículos de comunicação

9 Disponível em: http://www.bbc.co.uk/newsround/31661272 10 Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/02/ ciencia-

desvenda-misterio-do-vestido-que-muda-de-cor.html 141

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e da sua linha editorial. Considerações Finais

A elaboração de pautas é um desafio para o

jornalismo, além de definir o assunto, é na pauta que se indica qual a abordagem será trabalhada, o histórico do acontecimento, que fontes podem ser consultadas e a hipótese do que será encontrado. Junto a isso, entende-se que as redes sociais digitais podem contribuir para a identificação de assuntos e fontes, também pode contribuir para possíveis interpretações sobre o que será tratado. Essa perspectiva tem como base o potencial das redes sociais em disseminar informações, sendo elas propagadas através de textos escritos, material audiovisual, fotos ou áudios. Os sites de redes sociais são um ambiente rico de informações e de trabalho para o jornalismo na atualidade, possibilitando uma maior proximidade entre os internautas produtores de informações e o jornalista.

Com a difusão das tecnologias digitais e com a portabilidade de equipamentos conectados à Internet, como acontece com os smartphones, ficou mais fácil para as pessoas produzirem e divulgarem informações. Qualquer pessoa que domine e tenha acesso à essa tecnologia, pode publicar conteúdos, mesmo que esse não tenham sido checados dentro de procedimentos baseados no processo de produção da notícia. Diante deste cenário, no qual se tem uma quantidade incalculável de informações sendo publicadas, tem-se o desafio de identificar o que é notícia e de se trabalhar essas informações jornalisticamente.

Com isso, buscou-se identificar notícias publicadas em diferentes veículos de comunicação e que tenham sido elaboradas a partir de informações divulgadas em sites de

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A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais

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redes sociais digitais, visando reconhecer pautas relacionadas com as redes sociais. Nesse levantamento inicial, que trabalhou com veículos de comunicação com linhas editorias distintas, foram identificadas pautas que trabalharam com a circulação de informações caracterizadas como: desinformação (informações incorretas ou incompletas), denúncia e amenidade. Além disso, também pode-se observar o uso de fontes disponíveis nos sites de redes sociais, a construção de um argumento baseado na repercussão dos assuntos abordados e o aprofundamento do acontecimento inicial publicado por internautas.

A definição de temas e abordagens de uma pauta não se resume ao alcance da circulação da informação publicada inicialmente, apesar desse critério também influenciar nas escolhas. Entende-se que a elaboração da pauta também depende da linha editorial do veículo de comunicação e do valor notícia da informação que circulou. A partir disso, aponta-se como futuros estudos a identificação de notícias baseadas em informações de redes sociais digitais e a relação dessas notícias com a informação publicada inicialmente por internautas, analisando o alcance da informação inicial através comentários e compartilhamentos e as fontes utilizadas na notícia. Referências Bibliográficas BRUNS, Axel. Gatekeeping, gatewatching, realimentação em tempo real: novos desafios para o jornalismo. Brazilian Journalism Research, v. 11, n. 2, p. 224-247, 2014. Disponível em: https://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/ view/750/570

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Mídia e Educação: Impactos da WebRádio e WebTV no Universo Escolar Inclusivo

Marislei da Silveira Ribeiro1 Introdução

A internet está impactando o mundo. Com isso, o uso de diferentes tecnologias gera novos paradigmas, que vão além da apropriação do emprego de técnicas ou computadores conectados à internet. Assim, este artigo propõe uma reflexão sobre como os novos ambientes de multiplataformas estão influenciando o comportamento das pessoas.

Nesse contexto, buscou-se utilizar os espaços educativos para concretizar práticas pedagógicas inovadoras que possibilitassem a todos os envolvidos construir aprendizagens diferenciadas mediante programas radiofônicos e de TV via Web. Ao trabalhar os mais diferentes temas, pretendeu-se oportunizar experiências criativas e dialógicas, com o propósito de agregar valor aos conteúdos desenvolvidos nos bancos acadêmicos, bem como ampliar a consciência cidadã para atividades de responsabilidade social. Dessa forma, viabilizou-se aos alunos, professores e acadêmicos envolvidos uma nova perspectiva da inclusão digital e da interatividade midiática. Cabe lembrar que, com as experiências desenvolvidas, podem ser percebidas mudanças nas estratégias de aprendizado dos estudantes. A amplitude da

1 Doutora e Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em

Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. PPGCOM-PUC/RS. Professora Adjunta do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas.

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participação nas atividades, a apropriação das mensagens e o uso dos mais variados meios digitais e seus conteúdos, estão estimulando a integração e socialização dos grupos, tantos os pertencentes às instituições parceiras, como os demais integrantes do projeto. Sendo assim, a utilização das mídias como linguagem assume novas formas na educação formal, principalmente, quando os indivíduos se tornam mais críticos e pensam na coletividade.

Nesse sentido, procurou-se vincular as práticas às teorias estudadas, qualificando alunos e professores para atuarem em benefício do bem comum, tornando-se aptos a participar das aceleradas transformações do mundo contemporâneo. Na nova configuração cultural, pretende-se construir aprendizagens não só individuais, mas também coletivas e permanentes, ao serem utilizadas as comunidades virtuais de modo a facilitar a construção de saberes e o desenvolvimento de competências numa relação renovadora com o conhecimento. Por essa linha de pensamento, a partir de questões de interesse dos alunos e professores das escolas parceiras, desenvolveu-se uma proposta de mídia-educação destinada à construção de saberes, por meio da utilização de mídias como agentes sociais da socialização e da educação, levando em conta as experiências de rotinas de todos os envolvidos, especialmente, da comunidade acadêmica. Sendo assim, a estratégia adotada consistiu em concretizar atividades numa perspectiva coletiva, reflexiva, criativa e interativa, com a apropriação das ferramentas na área das Tecnologias de Comunicação e Informação. Nessa perspectiva, as mídias foram abordadas enquanto espaços educativos que auxiliam na produção de conteúdos para pessoas com deficiência visual. As experiências que vêm sendo realizadas nas escolas parceiras estão permitindo uma maior interação entre a

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universidade e esses espaços educativos, bem como um intercâmbio de ideias e valores culturais, uma vez que os estudantes, em seus diversos níveis, expressam uma forma diferenciada de ver o mundo. Portanto, o artigo, tem como objetivo, apresentar o desenvolvimento da pesquisa e atividades que foram realizadas a partir da implantação e execução de um Projeto de Extensão na área de WebRádio e WebTV, buscando a integração da universidade com escolas públicas, instituições de educação especial e a sociedade. O referido projeto, foi contemplado por meio do programa de extensão do Ministério da Educação e Cultura/PROEXT MEC/SESu, nos anos de 2014, 2015 e 2016. Todavia, o caminho que está sendo perseguido é uma discussão ampla sobre a mídia-educação, como uma forma didática que possibilita integrar várias tecnologias e plataformas midiáticas no ambiente educativo. 1. Mídia e Educação

Nas duas últimas décadas, na sociedade

contemporânea, as mudanças mais significativas referem-se ao fenômeno midiático. Considerando as mídias como tema de reflexão, verifica-se que, além de estarem presentes em nosso cotidiano, as mesmas constituem-se em pautas de discussões de interesse coletivo.

Conforme Lopes e Miani (2015), a inter-relação mídia e educação norteia o processo de recepção, cuja esfera e discussão são permanentes, visto que se refere à formação cidadã dos sujeitos envolvidos. Primeiramente, as autoras relatam que o termo passou a ser usado a o partir dos primeiros encontros da UNESCO em 1973, estando relacionado à capacidade de aplicar os meios de comunicação nos diversos níveis de escolarização. Após

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essas discussões, outras dimensões foram tratadas, enquanto um campo interdisciplinar e como prática social. Nessa perspectiva, a ideia consiste em propor a formação de sujeitos críticos e ativos frente aos meios de comunicação.

Tal busca pressupõe o entendimento do receptor enquanto ser histórica e culturalmente inserido em um grupo social, que participa de diversos processos comunicativos e é dotado de uma visão de mundo. Sua posição é ativa na sua relação com mensagens midiáticas, podendo inclusive reelaborá-las e confrontá-las (LOPES E MIANI, 2015, p. 561).

Por conseguinte, toda prática midiática configura-se como um ato de troca e de negociação, cujos agentes são o diálogo e a mediação com os diferentes públicos. Na esfera da educação, as mídias desempenham função pedagógica, induzindo professores e alunos a produzir e propagar conhecimentos, competências e habilidades. Dessa forma, no campo da comunicação digital, “as novas tecnologias não só estão presentes em todas as atividades práticas do mundo do trabalho, como também se tornam vetores de experiências do cotidiano” (SETTON, 2011, p. 91). No contexto educativo, a proposta é um aprendizado contínuo que se desdobra a partir de atitudes ativas dos receptores, por meio de canais alternativos de comunicação. Ou seja, trata-se da articulação dos aspectos teóricos do campo da mídia-educação com os fatos observáveis no decorrer das ações cotidianas. Sendo assim, faz-se imprescindível a apropriação das mídias, dos seus códigos, linguagens, ferramentas e técnicas.

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2. Educação e Inclusão: plataformas de aprendizado nas mídias digitais

2.1 Os desafios das práticas inclusivas pedagógicas no

espaço educativo

A inclusão escolar de indivíduos com qualquer tipo de deficiência, seja física ou mental, apresenta diversos desafios e complexidades. Para Carvalho (2009), a inclusão é a possibilidade de acesso, ingresso e permanência de um aluno em determinado espaço educativo, com aprendizagem real, resultando em atribuições de conhecimento e desenvolvimento de habilidades, o que não representa apenas o aumento do número de matrículas, traduzidas estatisticamente em vagas para alunos com deficiência nas turmas de ensino regular.

Ainda, segundo Carvalho (2009), três pontos precisam ser analisados na educação inclusiva: primeiro, devemos investigar as políticas educacionais nas quais estão inclusos o método integrador e a qualidade da oferta educativa, além de questões organizacionais, como a administração do sistema adotado e a administração do atendimento educacional; segundo, devemos analisar as recomendações internacionais e, terceiro, conhecer a opinião dos deficientes em foco e de suas respectivas famílias.

As políticas educacionais de cada país variam conforme seu desenvolvimento social e cultural. Isso, porque representam a regulamentação de práticas educacionais que necessitam estar de acordo com a ideologia vigente. As instituições privadas, que seguem o modelo neoliberal de organização social, têm, na opinião de Carvalho (2009), uma estrutura de melhor qualidade

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para o atendimento nessa área. Porém, em determinados municípios do Brasil, não há sequer escolas com espaços destinados a pessoas com deficiência. Quando um município dispõe dos recursos para o atendimento ao aluno deficiente, não há oferta equitativa para todas as variações de deficiência, podendo, por exemplo, uma instituição estar apta a receber um aluno com deficiência física, mas não um aluno com deficiência mental.

Considerando-se que as ofertas de serviços, governamentais ou não, estão longe de suprir nossa demanda, podemos reunir os desafios citados num único e complexo obstáculo que exige urgentes soluções: dispor, em todas as localidades, de ofertas educativas para todas as modalidades de manifestação de deficiência, seja sob a responsabilidade direta do poder público governamental, seja da iniciativa particular (CARVALHO, 2009, p. 106).

Consequentemente, a questão quantitativa da oferta

não corresponde à demanda, e a questão qualitativa também é considerada um desafio. O processo de ensino-aprendizagem não tem a garantia de qualidade, desde a falta de uma estrutura adequada, até o número reduzido de profissionais especializados. Entretanto, o ambiente escolar representa, para muitos alunos, a única oportunidade de acesso ao conhecimento e à apropriação da norma culta. A escola, então, deveria proporcionar o desenvolvimento intelectual do indivíduo, bem como contribuir para o desenvolvimento de sua criticidade, atendendo as propostas da educação inclusiva.

Outro aspecto percebido por Carvalho (2009) são as etapas do fluxo de escolarização, ainda muito discutidas no âmbito da educação especial. Nesse sentido, avalia-se a

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barreira existente desde a educação infantil até a universidade, a qual, de acordo com a autora, não deveria existir, visto que tal obstáculo atrasa o processo educativo. Os conceitos integração e inclusão também geram controvérsias entre os educadores. Integração representa o envolvimento de pessoas com deficiência na comunidade de pessoas que não possuem deficiência. “A integração é um processo dinâmico de participação das pessoas num contexto relacional, legitimando sua interação nos grupos sociais. A integração implica em reciprocidade” (CARVALHO, 2009, p. 111).

A inclusão, diferentemente, é o espaço designado para receber os indivíduos com algum tipo de deficiência, como escolas aptas a acolher alunos deficientes ou ambientes adaptados para o mesmo fim. Em vista disso, no Brasil, as práticas inclusivas pedagógicas ainda apresentam inúmeros desafios, uma vez que muitos educadores não se sentem preparados para atender aos diferentes grupos de pessoas com deficiência. 3.2 O uso das plataformas digitais como forma de

inclusão

Na organização social, a comunicação é uma das áreas de maior influência. Ela permite construir e preservar sociedades. Na atualidade, o uso do ciberespaço, como mais uma ferramenta comunicacional, amplia a abrangência das trocas de informação. Baldanza (2014) enfatiza que as tecnologias viabilizaram a comunicação a distância, desde os primórdios da escrita até a era da internet, possibilitando novas formas de interação e sociabilidade, não sendo mais necessário estar face a face para as pessoas interagir e integrar-se. Com isso, a representação do corpo e suas significações também se

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modificam a partir desse novo espaço, onde diferentes modalidades de comunicação surgem e oportunizam novas estratégias de socialização. Nesse contexto, a internet torna-se importante meio de intensificação e ampliação do processo comunicativo, já que as interações que emergem no ambiente virtual fazem-se cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade.

Consequentemente, o surgimento desse novo espaço de plataformas digitais com novos recursos tecnológicos concretizou o processo de inclusão, visto que as diversas mídias digitais estão inseridas no cotidiano das pessoas, especialmente, no dia a dia escolar. Ao trabalhar com as mídias, os professores favorecem a aprendizagem e contribuem para a formação cidadã dos alunos. Vale ressaltar que a crescente digitalização das informações faz com que a informática crie novas adaptações para seu uso e, como resultado, aumente o número de indivíduos que podem se apropriar dessas ferramentas. Um dos fatores que incentivam a intensificação do uso de equipamentos digitais para o fim de comunicação é o estimulo da concorrência de mercado, que gera a criação de produtos com custos diversificados e adaptações que suprem as necessidades particulares de cada um.

As ferramentas de comunicação e interconexão abrem um leque de oportunidades, principalmente, para os sujeitos cujos padrões de aprendizagem não seguem os quadros típicos de desenvolvimento. Os estudos mostram que pessoas limitadas por deficiências não são menos desenvolvidas, mas sim se desenvolvem de forma diferenciada. Desse modo, há possibilidades dos ambientes virtuais poderem ser assumidos como recursos para o desenvolvimento, a interação e a inclusão digital/social de pessoas com

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necessidades educativas especiais – PNEEs (COSTI, 2002).

Partindo dessa premissa, a utilização da WebRádio

e da WebTV, enquanto ferramentas de interação, amplia o desenvolvimento cognitivo dos indivíduos que fazem uso dessa experiência na sua prática comunicacional. A dimensão dialógica desses dois meios é representada pela sociabilidade desterritorializada do espaço virtual, ou seja, o espaço físico que se associa ao corpo não é essencial nesse processo, e isso faz com que as limitações físicas e de sentido não sejam obstáculos na comunicação.

3. Webjornalismo – uma multimídia interativa e

colaborativa

O Webjornalismo exige atualização contínua do profissional, pois vivemos a era da informação instantânea e da convergência midiática. Isso, porque qualquer fato novo pode ser inserido em tempo real. Assim, o gênero webjornalismo possibilita atualizações constantes. A propagação do webjornalismo, enquanto novo gênero jornalístico, pressupõe a criação de técnicas de pesquisa e apuração adequadas aos limites do ciberespaço (MACHADO, 2001, p. 1). Logo, surgem novas formas de produção jornalística que induzem os profissionais a se adaptarem com a linguagem das redes.

Com base nisso, o jornalismo na Web passa por algumas fases. A princípio, as redes são utilizadas como ferramenta auxiliar para a produção de conteúdo para os meios tradicionais como televisão e texto impresso. Na segunda fase, todas as etapas de produção jornalística estão intrínsecas às fronteiras do ciberespaço – incluindo a pesquisa, a apuração e a circulação do conteúdo (MACHADO, 2001). Dessa forma, percebe-se a mudança

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de paradigma a partir das iniciativas empresariais em relação aos editoriais elaborados com exclusividade para a internet. Através de sites de cunho jornalístico, exploram-se, com mais detalhamento, as potencialidades que são disponibilizadas na rede, tendo-se aí o WebJornalismo.

Para isso, necessita-se do entendimento de algumas características do WebJornalismo, enquanto elemento diferenciado e produtivo na veiculação da notícia. Dentre elas, apresenta-se a interatividade como uma das formas de trazer o leitor/espectador para ser parte integrante do processo de construção do fato noticioso, mediante a participação ativa do espectador, como a troca de e-mails entre leitores e jornalistas (PONTES, 2009). Quanto à convergência midiática, ocorre a integração das redações de impresso, on-line e rádio e TV, visto que tal integração, requer do profissional um elevado critério em relação à responsabilidade de trabalho. O resultado desse processo acelerado tende a constituir um novo perfil do profissional da comunicação.

As empresas de comunicação também se moldaram. Para Canavilhas (2004), num contexto global, a indústria da informação começa a investir em informática e em softwares de edição que permitem trabalhar de uma forma mais ágil e eficaz, variando, assim, as formas de linguagem.

Ainda que exista um contraste entre produzir informação e produzir jornalismo, é necessário enfatizar que, cada vez mais, o cidadão é equipado com ferramentas para disseminar informações, atuando de maneira semelhante ao campo do jornalismo.

Por fim, o movimento da web se propaga, visto que não exige do jornalista uma publicação impressa. Para tanto, é indispensável uma desintegração da escrita tradicional.

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5. A busca da inclusão social com a rádio na escola

Plataforma de comunicação que rompe o monopólio, a WebRádio está inserida no novo contexto de mídias digitais. Com o advento da internet, a interação, em um veículo antes restrito a pessoas da terceira idade, agora, abrange diversos públicos, uma vez que possibilita criar um campo de construção de debates, tornando o rádio acessível aos mais diversos públicos.

O público que passa por uma rádio no formato audiocast pode tornar-se assíduo e usufruir de um canal em que ele possa interagir para solucionar suas dúvidas e assim adquirir mais informações dentro dos temas que envolvem seus interesses. Formam-se relacionamentos sociais a partir de atrativos comuns em uma "remixabilidade colaborativa" (termo cunhado por Barb Dybawd), termo aqui perfeitamente adequado quando usado na fase digital, pois, no seu início, remixar era um procedimento usado com samplers na música pop (PRADO, 2011, p. 130).

Tendo em vista que o público na Web é

infinitamente maior e não se limita a um localismo, regionalismo ou, até, nacionalismo, hoje tornou-se mais fácil para o ouvinte baixar programas e escutá-los em qualquer tipo de aparelho, seja um celular, seja um tocador de mp3. Por essa razão, existe a facilidade de se criar uma WebRádio. Enquanto, para criar uma rádio convencional, são necessárias autorizações e concessões, para a criação de uma rádio online não é preciso nada disso.

A interatividade e a portabilidade sempre fizeram do rádio o veículo mais próximo do ouvinte. A internet deve ajudar nessas características para que

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o rádio continue vivo. Mesmo que o rádio digital brasileiro não saia do papel, a digitalização antecipada pela internet continuará a provocar mudanças significativas na linguagem, nas formas de emissão e recepção, e também em toda a cadeia produtiva do antigo veículo. Cresce o consumo de conteúdos de rádio em aparelhos e suporte digitais. Urge concluir o ciclo e digitalizar a transmissão e a recepção aberta, para que o rádio ingresse definitivamente na era da informação. (ALMEIDA e MAGNONI, 2010, p. 436).

Com isso, a revolução tecnológica vem para forçar

a reinvenção das plataformas midiáticas sem que a sociedade abra mão dos tradicionais veículos de comunicação. Não só tornou o cenário de comunicação mais amplo, como também modificou a maneira de se comunicar. Vê-se aí a construção de uma nova identidade: há maior facilidade de se comunicar em uma nova linguagem. Com a influência da internet na construção de outro modo de se comunicar, o rádio viu a necessidade de ocupar esse espaço para dialogar com a população. A relação não se deu entre público e veículo, mas pelo contrário, quando o rádio percebeu a importância também em migrar para a internet.

O rádio não é mais o primeiro veículo a dar a informação. A internet é tão instantânea quanto o rádio, e atualmente há uma tendência de aumento do número de pessoas que se informam primeiramente pela web. Dessa forma, algumas rádios abertas começam a apostar em outra característica para compensar a concorrência do jornalismo digital (ALMEIDA e MAGNONI, 2010, p. 439).

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Nessa perspectiva, as discussões e os debates realizados através de uma rádio tradicional ou web, dentro da escola na rede pública, transformam não somente a comunidade escolar, mas também outros moradores do bairro. Sendo assim, diversos assuntos, como o combate à violência e às drogas, entre outros temas que envolvem as demandas da comunidade local, são cada vez mais frequentes nas elaborações dos projetos a serem desenvolvidos na escola, pois o ambiente é propício à formação de cidadãos (AMARANTE, 2012). Compete destacar que a internet não chegou para substituir o rádio, mas, sim, para facilitar o acesso e adequá-lo à nova era da informação. Em uma sociedade que está constantemente em transformação e com a globalização diminuindo as distâncias entre as culturas, os veículos de comunicação tornaram-se, também, globais. 6. Cenário de pesquisa: contextualização da escola

parceira e anotações metodológicas Como metodologia alternativa, no

desenvolvimento do projeto, executaram-se atividades pedagógicas, na área de WebTV e WebRádio, em uma escola que atende pessoas com deficiência visual. Tais práticas permitiram a produção do conhecimento, especialmente, nas áreas da linguagem, códigos e suas tecnologias. Consequentemente, buscou-se confrontar os novos desafios - adaptando-se às exigências na educação inclusiva, ou seja, na formação do sujeito autônomo e crítico - no ambiente educacional.

Levando-se em conta que o trabalho vem sendo posto em prática desde 2014, foi realizada, primeiramente, uma parceria com a escola estadual Nossa Senhora de Lourdes – na cidade Pelotas/RS. Ali foram desenvolvidas

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atividades com 288 alunos, de três séries (1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio Politécnico), de oito turmas diferentes da instituição parceira do projeto. Num primeiro momento, foram feitas oficinas de Leitura e Produção Textual, Dicção e Oratória, assim como cobertura dos eventos na escola, entre eles: Festa Junina, Olimpíada da Matemática e Seminários Integrados. Além disso, proporcionaram-se oficinas de Expressão Corporal, com atividades destinadas à conscientização do próprio corpo. Tais atividades foram organizadas com o intuito de possibilitar aos alunos a prática de posturas adequadas. Nos programas de WebRádio/TV, as pautas foram: “Violência contra a Mulher”, “Trânsito”, “Discriminação” e “Direitos Civis na Internet”. Os referidos programas contaram com a presença de profissionais especializados nas temáticas em foco, estruturadas para incentivar os alunos a analisar assuntos atuais e discuti-los em sala de aula, com a finalidade de produzir a inter e a transdisciplinaridade entre aluno e professor. 6.1 Breve histórico da Escola Louis Braille

Buscando incluir pessoas com deficiência visual no

ambiente escolar, em 1946 foi idealizada a Escola Louis Braille, efetivada apenas em 1952. Com o apoio da comunidade pelotense, recebeu, ainda na sede da Biblioteca Pública, os primeiros alunos com esse tipo de deficiência. Hoje, a escola conta com o suporte de entidades de classe, de universidades, de cooperativas e de profissionais dispostos a ajudar, tais como: médicos, assistentes sociais, psicólogos, entre outros (CARVALHO et al., 2009).

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Atualmente, em seu prédio próprio, a instituição funciona em dois turnos, de modo que possa atender a demanda de diferentes faixais etárias, bem como estudantes da rede pública municipal e estadual. Além de atender pessoas com deficiência visual, também recebe pessoas com outros tipos de limitações, como, por exemplo, autismo (CARVALHO et al., 2009).

Portanto, a proposta pedagógica da escola, que visa a integrar os alunos com deficiência visual à comunidade, também, tem em vista o apoio das universidades e demais instituições de ensino, como forma de fortalecimento das habilidades cognitivas e de consolidação da aprendizagem dos alunos. 6.2 Programas de WebRádio e WebTV e as propostas

interativas no ambiente digital na escola parceira Louis Braille

No início do ano de 2015, agregou-se ao projeto a

temática de Inclusão Digital e Promoção dos Diretos Sociais. A partir do mês de fevereiro, foi incluída ao projeto a Escola Louis Braille, com o intuito de planejar e aplicar propostas interativas que contemplassem o ambiente digital. Nesse contexto, segundo Gil (2002, p. 63):

Após a formulação clara do problema e de sua delimitação, elabora-se um plano de assunto, que consiste na organização sistemática das diversas partes que compõem o objeto de estudo. Construir um plano significa, pois, definir a estrutura lógica do trabalho, de forma que as partes estejam sistematicamente vinculadas entre si e ordenadas em função da unidade de conjunto.

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No primeiro momento, foram realizados encontros semanais com a escola parceira Louis Braille, junto à equipe diretiva, pedagogos, assistente social e professores da instituição, a fim de que as práticas inclusivas fosse facilitadas e mediadas. Após alguns encontros, optou-se pela realização da pesquisa participante, como abordagem metodológica. Para Gil (1999), esse tipo de pesquisa caracteriza-se pelo envolvimento dos pesquisadores no processo, sendo que os observadores desempenham, também, um papel ativo na coleta de dados, instrumentos e recursos. Com base nisso, foi apresentada a proposta de criação de materiais audiovisuais e de montagem de oficinas.

Assim, contando com a participação dos envolvidos, foram criados os seguintes programas: “A musicalidade como forma de ensino”, “Audiodescrição como forma de entretenimento através da exibição de filmes”, “Capacitação dos professores da rede regular de ensino sobre a linguagem Braille”, “Apoio pedagógico no ensino e aprendizagem” e “Rádio corredor”. Com relação às oficinas, foram ministradas técnicas de produção radiofônicas para os alunos com deficiência visual, por profissionais da área, junto com os alunos bolsistas, reativando-se a rádio interna da escola. Os programas foram e são produzidos semanalmente durante o intervalo escolar, com o suporte técnico dos discentes do projeto, que escolheram o nome “Rádio Louis Braille FM”.

Em parceria com o Centro de Artes da UFPel, desenvolveram-se oficinas Sensoriais, como "Desenho na Cozinha", "Flauta Transversal" e "Musicalidade". Nas atividades e apresentações por parte dos acadêmicos dos cursos de Música e Artes Visuais foi oportunizado, incentivado e estimulado o desenvolvimento dos demais

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sentidos. Assim, buscou-se o emprego da mídia-educação, como forma de expressão e de produção.

Para Martha Silva, professora da Escola Louis Braille, "a oportunidade é ótima, principalmente a parte das artes, em que eles têm uma sensibilidade maior do que nós, videntes, eles sentem mais, têm a audição desenvolvida, e todos os outros sentidos mais apurados. Então, conviver com a música e com as artes, para eles, é uma maravilha". Com relação à radioescola, a professora comenta que a "atividade religou a comunidade acadêmica ao espaço educativo, pois os alunos começaram a ter consciência do que é uma atividade cultural, do que é mobilizar. Foi visível o entusiasmo e empenho dos participantes. Eles vencem a timidez e descobrem outros talentos". Como afirma Peruzzo (2015), a produção de mensagens radiofônicas constitui-se em um local de prática social transformadora.

Ao dinamizar as relações dos envolvidos no projeto, com os membros da escola, foi aberto espaço para outras atividades artísticas e culturais, como a oficina "Cultivo & Arte", na qual os alunos aprenderam sobre o cultivo das plantas, cuidados e outras formas de mantê-las. Essa oficina contou com o apoio de alunos do curso de Agronomia da UFPel.

Outro depoimento significativo foi o da vice-diretora da escola, professora Rosana Maria Soares Martins, segundo a qual, "o projeto foi muito importante para a escola, principalmente para os nossos alunos. Eles puderam, com esse projeto da WebRádio, aprender a se comunicar melhor, se posicionar, se expor". A dinâmica oferecida nas atividades "contribuiu para reforçar a autoestima, o sentido do trabalho em equipe e as discussões sobre as mensagens da mídia geral, visto que os estudantes gostam de escutar rádios locais".

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Dessa forma, como afirma Peruzzo (2015), a Mídia-Educação e a Comunicação Comunitária acontecem quando a comunidade se envolve voluntariamente na construção dos meios. Verificou-se que o trabalho de WebRádio teve resultados expressivos, oportunizando a criação de métodos inclusivos. Como relata o estudante Emanuel Gonçalves, 5º ano, "houve a participação espontânea e estímulos para potencializar nossas qualidades". Além da execução das atividades, especialmente, as da Rádio Louis Braille, outras foram "planejadas e apresentadas pelos colegas". "Aprendemos as técnicas, a elaboração das ideias e as mensagens radiofônicas, comentando e divulgando os eventos da escola" (Patrick Farias Dias, 4º ano).

Ainda, nos segundo semestre do ano em curso, foram planejadas e postas em práticas ações que possibilitaram gravar uma radionovela, com base na peça de teatro O Rei da Criação, já encenada pelos alunos da escola. O elenco foi constituído por estudantes que frequentam a instituição e por participantes do Centro de Reabilitação Visual da própria escola Louis Braille. Atualmente, estão em andamento a produção de um documentário acerca do cotidiano desses atores sociais, envolvendo suas dificuldades, sonhos e possibilidades, bem como a gravação de uma nova radionovela, baseada na obra o Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.

Portanto, a execução desse projeto de extensão, vinculando mídias e educação, viabilizou uma aproximação entre o corpo docente e o corpo discente do curso de Jornalismo da UFPel, com a comunidade Louis Braille, proporcionando um intercâmbio cultural e a prática de ações inclusivas na área educacional. Com isso, houve um resgate de antigas formas de entretenimento numa perspectiva contemporânea, com o propósito de

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inserir deficientes visuais em novos ambientes comunicacionais.

7. Registro das Atividades Realizadas Figura 1. Oficina "Desenho na Cozinha" no Centro de Artes.

Figura 2. Acompanhamento da apresentação de "Flauta Transversal" no Centro de Artes.

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Figura 3. Rádio Louis Braille.

Figura 4. Gravação da Radionovela.

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Nesse sentido, com o material gerado nas atividades citadas, tornou-se possível a realização de um produto audiovisual. Para tanto, foi empregado um software de edição de vídeo. 8. Considerações finais

Pretendeu-se, com este artigo, difundir as múltiplas

possibilidades de aplicação das novas tecnologias a partir da elaboração e execução do projeto de extensão em foco. Analisando as diferentes atividades realizadas com o escopo de aprimorar a educação inclusiva, percebe-se que o trabalho desenvolvido foi e tem sido relevante e pertinente, não só para a universidade, mas também para a comunidade na qual está inserida, já que diferentes ações propiciaram a aplicação de práticas pedagógicas interativas, num ambiente diferenciado, cujo público alvo são deficientes visuais.

Segundo Lévy (1999), a multimídia interativa ajusta-se muito bem aos usos educativos, favorecendo o envolvimento pessoal do aprendiz no processo de ensino-aprendizagem. À medida que uma pessoa participa da construção de um conhecimento, ela integra e retém o que aprende. Além disso, esse tipo de multimídia contribui para a formação de uma atitude de exploração e ludicidade devido à facilidade de assimilação e processamento de conteúdos. Consequentemente, a WebRádio e a WebTv constituem ferramentas muito úteis a uma pedagogia ativa e de abordagem comunicacional produtiva e transformadora.

De acordo com essa linha de pensamento, a utilização dos recursos e das técnicas proporcionou a interdisciplinaridade e a integração de várias áreas, mediante a orientação e colaboração dos professores. Por

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essa razão, acredita-se que a aplicação da mídia-educação corrobora a proposta de maior envolvimento dos alunos, professores e integrantes do projeto. Além disso, a proposta é conscientizar os envolvidos de que os meios de comunicação são construções coletivas, havendo a necessidade da participação de todos.

Por fim, com o resultado dessas experimentações, objetivou-se ampliar e aprofundar as perspectivas de atuação dos discentes e docentes com uma visão mais abrangente, por meio da interface entre educação e mídia. Partindo desse ponto de vista, a ideia é de que o recurso tecnológico é pedagógico, e o indivíduo passa a ter autoria na produção das mensagens. Sendo assim, é preciso ampliar o debate e refletir sobre a cultura e o fenômeno das mídias, sobretudo, as digitais. A intenção é convidar os atores envolvidos a fazer uma imersão nesse instigante, abrangente e diversificado campo de investigação. Referências ALMEIDA, Ana Carolina; MAGNONI, Antonio Francisco. F. Rádio e internet: recursos proporcionados pela web, ao rádio jornalismo. In: FERRARETTO, L. A.; AMARANTE, M. I. Rádio comunitária na escola: adolescente, dramaturgia e participação cidadã. São Paulo: Intermeios, 2012. KLOCKNER, Luciano. (Org.). E o rádio? Novos horizontes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. BALDANZA, Renata. A comunicação no ciberespaço: reflexões sobre a relação do corpo na interação e sociabilidade em espaço virtual. UERJ. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/639602976673

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Fundamentos para a realização de uma cobertura telejornalística1

Michele Negrini2 Roberta Brandalise3

No processo de levantamento de bibliografia sobre cobertura jornalística notamos que ela é mais extensa em manuais de redação de veículos de comunicação do que no meio acadêmico. Atentando para a produção científica do campo da Comunicação acerca de coberturas jornalísticas, observamos a predominância de textos nos quais são desenvolvidos processos analíticos que utilizam como objeto de estudo empírico o material produzido pelos meios de comunicação de massa tradicionais acerca de um determinado evento ou tema. O métier do cientista leva-o a analisar esse material empírico à luz de conceitos, bem como, a confrontar esse material com princípios éticos e os mais variados contextos sociais, culturais, econômicos e históricos, sem perder de vista a complexidade e a heterogeneidade da realidade contemporânea.

Nesse sentido, compreendemos que o uso de metodologias qualitativas combinadas às quantitativas, com especial destaque para as abordagens socioculturais e a análise discursiva, constitui-se como estratégia central

1 Artigo publicado na Revista Communicare. 2 Jornalista. Doutora em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul. Docente da Universidade Federal de Pelotas.Membro do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTELE). E-mail:[email protected].

3 Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria; mestre e doutora em Ciências da Comunicação formada pela Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Comunicação na Faculdade Cásper Líbero. E-mail: [email protected]

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para a análise de coberturas jornalísticas. Entre as contribuições para o reservatório de nosso campo destacam-se, principalmente, o estudo de coberturas jornalísticas televisivas e impressas. Os estudos sobre as coberturas radiofônicas têm se mostrado mais raros do que aqueles que contemplam a televisão, os jornais e as revistas. Chamamos a atenção também para o que consideramos uma tendência recente: o crescimento do interesse em analisar a participação de mídias não tradicionais, tal como é o caso das redes sociais, em coberturas jornalísticas.

A partir disso, é possível afirmar que, mesmo não dispondo de uma ampla produção científica acerca de coberturas jornalísticas, nosso campo tem avançado nessa seara. Entretanto, identificamos ainda a ausência de bibliografia que utilize os recursos teórico-metodológicos da Comunicação para oferecer horizontes sobre como planejar, abordar e proceder em uma cobertura jornalística.

Essa lacuna em nossa produção científica leva a seguinte práxis: quando um estudante ou profissional da área de comunicação precisa de orientações a esse respeito, ele volta-se para os manuais de redação dos veículos de comunicação. Muitos desses manuais são de bastante qualidade, uma vez que sublinham a necessidade de atender a princípios éticos e de contextualizar os acontecimentos, entre outros aspectos primordiais no exercício do jornalismo. Entretanto, por mais que um veículo de comunicação se preocupe em cultivar os jornalistas que participam de sua equipe, a formação e preparo desses profissionais extrapola os limites de um manual de redação.

Considerando o panorama que apresentamos acerca do material que temos a nossa disposição sobre

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coberturas jornalísticas, reconhecemos a necessidade de integrarmos crítica e analiticamente os questionamentos relativos aos aspectos teórico-metodológicos do campo científico com aqueles relativos aos aspectos técnicos da profissão. Compreendemos ainda que é necessário empregar os recursos do campo da Comunicação − sem perder de vista que a nossa área se caracteriza pela transdisciplinaridade − para iluminar conceitualmente, estrategicamente e tecnicamente a realização de uma cobertura jornalística. A fim de atender a essa demanda, nos propomos a explorar nesse artigo algumas articulações possíveis com respeito à realização de coberturas jornalísticas em televisão.

O percurso teórico deste estudo começa com a perspectiva de definição de cobertura jornalística em TV. Emerim e Brasil (2011) caracterizam uma cobertura como um trabalho de reportagem a ser realizado no local em que determinado fato ocorreu. Seguindo a classificação dos autores, as coberturas televisivas de um acontecimento, tanto as grandes coberturas como as cotidianas, podem ser retrospectivas ou prospectivas. As retrospectivas se dão a partir do próprio fato. Já as prospectivas se baseiam na provável ocorrência e permitem que as equipes se preparem para a sua realização.

Assim, o objetivo do presente artigo é fazer uma reflexão teórica sobre as coberturas jornalísticas em televisão, enfatizando alguns cuidados que o repórter deve ter no seu cotidiano. Vamos nos focar na discussão de aspectos que, no nosso ponto de vista, são essenciais para o planejamento e para a realização de uma cobertura jornalística para a TV: evitar o sensacionalismo e a espetacularização e evitar o uso ou o reforço de estereótipos e preconceitos.

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Evitar a Espetacularização e o Sensacionalismo

A espetacularização na programação dos meios de comunicação pode ser vista como uma tendência na atualidade. Na televisão, são comuns as coberturas jornalísticas que levam ao ar debates sobre questões do cotidiano dos envolvidos nos fatos apresentados e que apresentam de forma detalhada as suas emoções. Acreditamos que a televisão tem natureza espetacular. Entretanto, consideramos que a espetacularização no telejornalismo também está relacionada a questões econômicas e é uma estratégia dos veículos de comunicação para atrair a atenção do público.

Há autores que defendem essa perspectiva de que o espetáculo no telejornal está vinculado às questões econômicas, como Canavilhas (2011). Ele salienta que uma “programação melhor” requer investimentos por parte do veículo de comunicação, os quais estão diretamente relacionados com as receitas publicitárias e com a audiência. E o aumento da audiência ocorre com a apresentação de uma programação com características mais apelativas e espetaculares. Faz parte das reflexões do autor português a ideia de que é exigência do espetáculo que a realidade seja transmitida de forma dura, nua e crua.

Rezende (2000, p.25) é outro que concorda com a relação do espetáculo com a necessidade de faturamento das emissoras de TV:

O formato espetacular, comum às emissões de ficção e de realidade, representa a fórmula mágica capaz de magnetizar a atenção de um público tão diversificado. O espetáculo destina-se basicamente à contemplação, combinando, na produção telejornalística, uma forma que privilegia o aproveitamento de imagens atraentes – muitas

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vezes desconsiderando o seu real valor jornalístico – com um conjunto de notícias constituído essencialmente de fait divers4.

Ao definir espetáculo, destacamos o conceito de

Debord (1997, p.14): “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Nesta linha de pensamento, a sociedade está marcada pela construção de imagens, e o autêntico está sendo substituído pelo teatral, pela lógica da encenação. Para o pensador francês, o espetáculo tem amplas relações com o sistema capitalista e está em todo o meio social.

Ao pensarmos em exemplos de acontecimentos que receberam cobertura da televisão brasileira, e nos quais, ela se utilizou da espetacularização e do sensacionalismo, podemos falar da cobertura da morte de grandes personalidades e de desastres aéreos. Especificamente, é pertinente mencionar a cobertura ao caso da morte de Michael Jackson e, também, dos acidentes aéreos com o voo 3054 da TAM5 e com o voo 447 da Air France6.

A morte de Jackson ganhou considerável espaço nos principais telejornais do Brasil e do mundo. Imagens detalhadas do funeral chegaram ao público; as emoções dos fãs e dos familiares do astro musical foram destacadas no ar; manifestações de choro foram exploradas; e a vida íntima do cantor acabou se transformando em enredo para 4 Dejavite (2001) salienta que o termo fait divers, que foi introduzido

Barthes, significa fatos diversos, que estão relacionados a escândalos, curiosidades e bizarrices.

5 O acidente com o Airbus da TAM ocorreu no dia 17 de julho de 2007. Ao pousar no aeroporto de Congonhas (São Paulo), a aeronave não conseguiu frear, atravessou a Avenida Washington Luís e bateu contra um prédio da TAM Express. Houve explosão e incêndio. Cerca de 200 pessoas morreram. (Fonte: Folha Online)

6 O voo 447 da Air France partiu, no dia 31 de maio de 2009, do Rio de Janeiro para Paris e acabou desaparecendo quando sobrevoava o Oceano Atlântico. O voo transportava 228 pessoas. (Fonte: Portal G1).

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um jornalismo melodramático. No caso do Jornal Nacional, podemos evidenciar que pautou boa parte do tempo em que ficou no ar nos dias que seguiram a morte do astro musical com o caso. Outras pautas perderam espaço para os mínimos detalhes da morte de uma personalidade.

As coberturas dos acidentes aéreos com os voos 3054 da TAM e 447 da Air France não fugiram à perspectiva comum da espetacularização. No caso do acidente com o avião da TAM, o desespero dos familiares das vítimas foi a pauta principal de muitos telejornais por vários dias e testemunhas do acidente tiveram espaço para fazer da televisão um local para chorar.

No acidente com o voo 447 da Air France, a lógica do destaque às emoções dos familiares dos mortos e de toda a população marcou a cobertura. Neste caso, como o avião caiu no mar, a ausência de imagens específicas do desastre foi suprida pelas demonstrações de tristezas por parte dos enlutados e por possíveis destroços do avião.

Ao falarmos de coberturas de eventos relacionados à morte, cabe também uma discussão sobre o sensacionalismo. Neste contexto, se faz pertinente a exposição de Souza (2009, p.6): “Como indústria cultural do espetáculo e da diversão, a televisão divulga informações de ‘interesse do público’, muitas vezes carregadas de sensacionalismo”.

Crimes hediondos, mortes e catástrofes são alguns dos assuntos que estão constantemente presentes na imprensa sensacionalista. O sensacionalismo é caracterizado pelo pensador Ciro Marcondes Filho como um nutriente psíquico e como um desviante ideológico. “No fundo a imprensa sensacional trabalha com as emoções, da mesma forma que os regimes totalitários

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trabalham com o fanatismo, também de natureza puramente emocional” (Marcondes Filho, 1986, p. 90).

Angrimani Sobrinho (1995) salienta que o sensacionalismo mexe com as emoções dos espectadores e investe na exploração de suas fantasias. O jornalismo sensacionalista dá amplo espaço para pautas relacionadas à violência e à morte:

O jornal sensacionalista difere dos outros informativos por uma série de motivos específicos, entre os quais a valorização editorial da violência. O assassinato, o suicídio, o estupro, a vingança, a briga, as situações conflitantes, as diversas formas de agressão sexual, tortura e intimidação ganham destaque e merecem ser noticiadas no jornal sensação (Angrimani Sobrinho, 1995, p. 56-57).

O sensacionalismo no jornalismo acaba

evidenciando que princípios fundamentais no cotidiano das redações, como a objetividade e a imparcialidade, muitas vezes não são levados em consideração. Cabe destacar o pensamento de Melo (2006), que diz que a objetividade jornalística não está ultrapassada e que está relacionada com a pluralidade de versões na cobertura de um acontecimento. A variação de versões está atrelada com uma observação abrangente e com a manifestação de diversas vozes no discurso jornalístico. Em muitos casos, em que os telejornais levam ao ar os fatos de forma espetacularizada, princípios fundamentais do jornalismo acabam sendo ignorados e a qualidade do produto final acaba sendo questionável. A observação dos princípios dos manuais de redação jornalística e a consideração a princípios fundamentais do jornalismo – como objetividade – pode se mostrar como uma alternativa plausível para o cotidiano dos jornalistas.

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A partir das discussões apresentadas sobre espetacularização e sensacionalismo, salientamos que para falarmos em cobertura jornalística na televisão é fundamental que algumas reflexões sobre a postura profissional sejam realizadas pelo jornalista no decorrer do seu cotidiano. O profissional deve sempre levar em consideração a função social do jornalismo de informar e de contribuir para a formação de cidadãos; e ter em mente que atingir uma audiência significativa não é o único foco do jornalismo de televisão.

Fazendo uma Cobertura Jornalística

Não é possível dar conta da totalidade de aspectos que constituem a realidade, entretanto, o exercício do jornalismo exige o cultivo da habilidade de, pelo menos, vislumbrar essa totalidade e antecipar as variáveis implicadas em cada cenário. Para tanto, compreendemos que é necessário empregar esforço em conhecer tanto a complexa e heterogênea conjuntura sociocultural e histórica na qual se configuram os eventos e temas que pautam uma cobertura jornalística, quanto as complexas e multimediadas7 relações que se estabelecem entre a produção e o consumo do discurso jornalístico. Isso porque, o discurso jornalístico é tanto uma representação da conjuntura sociocultural e histórica – bem como, das relações de poder que se configuram nela –, quanto um agente transformador ou conformador dela. E a cobertura jornalística em televisão, assim como em qualquer outro

7 De acordo com Jesus Martín-Barbero (1987, p.233), as mediações são os

lugares de onde “provém as constrições que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade social da televisão”.

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veículo de comunicação, faz parte do circuito da cultura8 tanto no âmbito produtivo quanto no do consumo.

A fim de realizar com independência a cobertura de um evento ou tema, os jornalistas precisam reconhecer, portanto, que os processos de produção dela estão articulados aos processos de consumo da mesma e atentar para as implicações disso em seu trabalho – procurando conhecer tais articulações. Afinal, as intrincadas relações entre produção e consumo de uma cobertura jornalística podem deixar marcas no próprio discurso jornalístico.

No caso de uma televisão cuja programação tem alcance nacional, os sentidos construídos na cobertura jornalística ofertada serão negociados9 por diversos grupos sociais e culturais que se configuraram ao longo do processo histórico e se caracterizam pela dinamicidade, ou seja, eles não são fixos. Por isso, é necessário atentar para a complexidade e heterogeneidade do público e a dinâmica de reflexão/refração de interesses que se desenvolve nos processos de recepção ou nas apropriações e usos de uma cobertura jornalística – dinâmicas que os jornalistas não têm como controlar, mas precisam conhecer porque o discurso jornalístico é uma representação dessa realidade e atua na transformação ou conformação dela.

Quando falamos na cobertura televisiva de pautas polêmicas e, ao mesmo tempo presentes na sociedade brasileira, como violência e morte, a expectativa quanto aos meios de comunicação é a de que sejam instrumentos 8 De acordo com Paul du Gay, Stuart Hall e outros autores (1997), para se

obter uma plena compreensão de um texto ou um artefato cultural, é preciso estudá-lo no âmbito do “circuito da cultura”, ou seja, é necessário analisá-lo atentando para as articulações entre os processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação.

9 Por mais que se tente amarrar uma “mensagem” a um significado, ela não tem apenas um significado, motivo pelo qual Hall (2006, p. 350) fala em código negociado e sublinha a relevância das comunidades interpretativas.

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de vigilância e tenham seu foco na promoção de valores. Na prática do jornalismo cotidiano, nem sempre os meios atuam como mantenedores de valores; muitas vezes, trabalham assuntos polêmicos de forma a destacar o que eles têm de mais espetacular.

A finitude humana é um assunto considerado interditado nas sociedades ocidentais urbanas da atualidade (Ariès, 2003). Com o decorrer do processo histórico e com os costumes de despedida ficando cada vez mais “brandos”, chegamos, na atualidade, nas sociedades ocidentais urbanas aos tempos de morte interditada (utilizando a denominação de Philippe Ariès). Nesse contexto, em que a demonstração exagerada de emoções diante do fim da vida não faz mais parte dos costumes, é pertinente dizer que a televisão tem se mostrado como um espaço para o choro da morte e para a demonstração da dor da perda de uma pessoa querida. No espaço televisivo acaba se fazendo “um grande espetáculo” em torno da temática da finitude humana. Assim, a televisão deixa de observar as questões culturais relativas ao público receptor e desconsiderando as diferentes formas que as pessoas têm de pensar sobre o fim da vida.

Nesse sentido, também é necessário atentar para o fato de que o veículo de comunicação para o qual os jornalistas trabalham também é responsável pela produção de bens simbólicos10 como as coberturas jornalísticas. Com isso, sublinhamos que, entre tantos outros aspectos implicados nas relações entre produção e consumo de uma cobertura jornalística, o seu potencial de consumo, ou seja, 10 De acordo com a definição que Pierre Bourdieu (1974) imprime ao

conceito é possível inferir que a cobertura jornalística em televisão se constitui como um bem simbólico. Afinal, a cobertura jornalística em televisão se configura como um produto cultural ao qual pode ser conferido o status de mercadoria.

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a audiência que ela pode vir a dar para uma emissora também pode deixar marcas no discurso jornalístico. É preciso, portanto, que os jornalistas atentem para isso e atuem criticamente tanto na elaboração e defesa de sua pauta, quanto na abordagem dos temas e eventos que vierem a cobrir.

Os apontamentos que fizemos até então não podem ser desprezados na realização de uma cobertura jornalística em televisão. Entretanto, atentar para tais aspectos não é o bastante. Os jornalistas precisam investir na contextualização sociocultural e histórica da cobertura. Isso significa conhecer os nexos socioculturais, históricos e econômicos que envolvem o evento ou o tema que se propõem a cobrir, evitando o uso de estereótipos e o reforço de preconceitos.

Para tanto, é preciso compreender que, de acordo com Lippmann (2008), os estereótipos podem ser positivos ou negativos, existem em todas as culturas, são construídos historicamente e têm um papel nas relações sociais – eles são utilizados para atribuirmos, de imediato, sentido ao que nos causa estranhamento. Entretanto, mesmo que eles não sejam necessariamente negativos ou inverdades, simplificam demais aquilo que representam. Isso gera consequências adversas nos contextos culturais em que são utilizados e interpretados, e por isso, o seu uso deve ser evitado em uma cobertura jornalística.

A diferença entre o estereótipo e o preconceito é que o primeiro pode ser positivo ou negativo, enquanto o segundo é sempre uma atitude negativa em relação ao outro. Evidentemente, com isso ainda é possível dizer que os estereótipos negativos podem servir de base para a configuração do preconceito, dependendo do uso que fazemos deles. A fim de não reforçar preconceitos em uma cobertura jornalística, os jornalistas precisam saber

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identificá-lo. De acordo com Munanga (1978, p.145), preconceito é “(...) uma atitude negativa adotada por um grupo ou por uma pessoa, em relação a um outro grupo ou outra pessoa, baseada num processo de comparação social, segundo o qual o grupo de indivíduos julgador é considerado como ponto positivo de referência”. Conforme o autor, podemos pontuar ainda que o preconceito pode se manifestar nas mais diversas dimensões da vida social e cultural.

A partir disso, podemos estabelecer também que, para realizar corretamente a contextualização de uma cobertura jornalística é preciso reconhecer a diversidade, ou seja, é possível pontuar diferenças e semelhanças entre grupos identitários. A diversidade é uma realidade tecida pelas trocas materiais e simbólicas e reafirmada ao longo da história da humanidade. Entretanto, quando uma cobertura jornalística imputa valores desiguais aos grupos sociais e culturais, tomando um deles como referência positiva e assumindo uma atitude negativa em relação a outro, entra em cena o preconceito. Assim como, quando os jornalistas constroem o seu discurso lançando mão de generalizações apressadas ou super-simplificadas, principalmente, ao caracterizarem os envolvidos em um evento ou tema que é objeto de cobertura jornalística, entram em cena os estereótipos.

Além dos apontamentos que fizemos até aqui, propomos ainda que, os jornalistas atentem para a hierarquiazaçãoque eles imprimem em seu discurso às diversas vozes relacionadas ao evento ou tema que é objeto de cobertura. Norman Fairclough (1995, p. 81) sustenta nossa proposta, quando ressalta que no discurso jornalístico:

Algumas [vozes] são destacadas, outras marginalizadas. Algumas são usadas para

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enquadrar outras. Algumas são legitimadas ao serem citadas pelo apresentador ou pelo repórter, outras não. A equidade e o equilíbrio não podem ser apurados pela simples listagem de quais vozes estão representadas e, por exemplo, pelo espaço dado a cada uma delas; a rede de vozes é muitas vezes uma astuta ordenação e hierarquização de vozes.

Com isso, chamamos atenção para a importância

da pluralidade de vozes no discurso. Em uma cobertura, é preciso que o jornalista empenhe o máximo possível para atender à pluralidade de vozes que constituem a realidade social e cultural. Isso porque, mesmo que a realização de uma cobertura jornalística se dê dentro de parâmetros éticos, primando pela busca da objetividade e do equilíbrio entre diferentes pontos de vista, a imparcialidade é uma meta almejada, mas inalcançável.

Diante disso tudo, apontamos que cabe aos jornalistas, sobretudo, o compromisso de atuarem em uma cobertura jornalística como mediadores da multiplicidade de discursos que configuram a vida social e cultural. Para tanto, esses profissionais precisam desafiar inclusive a sua própria visão de mundo, as opiniões que estabelecem e as representações que constroem, fazendo-se, assim, capazes de situarem-se no lugar do outro11. É com o objetivo de colaborar para que esse compromisso seja cumprido que escrevemos esse texto. 11 Dentro de uma perspectiva antropológica, Clifford Geertz (1978) nos

permite depreender que para interpretarmos a diversidade cultural, precisamos identificar as estruturas de significado em curso em contextos específicos, bem como, suas bases sociais e importância. Para tanto, ele propõe que o cientista social (no caso, o antropólogo) se situe no lugar do outro. Propomos que o jornalista, um profissional formado na área de Ciências Sociais Aplicadas, realize o mesmo movimento.

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Considerações Finais

Nesse texto identificamos um dos problemas mais recorrentes em uma cobertura jornalística: o sensacionalismo e a espetacularização da notícia. Para enfrentar isso no cotidiano, destacamos alguns aspectos que merecem a atenção dos jornalistas:

– Evitar que a busca por audiência protagonize o processo produtivo de uma cobertura jornalística, lutando por espaço no telejornal e atuando criticamente tanto na elaboração e defesa de sua pauta, quanto na abordagem dos temas e eventos que vierem a cobrir;

– Realizar a contextualização sociocultural, histórica e econômica pertinente ao evento ou o tema que se propõem a cobrir;

– Evitar o uso de estereótipos e o reforço de preconceitos na construção de qualquer tipo de cobertura;

– Evitar a exploração emocional daqueles que estão diretamente envolvidos no evento ou tema que é objeto de uma cobertura;

– Mediar a pluralidade de vozes que constituem a realidade social e cultural, vigiando a hierarquização dessas vozes no discurso jornalístico;

– Considerar a complexidade e heterogeneidade do público e a dinâmica de reflexão/refração de interesses que se desenvolve nos processos de recepção ou nas apropriações e usos de uma cobertura jornalística, exercitando a capacidade de situar-se no lugar do outro.

Com isso, propusemos aos jornalistas um ponto de partida estratégico para realizar coberturas jornalísticas em televisão. Sem dúvida, a discussão em torno desses aspectos–entre outros, também relevantes para o trabalho de cobertura realizado pelos profissionais da área de

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Comunicação – não se esgota aqui e merece nossa atenção em futuras reflexões sobre o tema. Referências Bibliográficas ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995. ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. (org. MICELI, Sérgio). São Paulo: Perspectiva, 1974. CANAVILHAS, João. Televisão: o domínio da informação-espetáculo. In: <www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 10 de dezembro de 2001. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DEJAVITE, Fábia Angélica. O poder do fait-divers no jornalismo: humor, espetáculo e emoção. In: BARBOSA, Marialva. (org). Estudos de Jornalismo I. Edições do Mestrado em Comunicação, Imagem e Informação da UFF. Campo Grande: Intercom, 2001. DU GAY, Paul; HALL, Stuart; JANES, Linda; MACKEY, Hugh & NEGUS, Keith. (orgs.). Doing Cultural Studies: the story of the Sony Walkman. Londres: Sage/The Open University, 1997.

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